Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1482
Resumo
Neste ensaio discuto as práticas de proteção social propostas pela Política Nacional de Assis-
tência Social (PNAS) no Brasil e problematizo os efeitos produzidos por esta política pública
na medida em que postula determinadas formas de se relacionar, de pensar e de viver. Co-
loco em análise o seu modo de operar enquanto tecnologia biopolítica de produção da vida.
O plano disparador para a análise teve como foco o programa de distribuição de renda e su-
as condicionalidades, a utilização do Cadastro Único e da busca ativa na vigilância socioas-
sistencial pautados pelo acompanhamento contínuo e pela centralidade da matriz sociofa-
miliar nas intervenções. O principal interlocutor desta escrita foi Michel Foucault ao aportar
ferramentas conceituais sobre a governamentalidade e as estratégias biopolíticas para com-
preender a realidade constituída por relações de saber-poder que possibilitam desconstruir
as verdades naturalizadas que limitam a criação de outras formas de entendimento.
Palavras-chave: Política Pública; Serviço Social; Biopolítica; Governamentalidade
Abstract
In this essay I discuss the social protection practices proposed by the National Social Wel-
fare Policy (PNAS) in Brazil and problematize the effects produced by this public policy as
it points certain ways of relating, thinking and living. I put in analysis its mode of opera-
tion as biopolitical technology for the production of life. The triggering plan for the analy-
sis was focused on the income distribution program and its conditionalities, the use of the
Cadastro Único and the active search in the socioassistential surveillance based on continu-
ous monitoring and the centrality of the family in the interventions. The main interlocutor
of this writing was Michel Foucault in providing conceptual tools on governmentality and
biopolitical strategies to understand the reality constituted by knowledge-power relations
that make it possible to deconstruct the naturalized truths that limit the creation of other
forms of understanding.
Keywords: Public Policy; Social Work; Biopolitics; Governmentality
2 Dalla Vecchia Pereira, Liana Cristina
http://quadernsdepsicologia.cat
Política Nacional de Assistência Social e Governamentalidade 3
condutas dos sujeitos passam a ser governa- dade e docilidade. A biopolítica se constitui
mentalizadas com a criação do Estado de di- por volta da metade do século XVIII, focando-
reito e práticas pautadas pela proteção social se no corpo-espécie mediante uma série de
no contexto neoliberal da gestão de riscos. intervenções para regulações da população
(Foucault, 1976/1984, pp. 125-152). As tecno-
logias de poder disciplinar são organizadas em
Biopolítica & Governamentalidade nas torno do corpo-organismo individual através
Políticas Públicas das disciplinas e instituições, utilizando pro-
A biopolítica foi um importante constructo cedimentos que asseguram a organização e
elaborado por Michel Foucault (1975/1987; distribuição espacial dos corpos individuais
1977/2001; 1976/2005) para problematizar a para aumentar-lhes a força útil com exercí-
ação do Estado sobre a vida de seus cidadãos, cios, treinamentos e demais técnicas de raci-
pensando-os não apenas como indivíduos, mas onalização de um poder exercido mediante
como população. Esta nova configuração das sistemas de vigilância, hierarquias, inspeções,
relações de poder tem sua origem marcada na entre outros. As estratégias biopolíticas bus-
passagem do poder soberano para o Biopoder, cam governar a humanidade enquanto espé-
ou seja, uma tomada da vida pelo poder cie, agindo diretamente sobre aspectos de-
(Foucault, 1976/2005, pp. 285-315) recoberto terminantes da vida enquanto fenômeno bio-
pela administração dos corpos (disciplina) e lógico e coletivo; utiliza estudos populacio-
pela gestão calculista da vida da população nais estatísticos, epidemiológicos, ações sani-
(biopolítica) (Foucault, 1976/1984, pp. 125- taristas-higienistas e mecanismos regulamen-
152). O poder soberano configura-se como um tadores do Estado (Foucault, 1976/2005, pp.
direito de fazer morrer e deixar viver, en- 285-315). A biopolítica opera fatores de se-
quanto que no biopoder há uma inversão, com gregação e hierarquização social (distinção e
ênfase no fazer viver e deixar morrer. Neste qualificação de raças, práticas eugênicas), in-
processo, há uma transformação e não uma tervindo através de previsões e estimações
substituição, que contempla o velho direito dos acontecimentos aleatórios que ocorrem
com este novo modo que vai perpassa-lo na numa população considerada em sua duração;
assunção do “poder sobre o homem enquanto busca uma homeostase para proteger a socie-
ser vivo, uma espécie de estatização do bio- dade do que foge à norma e corresponde a
lógico” (Foucault, 1976/2005, p. 287). Nesta um potencial risco e perigo.
passagem, as ações do Estado se complexifi- Para que a tarefa de formatação dos modos
cam e passam a governar os modos de viver de viver populacionais seja possível, o Estado
da população ao formatar as vidas para au- adota a ciência estatística, a medicina social
mentar seu potencial produtivo. Foucault e o higienismo para investigar sua população
(1976/1984, pp. 125-152) atenta que este bi- no que se refere aos índices de natalidade,
opoder foi elemento indispensável à socieda- mortalidade, morbidade, longevidade, nível
de industrial e ao desenvolvimento do capita- de saúde e demais condições que interferem
lismo, pois possibilitou a inserção controlada nesses processos (Foucault, 1977/2001). As
dos corpos no aparelho de produção por meio ciências da saúde, por exemplo, passam a es-
de um ajustamento dos fenômenos de popula- tabelecer a sua relação com o Estado e di-
ção aos processos econômicos. Além do in- mensionar sua ação à escala do coletivo. É
cremento da utilizabilidade e docilidade dos neste momento que uma diversidade de dis-
corpos, foram necessários “métodos de poder positivos do poder estatal terá seu surgimento
capazes de majorar as forças, as aptidões, a ou serão transformados: multiplicam-se os sa-
vida em geral, sem por isto torna-las mais di- natórios para isolar a proliferação de doenças
fíceis de sujeitar” (Foucault, 1976/1984, p. infectocontagiosas, os hospitais deixam de ser
132) espaços de assistência religiosa e se tornam
O biopoder se desenvolve a partir do século lugar de tratamento médico, os hospícios pas-
XVII e se constitui em duas formas principais sam pelo mesmo processo e são tomados pelo
interligados por um feixe intermediário de re- alienismo nascente. Neste período, a lógica
lações através das disciplinas e das biopolíti- disciplinar constitui outros espaços de institu-
cas. O poder disciplinar centra-se na anáto- cionalização não atrelados à saúde, mas sim à
mo-política do corpo-máquina visando ao seu educação e à punição, como as escolas esta-
adestramento para maximizar sua força, utili- tais, os reformatórios, as casas de correção,
as prisões, dentre outros. O Estado busca, en- cipalmente dentro dos campos em que os sa-
tão, formar um novo cidadão através da ação beres científicos são convocados a participar
planificada sobre seus corpos e hábitos (Fou- e construir modos de entender e intervir.
cault, 1975/1987).
Ao realizar a análise de alguns dispositivos de
No decorrer da modernidade, vemos a biopo- segurança, Foucault procurou ver como surgiu
lítica como lógica que passa a reger as estra- o problema específico da população e o que o
tégias de relação do Estado com seus cida- conduziu à questão do governo remetendo-se
dãos, conforme debate apresentado por Air- ao percurso do século XVI ao XVIII para falar
ton Aloisio Schutz (2018) sobre o direito e a de uma série de tratados que emergem den-
governamentalidade no contexto brasileiro. tro de uma noção que ele nomeia como ações
Da associação entre biopolítica e disciplina de uma arte de governar (Foucault,
surgiram grande parte das instituições socie- 1979/2009). Neste período, o cálculo das re-
tárias da modernidade: família, escola, hospi- lações de forças passa a ser considerado como
tal, hospício, prisão, entre outras. Desde a princípio de inteligibilidade e de racionaliza-
metade do século XX, a modernidade e suas ção nas práticas políticas. Foucault
lógicas passam por uma série de mudanças (1979/2009) analisa os discursos de algumas
que engendram novos regimes de poder ao obras da época pensando sua produção não
colocar em crise os modos de operar das anti- somente pela função de censura e barragem,
gas instituições baseadas em lógicas de fe- mas como gênero de positividade produtiva —
chamento disciplinar. A noção de biopolítica no sentido do que produz.
aponta, portanto, para a forma como se dá o Com a entrada da população no pensamento polí-
gerenciamento dos corpos que não ocorre so- tico, o governo toma como seu objeto fenômenos
mente pela via do poder disciplinar, mas tais como número de sujeitos, suas idades, sua
principalmente pelo estabelecimento de re- longevidade, seu estado de saúde e tipos de mor-
te, seus hábitos e vícios, suas taxas de reprodu-
gras que buscam normalizar as noções de ção. As ações e cálculos das autoridades são diri-
comportamento (Foucault, 1979/2009). Neste gidas para novas tarefas: como maximizar as for-
sentido, entende-se a biopolítica como forma ças da população e de cada indivíduo no seu inte-
de controle que assume o Estado sobre a vida rior, como minimizar seus problemas, como orga-
nizá-los da forma mais eficaz. O nascimento e a
dos seres humanos mediante regulação e ges- história dos saberes sobre a subjetividade e a in-
tão que partem dos saberes normativos. A tersubjetividade estão intrinsecamente ligados a
forma econômica aplicada à conduta dos su- programas que, a fim de governar os sujeitos,
jeitos aperfeiçoa as suas ações a fim de raci- descobriram que precisam conhecê-los. (Rose,
1988, p. 35)
onalizar o cotidiano em nome de um mercado
econômico operado por um modo neoliberal Para Foucault (1979/2009), a análise da arte
de governar. Neste sentido, as políticas soci- de governar terá dois aspectos: 1) a demarca-
ais se pautam na ideia de que para ter direi- ção dos perigos — em que consistem, de onde
tos é preciso cumprir deveres que movimen- vêm e qual a sua intensidade; 2) a arte de
tam o mercado econômico, como as condicio- manipular as relações de forças que permiti-
nalidades de programas sociais que serão dis- rão ao príncipe (ou governante) fazer com
cutidas neste ensaio. que seu principado — como liame e território
— possa ser protegido. A arte de governar, tal
No momento em que entendemos os sujeitos
como aparece na literatura examinada pelo
como constituídos por modos de ser e de se
autor, deve responder essencialmente a se-
relacionar consigo mesmo e com o mundo,
guinte questão: “como introduzir a economia
sendo fabricados na contemporaneidade por
— isto é, a maneira de gerir corretamente os
racionalidades neoliberais, podemos proble-
indivíduos, os bens, as riquezas no interior da
matizar a naturalização dos processos de vida
família — ao nível da gestão de um Estado?”
para construir outras realidades e modos de
(Foucault, 1979/2009, p. 281). O autor aponta
operar. Torna-se necessário discutir o proces-
a ideia de que, ao contrário da soberania, não
so de governamentalização da vida e os meios
se trata de impor uma lei aos homens, mas de
pelos quais o Estado utiliza as reivindicações
utilizar mais táticas do que leis ou utilizar ao
da população para intensificar o governo des-
máximo as leis como táticas. A população
ta. É necessário estarmos abertos para uma
aparece mais como fim e instrumento de go-
ruptura dos discursos de verdade que mantêm
verno e os interesses e aspirações individuais
as práticas discursivas e não discursivas, prin-
constituem o alvo e ferramenta do governo da
http://quadernsdepsicologia.cat
Política Nacional de Assistência Social e Governamentalidade 5
população, na qual a família surge como ele- te aos segmentos citados acima. A Política
mento fundamental. Nacional da Assistência Social (PNAS) é publi-
cada em 2004, junto com a Norma Operacio-
A constituição de um saber de governo e de
nal Básica (NOB) que institui o Sistema Único
um saber sobre os processos da população se
da Assistência Social (SUAS) em 2005 com a
torna indissociável. A ideia de Economia Polí-
função de gestão da política de proteção so-
tica vai ser apresentada por Foucault
cial brasileira pautada pela descentralização
(1979/2009) como uma ciência que apreende
e participação (Brasil, 2004). Estas políticas
as relações contínuas e múltiplas entre a po-
abrem espaço para a construção de programas
pulação, o território e a riqueza. A disciplina
que contemplem as questões sociais dos seg-
e todas as instituições no interior do qual ela
mentos populacionais em que o acesso aos di-
se desenvolveu (escolas, oficinas, exércitos,
reitos básicos é fragilizado. Assim, a proteção
etc.) nunca foi tão importante e valorizada
social aparece como importante meio para a
quanto a partir do momento em que se procu-
inclusão das vidas vistas como destituídas de
rou gerir a população. Os sistemas conceituais
condições para adequar-se a determinados
e as linguagens de análise constituídas pelas
parâmetros da sociedade.
ciências humanas forneceram meios pelos
quais as (inter)subjetividades humanas pude- A partir da publicação das legislações citadas,
ram fazer parte dos cálculos das autoridades, dá-se um novo sentido às ações no campo da
conforme nos aponta Nikolas Rose (1988). O assistência social que passa de uma noção de
conceito de governamentalidade é proposto caridade ou benesse para tornar-se um direito
por Foucault (1979/2009) como o conjunto social com o reconhecimento dos efeitos his-
constituído pelas instituições, procedimentos, tóricos da desigualdade social. O público-alvo
análises e reflexões, cálculos e táticas que desta política refere-se aos cidadãos ou gru-
permitem exercer esta forma bastante espe- pos que se encontram em risco e/ou vulnera-
cífica e complexa de poder, que tem por alvo bilidade social, definidos como:
a população, tem como forma principal de Famílias e indivíduos com perda ou fragilidade de
saber a economia política e por instrumentos vínculos de afetividade, pertencimento e sociabi-
técnicos essenciais os dispositivos de seguran- lidade; (...) identidades estigmatizadas em ter-
ça. Apresentarei a Política Nacional de Assis- mos étnico, cultural e sexual; desvantagem pes-
soal resultante de deficiências; exclusão pela po-
tência Social e posterior análise a partir dos breza ou no acesso às demais políticas públicas;
conceitos aqui situados. uso de substâncias psicoativas; diferentes formas
de violência advinda do núcleo familiar, grupos e
indivíduos; inserção precária ou não inserção no
Situando a Política Nacional da mercado de trabalho formal e informal; estraté-
gias diferenciadas de sobrevivência que podem
Assistência Social – PNAS representar risco pessoal e social (Brasil, 2004, p.
No Brasil, a assistência social se torna um di- 33).
reito de cidadania e dever do Estado a partir Esta descrição aporta elementos para refletir
da Constituição Federal de 1988, constituin- sobre o que se considera como vulnerabilida-
do-se como Política Social não contributiva de e/ou risco social, como a questão de fragi-
que compõe o tripé da Seguridade Social jun- lidade de vínculos, socialização, inserção
to com a Saúde e Previdência Social. Com a educacional ou laboral. Keli Lopes Santos &
publicação da Lei Orgânica da Assistência So- Ana Lucia Coelho Heckert (2017) discutem
cial (LOAS), em 1993, a política da assistência como as noções de vulnerabilidade e risco so-
social tem como objetivos: garantir a prote- cial são instrumentalizadas para o controle da
ção social à família, à maternidade, à infân- população nas práticas de um Centro de Refe-
cia, à adolescência, à velhice; o amparo a rência da Assistência Social, apontando que
crianças e adolescentes carentes; a promoção estas denominações contribuem para estigma-
da integração ao mercado de trabalho, a rea- tizar e justificar uma série de intervenções
bilitação e promoção de integração à comuni- por vezes higienistas. Destacam a necessidade
dade para as pessoas com deficiência e o pa- de “criar ações que escapem às produções re-
gamento de benefícios aos idosos e às pessoas gulamentadoras e fiscalizadoras” (Santos &
com deficiência (Lei Nº 8742, de 1993,). Nes- Heckert, 2017, p. 742). Roberta Carvalho Ro-
se contexto, a proteção social é vista como a magnoli (2015) também problematiza as con-
garantia da vida, a redução de danos e a pre- cepções de vulnerabilidade e risco social uti-
venção da incidência de riscos, principalmen-
lizadas no cotidiano do SUAS que podem di- ção e Atendimento Especializado a Famílias e
minuir tanto a capacidade das equipes, como Indivíduos (PAEFI) realizados por equipes do
o protagonismo e a autonomia das famílias. A Centro de Referência Especializado da Assis-
autora atenta aos riscos da desqualificação, tência Social (CREAS) e Centro Pop — voltados
da sobrecarga e da ressonância da vulnerabi- para população em situação de rua; e alta
lidade ao sustentar “atuações que podem en- complexidade, cujas intervenções são desen-
cobrir práticas morais e resultar em relações volvidas por equipes em unidades de acolhi-
de tutela e de assujeitamentos, impedindo mento — abrigos/albergues — espaços desti-
relações de cuidado que se efetuam na inter- nados à população que vivenciou situação de
cessão, no encontro entre modelos e forças, violação de direitos que requer o afastamento
permitindo a consolidação do SUAS de forma familiar. A PSE atuará para desenvolver “es-
potente” (Carvalho Romagnoli, 2015, p. 449). tratégias de atenção sociofamiliar que visem
Neste sentido, Silvio José Benelli (2016) elu- à reestruturação do grupo familiar e elabora-
cida o desafio de construir práticas no cotidi- ção de novas referências morais e afetivas, no
ano do SUAS que superem a cultura promoto- sentido de fortalecê-lo para o exercício de
ra de proteção repressiva, subalterna e de suas funções de proteção básica ao lado de
controle, por uma ética da cidadania integral sua auto-organização e conquista de autono-
que vise ao efetivo equacionamento do pro- mia” (Brasil, 2004, p. 37).
blema social.
A assistência enquanto política pública de
O SUAS visa à universalização dos direitos so- proteção social objetiva garantir algumas se-
ciais através da rede de serviços socioassis- guranças: de sobrevivência (garantia de um
tenciais organizada por dois níveis de comple- mínimo de renda); de acolhida (provisão de
xidade: proteção social básica — PSB — e pro- necessidades básicas); e de convívio ou vivên-
teção social especial — PSE (Brasil, 2004). A cia familiar (fortalecimento da família como
política direciona-se a quem dela necessitar grupo cidadão) (Brasil, 2004). Cabe problema-
para garantir atendimento às necessidades tizar a forma como são definidas as condições
básicas através de um conjunto de ações in- consideradas como vulneráveis e/ou de risco
tegradas (Lei Nº 8742, de 1993). A PSB desti- social para questionar quais são as lentes uti-
na-se à população vulnerável e objetiva de- lizadas para olhar e intervir. Como uma situa-
senvolver ações para prevenir situações de ção é considerada como frágil em termos de
risco e de violação de direitos, sendo avalia- vínculos e quais são os mecanismos que se
das em função da pobreza e dificuldade de operam para fortalecê-los? Embora as ques-
acesso aos serviços públicos ou as famílias cu- tões dos diferentes níveis de atenção socioas-
jos vínculos estejam fragilizados. As ações da sistencial sejam atravessadas pela desigual-
PSB são desenvolvidas através do Serviço de dade social, prevalece a simplificação das in-
Proteção e Atendimento Integral à Família tervenções, pois tendem a adotar medidas in-
(PAIF) pelas equipes dos Centros de Referên- dividualizantes — com foco na família — e de
cia da Assistência Social (CRAS) e Serviços de responsabilização dos sujeitos ao invés de fo-
Convivência e Fortalecimento de Vínculos car na complexidade que é social e coletiva.
(SCFV) e ProJovem — estes ocorrem no turno Neste sentido, Alessandra Xavier Miron &
inverso à escola. Este nível de atenção obje- Neuza Maria de Fátima Guareschi (2017) des-
tiva o “desenvolvimento de potencialidades e tacam a complexidade que atravessa as práti-
aquisições no contexto familiar, e o fortale- cas no campo das políticas públicas da assis-
cimento de vínculos familiares e comunitá- tência social na medida em que a institucio-
rios, bem como a integração ao mercado de nalização do discurso do compromisso social e
trabalho” (Brasil, 2004, p. 27). da garantia de direitos legitima processos de
controle e de judicialização das vidas. Estas
As ações no âmbito da PSE são destinadas a
questões convergem com a análise crítica de
famílias que se encontram em situação de ris-
Lucas Teixeira Costa (2016) ao problematizar
co e violação de direitos por ocorrência de
os discursos que produzem uma série de sabe-
maus-tratos, trabalho infantil, violência e/ou
res-poderes pautados no controle das popula-
abuso, cumprimento de medidas socioeduca-
ções e prevenção de riscos sociais.
tivas, situação de rua, entre outras condições
(Brasil, 2004). A PSE organiza-se através da
média complexidade pelos Serviços de Prote-
http://quadernsdepsicologia.cat
Política Nacional de Assistência Social e Governamentalidade 7
ais/familiares são avaliadas se a situação de- vidualizar as questões que são sociais e cole-
ve ser integrada ou não ao sistema de prote- tivas. Embora o campo da assistência seja
ção social, conforme os requisitos necessários atravessado por desigualdades sociais, suas
e programas disponíveis. A atualização bianu- respostas costumam ser pautadas pela via da
al obrigatória no CadÚnico permite acompa- reparação individual das condições de vida.
nhar e vigiar as situações de vida. Assim, o cadastro possibilita conhecer uma
determinada realidade que comporta a virtua-
Ao considerar os aspectos destacados, pode-
lidade do perigo. Para Foucault (1978/2008),
se visibilizar que o CadÚnico não se constitui
o perigo é o aleatório e não pode, portanto,
somente como um instrumento de conheci-
ser previsto. Tornar conhecíveis os fenômenos
mento da realidade das famílias, mas também
é uma forma de converter o perigo em risco e
produz a realidade na qual o sistema de pro-
isso é possível por meio das técnicas estatísti-
teção deve intervir, pois elege critérios de
cas que permitem apreender os fenômenos
entrada na rede de assistência social. As ne-
em termos de cálculos de probabilidade. O
cessidades das famílias-usuárias são produzi-
CadÚnico fomenta, portanto, a organização
das pela prática do cadastramento e visitas,
de um modo de ingressar no sistema de pro-
configurando os problemas sobre os quais se
teção que possibilita catalogar condutas con-
deve intervir. Outra tecnologia que integra os
sideradas irregulares, desviantes e potencial-
aparatos socioassistenciais é a Busca Ativa,
mente “perigosas”, comportamentos que se
criada junto com o Plano Brasil sem Miséria
referem a determinados modos de viver a
com o intuito de ampliar e qualificar a cober-
partir da construção de perfis de necessida-
tura dos programas sociais (Decreto Nº 7.492,
des. O diagnóstico construído sobre as neces-
de 02/06/2011). Esta estratégia pressupõe
sidades sociais produzem sentidos sobre a po-
que o Estado vá até as famílias pobres de difí-
breza na medida em que os vincula a indica-
cil acesso que ainda não se cadastraram ou
dores configurados como principais pontos so-
que desconhecem os serviços com o objetivo
bre os quais se definem políticas sociais e su-
de cadastrá-las e incluí-las. Tal prática com-
as intervenções, tais como renda, emprego e
plementa a gestão territorial ao notificar as
situação familiar. Pode-se considerar como
condições de vulnerabilidade/risco e identifi-
suficiente compreender as consequências so-
car as potencialidades, possibilitando a racio-
ciais da pobreza a partir destes indicadores?
nalização do planejamento local e das ações
preventivas sobre a população, conforme nos O Programa Bolsa Família (PBF) é um dos
apontam Betina Hillesheim e Lilian Cruz principais programas no campo da assistência
(2012). destinado a famílias com crianças ou adoles-
centes de 0 a 17 anos com baixa renda per
Desta forma, a vigilância socioassistencial
capita. O programa insere os sujeitos em uma
através do cadastramento (CadÚnico) e da
rede de vigilância com condicionalidades
busca ativa se constituem como tecnologias
atreladas à frequência escolar mínima de 85%
de governo que identificam a população que
para crianças e de 75% para jovens, além do
deve ser acompanhada pelo sistema de prote-
acompanhamento de saúde (vacinar, pesar,
ção. Estas estratégias fazem operar alguns
medir, realizar pré-natal, puericultura, exa-
movimentos: delimitam o que se considera
mes, etc.), frequência no SCFV de 85% para
como riscos da população (renda, escolarida-
crianças/adolescentes em que for identifica-
de, trabalho, relações familiares, etc.) e es-
do risco de trabalho infantil. Outra condicio-
tratificam os riscos a partir do conhecimento
nalidade é a adesão ao acompanhamento so-
dos diferentes perfis e supostas necessidades.
cial ofertado pelos CRAS ou CREAS para as
Os aparatos produzem conhecimento das for-
famílias beneficiárias do PBF com o propósito
mas de vida consideradas inadequadas para
de fortalecer os vínculos familiares, comuni-
inseri-las em programas. A identificação do
tários e a função protetiva, além de ações
risco opera como uma produção de risco, me-
que objetivem o desenvolvimento de suas po-
canismo que orienta as/os técnicas/os da re-
tencialidades.
de assistencial a construir o diagnóstico social
que embasará as intervenções para/sobre as Lilian Cruz e Betina Hillesheim (2013) desta-
famílias. cam que trabalhar na perspectiva do fortale-
cimento de vínculos pressupõe considerá-los
A delimitação do grupo de risco pelo cadastro
fragilizados ou inadequados, como se existis-
engendra a tendência a particularizar e indi-
http://quadernsdepsicologia.cat
Política Nacional de Assistência Social e Governamentalidade 9
sem formas de convívio melhores ou mais fortalecimento dos vínculos e estimular o pro-
adequadas que outras, aspectos que vão de- tagonismo de seus membros através da convi-
mandar intervenções que os ajustem. Esta re- vência, socialização e acolhimento. A integra-
de que se amplia para acompanhar as famílias ção ao mercado de trabalho também compõe
pode ser vista tanto como forma de apoio e o conjunto de intervenções propostas pela
garantia de direitos, mas também como um PNAS. Neste sentido, a família tem se consti-
emaranhado atravessado por mecanismos de tuído como importante elemento no interior
controle justificados pela virtualidade do pe- da população e instrumento de governo a par-
rigo que supostamente advém de suas condi- tir do século XIX (Foucault, 1979/2009).
ções de existência. Assim, operar na lógica do
As intervenções sobre o risco são organizadas
risco e de sua prevenção supõe considerar que
a partir da centralidade da família proposta
as famílias carregam a virtualidade da errân-
na PNAS e baseada na concepção de que de-
cia em relação à norma, de modo que o risco
terminados arranjos familiares podem engen-
converge para formas de vida consideradas
drar processos de vulnerabilidade/risco sobre
inadequadas e que demandam monitoramento
as quais se torna necessário intervir. As desi-
constante para a sua correção. Neste ponto,
gualdades características da estrutura social
surge a concepção de trabalho continuado no
aumentam as pressões sobre as famílias de
acompanhamento das famílias, estimulando-
forma dissociada à conjuntura social. A inter-
as a utilizar os recursos disponíveis para mu-
ferência do Estado sobre as famílias remonta
dar hábitos. Os aparatos socioassistenciais ar-
ao período da industrialização com a necessi-
ticulam suas ações com outros serviços, o que
dade de reconfiguração das formas de relação
permite a circulação das pessoas por diversos
e convívio entre as pessoas através de medi-
pontos da rede intersetorial da saúde, educa-
das higienistas e moralizantes para garantir
ção, habitação, etc. Assim, as famílias enre-
determinada ordem fundada pelo imperativo
dadas na teia das políticas públicas são convi-
da produção capitalista. O higienismo funda-
dadas a percorrer um caminho que garanta di-
mentado no saber médico constrói um perfil
reitos, ao mesmo tempo em que são convoca-
sanitário para as famílias ao impor formas de
das a se adaptar a certo ordenamento propos-
se relacionar, nas quais a matricialidade fami-
to pelos espaços institucionais de acompa-
liar impera como elemento nuclear para asse-
nhamento contínuo e proximal.
gurar uma determinada ordem pública na or-
ganização das aglomerações urbanas, confor-
Matricialidade Sociofamiliar: me destaca Jurandir Costa (1989). Ao apre-
instrumento de governo e de sentar uma análise genealógica da Política de
individualização Assistência Social, Wenderson Rufino dos San-
tos (2017) discute a complexa estruturação de
O SUAS define a Matricialidade Sociofamiliar um circuito familista, cujas responsabilidades
como eixo estruturante para organizar a exe- de combater as vulnerabilidades e riscos soci-
cução das ações da política de assistência. Es- ais da população são compartilhadas entre Es-
sa noção posiciona a família na função de tado e famílias, sendo transferidas ou assumi-
“prover a proteção e a socialização dos seus das de modo integral por estas quando há
membros; constituir-se como referências mo- omissão do Estado. No contexto brasileiro, a
rais, de vínculos afetivos e sociais, de identi- racionalidade neoliberal opera de modo a co-
dade grupal, além de ser mediadora das rela- locar o Estado presente na regulação das vi-
ções dos seus membros com outras institui- das consideradas de risco, na qual a assistên-
ções sociais e com o Estado” (Brasil, 2004, p cia social passa a ser um direito conquistado e
35). Para que a família se constitua neste lu- não mais questão de filantropia.
gar, a assistência social visa a promover as
condições necessárias para tal, aspecto que As ações no âmbito dos direitos humanos e
justifica o direito da família de ser protegida sociais tornam-se potentes na medida em que
e situada como unidade de referência e de o Estado oferece condições para determina-
proteção pelo Estado. A função protetiva que dos acessos de renda (PBF) e de inclusão pro-
se espera da família é um dos aspectos cons- dutiva no mercado de trabalho (cursos profis-
truídos e naturalizados por diversas políticas sionalizantes), estimulando que os indivíduos
públicas. A PNAS orienta que as equipes dos busquem soluções para os seus problemas. Es-
serviços de proteção social devem fomentar o te aspecto pode ser visto como forma de indi-
http://quadernsdepsicologia.cat
Política Nacional de Assistência Social e Governamentalidade 11
Foucault, Michel. (1979/2008). O nascimento da Krmpotic & Mario Búrkun (Eds.) El Conflicto So-
Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes. cial y Político: grados de libertad y sumisión en
el escenario local y global. (vol.1, pp. 91-108).
Foucault, Michel. (1978/2008). Segurança, territó- Buenos Aires: Prometeo Libros.
rio e população. São Paulo: Martins Fontes.
Rose, Nikolas (1988). Governando a alma: a forma-
Foucault, Michel. (1979/2009). Microfísica do Po- ção do eu privado. In: Tadeu Silva (Org.), Liber-
der (Trad. Roberto Machado, 27ª reimpressão).
dades reguladas (pp. 30-45). Petrópolis: Vozes.
Rio de Janeiro: Edições Graal.
Santos, Keli Lopes & Heckert, Ana Lucia Coelho
Hillesheim, Betina & Cruz, Lilian (2012). Do terri- (2017). Problematizando a produção da vulnera-
tório às políticas públicas: Governo, práticas psi- bilidade e da pobreza higienizada na Assistência
cológicas e busca ativa no CRAS. In: Lilian Cruz &
Social. Revista Psicologia: Teoria e Prática,
Neuza Guareschi (Orgs.), O psicólogo e as políti- 19(2), 86-97.
cas públicas de assistência social (pp. 91-105).
Petrópolis: Vozes. Santos, Wenderson Rufino dos (2017). O circuito
familista na Política de Assistência Social. Textos
Lei Nº 8742, de 7 de dezembro de 1993, Lei Orgâ-
& Contextos, 16(2), 388-402.
nica da Assistência Social – LOAS (DOU de https://doi.org/10.5935/1980-
8.12.1993). Disponível em: 6906/psicologia.v19n2p86-97
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8742
.htm Schutz, Airton Aloisio (2018). Direito, Biopolítica e
Governamentalidade no Brasil. São Cristovão:
Miron, Alessandra Xavier & Guareschi, Neuza Maria Editora Lumen Juris.
de Fátima (2017). Compromisso Social da Psico-
logia e Sistema Único de Assistência Social: Pos- Serpa, Virginia; Virgínia, Clara & Cavalcante, Sylvia
síveis Articulações. Psicologia: Ciência e Profis- (2015). Assistência social pública brasileira: uma
são, 37(2), 349-362. política da autonomia - um dispositivo biopolíti-
https://doi.org/10.1590/1982-3703000952014 co. Revista Subjetividades, 15(3), 428-437.
https://doi.org/10.5020/23590777.15.3.428-437
Mitjavila, Myriam (2006). El riesgo como instru-
mento de individualización social. In: Claudia
DIRECCIÓN DE CONTACTO
lianadvp@gmail.com
FORMATO DE CITACIÓN
Dalla Vecchia Pereira, Liana Cristina (2019).Política Nacional de Assistência Social e Governamentali-
dade: algumas problematizações. Quaderns de Psicologia, 21(1), e1482.
http://dx.doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1482
HISTORIA EDITORIAL
Recibido: 10/09/2018
1ª Revisión: 15/11/2018
Aceptado: 19/12/2018
http://quadernsdepsicologia.cat