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GT 11 - Antropologia da Saúde e Direitos Humanos na América Latina: políticas

públicas e agenciamentos sociais em saúde

Saúde, cuidado e vínculo familiar: Apontamentos iniciais sobre o Programa


Criança Feliz em Rio Tinto/Paraíba, Nordeste do Brasil

Pedro Francisco Guedes do Nascimento - UFPB


Amanda Gioriatti Lunkes - UFPB
1

Introdução – Pesquisando família, gênero, pobreza e práticas de governo

As questões trazidas neste trabalho surgem de pesquisa que tem por base a
relação entre políticas públicas, família e gênero. Ao analisar essas políticas
buscamos compreender como práticas de governo específicas estão comprometidas
com certas moralidades relativas ao entendimento a respeito daqueles a que se
dirigem: os pobres, as mulheres, as famílias, a população. Nas primeiras etapas da
pesquisa buscamos compreender como são produzidos os enunciados sobre o
Programa Bolsa Família (PBF) e suas condicionalidades, principalmente aquelas na
área da saúde (NASCIMENTO, 2016). As condicionalidades do PBF foram
compreendidas como tecnologias de governo utilizadas para o alcance de metas dos
serviços de saúde. Mais que estímulo ao acesso a serviços percebemos as
condicionalidades serem utilizadas como estratégias de controle da população
baseadas, sobretudo, na ameaça de corte do benefício (NASCIMENTO; LIMA,
2018).

Ao ampliarmos o olhar para outras iniciativas locais no campo da assistência


social, o Programa Criança Feliz (PCF) ganhou centralidade pela diversidade de
questões que articula em termos de gênero e de noções acerca do desenvolvimento
infantil, e por estar, ao mesmo tempo, vinculado ao Programa Bolsa Família.
Identificamos elementos de continuidade entre essas iniciativas, como a importância
dos serviços de saúde para o contato com as famílias participantes do programa e a
moralidade que orienta as ações. Considerando que cada visitadora (profissional
encarregada pelas visitas semanais às crianças) precisa ter um conjunto de 30
famílias para acompanhar, percebemos que os dados disponibilizados pelas agentes
comunitárias de saúde são centrais para a identificação dessas pessoas que
precisam ser necessariamente beneficiárias do Bolsa Família para fazer parte do
Programa Criança Feliz.

Temos buscado compreender a articulação entre estes dois programas


governamentais, tendo como foco os pressupostos que orientam as ações voltadas
especificamente para mulheres gestantes e as crianças e as moralidades que as
orientam. A estratégia de campo inclui o contato sistemático com a equipe técnica e
as famílias envolvidas, a partir do acompanhamento das visitadoras e sua interação
com os demais integrantes da equipe. Levamos em consideração nesse processo as
2

ramificações do PCF em termos da compreensão global acionada acerca do que é a


infância, a maternidade, e o lugar do cuidado para o desenvolvimento infantil, por
meio do entendimento de que o estímulo à criança, promovendo o vínculo familiar,
permite um futuro melhor para as crianças e suas famílias.

Nessa direção, nossa análise dialoga com o campo de estudos sobre políticas
de Estado, os modos de governo e as práticas de poder onde o Estado é produzido
em relações específicas em que racionalidade estatal e moralidades se mesclam na
prática cotidiana (cf FERGUSON; GUPTA, 2002; SOUZA LIMA; MACEDO;
CASTRO, 2008; CASTILHO; SOUZA LIMA; TEIXEIRA, 2014; FONSECA; SCALCO,
2015). A abordagem foucaultiana de governamentalidade, na qual “racionalidades e
tecnologias, pensamento e intervenção” são duas dimensões indissociáveis
(MILLER; ROSE, 2012, p. 28) colabora para o entendimento das formas
contemporâneas de governo das populações (FOUCAULT, 1988; 2005; 2008a;
2008b; ROSE; MILLER, 1992; RABINOW; ROSE, 2006; FASSIN, 2009). Nessa
perspectiva está em jogo não apenas disciplina e controle, mas modos de
subjetivação onde cada indivíduo, tomado como empresário de si, é também um
aliado na busca por alcançar metas estatais que são percebidas igualmente como
um propósito individual (FOUCAULT, 2008a). Esta perspectiva pode nos ajudar na
compreensão de como as práticas contemporâneas de governo continuam a
instrumentalizar categorias tradicionais para o alcance de objetivos pactuados
globalmente com base em noções como direitos humanos e desenvolvimento
(MOLYNEUX, 2006; MOLYNEUX; THOMSON, 2011).

Buscamos nos aproximar igualmente dos estudos da ciência e da tecnologia


para fugir a polarizações correntes na análise de fenômenos sociais evitando
reducionismos que insistem em separar natureza de cultura, fatos de valores,
objetividade de subjetividade, e razão, de emoção, por exemplo (LATOUR, 2012).
Esta perspectiva permite lidar com uma compreensão de Estado partilhada por
muitos autores a partir de suas práticas cotidianas onde racionalidade e moralidade
interatuam - tanto da parte do "Estado", como da parte dos sujeitos a que as
políticas se destinam e seus múltiplos mediadores. Esta abordagem tem inspiração
na noção de coprodução desenvolvida por Sheila Jasanoff (2004) que nos leva a
considerar os diversos sujeitos envolvidos na produção daquilo que investigamos -
3

em nosso caso específico, gestores, crianças, documentos oficiais, materiais


educativos, visitadoras, técnicas, mulheres.

Esta forma de análise parte de uma abordagem metodológica focada em uma


etnografia do Estado que é orientada pela compreensão foucaultiana de
governamentalidade que, como mencionado acima, inclui mecanismos e
racionalidades políticas e estatais que "administram e regulam populações, mas que,
simultaneamente, convocam mentalidades e subjetividades, convidando o próprio
sujeito, sob a tônica da autonomia, a participar ativamente na gestão e
administração do poder". Dessa forma, compreender as tecnologias de governo
produzidas nessas relações implica em considerar como sujeitos são produzidos na
própria formação do Estado (FONSECA; MACHADO, 2015, p. 13), levando em conta
elementos que alguns autores consideram pouco desenvolvidos por Foucault, como,
por exemplo, o lugar da prática e a produção de desigualdades (FASSIN, 2009) 1.
Em direção complementar, Fergson e Gupta sugerem dar mais atenção aos
“domínios menos dramáticos, múltiplos, banais da prática burocrática por meio das
quais os estados reproduzem ordens espaciais e hierarquias escalares” (FERGSON;
GUPTA, 2002, p. 984). Uma análise do Estado deveria incluir não apenas as
representações discursivas explícitas do estado, mas também as práticas implícitas,
não marcadas, significantes: “Uma concepção orientada para a prática demanda
uma abordagem etnográfica e deve atentar para como os corpos são orientados,
como as vidas são vividas e como os sujeitos são formados” (FERGSON; GUPTA,
2002, p. 984).
Essa abordagem se cruza ainda com outras áreas de interesse da
antropologia, como gênero e família (TRAD, 2010; SARTI, 2010; SCOTT, 2011) a
partir da preocupação sobre a forma como as políticas públicas são cruzadas e
orientadas por olhares marcados pelo gênero (FONSECA, 2012; DAL’IGNA; KLEIN;
MEYER, 2014), assim como um entendimento particular do que é a família
(DONZELOT, 1986; FONSECA, 2005). Particularmente na área que nos interessa
diretamente nesse trabalho, diversas pesquisas têm também apontado essa norma

1
Didier Fassin identifica quatro mudanças para que, segundo ele, as contribuições de Foucault
continuem operativas para as pesquisas atuais: 1) Política não é apenas sobre as regras do jogo de
governar, mas também sobre suas participações; 2) Mais do que o poder sobre a vida, as sociedades
contemporâneas são caracterizadas pela legitimidade que atribuem à vida; 3) Ao invés de um
processo de normalização, a intervenção na vida é uma produção de desigualdades; 4) A política da
vida, então, não é apenas uma questão de governamentalidade e tecnologias, mas também de
significado e valores (FASSIN, 2009).
4

de gênero nas políticas de inclusão social que estão comprometidas como certa
moralidade e, dessa forma, colaboram para um processo mais amplo de politização
da maternidade (MEYER, 2005) e educação para maternidade (KLEIN, 2010;
MEYER; KLEIN; FERNANDES, 2012; KLEIN; MEYER; BORGES, 2013) em que
moralidades maternas configuram práticas institucionais (FONSECA, 2012; PIRES,
2013).

Programa Bolsa Família e o Programa Criança Feliz: histórico e articulações

Antes de avançarmos na apresentação de nossos argumentos mais


específicos, consideramos importante apresentar resumidamente elementos
programáticos das políticas em análise e alguns marcos históricos de seu
desenvolvimento. Isto se torna particularmente relevante para percebermos como se
dão as articulações entre as duas iniciativas, do ponto de vista oficial, assim como
suas atualizações na prática cotidiana das pessoas envolvidas em sua
implementação local.

Programa Bolsa Família


O Programa Bolsa Família é uma política de transferência condicionada de
renda criada em 2003, durante a gestão de Luís Inácio Lula da Silva, que unificou
diversos programas de transferência de renda criados em governos anteriores como
o Bolsa Escola, o Auxílio Gás, o Bolsa Alimentação e o Cartão Alimentação, tendo
em vista a necessidade de melhorar o gerenciamento e a efetividade dos gastos
sociais do Estado e aumentar o valor das transferências (SILVA, 2007).
São alvo do Programa as famílias em situação de extrema pobreza, com
renda mensal per capita de até R$ 89,00, e as pobres que são aquelas que contam
renda mensal de R$ 89,01 a R$ 178,00 por pessoa; as últimas precisam ter na
composição familiar gestantes e crianças ou adolescentes entre 0 e 17 anos. O
Ministério da Cidadania realiza mensalmente a seleção automatizada das famílias
cadastradas e cabe ao responsável legal pelo benefício atualizar os dados do
CadÚnico2 pelo menos a cada dois anos. O valor do benefício básico é R$ 89,00 e

2
O Cadastro Único é um sistema unificado de dados que dá acesso a programas e serviços de
assistência social para a população considerada como em situação de vulnerabilidade
socioeconômica. Ao efetuar o cadastro o beneficiário recebe um Número de Identificação Social
(NIS), que poderá ser usado, principalmente, para adesão a serviços e programas federais, mas que
também pode funcionar como forma de seleção para os que são desenvolvidos a nível estadual e
municipal.
5

pode ser acrescido de benefícios variáveis de acordo com a composição familiar: se


possui gestantes, nutrizes, adolescentes etc.
As famílias selecionadas para receber o benefício são orientadas a cumprir
certos compromissos, conhecidos como condicionalidades, que visam facilitar o
acesso a direitos básicos como saúde e educação. As gestantes e nutrizes devem
fazer acompanhamento pré-natal, comparecer a consultas regularmente nas
Unidades de Saúde da Família (USF) e participar de palestras sobre aleitamento
materno. O responsável pelo benefício, preferencialmente a mãe, deve manter o
cartão de vacinação da(s) criança(s) em dia e fazer o acompanhamento nutricional
da(s) mesma(s) até os 7 anos de idade. O monitoramento das condicionalidades é
de responsabilidade das(os) agentes comunitárias(os) de saúde e das(os)
enfermeiras(os) das USFs dos municípios.

Marco Legal da Primeira Infância e Programa Criança Feliz


Em março de 2016 foi sancionada pela Presidenta Dilma e promulgada a Lei
nº 13.257, mais conhecida como Marco Legal da Primeira Infância, que estabelece
“princípios e diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas
para a primeira infância em atenção à especificidade e à relevância dos primeiros
anos de vida no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser humano [...].”
de forma integral, considerando como primeira infância o período de 0 a 6 anos de
vida.
Prevê que políticas e programas voltados a esse público respeitem os
diferentes ritmos de desenvolvimento e os contextos culturais e sociais nos quais as
crianças estão inseridas. O Marco Legal toma como primárias para ação das
políticas públicas as áreas da saúde, alimentação e nutrição, educação infantil,
convivência familiar e comunitária, assistência social, cultura, brincar e lazer, espaço
e meio ambiente, assim como a proteção contra qualquer forma de violência e
pressão consumista.
A lei define que gestantes e famílias com crianças na primeira infância
recebam “orientação e formação sobre maternidade e paternidade responsáveis”
aleitamento materno, alimentação saudável, desenvolvimento infantil integral e
prevenção de acidentes. A expectativa é que assim sejam formados e consolidados
vínculos afetivos e o desenvolvimento integral da criança. Oferece prioridade de
atendimento das políticas sociais públicas para a população identificada nas redes
6

de saúde, educação e assistência social como em situação de risco ou com direitos


violados que não permitam que as famílias exerçam seu papel de cuidado e
educação na primeira infância. (BRASIL, 2016a).3
Um pouco depois da sanção do Marco Legal, em 31 de agosto de 2016
Michel Temer, até então vice-presidente da chapa, assume interinamente o cargo,
após o impeachment da presidenta Dilma. Em 5 de outubro do mesmo ano a gestão
promulga o Decreto nº 8.869 que institui o Programa Criança Feliz4, primeira medida
do governo dentro das diretrizes do Marco Legal da Primeira Infância. O Programa
busca atender gestantes, crianças de 0 a 3 anos e suas famílias beneficiárias do
Bolsa Família e de até 6 anos quando assistidas pelo Benefício de Prestação
Continuada ou afastadas do convívio familiar por violação de direitos (BRASIL,
2016b).
A política tem como objetivos a promoção do desenvolvimento da criança a
partir do apoio e do acompanhamento do desenvolvimento infantil na primeira
infância, o apoio à gestante e à família para o nascimento e os primeiros cuidados
com o bebê, o fortalecimento de vínculos familiares e o desempenho na função de
cuidar e educar os filhos, bem como mediar o acesso dos assistidos às políticas e
serviços públicos.
O decreto propõe a realização de visitas domiciliares realizadas por
profissionais capacitados e com formação continuada e ações complementares de
apoio ao público alvo. Deverão ser desenvolvidos materiais e conteúdos de apoio
para atender intersetorialmente gestantes, crianças na primeira infância e sua
família. Os estados, Distrito Federal e municípios devem oferecer suporte para a
implementação do Programa e para a articulação intersetorial entre assistência
social, saúde, educação, cultura, direitos humanos, entre outras áreas. A
coordenação geral do PCF foi atribuída ao Ministério do Desenvolvimento Social e
Agrário5, que encabeçava o Comitê Gestor composto também pelos ministérios da
Justiça e Cidadania, da Educação, da Saúde e da Cultura.

3
Marco Legal da Primeira Infância, Lei nº 13.256, de 8 de março de 2016. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm.
4
Decreto do Programa Criança Feliz. Disponível em: https://bit.ly/2x7gcqp.
5
No dia 1º de janeiro de 2019 foi promulgada a Medida Provisória nº 870 que, entre outras medidas,
transforma o Ministério do Desenvolvimento Social, o Ministério da Cultura e o Ministério do Esporte
no Ministério da Cidadania, sob chefia do Ministro Osmar Terra, essas transformações afetaram
também outros ministérios. Dentro do último, o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário foi
reduzido a Secretaria Especial do Desenvolvimento Social. As secretarias especiais de Agricultura
Familiar e Desenvolvimento Agrário, da Aquicultura e da Pesca e da Micro e Pequena Empresa foram
7

Continuidades entre o PIM – Primeira Infância Melhor – e Programa Criança Feliz


Conforme mencionado na introdução deste trabalho, nosso contato com o
Programa Criança Feliz se deu como desdobramento das pesquisas realizadas
sobre o Programa Bolsa Família. Não estava claro até então como o Criança Feliz
se articulava com o Bolsa Família. As primeiras análises do lançamento do
Programa Criança Feliz nos chegaram por meio do aspecto mais reforçado à época
de seu lançamento: estar sob a gestão da Primeira Dama, Marcela Temer. De fato,
as discussões que se seguiram por críticos do Programa destacavam que a
alocação do Criança Feliz na pasta da Assistência Social traria à tona o primeiro
damismo6. Não é possível aprofundar essa questão aqui, mas é importante trazer
outros elementos para compreender a forma como este programa foi instalado e seu
histórico que se estende para além desse período.
Em 2003 foi criado em Porto Alegre o programa Primeira Infância Melhor
(PIM) com o propósito de colaborar no desenvolvimento de crianças até seis anos de
idade. Naquele ano de sua implantação o secretário de saúde do Rio Grande do Sul
era Osmar Terra que em 2016 assumiu na gestão do Presidente Temer o Ministério
do Desenvolvimento Social e atualmente é o ministro da Cidadania no Governo Jair
Bolsonaro7. Por que esse dado é importante para nossa argumentação? Em
conversas iniciais da pesquisa com gestores locais ouvimos que o fato de o PCF ter
sido alocado inicialmente “na área da Assistência Social” fez com que tivesse
características diversas do PIM que, embora já nascido com a perspectiva da
intersetorialidade, teria sido concebido como uma política centralmente da área da
saúde e não das pastas de Desenvolvimento Social quando da transformação de

extintas através da MP. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-


2022/2019/Mpv/mpv870.htm.
6
No dia 7 de março de 2017, o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) lançou a nota pública
“Por que dizer não ao Programa Criança Feliz”. Nesta nota, além da crítica ao retorno do chamado
primeiro-damismo, o CFESS aponta a falta de diálogo do Governo Federal com a sociedade civil e
com os conselhos das políticas da intersetorialidade do Programa e a priorização do “terceiro setor”,
indo na contramão da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) e do Sistema Único de Assistência
Social (SUAS), e a desresponsabilização do Estado pela oferta de serviços públicos de saúde e de
educação com qualidade desde a primeira infância. Disponível em:
http://www.cfess.org.br/arquivos/2017-NotaPublicaCFESS-NaoAoProgramaCriancaFeliz.pdf.
7
O ministro possui formação em Medicina com especialização nas áreas de Saúde Perinatal,
Educação e Desenvolvimento do Bebê e mestrado em neurociências. Foi presidente do Comitê para
o Desenvolvimento Integral da Primeira Infância (CODIPI) durante o governo de Fernando Henrique
Cardoso, em 2000, no qual permaneceu durante pouco mais de um ano, até assumir cargo de
deputado federal como suplente. Foi eleito deputado federal em 2002 e afastou-se da função no ano
seguinte, ano da criação do PIM, para assumir a Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul até abril
de 2006. Disponível em: http://www.fgv.br/Cpdoc/Acervo/dicionarios/verbete-biografico/terra-osmar.
8

uma experiência local (de um estado da federação) para uma experiência de


abrangência nacional. O fato de o mesmo Osmar Terra estar à frente do Ministério
que abriga o Programa Criança Feliz nos faz ficar atentos a esta consideração. Além
disso, a análise dos princípios que orientam o Programa Criança Feliz indica a
continuidade entre este Programa e o PIM (ver a análise do PIM feita por Carin
Klein, 2010).
O ministro Osmar Terra, em matéria veiculada em 2018 afirmava que
“transferência de renda sozinha não reduz a desigualdade”8. Por esta razão, defende
a necessidade de o Programa Bolsa Família e o Benefício da Prestação Continuada
(BPC), contarem com uma “ação de longo prazo voltada ao desenvolvimento
humano”. Esta constatação não é exatamente novidade se levarmos em conta que o
Programa Bolsa família já incluía em seus princípios a quebra do ciclo
intergeracional da pobreza que, já se sabia, não seria possível apenas pela
transferência de renda. Por esta razão, a inclusão produtiva e acesso a serviços
essenciais, via condicionalidades, são propugnadas desde o início do PBF.
A produção do entendimento de que o investimento nos primeiros anos de
vida, a primeira infância, é central para o desenvolvimento, com impactos no âmbito
econômico e social, tem a colaboração de diferentes especialistas em um processo
em que intervenções estatais têm o aval científico em sua legitimação. A
coprodução deste entendimento e sua aplicação em diferentes contextos foram
analisadas por Claudia Fonseca que de forma precisa as definiu como tecnologias
globais de moralidade materna (FONSECA, 2012).
No próximo tópico apresentaremos a forma como o PCF está estruturado em
Rio Tinto, destacando como os principais enunciados acerca da Primeira Infância e
as justificativas para a instalação do programa estão sendo vivenciadas localmente.

O Programa Criança Feliz em contexto


Nosso contato inicial com a equipe que desenvolve as atividades do
Programa Criança Feliz em Rio Tinto se deu em fevereiro de 2019. A equipe é
formada por uma coordenadora com formação em psicologia e 11 visitadores, nove
mulheres e dois homens. Cinco desses visitadores trabalham desde a adesão da
gestão municipal ao Programa Criança Feliz há dois anos, enquanto os demais

8
Matéria disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/pr-newswire/2018/03/07/osmar-terra-a-
opcao-pelo-desenvolvimento-humano-para-reduzir-a-desigualdade.htm?cmpid=copiaecola
9

começaram a atuar em março deste ano, todos contratados pela Prefeitura de Rio
Tinto. As exigências para contratação de profissionais para o Programa são ensino
médio completo e pelo menos 18 anos de idade. Atualmente a equipe atende 308
beneficiários9. A equipe nos relatou que o processo de capacitação dura em média
uma semana e é realizado na sede do PCF, prédio compartilhado com o Centro de
Convivência do Idoso. Sobre o processo de formação continuada para os visitadores
de que dispõe o Decreto que rege o Programa, a coordenadora argumentou em
nosso primeiro encontro que o município passou por um período difícil por falta de
verbas para os cursos, mas que nesse ano seria possível voltar a realizá-los.
Os visitadores recebem um salário mínimo (R$ 998,00) por mês para atender
no mínimo 30 beneficiários entre gestantes e crianças de 0 a 32 meses. Recebem
orientações da coordenadora para que mantenham o número de atendidos sempre
acima da meta, pois os critérios para inclusão de usuários10 no PCF leva a uma
constante rotatividade de famílias participantes. Nos últimos meses a coordenadora
do Programa tem aplicado um sistema de controle de visitas que pode acarretar em
descontos no valor recebido pelos profissionais; é operado por meio de listas que
devem ser assinadas pela gestante ou pela(o) responsável pela criança ao final do
atendimento a fim de atestar a realização da visita, evitando fraudes. Aos visitadores
recém-contratados não têm sido exigido que cumpram o número de assinaturas,
pois se encontram em fase inicial de contato com as famílias e os beneficiários
cadastrados levam em torno de três meses para serem computados pelo Prontuário
Eletrônico do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), sistema utilizado pelo
PCF para registro de informações a respeito da equipe, das visitas e outras
formalidades administrativas.
O processo de adesão ao PCF é rápido e consiste em preencher uma ficha de
cadastro junto à família para coletar dados básicos como nome da criança e da(o)
responsável, RG, CPF e Número de Identificação Social (NIS), que posteriormente
são inseridos no sistema11. Ao município são concedidas verbas federais de R$
75,00/mês por cada beneficiário atendido12 (BRASIL, 2018). No início deste ano a
Prefeitura cedeu um carro e contratou um motorista para conduzir os visitadores até

9
Informações repassadas em conversas com a coordenação do Programa Criança Feliz.
10
Termo utilizado pela equipe para se referir aos beneficiários do Programa Criança Feliz.
11
Até o momento crianças atendidas pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC) não se
encontram entre os cadastrados pelo Programa na cidade.
12
Portaria nº 2.496, de 17 de setembro de 2018. Disponível em: http://www.in.gov.br/materia/-
/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/41227841
10

as áreas de atendimento afastadas do centro, onde se concentra boa parte das


famílias beneficiárias, porém as visitadoras têm se queixado que o carro quebra com
frequência, prejudicando a periodicidade dos atendimentos às famílias. Antes disso
as visitas eram feitas a pé por duas das profissionais da equipe experiente e os
demais se deslocavam com veículo próprio.

Uma apresentação do Criança Feliz para a equipe de pesquisadores: “Já chega em


desvantagem quando é pobre”
Em nosso primeiro contato com a equipe técnica do Programa Criança Feliz,
ocorria um treinamento da segunda equipe de visitadoras que começaria na semana
seguinte suas atividades. A coordenadora do programa, interessada em nos fazer
entender os princípios e o funcionamento do Criança Feliz, nos permitiu gentilmente
não apenas acompanhar parte do treinamento, como pediu também que as
integrantes da equipe nos apresentassem sua compreensão do que vinham
aprendendo ao longo da semana. Pediu também que as participantes veteranas nos
apresentassem o material que haviam desenvolvido para a realização das visitas,
que elas traziam em grandes mochilas com a logomarca e divulgação do programa.
Uma delas apresentou-nos rapidamente o Livro sensorial; um livro grosso
emborrachado confeccionado em E.V.A com diversos materiais em cada página:
letras, números, figuras com texturas, cores e sons diversos. Mostraram-nos
também a Caixa surpresa, que no tamanho um pouco maior que uma caixa de
sapato, e colorida, tem um buraco com tiras cortadas para a parte interna da caixa
por onde a criança deveria pôr a mão para pegar os objetos: em formato de
bichinhos, objetos, como um guarda chuva. A visitadora orienta: “A mãe deve pegar
o objeto, dizer o nome dele e recompensá-lo, parabenizando porque ele pegou o
objeto”. Estes seriam exemplos de como as atividades deveriam ser conduzidas, e
com quais recursos, para que se pudesse estimular a criança.
Essa demonstração se deu como fechamento da roda de conversas em
resposta à pergunta da coordenadora para a equipe: qual a importância do vínculo
familiar? As respostas incluíram “crescer profissionalmente” e “principalmente na
escola”. Os cuidados na primeira infância seriam essenciais “principalmente para os
mais carentes”, pois “já chega em desvantagem quando é pobre”.
11

As visitas
Tivemos a oportunidade de acompanhar a forma como essa produção de
conhecimento é compartilhada nas interações com as mães e seus bebês nas visitas
semanais, assim como nas conversas com as integrantes da equipe nos
deslocamentos para as visitas ou em seu local de reuniões com toda a equipe.
Os atendimentos são domiciliares e agendados junto às famílias de acordo
com a programação de visitas definida pela equipe para cada área do município.
Acontecem no turno da manhã e, eventualmente, à tarde quando algum beneficiário
não foi encontrado em casa ou se alguma criança estava dormindo no momento da
visita. São realizados atendimentos mensalmente às gestantes e semanalmente às
crianças. Nessa primeira fase da pesquisa não acompanhamos os visitadores
homens, mas sim a parcela da equipe feminina que dependia do carro
disponibilizado ao Programa para acessar as áreas, mais distantes, que atendiam.
As visitas costumam durar em torno de 20 minutos e, segundo as visitadoras,
seguem uma lógica de três etapas: o acolhimento da criança, o desenvolvimento da
atividade e a conclusão da visita. Em campo pudemos observar como são postas em
prática essas etapas. No primeiro momento a visitadora chega à casa da família e
chama pelo nome da gestante ou criança, ou pelo nome da responsável no cadastro
(a mãe ou outra familiar mulher em todos os casos que acompanhamos), faz
algumas perguntas iniciais sobre o bem-estar de ambas e a conversa se desenrola
de maneira descontraída, principalmente nas famílias que são atendidas já há algum
tempo. Em seguida é proposta uma atividade a ser desenvolvida pela mãe junto à
criança. A visitadora orienta que a cuidadora ajude a(o) filha(o) a realizá-la e
recompense os acertos com elogios como “Muito bem!”, “Parabéns!”, entre outros, e
corrija a criança quando necessário. Enquanto isso a profissional explica a função
que aquele material tem no desenvolvimento infantil e orienta que a cuidadora
reproduza-o com objetos disponíveis em casa, para dar continuidade à atividade
durante a semana. Por fim, recolhe o material e pede a assinatura da beneficiária
para a ficha de visita. Contam-nos que são raras as famílias que seguem a
orientação de produzir em casa as atividades utilizadas nos atendimentos.
Informações sobre ocasionais problemas no cadastro do Programa Bolsa Família
também são passadas no decorrer desse processo.
12

A busca ativa e a relação com demais programas e serviços locais


A convite da coordenadora do PCF foi possível acompanhar a busca ativa por
famílias feita pelas novas visitadoras e o processo inicial de aproximação com os
beneficiários. Nessa busca as visitadoras foram a um bairro da cidade identificado
pelo grupo como área de vulnerabilidade socioeconômica e procuraram a Unidade
de Saúde, pois, segundo a coordenadora, são as agentes de saúde que conhecem
os beneficiários - em razão da proximidade que desenvolvem com as famílias - e
poderiam passar as informações sobre as famílias crianças e/ou gestantes em sua
composição. A enfermeira informou que no momento não conseguiria disponibilizar
uma lista com nomes e endereços das famílias, mas que posteriormente poderia
concedê-la.
As visitadoras recém-contratadas e ainda em processo de capacitação,
juntamente com a coordenadora, buscaram no boca a boca as famílias com
possíveis beneficiários, enquanto aguardavam os dados via agentes de saúde. Esse
primeiro contato de pessoas da equipe, em formação, servia para que dúvidas sobre
o procedimento fossem sanadas, como, por exemplo, a possibilidade de cadastrar
ou não uma família na qual a criança faria 3 anos dali a 5 meses. O entendimento
compartilhado ali era de se fazer o cadastro da família, mesmo nessa condição, pois
depois poderia encontrar outra criança que pudesse substituí-la. Foi reforçada
também a necessidade de cadastrar o máximo de crianças, dada a possibilidade de
descontinuidade dos cadastros.
Mesmo tendo sido um contato inicial, chamava-nos a atenção a forma como
eram identificados potenciais usuários do programa. Por exemplo, comentou-se que
“àquela hora”, por volta das 11h, havia muitas crianças brincando na rua, indicativo
de que o local demandaria seu trabalho. Naquela oportunidade a equipe conseguiu
que algumas famílias aderissem ao Programa, como uma mulher que aceitou
receber o serviço para seus netos. Durante sua conversa com a visitadora ela conta
que está em vias de se aposentar e quando isso acontecer perderá o PBF, por isso
precisa que sua filha, mãe da criança, migre o benefício para seu nome. A conversa
nos chama atenção, pois explicita o medo da mulher em fazer essa mudança e
assim perder o benefício, indicando o desconhecimento da parte dos beneficiários,
observado em fases anteriores da pesquisa, sobre as regras de funcionamento do
Programa (NASCIMENTO, 2015; 2016; NASCIMENTO, LIMA, 2018). Não
conseguimos acompanhar de perto quais são as informações passadas às famílias
13

sobre o funcionamento do PCF, pois sentimos que as profissionais estavam, naquele


primeiro momento, desconfortáveis com nossa presença e possivelmente também
com a presença da coordenadora, portanto mantivemos certa distância para não
atrapalhar o trabalho do grupo.
O Guia de visita domiciliar (2017) do Programa Criança Feliz orienta que nas
primeiras visitas seja explicitado à família o objetivo do Programa, cabendo ao
visitador elaborar estratégias para fortalecer o vínculo com as famílias. É exigido
também o preenchimento de quatro tipos de formulários: caracterização da família,
caracterização da gestante e/ou caracterização da criança e diagnóstico inicial do
desenvolvimento infantil. A coordenadora nos explica que, apesar de o programa
orientar que sejam preenchidos dentro do primeiro mês de visitas, ela sugere à
equipe aplicá-los gradualmente para que as famílias não se sintam intimidadas.
Na última visita que acompanhamos a três áreas rurais do município, as
famílias reclamaram sobre as três semanas anteriores sem atendimentos. As
visitadoras justificaram que não conseguiram cobrir toda a área dentro do turno que
haviam marcado com as beneficiárias. Ao questionar a coordenação do Programa
sobre o assunto foi apontado que problemas de transporte impediram a equipe de
chegar aos locais durante esse período. Algumas dessas famílias se mostraram
preocupadas em perder o benefício do Bolsa Família por conta do não cumprimento
das visitas por parte das profissionais e outras fizeram perguntas sobre a relação do
PBF com o PCF: buscavam saber se a participação no segundo seria uma condição
para continuar a receber o valor referente ao primeiro. A precisão das informações
dadas às famílias sobre a articulação entre os dois programas parece variar de
acordo com o conhecimento que as visitadoras têm sobre eles e/ou a segurança que
têm em relação à permanência das famílias que atendem: ao mesmo tempo em que
algumas visitadoras, principalmente as experientes, dizem às beneficiárias que não
se configura como mais uma condicionalidade a participação no PCF, uma
profissional da equipe nova afirma que o Programa oferece maior segurança para o
recebimento do benefício do Bolsa Família.
Durante o preenchimento dos formulários de diagnóstico dos beneficiários
percebe-se certo receio das famílias em responder a perguntas sobre quais são os
meios de transporte da família, quando possuem algum, mesmo que a visitadora
esclareça, ao notar o nervosismo da pessoa, que as informações obtidas não serão
passadas à gestão municipal do Bolsa Família ou ao sistema deste Programa.
14

É importante salientar que não é feita nenhuma capacitação com a equipe


técnica sobre o PBF, apesar de sua relação estreita com PCF. Para as famílias que
moram em regiões mais afastadas do centro da cidade, onde está localizado o setor
de cadastramento e gestão do PBF, os visitadores e as agentes de saúde são
mediadores fundamentais para que esses beneficiários tenham acesso às
informações sobre o Bolsa Família. Certas compreensões de que “o Bolsa Família é
só para famílias com filhos” e “se alguém da casa tiver carteira assinada não tem
direito a receber, mesmo que tenham 10 pessoas na família” são informações
passadas pelas visitadoras que não condizem com o que o programa estabelece.
Esse medo do corte do benefício por parte das famílias que aderem ao
Criança Feliz é uma constante em campo desde o início da pesquisa
(NASCIMENTO, 2016), fruto da falta de informação em relação ao funcionamento e
articulação dos dois Programas. O que se mostra como dado novo para nossa
pesquisa é o medo das visitadoras novatas13 de que as famílias desistam dos
atendimentos, decisão que pode refletir futuramente em seus salários e que faria
com que tivessem que procurar uma nova beneficiária para substituí-la.

Atividades desenvolvidas pela equipe: “estimular” e “desenvolver” a criança e o


“vínculo familiar”
Durante o encontro com a equipe promovido pela coordenadora municipal do
PCF, nos foi relatado que entre os novos visitadores encontravam-se uma oficineira
e um oficineiro, responsáveis por conduzir as reuniões do grupo para elaboração de
materiais. No decorrer da conversa os visitadores nos contam que antes mesmo de
produzir as atividades, que devem se adequar a cada fase de desenvolvimento da
primeira infância, cada um deles tem o dever conversar com as mães que atendem
para saber quais são as dificuldades que a criança enfrenta e quais são as
brincadeiras que prefere.
Além do Livro sensorial e da Caixa surpresa, dos quais já falamos
anteriormente, produzem artesanalmente outros materiais. Os chocalhos são
destinados aos bebês, assim como as atividades do Livro sensorial, para “estimular
a coordenação motora” e o “desenvolvimento dos sentidos”; fantoches são usados
para a mesma faixa etária, para que as mães se “habituem a conversar com os

13
Assim se referem aos visitadores recentemente contratados a parcela mais experiente da equipe e
a coordenadora.
15

filhos” e assim possam” estimular o vínculo familiar através da troca de olhares, da


conversa”.14 De acordo com o desempenho da criança as atividades vão se
complexificando; brincadeiras para identificação de cores, vogais e numerais
começam a ser trabalhadas. As visitadoras nos relatam que fazer uma atividade que
prenda a atenção das crianças é bastante difícil e precisam renová-las
semanalmente, recorrendo muitas vezes à internet para buscar novas ideias.
Até o momento o acompanhamento das visitas tem nos mostrado que para
muitas das famílias as atividades são aplicadas de forma intuitiva. São propostas
atividades que envolvem numerais para crianças de dois anos de idade, de
reconhecimento de vogais para as de um ano e oito meses e assim por diante. As
visitadoras que se dedicam ao desenvolvimento desses materiais nos contam que as
fazem em casa algumas vezes por falta de material na sede e também porque boa
parte de seu expediente é dedicado às visitas e ao preenchimento dos relatórios
individuais de cada beneficiária. Uma das gestoras da assistência social da cidade
destacou-nos a necessidade de uma capacitação continuada das profissionais que
atuam no PCF, pois não acredita ser suficiente a formação que possuem para
alcançar os objetivos do Programa.
*****
Entende-se que essas atividades feitas junto à família tenham a função de
criar e fortalecer os vínculos familiares, estimulando o desenvolvimento infantil.
Porém, compartilhando os resultados a que Carin Klein chega em sua análise do
PIM (KLEIN, 2010) a compreensão que se tem de família é resumida à relação mãe-
bebê e acaba reforçando a visão essencialista de que a mulher-mãe deve se
responsabilizar pelos cuidados com a criança e produz uma maternidade específica
a ser exercida por elas (MEYER, 2015; KLEIN, 2010). O homem-pai não é
incentivado a compartilhar aquele momento junto a sua família e também não toma
iniciativa nesse sentido, por mais que se mostre interessado, como podemos
observar em algumas situações, no diálogo que a visitadora estabelece com a mãe
sobre a criança e os objetivos da atividade.
Além dessa questão, uma interpretação possível neste primeiro momento de
aproximação ao Programa Criança Feliz é a forma como sua articulação com o
Programa Bolsa Família pode estar contribuindo para consolidar mecanismos de

14
Entre aspas as orientações das visitadoras que são passadas às mães durante as atividades.
16

governo já identificados anteriormente. Como observamos, as dificuldades de


compreensão sobre os mecanismos de funcionamento do Bolsa Família, somados
aos usos que a gestão local faz das condicionalidades tem colocado como efeito
direto uma permanente situação de insegurança e medo por parte das mulheres
sobre a continuidade do recebimento do recurso do Bolsa Família – o medo do corte.
O fato de as mulheres usuárias do Programa Criança Feliz serem beneficiárias do
Bolsa Família tem nos apresentado frequentemente relatos de medo que a não
participação nas atividades do Programa Criança Feliz impacte na continuidade da
condição de beneficiário do PBF.
Certamente esta não pode ser considerada a única, tampouco a principal,
razão para a adesão das mulheres ao Programa Criança Feliz. A cobrança feita, por
exemplo, como relatado acima, pela ausência das visitas em algumas semanas,
além do compartilhamento, pelas mães, do entendimento da importância daquelas
atividades para o desenvolvimento de suas crianças não deve ser desconsiderado. A
compreensão de que a formação do Estado se dá de forma articulada entre os
diversos sujeitos envolvidos indica exatamente o fato de que não haveria apenas
controle sem haver compartilhamento das crenças sobre a importância desses
conteúdos – afinal a preocupação com o futuro das crianças não foi instituído,
apenas, por uma ação governamental. Além disso, o investimento comprometido da
equipe técnica e sua preocupação com o contexto de vulnerabilidade em que as
famílias atendidas estão inseridas faz parte da avaliação positiva feita por algumas
das mulheres contatadas no trabalho de campo.
No entanto, mesmo esta sendo uma análise preliminar permitida por um
trabalho de pesquisa em desenvolvimento consideramos pertinente atentar para os
possíveis cruzamentos entre as duas ações governamentais aqui abordadas – Bolsa
Família e Criança Feliz – como indicador da forma como essas práticas de governo
se atualizam localmente. Uma possível linha de interpretação é que se antes cabia
às agentes de saúde fazerem o monitoramento e chamada ao cumprimento das
condicionalidades do Programa Bolsa Família. Agora, no contexto do Programa
Criança Feliz, esse cumprimento não depende mais de uma prática indireta daquela
profissional, mas passa pela adesão da própria mulher-mãe a um programa que tem
por objetivo exatamente aquilo que elas mais desejam – o desenvolvimento de seus
filhos.
Claudia Fonseca, no artigo citado anteriormente (FONSECA, 2012), analisa o
17

processo no qual iniciativas da natureza do Criança Feliz apostam na relação


familiar e, sobretudo, no cuidado da mãe, como elementos centrais para o
desenvolvimento infantil. Ao citar críticas feministas a iniciativas dessa natureza, a
autora observa que foi “especialmente com as políticas de austeridade dos anos 90
que a retórica sobre a centralidade de cuidados maternos passou a ser
generalizada”. (FONSECA, 2012, p. 260). Além disso, observa como não apenas o
desenvolvimento das crianças, mas o crescimento econômico e social das nações
passa a ser tomado como efeito direto do investimento nos anos iniciais da criança.
Esta ampliação do escopo dessas políticas se dá no momento em que a economia,
junto à neurologia, alcança lugar central na definição desses programas frente às
agências de desenvolvimento, embora não haja consenso sobre o entendimento
dessas questões. Está em jogo nessa orientação programática a opção por ações
com foco no fortalecimento do vínculo familiar – leia-se mãe-bebê -, em países em
desenvolvimento, em lugar de políticas universais, como garantia de trabalho e
acesso a creches, por exemplo.
As razões por que esta forma de atuação do Estado - que privilegia o
ambiente familiar em detrimento de ações com foco em outras formas de educação
e políticas de espectro mais geral - se estabelece como regra para a definição de
políticas públicas é uma pista instigante a ser seguida, como sugere Claudia
Fonseca:
Assim, da mesma forma que existe uma hierarquia de classes para
educação infantil no Brasil (creches para a classe alta, educação a domicílio
para os pobres), existiria uma diferença lógica de políticas de educação
infantil para os países mais e menos desenvolvidos [...]. Para os primeiros,
investimentos pesados para assegurar creches e pré-escolas de qualidade.
Para os segundos, com a orientação entusiástica de organizações
internacionais (UNESCO, UNICEF, Banco Mundial), programas “não-
formais”, “alternativos” e “não-institucionais”, com alta instabilidade e parcos
recursos públicos, usando equipamentos e materiais disponíveis “na
comunidade” – programas que estimulam a permanência da criança junto à
mãe como modelo ideal de cuidado (Rosemberg 2002; Rossetti-Ferreira,
Ramon e Silva 2002; Freitas e Shelton, 2005; Campos e Campos, 2009)
(FONSECA, 2012, p. 268-269).

Além de poderem ser interpretadas como uma solução pobre para os pobres,
as iniciativas que focalizam o ambiente familiar acabam por delegar
responsabilidades a uma equipe formada majoritariamente por mulheres que,
usando os “equipamentos e materiais disponíveis”, acabam acumulando atribuições
que, não é difícil associar, são muito próximas do cenário de precariedade nas
condições de trabalho vivenciado pelas agentes comunitárias de saúde e aumentado
18

com as novas atribuições trazidas pelo Programa Bolsa Família.

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