Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
As questões trazidas neste trabalho surgem de pesquisa que tem por base a
relação entre políticas públicas, família e gênero. Ao analisar essas políticas
buscamos compreender como práticas de governo específicas estão comprometidas
com certas moralidades relativas ao entendimento a respeito daqueles a que se
dirigem: os pobres, as mulheres, as famílias, a população. Nas primeiras etapas da
pesquisa buscamos compreender como são produzidos os enunciados sobre o
Programa Bolsa Família (PBF) e suas condicionalidades, principalmente aquelas na
área da saúde (NASCIMENTO, 2016). As condicionalidades do PBF foram
compreendidas como tecnologias de governo utilizadas para o alcance de metas dos
serviços de saúde. Mais que estímulo ao acesso a serviços percebemos as
condicionalidades serem utilizadas como estratégias de controle da população
baseadas, sobretudo, na ameaça de corte do benefício (NASCIMENTO; LIMA,
2018).
Nessa direção, nossa análise dialoga com o campo de estudos sobre políticas
de Estado, os modos de governo e as práticas de poder onde o Estado é produzido
em relações específicas em que racionalidade estatal e moralidades se mesclam na
prática cotidiana (cf FERGUSON; GUPTA, 2002; SOUZA LIMA; MACEDO;
CASTRO, 2008; CASTILHO; SOUZA LIMA; TEIXEIRA, 2014; FONSECA; SCALCO,
2015). A abordagem foucaultiana de governamentalidade, na qual “racionalidades e
tecnologias, pensamento e intervenção” são duas dimensões indissociáveis
(MILLER; ROSE, 2012, p. 28) colabora para o entendimento das formas
contemporâneas de governo das populações (FOUCAULT, 1988; 2005; 2008a;
2008b; ROSE; MILLER, 1992; RABINOW; ROSE, 2006; FASSIN, 2009). Nessa
perspectiva está em jogo não apenas disciplina e controle, mas modos de
subjetivação onde cada indivíduo, tomado como empresário de si, é também um
aliado na busca por alcançar metas estatais que são percebidas igualmente como
um propósito individual (FOUCAULT, 2008a). Esta perspectiva pode nos ajudar na
compreensão de como as práticas contemporâneas de governo continuam a
instrumentalizar categorias tradicionais para o alcance de objetivos pactuados
globalmente com base em noções como direitos humanos e desenvolvimento
(MOLYNEUX, 2006; MOLYNEUX; THOMSON, 2011).
1
Didier Fassin identifica quatro mudanças para que, segundo ele, as contribuições de Foucault
continuem operativas para as pesquisas atuais: 1) Política não é apenas sobre as regras do jogo de
governar, mas também sobre suas participações; 2) Mais do que o poder sobre a vida, as sociedades
contemporâneas são caracterizadas pela legitimidade que atribuem à vida; 3) Ao invés de um
processo de normalização, a intervenção na vida é uma produção de desigualdades; 4) A política da
vida, então, não é apenas uma questão de governamentalidade e tecnologias, mas também de
significado e valores (FASSIN, 2009).
4
de gênero nas políticas de inclusão social que estão comprometidas como certa
moralidade e, dessa forma, colaboram para um processo mais amplo de politização
da maternidade (MEYER, 2005) e educação para maternidade (KLEIN, 2010;
MEYER; KLEIN; FERNANDES, 2012; KLEIN; MEYER; BORGES, 2013) em que
moralidades maternas configuram práticas institucionais (FONSECA, 2012; PIRES,
2013).
2
O Cadastro Único é um sistema unificado de dados que dá acesso a programas e serviços de
assistência social para a população considerada como em situação de vulnerabilidade
socioeconômica. Ao efetuar o cadastro o beneficiário recebe um Número de Identificação Social
(NIS), que poderá ser usado, principalmente, para adesão a serviços e programas federais, mas que
também pode funcionar como forma de seleção para os que são desenvolvidos a nível estadual e
municipal.
5
3
Marco Legal da Primeira Infância, Lei nº 13.256, de 8 de março de 2016. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm.
4
Decreto do Programa Criança Feliz. Disponível em: https://bit.ly/2x7gcqp.
5
No dia 1º de janeiro de 2019 foi promulgada a Medida Provisória nº 870 que, entre outras medidas,
transforma o Ministério do Desenvolvimento Social, o Ministério da Cultura e o Ministério do Esporte
no Ministério da Cidadania, sob chefia do Ministro Osmar Terra, essas transformações afetaram
também outros ministérios. Dentro do último, o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário foi
reduzido a Secretaria Especial do Desenvolvimento Social. As secretarias especiais de Agricultura
Familiar e Desenvolvimento Agrário, da Aquicultura e da Pesca e da Micro e Pequena Empresa foram
7
8
Matéria disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/pr-newswire/2018/03/07/osmar-terra-a-
opcao-pelo-desenvolvimento-humano-para-reduzir-a-desigualdade.htm?cmpid=copiaecola
9
começaram a atuar em março deste ano, todos contratados pela Prefeitura de Rio
Tinto. As exigências para contratação de profissionais para o Programa são ensino
médio completo e pelo menos 18 anos de idade. Atualmente a equipe atende 308
beneficiários9. A equipe nos relatou que o processo de capacitação dura em média
uma semana e é realizado na sede do PCF, prédio compartilhado com o Centro de
Convivência do Idoso. Sobre o processo de formação continuada para os visitadores
de que dispõe o Decreto que rege o Programa, a coordenadora argumentou em
nosso primeiro encontro que o município passou por um período difícil por falta de
verbas para os cursos, mas que nesse ano seria possível voltar a realizá-los.
Os visitadores recebem um salário mínimo (R$ 998,00) por mês para atender
no mínimo 30 beneficiários entre gestantes e crianças de 0 a 32 meses. Recebem
orientações da coordenadora para que mantenham o número de atendidos sempre
acima da meta, pois os critérios para inclusão de usuários10 no PCF leva a uma
constante rotatividade de famílias participantes. Nos últimos meses a coordenadora
do Programa tem aplicado um sistema de controle de visitas que pode acarretar em
descontos no valor recebido pelos profissionais; é operado por meio de listas que
devem ser assinadas pela gestante ou pela(o) responsável pela criança ao final do
atendimento a fim de atestar a realização da visita, evitando fraudes. Aos visitadores
recém-contratados não têm sido exigido que cumpram o número de assinaturas,
pois se encontram em fase inicial de contato com as famílias e os beneficiários
cadastrados levam em torno de três meses para serem computados pelo Prontuário
Eletrônico do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), sistema utilizado pelo
PCF para registro de informações a respeito da equipe, das visitas e outras
formalidades administrativas.
O processo de adesão ao PCF é rápido e consiste em preencher uma ficha de
cadastro junto à família para coletar dados básicos como nome da criança e da(o)
responsável, RG, CPF e Número de Identificação Social (NIS), que posteriormente
são inseridos no sistema11. Ao município são concedidas verbas federais de R$
75,00/mês por cada beneficiário atendido12 (BRASIL, 2018). No início deste ano a
Prefeitura cedeu um carro e contratou um motorista para conduzir os visitadores até
9
Informações repassadas em conversas com a coordenação do Programa Criança Feliz.
10
Termo utilizado pela equipe para se referir aos beneficiários do Programa Criança Feliz.
11
Até o momento crianças atendidas pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC) não se
encontram entre os cadastrados pelo Programa na cidade.
12
Portaria nº 2.496, de 17 de setembro de 2018. Disponível em: http://www.in.gov.br/materia/-
/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/41227841
10
As visitas
Tivemos a oportunidade de acompanhar a forma como essa produção de
conhecimento é compartilhada nas interações com as mães e seus bebês nas visitas
semanais, assim como nas conversas com as integrantes da equipe nos
deslocamentos para as visitas ou em seu local de reuniões com toda a equipe.
Os atendimentos são domiciliares e agendados junto às famílias de acordo
com a programação de visitas definida pela equipe para cada área do município.
Acontecem no turno da manhã e, eventualmente, à tarde quando algum beneficiário
não foi encontrado em casa ou se alguma criança estava dormindo no momento da
visita. São realizados atendimentos mensalmente às gestantes e semanalmente às
crianças. Nessa primeira fase da pesquisa não acompanhamos os visitadores
homens, mas sim a parcela da equipe feminina que dependia do carro
disponibilizado ao Programa para acessar as áreas, mais distantes, que atendiam.
As visitas costumam durar em torno de 20 minutos e, segundo as visitadoras,
seguem uma lógica de três etapas: o acolhimento da criança, o desenvolvimento da
atividade e a conclusão da visita. Em campo pudemos observar como são postas em
prática essas etapas. No primeiro momento a visitadora chega à casa da família e
chama pelo nome da gestante ou criança, ou pelo nome da responsável no cadastro
(a mãe ou outra familiar mulher em todos os casos que acompanhamos), faz
algumas perguntas iniciais sobre o bem-estar de ambas e a conversa se desenrola
de maneira descontraída, principalmente nas famílias que são atendidas já há algum
tempo. Em seguida é proposta uma atividade a ser desenvolvida pela mãe junto à
criança. A visitadora orienta que a cuidadora ajude a(o) filha(o) a realizá-la e
recompense os acertos com elogios como “Muito bem!”, “Parabéns!”, entre outros, e
corrija a criança quando necessário. Enquanto isso a profissional explica a função
que aquele material tem no desenvolvimento infantil e orienta que a cuidadora
reproduza-o com objetos disponíveis em casa, para dar continuidade à atividade
durante a semana. Por fim, recolhe o material e pede a assinatura da beneficiária
para a ficha de visita. Contam-nos que são raras as famílias que seguem a
orientação de produzir em casa as atividades utilizadas nos atendimentos.
Informações sobre ocasionais problemas no cadastro do Programa Bolsa Família
também são passadas no decorrer desse processo.
12
13
Assim se referem aos visitadores recentemente contratados a parcela mais experiente da equipe e
a coordenadora.
15
14
Entre aspas as orientações das visitadoras que são passadas às mães durante as atividades.
16
Além de poderem ser interpretadas como uma solução pobre para os pobres,
as iniciativas que focalizam o ambiente familiar acabam por delegar
responsabilidades a uma equipe formada majoritariamente por mulheres que,
usando os “equipamentos e materiais disponíveis”, acabam acumulando atribuições
que, não é difícil associar, são muito próximas do cenário de precariedade nas
condições de trabalho vivenciado pelas agentes comunitárias de saúde e aumentado
18
Referências Bibliográficas
BRASIL. Decreto nº 8.869, de 5 de outubro de 2016. Institui o Programa Criança
Feliz. Brasília, 2016b. Disponível em:
<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2016/decreto-8869-5-outubro-2016-
783706-publicacaooriginal-151185-pe.html>. Acesso em: 16 jun. 2019.
BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social. Criança Feliz: guia para visita
domiciliar. 2. ed. Brasília, DF: MDS, Secretaria Nacional de Promoção do
Desenvolvimento Humano, 2017.
BRASIL. Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016. Dispõe sobre as políticas públicas
para a primeira infância e altera o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código
de Processo Penal, a Consolidação das Leis do Trabalho, a Lei nº 11.770 e a Lei nº
12.662. Brasília, 2016a. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm>. Acesso
em: 16 jun. 2019.
BRASIL. Medida Provisória nº 870, de 1º de janeiro de 2019. Estabelece a
organização básica dos órgãos da Presidência da república e dos Ministérios.
Brasília, 2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2019/Mpv/mpv870.htm>. Acesso em: 16 jun. 2019.
BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social. Portaria nº 2.496, de 17 de setembro
de 2018. Dispõe sobre o financiamento federal das ações do Programa Criança
Feliz/ Primeira Infância no SUAS, no âmbito do Sistema Único de Assistência Social,
e dá outras providências. Brasília, 2018. Disponível em:
<http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/4122784>.
Acesso em: 16 jun. 2019.
CASTILHO, Sergio R.; SOUZA LIMA, Antonio C.; TEIXEIRA, Carla C. Introdução.
Etnografando burocratas, elites e corporações. In: Antropologia das práticas de
poder. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2014, p. 7-31.
DAL’IGNA, Maria C., KLEIN, Carin; MEYER, Dagmar E. Mulher-mãe responsável:
Competências para educar filhos(as) saudáveis. In: BRITES, Jurema Gorski;
SCHABBACH, Letícia (Org.). Políticas para família, gênero e geração. Porto
Alegre: UFRGS/CEGOV, 2014. p. 56-76.
DONZELOT, Jacques. A Polícia das Famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
FASSIN, Didier. Another politics of life is possible. Theory, culture & society,
Londres, v. 29, p. 44-60, 2009.
FERGUSON, James; GUPTA, Akhil. Spatializing States: Toward an Ethnography of
Neoliberal Governmentality. American Ethnologist, [S.l.], v. 29, n. 4, p. 981–1002,
2002.
FONSECA, Claudia. Concepções de família e práticas de intervenção: uma
contribuição antropológica. Saúde Sociedade, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 50-59,
maio/ago. 2005. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
12902005000200006&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 16 jun. 2019.
______, Claudia. Tecnologias globais de moralidade materna: as interseções entre
ciência e política em programas “alternativos” de educação para a primeira infância.
19