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Quaderns de Psicologia | 2019, Vol.

21, No 1, e1482 ISNN: 0211-3481

 https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1482

Política Nacional de Assistência Social e Governamentalidade:


algumas problematizações
National Social Welfare Policy and Governmentality: some problematizations

Liana Cristina Dalla Vecchia Pereira


Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo
Neste ensaio discuto as práticas de proteção social propostas pela Política Nacional de Assis-
tência Social (PNAS) no Brasil e problematizo os efeitos produzidos por esta política pública
na medida em que postula determinadas formas de se relacionar, de pensar e de viver. Co-
loco em análise o seu modo de operar enquanto tecnologia biopolítica de produção da vida.
O plano disparador para a análise teve como foco o programa de distribuição de renda e su-
as condicionalidades, a utilização do Cadastro Único e da busca ativa na vigilância socioas-
sistencial pautados pelo acompanhamento contínuo e pela centralidade da matriz sociofa-
miliar nas intervenções. O principal interlocutor desta escrita foi Michel Foucault ao aportar
ferramentas conceituais sobre a governamentalidade e as estratégias biopolíticas para com-
preender a realidade constituída por relações de saber-poder que possibilitam desconstruir
as verdades naturalizadas que limitam a criação de outras formas de entendimento.
Palavras-chave: Política Pública; Serviço Social; Biopolítica; Governamentalidade

Abstract
In this essay I discuss the social protection practices proposed by the National Social Wel-
fare Policy (PNAS) in Brazil and problematize the effects produced by this public policy as
it points certain ways of relating, thinking and living. I put in analysis its mode of opera-
tion as biopolitical technology for the production of life. The triggering plan for the analy-
sis was focused on the income distribution program and its conditionalities, the use of the
Cadastro Único and the active search in the socioassistential surveillance based on continu-
ous monitoring and the centrality of the family in the interventions. The main interlocutor
of this writing was Michel Foucault in providing conceptual tools on governmentality and
biopolitical strategies to understand the reality constituted by knowledge-power relations
that make it possible to deconstruct the naturalized truths that limit the creation of other
forms of understanding.
Keywords: Public Policy; Social Work; Biopolitics; Governmentality
2 Dalla Vecchia Pereira, Liana Cristina

Introdução tia de direitos em torno da proteção social


que tem protagonizado formas de “adminis-
O Estado vem criando inúmeros dispositivos trar” a pobreza e os problemas associados a
para gerenciar a vida das populações, dentre determinadas populações sem alterar a estru-
os quais as políticas públicas constituem uma tura que fomenta as desigualdades sociais. O
importante ferramenta de intervenção no co- Estado que propõe as estratégias para garan-
tidiano das pessoas. No contexto brasileiro, a tir direitos sociais é o mesmo que contribui
questão da governamentalidade tem especial para a precarização das condições de existên-
destaque a partir da promulgação da Consti- cia de um segmento populacional significati-
tuição Federal de 1988 em que a garantia dos vo, pois mobiliza intervenções tanto pela ex-
direitos civis, políticos, sociais, econômicos e pansão das políticas sociais, como de práticas
culturais foram assumidos pelo Estado de punitivas e de extermínio, principalmente pa-
forma mais detalhada e abrangente. A partir ra a população pobre, negra e de periferia.
de então, temos a transformação de diversas
instâncias, como a Assistência Social que dei- As análises e reflexões sobre as práticas pro-
xa de ter seu caráter filantrópico de caridade postas pela PNAS não se postulam de modo
para se estabelecer como política pública de dicotômico, mas visam a dar visibilidade às
proteção social através da implementação do racionalidades que construímos e que operam
Sistema Único da Assistência Social (SUAS). na forma como nos tornamos sujeitos de de-
Este estabelece a noção de sujeitos de direi- terminados discursos atravessados por práti-
tos e apresenta como diretriz e eixo estrutu- cas e estratégias que normalizam e individua-
rante a matricialidade sociofamiliar, na qual a lizam. Entende-se o discurso como prática
família se constitui como núcleo central das que produz efeitos ao interpelar os sujeitos
ações e serviços da política social que propõe nos diferentes encontros, constituindo modos
trabalhar com grupos considerados em situa- de governo e de produção de subjetividades.
ção de vulnerabilidade e/ou risco social. Um dos principais interlocutores desta escrita
foi Michel Foucault ao aportar ferramentas
No presente ensaio discuto as práticas discur- conceituais sobre a governamentalidade e as
sivas de proteção social propostas pela Políti- estratégias biopolíticas para compreender a
ca Nacional de Assistência Social (PNAS) no realidade constituída por relações de saber-
Brasil para problematizar os efeitos produzi- poder que possibilitam desconstruir as verda-
dos por esta na medida em que postula de- des naturalizadas que limitam a criação de
terminadas formas de se relacionar, de pensar outras formas de entendimento. Desta forma,
e de viver. Coloco em análise o seu modo de este ensaio é apresentado não como uma
operar enquanto tecnologia biopolítica de perspectiva encerrada em verdades, mas para
produção da vida. A discussão centrou-se na compor uma perspectiva reflexiva a fim de
reflexão sobre as estratégias utilizadas na disparar e provocar outros diálogos, indaga-
PNAS para a proteção social das famílias- ções e inquietações para expandir as possibi-
usuárias da política. O plano disparador para lidades in(ter)ventivas e abrir a discussão pa-
a análise teve como foco o programa de dis- ra outras interlocuções.
tribuição monetária de renda (Bolsa Família)
que é direcionado às famílias em situação de Inicialmente, serão discutidas as noções de
pobreza, vulnerabilidade e risco social medi- biopolítica e de governamentalidade propos-
ante o cumprimento de condicionalidades ar- tas por Michel Foucault que instrumentaliza-
ticuladas à política educacional (frequência rão as problematizações desenvolvidas sobre
escolar) e acompanhamento nas políticas de o governo das populações no interior das polí-
saúde e assistência social. Além deste eixo, ticas públicas. Entende-se que as políticas de
problematizo o modo de operar do mecanismo vida são construídas nesta busca por garantir
intitulado vigilância socioassistencial que ob- direitos produzindo territórios existenciais.
jetiva produzir e analisar informações das fa- Na continuidade, será apresentada a Política
mílias-usuárias da PNAS a fim de adequar a Nacional da Assistência Social (PNAS) para
oferta de serviços às necessidades da popula- analisar as estratégias mobilizadas para go-
ção através da atualização do Cadastro Único vernar a população vista como vulnerável e
(CadÚnico). Buscou-se discutir como se cons- entender os movimentos criados na inclusão
troem práticas de governo da população a das vidas consideradas de/em risco. A partir
partir da intensificação do discurso da garan- destas reflexões, discuto como a vida e as

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condutas dos sujeitos passam a ser governa- dade e docilidade. A biopolítica se constitui
mentalizadas com a criação do Estado de di- por volta da metade do século XVIII, focando-
reito e práticas pautadas pela proteção social se no corpo-espécie mediante uma série de
no contexto neoliberal da gestão de riscos. intervenções para regulações da população
(Foucault, 1976/1984, pp. 125-152). As tecno-
logias de poder disciplinar são organizadas em
Biopolítica & Governamentalidade nas torno do corpo-organismo individual através
Políticas Públicas das disciplinas e instituições, utilizando pro-
A biopolítica foi um importante constructo cedimentos que asseguram a organização e
elaborado por Michel Foucault (1975/1987; distribuição espacial dos corpos individuais
1977/2001; 1976/2005) para problematizar a para aumentar-lhes a força útil com exercí-
ação do Estado sobre a vida de seus cidadãos, cios, treinamentos e demais técnicas de raci-
pensando-os não apenas como indivíduos, mas onalização de um poder exercido mediante
como população. Esta nova configuração das sistemas de vigilância, hierarquias, inspeções,
relações de poder tem sua origem marcada na entre outros. As estratégias biopolíticas bus-
passagem do poder soberano para o Biopoder, cam governar a humanidade enquanto espé-
ou seja, uma tomada da vida pelo poder cie, agindo diretamente sobre aspectos de-
(Foucault, 1976/2005, pp. 285-315) recoberto terminantes da vida enquanto fenômeno bio-
pela administração dos corpos (disciplina) e lógico e coletivo; utiliza estudos populacio-
pela gestão calculista da vida da população nais estatísticos, epidemiológicos, ações sani-
(biopolítica) (Foucault, 1976/1984, pp. 125- taristas-higienistas e mecanismos regulamen-
152). O poder soberano configura-se como um tadores do Estado (Foucault, 1976/2005, pp.
direito de fazer morrer e deixar viver, en- 285-315). A biopolítica opera fatores de se-
quanto que no biopoder há uma inversão, com gregação e hierarquização social (distinção e
ênfase no fazer viver e deixar morrer. Neste qualificação de raças, práticas eugênicas), in-
processo, há uma transformação e não uma tervindo através de previsões e estimações
substituição, que contempla o velho direito dos acontecimentos aleatórios que ocorrem
com este novo modo que vai perpassa-lo na numa população considerada em sua duração;
assunção do “poder sobre o homem enquanto busca uma homeostase para proteger a socie-
ser vivo, uma espécie de estatização do bio- dade do que foge à norma e corresponde a
lógico” (Foucault, 1976/2005, p. 287). Nesta um potencial risco e perigo.
passagem, as ações do Estado se complexifi- Para que a tarefa de formatação dos modos
cam e passam a governar os modos de viver de viver populacionais seja possível, o Estado
da população ao formatar as vidas para au- adota a ciência estatística, a medicina social
mentar seu potencial produtivo. Foucault e o higienismo para investigar sua população
(1976/1984, pp. 125-152) atenta que este bi- no que se refere aos índices de natalidade,
opoder foi elemento indispensável à socieda- mortalidade, morbidade, longevidade, nível
de industrial e ao desenvolvimento do capita- de saúde e demais condições que interferem
lismo, pois possibilitou a inserção controlada nesses processos (Foucault, 1977/2001). As
dos corpos no aparelho de produção por meio ciências da saúde, por exemplo, passam a es-
de um ajustamento dos fenômenos de popula- tabelecer a sua relação com o Estado e di-
ção aos processos econômicos. Além do in- mensionar sua ação à escala do coletivo. É
cremento da utilizabilidade e docilidade dos neste momento que uma diversidade de dis-
corpos, foram necessários “métodos de poder positivos do poder estatal terá seu surgimento
capazes de majorar as forças, as aptidões, a ou serão transformados: multiplicam-se os sa-
vida em geral, sem por isto torna-las mais di- natórios para isolar a proliferação de doenças
fíceis de sujeitar” (Foucault, 1976/1984, p. infectocontagiosas, os hospitais deixam de ser
132) espaços de assistência religiosa e se tornam
O biopoder se desenvolve a partir do século lugar de tratamento médico, os hospícios pas-
XVII e se constitui em duas formas principais sam pelo mesmo processo e são tomados pelo
interligados por um feixe intermediário de re- alienismo nascente. Neste período, a lógica
lações através das disciplinas e das biopolíti- disciplinar constitui outros espaços de institu-
cas. O poder disciplinar centra-se na anáto- cionalização não atrelados à saúde, mas sim à
mo-política do corpo-máquina visando ao seu educação e à punição, como as escolas esta-
adestramento para maximizar sua força, utili- tais, os reformatórios, as casas de correção,

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as prisões, dentre outros. O Estado busca, en- cipalmente dentro dos campos em que os sa-
tão, formar um novo cidadão através da ação beres científicos são convocados a participar
planificada sobre seus corpos e hábitos (Fou- e construir modos de entender e intervir.
cault, 1975/1987).
Ao realizar a análise de alguns dispositivos de
No decorrer da modernidade, vemos a biopo- segurança, Foucault procurou ver como surgiu
lítica como lógica que passa a reger as estra- o problema específico da população e o que o
tégias de relação do Estado com seus cida- conduziu à questão do governo remetendo-se
dãos, conforme debate apresentado por Air- ao percurso do século XVI ao XVIII para falar
ton Aloisio Schutz (2018) sobre o direito e a de uma série de tratados que emergem den-
governamentalidade no contexto brasileiro. tro de uma noção que ele nomeia como ações
Da associação entre biopolítica e disciplina de uma arte de governar (Foucault,
surgiram grande parte das instituições socie- 1979/2009). Neste período, o cálculo das re-
tárias da modernidade: família, escola, hospi- lações de forças passa a ser considerado como
tal, hospício, prisão, entre outras. Desde a princípio de inteligibilidade e de racionaliza-
metade do século XX, a modernidade e suas ção nas práticas políticas. Foucault
lógicas passam por uma série de mudanças (1979/2009) analisa os discursos de algumas
que engendram novos regimes de poder ao obras da época pensando sua produção não
colocar em crise os modos de operar das anti- somente pela função de censura e barragem,
gas instituições baseadas em lógicas de fe- mas como gênero de positividade produtiva —
chamento disciplinar. A noção de biopolítica no sentido do que produz.
aponta, portanto, para a forma como se dá o Com a entrada da população no pensamento polí-
gerenciamento dos corpos que não ocorre so- tico, o governo toma como seu objeto fenômenos
mente pela via do poder disciplinar, mas tais como número de sujeitos, suas idades, sua
principalmente pelo estabelecimento de re- longevidade, seu estado de saúde e tipos de mor-
te, seus hábitos e vícios, suas taxas de reprodu-
gras que buscam normalizar as noções de ção. As ações e cálculos das autoridades são diri-
comportamento (Foucault, 1979/2009). Neste gidas para novas tarefas: como maximizar as for-
sentido, entende-se a biopolítica como forma ças da população e de cada indivíduo no seu inte-
de controle que assume o Estado sobre a vida rior, como minimizar seus problemas, como orga-
nizá-los da forma mais eficaz. O nascimento e a
dos seres humanos mediante regulação e ges- história dos saberes sobre a subjetividade e a in-
tão que partem dos saberes normativos. A tersubjetividade estão intrinsecamente ligados a
forma econômica aplicada à conduta dos su- programas que, a fim de governar os sujeitos,
jeitos aperfeiçoa as suas ações a fim de raci- descobriram que precisam conhecê-los. (Rose,
1988, p. 35)
onalizar o cotidiano em nome de um mercado
econômico operado por um modo neoliberal Para Foucault (1979/2009), a análise da arte
de governar. Neste sentido, as políticas soci- de governar terá dois aspectos: 1) a demarca-
ais se pautam na ideia de que para ter direi- ção dos perigos — em que consistem, de onde
tos é preciso cumprir deveres que movimen- vêm e qual a sua intensidade; 2) a arte de
tam o mercado econômico, como as condicio- manipular as relações de forças que permiti-
nalidades de programas sociais que serão dis- rão ao príncipe (ou governante) fazer com
cutidas neste ensaio. que seu principado — como liame e território
— possa ser protegido. A arte de governar, tal
No momento em que entendemos os sujeitos
como aparece na literatura examinada pelo
como constituídos por modos de ser e de se
autor, deve responder essencialmente a se-
relacionar consigo mesmo e com o mundo,
guinte questão: “como introduzir a economia
sendo fabricados na contemporaneidade por
— isto é, a maneira de gerir corretamente os
racionalidades neoliberais, podemos proble-
indivíduos, os bens, as riquezas no interior da
matizar a naturalização dos processos de vida
família — ao nível da gestão de um Estado?”
para construir outras realidades e modos de
(Foucault, 1979/2009, p. 281). O autor aponta
operar. Torna-se necessário discutir o proces-
a ideia de que, ao contrário da soberania, não
so de governamentalização da vida e os meios
se trata de impor uma lei aos homens, mas de
pelos quais o Estado utiliza as reivindicações
utilizar mais táticas do que leis ou utilizar ao
da população para intensificar o governo des-
máximo as leis como táticas. A população
ta. É necessário estarmos abertos para uma
aparece mais como fim e instrumento de go-
ruptura dos discursos de verdade que mantêm
verno e os interesses e aspirações individuais
as práticas discursivas e não discursivas, prin-
constituem o alvo e ferramenta do governo da

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população, na qual a família surge como ele- te aos segmentos citados acima. A Política
mento fundamental. Nacional da Assistência Social (PNAS) é publi-
cada em 2004, junto com a Norma Operacio-
A constituição de um saber de governo e de
nal Básica (NOB) que institui o Sistema Único
um saber sobre os processos da população se
da Assistência Social (SUAS) em 2005 com a
torna indissociável. A ideia de Economia Polí-
função de gestão da política de proteção so-
tica vai ser apresentada por Foucault
cial brasileira pautada pela descentralização
(1979/2009) como uma ciência que apreende
e participação (Brasil, 2004). Estas políticas
as relações contínuas e múltiplas entre a po-
abrem espaço para a construção de programas
pulação, o território e a riqueza. A disciplina
que contemplem as questões sociais dos seg-
e todas as instituições no interior do qual ela
mentos populacionais em que o acesso aos di-
se desenvolveu (escolas, oficinas, exércitos,
reitos básicos é fragilizado. Assim, a proteção
etc.) nunca foi tão importante e valorizada
social aparece como importante meio para a
quanto a partir do momento em que se procu-
inclusão das vidas vistas como destituídas de
rou gerir a população. Os sistemas conceituais
condições para adequar-se a determinados
e as linguagens de análise constituídas pelas
parâmetros da sociedade.
ciências humanas forneceram meios pelos
quais as (inter)subjetividades humanas pude- A partir da publicação das legislações citadas,
ram fazer parte dos cálculos das autoridades, dá-se um novo sentido às ações no campo da
conforme nos aponta Nikolas Rose (1988). O assistência social que passa de uma noção de
conceito de governamentalidade é proposto caridade ou benesse para tornar-se um direito
por Foucault (1979/2009) como o conjunto social com o reconhecimento dos efeitos his-
constituído pelas instituições, procedimentos, tóricos da desigualdade social. O público-alvo
análises e reflexões, cálculos e táticas que desta política refere-se aos cidadãos ou gru-
permitem exercer esta forma bastante espe- pos que se encontram em risco e/ou vulnera-
cífica e complexa de poder, que tem por alvo bilidade social, definidos como:
a população, tem como forma principal de Famílias e indivíduos com perda ou fragilidade de
saber a economia política e por instrumentos vínculos de afetividade, pertencimento e sociabi-
técnicos essenciais os dispositivos de seguran- lidade; (...) identidades estigmatizadas em ter-
ça. Apresentarei a Política Nacional de Assis- mos étnico, cultural e sexual; desvantagem pes-
soal resultante de deficiências; exclusão pela po-
tência Social e posterior análise a partir dos breza ou no acesso às demais políticas públicas;
conceitos aqui situados. uso de substâncias psicoativas; diferentes formas
de violência advinda do núcleo familiar, grupos e
indivíduos; inserção precária ou não inserção no
Situando a Política Nacional da mercado de trabalho formal e informal; estraté-
gias diferenciadas de sobrevivência que podem
Assistência Social – PNAS representar risco pessoal e social (Brasil, 2004, p.
No Brasil, a assistência social se torna um di- 33).
reito de cidadania e dever do Estado a partir Esta descrição aporta elementos para refletir
da Constituição Federal de 1988, constituin- sobre o que se considera como vulnerabilida-
do-se como Política Social não contributiva de e/ou risco social, como a questão de fragi-
que compõe o tripé da Seguridade Social jun- lidade de vínculos, socialização, inserção
to com a Saúde e Previdência Social. Com a educacional ou laboral. Keli Lopes Santos &
publicação da Lei Orgânica da Assistência So- Ana Lucia Coelho Heckert (2017) discutem
cial (LOAS), em 1993, a política da assistência como as noções de vulnerabilidade e risco so-
social tem como objetivos: garantir a prote- cial são instrumentalizadas para o controle da
ção social à família, à maternidade, à infân- população nas práticas de um Centro de Refe-
cia, à adolescência, à velhice; o amparo a rência da Assistência Social, apontando que
crianças e adolescentes carentes; a promoção estas denominações contribuem para estigma-
da integração ao mercado de trabalho, a rea- tizar e justificar uma série de intervenções
bilitação e promoção de integração à comuni- por vezes higienistas. Destacam a necessidade
dade para as pessoas com deficiência e o pa- de “criar ações que escapem às produções re-
gamento de benefícios aos idosos e às pessoas gulamentadoras e fiscalizadoras” (Santos &
com deficiência (Lei Nº 8742, de 1993,). Nes- Heckert, 2017, p. 742). Roberta Carvalho Ro-
se contexto, a proteção social é vista como a magnoli (2015) também problematiza as con-
garantia da vida, a redução de danos e a pre- cepções de vulnerabilidade e risco social uti-
venção da incidência de riscos, principalmen-

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lizadas no cotidiano do SUAS que podem di- ção e Atendimento Especializado a Famílias e
minuir tanto a capacidade das equipes, como Indivíduos (PAEFI) realizados por equipes do
o protagonismo e a autonomia das famílias. A Centro de Referência Especializado da Assis-
autora atenta aos riscos da desqualificação, tência Social (CREAS) e Centro Pop — voltados
da sobrecarga e da ressonância da vulnerabi- para população em situação de rua; e alta
lidade ao sustentar “atuações que podem en- complexidade, cujas intervenções são desen-
cobrir práticas morais e resultar em relações volvidas por equipes em unidades de acolhi-
de tutela e de assujeitamentos, impedindo mento — abrigos/albergues — espaços desti-
relações de cuidado que se efetuam na inter- nados à população que vivenciou situação de
cessão, no encontro entre modelos e forças, violação de direitos que requer o afastamento
permitindo a consolidação do SUAS de forma familiar. A PSE atuará para desenvolver “es-
potente” (Carvalho Romagnoli, 2015, p. 449). tratégias de atenção sociofamiliar que visem
Neste sentido, Silvio José Benelli (2016) elu- à reestruturação do grupo familiar e elabora-
cida o desafio de construir práticas no cotidi- ção de novas referências morais e afetivas, no
ano do SUAS que superem a cultura promoto- sentido de fortalecê-lo para o exercício de
ra de proteção repressiva, subalterna e de suas funções de proteção básica ao lado de
controle, por uma ética da cidadania integral sua auto-organização e conquista de autono-
que vise ao efetivo equacionamento do pro- mia” (Brasil, 2004, p. 37).
blema social.
A assistência enquanto política pública de
O SUAS visa à universalização dos direitos so- proteção social objetiva garantir algumas se-
ciais através da rede de serviços socioassis- guranças: de sobrevivência (garantia de um
tenciais organizada por dois níveis de comple- mínimo de renda); de acolhida (provisão de
xidade: proteção social básica — PSB — e pro- necessidades básicas); e de convívio ou vivên-
teção social especial — PSE (Brasil, 2004). A cia familiar (fortalecimento da família como
política direciona-se a quem dela necessitar grupo cidadão) (Brasil, 2004). Cabe problema-
para garantir atendimento às necessidades tizar a forma como são definidas as condições
básicas através de um conjunto de ações in- consideradas como vulneráveis e/ou de risco
tegradas (Lei Nº 8742, de 1993). A PSB desti- social para questionar quais são as lentes uti-
na-se à população vulnerável e objetiva de- lizadas para olhar e intervir. Como uma situa-
senvolver ações para prevenir situações de ção é considerada como frágil em termos de
risco e de violação de direitos, sendo avalia- vínculos e quais são os mecanismos que se
das em função da pobreza e dificuldade de operam para fortalecê-los? Embora as ques-
acesso aos serviços públicos ou as famílias cu- tões dos diferentes níveis de atenção socioas-
jos vínculos estejam fragilizados. As ações da sistencial sejam atravessadas pela desigual-
PSB são desenvolvidas através do Serviço de dade social, prevalece a simplificação das in-
Proteção e Atendimento Integral à Família tervenções, pois tendem a adotar medidas in-
(PAIF) pelas equipes dos Centros de Referên- dividualizantes — com foco na família — e de
cia da Assistência Social (CRAS) e Serviços de responsabilização dos sujeitos ao invés de fo-
Convivência e Fortalecimento de Vínculos car na complexidade que é social e coletiva.
(SCFV) e ProJovem — estes ocorrem no turno Neste sentido, Alessandra Xavier Miron &
inverso à escola. Este nível de atenção obje- Neuza Maria de Fátima Guareschi (2017) des-
tiva o “desenvolvimento de potencialidades e tacam a complexidade que atravessa as práti-
aquisições no contexto familiar, e o fortale- cas no campo das políticas públicas da assis-
cimento de vínculos familiares e comunitá- tência social na medida em que a institucio-
rios, bem como a integração ao mercado de nalização do discurso do compromisso social e
trabalho” (Brasil, 2004, p. 27). da garantia de direitos legitima processos de
controle e de judicialização das vidas. Estas
As ações no âmbito da PSE são destinadas a
questões convergem com a análise crítica de
famílias que se encontram em situação de ris-
Lucas Teixeira Costa (2016) ao problematizar
co e violação de direitos por ocorrência de
os discursos que produzem uma série de sabe-
maus-tratos, trabalho infantil, violência e/ou
res-poderes pautados no controle das popula-
abuso, cumprimento de medidas socioeduca-
ções e prevenção de riscos sociais.
tivas, situação de rua, entre outras condições
(Brasil, 2004). A PSE organiza-se através da
média complexidade pelos Serviços de Prote-

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Sistema de Proteção Social: dispositivos ra todos os indivíduos, pois há zonas de maior


de segurança e a prevenção de riscos ou menor exposição. É neste contexto que se
preconiza a territorialização dos serviços e
O sistema de proteção social pode ser enten- das práticas das políticas públicas, denotando
dido como efeito da sociedade regida pelos como efeito dessa racionalidade a aproxima-
dispositivos de segurança que visam a elimi- ção das comunidades consideradas de maior
nar o que se avalia como perigo. O público- vulnerabilidade ou risco social para desenvol-
alvo da política é considerado, então, como ver intervenções mais contextualizadas e vigi-
grupo de risco com virtualidades que preci- lantes.
sam ser controladas e evitadas ou comporta-
mentos a serem corrigidos e/ou normalizados O Cadastro Único para Programas Sociais (Ca-
em nome da garantia destas supostas segu- dÚnico), por exemplo, surge como tecnologia
ranças. Para Foucault (1979/2008), a socieda- para delimitar uma população em situação de
de organizada por dispositivos de segurança vulnerabilidade ou risco social ao registrar su-
busca criar um ambiente em função de acon- as características e compor, a partir destas, a
tecimentos e séries que precisam ser regulari- seleção dos perfis que serão incluídos nos
zadas. É a possibilidade do risco que inscreve programas sociais do governo federal. Estes
a necessidade de uma série de técnicas de vi- são acessados somente pelos indivíduos que
gilância dos indivíduos para elaborar diagnós- estiverem com cadastro atualizado nesta base
ticos que classifiquem suas irregularidades. Os de dados, a partir da qual é possível identifi-
mecanismos são construídos, então, para ga- car necessidades e encaminhar os beneficiá-
rantir esse espaço de segurança que permite rios por uma rede de programas. Pauta-se pe-
conhecer e balizar o risco. Neste sentido, a lo mecanismo de conhecer para incluir, sendo
PNAS coloca como referência as práticas de tomado como fonte de informações para a
vigilância socioassistencial que se referem à atualização de programas sociais ou imple-
“produção, sistematização de informações, mentação dos já existentes, dando conta de
indicadores e índices territorializados das si- uma realidade processual que deve estar
tuações de vulnerabilidade e risco pessoal e sempre incluída nos cálculos da racionalidade
social que incidem sobre famílias/pessoas nos econômica. Desta forma, o CadÚnico se cons-
diferentes ciclos da vida” (Brasil, 2004, p. titui como uma tecnologia para o conheci-
39). mento da população em situação de pobreza
e vulnerabilidade social quanto aos seus mo-
Quando se trata de indivíduos/populações dos de vida, obtendo informações a respeito
considerados em risco, as práticas são geral- do domicílio, família e seus componentes no
mente pautadas por antecipar e impedir um que se refere à documentação, escolaridade,
acontecimento indesejável, conhecido a par- trabalho e renda, entre outros dados.
tir dos dados gerados por sistemas de infor-
mação. Myriam Mitjavila (2006) destaca que o O CadÚnico coloca alguns pontos como cen-
advento das tecnologias possibilitou a gestão trais sobre as famílias para que elas possam
tecnoburocrática do social ao produzir uma acessar o sistema de proteção, como estar em
reorganização das bases de detecção dos pro- situação de pobreza ou pobreza extrema,
blemas sociais — a nível individual e populaci- principalmente quando existe a presença de
onal, nas quais o risco opera como dispositivo crianças, idosos e pessoas com deficiência
capaz de criar um novo tipo de campo docu- dependentes financeiramente dos adultos.
mental sobre a vida social. A autora salienta Outras questões destacadas como vulneráveis
que o risco como dispositivo pode atuar como são: condições precárias de habitação; pesso-
instrumento de poder e de produção de co- as sem qualificação profissional e com difi-
nhecimento sobre o indivíduo e a população, culdades de integração na lógica produtiva do
sendo dependente do saber especializado que mercado de trabalho e, portanto, do consu-
determina o que é considerado como fator de mo; crianças e jovens que se encontram fora
risco — seus indicadores, formas de medi-lo e da escola; a ausência de documentação — que
obter informação. Criam-se, assim, procedi- impede os acessos à educação e ao mercado
mentos de categorização social de indivíduos de trabalho. Estas são algumas das condições
e grupos. Foucault (1978/2008) destaca que o sobre as quais as intervenções socioassisten-
surgimento da estatística possibilitou identifi- ciais são mobilizadas e desenvolvidas. Após o
car que o risco não se distribui igualmente pa- cadastro das características individu-

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ais/familiares são avaliadas se a situação de- vidualizar as questões que são sociais e cole-
ve ser integrada ou não ao sistema de prote- tivas. Embora o campo da assistência seja
ção social, conforme os requisitos necessários atravessado por desigualdades sociais, suas
e programas disponíveis. A atualização bianu- respostas costumam ser pautadas pela via da
al obrigatória no CadÚnico permite acompa- reparação individual das condições de vida.
nhar e vigiar as situações de vida. Assim, o cadastro possibilita conhecer uma
determinada realidade que comporta a virtua-
Ao considerar os aspectos destacados, pode-
lidade do perigo. Para Foucault (1978/2008),
se visibilizar que o CadÚnico não se constitui
o perigo é o aleatório e não pode, portanto,
somente como um instrumento de conheci-
ser previsto. Tornar conhecíveis os fenômenos
mento da realidade das famílias, mas também
é uma forma de converter o perigo em risco e
produz a realidade na qual o sistema de pro-
isso é possível por meio das técnicas estatísti-
teção deve intervir, pois elege critérios de
cas que permitem apreender os fenômenos
entrada na rede de assistência social. As ne-
em termos de cálculos de probabilidade. O
cessidades das famílias-usuárias são produzi-
CadÚnico fomenta, portanto, a organização
das pela prática do cadastramento e visitas,
de um modo de ingressar no sistema de pro-
configurando os problemas sobre os quais se
teção que possibilita catalogar condutas con-
deve intervir. Outra tecnologia que integra os
sideradas irregulares, desviantes e potencial-
aparatos socioassistenciais é a Busca Ativa,
mente “perigosas”, comportamentos que se
criada junto com o Plano Brasil sem Miséria
referem a determinados modos de viver a
com o intuito de ampliar e qualificar a cober-
partir da construção de perfis de necessida-
tura dos programas sociais (Decreto Nº 7.492,
des. O diagnóstico construído sobre as neces-
de 02/06/2011). Esta estratégia pressupõe
sidades sociais produzem sentidos sobre a po-
que o Estado vá até as famílias pobres de difí-
breza na medida em que os vincula a indica-
cil acesso que ainda não se cadastraram ou
dores configurados como principais pontos so-
que desconhecem os serviços com o objetivo
bre os quais se definem políticas sociais e su-
de cadastrá-las e incluí-las. Tal prática com-
as intervenções, tais como renda, emprego e
plementa a gestão territorial ao notificar as
situação familiar. Pode-se considerar como
condições de vulnerabilidade/risco e identifi-
suficiente compreender as consequências so-
car as potencialidades, possibilitando a racio-
ciais da pobreza a partir destes indicadores?
nalização do planejamento local e das ações
preventivas sobre a população, conforme nos O Programa Bolsa Família (PBF) é um dos
apontam Betina Hillesheim e Lilian Cruz principais programas no campo da assistência
(2012). destinado a famílias com crianças ou adoles-
centes de 0 a 17 anos com baixa renda per
Desta forma, a vigilância socioassistencial
capita. O programa insere os sujeitos em uma
através do cadastramento (CadÚnico) e da
rede de vigilância com condicionalidades
busca ativa se constituem como tecnologias
atreladas à frequência escolar mínima de 85%
de governo que identificam a população que
para crianças e de 75% para jovens, além do
deve ser acompanhada pelo sistema de prote-
acompanhamento de saúde (vacinar, pesar,
ção. Estas estratégias fazem operar alguns
medir, realizar pré-natal, puericultura, exa-
movimentos: delimitam o que se considera
mes, etc.), frequência no SCFV de 85% para
como riscos da população (renda, escolarida-
crianças/adolescentes em que for identifica-
de, trabalho, relações familiares, etc.) e es-
do risco de trabalho infantil. Outra condicio-
tratificam os riscos a partir do conhecimento
nalidade é a adesão ao acompanhamento so-
dos diferentes perfis e supostas necessidades.
cial ofertado pelos CRAS ou CREAS para as
Os aparatos produzem conhecimento das for-
famílias beneficiárias do PBF com o propósito
mas de vida consideradas inadequadas para
de fortalecer os vínculos familiares, comuni-
inseri-las em programas. A identificação do
tários e a função protetiva, além de ações
risco opera como uma produção de risco, me-
que objetivem o desenvolvimento de suas po-
canismo que orienta as/os técnicas/os da re-
tencialidades.
de assistencial a construir o diagnóstico social
que embasará as intervenções para/sobre as Lilian Cruz e Betina Hillesheim (2013) desta-
famílias. cam que trabalhar na perspectiva do fortale-
cimento de vínculos pressupõe considerá-los
A delimitação do grupo de risco pelo cadastro
fragilizados ou inadequados, como se existis-
engendra a tendência a particularizar e indi-

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Política Nacional de Assistência Social e Governamentalidade 9

sem formas de convívio melhores ou mais fortalecimento dos vínculos e estimular o pro-
adequadas que outras, aspectos que vão de- tagonismo de seus membros através da convi-
mandar intervenções que os ajustem. Esta re- vência, socialização e acolhimento. A integra-
de que se amplia para acompanhar as famílias ção ao mercado de trabalho também compõe
pode ser vista tanto como forma de apoio e o conjunto de intervenções propostas pela
garantia de direitos, mas também como um PNAS. Neste sentido, a família tem se consti-
emaranhado atravessado por mecanismos de tuído como importante elemento no interior
controle justificados pela virtualidade do pe- da população e instrumento de governo a par-
rigo que supostamente advém de suas condi- tir do século XIX (Foucault, 1979/2009).
ções de existência. Assim, operar na lógica do
As intervenções sobre o risco são organizadas
risco e de sua prevenção supõe considerar que
a partir da centralidade da família proposta
as famílias carregam a virtualidade da errân-
na PNAS e baseada na concepção de que de-
cia em relação à norma, de modo que o risco
terminados arranjos familiares podem engen-
converge para formas de vida consideradas
drar processos de vulnerabilidade/risco sobre
inadequadas e que demandam monitoramento
as quais se torna necessário intervir. As desi-
constante para a sua correção. Neste ponto,
gualdades características da estrutura social
surge a concepção de trabalho continuado no
aumentam as pressões sobre as famílias de
acompanhamento das famílias, estimulando-
forma dissociada à conjuntura social. A inter-
as a utilizar os recursos disponíveis para mu-
ferência do Estado sobre as famílias remonta
dar hábitos. Os aparatos socioassistenciais ar-
ao período da industrialização com a necessi-
ticulam suas ações com outros serviços, o que
dade de reconfiguração das formas de relação
permite a circulação das pessoas por diversos
e convívio entre as pessoas através de medi-
pontos da rede intersetorial da saúde, educa-
das higienistas e moralizantes para garantir
ção, habitação, etc. Assim, as famílias enre-
determinada ordem fundada pelo imperativo
dadas na teia das políticas públicas são convi-
da produção capitalista. O higienismo funda-
dadas a percorrer um caminho que garanta di-
mentado no saber médico constrói um perfil
reitos, ao mesmo tempo em que são convoca-
sanitário para as famílias ao impor formas de
das a se adaptar a certo ordenamento propos-
se relacionar, nas quais a matricialidade fami-
to pelos espaços institucionais de acompa-
liar impera como elemento nuclear para asse-
nhamento contínuo e proximal.
gurar uma determinada ordem pública na or-
ganização das aglomerações urbanas, confor-
Matricialidade Sociofamiliar: me destaca Jurandir Costa (1989). Ao apre-
instrumento de governo e de sentar uma análise genealógica da Política de
individualização Assistência Social, Wenderson Rufino dos San-
tos (2017) discute a complexa estruturação de
O SUAS define a Matricialidade Sociofamiliar um circuito familista, cujas responsabilidades
como eixo estruturante para organizar a exe- de combater as vulnerabilidades e riscos soci-
cução das ações da política de assistência. Es- ais da população são compartilhadas entre Es-
sa noção posiciona a família na função de tado e famílias, sendo transferidas ou assumi-
“prover a proteção e a socialização dos seus das de modo integral por estas quando há
membros; constituir-se como referências mo- omissão do Estado. No contexto brasileiro, a
rais, de vínculos afetivos e sociais, de identi- racionalidade neoliberal opera de modo a co-
dade grupal, além de ser mediadora das rela- locar o Estado presente na regulação das vi-
ções dos seus membros com outras institui- das consideradas de risco, na qual a assistên-
ções sociais e com o Estado” (Brasil, 2004, p cia social passa a ser um direito conquistado e
35). Para que a família se constitua neste lu- não mais questão de filantropia.
gar, a assistência social visa a promover as
condições necessárias para tal, aspecto que As ações no âmbito dos direitos humanos e
justifica o direito da família de ser protegida sociais tornam-se potentes na medida em que
e situada como unidade de referência e de o Estado oferece condições para determina-
proteção pelo Estado. A função protetiva que dos acessos de renda (PBF) e de inclusão pro-
se espera da família é um dos aspectos cons- dutiva no mercado de trabalho (cursos profis-
truídos e naturalizados por diversas políticas sionalizantes), estimulando que os indivíduos
públicas. A PNAS orienta que as equipes dos busquem soluções para os seus problemas. Es-
serviços de proteção social devem fomentar o te aspecto pode ser visto como forma de indi-

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vidualização ao fomentar que os indivíduos la um núcleo estável que promova a proteção


assumam a responsabilidade por sua biogra- dos indivíduos e a reprodução de valores, as-
fia. As condicionalidades expressam a tendên- pectos que a mantém como instrumento da
cia das políticas sociais em produzir um con- governamentalidade. Estes investimentos das
trole sobre a população e, ao mesmo tempo, políticas públicas podem ser entendidos pelo
fomenta que assumam as responsabilidades que Foucault (1978/2008) aborda como inves-
na gestão dos seus riscos. Myriam Mitjavila timento no capital humano — o homo oeco-
(2006) destaca que a individualização se refe- nomicus — capaz de se colocar na competição
re aos mecanismos e processos que tornam a do mercado, aparecendo uma espécie de em-
percepção dos problemas sociais como pro- presário de si responsável pela sua renda, pe-
blemas individuais em função das disposições lo seu sucesso ou insucesso e pela gestão dos
psicológicas e familiares. seus riscos — dissociado das questões sociais.
Neste ponto, denoto a concepção de família-
As políticas públicas tendem a operar no sen-
empreendedora como forma de subjetivação
tido de construir uma função protetiva na fa-
pelas vias da participação no mercado e do
mília e estimular a gestão de seus riscos a
engajamento em um projeto de vida que
partir dos serviços ofertados através dos pro-
atenda às demandas da racionalidade neolibe-
gramas sociais que, ao passar por um ideal de
ral de competitividade e de uma suposta me-
autonomia, a família se torna um lugar de
ritocracia. Pierre Dardot e Christian Laval
sustentação e garantia diante de situações
(2016) destacam que a racionalidade neolibe-
que apresentam ameaças/perigos. Mitjavila
ral opera através do “discurso da busca inces-
(2006) apresenta uma análise sobre o papel
sante da realização de si, situando o sucesso
desempenhado pelo risco como elemento-
como algo que depende do sujeito” (p. 367).
chave no processo de individualização social
Para os autores, a empresa se torna uma for-
no que se refere à “progressiva responsabili-
ma de vida, fomentando a busca por capaci-
zação dos indivíduos na construção de suas
tação permanente neste processo de ser em-
trajetórias sociais no contexto de reestrutu-
preendedor-de-si, movimento que pode gerar
ração, enfraquecimento e desintegração dos
um cansaço de si mesmo levando ao que de-
suportes coletivos da vida social” (p. 92).
nominam como patologia da insuficiência.
Neste sentido, a autora mostra que o risco é
transformado em instrumento versátil para a Dardot e Laval (2016) entendem o neolibera-
gestão social, pois diante da incerteza e inse- lismo como uma racionalidade, pois se consti-
gurança produzida pelo risco e em nome des- tui como um conjunto de discursos, práticas e
te, legitima-se uma série de intervenções po- dispositivos que se baseiam na ideia principal
líticas sobre a vida humana. As ações para de livre mercado, incidindo de forma trans-
prevenir riscos são apoiadas na probabilidade versal em todas as esferas da vida e não ape-
da ocorrência de determinados eventos, pers- nas na econômica. Para os autores, esta raci-
pectiva que adquire forma tecnificada sobre a onalidade se exerce através de um modo de
ideia de risco “atribuível aos grupos populaci- governar que apresenta como princípios a
onais em função da exposição a determinados competição generalizada (concorrência) e o
agentes” (Mitjavila, 2006, p. 94). modelo de empresa que justifica as desigual-
dades através da meritocracia, como se todos
Robert Castel (1991) destaca que os novos
partissem da mesma condição. Assim, a raci-
mecanismos de controle não operam nem por
onalidade neoliberal opera promovendo rela-
repressões, nem pelo intervencionismo, pois
ções sociais baseadas na lógica da competição
objetivam maximizar o retorno lucrativo e
e do desempenho máximo, na qual há uma
marginalizar o não lucrativo. Assim, ao invés
naturalização deste modelo e quem não atin-
de segregar e eliminar o indesejável, este é
ge um bom rendimento é visto como respon-
reintegrado através de intervenções correti-
sável pelo seu fracasso, independente das
vas. É possível observar uma biografização
condições sociais. Estas concepções são ne-
dos problemas sociais, que são assumidos a
cessárias e inerentes à economia baseada no
nível individual nas exigências que derivam da
livre mercado levando à pauperização e/ou
competitividade e rentabilidade (Mitjavila,
expropriação sistemáticas. Ao contrário do
2006). Assim, a família é colocada em uma
que se postula, o Estado não desaparece na
centralidade matricial, através da qual as in-
racionalidade neoliberal ou apresenta uma
tervenções socioassistenciais objetivam torná-
ação mínima, mas é coprodutor da concorrên-

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Política Nacional de Assistência Social e Governamentalidade 11

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LIANA CRISTINA DALLA VECCHIA PEREIRA


Doutoranda do Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) da Universidade Federal de
Santa Catarina, bolsista CAPES. Psicóloga, especialista em saúde da família e comunidade (residência
integrada em saúde — Grupo Hospitalar Conceição) e em saúde mental coletiva (Universidade Rovira i
Virgili). Mestre em saúde pública pelo programa Erasmus Mundus (Europubhealth) pela Universidade de
Copenhagen e Universidade de Granada.

DIRECCIÓN DE CONTACTO
lianadvp@gmail.com

FORMATO DE CITACIÓN
Dalla Vecchia Pereira, Liana Cristina (2019).Política Nacional de Assistência Social e Governamentali-
dade: algumas problematizações. Quaderns de Psicologia, 21(1), e1482.
http://dx.doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1482

HISTORIA EDITORIAL
Recibido: 10/09/2018
1ª Revisión: 15/11/2018
Aceptado: 19/12/2018

http://quadernsdepsicologia.cat

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