Você está na página 1de 537

DADOS DE COPYRIGHT

SOBRE A OBRA PRESENTE:


A presente obra é disponibilizada pela equipe
Le Livros e seus diversos parceiros, com o
objetivo de oferecer conteúdo para uso
parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem
como o simples teste da qualidade da obra, com
o fim exclusivo de compra futura. É
expressamente proibida e totalmente
repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso
comercial do presente conteúdo

SOBRE A EQUIPE LE LIVROS:


O Le Livros e seus parceiros disponibilizam
conteúdo de dominio publico e propriedade
intelectual de forma totalmente gratuita, por
acreditar que o conhecimento e a educação
devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer
pessoa. Você pode encontrar mais obras em
nosso site: LeLivros.love ou em qualquer um dos
sites parceiros apresentados neste LINK.
"Quando o mundo estiver
unido na busca do
conhecimento, e não mais
lutando por dinheiro e
poder, então nossa
sociedade poderá enfim
evoluir a um novo nível."
Copyright © 2015 by William Finnegan

TÍTULO ORIGINAL
Barbarian Days: A Surfing Life

PREPARAÇÃO
Renata Dib

REVISÃO
Carolina Rodrigues
Paula de Carvalho
Taís Monteiro

REVISÃO TÉCNICA
Adrian Kojin

DESIGN DE CAPA
Darren Haggar

FOTO DE CAPA
Cortesia de William Finnegan

ADAPTAÇÃO DE CAPA
ô de casa

FOTO DE LOMBADA E QUARTA CAPA


George Silk / Getty Images

CRÉDITO DAS FOTOS


Todas as imagens, à exceção das creditadas abaixo, são cortesia do autor.
“Grajagan, Java, 1979”: © Mike Cordesius; “Paul Stacey, de Kirra...”: ©
joliphotos; “Tavarua, Fiji, 2002”: Ken Seino; “Cloudbreak, Fiji, 2005”: Scott
Winer.

Trecho do capítulo 10, de William Shakespeare, foi retirado de Noite de reis.


Rio de Janeiro: Agir, 1998, tradução de Carlos Alberto Nunes.

REVISÃO DE E-BOOK
Manuela Brandão
Taynée Mendes

GERAÇÃO DE E-BOOK
Intrínseca

E-ISBN
978-85-510-0148-6
Edição digital: 2017

1a edição

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA INTRÍNSECA LTDA.
Rua Marquês de São Vicente, 99, 3o andar
22451-041 Gávea
Rio de Janeiro – RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
www.intrinseca.com.br
Grajagan, Java, 1979
Para Mollie
Ele havia ficado tão envolvido na construção de frases que quase
se esqueceu dos dias bárbaros quando pensar era como um
borrão de cor em uma página.

— EDWARD ST. AUBYN, Mother’s Milk


SUMÁRIO

FOLHA DE ROSTO

CRÉDITOS

MÍDIAS SOCIAIS

DEDICATÓRIA

EPÍGRAFE

UM
ARREDORES DE DIAMOND HEAD
Honolulu, 1966-1967
DOIS
O CHEIRO DO OCEANO
Califórnia, 1956-1965
TRÊS
O CHOQUE DO NOVO
Califórnia, 1968
QUATRO
‘SCUSE ME WHILE I KISS THE SKY
Maui, 1971
CINCO
A BUSCA
Pacífico Sul, 1978
SEIS
PAÍS DE SORTE
Austrália, 1978-1979
SETE
ESCOLHENDO A ETIÓPIA
Ásia e África, 1979-1981
OITO
CONTRA A VAGABUNDAGEM
São Francisco, 1983-1986
NOVE
BAIXO PROFUNDO
Ilha da Madeira, 1994-2003
DEZ
OS MONTES AFUNDAM NO CORAÇÃO DO MAR
Nova York, 2002-2015
SOBRE O AUTOR

LEIA TAMBÉM
UM

ARREDORES DE DIAMOND HEAD

Honolulu, 1966-1967

Nunca me considerei uma criança protegida. Mesmo assim, a


Kaimuki Intermediate School foi um choque. Tínhamos acabado
de nos mudar para Honolulu; eu estava no oitavo ano, e a
maioria dos meus novos colegas de escola eram “viciados em
drogas, cheiradores de cola e marginais” — ou pelo menos foi o
que eu escrevi para um amigo em Los Angeles. Não era verdade.
A verdade era que os haoles (as pessoas brancas; eu era uma
delas) formavam uma minoria impopular em Kaimuki. Os
“nativos”, como eu os chamava, pareciam não gostar
especialmente de nós. Isso me agoniava porque muitos
havaianos eram, para crianças no fim do ensino fundamental,
assustadoramente grandes, e dizia-se que gostavam de brigar.
Os orientais — mais uma vez, minha terminologia — eram o
maior grupo étnico da escola. Naquelas primeiras semanas, eu
não era capaz de distinguir entre crianças japonesas, chinesas e
coreanas — para mim, eram todas orientais. Também não
percebia a existência de outras tribos importantes, como os
filipinos, os samoanos ou os portugueses (que não eram
considerados haoles), muito menos as crianças miscigenadas.
Provavelmente eu achava até mesmo que o cara grande na aula
de marcenaria, que imediatamente demonstrou um interesse
sádico por mim, fosse havaiano.
Ele usava sapatos pretos reluzentes de bico fino e comprido,
calças justas e camisas floridas coloridas. Tinha o cabelo crespo
cortado em um topete, e parecia que se barbeava desde o dia
em que nasceu. Quase não falava e, quando dizia alguma coisa,
era apenas em um pidgin incompreensível. Era uma espécie de
chefão-mirim do crime, claramente vários anos atrasado em
relação a sua turma de origem, apenas passando um tempo ali
até poder largar a escola. Ele se chamava Freitas — eu nunca
soube o primeiro nome —, mas não parecia ser parente do clã
Freitas, uma família grande com pelo menos cinco garotos
indisciplinados na Kaimuki Intermediate School. O Freitas de
sapato de bico fino me avaliou descaradamente por alguns dias,
deixando-me cada vez mais nervoso, e então começou a realizar
pequenos ataques ao meu autocontrole, esbarrando devagar em
meu cotovelo, por exemplo, enquanto eu estava concentrado
usando a serra elétrica para construir minha caixa de engraxate.
Eu tinha muito medo para dizer qualquer coisa, e Freitas
nunca me dirigiu a palavra. Aquilo parecia fazer parte da
diversão. Para passar o tempo que devíamos ficar sentados nas
carteiras na parte da marcenaria que servia como sala de aula,
Freitas inventou uma brincadeira cruel e engenhosa. Ele se
sentava atrás de mim e, sempre que o professor nos dava as
costas, batia na minha cabeça com uma ripa de madeira. Bonc...
bonc... bonc, um belo ritmo constante, sempre com uma pausa
longa o suficiente entre cada golpe para me permitir a breve
esperança de que talvez não houvesse outro. Eu não conseguia
entender como o professor não ouvia todos aqueles sons não
autorizados e ressonantes. Eram altos a ponto de atrair a
atenção dos outros alunos, que pareciam achar o ritual de Freitas
fascinante. Na minha mente, os golpes eram, claro, explosões
capazes de abalar os ossos. Freitas usava uma ripa bem grande
— entre um metro e meio e um metro e oitenta — e nunca batia
com muita força, o que lhe permitia me agredir à vontade sem
deixar marcas; e fazia tudo com um distanciamento delicado,
quase meditativo, que, imagino, aumentava o fascínio da
performance.
Eu me pergunto se, caso o alvo fosse outro garoto, eu teria
sido tão passivo quanto meus colegas de turma. Provavelmente
sim. O professor estava distraído em seu próprio mundo,
preocupado apenas com suas serras de mesa. Eu não fazia nada
para me defender. Assim como descobri que Freitas não era
havaiano, devo ter percebido que era melhor simplesmente
tolerar o abuso. Afinal, eu era magricelo, haole e sem amigos.
Mais tarde concluí que meus pais tinham me mandado para a
Kaimuki Intermediate School por um equívoco. O ano era 1966, e
o sistema de escolas públicas da Califórnia, sobretudo nos
subúrbios de classe média em que tínhamos morado, estava
entre os melhores dos Estados Unidos. As famílias que
conhecíamos nunca considerariam matricular os filhos em
escolas particulares. As escolas públicas do Havaí eram
diferentes: empobrecidas, atoladas em tradições coloniais, de
agricultura de exploração e missionárias, e muito abaixo da
média americana, academicamente falando.
No entanto, não dava para saber de tudo isso apenas pela
escola primária que meus irmãos mais novos frequentavam.
(Kevin tinha nove anos; Colleen, sete. Michael tinha três e, numa
época anterior à existência da pré-escola, ainda estava livre da
educação formal.) Tínhamos alugado uma casa nos limites de
um bairro rico chamado Kahala, e a Kahala Elementary era um
paraíso bem financiado de educação progressista. Afora o fato
de que as crianças podiam ir para a escola descalças — um
exemplo surpreendente de permissividade tropical, em nossa
opinião —, a Kahala Elementary poderia muito bem estar em um
distrito da alta sociedade de Santa Monica. Por outro lado, o fato
de a escola não ter turmas mais avançadas era revelador. Isso
acontecia porque qualquer família na área que tivesse condições
optava por mandar os filhos para as escolas secundárias
particulares que, por muitas gerações, educaram a classe média
de Honolulu (e de grande parte do Havaí), junto com os
moradores ricos.
Ignorando tudo isso, meus pais me matricularam no colégio
mais próximo, num bairro operário chamado Kaimuki, do outro
lado da cratera Diamond Head, onde eles acreditavam que eu
estivesse me dedicando às matérias do oitavo ano, mas onde, na
verdade, eu estava muito ocupado em lidar com a solidão, as
brigas e as ameaças de outros alunos e em buscar uma forma de
sobreviver em um mundo com tamanha divisão racial após uma
vida inteira inconsciente da minha branquitude nos subúrbios
segregados da Califórnia. Até as turmas pareciam racialmente
estabelecidas. Entretanto, pelo menos para as disciplinas
acadêmicas, os alunos eram designados, com base no resultado
dos testes, a um grupo que teria as mesmas aulas juntos. Entrei
em uma turma avançada, onde quase todos os meus colegas
eram garotas japonesas. Não havia havaianos, samoanos nem
filipinos, e as aulas propriamente ditas, formais e pouco
exigentes, me entediavam de um jeito que a escola nunca
conseguira fazer. O fato de que eu parecia não existir para os
outros alunos não ajudava muito. E assim eu passava as aulas
encolhido nas últimas fileiras, olhando para as árvores do lado de
fora à procura de sinais da força e da direção dos ventos,
preenchendo página após página com desenhos de pranchas de
surfe e ondas.

***

Eu já surfava havia três anos quando meu pai conseguiu o


emprego que nos levou para o Havaí. Ele vinha trabalhando, na
maioria das vezes como assistente de direção, em séries de TV,
como Dr. Kildare e O Agente da U.N.C.L.E. Agora se tornara
diretor de produção de uma nova série, um programa musical de
variedades com duração de meia hora inspirado em um
programa de rádio local, o Hawaii Calls. A ideia era gravar Don
Ho cantando em um barco com fundo de vidro, uma banda de
calipso em uma cachoeira e mulheres dançando hula durante
uma erupção vulcânica e chamar isso de programa.
“Não vai ser um show de calouros do Havaí”, disse meu pai,
“mas está bem perto.”
“Se for muito ruim, vamos fingir que não conhecemos você”,
avisou minha mãe. “Bill? Que Bill?”
O orçamento para nos mudarmos para Honolulu foi apertado,
a julgar pela casa pequena que alugamos (Kevin e eu nos
revezávamos para dormir no sofá) e pelo Ford enferrujado que
compramos para circular pela cidade. Mas a casinha era perto da
praia — no fundo de uma entrada de carros alinhada com outras
casinhas, em uma rua chamada Kulamanu —, e o clima, quente
mesmo em janeiro, parecia um luxo injustificável quando
chegamos.
Minha empolgação excedia qualquer limite só por estar no
Havaí. Todos os surfistas, todos os leitores de revistas de surfe
— e eu tinha decorado cada linha e cada legenda das fotos de
todas as minhas edições — passavam a maior parte de seu
mundo dos sonhos, quisessem ou não, no Havaí. E agora eu
estava lá, andando pela areia havaiana de verdade (áspera, com
cheiro estranho), provando a água do mar havaiana (morna, com
cheiro estranho) e remando na direção das ondas havaianas
(pequenas, escuras e sopradas pelo vento).
Nada era como eu tinha esperado. Nas revistas, as ondas do
Havaí eram sempre grandes e, nas fotos coloridas, iam do azul-
escuro do meio do oceano a um turquesa-claro inacreditável. O
vento era sempre terral (soprando da terra para o mar, ideal para
surfar), e os próprios picos eram o parque de diversão dos
deuses: Sunset Beach, Banzai Pipeline, Makaha, Ala Moana,
baía de Waimea.
Tudo isso parecia a um mundo de distância do mar diante de
nossa casa. Até Waikiki, conhecida pelas ondas para iniciantes e
multidões de turistas, ficava do outro lado de Diamond Head — o
lado oeste, mais glamoroso e icônico —, assim como todas as
outras partes de Honolulu das quais qualquer pessoa já tinha
ouvido falar. Nós estávamos do lado sudeste da montanha, no
sopé de uma pequena encosta sombreada e à beira-mar a oeste
de Black Point. A praia era apenas uma faixa de areia úmida,
estreita e vazia.
Na tarde de nossa chegada, durante a minha primeira
exploração frenética das águas locais, achei a condição do mar
confusa. Ondas quebravam em vários lugares ao longo da
margem externa de um recife exposto e coberto de algas. Fiquei
preocupado com o coral. Tinha fama de ser afiado. Então avistei,
bem para oeste, e bastante longe da costa, um minueto familiar
de pontinhos subindo e descendo, as costas iluminadas pelo sol
da tarde. Surfistas! Voltei correndo pela rua. Todo mundo em
casa estava ocupado desfazendo malas e brigando por camas.
Vesti um calção, peguei a prancha e saí sem dizer uma palavra.
Remei para oeste ao longo de uma lagoa rasa por quase um
quilômetro, me mantendo próximo à margem. Não se viam mais
casas de praia, e a própria base íngreme e coberta de arbustos
de Diamond Head tomava o lugar delas na areia. Então, o recife
à minha esquerda ganhou profundidade abruptamente, revelando
um canal largo — mais fundo, onde não quebravam ondas —, e,
depois dele, cerca de dez surfistas pegando ondas escuras na
altura do peito em um vento maral moderado. Remei devagar na
direção do line-up — a área em que os surfistas se reúnem à
espera das ondas —, fazendo uma rota ao redor, avaliando cada
surfada. Os surfistas eram bons. Tinham estilos suaves e sem
firulas. Ninguém caía. E ninguém, graças a Deus, parecia me
notar.
Fiz a volta e, em seguida, me dirigi a uma área vazia do line-
up. Havia muitas ondas. Desmanchavam-se quando eu entrava
nelas, mas eram fáceis. Deixei que a memória muscular
assumisse o controle e peguei algumas direitas pequenas e
gordas. As ondas eram diferentes — mas nem tanto — daquelas
da Califórnia. Mudavam muito de lugar, mas não eram
intimidantes. Dava para ver o coral no fundo, mas, tirando
algumas cabeças que se projetavam para fora d’água no interior
da bancada (perto da costa), não era muito raso.
Havia muita conversa e muitos risos entre os surfistas. Tentei
ouvi-los, mas não conseguia entender uma palavra.
Provavelmente estavam falando pidgin. Eu lera sobre esse
dialeto em Havaí, de James Michener, mas, como as aulas na
Kaimuki Intermediate School só começariam no dia seguinte,
ainda não o ouvira de fato. Ou talvez fosse alguma língua
estrangeira. Eu era o único haole (outra palavra de Michener) na
água. Em determinado momento, um cara mais velho passou
remando por mim, gesticulou na direção do alto-mar e disse:
“Outside.”
Foi a única palavra dirigida a mim naquele dia, que indicava
uma série de ondas que iriam entrar mais ao fundo e não no
lugar em que geralmente quebravam. E ele estava certo: foi a
maior série da tarde, e fiquei grato por ter sido alertado.
Quando o sol começou a se pôr, o crowd diminuiu. Tentei ver
para onde as pessoas iam. A maioria pareceu pegar uma trilha
íngreme que subia a encosta até a Diamond Head Road, as
pranchas pálidas carregadas na cabeça, movendo-se de forma
constante e com a quilha para a frente pelo caminho em zigue-
zague. Peguei uma última onda, surfei até o raso e comecei a
longa remada para casa pela lagoa. Agora as construções
estavam iluminadas. O ar estava mais fresco; as sombras
projetavam um azul quase negro embaixo dos coqueiros ao
longo da costa. Eu estava radiante com a minha sorte. Só queria
ter alguém para contar: “Eu estou no Havaí, surfando no Havaí.”
Então me ocorreu que eu nem sequer sabia o nome do lugar
onde tinha surfado.

***

O nome era Cliffs. Um arco de recifes que parecia uma colcha de


retalhos e se estendia para o sul e para o oeste por quase um
quilômetro partindo do canal em que eu remara pela primeira
vez. Para conhecer qualquer novo pico no surfe, você primeiro
precisa aplicar seu conhecimento prévio, todas as outras ondas
que aprendeu a entender nos mínimos detalhes. Mas, naquela
época, minha bagagem consistia em dez ou quinze picos na
Califórnia, e havia apenas um que eu conhecia muito bem: um
local em Ventura com fundo de pedra. E nenhuma dessas
experiências me preparou para Cliffs. Após aquela sessão inicial,
passei a tentar surfar lá duas vezes por dia.
Caminho até a água, casa em Kulamanu, 1966

Cliffs era um pico realmente consistente, no sentido de que


quase sempre havia ondas para pegar, mesmo no período que
eu vim a entender como baixa temporada para a South Shore de
Oahu. As bancadas de coral que saem de Diamond Head ficam
na extremidade sul da ilha e, por isso, pegam qualquer migalha
das ondulações de passagem. Mas também pegam muito vento,
incluindo as fortes correntes de ar da montanha para o mar que
descem pelas encostas da cratera — e esse vento, aliado à
grande extensão em zigue-zague do recife e aos swells que
chegavam de muitas direções diferentes, produzia condições em
constante alteração. Esse era um paradoxo do qual eu não
gostava nem um pouco na época, pois resultava em uma
refutação violenta e frequente da ideia de consistência. Cliffs
tinha uma complexidade temperamental diferente de qualquer
outro lugar que eu já conhecera.
As manhãs em especial confundiam muito. Para conseguir
surfar antes da escola, eu precisava estar na água ao nascer do
sol. De acordo com a minha breve experiência, o mar devia estar
liso ao amanhecer. Pelo menos na costa da Califórnia, o início
das manhãs não costuma ter vento. Mas, aparentemente, não
era o que acontecia nos trópicos. Menos ainda em Cliffs. Ao
nascer do sol, os ventos alísios costumavam soprar com força.
Folhas de palmeiras se agitavam de forma violenta enquanto eu
descia pela trilha, carregando na cabeça minha prancha
parafinada, e, da praia, conseguia ver no outside as espumas
brancas, além do recife, espalhado de leste a oeste no oceano
azul-royal. Diziam que os alísios eram ventos que sopravam de
nordeste, o que não era uma direção ruim, em teoria, para uma
costa voltada para o sul. Porém, de algum modo, os ventos
batiam sempre lateralmente em Cliffs e eram fortes o suficiente
para arruinar a maioria dos picos daquele ângulo.
Ainda assim, o lugar tinha uma espécie de durabilidade
invocada que o deixava surfável, pelo menos para os meus
propósitos, mesmo naquelas condições não muito boas. Quase
ninguém surfava ali de manhã cedo, o que o tornava um bom
local para explorar melhor o pico principal. Comecei a conhecer
os pontos traiçoeiros, rápidos e rasos, e também as partes mais
suaves, onde era necessário um cutback rápido, uma curva em
direção à espuma, para dar continuidade à onda. Mesmo em um
dia com ondas na altura da cintura e agitadas pelo vento, era
possível extrair o máximo de algumas delas para um dia de surfe
longo improvisado e absolutamente satisfatório. O recife tinha mil
singularidades, que mudavam muito rápido com a maré. Depois
de um tempo aprendi que, quando o canal em direção à praia
começava a ficar em um tom leitoso de turquesa — uma cor não
tão diferente de algumas das sonhadas ondas havaianas que
apareciam nas revistas —, significava que o sol se erguera até o
ponto em que eu devia voltar para o café da manhã. Se a maré
estivesse muito baixa, deixando a lagoa rasa demais para remar,
aprendi a reservar mais tempo para andar até em casa pela areia
macia e cheia de pedrinhas, esforçando-me para manter o bico
da prancha apontado para o vento.
As tardes eram outra história. O vento costumava estar mais
fraco; o mar, menos revolto, e havia outras pessoas surfando.
Cliffs tinha um grupo de surfistas locais, e, após algumas
sessões, comecei a reconhecer alguns deles. Nos picos no
continente que eu conhecia, em geral havia um número limitado
de ondas, muita disputa por posicionamento e uma ordem de
prioridade estritamente preservada. Um garoto novo — ainda
mais sem aliados, como um irmão mais velho — tinha que tomar
cuidado para não passar à frente, mesmo sem querer, de algum
dos grandes surfistas locais. Mas em Cliffs havia tanto espaço
para se espalhar, tantos picos vazios quebrando a oeste do
principal — ou, se você prestasse atenção, talvez uma laje de
pedra no inside que havia se tornado bom para surfar sem que
ninguém percebesse —, que eu me senti livre para realizar
minhas próprias explorações das margens. Ninguém me olhava
torto nem me aborrecia. Era o oposto da vida na escola.

***

Minha adaptação na escola incluiu uma série de brigas, algumas


delas formalmente agendadas. Havia um cemitério ao lado do
campus com uma faixa de grama bem escondida em um canto,
aonde os garotos iam acertar as contas. Eu me vi ali diante de
vários meninos chamados Freitas — nenhum deles, repito,
parecia ser parente do meu opressor cabeludo da aula de
marcenaria. Meu primeiro adversário era tão pequeno e jovem
que duvidei até mesmo de que estudasse na nossa escola. Pelo
que entendi, o método do clã Freitas para treinar seus soldados
era encontrar algum idiota sem aliados ou sem discernimento
para evitar um desafio, depois mandar para o ringue o lutador
mais jovem que tivesse alguma chance. Se ele perdesse, o maior
Freitas seguinte entraria. Isso continuava até que o não membro
do clã fosse derrotado. Tudo era feito com frieza. As lutas eram
arranjadas e arbitradas por Freitas mais velhos e conduzidas de
forma mais ou menos justa.
Minha primeira briga teve pouca audiência — na verdade, não
era de interesse de ninguém —, mas mesmo assim eu estava
morrendo de medo, sem assistentes ao meu lado e sem ter ideia
de quais eram as regras. Meu adversário se revelou
extraordinariamente forte para seu tamanho, e feroz, mas com
braços curtos demais para acertar socos, e acabei dominando
ele sem muito dano para nenhum de nós. O primo, que logo
ocupou seu lugar, era quase da minha altura, e nossa luta teve
consequências maiores. Dei conta do recado, mas ambos
ficamos com olhos roxos antes que um Freitas mais velho
interviesse e declarasse empate. Haveria outra luta, disse ele, e,
se eu ganhasse, alguém chamado Tino viria e me encheria de
porrada sem chance de diálogo. O clã Freitas foi embora.
Lembro-me de vê-los correndo, rindo descontraídos, uma milícia
familiar feliz subindo a longa encosta do cemitério. Estavam
evidentemente atrasados para outro compromisso. Meu rosto
doía e os nós de meus dedos doíam, mas eu estava exultante de
alívio. Então percebi alguns haoles da minha idade parados nas
moitas na beira da clareira, parecendo nervosos. Eu meio que
reconheci alguns da escola, mas eles foram embora sem dizer
nada.
Acho que ganhei a revanche. Então Tino me encheu de
porrada sem chance de diálogo.
Houve outras disputas, incluindo uma que durou vários dias
com um garoto chinês da minha turma de agricultura que se
recusava a desistir — mesmo quando eu afundei o rosto dele na
terra vermelha do canteiro de alface. Esse conflito amargo durou
uma semana. Era retomado toda tarde e nunca havia um
vencedor. Os outros garotos da turma, divertindo-se com o show,
asseguravam-se de que o professor, caso chegasse a aparecer,
não nos flagrasse.
Não sei o que meus pais pensavam. Cortes, hematomas e até
mesmo os olhos roxos podiam ser explicados. Futebol, surfe ou
alguma outra coisa. Minha opinião, que em retrospecto me
parece certa, era de que eles não seriam capazes de evitar nada
daquilo, por isso eu não lhes contava.
Uma gangue racista veio em meu resgate. Eles se
autodenominavam In Crowd. Eram haoles e, apesar do nome
risível, eram muito maus. O líder era um garoto bem-humorado e
desregrado, de voz rouca e dente quebrado chamado Mike. Ele
não era fisicamente imponente, mas circulava pela escola com
um destemor brutal que parecia fazer todos hesitarem, exceto os
maiores samoanos. O verdadeiro lar de Mike, descobriu-se, era
um centro de detenção juvenil em algum lugar — a presença dele
na escola era apenas uma licença, que ele pretendia aproveitar
ao máximo. Mike tinha uma irmã mais nova, Edie, que era loura,
magra e doida, e a casa deles em Kaimuki era o ponto de
encontro do In Crowd. Na escola eles se reuniam embaixo de
uma grande árvore-da-chuva em uma colina de barro vermelho
atrás do bangalô sem pintura, onde eu tinha aulas de datilografia.
Minha iniciação foi informal. Mike e os amigos apenas me
notificaram que eu podia me juntar a eles embaixo da árvore-da-
chuva. E foi com os membros do In Crowd, que parecia ter mais
garotas que garotos, que comecei a aprender primeiro os termos
gerais e, depois, os detalhes do esquema racial local. Descobri
que nossos principais inimigos eram os “mokes”, o que parecia
significar qualquer pessoa morena e violenta.
“Você já andou brigando com mokes”, contou-me Mike.
Percebi que era verdade.
Mas minha carreira de lutador logo chegou ao fim. As pessoas
pareciam saber que eu agora fazia parte da gangue dos haoles e
resolveram implicar com outros garotos. Até o Freitas da aula de
marcenaria começou a pegar mais leve comigo. Mas será que
ele tinha mesmo guardado a ripa de madeira? Era difícil imaginar
que Freitas fosse se preocupar com o In Crowd.

***

Discretamente, estudei o surfe de alguns frequentadores de Cliffs


— os que pareciam fazer a melhor leitura das ondas, que
encontravam os trechos de velocidade e conduziam as pranchas
com controle impecável. Minha primeira impressão se confirmou:
eu nunca tinha visto tamanha fluidez. Os movimentos das mãos
tinham uma sincronia incrível com os dos pés. Os joelhos
ficavam mais dobrados do que no surfe ao qual eu estava
acostumado, os quadris, mais relaxados. Não havia muito surfe
no bico da prancha, que, no continente, era a subespecialidade
da moda na época e exigia caminhar, quando surgia a
oportunidade, até a ponta da prancha — fazendo as manobras
hanging five e hanging ten, desafiando a evidente física da
flutuação e do deslize. Não sabia na época, mas o que eu estava
testemunhando era o estilo clássico da ilha. Apenas retomei as
anotações mentais da minha posição no canal e comecei, sem
pensar, a caminhar menos para o bico da prancha.
Havia alguns caras novos, incluindo um garoto magro de
costas eretas que parecia ter a minha idade. Ele ficava longe do
pico principal, pegando ondas periféricas. Mas estiquei o pescoço
para observar o que ele fazia. Mesmo nas ondas pequenas e
sem força que escolhia, dava para ver que o garoto era
impressionantemente rápido e equilibrado. Ele era o melhor
surfista da minha idade que eu já tinha visto. Usava uma prancha
excepcionalmente curta, leve e de bico estreito — uma Wardy
branca sem pintura. Ele me flagrou observando-o e pareceu tão
constrangido quanto eu. Passou por mim remando furiosamente,
como se tivesse sido afrontado. Tentei ficar fora do caminho dele
depois disso, mas, no dia seguinte, ele me cumprimentou com
um aceno de cabeça. Torci para que minha felicidade não
transparecesse.
“Bem melhor naquele lado”, disse ele em pidgin, alguns dias
depois, olhando para o oeste enquanto furávamos uma série
pequena.
Era um convite para me juntar a ele em um de seus picos
obscuros e sem crowd. Ele não precisou falar duas vezes.
O nome do garoto era Roddy Kaulukukui. Tinha treze anos,
como eu. “Ele é tão bronzeado que parece negro”, escrevi para
meu amigo. Roddy e eu trocávamos ondas de forma cautelosa, e
depois menos cautelosa. Eu conseguia pegar ondas tão bem
quanto ele, o que era importante, e estava conhecendo o pico,
que se transformou em um projeto compartilhado. Como os dois
caras mais novos de Cliffs, nós estávamos, ao menos de forma
semiconsciente, em busca de um amigo da mesma idade. Mas
Roddy não ia até lá sozinho. Ele tinha dois irmãos e uma espécie
de terceiro irmão honorário — um garoto japonês chamado Ford
Takara. O irmão mais velho de Roddy, Glenn, era um dos
surfistas que dominavam o line-up. Glenn e Ford caíam na água
todo dia. Eram apenas um ano mais velhos que nós, mas podiam
competir com qualquer um no pico principal. Glenn, em especial,
era um surfista excelente, com um estilo fluido e bonito. O pai
deles, Glenn, também surfava, assim como o irmão menor, John,
embora fosse muito novo para Cliffs.
Roddy começou a me dizer quem eram alguns dos outros
caras. O gordo que aparecia nos dias das maiores ondas,
entrando na onda bem lá fora, no outside, e mandando tão bem
que o restante de nós parava de surfar só para assistir, era Ben
Aipa. (Anos mais tarde, fotos e matérias sobre Aipa começaram a
tomar conta das revistas de surfe.) O chinês que apareceu no dia
com as maiores ondas que eu tinha visto até então em Cliffs —
um swell de sul sólido, fora de estação, em uma tarde nublada
sem vento — era Leslie Wong. Ele tinha um estilo refinado e só
se dignava a surfar em Cliffs quando o mar estava
excepcionalmente bom. Leslie Wong pegou a onda do dia, com
as costas um pouco arqueadas, os braços relaxados, fazendo o
extremamente difícil — não, mais que isso, extático — parecer
fácil. Quando eu crescesse, queria ser como ele. Aos poucos fui
descobrindo quem, entre os frequentadores de Cliffs, tinha mais
chance de desperdiçar uma onda — não conseguir pegá-la ou
cair —, e, em seguida, aprendi como discretamente pegar a onda
sem ser desrespeitoso. Mesmo em um crowd tranquilo, era
importante não expor as fraquezas de ninguém. Os egos
masculinos (nunca vi uma garota em Cliffs) estavam sempre, de
forma sutil ou não, em risco na água.
Glenn Kaulukukui era meu surfista favorito. Desde o momento
em que pegava uma onda, ficando de pé como um gato, eu não
conseguia tirar os olhos das linhas que ele desenhava, da
velocidade que de algum modo encontrava, das improvisações
que criava. Glenn tinha uma cabeça enorme, que sempre parecia
estar um pouco jogada para trás, e cabelo ruivo comprido
queimado de sol, também jogado para trás de forma exuberante.
Tinha lábios grossos, aparência africana, ombros escuros e se
movia com uma elegância incomum. Mas havia mais alguma
coisa — pode chamar de perspicácia ou ironia — que
acompanhava sua confiança física e sua beleza, algo peculiar
que lhe permitia, na maioria das situações mais exigentes,
aparentar seriedade e, ao mesmo tempo, dar a impressão de
estar rindo em silêncio de si mesmo.
Ele também ria de mim, mas não de modo grosseiro. Quando
exagerei na força ao sair de uma onda, tentando fazer algo
chamativo, rasgando a parede desajeitadamente e em paralelo
com a prancha dele no canal, Glenn disse: “Geev ’um, Bill. Geev
’um da lights.” Até eu sabia que esse era um clichê em pidgin,
uma exortação muito usada. Também era uma pequena
ridicularização. Ele estava zombando de mim e me encorajando
ao mesmo tempo. Saímos remando juntos. Quando estávamos
quase no outside, vimos Ford pegar uma das maiores ondas da
série e escolher uma linha inteligente para costurar em meio a
algumas seções difíceis. “É isso aí, Fawd!”, exclamou Glenn,
apreciando as manobras do amigo. “Spock dat!” Então ele
começou a avançar na minha frente em direção ao line-up.
Certa tarde, Roddy me perguntou onde eu morava. Apontei
para o leste, na direção da enseada sombreada dentro de Black
Point. Ele contou para Glenn e Ford, depois voltou parecendo
sem graça, com um pedido. Será que eles podiam deixar as
pranchas na minha casa? Fiquei feliz por ter companhia na longa
remada de volta. Nossa casa tinha um jardim pequeno, com uma
cerca viva de bambu densa e alta que o escondia da rua.
Deixamos nossas pranchas apoiadas no bambu e nos lavamos
no escuro com uma mangueira. Depois os três foram embora a
pé, usando apenas calções, com a água pingando, mas
nitidamente satisfeitos por não terem que carregar as pranchas
até a distante Kaimuki.

***
O racismo do In Crowd era situacionista, não doutrinário. Parecia
não haver pretensões históricas — diferente, por exemplo, dos
skinheads, que apareceram depois alegando descendência do
nazismo e da Ku Klux Klan. O Havaí tinha testemunhado
bastante a supremacia branca, sobretudo entre as elites, mas o
In Crowd não sabia nada de elites. A maioria dos garotos era
miserável, vivendo em circunstâncias difíceis, embora alguns
tivessem sido expulsos de escolas particulares e estivessem
apenas em uma situação ruim. Entre o reduzido número de
alunos haoles no meu colégio, a maioria era, na verdade, evitada
pelo In Crowd por não ser suficientemente descolada. Esses
haoles sem afiliação aparentavam ser em maior parte filhos de
militares. Todos pareciam desorientados e assustados. Os dois
caras que tinham me visto brigar com os Freitas sem oferecer
ajuda estavam entre eles, assim como um garoto extremamente
alto, quieto e sem amigos que as pessoas chamavam de
Tropeço.
Percebi mais tarde que havia outros haoles espertos demais
para se envolverem naquela baboseira de gangue. Esses
garotos, a maioria surfistas do lado Waikiki da cratera Diamond
Head, sabiam não chamar a atenção quando em minoria.
Também reconheciam perdedores quando os viam. E tinham, em
caso de verdadeira necessidade, estruturas próprias de
assistência mútua para se apoiar. Mas eu estava perdido demais
naqueles primeiros meses para me dar conta da existência deles.
Ser um adolescente descolado era, como sempre, em grande
parte um mistério, mas tudo contava, desde força física (leia-se:
puberdade precoce) e autoconfiança (pontos extras para os que
desafiam adultos) até gosto musical e roupas. Eu não sabia
como me qualificava em nenhuma categoria. Eu não era grande
— na verdade a puberdade, para minha vergonha, parecia estar
fugindo de mim. Não ligava muito para moda nem música. Sem
dúvida não era mau — nunca tinha nem ido para a cadeia. Mas
admirava a coragem dos garotos do In Crowd e não pretendia
questionar ninguém que me protegesse.
Eu achava que a principal atividade do In Crowd fosse briga
de gangues, e havia, sem dúvida, muitas conversas sobre
guerras iminentes com vários grupos mokes rivais. Porém,
nessas horas, Mike sempre parecia estar conduzindo uma
delegação de paz a alguma conferência de última hora, e o
derramamento de sangue era evitado por meio de uma
diplomacia meticulosa e capaz de preservar a dignidade. Tréguas
eram formalizadas de modo solene pelo consumo de álcool por
menores de idade. A maior parte da energia do grupo na verdade
ia para fofocas, festas, pequenos furtos, vandalismo e confusão
no ônibus da cidade depois da escola. Havia várias garotas
bonitas no In Crowd, e fiquei seriamente apaixonado por todas.
Ninguém do grupo surfava.

***

Na verdade, Roddy, Glenn Kaulukukui e Ford Takara também


estudavam na Kaimuki Intermediate School. Mas eu não andava
com eles lá. Isso era um feito, já que nós quatro passávamos
praticamente todas as tardes e todos os fins de semana juntos no
mar, e Roddy logo se tornou meu novo melhor amigo. Os
Kaulukukui moravam em Fort Ruger, na encosta norte da cratera
Diamond Head, perto do cemitério ao lado da nossa escola. O
Glenn Pai era do Exército, e seu apartamento ficava em um velho
alojamento militar no meio de um pequeno bosque de acácias
kiawe abaixo da Diamond Head Road. Roddy e Glenn haviam
morado na Ilha Havaí, que todos chamavam de Big Island.
Tinham família lá. Agora os dois tinham uma madrasta, e ela e
Roddy não se davam bem. Ela era coreana. Eu sabia como os
coreanos eram? Roddy estava pronto para me dizer.
De castigo após uma briga com a madrasta, ele descontava o
infortúnio em sussurros amargos no quarto sufocante que dividia
com Glenn e John.
Achei que sabia algo sobre infelicidade: eu estava perdendo
as ondas daquela tarde em uma demonstração de solidariedade.
Não havia nem uma revista de surfe para folhear enquanto eu
demonstrava compaixão.
“Por que ele tinha que se casar com ela?”, lamentava Roddy.
Glenn Pai às vezes ia surfar com a gente. Ele era um cara
formidável, muito musculoso e severo. Autoritário com os filhos
sem se preocupar com delicadezas. Mas parecia relaxar na
água. De vez em quando até ria. Usava uma prancha grande em
estilo simples e antiquado e traçava linhas compridas e
perfeitamente equilibradas pelas longas paredes das ondas de
Cliffs. Quando era mais novo, seus filhos me contaram,
orgulhosos, ele tinha surfado na baía de Waimea.
Waimea ficava no North Shore. A baía era considerada o
melhor pico de ondas grandes do mundo. Eu a conhecia apenas
como um local mítico — um palco montado, na verdade, para os
atos heroicos de algumas poucas celebridades do surfe, que as
revistas enalteciam sem parar. Roddy e Glenn não falavam muito
sobre isso, mas ficava óbvio que, para eles, Waimea era um
lugar real e algo extremamente sério. Você só surfava ali quando
estivesse pronto. A maioria dos surfistas, é claro, nunca estaria.
Porém, para garotos havaianos como eles, Waimea e outros
extraordinários picos do North Shore estavam logo adiante, cada
um como uma pergunta, um tipo de prova final.
Sempre achei que apenas surfistas famosos pegavam onda
em Waimea. Mas então descobri que pais locais também faziam
isso, e, com o tempo, talvez os filhos fizessem. Essas pessoas
nunca apareciam nas revistas do continente. E havia muitas
famílias como os Kaulukukui no Havaí — com surfistas de várias
gerações, ohanas ricas em talento e tradição, conhecidas apenas
umas pelas outras.
Na primeira vez que o vi, Glenn Pai me lembrou Liloa, o velho
monarca de um livro que eu amava: Umi: The Hawaiian Boy Who
Became a King. Era um livro infantil que fora dado de presente a
meu pai, de acordo com uma dedicatória desbotada no verso da
capa, por duas tias que o haviam comprado em Honolulu, em
1939. O autor, Robert Lee Eskridge, também fizera as
ilustrações, que eu achava magníficas. Eram simples mas
poderosas, como xilogravuras ricamente coloridas. Mostravam
Umi, os irmãos mais novos e suas aventuras no antigo Havaí:
descendo as encostas das montanhas pelas gavinhas de glórias-
da-manhã (“De trepadeira em trepadeira, os meninos desciam
deslizando na velocidade de um raio”), mergulhando em poços
formados por tubos de lava, atravessando o mar em canoas de
guerra (“Escravos devem acompanhar Umi ao palácio de seu pai
em Waipio”). Algumas ilustrações mostravam homens adultos,
guardas, guerreiros e cortesãos, cujos rostos me assustavam
com sua crueldade estilizada em um mundo impiedoso de chefes
todo-poderosos e plebeus amedrontados. Ao menos os traços de
Liloa, o rei e pai secreto de Umi, às vezes eram suavizados pela
sabedoria e pelo orgulho paterno.
Roddy acreditava em Pele, a deusa havaiana do fogo. As
pessoas diziam que ela vivia na Big Island, onde fazia os vulcões
entrarem em erupção quando estava aborrecida. Tinha fama de
ser ciumenta e violenta, e os havaianos tentavam apaziguá-la
com oferendas de porco, peixe e bebidas alcoólicas. Pele era tão
famosa que até os turistas sabiam sobre ela; mas, quando
manifestou sua crença para mim, Roddy deixou claro que não se
referia à personagem kitsch. Falava sobre um mundo religioso,
anterior à chegada dos haoles — um mundo havaiano com
regras, tabus e segredos, conhecimentos conquistados a duras
penas sobre a terra, o oceano, as aves, os peixes, os animais e
os deuses. Eu o levei a sério. Já sabia, em termos gerais, o que
acontecera com os havaianos — como os missionários
americanos e outros haoles os haviam subjugado, roubado suas
terras, exterminando-os em massa com doenças e convertendo
os sobreviventes ao cristianismo. Eu não me sentia responsável
por essa desapropriação, não tinha nenhuma culpa liberal, mas
sabia o suficiente para manter minha boca de jovem ateu
fechada.
Começamos a surfar em novos picos juntos. Diferentemente
de mim, Roddy não tinha medo de corais e me mostrou picos que
quebravam em meio aos recifes entre a minha casa e Cliffs. A
maioria era “surfável” apenas na maré alta, mas alguns eram
fendas entre recifes expostos — ondas deliciosas escondidas a
plena vista, sobretudo à prova de vento. Esses picos, explicou-
me Roddy, costumavam ser batizados com os nomes das
famílias que moravam ou tinham morado em frente a eles —
Patterson’s, Mahoney’s. Havia também um pico de ondas
grandes, conhecido como a Bomb, que quebrava no outside do
Patterson’s. Glenn e Ford a haviam surfado uma ou duas vezes.
Roddy, não. Eu tinha visto a crista das ondas borrifando na água
à medida que as ondulações aumentavam em dias grandes com
maré baixa, mas nunca as vira grandes o suficiente para quebrar.
Roddy falava sobre a Bomb baixinho e com empolgação.
Obviamente, estava se preparando para surfá-la.
“Neste verão”, disse ele. “No primeiro dia grande.”
Enquanto isso, tínhamos Kaikoos, um pico de águas
profundas perto de Black Point, visível do fim da trilha de subida
para a nossa casa. Um lugar onde era difícil de se alinhar e
sempre maior do que parecia. Eu o achava assustador. Roddy
me levou até lá pela primeira vez remando por um canal profundo
e agitado, que originalmente fora aberto, contou-me, por Doris
Duke, a herdeira da indústria de tabaco, para ser usado por um
atracadouro particular de iates que ainda existia em um
despenhadeiro embaixo da mansão dela. Roddy apontou na
direção da praia, mas eu estava muito preocupado com as ondas
para olhar a casa de Doris Duke.
Picos densos, azul-escuros, pareciam saltar das profundezas
do oceano, alguns assustadoramente grandes. As ondas de
esquerda eram curtas e fáceis, na verdade apenas grandes
drops, mas Roddy disse que as direitas eram melhores e remou
mais para leste, mais fundo na arrebentação. A coragem dele me
parecia insana. As direitas pareciam fechadas (impossíveis de
pegar), bastante poderosas, e, mesmo que você conseguisse
surfar, a onda levava direto para as grandes rochas Black Point
que pareciam querer engolir você. Se perdesse a prancha ali,
nunca mais ia revê-la. Era difícil até encontrar um local para sair
nadando. Fiz a volta, evitando os picos e seguindo para bem
longe da arrebentação, meio histérico, tentando ficar de olho em
Roddy. Ele parecia estar pegando ondas, embora fosse difícil
dizer. Por fim, remou de volta até onde eu estava, parecendo
empolgado, dando um sorrisinho por causa da minha agitação.
Mas ficou com pena de mim e não disse nada.
Mais tarde aprendi a gostar — não a amar — as direitas de
Kaikoos. O pico costumava ficar vazio, mas havia alguns caras
que sabiam surfá-lo, e, observando-os das rochas de Black Point
em dias bons, comecei a ver a forma do recife e a aprender, com
um pouco de sorte, como evitar a catástrofe. Mesmo assim, era
um local arriscado para os meus padrões, e quando me gabei em
cartas ao meu amigo em Los Angeles sobre pegar onda naquele
pico assustador de águas profundas, não consegui evitar o
surgimento de histórias sobre ser levado com Roddy por
correntes enormes até metade do caminho para Koko Head, que
ficava quilômetros de distância a leste. Por outro lado, minha
descrição detalhada em relação a passar por dentro de um
grande tubo — a caverna formada pela onda ao quebrar com
muita força — em uma direita de Kaikoos continha um quê de
autenticidade. Ainda consigo me lembrar daquela onda.

***

Mas o surfe sempre tinha esse limiar, esse limite do medo que o
tornava diferente das outras coisas, e sem dúvida dos outros
esportes que eu conhecia. Você podia praticar com amigos, mas,
quando as ondas ficavam grandes ou você se encrencava, nunca
parecia haver ninguém por perto.
Tudo lá fora era interligado de uma forma perturbadora. As
ondas eram o campo do jogo. Eram a meta, o objeto de sua
devoção e de seus desejos mais profundos. Ao mesmo tempo,
eram seu adversário, sua nêmesis, até seu inimigo mortal. O
surfe era seu refúgio, seu esconderijo feliz, mas também um
mundo selvagem e hostil — um mundo indiferente, dinâmico. Aos
treze anos, eu tinha praticamente parado de acreditar em Deus,
mas esse era um novo desdobramento, e ele deixara um vazio
no meu mundo, uma sensação de que eu havia sido
abandonado. O oceano era como um deus indiferente,
infinitamente perigoso e com um poder imensurável.
E ainda assim esperava-se que você, mesmo quando criança,
o avaliasse todo dia. Exigia-se que — isso era essencial, uma
questão de sobrevivência — você conhecesse os próprios
limites, tanto físicos quanto emocionais. Mas como era possível
conhecer os próprios limites sem testá-los? E se você não
passasse no teste? Exigia-se também que permanecesse calmo
se as coisas dessem errado. Todo mundo dizia que o pânico era
o primeiro passo para o afogamento. Supunha-se também que as
habilidades das crianças iam aumentando. O que era impensável
em um ano se tornava razoável, possível, viável no seguinte.
Minhas cartas de Honolulu em 1966, que me foram gentilmente
devolvidas há pouco tempo, são mais marcadas por discussões
francas sobre o medo do que por uma babaquice arrogante. “Não
pense que de repente fiquei corajoso. Eu não fiquei.” Mas as
fronteiras do que era razoável estavam, de forma silenciosa e
constante, recuando para mim.
Isso ficou claro no primeiro grande dia que presenciei em
Cliffs. Ondulações de período longo tinham chegado à noite. As
séries (ondas maiores, que normalmente vêm em grupos)
estavam bem acima da cabeça, lisas e cinza, com longas
paredes e seções poderosas. Fiquei tão empolgado em ver a
excelência que o pico no fundo de meu quintal era capaz de
produzir que perdi a timidez habitual e comecei a surfar com o
crowd no pico principal. Eu estava em desvantagem ali e também
com medo, por isso fui judiado pelas séries maiores. Eu não era
forte o suficiente para segurar a prancha quando ondas de quase
dois metros me pegavam, embora eu as furasse no estilo
“tartaruga” — virava a prancha com o fundo para cima, puxava o
bico para dentro d’água, colava as pernas ao redor dela e dava
um abraço apertado nas bordas. A espuma arrancou a prancha
das minhas mãos, em seguida me atacou violentamente,
mantendo-me submerso por diversas sacudidas longas e
intensas. Passei grande parte da tarde nadando. Ainda assim,
fiquei até o anoitecer. Cheguei a pegar e completar algumas
ondas carnudas. E vi um surfe naquele dia — de Leslie Wong e
outros — que fez meu peito doer: longos momentos de graça sob
pressão que pareciam gravados nas profundezas do meu ser; e
era o que eu queria, de alguma forma, mais do que qualquer
coisa. Naquela noite, enquanto minha família dormia, fiquei
acordado no sofá de armação de bambu ouvindo a chuva,
inquieto, o coração batendo com a adrenalina residual.

***

Nossa vida na casinha de Kulamanu parecia improvisada, quase


não americana. Havia lagartixas nas paredes, ratazanas embaixo
do piso e grandes percevejos-d’água no banheiro. Havia frutas
estranhas — mangas, mamões papaia, lichias, carambolas —,
que minha mãe aprendera a identificar quando estavam maduras
e a descascar e fatiar com orgulho. Não lembro nem se tínhamos
TV. As séries de comédia que haviam funcionado como uma
lareira, fazendo com que nos reuníssemos na sala no horário
nobre quando estávamos no continente — Meus Três Filhos,
Jeannie É um Gênio, e até a minha favorita, Agente 86 —, agora
pareciam vagas lembranças, sonhos em preto e branco de um
mundo deixado para trás. A proprietária da nossa casa, a sra.
Wadsworth, nos observava com desconfiança. Ainda assim,
achei ótimo alugar aquela casa. A sra. Wadsworth tinha um
jardineiro, o que me permitia uma vida de lazer. Minhas tarefas
no jardim na Califórnia pareciam tomar metade das horas que eu
passava acordado.
Outra coisa sobre a nossa nova vida exótica: todos
brigávamos menos, talvez pelo fato de ainda estarmos um pouco
boquiabertos com os novos arredores. E, nas brigas que ainda
tínhamos, nunca havia a gritaria, as surras nem as cinturadas
que precisávamos suportar com frequência em Los Angeles.
Quando minha mãe gritava “Esperem até seu pai chegar em
casa”, não parecia séria como antes. Era como se estivesse
fazendo uma menção maliciosa a uma personalidade anterior
dela, ou a alguma mãe da TV, e até os mais novos entendiam a
piada.
Meu pai trabalhava pelo menos seis dias por semana. Nos
raros domingos em que estava conosco, passeávamos pela ilha
— atravessávamos Pali, íngreme, chuvoso e açoitado pelo vento
(a passagem sobre as montanhas que se erguiam como uma
muralha verde acima de Honolulu), ou fazíamos um piquenique
na baía de Hanauma, além de Koko Head, onde o mergulho com
snorkel nos corais era maravilhoso. Ele voltava para casa na
maioria das noites e, em ocasiões especiais, íamos a um
restaurante chamado Jolly Roger, de uma franquia com temática
pirata, que vendia hambúrgueres com nomes de personagens de
Robert Louis Stevenson, em um shopping em Kahala. Certa noite
fomos ver A Branca de Neve da Disney em um drive-in na
Waialae Avenue, nós seis empilhados em nosso velho Ford
Farlaine. Sei disso porque escrevi para meu amigo em Los
Angeles sobre esse dia. Descrevi o filme como “psicodélico”.
O Havaí do meu pai era um lugar grande e realmente
interessante. Em geral ele ficava nas ilhas exteriores, conduzindo
as equipes de filmagem e os elencos para o interior de florestas
tropicais ou vilarejos remotos e fazendo tomadas complicadas
em canoas instáveis. Até rodou um episódio dedicado à deusa
Pele em um campo de lava da Big Island. Embora não soubesse,
meu pai estava preparando o terreno para uma carreira paralela
de especialista em Havaí — ele passou a maior parte da década
seguinte fazendo longas-metragens e programas de TV nas
ilhas. O trabalho dele envolvia lutas constantes contra os
sindicatos trabalhistas locais, sobretudo o dos caminhoneiros e
estivadores que controlavam o transporte de carga. Era muito
irônico que ele se envolvesse nessas batalhas, pois sempre fora
um defensor do sindicalismo, de uma família de sindicalistas
(ferroviários) de Michigan. Na verdade, reza a lenda familiar que,
em Nova York, minha cidade natal, ele passou a noite do meu
nascimento em uma cela após ser detido fazendo piquete na
frente dos estúdios da CBS, onde trabalhava como redator e
também onde ele e os amigos tentavam se articular. Embora meu
pai nunca falasse no assunto, nossa mudança para a Califórnia
quando eu ainda era bebê tinha sido motivada por dificuldades
em conseguir um emprego causadas por sua militância. Era o
auge do Macartismo.
Por volta da mesma época, os sindicatos havaianos estavam
fazendo milagres no ano pós-guerra. Liderados por um posto
avançado dos estivadores da Costa Oeste aliados aos
esquerdistas nipo-americanos, eles organizaram inclusive os
trabalhadores das culturas extrativistas, transformando uma
economia feudal. Isso em um território onde, antes da guerra, o
assédio e até mesmo o assassinato de grevistas e líderes dos
movimentos cometidos por capangas da administração e pela
polícia, em geral, ficavam impunes. Entretanto, em meados dos
anos 1960, o movimento trabalhista no Havaí, assim como
grande parte de seu correspondente no continente, passara a
aceitar a administração inchada e corrupta, e meu pai, embora
viesse a gostar de alguns líderes sindicais contra os quais lutava
todos os dias, nunca pareceu muito edificado pela luta.
O trabalho dele nos levava a círculos sociais estranhos. Um
dono de restaurante hiperativo chamado Chester Lau, por
exemplo, se juntara ao Hawaii Calls, e, por anos, minha família
compareceu a luaus, reuniões com direito a porco assado e
eventos cívicos em locais distantes organizados por Chester e
realizados com frequência em algum de seus estabelecimentos.
Meu pai ganhou conhecimento suficiente da cultura da classe
trabalhadora para saber que as ruas de Honolulu (e talvez as
escolas) podiam ser um desafio para um garoto haole. No
mínimo porque havia um famoso feriado não oficial chamado Dia
de Matar um Haole. Esse feriado provocava grande discussão,
incluindo editoriais (contrários a ele) nos jornais locais, embora
eu nunca tenha conseguido descobrir a data.
“Qualquer dia que os mokes queiram”, explicou Mike, nosso
líder do In Crowd.
Eu também nunca soube se o feriado havia ocasionado algum
homicídio de fato. Diziam que os principais alvos do Dia de Matar
um Haole eram na verdade militares de licença que, em geral,
circulavam em bandos por Waikiki e pela zona de prostituição no
centro da cidade. Acho que meu pai ficava tranquilo em ver que
meus melhores amigos eram os garotos locais que guardavam
as pranchas em nosso jardim. Eles pareciam saber se cuidar.
Meu pai sempre se preocupou com os brigões. Quando
confrontado por garotos maiores, ou se estivesse em
desvantagem numérica, eu devia, alertou-me ele, “pegar um
pedaço de pau, uma pedra ou qualquer coisa que encontrasse”.
Para meu espanto, ele ficou bastante emotivo ao me dar esse
conselho. Será que estava se lembrando das antigas surras e
humilhações em Escanaba, sua cidade natal, em Michigan? Ou
será que era apenas muito preocupante a ideia de seu filho, seu
Billy, sozinho e atacado por marginais? Nunca segui o conselho,
em momento algum. Houvera muitas brigas, algumas envolvendo
paus e pedras, em Woodland Hills, subúrbio da Califórnia onde
morávamos, mas era raro se tornarem o encontro implacável que
meu pai imaginava. Entretanto, é verdade que, certa vez, um
garoto mexicano, um desconhecido, me segurou embaixo de
uma pimenteira depois da aula, prendeu meus braços e
espremeu limão nos meus olhos. Essa podia ter sido uma boa
ocasião para pegar um pedaço de pau. Mas eu não conseguia
acreditar que aquilo estava mesmo acontecendo. Limão? Nos
meus olhos? Espirrado por alguém que eu nem conhecia? Meus
olhos arderam por vários dias. Nunca contei a meus pais sobre o
incidente. Isso teria sido uma violação do Código dos Garotos.
Também não contei a eles (nem a mais ninguém) sobre Freitas e
sua terrível ripa de madeira.
Meu pai como uma criança assustada — essa era uma
imagem que não fazia sentido. Ele era meu Pai, o grande Bill
Finnegan, forte feito um urso. Os bíceps dele, uma maravilha
para todos, eram como nós de carvalho marmorizados. Eu nunca
teria braços como aqueles. Tinha herdado a constituição magra e
alta de minha mãe. Meu pai não parecia ter medo de ninguém.
Na verdade, tinha um lado briguento que podia ser um horror.
Não sentia medo de levantar a voz em público. Ele às vezes
perguntava aos proprietários de lojas e restaurantes que
pregavam cartazes afirmando seu direito de recusar um serviço a
qualquer pessoa o que exatamente aquilo significava, e, se não
gostava da resposta, saía com raiva e ia para outro lugar. Isso
não acontecia no Havaí, mas aconteceu muitas vezes no
continente. Eu não sabia que tais avisos costumavam ser um
código para “apenas brancos” — aqueles eram os últimos dias da
segregação racial legalizada. Tudo que eu fazia era me encolher
e encarar desesperadamente o chão, morrendo de
constrangimento, à medida que a voz do meu pai se elevava.

***

Minha mãe se chamava Pat, e seu sobrenome de solteira era


Quinn. A aparência esbelta era enganosa. Com um marido
ausente na maior parte do tempo e nenhuma ajuda em casa, ela
criou quatro filhos aparentemente sem esforço. Crescera em uma
Los Angeles que não existe mais — com católicos brancos da
classe trabalhadora e liberais defensores de Roosevelt —, e sua
geração, que chegou à idade adulta depois da guerra, teve uma
ampla e alegre ascensão. Progressistas que adoravam ir à praia,
eles estavam ligados, em sua maioria, à indústria do
entretenimento — os maridos trabalhavam e as esposas
administravam a ninhada suburbana. Minha mãe tinha a
graciosidade tranquila de uma jogadora de tênis. E também
conseguia fazer o orçamento render. Quando eu era pequeno,
achava que salada de cenoura, maçã e uva-passa era uma
exigência sete noites por semana. Na verdade, eram os
alimentos saudáveis mais baratos na Califórnia à época. A
família da minha mãe era composta por imigrantes irlandeses
fazendeiros nas colinas da Virgínia Ocidental, e ela, mais que
meu pai, era filha da Grande Depressão. O pai dela, um
alcoólatra e técnico de manutenção de geladeiras, morrera cedo.
Ela nunca falava sobre ele. Sua mãe, que ficou com a
responsabilidade de criar três meninas sozinha, tinha voltado a
estudar e se formara em enfermagem. Quando minha avó viu
meu pai — que era uns dois centímetros mais baixo que a minha
mãe —, dizem que ela suspirou e falou: “Bom, os mais altos
morreram na guerra.”
Minha mãe tinha uma disposição infinita. Não gostava de
velejar, mas passava a maioria dos fins de semana nos adorados
barquinhos que meu pai comprava um atrás do outro, à medida
que ficávamos menos duros. Ela não gostava de acampar, mas
ia sem reclamar. Nem mesmo gostava do Havaí, embora eu não
soubesse disso na época. Para ela, o provincianismo de
Honolulu era sufocante. Minha mãe crescera em Los Angeles,
morara em Nova York e, aparentemente, achava doloroso ler o
jornal de Honolulu. Ela era extremamente sociável e nem um
pouco esnobe, mas fez poucos amigos no Havaí. Meu pai nunca
havia se importado muito com amigos — se não estava
trabalhando, preferia ficar com a família —, mas minha mãe
sentia falta do grande círculo de famílias que conhecíamos em
Los Angeles, a maioria delas também no ramo do show business,
assim como de suas amigas de infância mais próximas.
Ela escondia tudo isso de nós e se dedicava a extrair o
máximo da vida em uma cidade insular e reacionária. Amava o
mar, o que era uma sorte (mas não para a sua pele clara
irlandesa). Na faixa de areia úmida perto da trilha que conduzia à
nossa casa, minha mãe abria toalhas de praia e guiava os
pequenos para a lagoa com máscaras e redes. Ela levou minha
irmã, Colleen, para se preparar para a primeira comunhão em
uma igreja em Waikiki. Quando dava, minha mãe até ia de avião
às ilhas vizinhas com meu pai, em geral com Michael, que tinha
três anos na época, no colo após fazer algum acordo apressado
com uma babá. Acho que nas ilhas exteriores ela encontrava um
Havaí do qual gostava mais — não o da classe média arrogante
e dos racistas elitistas de Honolulu. Em fotografias desses
passeios, ela me parecia uma estranha: não a minha mãe, mas
uma mulher estilosa e pensativa usando um vestido turquesa
sem mangas, sozinha a meia distância com os próprios
pensamentos — uma personagem de Joan Didion, penso agora,
caminhando descalça, sandálias na mão, passando por um muro
emaranhado de pinheiros à beira-mar. Descobri depois que
Didion era a escritora favorita dela.

Patricia Finnegan, lado leste de Oahu (Windward Side), 1966

Eu adorava ser liberado do trabalho no jardim. Mas, para a


minha tristeza, passei a ser útil como babá. Meus pais, sem
saber da minha carreira promissora como membro de gangue em
Kaimuki, só me conheciam como o Filho Responsável. Esse
passara a ser meu papel em casa pouco depois da chegada dos
meus irmãos mais novos. Havia uma grande diferença de idade
entre nós — Kevin era mais de quatro anos mais novo, Michael,
dez —, e meus pais contavam comigo para manter os pequenos
livres de afogamentos e choques elétricos, alimentados,
hidratados e de fraldas trocadas. Ter um dever formal como babá
durante as noites e os fins de semana era algo novo e também,
descobri, uma imposição terrível quando havia ondas para surfar,
ônibus municipais implorando para serem acertados com mangas
verdes e festas sem adultos para ir em Kaimuki. Eu me vingava
nos pobres Kevin e Colleen, lembrando-lhes com amargura dos
bons tempos antes do nascimento deles. Era mesmo uma época
maravilhosa. Só mamãe, papai e eu, fazendo o que tínhamos
vontade. Jantávamos toda noite no Jolly Roger. Comíamos
cheeseburgers e tomávamos milk-shakes de chocolate. Não
havia nenhum bebê chorando. Bons tempos.
Em um sábado de sol forte, tentei perder meu “emprego” como
babá de Colleen. Ela ia fazer a primeira comunhão no dia
seguinte. Sábado era o ensaio geral da grande cerimônia.
Mamãe e papai estavam fora, provavelmente em um evento
organizado por Chester Lau. Colleen estava com um traje
rendado de gala dos pés à cabeça. Devia fazer a primeira
confissão naquele dia — embora seja difícil imaginar o que uma
menina de sete anos teria para confessar como pecado mortal.
De qualquer forma, o ensaio de sábado era obrigatório. Os
católicos romanos daquela época não estavam de brincadeira.
Se você perdesse o ensaio, não podia fazer a primeira
comunhão. “Volte no ano que vem, pequeno pecador, e que Deus
salve sua alma nesse meio-tempo.” Por ter sido criado no seio
frio da Igreja, eu sabia como as freiras podiam ser rigorosas. Por
isso, quando no dia do ensaio Colleen e eu planejamos perder o
ônibus municipal para Waikiki que passava de hora em hora, eu
sabia muito bem o que estava em jogo. E como ainda era, lá no
fundo, o Filho Responsável, entrei em pânico. Coloquei minha
irmãzinha em seu traje chamativo no meio da Diamond Head
Road, acenei para o primeiro carro que se dirigia a Waikiki e fiz
com que chegasse à igreja a tempo.

***

Eu estava começando a me situar em Honolulu. Do pico em Cliffs


era possível ver toda a costa sul de Oahu, das montanhas
Waianae a oeste, além de Honolulu e Pearl Harbor, até Koko
Head, uma espécie de Diamond Head de segundo nível a leste
— outra cratera de aspecto ressequido à beira-mar. A cidade se
estendia por uma planície entre a costa e as montanhas Ko‘olau
Range, cujos picos verdes e íngremes ficavam normalmente
enterrados em névoa e sob nuvens escuras carregadas e
brilhantes. As montanhas mandavam nuvens de chuva para
molhar a cidade, embora a maior parte se esgotasse antes de
chegar à costa. Arco-íris tomavam conta do céu. Além das
montanhas ficava o Windward Side e, em algum lugar naquela
direção, o lendário North Shore.
As informações em Honolulu eram dadas tendo como
referência a geografia do local, não a bússola, por isso você
poderia seguir “mauka” (na direção das montanhas), “makai” (na
direção do mar), “ewa” (na direção de Ewa Beach, que ficava
bem depois do aeroporto e de Pearl Harbor) ou “diamond-head”.
(Entre aqueles, como nós, que viviam no lado oposto de
Diamond Head, as pessoas diziam apenas “kokohead” — o que
era quase a mesma coisa.) Essas orientações pitorescas não
eram gírias nem afetação — era possível encontrá-las em mapas
oficiais e placas de trânsito. E também eram, para mim — e
minha opinião em relação a isso não estava formada, mas era
forte —, uma peça importante de um mundo mais unitário,
mesmo com toda a segmentação, um mundo mais coerente em
seu isolamento no meio do Pacífico do que qualquer outro que eu
já vira. Eu sentia falta dos meus amigos de Los Angeles. Mas o
sul da Califórnia, com sua crescente brandura embotada, estava
perdendo o status de referência em minha mente. Não era mais o
parâmetro pelo qual todos os outros lugares deviam ser medidos.
Havia um garoto no In Crowd, Steve, que se queixava sem parar
da “Rocha”. Ele se referia a Oahu, embora parecesse falar de
Alcatraz. A ambição urgente de Steve era escapar da Rocha, de
preferência para a Inglaterra, onde sua banda favorita, os Kinks,
tocava. Mas qualquer lugar no “continente” — qualquer lugar,
menos o Havaí — serviria. Eu, por outro lado, não teria me
importado em ficar nas ilhas para sempre.

***

No antigo Havaí, antes da chegada dos europeus, o surfe tinha


significado religioso. Depois de orações e oferendas, mestres
artesãos faziam pranchas das sagradas árvores de acácia koa ou
wiliwili. Os sacerdotes abençoavam swells, golpeavam as águas
com cipós para erguer as ondulações, e alguns picos tinham
heiaus (templos) na praia, onde os devotos podiam rezar por
ondas. Essa consciência espiritual aparentemente não excluía a
competição turbulenta, nem mesmo as apostas em larga escala.
“Uma competição entre os campeões de Maui e Oahu envolveu
uma aposta de quatro mil porcos e dezesseis canoas de guerra”,
segundo os historiadores Peter Westwick e Peter Neushul.
Homens e mulheres, jovens e velhos, a realeza e os plebeus,
todos surfavam. Quando as ondas estavam boas “todos os
pensamentos sobre trabalho tinham um fim e só restavam os
pensamentos sobre esporte”, escreveu Kepelino Keauokalani,
um estudioso havaiano do século XIX. “Durante o dia inteiro, há
apenas surfe. Muitos saem para surfar cedo, às quatro da
manhã.” Os antigos havaianos tinham um problema sério: em
outras palavras, a febre do surfe. Também tinham muito do que
chamamos tempo de lazer. As ilhas eram abençoadas com
grandes excedentes de alimento. Os habitantes não eram
apenas pescadores habilidosos, caçadores e lavradores que
faziam terraceamento; eles também construíam e administravam
sistemas sofisticados de viveiros de peixes. O festival da colheita
do inverno durava três meses — durante os quais o surfe
bombava, e trabalhar era oficialmente proibido.
Isso não era o que os missionários calvinistas, que
começaram a chegar ao Havaí em 1820, tinham em mente como
modo de vida para os ilhéus. Hiram Bingham, líder do primeiro
grupo de missionários, se viu em um crowd de surfistas antes
mesmo de desembarcar, e escreveu que “a aparência de
pobreza, degradação e barbárie dos falantes e quase nus
selvagens, cujos pés e cabeça, além de grande parte da pele
escura queimada de sol, estavam descobertos, era revoltante.
Alguns do nosso grupo, com lágrimas jorrando, deram as costas
para o espetáculo”. Vinte e sete anos depois, Bingham escreveu:
“O declínio e a descontinuidade da prancha de surfe, à medida
que a civilização avança, podem ser explicados pelo aumento da
modéstia, da indústria ou da religião.” Ele não estava errado
sobre o declínio do surfe. A cultura havaiana fora destruída, e o
povo, dizimado por doenças europeias; entre 1778 e 1893, a
população havaiana encolheu de estimados oitocentos mil para
quarenta mil e, no fim do século XIX, o surfe tinha praticamente
desaparecido. Entretanto, Westwick e Neushul consideram o
surfe havaiano menos uma vítima do ardor missionário bem-
sucedido do que do colapso demográfico extremo, da
expropriação e de uma série de indústrias de exploração —
madeira de sândalo, pesca de baleia, açúcar —, que forçaram os
ilhéus sobreviventes a adotar a economia monetária e lhes
roubaram o tempo livre.
A história do surfe moderno se origina desses acontecimentos
terríveis, graças a alguns havaianos, sobretudo a Duke
Kahanamoku, que manteve viva a antiga prática do he‘e nalu,
expressão havaiana para “pegar onda”. Kahanamoku ganhou
uma medalha de ouro em natação nos Jogos Olímpicos de 1912,
tornou-se uma celebridade internacional e começou a fazer
exibições de surfe pelo mundo. Pouco a pouco, o esporte
estourou em várias costas onde havia ondas surfáveis e pessoas
com os meios para desfrutá-las. O sul da Califórnia no pós-
guerra se tornou a capital da emergente indústria do surfe em
grande parte devido a um boom aeroespacial local que fornecia
ao mesmo tempo novos materiais leves para construir pranchas
e uma geração maior que o normal de garotos como eu, com
tempo e vontade para aprender a surfar. Não que as autoridades
locais nos encorajassem. Surfistas eram rotulados como
vagabundos e vândalos. Algumas cidades praianas chegaram a
proibir o surfe. E o clichê do surfista vagabundo — irmão do
esquiador vagabundo, do velejador vagabundo e do alpinista
vagabundo — nunca desapareceu, e por uma boa razão. Jeff
Spicoli, o surfista chapado interpretado por Sean Penn no filme
Picardias Estudantis, continua existindo nos dias de hoje em
cidades praianas ao redor do mundo. Mas o Havaí era diferente.
Pelo menos para mim parecia diferente. O surfe não era uma
subcultura nem algo importado, muito menos uma oposição a
nada — embora sua sobrevivência representasse uma oposição
duradoura aos valores empresariais calvinistas de Hiram
Bingham. O surfe estava profundamente entrelaçado à cultura
local.

***

Glenn e Roddy me convidaram para uma reunião do seu clube


de surfe, o Southern Unit. Tudo o que eu sabia sobre o clube era
que os membros usavam short verde e branco com estampas
havaianas e que todos os caras do Southern Unit que eu tinha
visto na água, principalmente nos dias bons em Cliffs, surfavam
muito bem. A reunião foi realizada na Paki Park, uma pequena
praça no lado diamondhead de Waikiki. Era noite e o lugar estava
cheio, então permaneci nas sombras. Um homem baixo, de
meia-idade e barulhento chamado sr. Ching comandava o
espetáculo — falando de assuntos antigos, assuntos novos,
resultados de competições, das próximas competições, isso tudo
enquanto debatia com o grupo e o fazia rir, embora suas sacadas
fossem rápidas demais para mim.
“Nem vem dar uma de esperto”, berrou o sr. Ching, virando-se
para um garoto que se aproximava silenciosamente às suas
costas.
O garoto, Roddy me contou, era filho dele, Bon Ching. Tinha a
nossa idade, mas surfava tão bem quanto Glenn. Havia apenas
alguns haoles por lá, mas um deles eu reconheci: Lord James
Blears. Era um homem musculoso com um vasto cabelo louro,
ex-lutador de luta livre e apresentador da TV local, com um
sotaque britânico teatralmente ensaiado, talvez até verdadeiro.
Lord Blears, além de tudo, surfava, com um jeito cerimonioso.
Roddy apontou para sua filha adolescente, Laura, que, segundo
ele, surfava bem e que para mim tinha uma beleza absurda, e o
irmão dela, Jimmy, que mais tarde se transformou em um famoso
surfista de ondas grandes.
Havia outros garotos na reunião que cresceram e fizeram
nome no mundo mais amplo do surfe, entre eles Reno Abellira,
na época um moleque de Waikiki que importunava o sr. Ching e
que mais tarde se tornaria um competidor internacional de alto
nível, conhecido por seu estilo agachado e sua velocidade
estonteante. Mas o que me impressionou foram as jaquetas.
Várias pessoas usavam jaquetas impermeáveis verdes e brancas
da Southern Unit. E eram ainda mais interessantes que o short
do clube. Quando Roddy insistiu que eu me voluntariasse para
um projeto de arrecadação de fundos organizado pelo sr. Ching,
deixei minha vergonha de lado e me aproximei dele para receber
uma tarefa.
Eu nunca tinha pisado em um clube de surfe. Na Califórnia, eu
ouvira falar do Windansea, que ficava em La Jolla e tinha alguns
membros famosos. Havia outro também, supostamente
localizado em Santa Barbara, chamado Hope Ranch, que, por
alguma razão, se assemelhava muito ao paraíso para mim e os
meus amigos. Não conhecíamos ninguém que pertencesse a
esse clube. Nem sabíamos suas cores. Talvez nem mesmo
existisse. Ainda assim, a ideia de Hope Ranch pairava no ar,
intangível, um sonho de ser superdescolado em nossa cabeça
nerd e agitada de garotos que queriam ser algo mais.
Mas agora eu estava no Southern Unit. O processo de
admissão não era claro. Será que eu tinha que ganhar alguma
competição? Eu nunca havia surfado em uma — apenas em
disputas bobas contra outros garotos do meu colégio na
Califórnia. Não tinha nada contra competições mais formais. No
entanto, aparentemente era preciso arrecadar fundos primeiro.
Roddy encontrou uma desculpa para não aparecer, mas, em uma
manhã quente de sábado, fui obedientemente até o local onde
iam me buscar. O sr. Ching levou alguns de nós, incluindo seu
filho, Bon, a uma área elegante no alto das colinas acima de
Honolulu. Cada um pegou uma sacola pesada de linguiças e
instruções básicas para a venda de porta em porta. Estávamos
juntando dinheiro para o nosso clube de surfe — uma causa
benéfica, como os escoteiros. O sr. Ching dizia “o Southern Unit”
e os garotos riam, pois sua pronúncia era em estilo haole, inglês
padrão, embora normalmente se dissesse “da Soddun Unit”.
Foram estabelecidos territórios de vendas. Nós devíamos nos
encontrar ao pé da montanha no fim do dia.
Com uma ousadia solitária, eu me empenhei no trabalho. Bati
em portões e portas, fugi de cães raivosos, tentei conversar com
japonesas idosas que pareciam não saber falar inglês. Algumas
senhoras haoles ficaram com pena de mim, mas vendi pouca
coisa. O dia esquentou. Bebi água em mangueiras de jardim,
mas não tinha levado comida. Por fim, faminto, comi uma das
linguiças que deveria vender. Não era gostosa, mas era melhor
que nada. Dez minutos depois eu estava de joelhos, vomitando
em um bueiro. Não sabia que a linguiça precisava ser cozida. Eu
me perguntei, entre golfadas, se estava chegando mais perto ou
mais longe da honra de me tornar membro do clube.

***

Roddy foi transferido, por alguma razão, para a minha turma de


datilografia. Quando eu o ouvi se apresentar ao professor, fiquei
atônito. Como o sr. Ching em seu discurso para levantar fundos,
Roddy abandonou por um breve momento seu pidgin normal e
falou inglês padrão. Mas não foi pelo efeito cômico; era apenas
para a ocasião. Descobri depois que Glenn podia fazer a mesma
coisa. Os irmãos Kaulukukui eram bilíngues; eles podiam
simplesmente “virar a chave” do idioma. Só não havia muitas
ocasiões em nosso dia a dia — na verdade, quase nenhuma —
em que eles precisassem deixar de lado sua primeira língua, o
crioulo havaiano conhecido como pidgin.
Mas manter meus dois mundos separados de repente se
tornou mais complicado. Roddy e eu começamos a andar juntos
na escola, longe da árvore-da-chuva do In Crowd. Na lanchonete,
comíamos nossos saimin e chow fun em um canto à sombra.
Mas a escola era um lugar pequeno. Não havia onde se
esconder. Por isso deveria ter uma cena, um confronto, talvez
com o próprio Mike, que perguntaria: “Ei, quem é esse moke?”
Entretanto, isso não aconteceu. Glenn e Ford também
estavam por lá nessa época. Talvez Glenn e Mike tenham ficado
amigos rapidamente por causa de alguma piada entre eles, nada
a ver comigo. Tudo o que eu sabia era que, aparentemente da
noite para o dia, Glenn, Roddy e Ford estavam aparecendo não
só no ponto de encontro do In Crowd no pátio, embaixo da
árvore-da-chuva, mas também na casa de Mike e Edie, em
Kaimuki, nas noites de sexta-feira — quando o tio de Mike
fornecia a Primo (cerveja local) e Steve fornecia os Kinks. O In
Crowd fora integrado sem nenhum alarde aparente.
Essa era uma época em que o Pacific Club, o principal clube
privado local — onde muitos dos maiores negócios do Havaí
eram fechados com direito a coquetéis e partidas de pádel —,
ainda era apenas para brancos. O clube, aparentemente
inabalado pelo fato de o primeiro representante do Havaí no
Congresso e um de seus dois primeiros senadores serem
asiático-americanos (os dois também eram veteranos
condecorados da Segunda Guerra Mundial; um deles, Daniel
Inouye, perdera um braço), ainda proibia formalmente a entrada
de membros asiático-americanos. Esse tipo de discriminação
patente não era antiamericana — a segregação legal ainda era
vigente em grande parte do país —, mas estava bastante
ultrapassada no Havaí. Até os garotos haoles das moradias
populares de aluguel do In Crowd eram mais esclarecidos. Eles
viram que meus amigos eram caras legais — especialmente
Glenn, eu acho — e, pelo menos para os objetivos da gangue,
deixaram a questão racial de lado. Não valia a pena. Era uma
grande perda de tempo. Vamos nos divertir.
Não que fazer amizade com o In Crowd fosse a maior ambição
de Glenn, Ford ou Roddy. Pelo que eu sabia, e eu sabia muito,
não significava grande coisa para eles. Só era importante para
mim. Na verdade, depois que Roddy conheceu algumas garotas
das quais eu falava — as garotas do In Crowd pelas quais eu
agonizara e com quem de vez em quando trocara algumas
carícias —, percebi que ele não ficou impressionado. Se o termo
“piranha” estivesse em uso na época, ele talvez o tivesse
utilizado. Roddy sofria com seus problemas amorosos, sobre os
quais eu também tinha ouvido muito, mas o objeto de seu afeto
era uma garota recatada, claramente antiquada e com uma
beleza comum que eu jamais teria notado se ele não a tivesse
apontado para mim. Ela explicou que era muito nova para ter um
namoro sério. Roddy disse, arrasado, que esperaria anos se
necessário. Olhando para as minhas primeiras namoradas pelos
olhos dele, eu não gostei menos delas, mas comecei a perceber
como estavam perdidas em seu glamour delinquente de criança
negligenciada, a precocidade sexual delas. Na verdade, eram
muito mais sexualmente avançadas do que eu, o que me deixava
tímido e infeliz.
Então desenvolvi uma paixão desastrosa pela namorada de
Glenn, Lisa. Ela era uma mulher mais velha — tinha quatorze
anos e estava no nono ano —, equilibrada, divertida, simpática e
chinesa. Lisa estudava na Kaimuki Intermediate School, mas não
pertencia ao lugar. Era assim que eu a via. Ela e Glenn só faziam
sentido como casal porque ele era um herói nato, e ela, uma
heroína nata. Mas Glenn era um homem selvagem, um fora da
lei, um vagabundo sorridente, e ela era boa moça e boa aluna.
Sobre o que deviam conversar? Na realidade, eu não queria
saber a resposta. “Nele havia alegria de viver e uma espécie de
ternura intocada pelo meramente gentil.” Quando li essa frase
escrita por James Salter muitos anos depois, pensei em Glenn.
Lisa, como eu a imagino, teria feito o mesmo. Não, planejei, eu
iria apenas aguardar impacientemente para que ela caísse em si
e se voltasse para o garoto haole que se esforçava para diverti-la
e a idolatrava. Não sabia dizer se Glenn percebia minha condição
infeliz. De qualquer forma, ele tinha a bondade de não dizer nada
indecente sobre Lisa que eu pudesse ouvir. (Nada de “Spock dat”
— que significava “Olha aquilo”, algo que garotos viviam dizendo
uns para os outros, esbugalhando os olhos para bundas e seios.)
Lisa me ajudou a enxergar Ford. Eu sabia que ele era
incomum para um garoto japonês. Glenn às vezes o provocava,
dizendo coisas sobre o “nip-o-nese”, japa, e a decepção que ele,
por não ligar para nada além do surfe, devia ser para a família.
Mas Glenn quase nunca conseguia irritá-lo. Ford tinha uma
natureza interna poderosa. Eu achava que não tinha como ser
mais diferente das crianças japonesas nas minhas turmas. Elas
olhavam para os professores e umas para as outras, clara e
fervorosamente em busca de aprovação. Eu me tornara amigo de
algumas das garotas mais engraçadas, que podiam ser mesmo
muito divertidas, mas o muro social entre nós permanecia sólido,
e a bajulação em sala de aula ainda ofendia meu entendimento
do protocolo aluno-professor. Ford, por outro lado, era do meu
planeta.
Ele tinha pele clara, estrutura sólida, músculos rígidos que
pareciam esculpidos e um estilo de surfe firme e eficiente que o
levava com rapidez ao longo de toda a extensão horizontal da
onda. A amizade entre ele e Glenn parecia girar em torno do
surfe, no qual eles eram quase iguais, mas também incluía um
senso compartilhado do ridículo, que Ford, que nunca falava
muito, expressava com pequenos sorrisos secos após as piadas
de Glenn. Havia também o refúgio que os Kaulukukui forneciam a
Ford contra as pressões da família dele. Foi como Lisa explicou.
Ela conhecia a família de Ford, incluindo seus pais obstinados e
irmãos comprometidos a entrar na faculdade. Os japoneses
ganharam destaque político no Havaí do pós-guerra, deixando
rapidamente as plantações de açúcar para as quais eles — como
chineses, filipinos e outros grupos — tinham sido originalmente
trazidos a fim de trabalhar. E também estavam em plena
expansão comercial. As pessoas em geral se ressentiam deles
por seu isolamento — ao contrário dos chineses, por exemplo, os
japoneses não estavam com pressa para se casar com alguém
de fora do seu grupo étnico. Mas a atitude coletiva, parecia
seguro dizer, sobretudo entre as gerações mais antigas, era de
que não iriam progredir nos Estados Unidos andando com
havaianos e se divertindo. E era contra isso que Ford se rebelava
todos os dias, pelo que Lisa me explicou. Não era surpresa,
pensei, que ele tivesse sempre uma expressão tão determinada.
***

Foram distribuídos panfletos de uma competição de surfe a ser


realizada em Cliffs, em Diamond Head. O organizador parecia
ser apenas um garoto da Kaimuki Intermediate School — Robert,
um aluno pequeno e de fala mansa do nono ano que nem
surfava. Mas Roddy e Glenn disseram que ele era sério, que
vinha de uma família de empresários esportivos. A competição
não tinha como ser menor — nenhum dos clubes de surfe locais
estava envolvido, e a única categoria era de meninos até
quatorze anos, pelo visto. Mas eu me incluía nela, por isso me
inscrevi.
No dia da competição, Cliffs estava agitado e ensolarado, com
muito vento e ondulação subindo. Nenhum dos garotos que
apareceram para competir era de Cliffs — pelo menos, não os
reconheci, exceto uns dois da escola. Mas todos pareciam saber
o que fazer diante da algazarra de uniformes e baterias de
competição. Alguns estavam com os pais, que corajosamente
tinham descido da Diamond Head Road. Eu nem cheguei a
contar aos meus pais sobre o evento — era muito constrangedor.
Roddy, para a minha decepção, não apareceu. Glenn estava lá
— fora recrutado para servir de juiz —, mas disse que Roddy
tinha sido obrigado a trabalhar naquela manhã com o pai em Fort
DeRussy, em Waikiki. Eu esperava que Roddy vencesse a
competição.
Robert leu a lista de baterias. Quando não estávamos
surfando, ficávamos reunidos sob moitas de espinheiros na
encosta, nos apertando nas faixas de sombra. Os juízes se
sentavam num ponto mais alto do declive. Alguns surfistas
pareciam muito bons, pensei, embora nenhum conseguisse
chegar aos pés de Roddy. Um garoto usava o short da Southern
Unit, mas sua escolha de ondas foi terrível, e ele acabou
eliminado.
Surfei duas ou três baterias. Eu estava nervoso e remava com
força, sem prestar atenção a mais ninguém. O mar subia aos
poucos, o que era bom, mas o pequeno Robert não tinha poder
para esvaziar uma área de competição, por isso estávamos
surfando em meio ao crowd habitual de sábado. Nessa época, eu
já conhecia bem os recifes de Cliffs, então me distanciei sozinho,
na direção ewa, a oeste, onde havia uma laje de corais depois da
arrebentação, em um bom ângulo para aquele swell. Chegando
lá, encontrei uma sequência de ondas que se conectavam de
modo limpo pela maior parte do pico. Robert tinha um sistema de
bandeiras que deveria avisar os surfistas quando as suas
baterias terminassem, mas ele deixou de mudar as bandeiras
quando as finais acabaram, e continuei surfando até Glenn remar
em direção até onde eu estava para me buscar. Ele disse que
tinha acabado. Eu havia ficado em segundo lugar. Um garoto
haole chamado Tomi Winkler fora o primeiro. Glenn estava rindo.
“Aquele cutback de drop-knee”, falou ele. “Sempre que eu via
você fazer um, ah, eu dava muitos pontos.”
Foi um resultado surpreendente por três motivos. Primeiro,
porque Robert realmente nos entregou troféus algumas semanas
depois, surpreendendo bastante meus pais, que ficaram
chateados por não terem sido convidados. Em segundo, quem
diabo era Tommy Winkler? Ele era, na verdade, um dos haoles
discretos da Kaimuki Intermediate — um cara tranquilo e alegre
e, como acabei descobrindo, um surfista melhor que eu. Terceiro,
porque Glenn gostava de meu drop-knee cutback. Era uma
manobra de água fria, quase desconhecida no Havaí, e se eu
estivesse sistematicamente mudando meu estilo do continente,
teria sido uma das primeiras manobras a ser eliminada. Mas eu
aparentemente continuava a fazê-la, e meu ídolo, Glenn, via
alguma graça nela, ou pelo menos um quê de inovação. Isso
encerrou a questão. O drop-knee ficou.
Mas essa questão de estilo continente versus havaiano era
complicada. Ela se aplicava tanto ao surfe como um todo, em
todas as épocas, quanto ao meu mundinho. Eu sempre ouvira
Glenn provocar Roddy sobre a forma como ele surfava: “É
havaiano demais.” Ele imitava o irmão se agachando, empinando
a bunda, estendendo os braços em arcos de velocidade
exagerados, com os olhos semicerrados como um samurai com
raiva. Era injusto e impreciso, mas engraçado. Às vezes, Glenn
fazia isso até pegando onda, embora o grito de guerra nesses
momentos fosse “Aikau!”. Os Aikau eram uma família de surfistas
locais conhecida por seu estilo tradicional. Como Ben Aipa e
Reno Abellira, os Aikau se tornariam mais tarde famosos no
mundo do surfe internacional — renomados por, entre outras
coisas, o puro estilo havaiano em ondas grandes. Mas eu nunca
tinha ouvido falar deles. Ford e Roddy achavam as imitações de
Glenn irresistíveis. “Se você vir os Aikau, vai saber por que
estamos rindo”, contou-me Ford.

Surfando em Queen’s, Waikiki, 1967

Fiz minha primeira viagem ao North Shore com a minha


família. Era primavera, e os grandes swells das Ilhas Aleutas que
mandavam ondas enormes para a região já tinham terminado
naquele ano. Paramos no famoso pico de ondas grandes, a baía
de Waimea. Exceto pelo fato de o mar estar flat, sem ondas,
parecia exatamente como o das fotos. Subimos a pé o
desfiladeiro atrás da praia e nadamos em uma piscina de água
doce. Papai, Kevin e eu saltamos de um penhasco na água fria e
marrom, desafiando uns aos outros a ir mais alto. Em termos de
proezas físicas estúpidas, percebi que havia superado meu pai,
embora ele fosse atlético, nada tímido e ainda não tivesse
quarenta anos. Minha família, pensei, sabia cada vez menos
sobre mim. Eu levava uma vida clandestina, principalmente
desde que tínhamos nos mudado para o Havaí. Muito disso se
devia ao surfe e se iniciara ainda na Califórnia.
Por que comecei a surfar? Em uma versão de livro infantil
ilustrado, o anzol foi lançado em uma tarde resplandecente em
Ventura quando eu tinha dez anos. Ventura ficava na costa ao
norte de Los Angeles. Havia um restaurante no píer. Minha
família comia ali nos fins de semana em que costumávamos ir à
praia. De nossa mesa junto à janela, eu via surfistas lá fora em
um pico chamado California Street. Eram silhuetas iluminadas
pelo sol baixo e dançavam em silêncio em meio ao brilho, as
pranchas como grandes lâminas escuras cortando e deslizando,
rápidas sob seus pés. A California Street era uma longa ponta de
terra com fundo de pedras arredondadas, e, para mim, com dez
anos, as ondas que quebravam ao longo de sua bancada
pareciam chegar de alguma oficina celestial, os arcos reluzentes
e as paredes afiladas esculpidas por anjos do oceano. Eu queria
estar lá fora, aprendendo a dançar na água. As brigas habituais
do jantar em família pareciam residuais. Até meu chiliburger, uma
iguaria especial, perdeu o fascínio.
Na verdade, havia vários cantos de sereia soando ao mesmo
tempo, todos me chamando na direção do surfe. E meus pais,
diferentemente dos de Ford Takara, estavam dispostos a me
ajudar a começar. Eles me deram uma prancha usada no meu
aniversário de onze anos. Também davam carona para mim e os
meus amigos até a praia.
Mas agora eu parecia estar por conta própria. Ninguém
perguntava aonde eu ia com a prancha, e eu nunca falava a
respeito dos dias bons em Cliffs nem dos meus triunfos sobre o
medo em Kaikoos. Quando eu era pequeno, gostava de exibir
meus machucados em casa, de ouvir minha mãe se espantar
quando via sangue escorrendo pela minha perna. Por que você
está assustada? Ah, por isso. Gostava de ser mimado; ferido
mas indiferente. Lembro que até senti um prazer perverso ao me
queimar sem querer com o cigarro de outra mãe enquanto
andávamos de barco. A atenção, o remorso — a dor valia isso
para mim. De onde vinha aquele pequeno traficante de culpa e
desmancha-prazeres? Ele ainda está comigo, sem dúvida, mas,
quando entrei na adolescência, de repente me afastei fisicamente
de minha família. Caminhando de volta pela trilha em Waimea,
ainda de roupa de banho, eu sabia que parecíamos seis almas
gêmeas, ligadas pelo sangue, uma irmandade, mas eu me sentia
a ovelha negra. Um vento frio de separação pubescente parecia
ter me pegado prematuramente. Claro que quando mergulhei e
dei de cara com um coral — isso ocorreu no verão seguinte, em
Waikiki —, foi para a minha mãe que me carregaram e foi ela
quem me levou para tomar pontos.

***

Meu pai ainda não tinha nem quarenta anos. A idade dos adultos
é absurda para as crianças, números altos demais, em sua
maioria sem qualquer significado. Mas a idade de meu pai era
estranhamente constante, de um modo que até eu sabia que era
esquisito. Era possível ver isso no álbum de fotos da família. Em
um momento, ele era um garoto esperto de cabelo escuro,
patinando e andando de trenó, tocando trompete em uma banda
de baile. Então, aos vinte, dispensado da Marinha, ele de repente
se tornara de meia-idade. Fumava cachimbo, usava chapéu
Fedora, olhava decidido para uma máquina de escrever,
satisfeito diante de um tabuleiro de xadrez. Casou-se aos vinte e
três, foi pai aos vinte e quatro. Isso não era estranho no mundo
dos meus pais, mas ele parecia assumir a vida adulta com um
prazer incomum. Queria ter quarenta anos. Não que fosse um
homem cauteloso e comedido; estava mais para instável e
imprudente. Só parecia ter o desejo de deixar a juventude para
trás.
Eu sabia que meu pai odiara a Marinha, a claustrofobia da
vida a bordo (a guerra tinha acabado — ele ficara de fora por
pouco —, mas havia servido no Pacífico em um porta-aviões).
Ele odiava principalmente a impotência do marinheiro comum.
“Não são chamados de patentes de baixo escalão à toa”, dizia. O
que eu não sabia na época era que o início de sua infância fora
um show de horrores. Os pais biológicos eram bêbados
itinerantes. Os dois filhos que tiveram acabaram sob os cuidados
de tias idosas. Meu pai teve sorte e foi parar em uma cidade
pequena do Michigan com Martha Finnegan, uma professora de
temperamento doce, e seu marido, um maquinista ferroviário
conhecido como Will, mas passou a vida inteira assombrado pela
desordem e pelos terrores sofridos antes de seus pais biológicos
abrirem mão dele.
Meus pais eram, e isso não é surpresa, abstêmios. Mesmo no
auge do martíni, eu nunca tinha visto nenhum deles alto. Um dos
seus medos permanentes era de que os filhos se tornassem
alcoólatras.
Os dois queriam uma família grande e começaram rápido,
comigo. Vivíamos no quarto andar de um prédio sem elevador na
Segunda Avenida, em Manhattan. Eles pagavam 1 dólar por mês
para estacionar meu carrinho de bebê na barbearia no térreo.
Queriam se mudar para Levittown, subúrbio prototípico em Long
Island, na época novinho em folha — em retrospecto, uma ideia
trágica. Por sorte, em vez disso, se mudaram para Los Angeles.
Minha mãe então sofreu três abortos espontâneos consecutivos.
Um pode ter sido natimorto. Garotas católicas solteiras e
grávidas, enviadas por algum ramo da igreja, cuidavam de mim.
Quando minha mãe engravidou de Kevin, passou seis meses de
cama. Tudo isso aconteceu durante a suposta idade de ouro.
Por essa época, meu pai parecia ter mil empregos. Era
eletricista e carpinteiro cenográfico, depois eletricista-chefe e faz-
tudo em programas ao vivo, gravados e no palco. De todos os
empregos, meu favorito era o de frentista. Ele trabalhava em um
posto de gasolina da Chevron em Van Nuys — não muito longe
de Reseda, onde morávamos na época —, e nós podíamos levar
o almoço dele. Meu pai usava um uniforme branco para bombear
gasolina, assim como todos os frentistas. Eu achava que o
emblema da Chevron nas mangas engomadas do uniforme era
extremamente elegante. Ele trabalhou como diretor de palco em
um programa de TV infantil chamado The Pinky Lee Show, ao
qual minha mãe e eu assistíamos principalmente para vê-lo em
rápidas aparições ao lado do palco com fones de ouvido. Até eu
compreendia vagamente que meu pai se preocupava muito em
nos sustentar, por isso estava quase sempre trabalhando.
Também entendi, em certo nível, que, embora ele fosse nosso
herói particular, lá fora no grande mundo, usando fones de ouvido
e emblemas da Chevron, também era, a seu modo, tão
dependente do apoio da minha mãe quanto eu.
Éramos católicos se não devotos, ao menos particularmente
entusiasmados. Missa todo domingo, catecismo aos sábados
para mim, peixe empanado às sextas. Então, por volta de meu
aniversário de treze anos, recebi o sacramento da crisma,
tornando-me adulto aos olhos da Igreja, e fiquei chocado quando
meus pais disseram que eu não tinha mais obrigação de ir à
missa. A decisão agora era minha. Eles não estavam
preocupados com a situação da minha alma? As respostas
evasivas e ambíguas me chocaram outra vez. Os dois tinham
sido grandes fãs do papa João XXIII. Mas percebi que não
acreditavam realmente em toda a doutrina e nas orações —
todas aquelas oblações, sermões, confissões assustadoras e
atos de contrição evasivos que eu memorizava e tentava
compreender desde pequeno. Talvez eles nem mesmo
acreditassem em Deus. Parei de ir à missa na mesma hora. Deus
não ficou visivelmente aborrecido. Meus pais continuaram
arrastando meus irmãos mais novos para a igreja. Que hipocrisia!
Esse alegre abandono das minhas obrigações religiosas
aconteceu pouco antes de nos mudarmos para o Havaí.
***

Portanto, em uma manhã de domingo de primavera, eu me vi


remando lentamente de volta de Cliffs pela lagoa enquanto minha
família suportava a missa na Igreja Star of the Sea, em Waialae.
A maré estava baixa. Minha quilha batia levemente nas rochas
maiores. No recife exposto coberto de algas, usando chapéus de
palha cônicos, havia senhoras chinesas, ou talvez filipinas,
agachadas coletando enguias e polvos em baldes. Ondas
quebravam em vários lugares ao longo da borda externa do
recife, pequenas demais para surfar.
Eu me via flutuando entre dois mundos. Havia o oceano, de
fato infinito, mergulhando para sempre na direção do horizonte.
Naquela manhã, estava plácido; sua atração sobre mim era
relaxante e lânguida. Mas agora eu estava preso a seus estados
de ânimo. A ligação parecia sem limites, irresistível. Não pensava
mais em ondas esculpidas em oficinas celestiais. Eu estava
ficando mais pragmático. Agora sabia que elas se originavam em
tempestades distantes, que se moviam, de certa forma, acima
das profundezas. Mas minha completa absorção no surfe não
tinha conteúdo racional. O esporte simplesmente me atraía; havia
uma mina profunda de beleza e assombro nele. Fora isso, eu não
podia explicar por que fazia aquilo. Sabia vagamente que ele
preenchia um vazio psíquico de algum tipo — ligado, talvez, ao
fato de ter deixado a igreja ou, mais provavelmente, ao lento
afastamento de minha família — e que isso substituía muitas
coisas que vieram antes. Eu agora era um pagão queimado de
sol. Eu me sentia íntimo de mistérios.
O outro mundo era a terra: tudo o que não era surfe. Livros,
garotas, escola, minha família e os amigos que não surfavam. A
“sociedade”, como eu estava aprendendo a chamá-la, e as
cobranças de filho responsável. Com as mãos entrelaçadas sob
o queixo, divaguei. Uma nuvem arroxeada pairava acima de
Koko Head. Um rádio transistorizado tocava em um quebra-mar,
onde uma família havaiana fazia piquenique na areia. A água
rasa aquecida pelo sol tinha um estranho sabor de hortaliças
cozidas. O momento era imenso, calmo, cintilante, mundano.
Tentei guardar cada uma das partes na memória. Nunca
considerei que eu tinha escolha quando se tratava de surfe. Meu
fascínio ia me levar aonde tivesse que ser.

***

Ondas surfáveis se formam da seguinte maneira: uma


tempestade em alto-mar agita a superfície e cria ondas capilares
— ondulações desorganizadas menores e, em seguida, maiores,
que se misturam, com vento suficiente, em mares fortes. Aquilo
pelo que esperamos em costas distantes é a energia que escapa
dessa tempestade e irradia em direção a águas mais calmas na
forma de espectro — grupos de ondas, cada vez mais
organizados, que viajam juntos. Cada onda é uma coluna de
energia em órbita, a maior parte dela abaixo da superfície. Todos
os espectros produzidos por uma tempestade formam o que os
surfistas chamam de swell, que pode viajar milhares de
quilômetros. Quanto mais poderosa a tempestade, mais longe o
swell vai viajar. E enquanto viaja, ele se torna mais organizado —
a distância entre cada onda em um espectro, conhecida como
intervalo, aumenta. Em um espectro de intervalo longo, a energia
em órbita de cada onda pode se estender por mais de trezentos
metros de profundidade. Tal espectro consegue vencer com
facilidade as resistências da superfície, como ondas capilares e
outros swells menores e mais rasos.
Quando as ondas de um swell se aproximam da costa, as
extremidades inferiores começam a sentir o fundo do mar. Os
espectros se transformam em séries — grupos de ondas maiores
e com intervalos mais longos do que os de suas primas geradas
naquela costa. As ondas que se aproximam da praia refratam-se
(curvam-se) em resposta ao relevo do fundo do mar. A parte
visível da onda cresce, sua energia em órbita é empurrada para
cima, para além da superfície. A resistência oferecida pelo fundo
do mar aumenta à medida que a água fica mais rasa,
desacelerando o avanço da parte mais baixa da onda. A onda
acima da superfície se ergue. Por fim, fica instável e se prepara
para tombar para a frente — para quebrar. Em geral, ela quebra
quando sua altura alcança 80% da profundidade da água — uma
onda de um metro e sessenta vai quebrar no mar com dois
metros de profundidade. Entretanto, muitos fatores, alguns deles
extremamente sutis — o vento, o contorno do fundo, o ângulo da
ondulação, as correntes —, determinam com exatidão onde e de
que forma cada onda quebra. Nós, surfistas, apenas torcemos
para que ela tenha um momento surfável (um ponto para dropar)
e uma face surfável, que não quebre toda ao mesmo tempo
(feche), e em vez disso quebre aos poucos, abrindo-se
continuamente, em uma ou outra direção (esquerda ou direita),
permitindo que simplesmente viajemos em paralelo à costa,
surfando a parede por algum tempo, naquele spot, naquele
momento, pouco antes de ela quebrar.

***

O surfe mudou com o avanço da primavera. Havia mais


ondulações vindas do sul, o que significava mais dias bons em
Cliffs. A Patterson’s, onda gentil entre grandes painéis de recife
exposto em frente à nossa casa, começou a quebrar com
consistência, e um novo grupo de surfistas apareceu para surfá-
la — caras mais velhos, garotas, iniciantes. O irmão mais novo
de Roddy, John, também foi. Tinha nove ou dez anos e uma
agilidade surpreendente. Meu irmão Kevin começou a mostrar
interesse pelo surfe, talvez influenciado por John, que tinha
aproximadamente sua idade e guardava a prancha em nosso
jardim. Fiquei surpreso. Kevin era um excelente nadador.
Mergulhava na parte funda da piscina desde que tinha um ano e
meio. Por seus pés serem um pouco virados para dentro, nadava
como um peixe e pegava jacaré muito bem já aos nove anos.
Mas sempre manifestara indiferença à minha obsessão: o surfe
era o meu lance, não seria o dele. Entretanto, agora ele remava
em Patterson’s com uma prancha emprestada e, em poucos dias,
estava pegando ondas, ficando de pé, fazendo curvas. Kevin
claramente tinha um talento natural. Arranjamos uma prancha
usada para ele, uma velha tank da Surfboards Hawaii, por 10
dólares. Fiquei orgulhoso e empolgado. O futuro de repente
assumiu uma coloração diferente.
Com o primeiro grande swell do sul da temporada, a Bomb
quebrou. Estava parado com Roddy no quebra-mar para
observar. O pico principal era tão distante que só conseguíamos
ver quebrar a primeira onda de cada sequência. Depois disso,
tudo era apenas paredes reluzentes de água branca e borrifos.
As ondas estavam gigantes, mais de três metros, as maiores que
eu já vira. Roddy se mantinha em silêncio, encarando o mar e
parecendo desolado. Sem dúvida aquilo estava fora de cogitação
para ele. Havia dois caras na água. Ele os conhecia?
Conhecia.
Quem eram?
Wayne Santos, Roddy suspirou, e Leslie Wong.
Os surfistas eram visíveis apenas de vez em quando, mas
observamos os dois droparem monstros. Eles surfavam com
intensidade, mas com estilo, não caíam e eram lançados em alta
velocidade por cima do recife além de Patterson’s. Wong e
Santos eram surfistas incríveis. E também eram adultos. Glenn e
Ford estavam em Cliffs. Sem dúvida aquele não era o dia para
Roddy fazer sua estreia na Bomb. Suspirando, ele concordou
que não era. Jogamos as pranchas na água e começamos a
longa remada na direção de Cliffs, que estaria bem grande para
nós com um swell daqueles.
Kevin se machucou. Foi atingido nas costas por uma prancha
em Patterson’s. Ouvi pessoas me chamando. “É o seu irmão!”
Saí remando freneticamente e o encontrei na praia, com gente ao
redor. Ele parecia mal — pálido, em estado de choque.
Aparentemente, a colisão o deixara completamente sem ar. O
pequeno John Kaulukukui o salvou de se afogar. Kevin ainda
respirava com dificuldade, tossindo, chorando. Nós o carregamos
para casa. “Tudo dói”, dizia ele a cada movimento. Mamãe o
limpou, o acalmou e o botou na cama. Voltei para surfar. Achei
que Kevin fosse voltar à água em alguns dias. Mas ele nunca
mais surfou. Voltou a pegar jacaré e, quando adolescente, se
tornou um dos figurões em Makapu’u e Sandy Beach, dois picos
sérios de jacaré na extremidade leste de Oahu. Já adulto, teve
problema nas costas. Recentemente, um ortopedista, ao analisar
uma radiografia de sua coluna, perguntou o que havia acontecido
exatamente quando ele era criança. Pelo visto, meu irmão tinha
sofrido uma fratura séria.

***

Toda escola tinha seu valentão, o cara mais durão. Garotos de


escolas diferentes perguntavam uns aos outros: “Quem é o cara
mais durão da sua escola?” O garoto mais intimidador da
Kaimuki Intermediate School quando cheguei era um cara
chamado, inacreditavelmente, de Urso. Parecia uma piada ruim
de Wall Street, o Urso era o Touro, só que ali ninguém nunca
tinha ouvido falar de Wall Street. O Urso era grande, claro.
Aparentava ter trinta e cinco anos e parecia bondoso, até mesmo
confuso. Era samoano, acho. Estava sempre cercado por um
séquito deferente, como um chefão da máfia. Mas os integrantes
do grupo de Urso se vestiam como vagabundos — eles podem,
na verdade, ter inspirado minha primeira impressão dos “nativos”
de Kaimuki como pobres e esfarrapados. Pareciam mesmo
funcionários do departamento de esgoto que tinham acabado o
trabalho e estavam ansiosos pela primeira cerveja. Eram todos
velhos demais para aquela escola. Com uma aparência
assustadora, mas, em geral, a uma distância segura, o grupo
parecia atemporal.
Então algo aconteceu. Não teve nada a ver com Urso, mas fez
com que ele fosse deposto. E, para mim, isso mudou tudo. Não vi
direito como começou, embora eu estivesse bem ali. Era hora do
almoço. O In Crowd estava em seu point habitual. Eu conversava
com Lisa, sem dúvida com o brilho de sempre nos olhos.
Tropeço, o gigante haole excluído, passou. Alguém disse alguma
coisa, e Tropeço respondeu. Ele tinha uma voz grave e tímida e
se parecia com o personagem que cruelmente inspirou seu
apelido — o lúgubre mordomo de A Família Addams. Tinha olhos
tristes, testa grande, um vestígio de bigode e caminhava curvado,
na esperança de disfarçar a altura. Costumava se esquivar dos
insultos, mas dessa vez algo deve tê-lo irritado. Parou. Glenn
estava de pé perto dele e mandou Tropeço continuar andando.
Tropeço não se mexeu. Glenn se aproximou dele. Os dois
começaram a se empurrar, depois a trocar socos.
Era uma imagem estranha, um confronto comicamente
desigual. Glenn não era baixo, mas Tropeço era pelo menos
trinta centímetros mais alto que ele. Glenn não conseguia
alcançar o queixo do adversário, a menos que se aproximasse
muito. Tropeço era atrapalhado e não conseguia acertar nenhum
soco, mas enxergou uma oportunidade, envolveu Glenn em um
abraço e, em seguida, o levantou do chão. Girou o adversário,
apertando-o junto ao peito com um braço enorme em torno do
pescoço dele. A multidão reunida podia ver o rosto de Glenn.
Tropeço estava estrangulando ele. Estrangulando de verdade.
Os olhos de Glenn saltaram. Estava claro que não conseguia
respirar. Glenn se debatia, mas a pegada de Tropeço era
invencível. Passou-se um momento muito longo, com Lisa
gritando, Glenn se debatendo e mais ninguém se mexendo.
Ford Takara apareceu. Ele caminhou até Tropeço, cerrou o
punho e o acertou com muita força no queixo. Os olhos de
Tropeço reviraram. Ele largou Glenn e desabou, caindo direto no
chão, e, enquanto caía, Ford acertou um segundo soco em sua
têmpora. Então a coisa realmente estranha aconteceu. Ford
levou Glenn embora, machucado e respirando com dificuldade, e
o In Crowd mergulhou em cima do Tropeço caído. Chutamos,
socamos e arranhamos. Tropeço, provavelmente mais por
desespero que incapacidade física, ofereceu pouca resistência.
Lembro-me de Edie, irmã de Mike, arranhando seus braços com
as unhas, em seguida erguendo as mãos em triunfo, como uma
harpia de conto de fadas, para mostrar o sangue que tirara.
Outras garotas atacavam o rosto e puxavam o cabelo dele.
Aquele frenesi de sangue durou um bom tempo, até que se ouviu
o grito: “Chock!” Nós nos espalhamos. O sr. Chock era o vice-
diretor de disciplina da escola e estava correndo na direção da
cena.
Quando percebi que tinha feito parte de um crime repulsivo?
Demorou. Na hora, fiquei eufórico. Tínhamos derrotado o gigante
malvado ou alguma bobagem assim. Em retrospectiva, eu
provavelmente exorcizara para mim alguns dos horrores da vida
sem uma gangue — minha época na extremidade útil de uma
ripa de madeira. Claro, Ford foi o herói do dia. E sua performance
fora tão dramática, tão decisiva, que as pessoas já começavam a
dizer que ele era o novo valentão da Kaimuki. Achei isso confuso.
Ele não teria que lutar contra Urso para reivindicar esse título?
Aparentemente não. Essas coisas eram resultado de comoção
popular, não de competição organizada. Mas Ford por acaso
queria ser o valente? Eu duvidava disso, e o conhecia melhor
que todos os garotos que acabavam de descobrir seu nome.
Ainda assim, talvez houvesse um Ford que eu não conhecia: um
assassino ávido por poder. Havia nitidamente um eu
desconhecido para mim: um roedor raivoso de algum tipo.
O resultado oficial da surra em Tropeço foi assimétrico. Ford
não sofreu consequências. Tropeço tornou-se presença rara na
escola. Glenn virou um homem procurado. O restante de nós não
foi punido, embora o sr. Chock parecesse estar mais presente e
nos lançasse longos olhares conhecidos localmente como “o olho
do fedor”. Glenn fugiu de casa. Mike, sempre bom para uma
aventura fora da lei, tornou-se cúmplice e o ajudou a se
esconder. Os dois davam as caras descaradamente no campus
na hora do almoço. O sr. Chock descia a estrada em seu carro,
perseguindo-os pelo cemitério e pelo bosque de acácias kiawe,
onde os Kaulukukui viviam. Viaturas de polícia às vezes se
juntavam à caçada. A perseguição pareceu se estender por
semanas, embora tenham sido provavelmente alguns dias.
***

Steve, que adorava os Kinks, estava em nossa pequena casa.


Ele surfava com competência. Estávamos colocando o calção, a
caminho de Patterson’s.
Tirando seu desprezo ferino por Oahu, Steve era um garoto
doce. Tinha pele morena e peito de pombo, com corpo magro,
cabeça grande e quadrada, olhos enormes e domínio da língua
inglesa da classe média. O pai era um haole rico e mal-
humorado, e a mãe, de pele escura, morrera havia muito tempo.
Como Roddy, Steve odiava a madrasta, que era asiática.
Moravam em Kahala. A sofisticação intelectual de Steve permitia
que passasse por haole — ele sem dúvida não era outra coisa.
Mas tinha o dom da imitação e podia falar muitos tipos de pidgin.
“Gosto de ver”, disse ele em uma voz que era parte gueixa,
parte pura ingenuidade da ilha. E, com isso, ele levantou minha
camiseta e observou as partes nuas de meu corpo de garoto.
Fiquei chocado demais para reagir. “Bonito”, falou Steve com
delicadeza, depois largou minha camiseta.
Eu estava em uma fase de vergonha desesperada em relação
à minha puberdade estagnada e não consegui aceitar o elogio. A
suave sensualidade de Steve pertencia a algum mundo
desconhecido, sem fronteiras.
Eu ainda não tinha nem o aparelho reprodutor básico
completo, e meus pais eram muito tímidos em relação ao assunto
para me auxiliar de alguma forma. Descobri o milagre da
ejaculação por conta própria, em uma noite agitada. Isso ajudou,
e rapidamente se tornou um hábito. Eu era como a maioria dos
garotos da minha idade, sem dúvida, mas nenhum dos que eu
conhecia falava sobre o assunto. Minhas ereções constantes
eram fonte permanente de constrangimento, confusão e grande
carinho por portas com tranca. Fui o desbravador de uma nova
rota solitária, em dias pequenos, de Cliffs para nossa casa perto
de Black Point, fazendo a volta por fora dos recifes em vez de por
dentro, pela lagoa. Lá, nas profundezas azuis, ninguém na praia
nem nas casas atrás da praia podia me ver. Eu rolava da prancha
para uma água azul-celeste, fazendo uma pausa na longa
remada para um intervalo delirante durante o qual, como alguns
falantes de pidgin chamavam de forma nada poética, eu “batia
uma”.

***

Certa noite, houve uma tempestade colossal, do tipo que parece


acontecer apenas nos trópicos. Em minha cama, acima do ruído
da chuva, comecei a ouvir pancadas ocas e familiares. Era o
barulho, eu me dei conta, de pranchas colidindo. Levantei em um
pulo, corri para fora e vi cinco ou seis pranchas boiando para
além do nosso jardim, entrando em um rio que antes era a trilha
até a praia. Nossa rua, Kulamanu, e nossa trilha aparentemente
formavam um funil importante para escoar as tempestades
locais. Persegui as pranchas morro abaixo no escuro,
resgatando-as de arbustos ou de qualquer lugar onde ficassem
brevemente presas, arrastando-as para solo seguro nos jardins
dos vizinhos. Lá estava a Wardy branca de Roddy, a minha Lerry
Felker cinza-azulado, a azul-bebê da Town and Country de Ford.
Lá estava a prancha de John, a velha tank de Kevin. Onde
estava a de Glenn? Ah, enterrada de bico nos degraus da casa
da senhoria. Nenhuma das pranchas alcançou o oceano, cuja
corrente que descia escoando pela trilha podia ser ouvida bem
alto, mesmo com a chuva aumentando. Minhas canelas estavam
machucadas, os dedos dos pés, doloridos pelas pancadas. As
pranchas provavelmente estavam todas marcadas, mas
nenhuma quilha havia quebrado. Recobrei o fôlego e levei cada
uma lentamente de volta para o nosso jardim, prendendo-as com
mais firmeza em seu cercado de bambu, embora o dilúvio tivesse
terminado. Latas de lixo sujavam as ruas. Fora uma tempestade
digna dos livros de recordes. Por que eu parecia ser a única
pessoa em Honolulu que tinha acordado?
***

Eles pegaram Glenn. Mandaram para Big Island. Roddy me


explicou que era melhor que o reformatório, para onde enviaram
Mike. Glenn Pai convencera as autoridades de que o filho seria
monitorado rigidamente por suas tias antiquadas em Big Island, o
que Roddy confirmou ser verdade. Ele provavelmente nem
poderia surfar. Isso, para mim, parecia doentiamente severo. Mas
tudo ficava um pouco desconfortável sem Glenn. Roddy e John
estavam quietos. Lisa aparentava ter estado seriamente doente.
Roddy não tinha mais a mesma liberdade para surfar em Cliffs —
o pai sempre parecia precisar dele em Fort DeRussy. Na
verdade, pensei, ele só queria ficar de olho em Roddy. Talvez se
culpasse por Glenn ter perdido o controle. Nada se assemelhava
a uma xilogravura colorida do velho Havaí agora.
Às vezes, Roddy me convidava para ir a DeRussy. Era um
lugar interessante, pelo menos quando não ficávamos presos
varrendo areia das calçadas, que era o jeito preferido de seu pai
nos manter ocupados. DeRussy ficava em um imóvel de alto
nível à beira-mar em Waikiki, rodeado de hotéis muito altos.
Milhares de militares (“jarheads”, ou cabeça de vaso, como nós
os chamávamos) apareciam toda semana, de licença do combate
no Vietnã. Glenn Pai trabalhava como salva-vidas. Roddy e eu
entrávamos às escondidas nos jardins e saguões dos hotéis da
vizinhança, e, enquanto um ficava de vigia, o outro mergulhava e
saqueava as fontes e poços de desejos atrás de moedas. Então
íamos comprar chow fun, malassadas (rosquinhas portuguesas)
e fatias de abacaxi em uma carrocinha de rua.
Porém, de longe a parte mais interessante de DeRussy eram
as ondas à sua frente. O verão estava chegando, e os recifes de
Waikiki começavam a ganhar vida. Roddy me apresentou a
Number Threes, Kaisers Bowl e Ala Moana. Esses eram alguns
picos de surfe dos quais eu ouvira falar antes de nos mudarmos
para o Havaí. Tinham muito crowd, e, no caso de Ala Moana,
eram assustadoramente rasos, mas contavam com belas ondas,
e os alísios sopravam terral desse lado. Surfar aquelas ondas fez
com que eu me sentisse, como dizia a expressão pidgin, “big-
time”, o cara, pelo menos quando minha performance era
decente.
Também comecei a surfar em Tonggs, na extremidade
diamondhead do grande arco da costa da cidade, que inclui
Waikiki. Era lá que Tomi Winkler, vencedor da competição de
surfe de Diamond Head, vivia com a mãe. A onda de Tonggs não
parecia nada especial — uma esquerda curta e com crowd que
não conseguia suportar muito tamanho, quebrando em frente a
uma fileira de edifícios altos e um quebra-mar. Mas muitos
surfistas bons, entre eles Tomi e seus amigos, eram locais e
insistiram para que eu esperasse por picos próximos que iam
surgir nos dias grandes, em especial um assustador à direita
conhecido como Rice Bowl. O Rice Bowl, diziam, era a resposta
da cidade a Sunset Beach — a grande onda do North Shore. Eu
me perguntei como o Rice Bowl podia se comparar com a Bomb,
mas algo me disse para não perguntar. Todos os caras que
conheci em Tonggs eram haoles. Todo mundo que eu conhecia
de Cliffs e Kaikoos era o que os caras de Tonggs chamariam de
moke. Talvez aqueles haoles nunca tivessem ouvido falar da
Bomb. (Até tinham, mas a chamavam de Brown’s.) Talvez o Rice
Bowl fosse uma onda de haoles. (Não era.) Talvez tudo fosse
mais simples, pensei, se o Southern Unit me desse um calção do
clube e eu me limitasse a surfar com Roddy e Ford. Mas nunca
consegui o calção do clube.
Ford parecia perdido sem Glenn. Ainda surfava em Cliffs todos
os dias, mas era diferente. Ele pegava a prancha em nosso
jardim sem nem sequer verificar se eu estava em casa. Na
escola, não parecia ter qualquer interesse em exercer nenhum
dos direitos soberanos inerentes ao valentão da escola — um
título do qual Urso supostamente teria aberto mão com um
sorriso enfadado. Ford era tímido demais até para arranjar uma
namorada, o que me parecia loucura, ainda mais porque o ano
letivo estava prestes a terminar.
***

Quando o próximo grande swell de sul chegou — o maior até


então —, eu estava no Rice Bowl. A onda quebrava no lado ewa
de Tonggs, do outro lado de um canal e mais para fora, e eu a
observei do quebra-mar. Parecia ser o que as pessoas diziam:
uma Sunset em menor escala. Não que eu já tivesse surfado
algo na escala de um dos dois picos. Mas havia alguns caras na
água no Rice Bowl, e achei que parecia administrável. O vento
estava fraco, o canal parecia seguro. As ondas estavam grandes
e quebrando com força, mas surfáveis, até precisas. Todas as
condições das ondas pareciam muito menos selvagens que a
Bomb. Saí remando. Não me lembro de ninguém me
acompanhando.
Durante um tempo, as coisas correram bem. Os outros caras
me notaram com curiosidade. Eram muito mais velhos. Peguei
algumas ondas limpas, e cada uma delas me surpreendeu com
sua força e velocidade. Não tentei nada complicado. Só fiquei em
cima da prancha, traçando uma linha prudente pela parede.
Remando de volta para fora, observando outras ondas —
olhando para o interior da área que os surfistas chamam de zona
de impacto, ou o pit —, eu podia ver que o Rice Bowl quebrava
mesmo com muita força. Só o barulho já era algo novo para
meus ouvidos.
Então veio uma série grande, ondas de uma categoria para a
qual eu não estava nem remotamente preparado. Já estávamos
surfando muito longe da costa, pensei, mas comecei a remar na
direção do mar aberto, saindo de onde eu acreditara ser o melhor
ponto para dropar. Obviamente havia me equivocado sobre o
lugar em que estava no recife. O Rice Bowl tinha outra
personalidade, que agora se revelava — poder vasto, capaz de
ocultar o horizonte, todo o oceano parecendo se reunir na
direção do recife externo. De onde podia ter vindo uma série
daquelas? Onde estavam os outros caras? Haviam
desaparecido, como se tivessem sido avisados. Eu remava
rápido — leve na prancha, com braços compridos — e, em minha
empolgação, começara cedo demais. Remei de joelhos, com
força, na direção do canal agora, tentando manter a respiração
profunda e regular. Quando a primeira onda da série começou a
quebrar, ainda estava longe no outside, e senti minhas forças
começarem a falhar. Será que eu estava indo na direção errada?
Será que devia ter me dirigido à praia assim que aquelas
montanhas prateadas mortais surgiram no horizonte? Será que o
tempo todo eu estava indo para o pior lugar possível: o recife
externo, onde aquelas ondas iam realmente quebrar? Era tarde
demais para mudar de curso. Continuei remando, a boca azeda
de náusea, a garganta seca de pânico, a respiração ofegante.
Passei por cima da série, que teve quatro ou cinco ondas. Foi
tão por pouco que decolei por cima de pelo menos uma, fui
mergulhado na espuma provocada pelo terral a cada quebrada e
fiquei abalado até o âmago pelo som das ondas detonando
alguns metros às minhas costas. Estava convencido de que, se
tivesse sido pego na arrebentação, teria morrido. Foi a primeira
vez que senti isso. Aquele era o limite do medo que fazia do surfe
algo diferente, ali fortemente ressaltado. Eu me senti como Pip, o
camareiro em Moby Dick que cai ao mar e é resgatado, mas
enlouquece, assolado por visões da maldade e da indiferença
infinita do oceano. Remei e fiz a volta bem por fora do recife do
Rice Bowl, do lado de Tonggs, retornando zonzo e humilhado à
praia.
E essa foi a lembrança impressionante de surfar no Havaí que
levei para o continente na semana seguinte, quando a primeira
temporada de Hawaii Calls terminou, e repentinamente fizemos
as malas e nos mudamos. Eu ia voltar, avisei a meus amigos.
“Escrevam para mim.” Roddy disse que ia, mas não escreveu.
Steve, sim. Lisa também. Mas ela estava começando o ensino
médio. Tentei aceitar: nunca seria minha. Uma irmã mais velha,
no máximo. Comecei o nono ano em minha antiga escola em Los
Angeles. Eu surfava bastante. Ventura. Malibu, até Santa Monica,
qualquer lugar aonde eu e meus amigos conseguíssemos
alguém que nos levasse. Eu me gabava de vez em quando sobre
surfar no Havaí, mas nunca mencionei o Rice Bowl. Ninguém
estava interessado nas minhas histórias mesmo.

***

Então nos mudamos de volta, exatamente um ano depois de


partir. Meu pai arranjou trabalho em um longa chamado Kona
Coast, estrelado por Richard Boone — o velho pescador haole
rabugento se mete em algum tipo de intriga polinésia. Não
conseguimos a casa de Kulamanu novamente e acabamos em
outra casa apertada mais à frente na Kahala Avenue, sem bom
surfe por perto.
No dia em que chegamos, peguei o ônibus até a casa de
Roddy. Os Kaulukukui tinham se mudado. Os novos inquilinos
não sabiam de nada.
No dia seguinte, fiz com que minha mãe me deixasse na
Diamond Head Road, desci a trilha até Cliffs e, para minha
alegria, encontrei Ford surfando, ainda em sua prancha azul-
bebê. Ele pareceu genuinamente feliz ao me ver — mais falante
do que eu jamais o vira. Disse que Cliffs tinha ficado bom a
primavera inteira. Sim, os Kaulukukui haviam se mudado. Para o
Alasca.
Para o Alasca?
É. O Exército transferira Glenn Pai para lá. Isso parecia louco
e cruel demais para ser verdade. Ford concordou. Mas era o que
tinha acontecido: Glenn, de volta de Big Island, fugira de novo em
vez de se mudar. Mas Roddy e John foram, melancólicos, junto
do pai e da madrasta. Eles moravam em alguma base militar na
neve. Eu não conseguia imaginar aquela cena. Onde estava
Glenn, então? Ford fez uma expressão estranha. “Em Waikiki.
Você vai vê-lo por aí”, disse ele.
Eu vi, mas não de imediato.
Waikiki se transformou no pico onde eu sempre surfava. Em
parte por causa da estação, em parte por causa da logística. O
surfe era bom no verão de Tonggs até Ala Moana, e havia
armários em Canoes, um ponto central bem na Kalakaua
Avenue, onde eu podia guardar a prancha pelo preço de um
cadeado com segredo. Por isso, eu a deixava nos armários ao ar
livre de Canoes e pegava o ônibus, ou, se minha mesada tivesse
acabado, todo dia ao amanhecer pegava carona para dar a volta
em Diamond Head sem ninguém perceber. Passei vários dias
descobrindo os picos fora das praias cheias de surfistas e de
hotéis enfileirados à beira-mar.
Cada pico tinha seus frequentadores. Fiz alguns amigos.
Waikiki era um ninho denso de ambulantes, turistas, empolgação
e crime. Até os surfistas pareciam trabalhar — alguns deles, em
empregos legítimos na praia, como levar turistas para pegar
ondas em canoas havaianas ou lhes dar “aulas” de surfe em
gigantescas pranchas cor-de-rosa de remada; outros, muito mais
suspeitos, envolvendo turistas ingênuas ou amigos que
trabalhavam nos hotéis e conseguiam as chaves dos quartos. A
maioria dos garotos que conheci na água vivia em um gueto
chamado Waikiki Jungle. Alguns eram haoles e em geral
moravam com as mães garçonetes; a maior parte era local com
grandes famílias multiétnicas. Havia bons surfistas em todos os
picos — caras para estudar e imitar. A todo mundo com quem
surfava eu perguntava sobre Glenn Kaulukukui. E todos diziam
conhecê-lo. “Ele estava por aí”, comentavam. Tinham acabado
de vê-lo na noite anterior. Onde ele estava morando? Não era
claro.
Finalmente, certa tarde em Canoes, ouvi: “Porra, Bill.” Era
Glenn, remando atrás de mim. Ele riu e segurou as bordas da
minha prancha. Parecia mais velho, um pouco abatido, mas
destemido; ainda era ele mesmo. Olhou para minha prancha e
perguntou: “O que é isso?”
Era uma nose-rider, uma prancha para surfar com o pé no bico
— um modelo novo conhecido como Harbour Cheater, com um
“degrau” no deck que supostamente a fazia flutuar melhor
quando se estava equilibrando sobre o bico. Era meu bem mais
precioso, obtida à custa de infinitas horas arrancando ervas
daninhas depois da aula. Ela era resinada, não pigmentada, em
um amarelo-claro. Resinas transparentes eram moda naquele
ano. Eu amava até o adesivo triangular negro da Harbour. Prendi
o fôlego quando Glenn a examinou. “Legal”, comentou, por fim.
Ele até parecia estar falando sério. Soltei o ar, nervoso com a
vastidão do meu alívio.
Glenn era evasivo sobre seu novo modo de vida. Contou-me
que trabalhava como garçom e morava em Jungle. Não estava
frequentando a escola. Ia me mostrar o restaurante onde
trabalhava, me descolar uma carne ao teriyaki. Roddy estava
bem no Alasca. Era frio. Todos estariam de volta “bye’m’bye”,
logo, logo — mas Glenn deu à expressão pidgin um tom mais
sombrio do que o tratamento cantado que normalmente recebia.
Ele até mesmo riu com escárnio, sem tentar esconder a raiva do
Exército.
Surfamos juntos, e fiquei surpreso ao ver a impressionante
melhora de Glenn. Ele não era mais apenas um bom jovem
surfista. Ainda tranquilo, agora dava um show.
Mas nunca vi o restaurante onde Glenn supostamente
trabalhava. Na verdade, raras vezes eu o via em terra. Surfamos
Canoes, Queens, Populars e Number Threes juntos, e eu tinha
dificuldade de entender algumas manobras que ele fazia nas
ondas — Glenn surfava rápido, virando com muita força, fazendo
transições muito ligeiras, especialmente chegando ao lip, a crista
da onda. Subindo e dropando, atrasando no interior do tubo,
preparando-se para sair pelo lip meio abaixado, estável e em alta
velocidade. Havia algo novo acontecendo no surfe, e Glenn
parecia estar na vanguarda.
Eu desconfiava que surfar com o pé no bico não fazia parte
disso. Eu havia me tornado adepto das manobras hang five e
hang ten, caminhando até o bico e voltando quando uma onda
permitia. Tinha estrutura perfeita para isso, ultraleve. David
Nuuhiwa, o melhor nose-rider do mundo e um dos meus heróis,
também era alto e magro. Mas minha Harbour Cheater estava
longe de ser o modelo especializado mais radical naquele verão
de 1967. Havia tipos diferentes, como a Con Ugly, que sacrificara
todos os outros aspectos do desempenho para maximizar o
tempo no bico.
Ainda assim, com todo o seu aspecto etéreo, sua
improbabilidade e sua dificuldade técnica, eu começava a perder
interesse por surfar dessa forma. Misturado com a desordem
lenta e suave de canoas havaianas e de turistas a perder de vista
em Waikiki, havia recifes rasos em Kaisers e Threes, e até
Canoes, que produziam, sobretudo na maré baixa, ondas ocas
que criavam, ao quebrar, tubos de verdade. E, naquele verão,
comecei a encontrar meu caminho para o interior azul e giratório
de algumas ondas e, às vezes, até a sair de lá de pé. Todos
falavam sobre ficar “encaixado no tubo”, mas a coisa em si,
essas entubadas, pareciam uma revelação. Eram sempre rápidas
demais, mas seu mistério era intenso, viciante. Você se sentia
como se tivesse atravessado o espelho por um instante, e
sempre queria voltar. O tubo, não o pé no bico, parecia ser o
futuro do surfe.
As pessoas diziam que Glenn estava usando drogas. Parecia
plausível. As drogas — maconha, LSD — estavam por toda
parte, sobretudo em Waikiki, mais especialmente em Jungle. Era
o Verão do Amor, cujo epicentro era São Francisco, e
parecíamos receber um tráfego constante de enviados de lá,
todos trazendo novas músicas, gírias e drogas. Conhecia garotos
da minha idade que fumavam baseado. Eu era muito tímido para
experimentar. E nas vezes, uma ou duas, em que fui com meus
amigos a uma festa de surfistas em barracões caindo aos
pedaços em Jungle — onde luzes estroboscópicas piscavam, o
Jefferson Airplane ecoava e os mais velhos transavam nos
quartos de trás —, nós roubamos cerveja e caímos fora. Era o
máximo de experiência para a qual estávamos preparados. Eu
me perguntava onde diabo Glenn morava.
Meus pais, assim como a Kaimuki Intermediate School,
pareciam não saber nada sobre a minha vida de reputação
duvidosa em Waikiki. Mas eu quase os envolvi depois que
Dougie Yamashita roubou minha prancha. Fiquei louco de raiva,
medo, frustração. Yamashita, um sujeito de Canoes e
delinquente de rua um pouco mais velho que eu, pedira
emprestada a minha prancha por alguns minutos e nunca a
devolveu. Fui convencido por pessoas mais sábias de Waikiki a
deixar os adultos fora daquilo. Em vez disso, recrutei um garoto
de ombros largos conhecido como Cippy Cipriano para encontrar
Dougie e recuperar minha prancha. Cippy era um pistoleiro de
aluguel — ele espancava outros garotos, sem necessidade de
explicação, por 5 dólares. Ele me surpreendeu e pegou o meu
caso de graça. As pessoas disseram que ele tinha outras contas
a acertar com Dougie. De qualquer forma, minha amada Cheater
amarela logo foi devolvida, com apenas alguns arranhões novos.
Dougie, me contaram, estava doido de ácido quando a levou e
por isso não devia ser responsabilizado. Essa história não me
convenceu. Eu ainda estava furioso. Mas então, na vez seguinte
que o vi, descobri que não tinha coragem para enfrentá-lo. Aquilo
não era a escola. Eu não tinha o In Crowd para me apoiar.
Dougie, sem dúvida, tinha uma família grande cheia de caras
durões, sempre dispostos a pisotear pequenos haoles. Ele me
ignorou, e eu retribuí o favor.
Não via quase ninguém do In Crowd. Steve, ainda preso na
Rocha, disse que a gangue tinha se desfeito. Falou que ninguém
podia substituir Mike. Por alguma razão, morremos de rir com a
ideia. Havia algo de palhaço em Mike. Eu ligava para Lisa com
frequência, mas sempre desligava, mortificado, quando ouvia a
voz dela.
“Gloria”, da banda irlandesa Them, era a grande canção na
parada de sucesso local quando eu estava na Kaimuki
Intermediate. Nós a cantávamos o tempo todo. “G-L-O-R-I-A,
Glo-o-o-o-r-ria.” Em 1967, a canção no rádio em Honolulu era
“Brown-Eyed Girl”, do cantor e compositor do Them, Van
Morrison. Não era um grande sucesso, mas a letra tinha o tipo de
poesia gaélica que mexia muito comigo na época, e a melodia
também possuía uma tristeza impetuosa, quase no estilo da ilha.
Era uma elegia à juventude perdida e, por anos, me fez pensar
em Glenn. A canção tinha algo de sua beleza fugitiva, risonha. O
que eu visualizava era ele se lembrando de Lisa. Ela era a
brown-eyed girl, a garota de olhos castanhos. Na verdade, eu
não sabia o que acontecera entre eles, mas idolatrava os dois, e
gostava de pensar que alguma vez tinham sido felizes “standing
in the sunlight laughing/hiding behind a rainbow’s wall”, rindo à
luz do sol, escondidos atrás do muro de um arco-íris. Mas era
algo que eu costumava fazer de algum modo, transferir isso para
outras pessoas, romancear seus casos. E era típico, também, da
perversidade da cultura pop começar a reciclar “Brown-Eyed Girl”
décadas mais tarde como música de elevador e de
supermercado, até eu não aguentar mais ouvi-la. Toda banda na
face da terra já a gravou. George W. Bush tinha a canção em seu
iPod quando era presidente.
Meus pais precisaram fazer uma escolha. Kona Coast não
tinha acabado, mas o ano escolar estava começando. A essa
altura, eles tinham aprendido o bastante sobre o Havaí para
saber que as escolas públicas não eram uma opção tão boa,
ainda mais para o ensino médio, no qual eu ingressaria. Em anos
posteriores, durante outros trabalhos, todos os meus irmãos iriam
para as escolas particulares em Honolulu. Voltaríamos ao
continente a tempo do início das aulas lá.
Como se recebesse uma deixa, minha prancha foi roubada
outra vez. Meu cadeado com segredo, cortado por uma serra
tico-tico, jazia na areia ao lado do armário. Sem dúvida o ladrão
sabia que estávamos de partida. Dessa vez, contei para meus
pais. Mas o tempo era curto, e ninguém sabia nada. Tanto
Dougie quanto Cippy estavam longe, infelizmente. Suas famílias
não tinham certeza de seus planos. Por isso, voamos de volta
para o continente sem uma peça-chave na bagagem.
Meus pais me emprestaram o dinheiro de entrada para uma
nova Harbour Cheater, que seria idêntica à prancha roubada até
na cor, amarela. Fui trabalhar depois da aula arrancando ervas
daninhas no jardim de um vizinho a 1 dólar por hora. Com taxas,
a prancha iria custar 135 dólares. Calculei que conseguiria o
dinheiro até novembro.
Minha mãe e eu em Santa Monica, 1953
DOIS

O CHEIRO DO OCEANO

Califórnia, 1956-1965

Há alguns anos, eu estava em Laguna Beach, na Califórnia, em


um carro alugado e indo para o sul pela avenida principal, a
Pacific Coast Highway. O tempo estava enevoado, úmido e
deserto; o oceano, à minha direita, seu cheiro à meia-noite, as
luzes aquosas dos estabelecimentos fechados durante a noite
margeando a estrada. Eu estava cansado, mas alerta. Ao passar
por um hotel velho de beira de estrada, de aparência decrépita,
ouvi um grito horrível. Eu sabia o que era: uma memória, não um
crime ou uma separação amorosa acontecendo. Mas a crueza do
grito lembrado arrepiou meu couro cabeludo. Era meu pai,
quando jovem. Tinha deslocado o ombro naquele hotel,
brincando comigo em uma piscina coberta. Era a primeira piscina
coberta que eu tinha visto na vida. Foi a primeira vez que vi meu
pai gritar de dor. Ele nunca falava palavrão nem reclamava
quando ganhava cortes, arranhões ou hematomas. Na verdade,
costumava rir. Então aquilo era grave — realmente aterrorizante
para mim. Meu pai estava impotente, desesperado. Chamaram
minha mãe. Uma ambulância chegou. O que estávamos fazendo
em um hotel em Laguna? Não sei. Tínhamos amigos em Newport
Beach, a cidade seguinte rumo ao norte, não em Laguna. Eu
tinha no máximo quatro anos — ainda no suposto paraíso
anterior à chegada dos meus irmãos.
Meu pai continuou deslocando o ombro de vez em quando ao
longo dos anos. Na última ocasião que aconteceu, estava na
Bomba. Ele não surfava, então o que estava fazendo ali, em cima
de uma prancha de surfe? Aparentemente, saiu remando apenas
para dar uma olhada, ver as ondas grandes de perto. Então uma
série fechou o canal. Ele perdeu a prancha. E o ombro dele saiu
do lugar. Ele afundou uma, duas vezes, não conseguia flutuar.
Um surfista havaiano o salvou. Eu não estava lá. Estava no exílio
na época, depois de largar a faculdade. No hospital, eles abriram
o ombro do meu pai, repararam os tendões e ajustaram a
musculatura ao redor. O ombro não iria se deslocar de novo. Meu
pai, por outro lado, não conseguiria erguer o braço acima da
cabeça. Décadas mais tarde, dirigindo rumo ao sul por Laguna,
eu me vi torcendo para que minha filha, na época com quatro
anos, nunca me ouvisse berrar, impotente.

***

Quando eu era pequeno, morávamos longe da costa. Eu não era


um garoto de praia. Então como o surfe se tornou o centro da
minha juventude? Deixei que ele me conduzisse por alguns
becos onde a grande reverberação da guitarra do surfe que me
levava para a água me encontrou pela primeira vez.
Havia os Becket, que eram pessoas do mar. Amigos da família
que viviam em Newport Beach, uma velha cidade pesqueira e de
iatismo oitenta quilômetros ao sul de Los Angeles. Tinham seis
filhos, e o mais velho, Bill, era exatamente da minha idade. Nós
dois, ainda bebês, figuramos nas fotos de família, de bruços, na
praia, ambos fascinados pela areia. Minha mãe disse que os
adultos, todos pais recentes, nos davam as ordens: “Brinquem!”
Atrás de nós, relaxando em roupas de banho da época, nossos
pais inacreditavelmente jovens jogam a cabeça para trás e riem.
Ainda consigo ouvir a enorme gargalhada de Coke Becket. Ela e
minha mãe se conheceram antes de se casarem, trabalhando
como camareiras no hotel do parque Yosemite e, por motivos que
nunca conseguiram recordar com precisão, como secretárias em
Salem, no Oregon.
O grande Bill Becket era bombeiro. Guardava centenas de
armadilhas para lagostas no quintal dos fundos da casa e, em
dias calmos, armava-as com seu bote a remo em certos recifes
rochosos perto da costa de Orange County. O pequeno Bill logo
ganhou quatro irmãs, depois um irmão. Os Becket eram católicos
mais fervorosos que nós. Compraram uma pequena casa de dois
andares em estilo colonial na península Balboa, uma faixa de
areia densamente construída que se estendia entre o oceano e a
baía de Newport. A rua em que moravam, a 34th Street, tinha
três quadras de comprimento, do mar ao canal da baía.
Tentávamos alugar um chalé por uma semana todo verão,
normalmente no lado da baía, onde era mais barato.
Desde pequeno, eu ficava aos cuidados dos Becket. O
pequeno Bill e eu pescávamos com linha de mão e enchíamos
baldes de caranguejos e mariscos; pegávamos emprestada uma
velha prancha de remada do pai dele para explorar o labirinto de
canais da baía, remando em dupla para além da ilha Lido, em
direção às águas abertas da baía de Newport. Confiscamos um
veleiro e o levamos até uma ilha deserta e cheia de areia perto
da estrada, reivindicando-a para nós e brigando com os outros
garotos que tentavam aportar ali. No fim da tarde, presos por
uma brisa do mar na ponte da autoestrada — mais baixa que o
nosso mastro —, mudamos de direção freneticamente, perdendo
terreno a cada curva, até que, por fim, amarramos o barco no
último ancoradouro particular possível.
Acima de tudo, pegávamos jacaré nas ondas da 34th Street.
Essa era a nossa base, um universo completo: o oceano azul e
frio, a areia branca e quente e as ondulações de sul quebrando.
O pequeno Bill tinha um quarto do tamanho de um closet, com
espaço apenas para uma cama de solteiro, onde dormíamos em
direções opostas, um chutando o rosto do outro. Tomávamos
banho juntos, até fazíamos xixi juntos: éramos dois espadachins,
em meio às risadinhas, cruzando os jatos em uma batalha em
frente à privada. Ele era um típico garoto de praia: cabelo com
corte militar, os fios claros, descoloridos pelo sol, as solas dos
pés como madeira, e costas que no verão ficavam quase negras.
Sempre sabia como estava a maré, não importava onde
estivéssemos, como se pudesse sentir o cheiro no ar. Sabia
quando a praia estava com os grunions — peixes misteriosos
que iam até a beira da água para se reproduzir, mas apenas à
noite, uma hora após a maré alta, e só em certos meses e em
certas fases da lua. Com uma lanterna, dava para encher um
saco de aniagem com grunions em uma hora. Empanados e
fritos, eram considerados uma iguaria. Caminhando pelo píer de
Newport, Bill espiava os baldes dos pescadores sem permissão,
encorajando-os com elogios improvisados, típicos de um rato do
cais. “Bela corvina.”
Bill, como o pai, tinha orgulho de ser impassível. Era
sarcástico, quase agressivamente relaxado — o paradoxo
essencial da Califórnia. Desde pequeno, tinha uma tirada barata
para toda ocasião. Becket nunca estava apenas ocupado, vivia
“mais ocupado que um colador de cartazes de um braço só”, ou
“ocupado como um guaxinim malvado”. Ele podia ser dominador.
Tentava dar ordens às irmãs, com resultados diversos. Elas
respondiam com sarcasmo à autoridade do irmão, e eram quatro,
cada uma orgulhosamente dona de uma inteligência ácida. A
casa dos Becket transbordava de residentes permanentes e,
ainda assim, funcionava também como centro comunitário.
Sempre havia vizinhos entrando e saindo, travessas de tacos
chegando da cozinha, alguém fazendo peixes frescos na brasa
no jardim dos fundos, lagostas vivas entrando na panela. Entre
os adultos, o vinho, a cerveja e outras bebidas corriam soltas.
Coke Becket tocava acordeão, e o repertório da família era
extraordinário. Até as crianças pequenas podiam cantar aos
berros “Remember Me”, “She’s More to Be Pitied”, “Sentimental
Journey” e “Please Don’t Sell My Daddy No More Wine”. O clã
tinha uma tendência ao espetáculo. Ardie, mãe de Coke, que
vivia em algum lugar nas colinas, apareceu certa tarde na 34th
Street, mas não de carro, como teria feito minha avó. Em vez
disso, estacionou a picape e o trailer para cavalos na esquina e
chegou à 34th Street com uma fantasia de camurça, contas e
com um adorno de penas na cabeça, em pé em cima de um
cavalo. Ela desfilou pela rua, acenando tranquilamente para as
pessoas que saíam de suas casas. Os filhos dos Becket ficaram
empolgados ao vê-la, mas não impressionados pela entrada
circense. Já tinham visto a cena muitas vezes.
O grande Bill vinha do centro de Los Angeles. Era parte de um
grupo variado de homens jovens que se dirigiram para a costa
sul da cidade após a guerra. Era amargo e intenso, de fala
mansa, boa aparência, com olhos de basset e um forte
bronzeado. Habilidoso com as mãos, podia construir um barco
apto para navegar no mar a partir de uma pilha de madeira. Ele
surfava. Tocava ukulele. Na verdade, ele e Coke tinham se
casado no Havaí. Bill esculpira a mesa de centro de sua pequena
sala de estar no segundo andar usando a própria prancha de
surfe de sequoia como matéria-prima. Tinha formato de lágrima e
era pesada como chumbo. O pequeno Bill e eu gostávamos de
visitar o pai dele na sede do corpo de bombeiros, onde era
capitão. Parecia estar sempre do lado de fora, atrás do prédio,
trabalhando em um barco, passando outra camada de verniz ao
sol.
Além das tarefas domésticas, o pequeno Bill tinha trabalhos de
verdade. Ao amanhecer, botava isca nos anzóis para os
pescadores que saíam em barcos a remo do píer. Era um
trabalho sujo: enfiar anchovas fedorentas em anzóis enferrujados
presos a intervalos de cerca de sessenta centímetros em rolos de
quinhentos metros de linha, recebendo 2,50 dólares a cada
seiscentos anzóis. Mas o pequeno Bill conseguia terminá-lo até o
meio da manhã com alguma ajuda, por isso eu ia junto, e nossas
mãos passavam o dia inteiro fedendo. Certo verão, ele arrumou
trabalho em um lugar chamado Henry’s, também perto do cais,
alugando botes de borracha de fundo rígido para turistas. Eram
botes maravilhosos, e eu e os outros amigos de Bill
costumávamos usá-los, pondo o emprego dele em risco. Os
botes eram de lona pesada, com extremidades reforçadas de
borracha amarela, e quase dava para ficar de pé dentro deles.
Pranchas de poliestireno eram populares na época, mas os botes
de Henry eram mais rápidos e manobráveis.
Havia pranchas de surfe também, mas em Newport o uso era
restrito a determinadas áreas e apenas no início da manhã, pelo
menos no verão. Além disso, surfar era intimidador. Achávamos
que era coisa de adulto, aquilo não era para nós. Víamos
surfistas pela cidade. Eles tinham cabelo descolorido pelo sol,
dirigiam peruas velhas, usavam camisas xadrez de manga
comprida, calças jeans brancas, huaraches — sandálias
mexicanas com solas feitas de pneus de automóveis —, e se
divertiam, pelo que soubemos, nas noites de fim de semana lá na
península, no Rendezvous Ballroom, onde Dick Dale e os Del-
Tones tocavam uma música sedutora e subversiva.
Becket perdeu o emprego no Henry’s não devido às nossas
locações não autorizadas dos botes, mas porque certa tarde
ficou entediado enquanto esperava um garoto turista que estava
apenas deitado com o bote na praia. Era o único que ainda
estava alugado, e Becket queria fechar a barraca. Nós todos
esperávamos por ele. O garoto turista, pálido e gorducho, parecia
dormir. Por fim, um dos amigos de Bill fez um estilingue. Becket o
carregou com uma pedrinha e atingiu o cliente adormecido bem
na lateral exposta do corpo. O garoto gritou muito mais alto do
que o esperado. Nós fugimos. A mãe do menino, para nosso
espanto, chamou a polícia. De onde estávamos escondidos,
vimos a cabecinha de Bill, parecendo uma bola de tênis, ir
embora na traseira de uma viatura. Henry o demitiu, e os amigos
de Bill começaram a chamá-lo de JB, em referência a jailbird, ou
seja, um delinquente que sempre é preso. Não que ele — filho de
um popular capitão dos bombeiros — tivesse passado um minuto
sequer numa cela.
Os amigos de Bill eram todos católicos. Eles até frequentavam
escolas católicas, e os mais velhos estavam no processo de se
tornar coroinhas. Pedalavam para a missa aos domingos e se
gabavam como se fossem donos da igreja e dos arredores. Eu
ficava impressionado e envergonhado ao pensar nas minhas
tímidas visitas dominicais à igreja de St. Mel, perto de casa,
sempre com meus pais. Os garotos de Newport me mostraram
como entrar escondido no balcão nos fundos da igreja, onde o
coral cantava em missas solenes, e assistíamos à cerimônia dali.
Isso exigia que nos escondêssemos nos bancos para que o
padre, no altar, não nos visse quando se virasse para a
congregação. Era complicado, porque meus companheiros
queriam muito captar o olhar dos amigos coroinhas e tentar fazer
com que eles rissem. Eu estava inquieto com toda aquela
travessura, depois fiquei mortificado quando um garoto ruivo
chamado Mackie sibilou para que eu calasse a boca —
aparentemente, depois que o padre entoara “Dominus vobiscum”,
eu tinha murmurado, por força do hábito: “Et cum spiritu tuo.”
Entediados, alguns dos meninos começaram a cuspir
silenciosamente nos paroquianos abaixo de nós, saltando para
trás a fim de se esconder depois de cada cusparada. Agora eu
estava realmente escandalizado. Será que eles não acreditavam
no inferno? A resposta era não, como ficou claro para mim em
uma conversa zombeteira em frente ao mar depois da missa.
Mas eu ainda acreditava e fiquei horrorizado com o que tinha
visto naquela manhã — genuína e religiosamente com medo.
Pelo visto, era preciso uma escola católica para transformar
garotos em apóstatas intrépidos e endurecidos. Eu era um
fracote da escola pública, ainda amedrontado pelas freiras.
Eu amava Newport, mas era ainda mais apaixonado por San
Onofre. Ficava cerca de sessenta e cinco quilômetros mais ao
sul, uma pequena faixa de costa selvagem cercada por uma
grande base militar. Os Becket enchiam sua kombi de crianças e
equipamento e iam para lá nos fins de semana. San Onofre fora
um dos primeiros postos avançados do surfe na Califórnia, e os
dedicados ratos de praia, que acampavam ali para surfar, pescar
e coletar mariscos, de algum modo convenceram os militares a
continuar deixando que eles entrassem depois da construção da
base. A estrada de terra até a praia era bloqueada por uma
guarita, mas membros do Clube de Surfe de San Onofre tinham
permissão para passar. O grande Bill era membro fundador. A
praia não tinha nada de especial — era estreita e sem árvores,
rochosa além da beira da água —, mas as famílias que
acampavam ali compartilhavam o local com um prazer reservado.
Muitas delas pareciam ter doutorado em diversão. Pranchas de
surfe, varas de pesca, máscaras de mergulho com snorkels,
velhos caiaques, objetos infláveis — tudo tinha relação com a
água. Vans com toldos de bordas desbotadas e quiosques de
madeira forneciam faixas de sombra. Torneios de bridge e vôlei
davam lugar, após o pôr do sol, a fogueiras e cantoria, e martínis
eram a moeda corrente.

Turma de primeira comunhão, igreja católica de St. Mel, Woodland Hills, 1960 (estou
na terceira fileira, de cima para baixo, o terceiro da direita para a esquerda)

E também havia as ondas. As de San Onofre estavam fora de


moda nos anos 1960, quando eu comecei — lentas e fracas. No
início da era moderna do surfe, entretanto, quando as pranchas
eram enormes, muito pesadas e, em geral, sem quilhas, surfar
direto até a praia com o mínimo de desvio era a técnica preferida
(na verdade, a única possível), e San Onofre oferecia talvez a
melhor onda na Califórnia para esse estilo de surfe. Os percursos
eram longos e suaves, com suficientes alternâncias no fundo de
pedra para mantê-los interessantes. Muitos dos surfistas que
modernizaram o desenho das pranchas após a Segunda Guerra
Mundial deram os primeiros passos em San Onofre — era a
Waikiki da Costa Oeste, sem os hotéis e a empolgação. E aquele
permanecia um local excelente para aprender a surfar.
Desci as primeiras ondas ali, de pé em uma prancha verde
emprestada num dia de verão quando tinha dez anos. Não me
lembro de ninguém me dando instruções. Havia outras pessoas
pegando onda, mas San Onofre é um local espaçoso. Remei
sozinho, baixando a cabeça e passando por linhas prateadas de
águas brancas e suaves. Eu observava os outros surfistas
passarem e apenas imitei o que faziam. Virei a prancha na
direção da praia. As ondas não pareciam em nada com aquelas
enormes de fundo de areia nas quais eu pegava jacaré havia
anos. Mas a maré estava baixa, e o vento, fraco, o que facilitava
a visão das ondulações que se aproximavam. Encontrei uma
parede larga com a crista alinhada por igual e remei feito um
louco para entrar em sua parte inclinada. A aceleração quando a
prancha flutuou e pegou a onda foi menos drástica, menos
violenta que descer de bote ou de peito as ondas de fundo de
areia. Mas a sensação, em especial a de velocidade, de avançar
pela superfície da água à frente da onda, simplesmente não tinha
fim. O senso de impulso, de energia, era novo para mim. Fiquei
de pé com dificuldade. Eu me lembro de olhar para o lado e notar
que a onda se mantinha consistente, de olhar para a frente e
reparar que meu caminho estava livre por uma boa extensão e
de olhar para baixo e ficar hipnotizado pelo chão rochoso que
passava a toda velocidade sob meus pés. A água era
transparente, um pouco turquesa, rasa, mas havia espaço para
passar por cima em segurança. E foi o que fiz, várias e várias
vezes, naquele primeiro dia.
***

Mas eu era do interior, para a minha grande vergonha. Woodland


Hills, onde morávamos, ficava no limite noroeste do condado de
Los Angeles. Era um mundo de morros secos — o sopé das
montanhas de Santa Monica — na extremidade oeste do vale de
San Fernando, um lago bege de áreas tomadas pela poluição.
Meus amigos de sempre não sabiam nada sobre o oceano. As
famílias deles tinham se mudado para o oeste, vindas de regiões
isoladas do mar — Pensilvânia, Oklahoma, Utah. Seus pais
foram trabalhar em escritórios. Com exceção de Chuck, o pai de
Ricky Townsend. Ele tinha uma plataforma de petróleo nas
colinas na direção de Santa Paula. Ricky e eu íamos até lá com
ele. Chuck usava capacete de segurança, camisas de uniforme
imundas e grandes luvas de segurança. A plataforma funcionava
dia e noite, bombeando e fazendo estrondos, e ele sempre
estava consertando alguma coisa. Eu achava que o objetivo era
um jorro, uma explosão repentina de ouro negro. Nesse meio-
tempo, não havia muita coisa que eu e Ricky pudéssemos fazer.
O poço tinha uma torre, com uma pequena cabine de piso de
compensado no alto das vigas de sustentação, e o sr. Townsend
nos deixava subir até lá. Era onde eu e Ricky nos
esparramávamos em volta de um rádio transistorizado e
ouvíamos Vin Scully narrar os jogos dos Dodgers até tarde da
noite. Koufax e Drysdale estavam no auge, arrasando com todo
mundo, e nós achávamos isso normal.
Vivíamos cercados de colinas. E havia uma insularidade em
nossa vizinhança, em minha escola primária, um atavismo
reforçado pela topografia. Parecia uma cidade pequena, um
vazio, e era administrada por idiotas xenófobos. O grupo de
extrema direita John Birch Society era forte. Meus pais e os
amigos progressistas e cosmopolitas eram minoria — fãs de
Adlai Stevenson em uma cidade de Sam Yorty. (Yorty foi prefeito
de Los Angeles — um ignorante durão e sorridente de Nebraska
que caçava comunistas.) Meus pais assinavam a revista I.F.
Stone’s Weekly e apoiavam com fervor o movimento pelos
direitos civis. Lutaram contra a aprovação de uma medida local
que permitiria a discriminação por parte de proprietários de
imóveis. “Não à 22”, dizia o cartaz em nosso jardim. Eles
perderam. Minha escola, a Woodland Hills Elementary, continuou
100% branca.
A melhor parte das colinas eram as próprias colinas. Eram
cheias de cascavéis, andarilhos, coiotes. Era nessas colinas que
nós, quando meninos, fazíamos longas caminhadas, para além
da Mulholland Drive, que na época ainda era uma rua de terra,
até velhos haras e estandes de tiro. Havia fortes no alto de
árvores e fortes de pedra espalhados pelas montanhas e
desfiladeiros que alegávamos serem nossos, e lutávamos contra
bandos de garotos de outros vazios quando os encontrávamos
em terras neutras. Além disso, as montanhas logo viravam
pistas. Descíamos por elas em bicicletas, pedaços de papelão,
carrinhos com rodas de borracha (“De vinha em vinha os garotos
deslizavam à velocidade da luz”) e de skate, quando eles
surgiram. Até as ruas pavimentadas eram absurdamente
íngremes. A Ybarra Road era um precipício tão grande que
motoristas desinformados paravam ao vê-la, faziam a volta e
procuravam caminhos alternativos.

***

Nesse mundo pequeno e limitado, chegou um sujeito intrépido


chamado Steve Painter. Eu o notei pela primeira vez quando ele
parou para me ver bater em um colega de turma. Eu tinha o
hábito de convidar colegas de turma para ir lá em casa, calçar
neles luvas de boxe e lutar alguns rounds. O que parece
estranho agora é que costumávamos lutar em uma faixa de
grama bem ao lado da calçada e da rua. Aquela área era o meu
ringue. Acho que nenhuma parte desse plano seria aceitável
hoje, só que na época ninguém interferia em nada. Lutar boxe
era o que os meninos faziam. Steve Painter, depois de me ver
dando uns socos em meu colega, se ofereceu discretamente
para usar as luvas. Como ele não era maior que eu, concordei,
confiante. Ele me bateu e me derrubou. Descobri que Steve era
três anos mais velho.
Era da Virgínia e chamava minha mãe de “senhora” e homens
adultos de “senhor”. Tinha cabelo preto grosso e ondulado, pele
bronzeada e uma cicatriz roxa embaixo de um olho que ele
afirmara ter sido causada por um disco de hóquei. Steve
realmente jogava hóquei no gelo, mas isso não me impediu de
imaginar que o corte em seu rosto fosse na verdade uma cicatriz
da Guerra Civil. Além de estar no sétimo ano — faltava pouco
para o ensino médio! —, Painter tinha uma expressão natural de
comando, alguns pelos pubianos, dois dedos dos pés colados
que, por alguma razão, me impressionavam muito, além de
diversas ideias e muitos palavrões novos para nós. Também
demonstrava uma indiferença invejável à dor, que, junto com sua
força, permitia que dominasse nossas brincadeiras, em especial
a linha ofensiva do futebol americano. Steve logo se tornou o
líder da nossa pequena matilha da vizinhança, tirando o lugar de
um garoto grosseiro e pálido de Pittsburgh chamado Greg.
Painter gostava de implicar comigo, até me torturar
fisicamente — eu era o membro mais novo do grupo —, mas
também me abrigava sob sua asa. Ele se juntou a um time de
hóquei que jogava no Tarzana Ice Rink. Tarzana — que recebeu
esse nome em homenagem a um ator residente que tinha sido
um dos primeiros Tarzans no cinema — era o subúrbio seguinte
rumo ao leste. Painter, após entrar no time de hóquei, me
convenceu a tentar. Na época, o hóquei não era um esporte
popular em Los Angeles, e os poucos times da nossa liga
costumavam ser formados por garotos que tinham acabado de se
mudar para a região, vindos do Canadá ou de Wisconsin,
escandinavos que patinavam muito melhor que nós, locais.
Painter fez o possível para aprimorar meu jogo, disparando
discos em minha direção na garagem. Mas eu sabia que não
tinha futuro no esporte — ainda me enxergava recebendo passes
nos Rams, embora não estivesse pronto para descartar a ideia
de ser arremessador dos Dodgers. Durei apenas uma temporada
no gelo.
Mas aquele ano no hóquei me deu a oportunidade de ver meu
pai patinar. Ele ia até o rinque quando podia para ver nossos
treinos nas manhãs de sábado, e uma ou duas vezes ficou para
o primeiro período de pista aberta ao público do dia. Eu tinha
visto os patins enferrujados e esquecidos dele na garagem de
casa. Eram patins de corrida antiquados, com lâminas
extraordinariamente grandes, algo que o personagem literário
Hans Brinker usaria. Não havia nada igual no Tarzana Ice Rink,
sem dúvida. Nessa época, meu pai pegou os patins e os limpou
e, depois do meu treino, íamos juntos para o gelo fresco. Ele
patinava com o tronco inclinado para a frente, as mãos
entrelaçadas às costas, avançando sem esforço, sorrindo. Meu
pai lentamente pegou o ritmo, e o rinque parecia pequeno
enquanto ele percorria as retas em poucos movimentos rápidos.
A rotina para os períodos abertos ao público era alternar o clima
e as regras a cada música nos alto-falantes do rinque. Dessa
forma, casais só patinavam ao som de doo-wops sentimentais,
garotas só patinavam ao som de “Big Girls Don’t Cry”, e assim
por diante. Homens e garotos patinavam em velocidade, por
alguma razão, ao som de “Runaround Sue”, de Dion, uma música
que eu amava, e eu estimulava meu pai a acelerar durante esses
três minutos. Ele não parecia muito certo disso, mas começava a
movimentar os braços e a dar passadas cruzadas nas curvas, e
eu tinha certeza de nunca ter visto alguém patinar tão rápido. A
caminho de casa, pedia que ele me contasse histórias de todas
as corridas que vencera quando criança em Michigan. Mais
tarde, convenci a mim mesmo de que, se as Olimpíadas não
tivessem sido canceladas por conta da Segunda Guerra Mundial,
ele sem dúvida teria ido para os jogos — se não como patinador,
como corredor ou saltador de esqui.

***
Steve Painter também ajudou a me direcionar para o surfe. O
interesse dele não tinha relação com o envolvimento com o mar à
maneira tradicional, como os Becket — ou os Kaulukukui.
Derivava, em vez disso, da febre que tomara os Estados Unidos
alguns anos antes — filmes como Maldosamente Ingênua e
afins, surf music, moda surfe. Inúmeros garotos em ambas as
costas compraram pranchas e começaram a surfar. Revistas, em
especial a Surfer, tinham se transformado no principal canal da
autocelebração da cultura do surfe, e Painter e os colegas de
turma liam as publicações com avidez e conversavam com cada
vez mais autoridade, usando a nova linguagem encontrada ali.
Tudo era bitchen ou boss (sinônimos para excelente), e qualquer
pessoa de quem não gostavam era um kook (um insulto
normalmente reservado para um surfista incompetente — o
termo é derivado de kuk, palavra havaiana que significa
excremento).
Na época não me dei conta, mas era revelador eu nunca ter
visto um exemplar da Surfer na casa dos Becket. Deviam ter
interesse na revista — caramba, ela havia sido criada por um
amigo deles em San Onofre —, mas os Becket sem dúvida
tinham coisas melhores para fazer com 75 centavos.
Para a maioria dos que moravam longe da costa, a estrada
para o surfe passava pelo skate. Sem dúvida, era assim em
Woodland Hills. Todos tínhamos skates e transformamos
algumas ruas íngremes em pistas. A ênfase era na velocidade,
nas curvas, nos kick turns e nos giros, não nos saltos. Paradas
de mão eram consideradas truques excelentes, mas acabavam
com os nós dos dedos. No playground superior da minha escola
havia uma encosta longa e côncava asfaltada que parecia uma
onda oceânica. Seu cume, por trás da quadra de handebol, era
uma direita grande, rápida e relativamente curta, ou, indo para o
outro lado, uma inclinação longa que se afunilava perfeitamente
por uns noventa metros para a esquerda. Andar de skate na
encosta da escola nos fins de semana era tão empolgante que
parecia proibido. Na verdade, era proibido — tínhamos que pular
a cerca para entrar. Os prazeres de andar naquela encosta,
ainda mais para a esquerda, que chamávamos de Ala Moana,
ficavam apenas alguns graus abaixo da animação de ficar em pé
em uma prancha nas ondas de San Onofre.
Ir para a costa de Woodland Hills era difícil. Ficava a pouco
mais de trinta quilômetros de distância, para além das
montanhas. Painter e os amigos tinham idade suficiente para
pedir carona; eu, não. Minha mãe, com sua paixão pela praia,
havia começado a nos levar ao Will Rogers Beach State Park
assim que conseguiu o próprio carro. Na época, eu devia ter sete
ou oito anos. Era um velho Chevrolet azul-celeste, e
costumávamos seguir pelo Topanga Canyon. Pouco antes da
boca do desfiladeiro, atingíamos uma muralha de maresia.
Quando virávamos para o sul na Pacific Coast Highway, minha
mãe dizia: “Sintam o cheiro do oceano. Não é bom?” Eu
resmungava ou não dizia nada. Nunca gostei do cheiro do mar.
Havia algo aparentemente errado comigo. Um fedor de peixe
envolvia a costa, parecendo emanar dos pilares sob as casas de
telhados planos, aglomeradas lado a lado na estrada à beira-mar.
Meu nariz se retorcia com o cheiro.
O mar em si era outra história. Eu chapinhava pelas ondas no
Will Rogers, mergulhava por baixo de fortes linhas de espuma
que seguiam na direção do banco de areia principal, onde as
paredes marrons das ondas grandes se erguiam e quebravam.
Eu adorava aquela violência ritmada. As ondas puxavam a
pessoa na direção delas como gigantes famintos. Extraíam a
água da bancada quando subiam à altura máxima, em seguida
mergulhavam para a frente e explodiam. Embaixo d’água, o
impacto era imensamente prazeroso. Ondas eram melhores que
qualquer coisa nos livros e nos filmes, melhores até que um
passeio na Disneyland, porque, com elas, a carga de perigo não
era planejada. Era real. E dava para aprender a manobrar em
torno das ondas, quanto tempo esperar no fundo, como nadar
para além da arrebentação e, por fim, até como pegar jacaré.
Aprendi técnicas autênticas de bodysurf em Newport, observando
e imitando Becket e seus amigos, mas eu ficava à vontade com
as ondas em Will Rogers.
Ainda assim, não era um pico adequado para o surfe, e havia
pouca chance de que os passeios com minha mãe algum dia nos
levassem a um. Mas então meu pai ficou interessado em
Ventura, uma antiga cidade petroleira a pouco mais de sessenta
quilômetros ao norte de Woodland Hills. Ele percebeu que era
possível comprar uma casa dúplex geminada a algumas quadras
da praia em Ventura por 11 mil dólares, e foi o que fez. Depois
disso, passei o que pareceu ser a maior parte dos meus fins de
semana arrancando ervas daninhas e cuidando de jardins sob
uma fria brisa do mar em torno daquela casa na Ayala Street.
Outros investimentos modestos se seguiram a esse, e depois um
salto com a construção de uma nova casa: dois dúplex para
alugar idênticos, todos com garagem e uma fachada moderna de
madeira rústica. Ventura, na época, não tinha qualquer atrativo
como cidade praiana — era fria e com muito vento, longe de
tudo. Mas meu pai enxergou o futuro — autoestradas, uma
marina, superpopulação — e convenceu alguns amigos a investir
em projetos conjuntos, o que permitiu que ele continuasse a
construir. Enquanto isso, fui percebendo que Ventura era
abençoada pelas ondas. Tive essa visão enquanto comia um
chiliburger no píer.
Em meu aniversário de onze anos, meu pai me levou à loja
Dave Sweet Surfboards, no Olympic Boulevard, em Santa
Monica. Do mostruário de pranchas usadas, escolhi uma sólida
marrom-alaranjada de cerca de dois metros e setenta, com
bordas decoradas em azul-piscina e uma quilha construída com
pelo menos oito tipos diferentes de madeira. Custou 70 dólares.
Eu tinha um metro e meio, pesava menos de quarenta quilos e
não conseguia nem envolver a prancha com o braço. Saí da loja
levando meu presente na cabeça, com vergonha e com medo de
deixá-lo cair, mas estava feliz como nunca.
Os Finnegan, Ventura, 1966

Não foi um inverno fácil, tentando aprender a surfar. Embora


“Surfin’ USA”, dos Beach Boys (“Let’s go surfin’ now, everybody’s
learning how”/“Vamos surfar agora, todo mundo está
aprendendo”), tocasse no rádio, eu era o único garoto da minha
escola que tinha prancha. Passávamos quase todos os fins de
semana em Ventura, por isso eu ia para a água com frequência,
mas a California Street era rochosa, e a água, dolorosamente
fria. Consegui uma roupa de neoprene, mas com perna curta e
sem manga, e esse tipo de tecnologia ainda estava
engatinhando. No máximo, o traje reduzido amenizava um pouco
o frio mais cortante dos ventos da tarde. Meu pai gostava de
contar uma história sobre um dia em que desanimei. Ele ficara
observando do calor do carro minha dificuldade no mar — eu o
imagino fumando seu cachimbo e usando um suéter largo e
macio de pescador. Voltei com os pés e joelhos sangrando,
cambaleando pelas rochas, e larguei a prancha, humilhado e
exausto. Ele me disse para voltar e pegar mais três ondas. Eu
me recusei, mas ele insistiu. Falou que eu podia pegar de joelhos
se necessário. Eu estava com muita raiva. Mas voltei lá e peguei
as ondas e, na versão dele da história, foi nessa hora que me
tornei um surfista. Se meu pai não tivesse me feito voltar naquele
dia, eu teria desistido. Ele tinha certeza disso.
No sétimo ano, finalmente saí da intimidade cercada por
colinas da minha escola primária e fui para uma escola maior,
anônima e para garotos mais velhos no vale propriamente dito.
Lá, comecei a fazer amigos com base em um interesse comum
por surfe. Rich Wood foi o primeiro. Ele era baixo, arredio, meio
gorducho, sarcástico e um ano mais velho que eu. Mas tinha um
estilo limpo e gracioso que combinava com as ondas longas e
acetinadas que se desdobravam com delicadeza na California
Street, e passou a fazer parte de uma família postiça — a minha
— com uma facilidade que de início foi surpreendente,
considerando como era reservado e como tinha pouco a dizer de
si mesmo. Fez mais sentido depois que conheci a família dele.
Os pais de Rich eram jogadores de golfe baixinhos e coriáceos
que nunca estavam por perto. Rich tinha um irmão muito mais
velho, e parecia que seus pais já haviam cumprido a tarefa de
criar os filhos e se mudado para algum lugar do interior da
Flórida. O irmão mais velho de Rich, Craig, sem dúvida podia ter
levado os pais a fazerem isso. Ele era um fã agressivo,
musculoso, arrogante e barulhento de carros antigos tunados.
Craig dizia saber surfar, mas eu nunca o vi na água. Ele chamava
o próprio pênis de Paco e sempre tinha histórias sobre as
aventuras de Paco com as mulheres.
“Paco tem causado estrago por aí, cabrón!”
Quando Rich começou a sair com uma garota, Craig pedia
para cheirar seus dedos quando ele chegava dos encontros —
queria checar o progresso sexual do irmão mais novo. Rich e
Craig não podiam ser mais diferentes.
Rich e eu conhecemos a California Street juntos. Ele era
estranhamente cauteloso em relação ao local onde tinha
aprendido a surfar. Ele havia praticado suas manobras em algum
lugar, obviamente, mas era vago quando falávamos sobre isso:
“Secos, County Line, Malibu. Você sabe.” Na verdade, eu não
sabia, exceto pelas revistas e por Steve Painter. Mesmo assim,
nós nos dedicamos à California Street juntos — os line-ups, os
surfistas locais, as marés, as costelas invisíveis das rochas sob
as águas escuras com algas, todas as idiossincrasias de uma
onda longa e um tanto traiçoeira. Ninguém falava conosco, e
descobrimos pontos para dropar que eram intermitentes ou
subestimados e se encaixavam às nossas habilidades, então
conseguíamos surfar sem a interferência de ninguém. Mas
também estudávamos com uma intensidade fanática as
manobras dos principais caras locais, e discutíamos sobre eles
noite adentro em nossos beliches no dúplex que minha família
começara a usar como casa de praia. Viemos a saber alguns dos
nomes deles: Mike Arrambide, Bobby Carlson, Terry Jones.
Como Arrambide conseguia desgarrar a prancha de lado
passando por todas aquelas seções intermediárias? O que era
aquele passo rápido na primeira curva que Carlson fazia no
drop? Será que ele estava mesmo mudando de base (do pé
direito à frente para o pé esquerdo à frente)? Rich e eu ainda
estávamos dominando o básico — drops limpos, viradas fortes,
equilíbrio firme, caminhar até o bico da prancha —, mas
tínhamos que aprender com os grandões, porque havia poucos
garotos da nossa idade na California Street, e percebemos que
nenhum deles surfava melhor que nós.
Na verdade, eu sentia tanto prazer em observar o próprio Rich
surfar quanto em ver qualquer outra pessoa. Seu equilíbrio era
sólido, às vezes impecável, e as mãos eram expressivas; o
trabalho de pés, refinado. Usava uma prancha grande pintada de
branco. Ficava bem menos confiante, menos agressivo, quando
as ondas passavam de um metro e vinte, mas tinha as
características de um mestre de ondas pequenas, e eu me sentia
orgulhoso de surfar com ele. Éramos sempre forasteiros na
pequena cidade de Ventura, mas, com o tempo, passamos a
receber breves acenos de cabeça na água, como saudação de
alguns surfistas que sempre estavam por lá.
Meus pais começaram a nos deixar ao amanhecer, quando em
geral estava enevoado e sempre sem vento, liso como um
espelho, e só nos pegavam no fim da tarde. Não havia praia na C
Street, como passamos a chamá-la, apenas rochas e um
penhasco baixo quase desmoronando, grandes tanques de
armazenamento de petróleo, terrenos sujos e, depois do local,
um parque de diversões abandonado. Mais além do pico, havia
um bosque que abrigava mendigos, o que significava que era
preciso ficar de olho nos maltrapilhos que desciam pela costa
vindos daquela direção, já que nossas toalhas e nossos almoços
ficavam guardados nas rochas enquanto surfávamos. A brisa
costumava ficar mais forte e arruinava o surfe na hora do almoço.
Isso levava a tardes longas em que ficávamos sentados e
encolhidos em torno de fogueiras, feitas de madeira encontrada
na praia embaixo do penhasco, enquanto esperávamos nossa
carona. Certa vez, quando o vento estava especialmente forte e
úmido, arrastamos pneus velhos para uma pilha e os
acendemos. O calor foi magnífico, mas a coluna densa e
fedorenta de fumaça negra que soprava na direção da cidade
atraiu uma viatura, então saímos correndo com as pranchas —
nada fácil — e nos escondemos no interior do parque. No fim
daqueles dias, quando finalmente voltávamos ao dúplex, Rich e
eu, ainda com nossas roupas de neoprene, dividíamos uma
ducha quente ao ar livre, trinta segundos por vez, e aquele que
estava no frio ia contando os números em voz alta, depois
empurrava o outro que estava na ducha, até acabar a água
quente.

***

O estudo atento e meticuloso de uma pequena faixa de costa,


cada corrente, cada canto, até as rochas individuais, e de todas
as combinações de maré, vento e swell — um estudo
longitudinal, de estação após estação —, é a ocupação básica de
surfistas em seu pico local. Compreender totalmente um pico,
entendê-lo de verdade, pode levar anos. Em picos muito
complexos, é trabalho para a vida toda, nunca finalizado. Isso
provavelmente não é o que a maioria das pessoas observa ao
olhar o mar e perceber surfistas na água, mas é o principal
problema que estamos tentando resolver: o que essas ondas
estão fazendo exatamente, e o que devem fazer em seguida?
Antes de podermos surfá-las, precisamos entendê-las, ou pelo
menos ter um início confiável para a empreitada.
Quase tudo o que acontece na água é indescritível — a
linguagem não ajuda em nada. O julgamento das ondas é
fundamental, mas como decifrá-lo? Você está sentado em um
intervalo entre as ondas e não consegue ver além da ondulação
que se aproxima, que não vai se transformar em uma onda que
possa pegar. Você começa a remar costa acima e na direção do
mar. Por quê? Se o tempo parasse, você poderia explicar que,
por sua experiência, há 50% de chance de que a próxima onda
tenha um bom ponto para dropar cerca de dez metros adiante e
um pouco mais longe de onde você está agora. Esse cálculo é
baseado em: suas últimas duas ou três olhadas nas ondulações
no outside, cada vislumbre captado da crista de um swell
anterior; as mais de cem ondas que você viu quebrar na última
hora e meia; sua experiência cumulativa de trezentas ou
quatrocentas sessões naquele pico, incluindo quinze ou vinte
dias muito parecidos com aquele em termos de tamanho e
direção do swell, velocidade e direção do vento, maré, estação e
configuração do banco de areia; o modo como a água parece se
movimentar pelo fundo; a textura da superfície e a cor da água;
e, por trás desses elementos, inúmeras percepções sutis e
passageiras demais para serem explicadas pelo córtex cerebral.
Esses últimos fatores são como aqueles em que os antigos
navegadores polinésios confiavam quando, em mares abertos,
costumavam se abaixar até a água entre os estabilizadores de
suas canoas e deixavam que seus testículos lhes dissessem em
que local do grande oceano eles estavam.
Claro, o tempo não pode parar. E a decisão de remar
depressa contra a corrente, seguindo seu instinto, ou parar e
esperar, apostando que a próxima onda vá desafiar as
probabilidades e simplesmente vir até você, tem que ser tomada
em um instante. E há grandes chances de que os fatores
decisivos não tenham relação com o oceano — seu estado de
espírito, a condição dos seus braços e músculos, o deslocamento
dos outros surfistas. O papel do crowd é, na verdade,
frequentemente crucial. Outros surfistas podem indicar a
aproximação de ondas. Ao ver alguém remar por cima de uma
ondulação, você tenta avaliar, no último instante antes que a
pessoa desapareça, o que ela vê lá fora. Ajuda se você conhece
quem está remando — se a pessoa costuma reagir
exageradamente diante da visão de uma onda grande, se
conhece bem o pico. Ou você pode olhar para outro lugar, de um
lado para outro da costa, para alguém que possa ter uma visão
melhor do que a sua do que está reservado para você, e tentar
avaliar a reação dela ao que está vendo. A pessoa pode até
sinalizar para que lado você deve se movimentar — para lhe dar
uma dica sobre o que quer que esteja se encaminhando em sua
direção. Na maior parte das vezes, porém, o crowd é apenas um
incômodo, uma distração, distorcendo sua avaliação enquanto
você manobra para conseguir pegar uma onda.
Na California Street, Rich Wood e eu éramos jovens
aprendizes. Mas também éramos sérios em relação à dedicação,
o que não passou despercebido pelos mais experientes, que
começaram a nos ceder ondas de vez em quando. A forma como
eu e Rich compartilhávamos nossas anotações, estudávamos um
ao outro, competíamos em silêncio — isso também era
fundamental na minha opinião. Surfar é um jardim secreto onde
não se entra facilmente. Minha memória de descobrir um pico e
vir a conhecer e entender uma onda normalmente é inseparável
do amigo com quem eu tentei subir as paredes dela.

***

Eu tinha um cuidado obsessivo com minha velha Dave Sweet,


consertando cada amassado, cada pancada que trincava ou
rompia a superfície antes que ela pudesse absorver água
salgada. A California Street, especialmente na maré alta, era
rigorosa com as pranchas. Os ingredientes básicos de um kit de
reparo de mossas ou rachaduras era resina de poliéster,
catalisador, tecido de fibra de vidro e um bloco de espuma de
poliuretano, mas eu aos poucos acumulei uma bancada cheia de
ferramentas e suprimentos: serras, limas, pincéis, uma lixadeira
elétrica, todos os tipos de lixa molhada e seca, fita-crepe,
acetona. Eu podia fazer na prancha hot coats, gloss coats,
serviços rápidos e malfeitos da noite para o dia ou remendos tão
cuidadosos que ficavam invisíveis. A quilha da minha amada
Sweet, embutida de modo elaborado, estava sempre batendo
nas pedras, por isso construí, ao longo de muitas noites em uma
garagem fria, uma “bolha” de fibra de vidro de dois centímetros
de espessura em torno de sua borda externa, para protegê-la.
Acho que era a lembrança de serviços similares e o desejo de
não repeti-los que faziam os surfistas aumentarem a reputação,
em meio a outros frequentadores da praia, de loucos que corriam
por rochas afiadas atrás de pranchas perdidas, sem se preocupar
em machucar os pés.
Rincon, 1967

Por fim, chegou a hora de eu conseguir uma prancha de


desempenho melhor que a minha Sweet desajeitada. Steve
Painter opinou: além de ser nova, teria que ser uma Larry Felker.
Painter e eu nunca surfamos juntos. Ainda ouvia as histórias dele
sobre arrebentar com ondas de três metros em Topanga, um pico
ao sul de Malibu que eu não tinha surfado sobretudo porque a
costa ali era fechada ao público. De alguma forma, Steve e seus
amigos tinham se tornado, ao menos nas histórias deles, a base
da elite entre a galera de Topanga, e as ondas lá eram, segundo
ele, normalmente enormes e sempre maravilhosas. Para mim,
nossa amizade desigual na vizinhança terminara certa noite de
verão quando vários de nós estávamos dormindo ao ar livre no
quintal dos fundos de alguém e, para o prazer horrorizado dos
nossos companheiros, Steve urinou na minha boca. Essa tortura
foi longe demais. Parei de andar com ele.
Mas eu ainda o respeitava em relação a certos assuntos,
como o que era legal no mundo do surfe, por isso fui procurar
Felker, que tinha a única loja de surfe em Woodland Hills. Ele não
era um shaper muito conhecido, mas fazia pranchas lindas. Meus
pais concordaram em pagar a metade — seria meu presente de
treze anos —, por isso encomendei uma cinza-azulado de cerca
de dois metros e oitenta com uma quilha transparente e uma
rabeta feita com um bloco de madeira embutido. Comecei a
cortar grama e extrair ervas daninhas para ganhar dinheiro.

***

O que aconteceu com Rich Wood? Uma porta se abriu, outra se


fechou — minha indiferença só agora parece estranha.
Construíram uma nova escola, e fui mandado para lá por causa
do meu endereço; ele não foi, e nunca mais tornei a vê-lo. Minha
família continuou indo para Ventura. Os Becket, em uma rara
investida ao norte, nos visitaram ali — quatorze pessoas
amontoadas em uma casa de dois quartos.
Meu novo parceiro de surfe era Domenic Mastrippolito, uma
pessoa tão formidável quanto seu nome. Ele era o rei sem coroa
da nossa turma na nova escola. O irmão mais velho de Domenic,
Pete, tinha cabelo escuro e era brigão, mas Domenic era louro e
calmo; e foram Pete e seus amigos cascas-grossas do nono ano
que chamaram minha atenção para ele. Como aficionados por
brigas de galo, Pete e sua gangue gostavam de botar meninos
mais novos para se enfrentar. Dizia-se que chegavam a apostar
em quem ganharia. Quando eu tinha doze anos, eles me
forçaram a lutar contra um garoto durão, magrelo e de dentes
tortos chamado Eddie Turner. A luta aconteceu em uma quadra
de handebol com três paredes e uma multidão sedenta por
sangue formando a quarta. Não havia escapatória, e a luta durou
aproximadamente uma eternidade, sem deixar de saciar a sede
de sangue de ninguém. Eu era o azarão, mas, de algum modo,
venci. E, a partir daí, meu nome ficou ligado em certos círculos
ao de Eddie Turner durante muitos anos, embora ele tivesse
saído da escola para coisas muito maiores, como a cadeia,
enquanto eu voltei à obscuridade. Quando nos tornamos amigos
depois, Domenic implicava comigo em relação a Eddie Turner —
sobre todo o dinheiro que Pete havia perdido na briga e como o
pobre Turner nunca mais foi o mesmo.
Foi estranho me tornar amigo de Domenic. Ele era o melhor
atleta de nossa turma — rápido, de peito largo e forte. As garotas
o achavam extremamente bonito. Quando ficamos mais velhos,
ouvi Domenic ser comparado, em uma aula de arte, ao Davi, de
Michelangelo. E ele tinha aquela beleza masculina, até um pouco
da presença heroica. Eu me sentia muito aquém em termos de
popularidade. Mas Domenic também surfava. Por meio de Pete,
ele tinha acesso a caras mais velhos com carteira de motorista, o
que significava que conseguia chegar à praia. Ainda assim, era
óbvio que os caras no grupo de Pete não eram surfistas sérios, e
que Domenic era incluído em seus passeios basicamente como
mascote. Então, quando ele começou a ir com minha família a
Ventura e tentou encontrar seu lugar no line-up da C Street, foi
como se sua verdadeira carreira no surfe estivesse apenas
começando. Ele era entusiasmado. Não tinha o talento de
bailarino de um Rich Wood nem nada da minha agilidade de
garoto magro no deck da prancha. Era mais como um jogador de
futebol americano agressivo em uma prancha de surfe. Mas
Domenic encontrou seu lugar em torno das fogueiras feitas com
a madeira recolhida na praia e nos revezamentos de trinta
segundos no chuveiro quente. Encontrei meu equilíbrio ao lado
de seu carisma, tornando-me um comediante de nicho,
especializado em autodepreciação. Eu fazia piada comigo
mesmo e era recompensado por gargalhadas altas e animadas.
Fomos inseparáveis por anos.
Era para Domenic que eu escrevia cartas diariamente depois
de nos mudarmos para o Havaí pela primeira vez.

***

Ao me recordar de tudo isso, fico impressionado com como a


violência definiu minha infância. Nada letal, nada horrendo, mas
básico à vida diária de um jeito que hoje parece arcaico. Garotos
maiores faziam bullying, chegavam a torturar os menores. Não
me ocorria reclamar. Lutávamos boxe nas ruas; os adultos não
davam a mínima. Eu na verdade não gostava de lutar — sem
dúvida não gostava de perder — e acho que não entro em uma
briga séria desde os quatorze anos. Mas essa era de tal maneira
a norma dos subúrbios norte-americanos (sem falar dos
havaianos) quando eu era garoto que nunca dediquei um
pensamento crítico a isso. Não havia violência exagerada na TV
na época — e nenhum tipo de video game —, mas os desenhos
animados aos quais assistíamos nas manhãs de sábado
continham conflitos violentos à moda antiga, e levávamos
alegremente essa agressividade cômica para o mundo. Eu tinha
um amigo quando era bem pequeno chamado Glen, que eu
conseguia “vencer” numa luta. Ele ficava tão frustrado que pediu
à mãe que lhe comprasse uma lata de espinafre, que ele comeu
direto da embalagem, assim como o Popeye fazia quando
precisava de força. Nós lutamos imediatamente depois. Eu
ganhei, mas disse a Glen que ele sem dúvida parecia mais forte,
o que não era verdade.
Aquilo tudo não era apenas brincadeira, é claro. Assisti a uma
ou duas brigas bem sangrentas entre caras mais velhos —
pancadarias ainda piores que a minha luta com Eddie Turner.
Tinham um fascínio pornográfico. Essas lutas eram um teatro de
crueldade, desprovidas de empatia entre os espectadores —
uma versão destilada e superdramática do ostracismo impiedoso
ao qual algumas crianças eram submetidas. Entrar na onda do
grupo. Tropeço. Minha política — que é basicamente a mesma
do meu pai: ódio pelos que praticam bullying — tem suas raízes
nos horrores daqueles dias de adolescência e nos vislumbres
terríveis que eu captava de mim mesmo.
A carnificina explícita tinha um fascínio diferente, menos
social. Os pais de Rick Townsend tinham um livro — de arte, eu
acho — com a pintura de um soldado na Segunda Guerra
Mundial no momento em que seu corpo era destruído por uma
bomba. Ele ainda estava correndo, os olhos arregalados de
agonia, os membros e o tronco, uma cascata de sangue. Um
grupo entrava escondido na sala onde o livro ficava guardado.
Um vigia permanecia postado enquanto analisávamos a imagem
proibida. Era arrasadoramente intensa, uma emoção cheia de
vergonha. Então era assim que se parecia o momento da morte.
Brincávamos de soldados o tempo todo, com pequenos
soldadinhos de plástico. Mas a realidade da guerra, que alguns
de nossos pais conheceram em primeira mão, nunca era
abordada conosco. Era um segredo que os adultos mantinham a
distância, por um bom motivo.
Alguns pais eram brutos, prontos para direcionar toda a força
contra os filhos. Não o meu, felizmente. Mas castigos corporais
ainda eram a regra em casa e na escola, até mesmo nas aulas
de catecismo que eu era obrigado a frequentar aos sábados, nas
quais as freiras usavam uma régua de madeira para bater com
força em mãos trêmulas estendidas. Na escola, eram “pancadas”
do subdiretor dos garotos — prepare-se para o pior, tente não se
borrar nem chorar. Minha professora do quarto ano, que tinha
sido militar, como frequentemente nos lembrava, puxava minhas
orelhas com tanta força quando estava irritada que eu me sentia
deformado. Mais uma vez, nunca me ocorreu reclamar. Ninguém,
pelo que eu sabia, achava errado o que ela estava fazendo.
Em casa, como meu pai trabalhava até tarde, a maior parte da
disciplina física ficava a cargo da minha mãe. Ela às vezes
ameaçava nos matar, normalmente quando estava dirigindo —
isso nos fazia calar a boca —, mas as surras que ela nos dava
não eram especialmente duras nem brutais. Na verdade, suas
palmadas doíam cada vez menos à medida que eu crescia. Por
isso ela começou a usar um cinto fino, depois outro mais grosso,
em seguida um cabide de casacos de arame — esses
machucavam mais. Nunca reagi, mas esses eram conflitos de
poder primitivos, emocionalmente dolorosos para mim, e é
provável que para ela também. Ainda assim, eu os achava
normais. Pelo menos para católicos irlandeses. Mas então
chegou um dia, quando eu tinha uns doze anos, em que minha
mãe não conseguiu mais me fazer chorar. Ela se exauriu. Eu não
gemia nem me encolhia. Ela chorou, pelo que lembro. Então
acabou. Ninguém nunca mais me bateu.
Pouco tempo depois, o que era considerado normal mudou.
Kevin recebeu toda a sua cota de surras, eu acho, mas Colleen
muito menos, e Michael, nenhuma. O consenso social de bater
em crianças estava desmoronando havia algum tempo nos
Estados Unidos. O livro revolucionário do dr. Benjamin Spock,
Meu filho, meu tesouro, publicado em 1946, era o manual de
aconselhamento consultado por minha mãe — o próprio dr.
Spock era um dos heróis dela —, e a popularidade do livro aos
poucos mudava a opinião pública sobre castigos corporais às
crianças. Quando as guerras culturais dos anos 1960
esquentaram, Spock foi figura de destaque na esquerda
antiguerra, e, em determinado ponto, bater em crianças pareceu
se tornar uma atitude medieval para muitas pessoas, incluindo
meus pais. Eu gostava de dizer a mim mesmo que as surras
antiquadas que havia recebido foram boas para mim, tinham me
deixado resistente, e eu meio que acreditava nisso. O filho
responsável sempre tinha uma compreensão construtiva. Sem
dúvida nunca culpei meus pais. Mas esse comportamento era,
como vejo agora, parte importante no nível suave de violência do
ambiente em que eu vivia enquanto criança em meados do
século XX.
O surfe era, e é, percorrido por um fio de aço de violência em
seu interior. Não estou falando dos caras violentos que estão na
água — ou, muito raramente, em terra, desafiando o direito de
alguém de surfar algum pico precioso. As demonstrações de
força, habilidade, agressividade, conhecimento do local e
respeito que determinam uma hierarquia organizacional no line-
up — uma preocupação permanente em todo pico popular — são
uma dança simiesca de dominação/submissão que normalmente
é desempenhada sem nenhuma violência física. Não, estou
falando é da bela violência das ondas quebrando. É uma
constante. Em ondas pequenas e mais fracas, é suave, benigna,
nada ameaçadora, sob controle. É só o grande motor do oceano
que nos impulsiona e nos permite brincar. Esse estado de ânimo
se modifica quando as ondas ficam mais poderosas. Surfistas
chamam ondas fortes de “energia pura”, e esta energia se torna,
em ondas ameaçadoras, o elemento crucial, a essência daquilo
que esperamos encontrar, algo para nos testar — nos envolver
loucamente ou evitar de maneira covarde. Minha própria relação
com essa substância, com esse fio de aço, apenas se tornou
mais vívida com o tempo.

***

Na segunda vez que moramos em Honolulu, naquele verão


“come on, baby, light my fire” de 1967, Domenic viajou até lá para
uma visita e ficou com minha família. Surfamos Waikiki juntos, e
tentei mostrar para ele os pontos turísticos. Eu até o levei para
ver o Rice Bowl. Ele tinha ouvido minhas histórias sobre a Sunset
Beach no South Shore. Nós nos sentamos em nossas pranchas
em Tonggs em uma manhã iluminada e ficamos olhando pelo
canal. De repente, uma série limpa se ergueu e quebrou no Rice
Bowl. Não parecia particularmente grande — não havia muito
swell naquele dia. Domenic sugeriu que remássemos até lá. Eu
disse que não. Tinha muito medo do lugar. Ele foi sem mim.
Vieram mais algumas séries. Domenic se posicionou bem,
considerando que estava sozinho e nunca tinha visto o pico.
Surfou várias ondas sem cair. Elas alcançavam no máximo um
metro e oitenta. Eu tinha surfado ondas maiores em Cliffs, até
algumas na California Street. Domenic e eu surfaríamos ondas
muito maiores nos anos seguintes, incluindo várias na verdadeira
Sunset Beach. Ainda assim, fiquei ali sentado no canal em
Tonggs, imobilizado pelo terror. Sabia que estava sendo
reprovado em um teste básico de coragem. Derrotas,
humilhações — fuga covarde —, gravadas na memória de modo
muito mais profundo que seus opostos, pelo menos para mim.
TRÊS

O CHOQUE DO NOVO

Califórnia, 1968

A novidade no surfe — aquilo em que Glenn Kaulukukui


aparentara estar na vanguarda em Waikiki, pelo menos para mim
— veio a ser a revolução da pranchinha. Por sorte, vi seu
principal progenitor em ação no inverno seguinte, pouco antes
que o movimento underground viesse à tona. Ele era um
australiano chamado Bob McTavish. Eu o vi em Rincon, um
pointbreak ao norte de Ventura, onde eu começara a surfar com
Domenic quando ele conseguia descolar uma carona até lá.
Rincon, agora famosa de modo cafona como a Rainha da Costa,
na época era conhecida simplesmente como a melhor onda da
Califórnia, uma direita longa e oca de inverno com qualidade
impressionante. Era um dia grande, com maré baixa no fim da
tarde, e estávamos descansando nas pedras da pequena
enseada quando alguém gritou e apontou para uma série forte
que se erguia em direção ao céu em Second Point. Poucas
pessoas surfavam Second Point, também conhecido como
Indicator — indicador —, quando estava daquele tamanho. A
grande onda em Rincon era First Point. Remava-se até Second
Point para escapar do crowd em dias de ondas pequenas,
conformando-se com aquelas ondas inferiores. Havia histórias
sobre dias perfeitos enormes, quando era possível surfar a partir
de Second Point, passando por First Point e chegando à
enseada, mais de setecentos metros em alta velocidade, mas eu
com certeza nunca testemunhara aquele feito.
Agora havia alguém fazendo aquilo. E, ainda por cima, em
uma prancha que parecia ter jatos instalados nas bordas. Meu
olho na verdade tinha até dificuldade em acompanhar as
explosões de velocidade que cada cavada produzia. O surfista
ficava, de repente, uns dez metros à frente de onde deveria estar,
segundo minha compreensão da física do surfe. Ele estava
obtendo aceleração parecida em suas melhores manobras. O
resultado era que passava por seções longas e pesadas que
normalmente acabariam com a surfada. Parecia que, toda vez
que eu piscava, surgia algum filme em minha cabeça, e o surfista
reaparecia no horizonte mais à frente do que deveria estar.
Algumas das primeiras descrições publicadas sobre o surfe — as
de Jack London e Mark Twain, ambas resultado de visitas ao
Havaí, as mais frequentemente citadas — estão cheias de
tentativas desajeitadas de captar uma ação que era rápida,
complexa e estranha demais para que o observador obtivesse
qualquer sentido visual. Essa era a sensação de assistir a
McTavish costurar aquela onda de dois metros e meio em
Rincon. Ele passou pela área onde se dropava o First Point,
atravessando o crowd, como se ela fosse apenas outra seção a
superar, e continuou, fazendo uma manobra radical atrás da
outra, por todo o caminho até a enseada.
Há poucos momentos grandiosos melodramáticos no surfe —
não é esse tipo de esporte —, mas eu me lembro de pessoas
correndo pela praia, eu entre elas, para cumprimentar McTavish
quando ele chegou à areia. Só queríamos ver a prancha. Não era
como nenhuma que eu já tivesse visto. Era absurdamente curta
para os padrões da época, e o fundo tinha formato de V, com
duas depressões que ficavam cada vez mais profundas e
pronunciadas na direção da rabeta. Eu não tinha palavras — nem
mesmo “fundo em V” — para descrever o que estava vendo, e
nenhuma noção de quem era McTavish. Ele era baixo, sorridente,
fisicamente forte. Tudo o que ele disse quando passou foi “Dia!”,
começando a longa corrida de volta até Second Point, com sua
monstruosidade feita em casa embaixo do braço.
Nada foi igual depois disso. Em alguns meses, as revistas de
surfe estavam cheias de pranchas com fundo em V e outros
designs radicais, todos impressionantemente mais curtos e leves
do que as pranchas que as pessoas usavam havia décadas. A
revolução emanava da Austrália e do Havaí, e seus gurus eram
McTavish e dois americanos, George Greenough e Dick Brewer.
Os surfistas de teste foram alguns dos principais nomes do
esporte, com destaque para Nat Young, um campeão mundial
australiano. Mas a Califórnia, ainda capital imperial do esporte,
converteu-se avidamente e em massa à nova fé. O próprio surfe
mudou com a velocidade e a ultramobilidade da prancha nova. O
surfe de pé no bico da prancha morreu da noite para o dia.
(Assim como manobras como o drop-knee cutback.) Tubos e
viradas fortes, fluidas e com raio curto, subindo verticalmente até
o lip e surfando sempre o mais perto possível da espuma —
essas não eram exatamente ideias novas, mas foram elevadas a
objetivos do surfe em evolução e estavam todas sendo
realizadas em níveis jamais vistos.
Era 1968. Por todo o oeste, com sua juventude inquieta,
muitas coisas — sexo, sociedade, autoridade — estavam sendo
repensadas ou radicalmente questionadas, e o mundo pequeno
do surfe se juntou, a seu modo, ao momento de insurgência. A
revolução da pranchinha era inseparável do zeitgeist: cultura
hippie, acid rock, alucinógenos, misticismo neo-oriental, estética
psicodélica. O movimento pela paz, que acabara de chegar ao
auge nos Estados Unidos, nunca desenvolveu uma ala coerente
de surfistas (o movimento ambiental foi outra história), mas o
mundo do surfe se tornou, por mais incoerente que fosse, e
apesar de Francis Ford Copolla, amplamente antiguerra. Muitos
surfistas fugiram da convocação militar. Até surfistas famosos,
caras que mal conseguiam remar para lugar algum sem serem
fotografados, mas que agora eram procurados pelas autoridades,
tentaram viver na clandestinidade.
Na primavera, consegui minha primeira pranchinha. Ela veio
de um grande fabricante de pranchas chamado Dewey Weber, de
Venice Beach, que lutava, como todo fabricante de pranchas,
para atender à nova demanda. O modelo que consegui se
chamava Mini-Feather. Era bulbosa e primitiva, mas naquele
momento era o que havia de melhor e mais avançado. A minha
tinha pouco mais de dois metros. Eu podia levá-la pelas bordas
com uma só mão. Guardei minha arduamente conquistada
segunda Harbour Cheater, que mal tinha um amassadinho, no
alto das vigas da garagem e nunca mais a usei. Aos quinze anos,
com um domínio sólido do básico, eu estava em uma boa idade
para fazer a troca para pranchinhas. Ainda era muito leve, mas
forte o suficiente para botar a Mini-Feather numa borda só, subir
até o lip sem perder o controle e fazer os drops atrasados que
uma prancha pequena, com sua pouca flutuação e velocidade
lenta de remada, exigia. (As longboards, como de repente
passaram a ser chamadas, flutuam mais alto na água devido a
seu maior volume de espuma de poliuretano, por isso sua
remada é bem mais rápida.) Nessa época, eu conhecia mais
surfistas que já tinham idade suficiente para dirigir, por isso
comecei a escapar dos fins de semana em família em Ventura —
a California Street era um pouco lenta e fraca para pranchinhas
— e a surfar os picos de swell de sul mais perto de Los Angeles:
Secos, County Line, First Point Malibu.
First Point Malibu era o centro da arena do surfe, e foi assim
desde os dias de Maldosamente Ingênua, no fim dos anos 1950.
Era ridiculamente cheio mesmo quando as condições estavam
péssimas. Em dias bons, era uma bela onda, um pointbreak para
a direita, longo e mecânico, que se abria acompanhando a
extensão de uma bancada de pedras por todo o caminho até a
areia. Havia alguns surfistas de alto nível que ainda surfavam em
Malibu apesar dos crowds, mas a maioria tinha deixado o local. O
rei incontestado do pico quando surfei ali pela primeira vez era
Miki Dora, um misantropo de beleza misteriosa e semblante
fechado com um estilo sutil perfeitamente adequado à onda. Ele
passava por cima de pessoas que se colocavam em seu caminho
e desprezava as massas descuidadas de surfistas com suas
frases elegantes publicadas nas revistas, tudo isso enquanto
vendia o modelo de prancha que levava sua assinatura, Da Cat,
em propagandas adjacentes. Mas a Da Cat era um pranchão.
Com a chegada das pranchinhas, muitas lendas do surfe foram
rudemente relegadas à irrelevância. First Point Malibu se tornou
uma loucura ainda maior que antes. Com os pranchões era
possível, pelo menos em teoria, que pouquíssimos surfistas
dividissem uma onda. O estilo frenético de viradas rápidas
exigido pelas pranchinhas e a necessidade de estar sempre no
ponto onde a onda quebrava ou muito perto dele significavam
que, na verdade, agora havia espaço para apenas um cara por
onda. O resultado foi tumulto.
Estranhamente, não me importei. Eu havia alcançado um
estágio em que realmente me sentia mais rápido, equilibrado,
mais apto que a maioria das pessoas ao meu redor, e gostava de
desviar delas, interrompendo as ondas dos outros surfistas,
assustando-os com viradas bruscas para que saíssem de ondas,
conquistando-as para mim, guiando minha Mini-Feather com
força pelas curvas prazerosas do inside de Malibu como um carro
esportivo por uma pista de corrida.
As maiores satisfações da pranchinha seriam encontradas em
outro lugar, longe dos crowds. Primeiro e mais importante foram
os tubos, ou barrels. Uma prancha curta era capaz de se
encaixar muito mais profundamente e com maior firmeza no
interior de uma onda que um pranchão. Verdadeiros tubos —
passagens bem-sucedidas através das câmaras internas de uma
onda cavada — de repente se tornaram, mais do que nunca,
objetivos atingíveis. Em Zuma Beach, Oil Piers, Hollywood-by-
the-Sea em Oxnard, ou em qualquer lugar que tivesse ondas
cavadas e fortes, havia um novo código de risco e recompensa
que, com a cabeça aberta, no melhor sentido dessa expressão
agourenta, agora era uma possibilidade real e feliz. “Botar para
dentro” — tentar encontrar o tubo direcionando o bico da prancha
paralelamente à parede vertical da onda quando ela quebra, em
vez de apontar para a praia, na direção da parte horizontal da
onda — tinha seus riscos, é claro, se não se emergisse em
segurança do tubo, o que normalmente não acontecia. Ondas
cavadas costumam quebrar em pedras, recifes e bancos de areia
rasos. Cair no coração de uma onda cavada pode levar — e
frequentemente leva — a uma colisão com o fundo. A própria
prancha se transforma em uma espécie de míssil sem direção.
O desastre em um tubo do qual me lembro mais claramente
naquele primeiro verão da pranchinha, porém, foi de um tipo
diferente. Aconteceu no México, em um pico remoto de fundo de
recife conhecido como K-181. Eu estava acampando lá com os
Becket, que, nessa época, tinham comprado um velho ônibus
escolar e o reformado, acrescentando beliches e uma cozinha,
para uso familiar fora da cidade. O surfe era de bom tamanho,
liso, vazio. Bill e eu explorávamos os limites do desempenho das
nossas pranchinhas novas. Entrei em um tubo profundo e suave
verde-azulado, com todos os nervos tensionados na direção da
luz do sol à frente, com os ombros curvados. Quando achei que
ia sair com tranquilidade, ouvi um horrível tchunk, minha prancha
parou de repente e voei por cima do seu bico. Aparentemente eu
tinha passado por cima de Becket. Do interior do tubo, não o vi
remando na direção da minha onda — fora pego na arrebentação
e tentava furar as ondas. Ele reparou que eu desapareci, achou
que talvez eu ainda estivesse ali em algum lugar e abandonou o
barco em silêncio. Então eu tinha atingido apenas a prancha, não
Becket. Ainda assim, minha quilha abrira uma fenda profunda na
lateral da prancha dele, quase até a longarina. Nossas pranchas
ficaram presas uma na outra, em um emaranhado horrível de
fibra de vidro e poliuretano despedaçados, e tivemos que fazer
força para separá-las. O dano foi todo do lado dele. Bill ficou
arrasado, mas não esquentou a cabeça. Afinal de contas, eu
estava olhando o rosto de Deus antes de ele entrar em meu
caminho.
Fabricantes de pranchas ficaram com as lojas cheias de
pranchões que não conseguiam vender. Alguns surfistas estavam
encalhados com pranchões novos, comprados às vésperas da
revolução. Era essa a situação de dois amigos meus. Vamos
chamá-los de Curly e Moe. Eles investiram todas as economias
em pranchas que do nada haviam se tornado completamente
obsoletas — lindas, mas constrangedoras, não mais
apresentáveis em nenhum pico de surfe de respeito. Então
alguém nos falou do seguro residencial. Dizia-se que, se seus
pais tivessem o seguro, ele cobria o roubo de pranchas de surfe
e as reembolsava a preço de compra. Curly e Moe estavam
quase certos de que os pais tinham o seguro. Ninguém ia roubar
suas pranchas — eles não podiam dá-las —, mas talvez,
pensamos, pudéssemos nos livrar delas, registrar como furto, e
então receber dinheiro suficiente para comprar pranchinhas. Valia
a pena tentar. Por isso, fomos de carro até as montanhas Santa
Monica e subimos por uma estrada usada para combater
incêndios florestais, então levamos as pranchas por uma trilha
dentro da mata até chegarmos ao alto de um penhasco. Talvez a
gente tenha murmurado algumas palavras ritualísticas. Com
certeza, as emoções estavam à flor da pele. A prancha de Moe,
em especial, parecia imaculada — um modelo assinado por
Steve Bigler com deck de resina azul-clara, as bordas de cobre
sólido —, e eu sabia que tê-la e surfar com ela tinham sido seus
desejos mais intensos por anos. Mas ele e Curly se aproximaram
da beira do penhasco e arremessaram no ar as pranchas fora de
moda. Elas atingiram as rochas muito abaixo, girando e se
quebrando em meio a arbustos retorcidos.
Não lembro se o golpe do seguro funcionou. Sei apenas que,
se aquela Bigler em perfeito estado tivesse simplesmente sido
deixada em uma garagem, valeria milhares de dólares hoje.
Porém, o que me interessa é o que se passava em minha
cabeça. Sei que não vi nada de errado com a fraude no seguro,
assim como não via nada de errado com o contrabando de
drogas ou qualquer outra coisa que eu considerasse um crime
sem vítimas. Eu apoiava com veemência fugir do alistamento
militar, algo ainda muito distante para mim na época, mas que já
era uma realidade para os irmãos mais velhos de alguns amigos.
A Guerra do Vietnã era errada, completamente podre. Mas os
militares, o governo, a polícia e as grandes empresas estavam
todas se cristalizando na minha mente em uma única massa
opressora: o Sistema, o Homem. Essas eram questões políticas
padrão da juventude na época, é claro, e eu logo estava
colocando as autoridades escolares no pacote das forças
inimigas. Minha atitude despreocupada, quase de desdém em
relação à lei, era principalmente um resquício da infância, quando
grande parte da glória era o desafio e o que você conseguia fazer
sem ser pego.
Entretanto, uma insatisfação mais consciente, analítica e
vagamente marxista também criava raízes no meu
posicionamento político de meados da adolescência. (E
desintegrar, intelectual e emocionalmente, a massa de poder
institucional — descobrindo como as coisas funcionavam de
verdade, além de como elas pareciam no conjunto — se revelaria
um trabalho de muitos anos.) Enquanto isso, o surfe se tornou
um excelente refúgio do conflito; um motivo cheio de alegria,
exigente e fisicamente exaustivo para viver. Além disso, em sua
inutilidade vagamente fora da lei e seu desligamento do trabalho
produtivo, ele expressava muito bem a minha insatisfação.
Onde estava meu senso de responsabilidade social? Não
estava muito evidente. Participei de passeatas pela paz. Ainda
era bom aluno, o que na verdade não provava nada, exceto que
eu gostava de ler e não me arriscava. Dei aulas particulares de
matemática por um tempo para duas garotas afro-americanas
estudiosas em Pacoima, uma cidade pobre na extremidade leste
do vale. Duvido que tenham aproveitado muito nossos encontros.
Sei que eu me sentia um impostor — um garoto da idade delas
brincando de professor. Minha mãe, que de algum modo
conseguia permanecer politicamente ativa enquanto criava
quatro filhos, me obrigou a percorrer a vizinhança a favor de Tom
Bradley, adversário de Sam Yorty para a prefeitura de nosso
distrito em Woodland Hills. Se ganhasse, Bradley seria o primeiro
prefeito negro de Los Angeles, por isso aquela eleição parecia
histórica. Bradley estava bem nas pesquisas em nosso distrito, e
nós, otimistas. Então Yorty venceu a eleição, e os resultados
mostraram claramente que os vizinhos tinham mentido quando
disseram a nós, militantes, que iriam votar em Bradley.
Aparentemente, essas reviravoltas no interior da cabine de
votação eram um fenômeno bem conhecido entre eleitores
brancos. Ainda assim, fiquei furioso, e minha descrença em
relação à política organizada e à grande massa que eu estava
aprendendo a chamar de burguesia aumentou.
Como todos sabem, Robert Kennedy foi assassinado na noite
das primárias de 1968 da Califórnia. Assisti à notícia em uma
pequena TV em preto e branco, sentado de pernas cruzadas aos
pés da cama da minha namorada. O nome dela era Charlene.
Nós tínhamos quinze anos. Ela estava dormindo, achando que
eu havia ido embora depois de nossos habituais amassos
noturnos, apimentados porém inconclusivos. Entretanto, eu ficara
assistindo à TV depois de ver que Kennedy fora baleado.
Passava da meia-noite, e os pais de Charlene tinham saído para
acompanhar o resultado da votação com os amigos. Eram
ativistas do Partido Republicano. Eu os ouvi chegar de carro e
entrar em casa. Sabia que o pai de Charlene, um homem mais
velho, sempre vinha lhe dar um beijo de boa-noite, e sabia muito
bem como sair por sua janela e descer cuidadosamente até a
rua. Ainda assim, fiquei ali parado, sem pensar, mas com uma
resolução cruel, até que a porta do quarto se abriu. O pai dela
não teve um ataque do coração ao me ver assistindo
calmamente à TV de cueca, embora pudesse ter tido. Peguei as
roupas e saltei pela janela antes que ele dissesse qualquer coisa.
A mãe de Charlene ligou para a minha mãe, que teve uma
conversa séria comigo sobre os diferentes tipos de garota,
enfatizando a santidade das “boas meninas”, como Charlene,
que pertenciam a algum clube de debutantes. Fiquei
envergonhado, mas não arrependido. Charlene e eu nunca
tivemos muito sobre o que falar.
Na verdade, naquela época eu passava mais noites na casa
de Domenic do que na minha. Assim como a permanente festa
na praia dos Becket em Newport, lá era um lugar mais relaxado
que o lar arrumado, ao estilo “faça seu dever de casa”, que meus
pais administravam. Os Mastrippolito moravam em uma casa de
dois andares escura e irregular que datava do início do vale de
San Fernando, anterior ao surgimento de subdivisões como as
nossas. Ainda havia plantações de laranja do outro lado da rua. A
mãe de Domenic, Clara, foi uma das primeiras devotas de
programas de rádio de direita, e eu e ela tínhamos discussões
terríveis sobre direitos civis, a guerra, Barry Goldwater,
comunismo. Ela adorava o programa de TV Firing Line, de
William F. Buckley. Eu só assistia quando meu herói, o ator
Robert Vaughn — que não apenas era o agente da U.N.C.L.E.,
mas também uma espécie de cientista político, com ph.D. da
Universidade da Califórnia em Los Angeles — ia ao programa.
Vaughn era um liberal articulado que posteriormente publicou sua
tese, uma história crítica do anticomunismo em Hollywood e, em
minha opinião, arrasou com o falastrão Buckley.
O pai de Domenic, o Grande Dom, não se importava com
nada além de esportes. Oficialmente era atacadista de bebidas,
eu acho, mas na verdade era agenciador de apostas. Trabalhava
de casa e sempre tinha meia dúzia de TVs e rádios ligados em
seu escritório, transmitindo jogos e corridas. Raramente vestia
mais que seu roupão de banho e estava constantemente
distraído, ao telefone, rabiscando números, observando os
arredores em meio à fumaça de seu cigarro. Mas às vezes saía e
se juntava a barulhentas partidas familiares de baralho em torno
da mesa da sala de jantar. Em certos dias, a família de repente
estava rica e precisava gastar dinheiro rápido — comprar um
carro novo, coisas assim. Outras vezes, a situação ficava ruim, e
o dinheiro, apertado, especialmente depois que o Grande Dom
foi preso e mandado para a cadeia por um tempo. Mas o clima
em geral, repito, era descontraído. Muitos párias se reuniam em
torno da casa dos Mastrippolito — amigos alcoólatras de Clara,
amigos marginais de Pete sem nenhum outro lugar para ir. Eu.
Eu sempre me sentia bem-vindo, mesmo como um iludido
simpatizante comunista. A casa de Domenic ficava a mundos de
distância da minha, onde a Time e a New Yorker estavam
sempre organizadamente empilhados e uma terceira fatia de
bacon no café da manhã era proibida.
Domenic e eu, piquenique da família Mastrippolito, por volta de 1967

***

Meu pai queria que eu escrevesse um artigo para uma revista.


Ele havia começado a fotografar e se tornara
surpreendentemente bom. Talvez isso não devesse ter sido uma
surpresa, já que ele estava na indústria cinematográfica e sabia
tudo sobre lentes e câmeras. O tema favorito dele eram os filhos,
e meu pai enchia álbuns com fotos nossas. Também tirou
algumas fotos de surfe minhas, de Domenic e de Becket em
Rincon, Secos e Zuma, onde teve a ideia do artigo. Meu pai
reparou que eu estava sempre grudado em revistas de surfe.
Sabia que eu gostava de escrever. Se eu escrevesse uma
reportagem para uma revista de surfe, ele poderia fornecer as
fotos. Tentei explicar que as revistas de surfe não se importavam
com texto, só com imagens, e que ele nunca na vida iria tirar uma
foto que fossem publicar — a menos que se mudasse para o
North Shore e seguisse os principais surfistas por toda parte por
alguns invernos e tivesse muita, muita sorte.
“Bobagem”, disse ele. O artigo era o que importava. Se
existisse, ele podia fornecer as fotos adequadas.
Essa discussão me deixou maluco. Uma das razões era a
teimosia do meu pai e sua recusa em me ouvir, embora eu
soubesse que tinha razão. Depois houve também a forma como
aquilo acentuava para mim a distância entre o surfe comum,
meramente competente que eu e meus amigos praticávamos, e
os feitos extraordinários e heroicos dos caras que víamos nas
revistas. Porém, acima de tudo, isso era a extensão de outra
discussão mais genérica entre nós. Meu pai via que eu estava
sempre escrevendo em cadernos, redigindo cartas, trabalhos
para a escola. Sabia que, no nono ano, eu tinha sido editor da
revista literária da minha escola (no auge das escolas públicas da
Califórnia, havia revistas literárias até no ensino fundamental), na
qual foram publicados poemas e contos meus. O que eu devia
fazer em seguida, dizia ele, era começar a escrever para
publicações de verdade. Não importava o que fosse —
resultados esportivos, texto para anúncios, obituários. A questão
era a disciplina, os prazos. Concluí que ele estava pensando em
um jornal local, embora eu não soubesse sequer se Woodland
Hills tinha um. Mas ele estava pensando mesmo, eu achava, em
sua própria cidade natal, Escanaba, onde ele começara como
foca. A carreira dele no jornalismo desviara para a produção de
TV e cinema, mas meu pai ainda sabia como a área funcionava,
ou acreditava que sabia. E provavelmente sabia; eu apenas não
queria ouvir. Meus escritores favoritos na época eram
romancistas (Steinbeck, Sinclair Lewis, Norman Mailer!) e poetas
(William Carlos Williams, Allen Ginsberg!), não jornalistas. Não
me interessava por redações de jornal. Além disso, eu morria de
medo que me dissessem que algo que eu tinha escrito não era
bom. Por isso, não escrevia nada para publicação; nem mesmo
para o jornal da escola no ensino médio.
Meu pai, por seu histórico de workaholic filho da Grande
Depressão, tinha um lado sonhador de rato de praia. Adorava
fugir para a beira das baías; minhas lembranças mais antigas
dele são cheias de barcos, píeres, gaivotas. O simples fato de
estar em um barco era sua ideia de felicidade. Antes de se casar,
vivera em um veleiro ancorado na baía de Newport. Era uma
chalupa pequena de madeira, e eu gostava de estudar as fotos
em preto e branco que encontrei do meu pai no leme —
observando a direção do vento, o barlavento na bujarrona, o
cachimbo no canto da boca, a expressão atenta mas empolgada,
com uns vinte e dois, vinte e três anos. A história era que a
primeira condição de minha mãe para se casar foi que meu pai
se mudasse do barco, que acabou vendido antes que eu
nascesse.
Eu não compartilhava da paixão de meu pai pela vela, mas
amava o mar, e o vi, desde cedo, como meu próprio meio de
escape dos esforços maçantes, do trabalho desagradável em
terra. Lembro-me de um dia de verão na ilha de Catalina.
Tínhamos navegado cerca de quarenta quilômetros em nosso
Cal-20, a chalupa mais barata e popular de fibra de vidro à venda
na Califórnia à época. Ancoramos no porto de Avalon. A água era
maravilhosamente transparente. Quando um navio de
passageiros conhecido como Grande Vapor Branco chegava do
continente, os garotos nadavam até ele e gritavam para que os
turistas no convés jogassem moedas. Eu tinha provavelmente
oito ou nove anos e me juntei a eles, perseguindo as moedas de
dez e cinco que caíam perto de mim, revirando e brilhando nas
profundezas turquesa. Guardávamos na boca o dinheiro que
pegávamos enquanto gritávamos e brigávamos por mais.
Lembro-me de voltar nadando para o barco da família e, na
cabine do comandante, cuspir minhas moedas nas mãos. Eu
tinha o suficiente para um corn dog, talvez até um para Kevin
também. Era bobagem, mas eu nutria essa vaga ideia de que
podia ser completamente feliz como um vagabundo, até um
mendigo, perto do mar. Eu me pergunto se meu pai percebeu
isso e ficou preocupado por ele mesmo ser um pouco assim
também.
Na verdade, ele alcançava um bom equilíbrio entre um
emprego infinitamente exigente e a vela, um hobby, velejar, que
tinha fama de levar as pessoas à falência, e fizera isso com um
orçamento muito apertado, sem sacrificar o tempo com a família.
Ele se transformou em uma espécie de tirano, é verdade, um
capitão Bligh de fim de semana no timão quando as coisas
davam errado, o que acontecia com frequência. Ele, Kevin e eu
certa vez abalroamos um Lehman 10 depois de virar em uma
onda assustadoramente grande em Carpinteria Beach, um local
de ancoradouro que costumava ser calmo. O topo do mastro
perfurou o fundo, quebrou e penetrou no casco. Nós três fomos
lançados como montadores de touro na direção do cordame.
Quando os destroços começaram a ser jogados por cima do
barco, Kevin, na época com quatro ou cinco anos, imediatamente
começou a mergulhar, ainda de tênis, para recuperar objetos
metálicos como o isqueiro prateado de papai. Ainda consigo ver
sua expressão de prazer triunfante cada vez que vinha à
superfície com algum tesouro perdido.
O que podia com razão ter preocupado meu pai era o tipo
peculiar de monomania antissocial e exagerada que um
comprometimento sério com o surfe quase sempre envolvia.
Surfar ainda era algo que se fazia — que eu fazia — com
amigos, mas a coisa do clube, a parte dos esportes organizados,
estava desaparecendo rápido. Eu não sonhava mais em vencer
competições, como sonhara em arremessar para os Dodgers. O
novo ideal emergente era a solidão, a pureza, ondas perfeitas
longe da civilização. Robinson Crusoé, The Endless Summer.
Era um caminho que afastava da cidadania, no sentido antigo da
palavra, na direção de uma fronteira apagada, onde iríamos viver
como bárbaros modernos. Não era o devaneio do vagabundo
feliz. Era mais profundo que isso. Perseguir ondas com
dedicação era algo fundamentalmente egocêntrico e ao mesmo
tempo abnegado, dinâmico e ascético, radical em sua rejeição
dos valores do dever e das conquistas convencionais.
Escapei da família ainda jovem, e o surfe foi minha rota de
fuga, minha desculpa para a ausência. Não podia ir para Ventura
porque tinha uma carona para Malibu, onde as ondas sem dúvida
estariam melhores. Eu dormia na casa de Domenic. Não podia
sair para velejar porque tinha uma carona para Rincon, ou
Newport, ou Secos, e havia um swell. Meus pais me deixavam ir
sempre sem protestar, de um modo que agora me parece
estranho. Mas naquele tempo não era. A criação dos filhos
entrara, ao menos nos subúrbios onde morávamos, em uma
época de extremo laissez-faire. Eu podia, até certo ponto, cuidar
de mim mesmo; meus pais tinham três filhos mais novos com
que se preocupar. Minha irmã, Colleen, acabou sendo a
velejadora de nossa geração.

***

O sonho da solidão do surfe “de volta à natureza” tinha um efeito


colateral previsível: forte nostalgia. A maioria das histórias que eu
escrevia em meus diários envolvia viagens no tempo, mais
frequentemente para uma antiga Califórnia. Imagine voltar à
época dos índios Chumash, ou das missões espanholas, se
fosse possível levar uma prancha de surfe moderna junto. Malibu
tinha quebrado exatamente daquele jeito, sem surfe, por séculos,
eras. Provavelmente você seria venerado como um deus pelos
locais quando eles o vissem surfar, iriam alimentá-lo, e você
poderia surfar ondas fantásticas com concentração perfeita —
posse incontestável, habilidade acumulada — pelo resto dos
dias. Havia algumas fotos no Surfing Guide to Southern
California, guia do surfe no sul da Califórnia, que ilustravam, em
minha mente, a margem mínima de tempo pela qual tínhamos
perdido o paraíso. Uma delas, de Rincon, fora tirada em 1947 da
montanha por trás do pico em um dia totalmente liso com ondas
de três metros. A legenda, desnecessariamente, convidava o
leitor a observar “a impressionante ausência de pessoas”. A outra
retratava Malibu em 1950. Mostrava um surfista solitário
deslizando por uma parede de quase dois metros e meio, com
pessoas em primeiro plano brincando na areia sem lhe dar a
menor atenção. O surfista era Bob Simmons, um brilhante
recluso que basicamente inventou a prancha moderna com
quilha. Ele se afogou surfando sozinho em 1954.
Porém, o Surfing Guide to Southern California não vendia
nostalgia. Era otimista e pragmático demais para isso. O livro era
uma análise meticulosa e prática ao extremo de quase trezentos
picos de surfe entre Point Conception e a fronteira mexicana. Era
também fartamente ilustrado com fotos de surfe, vistas aéreas da
costa e mapas, cheio de informação específica sobre a direção
de swells, efeito de marés, perigos embaixo d’água e regras de
estacionamento. Mas os maiores prazeres estavam em sua
prosa clara e direta, a avaliação sábia das qualidades das
diferentes ondas, seus pequenos trocadilhos e piadas internas,
as demonstrações de entusiasmo discretas mas profundamente
sentidas. Heróis locais obscuros, como Dempsey Holder, que
surfava sozinho havia décadas um pico de águas profundas
assustador chamado Tijuana Sloughs, bem perto da fronteira
mexicana, recebiam tranquilamente o espaço merecido dos
autores do guia, Bill Cleary e David Stern. E Cleary e Stern
tinham um ponto de vista irônico diante do caos contemporâneo.
A legenda para a foto de um grande enxame de loucos tentando
pegar a mesma marola de quinze centímetros: “Surfe, um
esporte individual em que um homem solitário emprega
habilidades adquiridas com esforço contra as forças selvagens
do poderoso oceano... Malibu, swell de oeste.”

***

Os avós de Domenic tinham construído um depósito de vinho de


um vinhedo que não existia mais, e a bebida estava se
transformando em vinagre em galões de plástico azul no galpão
atrás da casa dele. Passamos a nos servir de uma jarra nas
noites do fim de semana, e a bebíamos com esforço, gole após
gole, no escuro e à beira de uma manilha pluvial atrás do celeiro.
A noite quente do vale ficava confusa e hilariante. Eu adorava as
imitações de Domenic de seu avô senil e de bom coração, cuja
exclamação favorita era, por alguma razão, “Murphy, Murphy,
Murphy!”. Certa vez tentei fazer uma contribuição à nossa
provisão de bebida ao saquear o armário que meu pai fazia de
bar e derramando um dedo de cada garrafa em uma caixa de
leite. Não importava que eu estivesse misturando bourbon, licor
de menta e gim — os pequenos furtos individuais nunca seriam
notados. E não foram. Mas Domenic e eu passamos muito mal
com o preparado. Só a débil supervisão em sua casa permitiu
que não fôssemos pegos com os vômitos e as ressacas.
Não que beber fosse considerado grande coisa por lá. O vinho
corria solto durante as refeições, bem ao estilo europeu. O
contraste com a minha casa era, como sempre, enorme. Meus
pais, por razões já mencionadas, bebiam muito pouco, eram
cautelosos, sociais. Tinham muitos amigos que bebiam, e o
armário de bebidas estava sempre abastecido, mas seus filhos
não sentiam nem cheiro de vinho. Quando notei a abstinência
deles na adolescência, identifiquei-a apenas como mais um dos
sintomas de seu “jeito tenso”.
Mas era a maconha que demarcava a diferença entre nós e
eles, aquela brilhante divisão geracional entre o que era legal e o
que não era. Minha timidez em relação à maconha, ao conhecê-
la no Havaí, desapareceu quando, alguns meses depois, durante
meu primeiro ano no ensino médio, ela chegou a Woodland Hills.
Descolamos os primeiros baseados com um amigo de Pete. A
qualidade da droga era horrível — as pessoas a chamavam de
palha mexicana —, mas a onda era tão maravilhosa, tão
libertadora dos sentidos, tão cerebral em comparação com os
efeitos do vinho, que acho que nunca mais abrimos outro
garrafão no celeiro da casa de Domenic. As risadas eram mais
intensas e melhores. E a música que era apenas boa, o rock and
roll da trilha sonora das nossas vidas, se transformou em êxtase
e profecia. Jimi Hendrix, Dylan, The Doors, Cream, os Beatles
tardios, Janis Joplin, Rolling Stones, Paul Butterfield — a música
que eles estavam fazendo, com o impacto e a beleza
amplificados mil vezes pela droga, transformou-se em rito
sacramental, simplesmente inexplicável para os não iniciados.
E os aspectos cerimoniais de fumar maconha — descolar com
a rede de milhões de pequenos traficantes, desbelotar, apertar os
baseados, ir escondido para lugares (alto de morros, praias,
terrenos vazios) onde parecia seguro fumar em pequenos grupos
de dois, três ou quatro foras da lei, e depois rir e se divertir juntos
— assumiam forte aspecto tribal. Ali estava a “contracultura” solta
no mundo, com todas as suas afinidades e inspirações, mas o
hábito também representava, mais imediatamente, mudanças em
nossas vidas pessoais. Garotos, e também garotas, que eram
“caretas” se transformaram em estranhos. Mas que diabo era
uma debutante mesmo? Em relação aos adultos, tornou-se cada
vez mais difícil não aderir àquele horrível lema do YIP, o Partido
Internacional da Juventude, sobre não confiar em ninguém com
mais de trinta anos. Como pais, professores, treinadores podiam
compreender a loucura inevitável de cada momento, percebê-la
por completo? Nenhum deles tinha pegado a Highway 61.
Becket, que morava no ultraconservador Orange County,
soube das coisas um pouco mais tarde que nós, nos subúrbios
de Los Angeles. Ele crescera vinte centímetros em um ano e, de
repente, media um metro e noventa e oito e jogava no time de
basquete da escola. Seus colegas de equipe tinham o cabelo
curto raspado dos lados e eram tementes a Deus. Eles não
acreditaram quando lhes contei, em uma visita a Newport, que a
maconha, a erva do mal que agora estava em todos os
noticiários, também marcava presença em sua elegante cidade
praiana. Falei que, se me dessem 10 dólares e uma carona até o
píer, eu podia conseguir para eles vinte e cinco gramas em uma
hora. Eles pagaram para ver, e cumpri o combinado em meia
hora. Ficamos chapados na casa dos pais do armador em Lido
Island, e fui para casa na manhã seguinte.
Dois meses depois, dormindo no quartinho que dividia com
Kevin e Michael, ouvi uma batida na janela. Olhei para fora, e lá
estava Becket. Era sexta-feira à noite, e Becket sussurrou para
mim que ele e os amigos tinham por perto uma casa sem adultos
para o fim de semana — eu devia ir com ele até Newport. Os
amigos de Becket esperavam em um carro na entrada da minha
casa. Essa visita à meia-noite, essa proposta — a situação em si
não tinha precedentes. Mas o que me chamou atenção foi a
camisa de Becket. Era diáfana — muito fina e um tanto reluzente
ao luar. Não tinha nada a ver com ele, por isso me contou tudo o
que eu precisava saber. Aparentemente, tinham sido dois longos
meses no time de basquete da Newport Harbor High. A
conversão em massa dos jogadores às drogas me pareceu
engraçada. Porém, mais tarde, quando alguns deles largaram o
time, e até mesmo a escola, não fiquei orgulhoso de meu papel,
por mais que incidental, na colisão entre alguns adolescentes de
Newport, suas famílias e as ondas de choque sociais globais de
1968.
Não foi muito diferente em minha escola, a William Howard
Taft High. O campus já estava tomado por conflitos de sistemas
de valores religiosos e seculares, principalmente por causa da
Guerra do Vietnã. Os esportes de equipe estavam
definitivamente fora de questão para estudantes que se opunham
à guerra — os treinadores eram os membros mais rígidos de um
corpo docente e administrativo em geral conservador e pró-
guerra, e não se envergonhavam de atormentar garotos que
suspeitavam serem comunistas. Tive dois professores de inglês,
o sr. Jay e a sra. Ball, que mudaram o curso de minha vida ao me
apresentarem aos prazeres difíceis de Melville, Shakespeare,
Eliot, Hemingway, Saul Bellow, Dylan Thomas e, o mais
devastador, James Joyce. Eu via agora, em Ventura, um mar
verderranho, o mar encolhescroto. Os vagabundos do velho
parque de diversões em C. Street agora escapavam de
Dublinenses. Eu me tornei, em minha própria mente, Stephen
Dedalus, com um juramento particular de silêncio, exílio,
perspicácia. (Infelizmente, meu herói tinha medo do oceano.) Los
Angeles era um substituto desbotado para a Irlanda. Mas tinha os
próprios pântanos e as traições culturais.
Estranhamente, entrei para a equipe de atletismo no décimo
ano, competindo no salto com vara. Saltadores com vara
formavam uma pequena equipe dentro da equipe. Os treinadores
sabiam pouca coisa sobre o esporte e não estavam dispostos a
arriscar o pescoço tentando demonstrar boas técnicas. Então
basicamente aprendíamos sozinhos. Éramos liberados dos
terríveis exercícios de preparação física que o restante da equipe
executava, e nossos treinos, diziam-nos com frequência, tinham
uma semelhança lamentável com conversas preguiçosas. Era
algo relacionado à grande quantidade de tempo que passávamos
relaxando nos colchões turquesa de espuma que serviam de
proteção. O salto com vara era um esporte glorioso naqueles
tempos, e saltadores eram considerados primas-donas. Na
verdade, os saltadores exibicionistas e antiautoritários eram
vistos com desconfiança, frequentemente com razão, pelos
técnicos e seus atletas mais leais como hippies leitores de
Thoreau, maconheiros e apreciadores de John Carlos. Eu amava
saltar com vara: o impulso suave para o alto e o giro ao apoiar a
vara com firmeza (o que nem sempre acontecia comigo), o
momento nunca longo o bastante quando você jogava os braços
para trás e empurrava a vara de volta, no cume do sarrafo. Mas
não voltei para o atletismo no ano seguinte.
Houve um motivo ainda mais importante para mim: Domenic
não quis participar do time de futebol americano. No décimo ano,
ele e eu fomos separados, mandados para escolas diferentes
devido a nossos respectivos endereços. Ele foi para a Canoga
Park High, onde Pete, que era jogador de futebol americano,
estava alardeando a chegada do irmão mais novo rápido e
musculoso. Então Domenic jogou. Ele era um half-back e
gostava do jogo, mas os treinos eram longos, e a temporada de
condicionamento físico começava no verão. O futebol americano
estava consumindo o tempo que ele podia dedicar ao surfe. Além
disso, sentíamos falta um do outro. Quando Domenic me disse
que estava sendo transferido para a Taft, fiquei muito feliz. Mas
fiquei nervoso quando ele afirmou que eu era o principal motivo
da transferência. Teria feito o mesmo por ele, acho, se tivesse me
ocorrido; ainda assim, fiquei preocupado que pudesse
decepcioná-lo. De qualquer forma, o futebol americano chegara
ao fim para ele. A vida era muito curta para passar mais um dia
dando sprints para o treinador.
Caryn Davidson e eu, em frente à casa de Kobatake, Lahaina, 1971
QUATRO

‘SCUSE ME WHILE I KISS THE SKY

Maui, 1971

“Sabe qual é o seu problema? Você não gosta da própria família.”


Essa dura avaliação dirigida a mim foi feita por Domenic em
1971. Nossas opiniões políticas aparentemente divergiam.
Tínhamos dezoito anos. Era primavera. Estávamos acampados
em um pontal na extremidade oeste de Maui, dormindo em uma
depressão gramada ao pé de um afloramento de rochas
vulcânicas. Um pequeno bosque de pandanos ajudava a
bloquear a visão a partir do nosso acampamento dos campos de
abacaxi no alto dos terraços. Ali era uma propriedade privada, e
não queríamos que os lavradores nos vissem. Percorríamos seus
campos à noite em busca de frutas maduras que eles pudessem
ter deixado passar. Parecíamos estar sempre acampando em
propriedade alheia naqueles dias. Estávamos ali à espera de
uma onda.
Era fim de temporada, mas não tarde demais para que a baía
de Honolua quebrasse. Pelo menos, era essa a nossa
esperança. Toda manhã, com as primeiras luzes, olhávamos
fixamente para o outro lado do canal Pailolo, na direção de
Molokai, tentando mentalizar o surgimento dos swells de norte,
com suas linhas escuras guarnecendo as águas mornas e
cinzentas. Parecia haver algo em movimento, mas podia ser
apenas nosso desejo. Depois que o sol nascia, dávamos a volta
e íamos até a baía, estudando o mar quebrar nos penhascos
vermelhos. Parecia mais forte que ontem?
Nos últimos anos, nossa vida, a de Domenic e a minha, tinha
sido como uma trança se desfazendo. A causa derradeira para o
nosso afastamento foi uma garota: Caryn, meu primeiro
relacionamento sério. Ela e eu tínhamos nos conhecido no último
ano do ensino médio. Meus planos de fazer um mochilão pela
Europa com Domenic depois de terminar a escola se
transformaram em planos de fazer um mochilão pela Europa com
Caryn. Todos nós acabamos indo, mas não nos vimos tanto por
lá quanto havíamos imaginado. Então voltei para começar a
faculdade, na Universidade da Califórnia em Santa Cruz, e Caryn
veio comigo. Domenic ficou na Itália, morando com parentes na
aldeia onde o pai tinha nascido, no leste dos Apeninos,
trabalhando em um vinhedo e aprendendo italiano. (Domenic
gostava muito da própria família. Eu invejava isso.)
Domenic passou a morar, por razões que sem dúvida faziam
sentido na época, em um antigo caminhão de leite no interior de
um parque aquático em Oahu — fazendo bicos para se virar no
paraíso. Eu estava em férias de primavera do meu primeiro ano
na faculdade, e a minha família voltara a morar em Honolulu, por
isso Domenic e eu tornamos a nos reunir ali. Como todo mundo
que cresceu lendo revistas de surfe, nós dois havíamos sonhado
desde a infância em surfar na baía de Honolua. Mas de certa
forma era estranho que estivéssemos ali, esperando as ondas, já
que havíamos parado de surfar alguns anos antes.
Aconteceu quando fiz dezesseis anos. Não foi uma ruptura
nítida nem uma decisão consciente. Só deixei outras coisas se
tornarem prioridade: carro, dinheiro para manter o carro,
empregos para ganhar dinheiro para manter o carro. A mesma
coisa aconteceu com Domenic. Arranjei um emprego de frentista
em um posto de gasolina da Gulf no Ventura Boulevard, em
Woodland Hills, trabalhando para um iraniano irascível chamado
Nasir. Foi meu primeiro emprego que não era totalmente
dedicado ao propósito de pagar por uma prancha de surfe.
Domenic também trabalhava para Nasir. Nós tínhamos vans Ford
Ecoline, veículos de surfe por excelência, mas raramente
conseguíamos tempo para surfar. Então nós dois caímos no
feitiço de Jack Kerouac e decidimos que precisávamos ver os
Estados Unidos de costa a costa. Arranjei um trabalho no turno
da madrugada — mais horas, mais dinheiro — num posto
vagabundo em uma esquina perigosa na planície do vale de San
Fernando que ficava aberto vinte e quatro horas. Era um lugar
onde chicanos com seus carros rebaixados tentavam roubar
gasolina às cinco da manhã. “Ei, vamos roubar aquele gringo.”
Arrumei um segundo emprego estacionando carros em um
restaurante, tomando “whites” (uma espécie de anfetamina —
dez comprimidos por 1 dólar) para ficar acordado. Os clientes do
restaurante eram mafiosos do subúrbio, bons de gorjeta, mas
meu chefe era um chinês que achava que devíamos ficar em
posição de sentido na presença de clientes. Ele me atormentou
até finalmente me demitir por ficar lendo e pela minha postura
relaxada. Domenic também estava juntando dinheiro. Quando o
ano letivo terminou, pegamos nossas economias, largamos o
emprego nos postos de gasolina, nos despedimos (eu imagino)
de nossos pais e partimos em zigue-zague rumo ao leste, na van
dele. Tínhamos dezesseis anos e nem mesmo levamos as
pranchas.
Chegamos ao sul até Mazatlán e ao leste até Cape Cod.
Tomamos ácido em Nova York. Vivemos de mingau de trigo,
cozinhando em um fogareiro de camping. Era 1969, verão de
Woodstock, mas os panfletos do festival espalhados pelo
Greenwich Village mencionavam um preço de entrada. Isso nos
pareceu meio chato — alguma espécie de fim de semana metido
a artístico para pessoas velhas —, por isso não fomos. (Minha
intuição de jornalista, que nunca foi grande, ainda estava para
nascer.) Eu mantinha diários sem qualquer interesse. Domenic,
um fotógrafo iniciante, estava em seu período Walker Evans,
fotografando crianças brancas de rua em South Philadelphia,
garotas que fugiram de casa e dormiam às margens do
Mississippi. Anos mais tarde, a primeira esposa de Domenic,
uma francesa mundana, se recusou a acreditar que tínhamos
dormido lado a lado castamente durante o verão naquela van.
Entretanto, foi o que fizemos, e nossa amizade floresceu na
investida diária do desconhecido. Eu me sentia menos impelido a
zombar de mim mesmo; Domenic parecia aliviado por se livrar da
popularidade que o definia na escola. Nós contávamos
completamente um com o outro; compartilhávamos perigos e
risos. Em Chicago, conhecemos um cara assustador que depois
concluímos que devia ser Charles Manson. Bebi meu primeiro
drinque em um bar em Nova Orleans — foi um Tom Collins. Li a
tradução de Odisseia de Edith Hamilton apoiado no volante
enquanto dirigia pela Dakota do Norte. Chegamos perto demais
de ursos-cinzentos nas montanhas rochosas canadenses. Só
surfamos duas vezes naquele verão — uma com pranchas
emprestadas no México e outra em ondas pequenas da Costa
Leste em Jacksonville Beach, Flórida.
Foi isso que eu quis dizer com deixar de surfar. Quando você
surfa, como eu viria a compreender, você vive e respira ondas.
Sempre sabe como estão as ondas. Se estão boas, você mata
aula, perde empregos e namoradas. Domenic e eu não
desaprendemos a surfar — nesse sentido, é como andar de
bicicleta, pelo menos quando se é jovem. Apenas diversificamos
e, de minha parte, estagnamos. Quer dizer, eu estava
melhorando constantemente desde que tinha começado e, aos
quinze anos, embora ainda não fosse um competidor, era um
moleque bom de surfe. Meu rápido progresso parou quando me
interessei pelo restante do mundo. Não surfamos na Europa.
Santa Cruz, uma cidade praiana no norte da Califórnia, tem boas
ondas, então eu entrava no mar, mas no meu tempo, e não no do
oceano. A velha obsessão do “nada mais importa” estava
suspensa.

***

A baía de Honolua estava prestes a mudar isso. Não ouvimos a


chegada do swell à noite porque o vento estava terral, soprando
o ribombar das ondas que atingiam as pedras do pontal de volta
para o mar. Mas Domenic, ao sair para mijar de manhã cedo, viu
o mar e falou: “William! Nós temos ondas.” Ele só me chamava
de William em ocasiões sérias ou se fazia parte de alguma piada.
Aquela era uma ocasião séria. Tínhamos ficado sem comida na
noite anterior e planejávamos uma ida a Lahaina, a cidade mais
próxima, a uns vinte e cinco quilômetros de distância, para
comprar provisões. Esse plano foi adiado indefinidamente.
Fizemos uma busca por nutrientes — roemos cascas de manga
velhas, raspamos latas de sopa, comemos pão que tinha sido
descartado por causa do mofo. Em seguida, pegamos as
pranchas e saímos correndo em torno do pontal, gritando
“Caralho!” e assobiando a cada série cinza que passava pelo
pontal, escurecendo na virada final para o interior da baía.
Não sabíamos precisar o tamanho das ondas, mesmo depois
de chegar lá. A baía em si estava irreconhecível, pelo menos
para nós, que a tínhamos visto apenas flat. Havia ondas
passando ao largo da ponta da enseada e quebrando em seu
interior, por centenas de metros, tão lindas que, quando se
jogavam contra o vento terral, me deixavam um pouco
apreensivo. Mas aquele não era um pointbreak clássico, nos
moldes de Rincon. Havia seções grandes, especialmente no
outside, que pareciam impossíveis, além de um penhasco de
pedras, com uns quinze metros de altura, que se projetava no
interior da linha das ondas, e uma praia estreita que tinha se
formado logo depois dele, na base dos penhascos. Não havia um
lugar óbvio para entrar na água. Ansiosos demais para percorrer
todo o caminho até as palmeiras ao pé da baía e remar dali,
começamos a descer por uma trilha íngreme até a praia estreita
entre o pontal e o penhasco. As ondas pareciam sólidas, mas
não enormes.
O sol ainda não tinha nascido. Esperamos por uma calmaria,
dançando sobre os fragmentos de coral que rolavam para a
praia. Depois remamos rapidamente até as linhas de espuma,
afastando-nos do pico, mas atentos ao despenhadeiro perto da
costa.
Conseguimos chegar a águas calmas. Totalmente despertos
por alguns golpes fortes de espuma recebidos nas furadas de
onda, remamos em círculo, tentando ver o recife sob a luz ainda
fraca. Onde era o melhor pico para dropar? Parecíamos estar
distantes do grande penhasco, mas era difícil estimar a
profundidade da água. Leves turbulências surgiram à nossa volta
com a passagem de séries pequenas, que explodiram de
encontro aos penhascos. Então chegou a primeira série de
verdade. Veio direto em nossa direção. Isso significava que as
ondas podiam ser vistas a quase um quilômetro de distância.
Começavam a se erguer e quebrar perto do pontal, fortes mas
irregulares, formando em seguida uma grande parede não
surfável, em cuja extremidade próxima à costa havia uma
elevação ampla e assustadora — uma seção incrível em pé,
arredondada e profunda como uma tigela, que espumava por um
bom tempo antes de quebrar. E era ali que estávamos
esperando, bem em frente ao penhasco, no meio da grande
seção. Era o ponto perfeito para dropar.
Pegamos uma onda na primeira série, os dois, de olhos
arregalados, abrindo caminho por cima daquele parapeito se
levantando. O drop era desafiador, a aceleração, intensa — havia
um momento desagradável em que nos sentíamos sem peso —,
mas as paredes eram lisas e, na verdade, havia tempo durante o
trajeto alongado da primeira cavada para dar uma boa olhada no
que estava por vir. E a onda se abria limpa a partir do ponto do
drop, impecável como uma concha de náutilo. Era exatamente o
que se esperava ver depois de um drop como aquele. Nós dois
surfamos até um ponto bem no interior da baía. A onda, ao se
erguer ao longo do recife, virava bruscamente na direção do
penhasco, mas nunca parecia se aproximar dele, acelerando por
cima de lajes rasas, reduzindo a velocidade em águas profundas
e tornando a acelerar, ficando mais lisa e menor por todo o
caminho, embora ainda com leves plumas de água provocadas
pelo vento terral. Domenic deve ter vindo na segunda, porque me
lembro de sair do inside e vê-lo parcialmente agachado em uma
parte azul-acinzentada oca que quebrava, deslizando a mão na
parede da onda.
A baía de Honolua era um pico famoso, é claro. Por isso
estávamos ali. Só que ninguém mais apareceu e, quando o sol
nasceu, continuamos surfando sozinhos. As ondas não estavam
grandes — um metro e oitenta nas séries — e o swell
provavelmente ainda não aparecia naquelas partes populosas da
costa de Maui onde os surfistas ficavam. A previsão das ondas
ainda não tinha se tornado uma ciência popular e
computadorizada como hoje — a maioria das pessoas
simplesmente acordava e olhava para o mar, como fizemos.
Ainda assim, surfar uma onda extraordinária como Honolua em
um dia imaculado com apenas mais uma pessoa na água era
incomum, o que me deixou com dificuldade para relaxar.
Remamos por horas da enseada até o ponto de dropar,
desesperados para não perder nenhuma série, cansados demais
para falar, apenas gritando imprecações: “Meu Deus, caralho!”,
“Murphy, Murphy!”. Quando chegássemos ao line-up, se
tivéssemos uma trégua, poderíamos repassar nossas ondas e
trocar informações sobre o recife, que tinha partes assustadoras,
sobretudo quando a maré começava a baixar.
Domenic usava uma pequena prancha biquilha azul que
parecia amar as ondas. Mas ele não conhecia bem a prancha, e
acabou que, em altas velocidades, uma das quilhas começava a
zumbir. Era uma prancha artesanal, e biquilhas eram novidade —
parecia haver um problema de alinhamento que não tinha sido
identificado em ondas lentas. O zumbido o distraía, e ficou tão
alto que eu podia ouvi-lo quando ele passava surfando por mim.
Domenic não achava aquilo tão engraçado quanto eu — aquela
única falha em um momento de perfeição — e me implorou para
trocar de prancha com ele. Peguei algumas ondas com a
prancha fazendo aquela barulheira horrível e a devolvi. No fim,
até Domenic estava rindo, tentando cantar junto com a cítara que
tinha sob os pés. Ele sempre teve um senso bem desenvolvido
do absurdo — eu diria que até uma filosofia ancorada na ideia de
imperfeição, no sentido clássico do possível, e na imagem dos
deuses brincando com a gente. Eu nunca soube de onde ele
havia tirado isso.
Por que ele disse aquela coisa sobre eu não gostar da “minha
própria família” enquanto acampávamos em Honolua? Na época,
Domenic fazia muitas críticas e dizia várias coisas desdenhosas
a meu respeito. Eu tinha me tornado, sem dúvida, um
universitário insolente e pretensioso, levando uma mochila cheia
de livros de R. D. Laing, Norman O. Brown e outros autores da
moda na época mesmo em uma viagem de acampamento de
surfe. (Eu estudava literatura com Brown em Santa Cruz.)
Provavelmente eu apenas o havia entediado com um discurso
retirado de Frantz Fanon. (Pelo menos ele não me acusou de ser
um garoto branco que odiava quem era.) Eu tinha, sem dúvida,
desenvolvido uma queda pelo anticapitalismo, até pela política do
Terceiro Mundo. Tudo isso me transformava em um intelectual
sem espírito prático, na opinião de Domenic, e ele nunca se
cansava de apontar minha legítima, mas nada excepcional,
incompetência com mecânica. Ele ficava exultante com o nosso
contraste, levando em conta sua engenhosidade em relação a
motores e outros aparelhos. Imagino que estivesse se sentindo
competitivo, até inseguro, à medida que eu seguia meu caminho,
e ele, o dele. E também talvez estivesse magoado. Eu achava,
porém, que ele tinha sido incrivelmente compreensivo e estava
conformado depois que comecei a sair com Caryn, jogando no
lixo tantos hábitos nossos estabelecidos havia muito tempo.
Separação é uma droga. Ele e Caryn tinham até se tornado
amigos.
Na verdade, Domenic, prestes a fazer dezenove anos e sem
estudar, estava tendo problemas com a comissão de alistamento
militar e se decidira por um esquema para evitar a convocação. O
plano envolvia uma viagem rápida ao Canadá, e Caryn, que
também não estava estudando, se oferecera para ir da Califórnia
até lá com ele. Eu, na minha inocência, achei bem legal da parte
dela.
Por fim, mais ou menos ao meio-dia, outras pessoas
começaram a aparecer em Honolua. Carros surgiram no alto do
penhasco, caras desceram apressados pela trilha. O crowd,
porém, não ficou ruim, e as ondas se tornaram ainda melhores.
Eu usava uma prancha artesanal ultraleve e de aparência
estranha. A estranheza se devia principalmente às várias marcas
que havia no deck. Em uma tentativa equivocada de reduzir o
peso, algum laminador de fundo de quintal em Santa Cruz
laminara o deck tão levemente que meu peito, meus joelhos e até
meus pés deixavam impressões permanentes quando eu remava
ou me levantava. Mas o fundo, a superfície de planagem, era liso
e duro; o rocker era sutil e firme; o shape, simples, com bordas
levemente viradas para baixo, sem marcas, e uma rabeta
delicadamente arredondada — e a prancha virava rápido e voava
pela linha da onda, a quilha segurava no interior do tubo, e essas
eram as coisas que importavam. A prancha, na verdade, era leve
demais para Honolua, principalmente quando as ondas
cresceram e a baía ficou com mais vento à tarde. Mas, enquanto
me esforçava nos drops atrasados, furando as pequenas marolas
na face da onda, e depois me posicionava para a parede antes
da jogada do lip, em uma velocidade alucinante e com o sol às
costas, eu estava surpreendentemente consciente dos desafios
técnicos envolvidos em cada manobra. De modo mais genérico,
eu sabia que nunca tinha surfado ondas tão poderosas com
equipamento tão frágil, e ao mesmo tempo que podia ter
preferido uma prancha diferente, não conseguia imaginar uma
onda mais emocionante. Eu queria mais. Tudo o que eu pudesse
conseguir. Platão podia esperar.

***

Três meses depois, eu tinha largado a faculdade e me mudado


para Lahaina. A Universidade da Califórnia em Santa Cruz era
um lugar empolgante, mas fácil de deixar para trás. Era um
campus novo, uma estufa de experimentação acadêmica. Não
havia notas nem organizações esportivas. Os professores não
eram figuras autoritárias, e sim conspiradores. Encorajava-se o
máximo de autodeterminação. Tudo isso se adequava a mim,
mas o local não tinha peso institucional.
Caryn, embora na dúvida, foi comigo. Ela não tinha nenhum
interesse por surfe, mas era aventureira, e eu acreditava que não
conseguia viver nem respirar sem ela. Felizmente para mim, ela
não tinha outros planos. O voo de Honolulu para Maui, pelo que
lembro, custava 19 dólares, mas o problema era que, quando
chegamos, não conseguíamos pagar nem por uma única
passagem de volta para Honolulu. Dormimos na praia naquela
noite, envoltos em cangas, com caranguejos andando ao nosso
redor. Eles eram inofensivos, mas, ainda assim, estranhamente
aterrorizantes. Então choveu, e trememos até amanhecer. Meus
pais, quando passamos por Honolulu, mostraram de forma clara
e dolorosa sua infelicidade por eu ter largado a faculdade. Agora
Caryn também deixava clara sua infelicidade comigo no
amanhecer em Lahaina. No ano e meio que estávamos juntos,
eu com frequência a arrastara por aí com base em ideias loucas
e caprichos. Agora ela devia se tornar uma gatinha de surfista
faminta e sem-teto?
Eu disse a ela que conhecia um cara. E conhecia mesmo, mas
muito superficialmente. Eu o conhecera na rua três meses antes
enquanto ia comprar mantimentos com Domenic, e ele tinha
apontado para o local onde morava. Então, por tentativa e erro,
percorrendo quadras distantes da praia em Lahaina, descobri o
caminho até a casa dele. Entrei. Caryn esperou na viela. Acho
que ficou surpresa quando saí com as chaves de um carro. Sei
que eu fiquei. Mas o dono do veículo — um surfista mais velho e
cavalheiro de vinte e dois anos, estudioso e extremamente
simpático chamado Bryan Di Salvatore — me recebeu como um
velho amigo e, ao ouvir sobre nossa situação difícil,
imediatamente nos emprestou seu Ford 1951. Ele disse que
todas as ondas naquela época do ano ficavam na cidade e, como
trabalhava lá, não precisava do carro. Nós podíamos morar
dentro do Ford enquanto procurávamos emprego. O nome do
carro, explicou, era Rhino Chaser, “caçador de rinocerontes”. Era
o monstro azul-turquesa estacionado embaixo da bananeira.
Se Caryn estivesse mais bem-humorada, teria dito com um
sorriso e ironia: “Um presente de Deus.” Mas ela ainda estava
cética e se sentia ludibriada. Eu a levei em um passeio de carro
pela velha cidade baleeira transformada em zona turística que
incluiu uma ida ao departamento de cupons de alimentação,
onde pegamos uma cota de emergência para dois por um mês —
equivalente a 31 dólares, pelo que lembro —, e a uma série de
hotéis e restaurantes, todos com vagas de emprego disponíveis.
Caryn rapidamente foi contratada como garçonete. Eu estava de
olho em uma livraria na Front Street. Não tínhamos dinheiro para
pagar a gasolina até a baía de Honolua, mas prometi que ela iria
adorar.
“Por quê? Porque é bonita?”
“Entre outras coisas”, respondi.
Enquanto isso, precisávamos estacionar em estradas vicinais
escuras perto da cidade, onde Caryn tentava dormir no banco da
frente, eu atrás, e minha prancha embaixo do veículo. (Eu dormia
com uma porta aberta e a mão sobre a quilha virada para cima,
em uma tentativa de desencorajar ladrões.) Nós usávamos
banheiros de parques públicos. Caryn lavava o uniforme de
garçonete nas pias. Eu surfava algumas ondas da cidade; ela lia
e parecia relaxar. Eu ainda estava de castigo, e sabia disso
porque não estávamos transando. Felizmente, consegui o
emprego na livraria.
Era um lugar estranho chamado Either/Or, em homenagem ao
Enten-Eller, de Kierkegaard, mas principalmente por conta de
uma loja maior em Los Angeles, da qual era filial. Os
proprietários, um casal nervoso, eram foragidos, assim como seu
único funcionário, um cara de barba ruiva que não se
apresentara ao serviço militar e respondia por uma variedade de
nomes. Eles precisavam de ajuda, mas todos me fitaram com
desconfiança. Será que eu parecia um agente federal? Tinha
dezoito anos, era magro como um poste, com o cabelo
desgrenhado na altura do ombro, uma namorada sardônica,
chinelos gastos, bermuda desbotada pelo sol e uma camiseta se
desintegrando. Eles resolveram arriscar. O casal dispunha de um
teste abrangente sobre conhecimento literário, trazido da loja de
Los Angeles. Todos os candidatos tinham que passar por ele. (O
comércio varejista de livros mudou desde então.) O teste era
escrito e não podia ser levado para casa. Caryn passou uma
noite me fazendo perguntas sobre títulos e autores. Ocorreu-me
que minha namorada tinha mais chance de passar no teste do
que eu. (Posteriormente, ela trabalhou em uma livraria de obras
em francês perto da UCLA.) Ela era, na verdade, a adolescente
mais ávida por leitura que eu conhecia. Enquanto eu surfava sob
o sol da tarde na baía de Lahaina, Caryn se enroscava no
quebra-mar com uma edição em francês de Proust. Ainda assim,
fiz o teste da Either/Or e passei.
Em meu primeiro dia atrás do balcão, Bryan Di Salvatore
apareceu apressado. Ele me contou que estava indo embora da
cidade. Alguma coisa sobre a carta de um velho amigo em um
rancho no interior de Idaho que o fez perceber que seu período
em Maui chegara ao fim. Escreveu um endereço na capa de uma
passagem da Aloha Airlines. Eu devia lhe pagar pelo carro
quando tivesse dinheiro, mandando-o aos cuidados dos seus
pais em Los Angeles. Qualquer quantia que eu considerasse
justa pelo automóvel. Bryan pagara 125 dólares por ele no ano
anterior. Dito isso, foi embora.
Com nossos salários, Caryn e eu pudemos comprar gasolina,
embora ainda não desse para pagar um aluguel. Começamos a
acampar na costa a oeste e a norte de Lahaina. Era uma série
sinuosa de baías e pontais. Havia fileiras de velhas cabanas de
bambu — residências de trabalhadores, com tinta vermelha
descascando — nas beiras dos canaviais que subiam por um
grande terraço até montanhas íngremes obscurecidas pela
chuva. Dizia-se que Puu Kukui, o pico mais alto das montanhas
West Maui, era o segundo ponto mais úmido do mundo.
Encontramos angras reservadas onde podíamos acender
fogueiras, além de praias com água transparente como gim.
Mostrei a Caryn como encontrar mangas, goiabas, mamões e
abacates maduros. Conseguimos mendigar máscaras e snorkels
e exploramos os recifes. Ainda me lembro do nome de alguns
peixes havaianos. Caryn gostava especialmente do
humuhumunukunukuapua‘a — não do peixe em si, que não é
grande coisa (um peixe-porco de boca achatada), mas do nome.
Ela emergia de um mergulho, tirava o snorkel e perguntava:
“Humuhumu?” A palavra passou a ter muitos significados. Eu
podia olhar para o ângulo do sol e responder: “Hana hana.” Isso
significa “trabalho” no idioma havaiano. Tínhamos que ir
trabalhar. No fim, Caryn gostou da baía de Honolua, o que foi um
alívio. O lugar era longe demais do centro da cidade para
acamparmos por lá toda noite, mas o mergulho era bom, com
peixes incríveis. E a baía era inegavelmente bonita. Só haveria
ondas por ali no outono, mas nenhum de nós tinha qualquer
outro lugar para estar.
Caryn, por direito, deveria ser maníaca por estabilidade —
uma formiga, não uma cigarra. A mãe dela e os avós maternos
eram judeus alemães e sobreviventes do Holocausto. A própria
vida de Caryn desmoronara quando tinha treze anos, depois que
seus pais começaram a tomar LSD e se separaram. Éramos
colegas de escola na época, e o que imaginei foi uma festa
suburbana de troca de casais presidida por Timothy Leary. Caryn
desapareceu depois de ir a um lugar chamado Topanga Free
School, a primeira das escolas “alternativas” em nossa parte do
mundo. Quando tornei a encontrá-la, ela estava com dezesseis
anos — e parecia mais triste e sábia do que a idade mostrava.
Toda a experimentação vertiginosa com sexo, drogas recreativas
e política revolucionária, que ainda se aproximava de seu apogeu
nos Estados Unidos da contracultura, era história antiga e infeliz
para ela. Na verdade, a mãe ainda estava no meio daquilo — o
principal namorado dela na época era um Pantera Negra foragido
—, mas Caryn, aos dezesseis anos, tinha superado isso. Morava
em West Los Angeles com a mãe e a irmã mais nova em
situação modesta e cursava o ensino médio numa escola pública.
Colecionava porcos de cerâmica e amava Laura Nyro, uma
cantora e compositora extasiante. Tinha um grande interesse por
literatura e arte, mas não se importava com besteiras como
provas escolares. Ao contrário de mim, Caryn não pensava em
preservar suas alternativas, não mantinha boas notas para
aumentar as opções de faculdade em que poderia ser aceita. Ela
era a pessoa mais inteligente que eu conhecia — cosmopolita,
engraçada, indescritivelmente bonita. Parecia não ter plano
algum. Por isso eu a peguei e a levei comigo, em grande parte
sob minhas próprias condições obstinadas.
No início, entreouvi um comentário de um de seus velhos
amigos da Free School. Eles ainda se consideravam os garotos
mais descolados e bem informados de Los Angeles, e a questão
era o que tinha acontecido com sua colega sexy e boca suja
Caryn Davidson. Dizia-se que tinha fugido “com um surfista”.
Para eles, era um destino tão improvável e absurdo que não
havia mais nada a dizer.
Caryn tinha um motivo pessoal para concordar em ir a Maui.
Supostamente, seu pai estava lá. Sam era engenheiro
aeroespacial antes de o LSD entrar em sua vida. Deixara o
emprego e a família e, sem nenhuma explicação além da própria
busca espiritual, parou de telefonar e de escrever. Mas circulava
pela rede de fofocas que ele dividia seu tempo entre um mosteiro
zen-budista na costa norte de Maui e um hospital psiquiátrico
próximo. Não pude evitar mencionar a possibilidade de Caryn
encontrá-lo se nos mudássemos para a ilha.

***

Na cidade, alugamos um quarto de um velho maluco chamado


Harry Kobatake. Cem dólares por mês por um forno infestado de
baratas com um banheiro no corredor. Preparávamos as
refeições em um fogareiro elétrico no chão. O aluguel era caro,
mas Lahaina tinha déficit de moradias. Além disso, a casa de
Kobatake ficava exatamente na Front Street diante da baía, onde
quebravam duas das melhores ondas locais. Bryan estava certo
— todas as boas ondas de verão ficavam perto ou dentro da
cidade. Um pico chamado Breakwall precisava de um bom swell
para ser surfável. Com mais de um metro e vinte, podia produzir
esquerdas e direitas excelentes sobre um recife pontiagudo bem
em frente a um quebra-mar de pedras paralelo à costa.
O outro pico, conhecido como Harbor Mouth e localizado no lado
oeste do canal de entrada da baía, era rápido e ultraconsistente.
Era bom até com menos de meio metro, cheio de surfistas, e
pegava qualquer vestígio de swell de sul. O crowd era em sua
maioria haole, não local. Aquele se transformou no meu pico do
dia a dia.
Eu acordava quando ainda estava escuro, descia a escada na
ponta dos pés descalços com minha prancha e corria por um
pequeno parque em frente ao tribunal até o píer, na esperança de
ser o primeiro na água. Frequentemente, eu era. Muitos surfistas
do continente tinham parado em Lahaina naquele ano, mas eram
um grupo que gostava muito de farra, o que diminuía o número
de caras prontos para cair na água ao amanhecer. Por outro
lado, Caryn e eu formávamos um casal sóbrio e conhecíamos
pouca gente. Eu fechava a Either/Or às nove. Caryn me trazia do
trabalho quentinhas de bonito e de dourado-do-mar nos quais os
fregueses não tinham tocado. E assim eram nossas noites:
comer, ler e matar as baratas mais atrevidas. Demos nomes às
lagartixas que patrulhavam o teto. Eu era tão indiferente à rotina
nos bares que, quando um turista me perguntou a idade
permitida por lei para consumir bebidas alcoólicas no Havaí,
precisei admitir que não sabia.
Harbor Mouth tinha uma direita curta e cavada que se tornava
mais longa e mais complicada à medida que o mar crescia, e o
ponto ideal de drop se movia mais para fora do recife. Ainda
assim, nunca ficava muito complicado. Em um verão de
dedicação à tarefa, era possível surfar a onda e compreendê-la
por completo. Eu amava essa onda quando ficava com um metro
e meio ou mais, pois, em condições limpas, a parede no outside
se apresentava perfeitamente lisa, e as pessoas costumavam se
enganar e se mover para muito fundo ou muito longe, sem saber
ao certo onde dropar. Havia um pico profundo no qual uma onda
de um metro e oitenta, se fosse pega cedo e surfada
corretamente, quase sempre podia ser completada, e descobri
onde ficava, embora o local não desse pistas visuais. Mas a
maior característica de Harbor Mouth, que lhe valia qualquer
fama que tivesse, era a seção final da direita (também havia
esquerdas mais longas e malformadas correndo na direção
oposta ao canal). Era uma onda curta, densa, rasa e
extremamente confiável que quase sempre permanecia aberta.
Com a sincronização certa, aquela sessão oferecia o mais perto
de um tubo garantido que qualquer outra onda que eu já tinha
visto. Mesmo com pouco mais de meio metro, era possível se
espremer por ali e sair seco. Pela primeira vez na minha carreira
no surfe, me acostumei à vista do interior, olhando de trás de
uma cortina de prata em direção ao sol da manhã. Havia sessões
em que metade das ondas que eu pegava formava tubos. Eu
voltava a passos rápidos para a casa de Kobatake, onde Caryn
ainda dormia em nosso estrado no chão, meu cérebro em
chamas com oito ou dez vislumbres nítidos da eternidade.
Comecei a surfar Harbor Mouth à noite depois do trabalho. A
maré precisava estar alta, e o swell, de bom tamanho — e a lua
ajudava no escuro. Ainda assim, era uma coisa bem louca de se
fazer, era basicamente surfar às cegas. E, normalmente, eu não
era o único que tentava fazer isso. Mas, depois de um tempo, eu
achava que conhecia o pico tão bem que podia sentir — pelas
sombras, pela força das correntes — onde ficar, para onde ir, o
que fazer. Em geral eu estava errado e passava muito tempo no
raso à procura da minha prancha perdida. Essa era a razão pela
qual devia haver maré alta. A lagoa antes da arrebentação em
Harbor Mouth era larga e rasa, com corais afiados cobertos de
ouriços-do-mar cruéis. À luz do dia, eu conhecia as pequenas
fendas nos recifes por onde era possível atravessar flutuando
com os olhos abertos embaixo d’água, o peito inflado para a
flutuação máxima, e passando logo acima dos espinhos roxos
dos ouriços, mesmo nas marés mais baixas, em busca de uma
prancha perdida. Entretanto, à noite, era impossível ver qualquer
coisa embaixo d’água. E uma busca pelo brilho fraco e elíptico de
uma prancha boiando na lagoa em meio à espuma, dançando
sob a iluminação da calçada em frente à praia, podia assumir
todo um novo tipo de eternidade, diferente da que se vislumbrava
do tubo. Mas desistir não era uma opção. Eu só tinha uma
prancha e sempre a encontrava.

***

A livraria era composta por três salas pequenas em um velho


cais aos pedaços na extremidade oeste do quebra-mar. Havia um
bar ao lado. O mar se agitava ruidosamente sob as tábuas do
piso. Os donos da livraria me treinaram e, após captarem sinais
de perigo das autoridades locais, fugiram para o Caribe,
deixando-me para administrar o estabelecimento com o cara que
escapara do serviço militar e que tinha Dan como um de seus
muitos nomes. Era uma loja sensacional para o seu tamanho. As
seções de ficção, poesia, história, filosofia, política, religião,
teatro e ciência eram vigorosas e completas, com espaço apenas
para exemplares únicos da maioria dos títulos. Todos os livros já
publicados pela New Directions e pela Grove — minhas editoras
favoritas na época — pareciam estar ali. E podíamos conseguir
praticamente qualquer título que não tivéssemos na loja em
questão de dias, por encomenda especial. Todo esse estoque e
essa capacidade eram cortesia da loja maior em Los Angeles.
Ainda assim, ninguém queria comprar os nossos livros
maravilhosos. Vendíamos principalmente livros de arte para
turistas: monstros caros de 50 dólares, cheios de fotos em papel
brilhante de recifes de coral e pontos pitorescos locais. Então, a
cada duas semanas, recebíamos enormes pilhas da Rolling
Stone e, todo mês, pilhas ainda maiores da Surfer. Boa parte do
nosso lucro vinha dessas publicações. Nossas seções de
ocultismo, astrologia, autoajuda (embora talvez a chamássemos
de autorrealização) e misticismo oriental também vendiam bem.
Alguns autores cujos livros tivemos que comprar em grande
quantidade eram fraudes já conhecidas, como Edgar Cayce, e
novos gurus, como Alan Watts. E havia também best-sellers da
contracultura, que encomendávamos às caixas e vendíamos
rapidamente. Um deles era Be Here Now, de Baba Ram Dass (o
antigo dr. Richard Alpert), que saiu pela editora Crown e era
vendido pelo valor místico de 3,33 dólares. A obra aconselhava
uma consciência elevada, com muitos diagramas. Outro grande
vendedor era Living on the Earth, de Alicia Bay Laurel, em
formato grande e ilustrado à mão, que oferecia conselhos
práticos para pessoas tentando viver no campo com delicadeza e
sem dinheiro, sem eletricidade nem vasos sanitários.
Havia muita gente assim em Maui na época, praticamente
todos eles recém-chegados do continente. Moravam no alto de
vales estreitos nas montanhas, no fim de estradas de terra ou
trilhas na mata. Ou moravam em algum lugar nas amplas
encostas do Haleakala, o enorme vulcão antigo que definia a
metade leste da ilha, ou em praias remotas ao longo da costa
sudeste, de clima mais seco. Alguns faziam tentativas sérias de
viver em comunidade e à base de agricultura orgânica. Alguns
surfavam. Também havia muitos recém-chegados se virando em
cidades e aldeias, como nós em Lahaina. Ou como Sam em seu
mosteiro, que supostamente ficava na encosta norte do
Haleakala.
E os locais? Bem, nenhum deles ia à Either/Or, com certeza —
quando contei a Harry Kobatake que trabalhava lá, ele disse que
nunca tinha ouvido falar do lugar; e ele morava em Lahaina, uma
cidade muito pequena, havia sessenta anos. Todos os nossos
clientes eram turistas, hippies, surfistas e hippies surfistas. Sem
necessariamente pensar no motivo, comecei a ter aversão pelos
quatro grupos. Eu me via fazendo proselitismo de trás do meu
pequeno balcão de livraria, tentando atrair o interesse das
pessoas para leitura, literatura, história, por qualquer coisa além
de seus suvenires, chacras ou fossas sépticas. Eu não estava
chegando a lugar algum, e minha arrogância de universitário
começou a endurecer e se transformar em insatisfação. De
repente, me senti velho, como um anti-hippie prematuro. Caryn,
que havia compartilhado dessa ideologia por anos, achava
engraçado.
Os bonitos e famosos também começavam a fazer aparições
no local, principalmente de iate. Ali estava o veleiro de Peter
Fonda, lá ia a escuna de Neil Young com “Cowgirl in the Sand”
tocando a todo volume no convés enquanto deixava o local em
direção a Lanai durante o pôr do sol. Caryn se sentia intimidada
pelas groupies de pernas bonitas que espreitavam esses barcos
de luxo até que teve uma experiência reconfortante em um
banheiro público na baía em frente à casa de Kobatake. Alguém
realizava a performance mais barulhenta e fedorenta da história
em uma das cabines do banheiro feminino. Caryn tentou
apressar as próprias abluções para evitar o constrangimento de
encontrar a mulher, mas não foi rápida o suficiente e, é claro, a
aspirante a estrela que surgiu, corando, tinha saído diretamente
do barco de algum deus do rock.
Já o astro do rock que me animou, socialmente falando, foi
Jimi Hendrix, quando apareceu em um curioso filme chamado
Rainbow Bridge, sobre um show que fizera um ano antes em
Maui. O filme era rústico e o som era ruim enquanto Hendrix e
sua banda tocavam em um campo cheio de arbustos sob um
alísio uivante. Havia um esboço de romance documental entre
Hendrix e uma mulher negra e esbelta de Nova York. Ela
mantinha a comunidade hippie de Maui a distância, e Hendrix se
colocava mais longe ainda. Suas frases indistintas e indiferentes
me fizeram rir. Um líder de comunidade passivo-agressivo
chamado Baron ficou tão chato que Hendrix foi obrigado a retirá-
lo de uma sacada com um rifle. O filme acabava com uma
sequência de orçamento zero em que “irmãos espaciais” vindos
de Vênus aterrissam na cratera do Haleakala. Encarei o fim como
pura brincadeira. Porém, quanto mais eu ouvia conversas sobre
“venusianos” na livraria e em outros lugares, mais eu percebia
que minha interpretação era minoritária.
Caryn e eu não estávamos totalmente em discordância com a
nossa pequena comunidade improvisada. Havia outro filme, um
de surfe hardcore, para o qual eu a arrastei. Filmes hardcore de
surfe não significam nada para alguém que não surfa. Um velho
cinema caindo aos pedaços em Lahaina, o Queen Theater, exibia
de vez em quando esses filmes, sempre com sessões lotadas e
plateias chapadas. Lembro-me de algumas sequências (embora
não do título) desse filme em especial. Uma delas mostrava uma
onda gigante em Banzai Pipeline, e os produtores, precisando de
uma trilha sonora, tocaram o hino de ritmo crescente dos
Chambers Brothers, “Time Has Come Today”, a todo volume.
Todos no cinema pareceram ficar de pé, gritando, sem acreditar
no que viam. Para pessoas como nós, ver caras entrarem em
ondas tão apocalípticas era de arrepiar. Consigo me lembrar da
surpresa que foi ver Caryn também de pé, com os olhos
vidrados.
Em seguida, vinha a sequência de Nat Young e David
Nuuhiwa surfando um dos nossos picos locais, Breakwall, com
uma trilha muito mais suave. Nuuhiwa tinha sido, alguns anos
antes, o melhor surfista de pé no bico da prancha, e Young fora o
primeiro grande surfista de pranchinha, e quase me levava às
lágrimas vê-los surfar juntos, agora com pranchas pequenas,
ainda mestres absolutos — o último delfim da velha ordem e o
australiano forte e revolucionário tocando uma espécie de dueto
sob o sol nas ondas que todos conhecíamos bem. Eu duvidava
de que Caryn tivesse entendido todas as implicações da série de
Nuuhiwa e Young, mas ela sem dúvida entendeu o trecho
seguinte. Os produtores tinham dado ouvido a maus conselhos e
tentado incluir alguns segmentos cômicos rodados em terra —
sempre uma ideia ruim para um filme hardcore de surfe. Um
envolvia um vilão correndo com uma máscara de meia de náilon
que distorcia seu rosto. A plateia reclamou, e alguém gritou: “Vai
se foder, Hop Wo!” Hop Wo era um comerciante de Lahaina com
fama de mal-humorado e avarento. O vilão de meia de náilon era
um pouco parecido com ele. Caryn riu junto com o público do
surfe, e “Vai se foder, Hop Wo!” se transformou em uma
expressão prazerosa e complexa entre nós.

***

Enviei 125 dólares para Bryan Di Salvatore quando consegui.


Não tive notícias dele diretamente, mas uma elegante mulher
chamada Max costumava passar pela livraria e, às vezes, levava
notícias dele. Bryan estava em Idaho, depois Inglaterra e, em
seguida, Marrocos. Eu não conseguia decifrar Max. Ela era
masculinizada, de um jeito que lembrava uma modelo, com voz
baixa e olhar fixo e divertido. Parecia acima do nível de Lahaina
— como se devesse estar em Monte Carlo ou algum outro lugar.
Sem dúvida havia rolado algo entre ela e Bryan, mas ela parecia
bem satisfeita com a sua ausência. Eu me perguntei o que
pensou quando viu o antigo carro dele. Caryn pintara uma grande
flor no capô, instigada por mim. Era uma flor bem pintada, mas
ainda assim... Não se tratava mais de um carro que poderia ser
chamado de Rhino Chaser. Eu disse que estava me tornando
anti-hippie, mas ainda preservava algumas tendências.
Recebia pouquíssimas notícias dos meus pais. As objeções
que fizeram depois que parei de estudar ainda ecoavam em
minha mente. Meu pai insistira que 90% das pessoas que
largavam a faculdade não voltavam para obter o diploma — “As
estatísticas comprovam!”. Eles provavelmente também estavam
preocupados, com razão, com minha possível convocação para o
serviço militar. O que não sabiam é que eu nunca tinha me
alistado. Meu senso de dever cívico, que nunca foi forte, era
inexistente quando se tratava dos militares. Talvez, se os federais
aparecessem me procurando, eu fosse parar no Caribe com os
proprietários da Either/Or. Enquanto isso, não pensava no
assunto. Meus pais também haviam insistido para que Caryn e
eu dormíssemos em quartos separados enquanto ficávamos com
eles em Honolulu. Esse foi o maior dos insultos.
Nossos vizinhos de quarto na casa de Kobatake, uma turma
barra-pesada, fumavam maconha e eram propensos a andar de
skate no corredor, a ouvir música alta e transar mais alto ainda.
Pareciam estar constantemente tocando Sly and The Family
Stone; e eu nunca mais voltaria a gostar dos discos da banda. Eu
sempre envergonhava Caryn saindo do nosso quarto com um
livro na mão para encarar aqueles tarados barulhentos. Na
verdade, eu não sabia que ela ficava envergonhada. Caryn só
me contou isso anos mais tarde. Ela até me mostrou seu diário, e
ali estou eu, “nosso estudioso fervoroso” enfiando a “cabeça
maluca no corredor” e causando nela “grande desgosto”. Não me
importo que não gostem de mim, mas ela se importava — mais
um ponto inconveniente que não me dei ao trabalho de perceber.
Todo mundo na casa de Kobatake recebia cupons de
alimentação. Na verdade, todos os que algum dia moraram ali
pareciam ter recebido. “Na época habitual do mês, vinham os
cor-de-rosa”, era como o sempre mordaz diário de Caryn
descrevia. Ela se referia às dezenas de cheques cor-de-rosa do
governo que chegavam para residentes, tanto atuais quanto
outros que já haviam partido. Essa confiança em massa em
cupons de alimentação não significava, para o nosso esparso
grupo em Maui, nenhuma suposição em específico sobre o
estado de bem-estar social, pensei. Cupons de alimentação eram
vistos apenas como mais um golpe — estranhamente legal e
fácil, mas, sem dúvida, algo menor. Posteriormente, morei em
meio a jovens fisicamente capazes que viviam de caridade na
Inglaterra e na Austrália (alguns desses últimos eram surfistas) e
viam os cheques de seu governo como um sustento fundamental
e uma espécie de direito.
Certo dia, quando não estávamos trabalhando, Caryn e eu
saímos para pegar umas marolas em um pico chamado Olowalu.
Era um pequeno recife sem forma a sudeste de Lahaina, perto de
uma parte plana da costa onde a estrada corria junto da praia.
Caryn não tinha o menor interesse em aprender a surfar, o que
eu achava sensato. Pessoas que tentavam começar em idade
avançada, ou seja, com mais de quatorze anos, não tinham,
segundo minha experiência, quase nenhuma chance de se tornar
proficientes e normalmente sofriam muitas dores e ficavam tristes
antes de desistir. Mas era possível se divertir sob supervisão e
nas condições certas, e naquele dia eu a convencera a tentar as
ondas lentas e pequenas na minha prancha. Eu nadava ao lado
dela, impulsionando-a para a frente, ensinando-a a posição
correta, empurrando-a nas ondas. E ela estava realmente se
divertindo, pegando ondas longas deitada, aos gritos e assobios.
Eu só tentava não me machucar nas rochas — a água era rasa e
não cheirava bem nem parecia especialmente limpa. Não havia
mais ninguém por perto, apenas carros passando a toda pela
estrada para Kihei. Então, quando Caryn terminou uma onda,
descendo por sua parte traseira enquanto a onda passava para a
lagoa perto da costa, vi quatro ou cinco barbatanas dorsais na
frente dela: tubarões nadando em paralelo à costa.
Pareciam galhas-pretas — não se tratava da espécie local
mais agressiva de tubarão, mas ainda assim era uma visão nada
agradável. Não pareciam grandes, embora, na verdade, fosse
impossível afirmar isso de onde eu estava. Os tubarões nadavam
bem perto da costa. Eu, a quase trinta metros de distância.
Caryn, a apenas alguns metros da praia, obviamente não os viu.
Ela batia os braços e as pernas, tentando voltar com a prancha
na direção do mar. Baixei a cabeça e nadei até ela, sem bater as
pernas, com toda a força que podia. Caryn dizia alguma coisa,
mas o fluxo de sangue correndo ruidosamente em minha cabeça
abafava o som que chegava aos meus ouvidos. Quando eu a
alcancei, vi que os tubarões tinham feito a volta. Ainda nadavam
perto da costa, mas agora retornavam em nossa direção. Fiquei
de pé, com a água na altura da cintura, tentando vê-los, mas o
mar estava lamacento. Mantive o rosto virado quando eles
passaram por nós. Não queria que Caryn visse minha expressão,
qualquer que fosse. Ela ficou surpresa, imagino, quando eu a
virei para a praia e comecei uma caminhada rápida em direção à
beira, ignorando as rochas que tomara tanto cuidado para não
pisar. Ainda assim, não me lembro de ela dizer uma palavra.
Posicionei a prancha para bloquear sua visão dos tubarões, de
modo que chegássemos à praia bem longe deles, supondo que
não fizessem a volta outra vez rápido demais. Eles não viraram,
pelo menos não enquanto cruzávamos a lagoa ou subíamos pela
areia. Não olhei para trás depois disso.
Caryn e eu nos encontrávamos em território estranho. Eu
estava profundamente envolvido com minha antiga amante, o
surfe. Esperava com uma expectativa apaixonada que a baía de
Honolua começasse a quebrar no outono — me preparando,
surfando todo dia. Caryn, que nunca tinha me visto nesse estado,
não parecia com ciúme. Na verdade, começou a fazer perguntas
discretas sobre os aspectos técnicos da minha prancha ideal
para Honolua. Era uma linha de questionamento tão improvável
que ela foi forçada a confessar seu plano: queria me dar uma
prancha nova de aniversário. Com nossas rendas, baixas o
suficiente para nos assegurar cupons de alimentação, não era
um presente nada pequeno. Então eu estava ansioso por
Honolua, e ela aceitava isso. Mas, afinal, o que Caryn estava
fazendo em Maui? Ela deixara o emprego de garçonete e agora
servia sorvetes em um resort horroroso recém-aberto perto de
Lahaina chamado Kaanapali. Tínhamos feito alguns esforços
para encontrar seu pai. Fomos de carro até Kahului e Paia,
fizemos perguntas em um mosteiro e em uma clínica
ambulatorial, mas não seguimos as frágeis pistas que obtivemos.
Eu começara a me perguntar se ela queria mesmo emboscá-lo.
Poderia ser doloroso, para dizer o mínimo. Lahaina tinha seus
encantos. Eram mais sutis do que os da costa oeste de Maui e
do interior — velhos templos chineses, algumas excentricidades
divertidas, os blocos de coral de uma prisão em ruínas assando
sob o sol —, e ainda assim Caryn gostava deles. Ela até fez
amigos entre os outros migrantes do surfe — que chamava de “o
bando de criaturas louras do sol”. Mas a estranheza entre nós
começou com o nosso fracasso — na verdade, o meu fracasso
— em fazer qualquer distinção séria entre os desejos dela e os
meus.
Tínhamos nos mesclado, nos fundido, os limites do nosso
coração haviam se dissolvido, pelo menos na minha cabeça,
desde que ficamos juntos no ensino médio. Fisicamente, éramos
um casal bem diferente. Eu era pelo menos trinta centímetros
mais alto. A mãe de Caryn, Inge, gostava de nos chamar de Mutt
e Jeff, como nas tirinhas de Bud Fisher. Mas nós nos sentíamos
como um só corpo. Vivenciei nossas separações intensamente.
Quando ainda estávamos no ensino médio e as noites de Inge
pareciam uma longa orgia de meia-idade, Caryn e eu éramos os
jovens puritanos residentes — estranhamente monogâmicos,
totalmente dedicados um ao outro. O apartamento dela era um
lar incomum mesmo para a época — um lugar onde os filhos
tinham liberdade para transar e ainda assim suscitavam pena
pela falta de espírito aventureiro. Levei um tempo para me
acostumar com essa liberdade após uma adolescência evitando
(ou não conseguindo evitar) pais atentos e, às vezes, furiosos.
Meus pais nunca se acostumaram com isso e, depois que fiquei
com Caryn, tinham ataques quando eu não voltava para casa à
noite, o que sempre acontecia. A fúria deles me surpreendia. Por
anos eu me sentira como o que Caryn chamava, com solenidade
irônica, de “um agente livre de Deus”. Então, aos dezessete, eu
de repente tinha um toque de recolher? Meu próprio triste
diagnóstico: pânico sexual dos pais.
Então eu e Caryn sofremos um acidente de carro. Tínhamos
viajado para acampar na costa quando um bêbado em alta
velocidade bateu na traseira da minha van. Perda total. Nenhum
de nós se machucou. Mas recebemos uma pequena indenização
do seguro, e, com o dinheiro, compramos passagens muito
baratas em voos charters e partimos para a Europa, ignorando
nossa formatura do colégio. Achei que a ida abrupta tinha
acalmado meus pais. Nunca passou pela minha cabeça a
potencial crueldade. Será que estavam ansiosos pela formatura
do seu primogênito? Se fosse o caso, eles não me disseram. Por
outro lado, Inge pareceu acordar e surtar quando estávamos de
partida, e me fez prometer cuidar da sua garotinha.
No entanto, nunca fiz isso de fato. Caryn e eu começamos a
discutir, e nossas brigas não eram boas. Na estrada,
principalmente, eu me transformei num tirano, determinando um
ritmo impiedoso enquanto perambulávamos pela Europa
Ocidental, vivendo de biscoitos e ar fresco, dormindo sob as
estrelas. Sempre havia algum lugar novo, melhor, onde tínhamos
que estar. Eu a arrastei em peregrinações extenuantes para
festivais de rock (Bath), cidades de surfe (Biarritz) e os antigos
lares (e túmulos) dos meus escritores favoritos. Caryn, menos
imatura, não via razão para tanta pressa. Ela imprensava folhas
secas entre as páginas do seu diário, ia a museus e, já fluente
em francês e alemão, começou a aprender cada língua com que
nos deparávamos. Finalmente fincou o pé em Corfu, uma ilha do
oeste da Grécia, depois que anunciei que tinha um desejo
ardente de ver mais “influência turca”. Ela disse que eu podia sair
em busca de minaretes otomanos por conta própria. Então parti e
a deixei na praia remota com uma montanha ao fundo, onde
acampávamos au naturel. Acho que nenhum de nós acreditava
que eu ia mesmo fazer aquilo, mas eu tinha me tornado adepto
de me deslocar rapidamente por territórios estranhos gastando
pouco e, em uma semana, eu estava na Turquia, já com a
intenção de viajar por terra até a Índia. Movimento, novas
companhias, novas terras eram minhas drogas naquela época —
descobri que faziam maravilhas para os nervos de um
adolescente. A influência turca me fascinou por cerca de meia
hora. Depois, só a influência tâmil seria suficiente.
Essa loucura chegou a um triste fim em uma praia deserta na
costa sul do mar Negro. Ondas medíocres, marrons, turvas e
remexidas vinham de Odessa. Eu andava com dificuldade por
dunas cobertas de vegetação baixa. O que, exatamente, eu
estava fazendo? Tinha deixado meu verdadeiro amor sozinho em
um lugar inóspito na Grécia, abandonada na estrada. Ela tinha
dezessete anos, pelo amor de Deus. Nós dois tínhamos. Minha
avidez por novas paisagens, novas aventuras, desapareceu em
uma nuvem de fumaça amargurada enquanto eu ficava sentado
entre arbustos na Turquia, sem me dar ao trabalho de montar
acampamento. Cachorros latiam, a noite caiu, e, de repente, eu
me vi não como o protagonista destemido do meu próprio filme
incrível, mas como um idiota infeliz: um namorado aproveitador,
um adolescente que fugiu grande demais de casa, uma criança
assustada precisando de um banho.
Istambul, 1970

Na manhã seguinte, parti de volta em direção à Europa. Entrar


lá outra vez se revelou mais difícil do que tinha sido sair. Havia
ameaça de cólera, e as fronteiras com a Grécia e a Bulgária
estavam supostamente fechadas. Perambulei por Istambul,
caminhando ao longo do Bósforo e dormindo no telhado dos
hotéis (era mais barato que um quarto). Tentei ir para a Romênia,
mas as sentinelas de Ceaușescu acharam que eu era um
parasita decadente e me recusaram um visto. Em seguida, a
polícia fez uma batida no hotel vagabundo onde eu estava
hospedado. Prenderam três britânicos, que foram condenados no
dia seguinte por posse de haxixe e sentenciados a vários anos
de prisão. Eu me mudei para outro telhado. Escrevia postais
corajosos e orgulhosos: “Ei, nenhuma fotografia pode fazer
justiça à beleza da Mesquita Azul.”
Mas eu estava desesperado por causa de Caryn. Embora ela
houvesse dito que ia dar um jeito de chegar à Alemanha, onde
tínhamos amigos, eu não parava de imaginar o pior. Comprei
para ela uma bolsa barata no Grand Bazaar. Fiz amizade com
outros estrangeiros que estavam encalhados ali. Por fim, não
resisti e telefonei para casa. Passei o dia inteiro rodeando a velha
e enorme agência dos correios até conseguir a ligação. E a
conexão era horrível. A voz da minha mãe soou terrivelmente
frágil, como se ela tivesse envelhecido cinquenta anos. Eu não
parava de perguntar o que havia de errado. Disse a ela que
estava em Istambul, mas ainda não tinha pedido notícias de
Caryn — não mencionei que fazia semanas que eu não a via — e
então a ligação caiu. Nesse momento, o correio estava fechando.
Escrevi muitos cartões-postais e cartas, mas essa foi a única
ligação que fiz para casa naquele verão.
No fim, eu me juntei a outros ocidentais desesperados e
subornamos alguns guardas da fronteira da Bulgária. Atravessei
os Bálcãs e os Alpes e, com a ajuda de um quadro de avisos em
uma agência da American Express em Munique, encontrei Caryn
em um camping ao sul da cidade. Ela parecia bem. Um pouco
desconfiada. Tive medo de exagerar nas perguntas sobre o que
ela havia feito. Sim, falei, eu obtivera minha cota de influência
turca. Ela aceitou a bolsa. Retomamos nossas viagens: Suíça, a
Floresta Negra, uma visita absurdamente estranha à cidade natal
da mãe de Caryn no Reno. Lá, pessoas velhas insistiam em
confundi-la com Inge e, em seguida, sussurravam denúncias
para nós sobre vizinhos terem pertencido à SS. Em Paris,
passamos a primeira noite dormindo no chão no Bois de
Boulogne. Em Amsterdã, soubemos que Jimi Hendrix ia tocar em
Roterdã. Planejamos ir. Mas aí o show foi cancelado e, cinco dias
depois, Hendrix morreu. (O filme de Maui sobre ele tinha sido
rodado apenas algumas semanas antes.) Janis Joplin e Jim
Morrison, meus outros heróis, também estavam mortos na época.
Voamos de volta para a Califórnia e fomos morar juntos, Caryn
ilegalmente, em meu pequeno alojamento em Santa Cruz. Era
uma combinação estranha, em que eu roubava comida para ela
do refeitório, mas não éramos o único casal de calouros hippies
foras da lei fazendo isso. Para mim, pelo menos por um tempo,
foi perfeito. Eu estava cheio de livros e ótimos professores,
caminhava descalço entre as sequoias e discutia Aristóteles, tudo
com meu verdadeiro amor sempre por perto. Caryn assistia a
algumas aulas como ouvinte, viajava de carona para lá e para cá
(Los Angeles, a fornicação no Canadá) e começava a pensar na
própria carreira universitária. Então tive a brilhante e formidável
ideia de ir para Maui, e a arrastei comigo.
Ficamos muito ligados um ao outro, inevitavelmente, durante
aqueles primeiros meses. Quando Kobatake tentou aumentar
nosso aluguel — ou nos multar devido a um roubo imaginário de
suas galinhas, ou nos despejar quando achou que tinha alguns
trouxas na fila dispostos a pagar mais —, reagimos juntos.
Quando as pessoas que conhecíamos falavam sério sobre
venusianos, tínhamos um ao outro. Éramos dois céticos —
racionalistas, leitores em um mundo de mística sem lógica e
inócua. Ainda assim, voltamos a discutir. Em geral, era difícil
dizer sobre o que brigávamos, mas as discussões aumentavam,
saíam de controle, e um de nós ia embora no meio da noite. O
sexo de reconciliação podia ser sublime, mas estava começando
a ser a única ocasião em que transávamos.
A situação ficou ainda mais estranha quando Caryn
engravidou. Nunca conversamos sobre ter a criança. Nós
mesmos ainda éramos crianças. Eu secretamente acreditava que
também era imortal. Haveria tempo para tudo isso — muitas
vidas no futuro. Caryn fez um aborto. Naquela época, isso
envolvia passar uma ou duas noites no hospital em Wailuku.
Depois do procedimento, ela pareceu péssima, o corpo em
posição fetal em uma cama de enfermaria, com a cara fechada e
o olhar ofendido. Voltamos para Lahaina em silêncio no carro.
Isso, agora eu entendo — não estava nem perto de entender na
época —, foi basicamente o nosso fim.

***

Uma das tendências hippies que mantive, mesmo nesse período


de reação antiutópica, foi o desejo de viver em uma comunidade
fechada. Eu queria, de um modo não muito bem definido, reunir
um grupo de amigos em algum lugar inspirador, onde todos
viveríamos felizes para sempre. Maui, que parecia estar ficando
mais boba e mais turística a cada dia, não se encaixava muito
bem no papel; mesmo assim, convenci vários amigos, entre eles
Domenic e Becket, a se juntarem a nós em Lahaina. Eles foram e
passaram semanas espremidos no chão da casa de Kobatake.
Mais tarde, pareceu claro que eu inconscientemente alimentava a
esperança de reconstituir um círculo familiar. Na verdade, eu
tinha saído de casa muito novo, e por vários anos senti uma
compulsão pouco compreendida de erguer para mim mesmo um
novo abrigo do mundo — mesmo quando me recusei a começar
uma família biológica com Caryn e dava a impressão de estar
andando a esmo pelo planeta, com uma compulsão oposta.
Ainda assim, em Lahaina não fiz nenhum esforço verdadeiro para
encontrar uma acomodação mais apropriada para um grupo
maior, provavelmente porque eu sabia que uma casa comunitária
não funcionaria. Caryn e eu estávamos vivendo uma situação
muito instável. Além disso, ela era a única garota do grupo.
Sem dúvida, Domenic sabia que não iria funcionar. Ficou
óbvio, quando ele veio morar conosco, que algo tinha acontecido
no Canadá, durante as peripécias dele e de Caryn para escapar
do alistamento, na primavera. Ou melhor: ficou óbvio para mim.
Eles já sabiam tudo a respeito. Nunca pedi detalhes. Fiquei
horrorizado e furioso, mas tentei enxergar o lado bom das coisas.
Talvez pudéssemos fazer um ménage à trois. Não tínhamos
assistido juntos a Jules e Jim – Uma Mulher para Dois? Cantado
com Grateful Dead: “We can share the women, we can share the
wine” (Podemos dividir as mulheres, podemos dividir o vinho)?
Domenic, com sua compreensão senequiana do possível,
recusou e voltou para Oahu, onde arrumara um emprego
trabalhando para o meu pai, que estava produzindo a série de TV
Havaí 5-0.
Domenic era jardineiro no set do programa na Diamond Head
Road — um trabalho quente e sujo —, mas ele e meu pai
pareciam se entender. Eu tinha um desinteresse brutal pela
indústria cinematográfica; Domenic não compartilhava da minha
antipatia. Meu pai, que admirava a disposição do meu amigo
para o trabalho, queria ajudá-lo a entrar nos sindicatos fechados
dos técnicos de Hollywood. Domenic aceitou a ajuda de bom
grado. Acabou se mudando de volta para Los Angeles, tornou-se
editor de filmes, depois cameraman, em seguida diretor. Muitos
anos depois, em um momento digno de O Poderoso Chefão em
seu casamento, o pai dele, o grande Dom, agradeceu ao meu pai
com lágrimas nos olhos. Ele estava feliz, eu acho, pelo fato de o
filho não ter entrado para seu negócio. Será que o jovem
Domenic enxergou a oportunidade profissional quando voltou
para Oahu? Duvido. Sei que eu o vi partir com sentimentos
conflitantes, que incluíam a surpresa por ele conseguir deixar
Maui antes que a baía de Honolua começasse a quebrar.
Eu devia dizer aqui algo em retrospectiva sobre Los Angeles.
Era questão de fé entre nossos círculos de jovens ex-moradores
da cidade que o lugar era como viver uma morte. Se a Irlanda era
a porca que devorava seus leitões, Los Angeles era o serial killer
John Wayne Gacy das cidades, cobrindo seus filhos com uma
toalha de praia tóxica de ar envenenado, crescimento
desordenado e valores ruins. O que quer que estivéssemos
procurando — beleza, sabedoria, ondas vazias — certamente
não estava ali. Pelo menos era nisso que acreditávamos.
(Quando, mais tarde, soube que Thomas Pynchon, um dos meus
heróis durante a universidade, aparentemente tinha vivido em
Manhattan Beach, na terrível South Bay, no fim dos anos 1960 —
e achara inspiradora sua vitalidade suja e desbotada —, de
súbito enxerguei as coisas de modo diferente. Fiquei surpreso
com minha própria miopia, minha falta de originalidade. Mas, na
verdade, eu tinha detestado o romance que sua pesquisa em
South Bay acabara originando.) A nostalgia persistente que
infectava a maioria dos surfistas, até os mais novos — a ideia de
que ontem estava sempre melhor, e melhor ainda anteontem —,
relacionava-se a essa visão distópica do sul da Califórnia, a
megalópole suburbana que era, afinal de contas, a capital do
surfe moderno e a sede da nascente indústria do surfe. Mas
levávamos essa nostalgia conosco aonde quer que fôssemos.
Em Lahaina, minha imaginação foi capturada pela notícia de que
na cidade antes havia um grande rio, grande o suficiente para ser
navegado por navios baleeiros em busca de água doce. Fazia
sentido. Se Puu Kukui, lá no alto das montanhas, era o segundo
ponto mais chuvoso do mundo, para onde corria toda a água?
Era desviada para irrigação pelas empresas que plantavam cana-
de-açúcar por todo o oeste de Maui, é claro. Como resultado, a
moderna Lahaina era totalmente seca, empoeirada e lá fazia um
calor fora do normal.
Quando Becket se juntou a nós, Caryn e eu estávamos
exaustos de tanto brigar e praticamente no fim. Caryn arranjou
um quarto só para ela em um prédio caindo aos pedaços que
servia de alojamento para operários, ao lado de uma velha usina
de açúcar na zona norte da cidade. Lahaina tinha um
desequilíbrio de gêneros, pelo menos entre os jovens recém-
chegados — havia muito mais homens que mulheres —, e eu
tinha certeza de que via muitos dos caras pela cidade
observarem que a moreninha haole e gostosa da sorveteria
agora morava sozinha. Até Dan, o cara de sorriso forçado da
Either/Or que escapara do serviço militar, começou a dar em
cima dela. Eu estava escrevendo um poema épico cheio de
imagens de tempestades tropicais chamado “Vivendo em um
carro”. Então parei e comecei a escrever um conto sobre um
cortador de cana filipino no Havaí que passa seus melhores anos
em alojamentos exclusivos para homens e, em seguida, se
apaixona por uma boneca inflável. Minha situação não era tão
desesperadora assim, mas eu não estava feliz.

***

Com seu bom coração, Caryn ainda tinha a intenção de me dar


uma prancha nova. Por isso eu escolhi um shaper, Leslie Potts.
Ele era o monarca reinante da baía de Honolua, um mago de
pele coriácea e fala mansa, além de guitarrista de blues. Tentei
lhe dizer o que eu queria — algo leve, rápido, manobrável —,
mas fiquei sem palavras. De qualquer forma, ele não estava
interessado. Potts tinha me visto surfar Harbor Mouth. Mais do
que isso, conhecia Honolua em todos os seus humores,
exigências e possibilidades supremas. Ia shapear para mim uma
prancha de dois metros e dez, grossa, fora de moda e larga que
faria os drops, as manobras curtas e correria como o vento. Não
seria o shape nem o tamanho que eu teria escolhido, mas confiei
em Potts. Ele era considerado o melhor surfista de Maui, e as
pessoas diziam que, quando se dava ao trabalho, shapeava tão
bem quanto surfava. Surpreendentemente, ele me entregou a
prancha em pouco tempo. E ela passava uma impressão mágica.
Algo no arco do rocker fazia o bloco shapeado parecer vivo.
Tive mais controle sobre a laminação. O laminador de Potts
era um cara calado e de óculos chamado Mike. Eu queria uma
única camada de fibra de vidro de seis onças no fundo, e duas,
de seis e quatro onças, no deck, com sobreposição na borda.
Isso era considerado estupidamente leve para uma prancha de
Honolua, nem que fosse pelo terrível castigo que o penhasco
ministrava às pranchas perdidas, mas eu queria compensar pelo
volume do bloco. Mike seguiu minhas instruções. Encomendei
pigmento sólido cor de mel para o deck e as bordas, com um
fundo claro. Não haveria adesivo: Potts era estritamente
underground.
Becket e eu verificávamos a costa noroeste diariamente. Era
início do outono; o Pacífico Norte começava a se agitar. Algumas
pessoas diziam que nunca havia um swell em Honolua antes que
as baleias-jubarte chegassem, em novembro. Rezávamos para
que estivessem erradas. Becket aparecera em Maui com
aparência exausta — eu nunca o tinha visto mais pálido. Os
últimos anos foram difíceis para ele. Uma viagem ao México dera
errado e o deixara com amebíase, o que acabou ao mesmo
tempo com sua vida no ensino médio e sua carreira no basquete.
Mais recentemente, uma cirurgia nos rins o mantivera de cama
por meses. Ele agora estava curado, disse, mas obviamente
enfraquecido. Surfamos em torno de Lahaina, e Becket aos
poucos começou a recuperar a força. Estava surfando com uma
prancha de rabeta pin só alguns centímetros maior do que ele.
Desenvolvera um novo estilo inclinado para a frente com as
mãos soltas, que parecia funcionar. Não sabia se Becket estava
no Havaí de férias ou se pretendia ficar. Tinha uns siclos
guardados, como ele dizia, e ainda não estava procurando
emprego. Ficava claro, porém, que as ilhas eram perfeitas para
ele e seu temperamento. Becket perambulava pela orla de
Lahaina olhando para os baldes dos pescadores, assim como
fazia quando criança no píer de Newport. A cidade tinha um
grande número de iates e groupies, duas de suas coisas
favoritas. Mais genericamente, os porcos assados, o toque do
ukulele e os ritmos com enfoque no mar do Havaí rural atraíam
um garoto de San Onofre, agora em busca do próprio doutorado
em diversão. Como o restante de nós, Becket estava em fuga
espiritual do sul da Califórnia — Orange County crescia ainda
mais rápido e mais brutalmente que Los Angeles. Domenic
começara a dizer que Becket ia acabar virando bombeiro, como o
pai. Na verdade, ele herdou o talento paterno para marcenaria, e
esse seria seu ofício.
Honolua começou a quebrar, de um jeito marginal. Becket e eu
a surfamos estupidamente perto do penhasco, agarrando-nos
com desespero às pranchas. Comecei a me acostumar com a
prancha de Potts, que voltava suavemente das manobras mais
forçadas que eu podia conjurar. Na verdade, sua virada era tão
brusca da saída da cavada que, em ondas pequenas, eu não
costumava ser rápido o suficiente para trocar de borda, mudando
meu peso da borda interna, a dos dedos, para meus calcanhares,
e sem querer voava por cima dela. Não era uma prancha para
ondas grandes — o shape era arredondado e oval demais —,
mas nitidamente construída para ondas rápidas, espaçosas e
poderosas.
Um dia, vi uma coisa comovente em uma revista de surfe. Era
uma foto de Glenn Kaulukukui em Pipeline. Fazia anos que eu
não tinha notícias de Glenn, e agora ali estava ele, a silhueta
reconhecida de imediato sobre uma onda reluzente e
extremamente perigosa. Era impossível ver sua expressão, mas
com certeza não tinha nada de sua velha ironia e seu humor
ambivalente. Aquela onda era o ápice. Pouquíssimos surfistas
realizariam algo semelhante. Ninguém podia encarar aquilo de
forma superficial. A foto significava que Glenn tinha crescido,
sobrevivido e que passara a surfar em nível muito alto. A postura
dele nas mandíbulas se fechando daquele monstro de Pipeline
era estilosa e orgulhosa — quase Eddie Aikau. Anos mais tarde,
vi mais uma foto dele em outra revista. Novamente, aparecia
apenas a silhueta de Glenn, agora surfando em Jeffreys Bay, um
pointbreak na África do Sul. Era uma foto maravilhosa, com
composição clássica, iluminação expressiva, na qual um forte
vento terral rastelava uma parede sem fim e passava uma
mensagem poderosa, porque Glenn, cujo perfil contrastava com
a onda iluminada por trás, parecia africano, e aqueles ainda eram
os antigos tempos ruins do apartheid. De acordo com uma
história que acompanhava a foto, uma equipe havaiana, que
incluía Eddie Aikau, tinha ido a Durban para uma competição de
surfe e fora barrada em um hotel apenas para brancos. Mostrei a
foto de Pipeline para Caryn, que, com minha narração, estudou a
imagem atenciosamente. “Ele é bonito”, disse ela por fim.
Obrigado.

***

Em algum momento de outubro, Honolua começou a quebrar


para valer. As condições das ondas eram as mesmas que
tínhamos surfado na primavera: uma parede longa no outside
secionada e com turbulências, depois a longa seção do bowl
rodando no pico principal, em seguida um trem de carga
barulhento e azul percorrendo todo o recife até o interior da baía.
Era, mais uma vez, uma onda gloriosa, com tonalidades tão
intensas em suas profundezas que pareciam inéditas — cores do
oceano nunca vistas, feitas exclusivamente para aquela onda,
aquele momento, talvez para nunca mais serem vistas. Surfar o
lugar com inteligência exigia muito estudo, claramente um
aprendizado de anos. Mas o sindicato local de Honolua não
estava mais aceitando inscrições: o pico já tinha um círculo muito
grande de devotos. Eles vinham de toda parte de Maui e, em
swells grandes, de Oahu também. O crowd em Honolua tinha
mais rostos escuros que os line-ups em Lahaina. Na verdade,
poucos surfistas que frequentavam com regularidade os picos da
cidade apareciam por lá quando a temporada de inverno
começava. O surfe era de calibre muito mais alto. Às vezes, em
especial quando um swell estava chegando ao auge, a ação na
água parecia completamente frenética enquanto surfistas
agitados e muito habilidosos forçavam seus limites, onda após
onda, exigindo mais uns dos outros. Era um crowd difícil.
Ninguém dava uma onda para um recém-chegado. Mas percebi
que ter sucesso em pegar as melhores ondas era menos uma
questão de agressividade e disputa do que de entrar no ritmo das
séries e descobrir as brechas no crowd. Todo o cenário dava a
sensação de um santuário religioso tomado por peregrinos
apaixonados. Eu meio que esperava que as pessoas
começassem a falar em línguas incompreensíveis, se
debatessem e espumassem pela boca, ou que macacos de
mosteiro nos bombardeassem com goiabas.
Os melhores surfistas eram incríveis. Alguns eram grandes
nomes das revistas, outros eram figurões locais. Só vi Les Potts
na água uma vez naquele outono. Ele usava uma prancha
branca larga com o mesmo shape que a minha. As ondas
estavam de tamanho médio; o vento, leve; o crowd, bem ruim; e
Potts ficou afastado do grupo no pico principal. Em vez disso, ele
se escondeu no inside e usou alguma forma pessoal de radar
marinho para desviar das séries e penetrar pelo recife em
momentos improváveis para pegar um grande número de ondas
limpas e rápidas que mais ninguém via chegar. Seu surfe, sutil e
seguro, só era radical quando ele julgava ser o momento certo —
que de maneira alguma acontecia em todas as ondas — para
mandar alguma manobra sinistra. Seu conhecimento do recife
dava a impressão de ser enciclopédico, e ele se concentrava em
entrar nos tubos que rodavam acima das lajes mais rasas no
inside. Fui mais para o interior da baía a fim de observá-lo.
Percebi que a multidão habitual no penhasco, que fora assistir ao
show, não conseguia ver Potts. Ele estava do outro lado da
curva, basicamente surfando sozinho.
Minha prancha nova funcionava bem. Observando Potts, eu
conseguia ver o que ele tinha em mente para aquele shape. Eu
nunca surfaria com tamanha precisão, mas vi que podia traçar
linhas mais arredondadas, curvas mais pronunciadas, subindo
mais alto até o lip do que eu achava ser possível em uma onda
superveloz como Honolua. Quando eu surfava forte, levando a
prancha ao limite, outras pessoas no line-up percebiam que eu
não estava ali para vê-las surfar. Era uma longa subida rumo ao
topo da hierarquia, e eu nunca chegaria ao primeiro nível, mas
comecei a tomar meu lugar no segundo. Em alguns dias,
conseguia pegar tantas ondas quanto todo mundo, e pessoas
que eu não conhecia assobiavam quando eu dropava — me
incentivando a ser mais radical. Se meu surfe parecia ter
estagnado quando fiz quinze anos, agora estava em ascendência
de novo. Eu provavelmente não surfaria Malibu pequeno melhor
agora do que quando era moleque, mas o tamanho, a velocidade
e as satisfações espirituais da baía de Honolua eram maiores em
ordens de magnitude do que qualquer pico que eu conhecia na
Califórnia, ou até mesmo Rincon, podia oferecer. Para começar,
a onda era muito mais intimidadora, bem como mais
recompensadora. E minha obsessão por ela vinha em bom
momento, considerando como ia mal a minha vida em terra.
Caryn ficou com Mike, o laminador. Eu não podia acreditar. Ela
me pediu para chamá-lo de Michael. Falou que ele era mais legal
e inteligente do que eu pensava. Eles até apareceram juntos em
Honolua, na van marrom-cocô dele. Caryn ficou sentada no
penhasco enquanto ele saiu remando. Ventava muito e o mar
estava grande — um daqueles dias sensacionais com adrenalina
nas alturas. Eu surfava uma onda atrás da outra, sem pensar.
Naquele momento, observei com amargura “Michael” remar
cautelosamente pela baía. Uma série passou, e ele seguiu em
direção ao horizonte. Percebi que era um prego. Isso melhorou
meu humor. Voltei a trabalhar, lutando por um lugar na
aglomeração do bowl principal, com o objetivo de ocupar o centro
do palco. Talvez, se Caryn me visse arrepiando na prancha que
tinha me dado — ou pelo menos surfando com competência —,
ela cairia em si e voltaria comigo. Após completar pelo alto uma
onda absurda que ninguém no oeste de Maui poderia ter deixado
de ver, procurei por ela no penhasco. Mas a van marrom-cocô
não estava mais lá. Michael, de algum modo, chegara vivo até a
costa. Isso parecia ao mesmo tempo improvável e injusto.

***

A cidade estava flat. Toda a ilha estava flat havia uma semana.
Eu estava de folga naquele dia. Becket tinha ácido. Nós tomamos
antes do amanhecer, depois nos reunimos em torno de uma
fogueira no quintal dos fundos de Kobatake e esperamos o sol
nascer. O velho Kobatake parecia não dormir nunca. Ele atiçou o
fogo com um pé de cabra, seu rosto oval e dourado contrastando
com a escuridão aveludada do quintal. Ele riu alto quando Becket
brincou sobre os galos acordarem sua esposa. Talvez nosso
senhorio calculista e bigodudo não fosse um cara tão ruim.
Pegamos meu carro florido, o antigo Rhino Chaser, e seguimos
rumo ao norte.
Nosso plano era curtir o barato na área rural, longe da
perturbação da cidade, até que a nossa onda passasse. Depois
de atravessar Kaanapali, vimos os primeiros raios de sol
atingirem, de forma bem suave, as muralhas e ameias das
montanhas de Molokai do outro lado do canal. Havia uma leve
névoa avermelhada no ar — provavelmente vindo de queimadas
de cana, ou talvez fosse fumaça vulcânica subindo da Big Island.
As pessoas de Maui a chamavam de vog (uma adaptação de fog,
névoa). Era uma invenção tão ruim que nos fazia morrer de rir.
Então Becket percebeu, na superfície do oceano além de Napili,
um estranho padrão de veludo. Em parte, aquilo foi estranho por
si só, como todo o resto naquela manhã, mas principalmente por
ser tão inesperado. Era, na verdade, um enorme swell do norte,
passando velozmente pela extremidade oeste de Maui. Não se
via nenhum traço dele em Lahaina. Percebi que tinha perdido o
fôlego. Não sabia se estava empolgado ou amedrontado. Pus o
carro no piloto automático do surfe. Ele nos levou rapidamente
por estradas de barro vermelho através de plantações de abacaxi
até os penhascos acima de Honolua.
O swell podia ter passado despercebido pela baía se seu
ângulo estivesse um pouco mais para leste. Mas se curvava de
forma maciça em torno da ponta da enseada, com séries
quebrando em lugares onde eu nunca vira ondas quebrarem,
enchendo com espuma todo o lado norte da baía, toda a arena
onde costumávamos surfar. Não havia ninguém na área. Não me
lembro de muita discussão. Estávamos com nossas pranchas no
teto. Becket e eu ficávamos fissurados para surfar quando havia
ondas. Passamos parafina nas pranchas e tentamos estudar o
line-up. Sem chance. Era um caos, impossível de mapear,
fechando, e nós estávamos muito chapados. Em determinado
momento, desistimos e descemos pela trilha. Reparei que nós
dois ríamos de nervoso. O estrondo na praia estreita era
constante, operístico, ameaçador. Eu tinha certeza de que nunca
ouvira algo assim. A má notícia, que uma parte racional
remanescente em mim sabia, era a boa notícia: nunca iríamos
passar a arrebentação, seríamos levados de volta para a areia,
rapidamente derrotados pelas múltiplas paredes de espuma
empilhadas contra nós.
Entramos na água da extremidade superior da praia, ao abrigo
de algumas rochas grandes. Em geral, não era um lugar
inteligente para cair na água, mas queríamos ficar o mais longe
possível do penhasco na outra ponta, que tinha uma caverna na
parede costa acima que devorava pranchas e corpos em dias
bons, e agora estava sendo açoitada sem parar. Começamos a
remar, caímos em um redemoinho perto das pedras e em
seguida fomos jogados em sentido anti-horário, como formigas
em um ralo esvaziando, em direção ao enorme campo de
paredes grandes de espuma. Lutando para me segurar na minha
prancha, acabei perdendo Becket de vista. Meus pensamentos
se voltaram para a sobrevivência. Eu ia girar e tentar pegar a
próxima parede de espuma, depois tentar chegar à praia além do
penhasco. Os imperativos, de repente, tornaram-se simples: ficar
longe da caverna e não se afogar. Mas nenhuma espuma surgiu.
Eu estava sendo arrastado para o lado através da baía, além do
penhasco, remando por cima do rabo liso de grandes ondas
espumosas. Isso, aparentemente, era uma trégua entre as
séries. Continuei remando na direção do mar aberto. A má
notícia tinha se tornado boa, o que era ruim. Eu ia conseguir
passar a arrebentação. Becket pagou seus pecados e também
conseguiu. Remamos longe no outside, rumo à luz do sol,
passando por cima de ondulações enormes que ainda se
reuniam para as festividades apocalípticas no interior da baía.
Sentados no meio do oceano em nossas pranchas, tivemos
uma conversa que qualquer observador — se houvesse algum —
teria achado incoerente. Mas para nós tinha um sentido perfeito,
entrecortado. Eu me lembro de erguer as mãos cheias de água
do mar na direção do céu e deixar que ela cascateasse através
da luz da manhã, falando: “Água? Água?” “Sei o que você está
querendo dizer”, respondeu Becket. Eu havia tomado ácido umas
seis ou oito vezes antes e tivera experiências horríveis em quase
todas. Depois de um tempo, a droga costumava me reduzir a
fascinações moleculares. Isso era legal, desde que
permanecesse a certo ângulo da percepção cotidiana, revelando
sua pomposidade hilariante, sua arbitrariedade — essa era a
grande promessa da psicodelia, no fim das contas —, mas eram
menos engraçadas quando se juntavam a psicodramas pessoais,
sentimentos verdadeiros, muito distorcidos. Certa vez Domenic
teve que me levar a uma enfermeira que conhecíamos para me
aplicar Amplictil, um antipsicótico, depois que mergulhei no poço
da culpa por enganar meus pais sobre fumar maconha no ensino
médio. Caryn gostava de dizer, citando Walpole, que a vida é
uma comédia para aqueles que pensam e uma tragédia para os
que sentem. Isso basicamente sintetizava meu problema com o
LSD. A parte cerebral era incrível; a parte emocional, nem tanto.
Com aquele swell enorme, o boca a boca do surfe funcionou
mais depressa que na primeira vez que surfei Honolua, quando
Domenic e eu pegamos um swell modesto acampados lá e
ninguém apareceu durante a manhã inteira. Dessa vez, carros
começaram a surgir no penhasco pouco tempo depois de eu e
Becket entrarmos na água. Mas ninguém se juntou a nós.
Devíamos estar parecendo exatamente o que éramos: dois
idiotas que haviam cometido um grande erro e agora boiavam,
além das ondas, com muito medo de sair de lá. As ondas
estavam desorganizadas demais para surfar. Talvez limpassem
mais tarde. Meu medo, entretanto, não era do tipo habitual e
meticulosamente calculado. Era uma sensação que ia e vinha,
conforme meus pensamentos ricocheteavam entre a troposfera e
a ionosfera, com eventuais retornos para baixo provocados pela
força inercial de Coriolis até a superfície do mar, que subia e
descia abaixo de nós. Eu sabia que queria voltar para a areia,
mas não parecia conseguir manter esse pensamento por tempo
suficiente. Comecei a me dirigir ao pontal, com a vaga ideia de
que poderia pegar um trem expresso esverdeado por lá, em
direção à terra seca. Becket me observou retornar com uma
expressão intrigada de preocupação.
Minha Potts não era uma prancha de ondas grandes, mas
tinha uma remada rápida. Logo me vi diante de uma grande
parede verde que passou pelo pontal atravessada pelo repuxo
proveniente dos penhascos acima da costa de Honolua. Eu
estava perto de uma área onde as pessoas surfavam em dias
bons, embora eu mesmo nunca tivesse surfado ali — não era o
pico clássico, mas o pico externo, onde os swells começavam a
entrar na baía. Uma das marolas do repuxo atravessou a grande
parede verde como se fosse um fantasma e falou comigo. Era a
minha porta. Uma pequena elevação de água escura movendo-
se de lado através de uma parede enorme de água que seguia
para a terra. Ela iria formar um bolsão íngreme onde uma
prancha pequena podia pegar uma onda grande bem no início.
Virei-me e fui atrás dela. Nós nos encontramos no ponto em que
eu tinha imaginado. Enquanto a grande onda me erguia de
maneira preocupante, peguei a onda pequena e limpa, fiquei de
pé e a surfei sobre o degrau, descendo a grande parede com
bastante facilidade. O paradoxo não terminou ali. Embora talvez
fosse a maior onda que eu já surfara — um pouco difícil dizer
chapado de LSD —, eu a surfei como se fosse uma onda
pequena, fazendo curvas radicais e curtas, sem olhar muito além
do bico da prancha. Eu estava completamente envolvido nas
sensações das viradas — “em transe” não seria uma expressão
forte demais. Era como se eu estivesse andando de skate em
uma velocidade maior que o normal, quando na verdade tentava
conectar a extremidade externa da baía ao lugar onde era feito o
drop clássico no bowl da onda, surfando por toda a sua extensão,
algo que já tinha ouvido falar, mas nunca vira alguém fazer, e eu
provavelmente encontrei a onda que me possibilitaria fazê-lo.
Cheguei ao bowl, ou ao menos a uma grande seção cavada
saída diretamente do ponto habitual de drop, ainda de pé. Mas,
do jeito que aconteceu, falhei completamente ao deixar de tomar
a linha voltada para a costa, indo até a base da onda, o que teria
feito com que eu seguisse em frente. Em vez disso, dei uma
rasgada na face sob a crista, ainda mal olhando além do bico da
prancha. Fui arremessado, e minha prancha tristemente se
afastou dos meus pés enquanto caíamos de modo esquisito pelo
ar.
Eu devia estar com muito fôlego, porque a onda me espancou
com toda a brutalidade e por muito tempo, mas não conseguiu
convencer meu corpo a entrar em pânico e beber água. Tomei
muitas outras ondas na cabeça, mergulhei fundo e me senti ser
arrastado para águas mais rasas. Logo estava sendo jogado nas
rochas do lado do penhasco, empurrado pelas correntes
costeiras. Consegui me segurar, mas só subi pouco mais de um
metro para me sentar e examinar minhas canelas e meus pés,
que estavam machucados e sangrando. Uma onda me arrastou.
Por incrível que pareça, fiz a mesma coisa de novo algumas
ondas depois. Eu parecia não entender que precisava subir mais
o penhasco, em direção às rochas secas. Da terceira vez que
subi, um homem gentil que descera o penhasco para ajudar me
segurou pelo braço e me acompanhou até um terreno mais alto.
Eu estava cansado e desorientado demais para falar. Expressei
meus agradecimentos por linguagem de sinais. Também
perguntei pela minha prancha, recorrendo à pantomima. “Entrou
na caverna”, disse o homem.
Resolvi tirar um cochilo. Subi o penhasco, ignorei os olhares,
encontrei meu carro e me deitei no banco traseiro. O sono não
vinha. Saí às pressas do carro, cada vez mais desorientado.
Procurei Becket. Ele ainda estava sozinho na água, a meio
caminho de Molokai. Decidi descer até a parte mais interna da
baía, onde o oceano era sempre calmo, para esperar por ele.
Caryn e eu costumávamos fazer piqueniques ali. Era preciso
atravessar uma floresta sobre um leito seco de rio a partir da
estrada. Mas resolvi ir dirigindo. De algum modo, consegui
passar com o carro, arrebentando a mata até a praia, que, no
entanto, não parecia segura. Havia coqueiros muito altos, e
cocos caindo eram um perigo. Caminhei pela água até ficar com
o peito submerso, mas eu ainda sentia a ameaça dos cocos.
Resolvi ir até a sorveteria em Kaanapali para ver Caryn.
Ela pareceu surpresa em me ver. Eu ainda usava linguagem
de sinais. Ela pediu um intervalo e foi comigo até uma mesinha
redonda no lado de fora. Pôs um copo de sundae cheio de água
à minha frente. O sol da manhã dava a impressão de concentrar
todo o seu brilho no interior daquele copo de água. Olhei
fixamente dentro do copo e notei Puu Kukui flutuando de cabeça
para baixo no céu. Disse a Caryn, na minha mente, que a água
na baía de Honolua não era mais clara como na época em que
mergulhamos com snorkels no verão, que estava toda
tumultuada e escura. Caryn pegou a minha mão para demonstrar
que entendia. Também falei, ainda na minha mente, que iríamos
encontrar seu pai. Ela apertou a minha mão. Depois lembrei que
tinha deixado Becket em perigo e que nunca mais acharia a
minha prancha. Reencontrei minha voz e disse que precisava ir.
Ela também e acrescentou, apontando a cabeça na direção do
local de trabalho: “Hana haha.”
“Humuhumu.”
Parti outra vez para Honolua. Ao lado da estrada, perto do
acesso para Kaanapali, Leslie Potts estava pedindo carona. Eu
parei. Ele segurava uma prancha e um violão. Eu não parecia
estar imaginando aquilo. Potts botou a prancha dentro do carro,
do lado do carona, e se sentou bem atrás de mim. Segui
dirigindo. Ele dedilhou alguns riffs de blues no violão.
Começamos a ver linhas do swell no mar, dirigindo-se para o sul.
Potts assobiava baixo. Ele cantarolou alguns compassos, cantou
algumas letras. Tinha uma voz triste e rouca, bem apropriada
para o blues tradicional. “Como está a prancha?”
“Entrou na caverna.”
“Ai. Ela saiu?”
“Não sei.”
Não insistimos no assunto.
De volta a Honolua, percebi que havia uns dez caras na água
e uns dez passando parafina. As ondas pareciam muito mais
organizadas do que antes. Ainda enormes. Estacionei e corri
para a trilha da praia. Becket estava sentado nas pedras, lá
embaixo, com a prancha ao lado. Desci até lá. Ele ficou aliviado
ao me ver — não com raiva por ter sido abandonado, como eu
esperava. Na verdade, parecia confuso, preocupado. Então segui
seu olhar até uma prancha destruída escorada de pé nas rochas
atrás dele. Era a minha, é claro. Fui até lá. A rabeta estava
destroçada; a quilha, arrancada. Havia tantas marcas que era
impossível contar. Uma apara de fibra de vidro pendia embaixo
do bico. Becket murmurou que tudo podia ser consertado. Era
surpreendente a prancha não ter partido ao meio. Não fiquei
surpreso, mas me senti aturdido e aborrecido ao examinar os
danos. A prancha nunca mais seria a mesma. Becket dirigiu
minha atenção para o line-up, onde alguns dos heróis locais
começavam a surfar. O swell estava baixando; o surfe,
melhorando. Becket, com a prancha intacta, saiu remando outra
vez.
Fiquei na praia estreita assistindo ao show. Era o pior lugar,
mas parecia adequado estar no nível da água, onde o rugido das
ondas tomava conta da mente. Mais caras caíram na água. As
ondas continuavam melhorando. Becket saiu do mar outra vez,
arfando, exultante. Aquelas ondas eram insanas. Exigi sua
prancha emprestada. Ele concordou, com relutância. Lutei para
passar pelas linhas de espuma, aliviado por ter algo a fazer. A
água parecia menos interessante que antes a nível molecular.
Agora eu queria apenas uma onda para surfar. Remei até o pico,
onde tinha menos gente. Havia uma névoa suave — era água do
mar vaporizada, de toda a força da arrebentação — sem vento, o
que deixava a superfície do oceano lisa e reluzente. A cor era de
um branco-acinzentado atenuado até uma onda se erguer; então
refletores azul-turquesa pareciam se acender, iluminando as
entranhas da onda. Eu circulava pelo line-up do pico, remando
constantemente sem conseguir ficar parado. Quando uma onda
enfim chegou até onde eu estava, eu a peguei. Os refletores se
acenderam no meio da minha primeira virada. Tentei olhar para a
frente, tentei ver o que havia reservado para mim adiante e fazer
um plano adequado, mas estava cercado de luz azul-turquesa.
Senti uma espécie de êxtase das profundezas. Olhei para cima.
Havia um teto prateado brilhante. Eu parecia estar surfando um
colchão de ar. Então as luzes se apagaram.
Becket resgatou a prancha antes que atingisse os penhascos.
Pronto, já era o suficiente, disse ele quando cheguei à terra,
cambaleando. Chega. Ele tinha visto minha onda. Eu havia
desaparecido no interior do tubo completamente ereto, com os
braços estendidos no estilo de um crucifixo, o rosto virado para o
céu. Nunca tive a menor chance de conseguir sair. Mas ele
explicou que eu reapareci por um instante, expelindo através da
cortina de água, impotente e dando cambalhotas. O termo que
ele usou foi “boneco de pano”. Não conseguia me lembrar do
caldo. Só do êxtase. Eu me deitei nas rochas, tremendo. Becket
explicou que havia anfetamina no ácido. Por isso eu estava
gelado. Ele caiu na água outra vez e ficou lá por horas.
Lentamente, me encolhi em posição fetal, com os braços em
torno dos joelhos. Algo parecia estar curvando minha coluna,
forçando minha cabeça para baixo, em direção ao meu peito.
Muitas coisas estavam acabando ao mesmo tempo, pensei, e,
pelo menos dessa vez, eu tinha razão.

***

Caryn encontrou o pai. Foi no ano seguinte, em São Francisco.


Nós dois tínhamos trocado Maui pelo ambiente mais civilizado da
faculdade. Voltei para Santa Cruz. Ela ainda morava por perto, só
que não éramos mais um casal. Minha tristeza por nosso
rompimento parecia infinito. Eu nem sempre era razoável. Ainda
assim, Caryn me ligou depois que encontrou Sam, e fomos vê-lo
juntos. Ele estava morando em um hotel na Sixth Street — no
bairro dos cortiços. Subimos a escada conversando. Os
corredores fediam a mijo, suor, mofo e curry. Caryn bateu em
uma porta. Nenhuma resposta. Ela o chamou. “Pai? Sou eu,
Caryn.” Após alguns minutos de silêncio, Sam abriu a porta. Ele
parecia confuso e doente. Um homem baixo de cabelo ralo e
olhos tristes. Ele não sorriu nem tentou abraçar a filha. Havia um
tabuleiro de xadrez improvisado na cama, desenhado na lateral
de uma bolsa de compras, com peças feitas de tampas de
garrafa e guimbas de cigarro. Ele parecia estar jogando sozinho.
Deixei os dois conversarem. Saí andando pelas ruas calamitosas
dos armazéns, passei por bebuns dormindo em becos. O Jones
Hotel, o Oak Tree Hotel, o Rose. Aquele não podia ser o mundo
de Sam, depois de um mosteiro em Maui. Em seguida, fomos
todos a uma cafeteria cheia de umidade. Sam e eu jogamos
xadrez. Caryn observava, seu rosto era uma máscara de tristeza.
Tentei pensar nos movimentos. Sam jogava com cautela. Os
poucos comentários que fez eram calculados, bem escolhidos.
Ninguém chorou nem lançou farpas. Imaginei que haveria tempo
para isso. Eu não estaria ali. Ainda assim, me perguntei o que
Sam, com doença mental e tudo, podia ter a nos dizer sobre a
vida adulta. Por que, por exemplo, a vida adulta sempre parecia,
enquanto conceito, estar retrocedendo mesmo à medida que
envelhecíamos?

***

Nessa questão, meus professores nem sempre foram de alguma


ajuda. Eu estava impressionado com Norman O. Brown, um
formidável estudioso erudito dos clássicos que se tornou filósofo
social e pegava figuras menores como Freud, Marx, Jesus,
Nietzsche, Blake e Joyce, destroçava suas obras e declarava a
vitória da “santa loucura”, da “perversidade polimorfa” e de Eros
sobre Tânatos, tudo isso enquanto vivia sossegadamente com a
família em uma casa em estilo rural perto do campus. Todos da
universidade em Santa Cruz o chamavam de Nobby. Esse
apelido entalava na minha garganta. Brown não me recebeu bem
na volta à faculdade. Educado como sempre, ele disse estar
decepcionado em me ver. O fato de que larguei os estudos para
surfar no Havaí tinha, sem dúvida, representado para ele um
triunfo sobre a repressão, um voto para Dioniso e o erotismo e
contra a civilização, que era, afinal, apenas neurose de massa.
Fiz uma piadinha sobre o retorno dos reprimidos e voltamos ao
trabalho.
Mas tudo parecia diferente sem Caryn: mais difícil, mais
lancinante. Ela, com bons motivos, sentia-se abandonada pelo
pai. Eu, por razões mais complicadas de identificar, sentia-me
abandonado de forma geral. O psiquiatra existencialista R. D.
Laing — um crítico feroz, como Brown, do conhecimento
convencional e com inclinação semelhante a enxergar as
doenças mentais como uma resposta sã para um mundo insano,
mesmo que na forma de viagem “xamânica” — descreveu em um
de seus primeiros livros o que chamava de pessoa
“ontologicamente segura”. Essa pessoa, pensei, não era eu. Eu
lia e escrevia freneticamente. Meus diários estavam cheios de
angústia, autoflagelação, ambição, discursos entreouvidos que
me incomodavam e longas passagens dos meus escritores
favoritos copiadas à mão. Uma das poucas coisas que sempre
me acalmavam era surfar.
Bryan Di Salvatore, Viti Savaiinaea e eu, Sala’ilua, Sava’i, Samoa Ocidental, 1978
CINCO

A BUSCA

Pacífico Sul, 1978

Pode chamar de inverno sem fim. O verão é parte da iconografia


popular do surfe. E, como grande parte dessa iconografia, isso
está errado. A maioria dos surfistas, na maior parte dos lugares,
ao norte ou ao sul do Equador, vive para o inverno. É quando
ocorrem as grandes tempestades, normalmente em latitudes
mais altas. Elas trazem as melhores ondas. Por falar em
iconografia, há exceções, incluindo Waikiki e Malibu. Mas o
verão, em geral, é um tédio para os surfistas. Uma exceção que
havia muito tempo me interessava era a estação de ciclones no
nordeste da Austrália. No entanto, quando deixei Los Angeles no
início da primavera de 1978 com uma prancha, uma barraca e
uma pilha de cartas náuticas dos atóis da Polinésia muito
estudadas, eu estava basicamente em busca do inverno.
Não foi fácil partir. Eu tinha um emprego que amava. Tinha
uma namorada. O trabalho era na estrada de ferro. Eu era
guarda-freios na Southern Pacific desde 1974 e trabalhava com
trens de carga locais em Watsonville e Salinas e trens das linhas
principais entre São Francisco e Los Angeles. Tudo sobre freios
— o terreno em que estávamos, as pessoas com quem eu
trabalhava, a língua antiga e arcana que falávamos, os testes
mentais e físicos impostos pelo trabalho, o trabalho em si, os
salários — me agradava demais. Eu me sentia como se
houvesse tido a sorte de entrar em uma versão sólida e com
bases fortes da vida adulta. Para ser contratado, deixei de
mencionar meu diploma em inglês. Como a maior parte do
tráfego da rota costeira com o qual lidávamos era agrícola —
produção no vale de Salinas —, o trabalho era sazonal,
especialmente para ferroviários de baixo escalão como eu.
Utilizei minhas licenças no inverno para obter outro diploma,
sobre o qual a Southern Pacific também não precisava saber. A
companhia não confiava em pessoas graduadas para se tornar
ferroviários. Investia tempo e trabalho em formar jovens
ferroviários, e os veteranos costumavam dizer que ninguém com
menos de dez anos de experiência servia para alguma coisa na
tripulação de um trem. Por isso a empresa estava à procura de
homens de quarenta anos. Os freios podiam ser um trabalho sujo
e perigoso, e pessoas com diploma universitário talvez
decidissem mudar para algo mais limpo e seguro. Odiei confirmar
esse ponto de vista ao sair. Acreditava que nunca iria encontrar
outro trabalho tão satisfatório ou bem pago.
Mas eu tinha 5 mil dólares no banco, de longe o maior valor
que eu já economizara. Tinha vinte e cinco anos e nunca fora aos
mares do Sul. Era hora para uma viagem séria de surfe, uma
busca por ondas sem destino definido. Tal viagem parecia
extremamente obrigatória. Eu seguiria sempre para oeste, como
Fernão de Magalhães ou Francis Drake — era assim que eu
pensava nela. Na verdade, por mais difícil que fosse, deixar os
lugares era, de muitas formas, mais fácil que ficar. Isso me dava
uma desculpa excelente para adiar decisões mundanas mas
assustadoras sobre onde e como viver. Eu iria desaparecer do
mundo superdeterminado e sem graça dos Estados Unidos
entorpecido pela disco music e pela crise energética. Talvez até
me tornasse outra pessoa — alguém de quem eu gostasse mais
— nas ilhas Antípodas.
Eu disse à minha família que iria ficar muito tempo viajando.
Ninguém fez qualquer objeção. Eu tinha uma passagem só de
ida para Guam, com paradas no Havaí e nas ilhas Carolinas.
Minha mãe me levou ao aeroporto e me deu sua bênção com
fervor inesperado. “Continue circulando por aí”, disse ela,
segurando meu rosto e procurando algo no meu olhar. O que
será que ela viu? Não um ferroviário de carreira — para seu
alívio, tenho certeza. O emprego tinha sido minha base, atraindo-
me de volta à Costa Oeste de forma sazonal, mas eu ainda era
um romântico inquieto. Havia me transformado em um escritor
prolífico de ficção, poesia e críticas, quase totalmente inédito.
Andava sem rumo e vivia onde me dava vontade — Montana,
Noruega, Londres — por breves períodos. Então, na verdade, eu
não estivera, nos termos de minha mãe, fincando raízes. Eu
morara com algumas mulheres, mas, desde Caryn, não me
sentira comprometido de corpo e alma.
Senti mais tarde — muito mais tarde — que talvez eu
estivesse exagerando a questão de não fincar raízes em nenhum
lugar, mesmo nos termos da minha mãe. No terceiro ano de
minha ausência, ela e meu pai voaram repentinamente e sem
serem convidados para a Cidade do Cabo, onde o oceano
Antártico estava bombeando uma abundância de swells de
inverno e eu tinha um emprego como professor do ensino médio.
Ficaram por uma semana. Nunca sugeriram que eu considerasse
desarmar a barraca e voltar para os Estados Unidos, mas, no
quarto ano de minhas viagens, eles mandaram meu irmão Kevin
atrás de mim. Pelo menos foi assim que interpretei a visita dele.
Kevin e eu viajamos juntos para o norte, pela África. Mas estou
me adiantando na história.

***

Para vasculhar os mares do Sul em busca de ondas surfáveis, eu


precisava de um parceiro. Bryan Di Salvatore disse que topava.
Uma feliz obra do acaso fez com que voltássemos a ter contato
depois que deixei Maui. A capa da passagem da Aloha Airlines
com o endereço dos pais dele rabiscado surgira durante uma de
minhas mudanças de alojamento estudantil em Santa Cruz.
Escrevi para ver se ele recebera o pagamento pelo carro. Ele
respondeu de um endereço no norte de Idaho. Sim, o dinheiro
tinha chegado até ele. Começamos a trocar mensagens. Ele era
motorista de caminhões — semirreboques em longas distâncias
— e estava escrevendo um romance. Em uma viagem para
visitar a família na Califórnia, passou em Santa Cruz. Levou Max
com ele. Parecia que ela morava por perto, nas colinas em San
Jose. O namorado com quem ela vivia era um bem-sucedido
produtor de pornografia, segundo Bryan. Max confirmou a
história. Ela parecia, se é que era possível, ainda mais
perversamente divertida e atraente do que em Maui.
Eu os levei para a boca do rio San Lorenzo, onde um raro
banco de areia se formara depois de chuvas fortes no inverno
anterior, criando uma onda maravilhosa que frequentei
diariamente pelos meses que durou. Mas, quando tentei
descrever a condição das ondas para Bryan, Max começou a
interromper de modo rude. Em uma imitação surpreendente do
jeito alegre de falar dos surfistas, ela completava minhas frases,
em geral com o clichê que eu planejava usar. “As pessoas
estavam completamente doidas!” “Cabia um caminhão dentro do
tubo!” Pelo jeito, Max tinha passado um tempo com surfistas em
Maui — “homens de dois minutos”, ela os chamava com desdém
— e acreditava que poderíamos nos sair melhor em termos de
conversa. Bryan e eu concordamos em falar sobre surfe depois.
Discutíamos surfe, livros e literatura. Eu também estava
escrevendo um romance. Começamos a trocar manuscritos. O
romance de Bryan era sobre um círculo de amigos, surfistas no
ensino médio em Montrose, um subúrbio de Los Angeles distante
do mar. Uma passagem de trinta páginas continha apenas
palavras ditas no carro durante a viagem de Montrose até uma
praia ao norte de Ventura. Nenhuma narração, nenhuma rubrica,
nenhuma atribuição. Achei incrível — o discurso fraturado e
profano era chocantemente preciso, furtivamente poético e muito
engraçado; o movimento da história era invisível, mas irresistível.
Essa era uma nova literatura americana, pensei. Bryan era de
Montrose. O pai dele era operador de máquinas e conhecera a
esposa quando fora soldado na Segunda Guerra Mundial na
Europa. Ela era britânica. Bryan conseguira uma bolsa de
estudos em Yale, onde se formou em inglês e escrevia para
revistas do campus. Jack Kerouac lhe dedicara um livro, e ele foi
ao funeral do escritor em 1969. Eu ficava espantado com essa
experiência, mas Bryan não dava muita importância, sem se
impressionar consigo mesmo. Depois de se formar, ele foi para
Maui, onde viveu e surfou com velhos camaradas de Montrose e
trabalhou como cozinheiro no restaurante de um hotel. Poucas
pessoas em Lahaina, era seguro dizer, compreendiam seu gosto.
Enquanto decoravam suas pranchas com imagens de Vishnu e
golfinhos mal desenhados, ele botou uma foto do caubói da
Marlboro no deck da sua. Bryan gostava de música country, de
discursos públicos americanos e das obras reunidas de Herman
Melville. Como filho da classe trabalhadora, desprezava a
assistência social. Não retirava os benefícios nem quando estava
sem emprego. As mulheres, enquanto isso, pareciam
unanimemente ansiosas para se aproximar dele. Bryan tinha
cabelo escuro encaracolado, bigode grosso e um ar de
masculinidade fácil e à moda antiga. Max dizia que ele era o
verdadeiro homem bonito de olhos castanhos, em referência à
música “Brown Eyed Handsome Man”, de Chuck Berry. Ele
também era — o que o tornava mais atraente ainda —
engraçado, generoso e solitário.
Primeiro surfamos juntos em Santa Cruz, depois que ele
decidiu se mudar de volta para a costa. Ele era goofy, o que
significava que surfava com o pé esquerdo atrás. É o equivalente
do surfe a ser canhoto. Ao ir para a direita, o goofy está surfando
de backside, de costas para a onda. Ao ir para a esquerda, ele
está de frente para a onda, ou de frontside. Para aqueles que se
posicionam do modo mais comum, os regulars, como eu, ficamos
de frontside ao ir para a direita e de backside ao ir para a
esquerda. Surfar é muito mais fácil quando se está de frente para
a onda, de frontside. Fiquei surpreso ao ouvir Bryan dizer que
nunca tinha surfado a baía de Honolua. Não pela onda ser uma
direita — vários goofies surfavam Honolua —, mas porque o
crowd o desanimara. Ele e os amigos eram assíduos em um pico
isolado alguns quilômetros ao norte de Lahaina chamado
Rainbows, que poucas pessoas conferiam durante swells. Eu
nunca tinha surfado Rainbows. E agora, falando de Maui, eu me
senti um estúpido maria vai com as outras, enquanto vivi ali,
apenas na onda mais óbvia possível, a famosa Honolua; e me
sentia bem pronto, se necessário, para me acotovelar com a
multidão no principal pico, alheio à mesquinhez autodepreciativa
de lutar por ondas naquela paisagem gloriosa. Até Les Potts,
veterano que arrepiava, parecia ter desistido da batalha para não
se rebaixar. Em Santa Cruz, uma cidade com muito movimento
de surfista, Bryan e eu fomos para a costa norte à procura de
ondas vazias, que, na época, ainda podiam ser encontradas.
Fazíamos longas viagens de carro por qualquer desculpa. Em
uma festa de estudantes em Santa Cruz, Bryan de repente
anunciou que estava na hora de eu conhecer Rathdrum, a
pequena cidadezinha de Idaho onde ele tinha morado, e saímos
direto da festa, fazendo no total uma viagem de dez dias,
visitando colegas de faculdade dele em Montana e no Colorado.
Bryan, leal ao pobre Idaho, escarneceu: “Montana tem tesão por
si mesmo.” Era verdade, mas nós dois acabamos morando lá,
fazendo pós-graduação em Missoula, esquiando e, no meu caso,
aprendendo a beber. Bryan, depois de concluir o mestrado,
arranjou um emprego de professor de inglês na Universidade de
Guam. Mais conhecido como um posto militar avançado
americano no Pacífico Ocidental, dizia-se que Guam era
arrasado todos os anos por tufões. Como posto, era do agrado
de Bryan, pensei, algo em sua dureza de cidade pequena e no
fato de ser totalmente improvável. Além disso, o local, na teoria,
tinha ondas boas. Essas informações logo foram confirmadas por
cartas e fotos. Ele surfava muito. Durante seu segundo ano em
Guam, enquanto eu terminava os estudos em Missoula, propus a
viagem do inverno sem fim. Bryan também estava guardando
dinheiro e topou a ideia. Eu podia conferir as ilhas Carolinas a
caminho de Guam. Depois podíamos seguir para o sul.
Bryan achava que devíamos desenferrujar nosso espanhol. Eu
não entendia por quê. Não havia nenhum país de língua
espanhola no Pacífico Sul. Ele dizia que isso era bom. Íamos
precisar de uma língua que ninguém mais entendesse para
comunicação sigilosa em situações difíceis.
Eu disse que ele estava louco.
Mas não estava. Acabamos usando o espanhol com
frequência. Era nosso código secreto. Nenhum tonganês
conseguia decifrá-lo.

***

O nome da minha namorada era Sharon. Ela era sete anos mais
velha que eu. Naquela época, trabalhava como professora
universitária em Santa Cruz. Estávamos juntos havia quatro
anos, entre idas e vindas, e nossa ligação era mais profunda do
que provavelmente parecia. Ela era uma medievalista, uma
entusiasta, aventureira, a filha do dono de uma loja de bebidas
em Los Angeles. Tinha uma risada que ia de aguda a grave —
que atraía o outro para a confiança que demonstrava —, olhos
alegres e um glamour intelectual eclético que impressionava as
pessoas, inclusive a mim. Por trás de toda a brincadeira, porém,
por trás de sua graciosa autoconfiança de olhos amendoados,
havia uma pessoa delicada e magoada cuja inquietação era,
como ela dizia, molecular. Sharon tinha um histórico duvidoso,
que incluía um ex-marido brilhante que não arranjava emprego.
Ela e eu havíamos sobrevivido a longas separações e nunca
tínhamos sido especialmente monogâmicos — ela gostava de
citar Janis Joplin: Honey, get it while you can (querido, aproveite
sua chance enquanto pode). Tínhamos planos vagos de nos
encontrarmos depois que ela terminasse o ph.D., o que não seria
logo. Eu era ambivalente, imagino, em relação à minha ligação
com ela, mas não lhe dei sequer a possibilidade de vetar minha
decisão de partir.
Mandei fazer uma prancha sob medida para a viagem. Era
uma monoquilha de dois metros e trinta centímetros, mais longa,
grossa e muito mais pesada do que aquelas com as quais eu
costumava surfar. Mas essa prancha de viagem precisava ter boa
flutuação e boa remada — nós estaríamos em um mundo
desconhecido de correntes à beira de recifes — e precisava
funcionar em ondas grandes e poderosas. Acima de tudo, não
podia quebrar. Aonde estávamos indo, seria impossível substituir
uma prancha quebrada. Pus um leash nela, o que, para mim, foi
uma concessão. Leashes eram usados havia alguns anos e, em
Santa Cruz, tinham traçado uma linha bem definida separando os
puristas, que achavam que o leash encorajava o surfe burro e
desleixado, das pessoas que imediatamente o adotaram, que,
por sua vez, achavam que uma boa definição de burrice era ter a
prancha perdida destroçada sem necessidade nos penhascos em
picos como Steamer Lane. Eu era um purista, então nunca usara
um leash. Mas mesmo eu sabia que não podia me dar ao luxo de
perder minha prancha do Pacífico Sul em alguma onda qualquer
no meio do oceano em Fiji e arriscar nunca mais vê-la. Usei a
prancha por alguns meses antes de partirmos e amei como ela
encarava dias grandes em Lane. Durante uma sessão
assustadora de fim de inverno em Ocean Beach, São Francisco,
meu leash arrebentou, me deixando solto em ondas grandes,
tendo que nadar no frio e por muito tempo até depois de
escurecer. Depois disso, comprei um leash mais grosso e alguns
sobressalentes.

***

Honolulu foi minha primeira parada. Em minha mente


superagitada, Oahu era toda sinais e portentos. Domenic por
acaso estava lá, trabalhando — agora filmava comerciais de TV
em tempo integral, com especialidade em cenas de ação em
oceanos tropicais. Nossa amizade sobrevivera por pouco, só
parte do que era, depois que eu e Caryn terminamos e os dois se
tornaram um casal. Eles não ficaram muito tempo juntos, mas
achei a história toda tão excruciante que escrevi um romance de
mil páginas sobre ela, um poema em prosa apocalíptico que
terminei redigindo apressadamente o último rascunho em uma
máquina de escrever emprestada em Londres, aos vinte anos.
(Bryan deve ter sido a única pessoa que leu essa obra-prima
precoce na íntegra.) Depois disso, Domenic e eu fizemos
algumas viagens de surfe juntos, incluindo uma para Baja
California central durante a qual ele parecia estar sempre me
filmando, me encorajando a falar direto para a câmera sobre
qualquer coisa que me viesse à mente. Esse foi o último suspiro
da ideia de que talvez fôssemos gênios — a fé comovente dele
de que eu podia ocupar a tela apenas com improviso. Eu não
podia. Domenic engavetou o projeto em favor de trabalho
remunerado.
Então, quando nossos caminhos se cruzaram em Oahu,
chegou um swell tardio na temporada, e nós, obedecendo a
ordens silenciosas do inconsciente coletivo do surfe, largamos
tudo e seguimos para o North Shore. A essa altura, eu tinha
surfado a maior parte dos picos mais conhecidos ao longo da
famosa costa de ondas grandes — surfei Pipeline no meu
aniversário de dezenove anos, pouco depois daquele dia enorme
e complicado em Honolua com Becket. Tivera algumas sessões
especialmente memoráveis sobretudo em Sunset Beach. Sunset
era mesmo, como nos diziam quando criança, um tipo de Rice
Bowl aumentado? Não exatamente. Era uma onda ampla
extensa, bordejada a oeste por um repuxo ruidoso, com uma
variedade impressionante de picos quebrando em ângulos
diferentes, produzindo ondas densas e lindas e episódios
regulares de terror. Sunset era, sem dúvida, de impossível
compreensão para o visitante ocasional.
Naquele dia de primavera com Domenic, Sunset estava
grande e limpo, e me senti mais confiante do que nunca
surfando. O leash provavelmente ajudou. A prancha grande e
grossa sem dúvida ajudou. Então uma série de oeste de três
metros me pegou no inside e submeteu meu leash, e minha
confiança, a um árduo teste. Eu estava aprisionado na zona de
impacto, levando cada uma das ondas na cabeça, largando a
prancha, mergulhando fundo, sendo sacudido cruelmente,
tentando apenas ficar calmo. O leash puxava meu tornozelo com
força, ameaçando arrebentar. Depois de meia dúzia de ondas,
fiquei bastante feliz ao ver minha prancha ainda boiando perto de
mim, embora eu não tenha tido tempo para celebrar isso.
Quando alcancei o raso, de volta na prancha, estava zonzo,
respirando com dificuldade. Domenic me encontrou sentado na
areia, ainda cansado demais para falar. A provação serviu como
um batismo. Foi o pior caldo que recebi em quinze anos de surfe.
Mas eu não entrara em pânico.
O portento seguinte foi o surgimento, em Honolulu, de um
garoto chamado Russell. Ele e Domenic tinham sido colegas de
quarto no início dos anos 1970 — dias de Havaí 5.0 para
Domenic e minha família. Na época, Russell era um caipira de
olhos arregalados de uma pequena cidade açucareira em Big
Island, mas passara os anos seguintes na Europa, a maior parte
em Cambridge, onde ganhara um sotaque britânico e grandes
quantidades de cosmopolitismo e erudição. Não havia nada de
presunçoso nessa transformação — ele ainda tinha olhos
arregalados e fala mansa, apenas era muito letrado e bem
viajado. Russell e eu passamos algumas noites conversando até
tarde sobre a Grã-Bretanha, poesia e política europeia, e só no
fim percebi que tinha sido extremamente antipático com
Domenic. Eu não o deixara falar nada. Quando sugeri isso
nervosamente, ele concordou de forma brusca. “Queria botar o
papo em dia com Russell, descobrir o que está acontecendo com
a sexualidade dele”, disse. “Talvez da próxima vez.”
A orientação afetiva de Russell também tinha mudado. Agora
era claramente bissexual. Mas eu estivera empolgado demais em
trocar ideias sobre a decadência de Sartre e o situacionismo para
nem sequer pensar em abordar o óbvio tema pessoal. Achei que
a paciência de Domenic para minha erudição esmerada tinha
chegado ao limite. Era hora de eu ir para Samoa e crescer.
Porém, houve mais um sinal. Em uma agradável manhã azul,
saí remando em Cliffs. Aparentando nunca ter saído dali estava
Glenn Kaulukukui. Fazia dez anos, mas ele veio na minha
direção, chamando meu nome com um xingamento divertido, e
estendeu a mão para mim. Parecia mais velho — com os ombros
mais largos, o cabelo mais curto e escuro, além de um bigode —,
mas o brilho risonho em seus olhos não havia mudado. Explicou
que ele, Roddy e John agora moravam em Kauai. “Nós todos
ainda somos surfistas fissurados.” Embora Roddy não
competisse — ele trabalhava no restaurante de um hotel —,
Glenn explicou que o surfe do irmão nunca deixara de melhorar.
Roddy se tornara o melhor surfista da família. O próprio Glenn,
como eu sabia pelas revistas, era profissional, ocupado no
circuito de campeonatos, dedicando seus invernos ao North
Shore. “Sou um competidor”, disse ele simplesmente.
Começamos a surfar um Cliffs pequeno, liso e sem crowd, e
fiquei satisfeito ao ver Glenn dar um tempo no rabo de uma de
minhas ondas, me estudar com atenção e em seguida anunciar:
“Ei, você ainda sabe surfar.” Enquanto isso, o surfe dele, mesmo
quando Cliffs estava suave e na altura do peito, era glorioso. A
velocidade, a força e a pureza de suas viradas eram de um nível
que eu raramente tinha visto, a não ser em filmes. E ele não
parecia fazer esforço. Glenn parecia brincar — com seriedade,
respeito e alegria. Para mim, vê-lo surfar daquele jeito era uma
epifania. Tinha a ver com ele, meu ídolo da infância agora adulto,
mas também tinha a ver com o surfe — sua profundidade, ou
potencial de profundidade, como uma prática para a vida inteira.
Eu lhe disse que estava de partida para os mares do Sul. Ele me
lançou um olhar sério e intrigado, então me desejou sorte.
Tornamos a apertar as mãos. Essa foi a última vez que o vi.

***

Não encontrei ondas em Pohnpei, um ponto verde nas ilhas


Carolinas, na época sob administração americana, hoje parte dos
Estados Federados da Micronésia. Passei muitos dias de calor
circulando por lá, tentando achar passagens nos recifes que
pareciam promissoras em meus mapas, mas eram
aterrorizantemente longe da costa, o vento estava sempre
errado, o swell sempre esquisito. Comecei a me perguntar se
tinha me iludido sobre as chances de encontrar ondas surfáveis
em locais tropicais aleatórios. (Mais tarde, uma direita luminosa
foi surpreendentemente descoberta no canto noroeste de
Pohnpei. Eu estava lá na temporada errada para essa onda.) Eu
lia, entre expedições infrutíferas, Tristes trópicos, de Claude Lévi-
Strauss, que tem uma bela primeira linha: “Odeio as viagens e os
exploradores.” O pai da antropologia estrutural prossegue falando
sobre sua profissão: “Podemos suportar seis meses de viagens,
dificuldades e tédio nauseante com o propósito de registrar (em
alguns dias, ou mesmo algumas horas) um mito até então
desconhecido, uma nova regra de casamento ou uma lista
completa de nomes de clãs.” Isso soava, em meu canto sem
surfe da Micronésia, agourentamente familiar. Será que levaria
vários meses de buscas difíceis até encontrar alguma onda
medíocre — o equivalente do surfe a uma nova regra de
casamento?

***

Por falar em antropologia, encontrei em Pohnpei uma verdadeira


colisão de tradições locais com modernidade — o que iria se
revelar um tema inevitável em todo lugar do Pacífico — a
respeito de como ficar bêbado. À noite, os homens ou tomavam
uma leve bebida nativa chamada “sakau” — com outros nomes
em outras ilhas, sendo o mais comum deles “kava” — em um
ritual comunitário lento e cerimonial, usando cascas de coco
como copos, ou então bebida alcoólica importada. Bebida
importada, quer fosse destilado ou cerveja, custava dinheiro e
estava associada com o colonialismo, brigas, bares, devassidão
em geral e violência doméstica. Eu andava com a turma do
sakau, a princípio, embora achasse horrível aquela bebida
viscosa e rosa-acinzentada com cheiro de remédio. Porém, ela
deixava a boca dormente e, depois de oito ou dez copos,
inclinava meu cérebro para um ângulo pelo qual eu começava a
entender, ou acreditava entender, uma forma complexa de um
jogo de damas que era o passatempo local. Era jogado com
guimbas de cigarros e pequenas pedrinhas de coral cilíndricas e
se passava rápido, com uma abundância de comentários
murmurados, alguns em inglês. “O que é isso?” “Você é maluco,
cara!” Nunca obtive a confiança para realmente jogar, mas me
tornei um palpiteiro apaixonado.
Bebíamos sob um pavilhão de palha em ruínas no jardim dos
fundos de alguém, sob a luz de uma lâmpada amarela no alto de
um poste. Depois de muito beber seus copos de sakau, meus
companheiros começavam a murmurar consigo mesmos,
inclinando a cabeça para babar grandes rios esbranquiçados na
lama. Nesse cenário romântico consegui conhecer uma garota,
Rosita. Ela era uma moça forte e bonita de dezenove anos do
atol de Mokil. Contou que tinha sido expulsa da escola por
esfaquear uma menina. Mas Rosita não era apenas bravata —
se preocupava muito, pelo menos, que ninguém a visse entrar
escondida em meu hotel. Uma de minhas ambições secretas
naquela jornada recém-iniciada era me relacionar com mulheres
de terras exóticas, e a jovem Rosita parecia um ponto de partida
auspicioso. (O que é isso?) Tinha nas coxas tatuagens de
aspecto tradicional em padrões tapas, e na clavícula, um
desenho de coração com faixa que parecia pertencer à Marinha
norte-americana por volta da Segunda Guerra Mundial. O sexo
foi comicamente terrível enquanto eu me esforçava para
descobrir o que lhe daria prazer. Nada parecia funcionar, ao
menos não como eu entendia o prazer. Mas então ela chorou, na
sua saia verde e blusa branca escolares, quando deixei Pohnpei.
Sabia que minha ambição secreta em relação a mulheres não
tinha absolutamente nada de original. Levei um tempo para
descobrir que talvez também não fosse divertida.

***

Disseram-me que Guam era a sigla para Give Up and Masturbate


(desista e se masturbe). A etimologia era falsa, mas o lugar era
incrivelmente inóspito. O vício em heroína parecia ser a principal
forma de diversão, seguido por comprar, brigar, roubar (meio
tradicional de financiar um vício em heroína), assistir à televisão,
provocar incêndios criminosos e frequentar casas de striptease.
Em uma ilha cercada por mares turquesa quentes, ninguém
parecia usar as praias. Não havia praticamente nenhuma árvore
— um descuido desastroso a treze graus norte. As árvores da
ilha tinham sido arrancadas por tufões, diziam as pessoas, ou
destruídas na Segunda Guerra Mundial depois que os militares
norte-americanos, na esperança de impedir a erosão,
espalharam sementes de tangan-tangan por grande parte da ilha
usando aviões. O tangan-tangan é um arbusto alto, denso e
descolorido. Embora não nativo do Pacífico, floresceu em Guam.
Viajar pelas estradas da ilha envolvia passar entre longos muros
marrom-acinzentados de tangan-tangan. A arquitetura local era
baixa e sólida — construída para sobreviver a tufões. A economia
era sustentada por turismo japonês de baixo custo e pela grande
presença militar norte-americana. Quando eu disse a Bryan que
meu World Almanac listava “copra” (coco seco) como o maior
produto de exportação de Guam, ele riu. “A maioria dos
habitantes de Guam acha que ‘copra’ é um programa de TV:
‘Que horas que passa Copra, oito e meia ou nove horas?’”
Bryan parecia estar se divertindo. Ele tinha uma namorada
séria e encantadora, Diane, que era professora e mãe solteira.
Contava com um grupo divertido de caras com quem surfava e,
depois, bebia cerveja. A maioria de seus amigos parecia ser
formada por professores da parte continental dos Estados
Unidos. Seus alunos eram quase todos filhos das ilhas —
chamorros nativos, filipinos, outros micronésios — que
precisavam descobrir o que pensar de um professor que usava
calção largo e camisa havaiana velha, além de os incentivar
durante todo o ano a enxergar magia na linguagem e na literatura
e, então, na prova final, lhes passava uma pergunta de múltipla
escolha sobre com que personagem famoso seu professor mais
se parecia, cujas opções eram todas iguais: “Clint Eastwood.”
As ondas desapareceram durante minha estadia em Guam —
o mar “estava flat como mijo no chão”, nas palavras de Bryan.
Todos os picos extraordinários dos quais eu ouvira falar e tinha
visto em fotos — Boat Basin, Meritzo — não mostraram nem uma
marola por várias semanas seguidas. Pior, Bryan não pareceu
muito feliz em me ver. Será que estava em dúvida sobre nosso
plano? Fiquei por ali, esperando que ele resolvesse a vida em
Guam. Bebi e passei muito tempo sozinho em seu apartamento
vazio, de paredes de concreto, enquanto ele saía com Diane e o
filho dela. Decidi que Diane e eu travávamos uma batalha
silenciosa pela alma de Bryan. Ela e o filho estavam se mudando
de volta para o Oregon. Quais eram as intenções de Bryan? Ele
não as confidenciou a mim, mas estava obviamente em dúvida.
Também sofria forte pressão da mãe, que, de Los Angeles,
deixava bem claro que desaprovava os planos do filho de largar o
emprego. Era para isso que ele tinha ido para Yale, para se
transformar em um vagabundo? Eu, na verdade, não a conhecia,
mas a mãe de Bryan sempre parecera formidável, séria e
bastante tensa, de um jeito muito típico do noroeste da Inglaterra.
A noção de diversão extremamente desenvolvida do dourado
filho americano parecia nunca a ter contagiado. Cheguei à
conclusão de que ela e eu também travávamos uma batalha
silenciosa pela alma de Bryan.
Além disso, concluí que o gene da desaprovação fora
transmitido, de forma sutil mas bem-sucedida, intacto e que eu
agora sentia seu golpe. As coisas mais simples relacionadas a
mim pareciam irritar Bryan. Eu tinha parado de me barbear ao
sair da Califórnia; ele deixou claro que desaprovava minha barba
desgrenhada. Então me disse que eu precisava começar a usar
desodorante. Não recebi bem esse conselho. Encorajado por
namoradas, e pela Era de Aquário em que tínhamos crescido, eu
sempre me considerei uma pessoa de cheiro naturalmente bom.
No telefone com Sharon, mencionei esse insulto muito pessoal,
esperando ser tranquilizado, mas, em vez disso, recebi uma
longa pausa. Bem, talvez ele tenha razão em relação a isso,
disse ela por fim. Então, pensei, agora eu estava diante de uma
conspiração. Meu parceiro de surfe e minha namorada, os dois
haviam decidido, possivelmente em conluio, que estava na hora
de me frear, de domar o jovem selvagem, esmagar o espírito livre
de aroma agradável que eles já haviam amado. Em seguida, me
fariam usar paletó e gravata para trabalhar em um escritório.
Eu estava nitidamente ficando com “Guamshit” — uma doença
muito discutida entre os amigos professores de Bryan —, embora
tivesse o bom senso de manter minhas paranoias mais lúgubres
para mim. A verdade era que Sharon estava sendo
maravilhosamente cabeça aberta em relação à minha partida
para essa viagem sem data para acabar. O fato de eu ser imaturo
e teimoso (e Sharon, por ser mais velha, tinha uma boa
perspectiva do meu egoísmo) não significava, entretanto, que eu
ainda fosse fisicamente um garoto. Eles sem dúvida estavam
certos: preciso admitir que eu fedia como um cavalariço.
Eu tinha um romance em andamento para me manter ocupado
durante os dias entediantes em Guam. Todos os personagens
principais trabalhavam na ferrovia da Califórnia, um ambiente que
eu conhecia bem, mas, de certa forma, a trama literalmente saiu
dos trilhos e se perdeu em algum lugar na costa do Marrocos.
(Sharon e eu tínhamos viajado ao Marrocos após um longo
inverno na Inglaterra.) Bryan leu o manuscrito e disse que era um
caos. Ele estava certo, e algumas conversas longas sobre o
ponto em que eu tinha errado me convenceram a jogar tudo fora.
A ferrovia ainda era o mundo sobre o qual eu queria escrever,
mas precisava de novos protagonistas. E ainda confiava mais em
Bryan que em todos os meus outros leitores. Em relação às
minhas dúvidas sobre seu comprometimento com o projeto do
inverno sem fim, percebi que eram, pelo menos em parte,
projeções de meus próprios medos e apreensões.
No fim, nós partimos. Ou tentamos. Tínhamos comprado
passagens baratas para a Samoa Ocidental pela Air Nauru, uma
empresa aérea que na verdade operava ao bel-prazer do rei de
um minipaís micronésio chamado Nauru. O rei requisitou nosso
avião enquanto esperávamos para embarcar, e o funcionário da
empresa nos disse para voltar em uma semana. Para vergonha
de Bryan, eu reclamei, e o representante da Air Nauru
rapidamente começou a entregar vouchers de hotel e refeições
para os passageiros embriagados que ainda não tinham deixado
o aeroporto. Acabamos ficando no Guam Hilton por uma semana.
Os outros refugiados da Air Nauru que ficaram de graça no hotel
não pararam de tentar me pagar bebidas, e Bryan achou que o
incidente ilustrava uma diferença fundamental entre nós dois,
embora a moral da história parecesse mudar cada vez que ele a
contava. Às vezes era sobre a passividade dele, outras, sobre
minha teimosia. Tiramos fotos mal iluminadas um do outro ao
estilo Frankie Avalon para enviar aos parentes em casa, nos
equilibrando cuidadosamente sobre as pranchas em nosso
quarto de hotel. Vejam só: a primeira parada em nossa turnê
mundial de surfe. Bryan e Diane conseguiram passar mais uma
semana juntos. Depois partimos de verdade.

***

Em poucas semanas, parecia que tínhamos passado metade da


vida andando de um lado para outro do Pacífico Sul. Viajávamos
de ônibus locais, caminhões e balsas, de canoa, cargueiro e
barcos abertos, de avionetas, veleiros e táxis, a cavalo.
Andamos. Pedimos carona. Remamos. Nadamos. Caminhamos
mais. Debruçávamos sobre mapas e cartas de navegação e
procurávamos atentamente recifes distantes, canais, pontais,
bocas de rios. Subimos trilhas cobertas por mato, precipícios
escarpados e coqueiros em busca de melhores pontos de
observação, e éramos frequentemente derrotados por florestas,
mapas ruins, estradas piores ainda, manguezais pantanosos,
correntes oceânicas e kava. Pescadores nos ajudavam. Aldeões
nos recebiam. As pessoas olhavam, boquiabertas, as foices
congelavam em pleno movimento quando passávamos por suas
plantações de inhame nas profundezas das florestas, com tábuas
estranhas debaixo do braço. Crianças pareciam nos seguir por
toda parte, gritando “Palagi, palagi!” (“Pessoas brancas!”). A
privacidade se tornou uma vaga lembrança, um daqueles luxos
americanos deixados para trás. Éramos curiosidades, enviados,
diversão. Ninguém entendia que diabo estávamos procurando.
Queríamos ter levado uma revista de surfe. Os livros
encharcados que rolavam dentro de nossas mochilas de nada
serviam como recurso visual. (Tolstói não surfa.)
Em Samoa Ocidental, encontramos e surfamos uma direita
traiçoeira e poderosa diante da costa sul de Upolu, a ilha
principal. A onda tinha grande potencial, pensei, mas era
vulnerável aos ventos alísios de sudeste, que sopravam quase
todo dia. Bryan batizou o pico de Mach Two, pela velocidade do
drop. Ele tinha séries aterrorizantes, que mudavam bastante de
lugar, davam a volta, eram balançadas e imprevisíveis, além de
um recife raso, e quebrava a quase um quilômetro da costa; tudo
isso me deixou feliz por ter levado uma prancha de remada
rápida. Decidimos não acampar naquela onda e seguimos
adiante para Savai’i, a ilha seguinte a oeste, onde encontramos,
em uma costa com ventos mais leves, uma esquerda em frente a
um vilarejo chamado Sala’ilua.
O desafio durante o inverno no hemisfério sul era bem
simples: grandes swells de inverno vinham do sul, de
tempestades nos Quarenta Rugidores, ou de latitudes ainda mais
altas, abaixo da Nova Zelândia, e os alísios predominantes
sopravam da mesma direção. Para surfar, isso era ruim. Vento
maral estraga as ondas — atrapalha, faz com que esfarelem,
enchendo a arrebentação de espuma. Então estávamos à
procura de lugares onde os swells de sul viravam, ou
contornavam, o recife ou a costa, fazendo uma curva para leste
ou oeste — mais provavelmente leste, já que os alísios sopravam
de sudeste — até quebrarem com o vento predominante. O vento
terral, como espero ter deixado claro, cobre as ondas de glória.
Ele acerta a onda, segurando-a no alto e, evitando que quebre
por uma fração de segundo crucial, a deixa mais oca e cria muito
pouca ou nenhuma turbulência na face. Mas swells perdem a
força e o tamanho quando fazem curvas. Costas escarpadas com
ventos bizarros podem alterar o padrão geral, mas basicamente
estávamos à procura de recifes em ângulo perfeito para dobrar
swells de sul na direção dos alísios sem matá-los. Se esses
recifes existissem fora dos sonhos e da teoria, também
precisavam, para nossos propósitos, vir equipados com canais
de águas profundas, também em ângulo certo, de modo que as
ondas que quebrassem nos recifes tivessem paredes surfáveis, e
nós tivéssemos um local para remar de volta para o outside
depois de surfá-las. Era pedir muito.
A esquerda em Savai’i era consistente, mas nada especial.
Nós demos a ela o nome de Uo’s — uo é a palavra em samoano
para “amigo”. Os ventos alísios em sua maioria a deixavam em
paz, mesmo à tarde. Infelizmente, o grosso dos swells de sul
também passava apressado ao largo da pequena baía onde
surfávamos, jogando ondas sobre nós diariamente, mas
nenhuma com muita energia. Nos dias maiores, chegavam à
altura da cabeça. Uo’s tinha um arranjo promissor, com um pico
confiável e uma parede longa. Quase todas as ondas eram
detonadas, porém, por uma seção rápida e cruzada que
quebrava à frente do gancho (sua parte mais vertical), e o surfe
terminava na maioria das vezes em frustração. Na maré baixa,
ele era extra rápido, e entrar e sair da água ficava complicado.
Uma laje de lava coberta com rochas lisas do tamanho de peças
inteiras de presunto ficava exposta, fornecendo, para quem
estava na praia, cenas hilariantes de escorregões, xingamentos,
tornozelos escoriados e tentativas acrobáticas de cair sem
danificar as pranchas. As pranchas faziam grandes ruídos ocos
quando batiam nas pedras. Pior, havia uma “casinha” apoiada
sobre palafitas no meio da lagoa, logo a oeste do pico, e seu
fedor se destacava ainda mais na maré baixa. Bryan achou que a
latrina daria uma grande logo para uma campanha de prevenção
do tifo. Em cortes e arranhões que se acumulavam em nossos
pés brancos macios floresciam infecções.
Fomos as primeiras pessoas a surfar aquele pico?
Possivelmente. A surfar aquela grande ilha (cerca de sessenta e
cinco por cinquenta quilômetros)? Provavelmente não. Mas não
tínhamos como saber. A dificuldade e a improbabilidade de
encontrar ondas boas em costas não surfadas era sem dúvida a
razão de Glenn Kaulukukui ter me lançado um olhar tão intrigado
quando lhe contei sobre meu plano. Agora, no entanto, Bryan e
eu estávamos completamente absortos na tentativa de solucionar
os enigmas e as idiossincrasias de Uo’s. Surfar um pico
conhecido, mapeado, com locais que mostram, mesmo que só
com exemplos, onde dropar e o que esperar é um
empreendimento completamente diferente. Estávamos
descobrindo por conta própria, primeiro nos esforçando para
identificar e depois, por tentativa e erro, encontrar novas ondas.
Era sensacional, quando você desviava os olhos das muitas
excentricidades do recife e pensava na situação em si, estar
surfando em tão esplêndido isolamento.
E ali aconteceram, Deus seja louvado, algumas sessões na
maré cheia, quando a seção maligna ao final da onda relaxou, e
Uo’s alcançou todo seu potencial. Uma delas veio no fim de um
dia chuvoso, quando o vento, por algum ato local de graça
meteorológica, rebateu nas montanhas e começou a soprar
terral. As nuvens estavam baixas e escuras; a água, de um cinza
sem graça. Bryan disse que, exceto pelas palmeiras se agitando
à luz sombria e pela temperatura, ele se sentia como no noroeste
da Irlanda. Estava de frontside — um goofy indo para a esquerda
— e pegou uma série de ondas rápidas e longas, fazendo uma
linha alta através da seção que fechava e finalizando-a bem. As
ondas estavam na altura do ombro e pulsantes. O vento
acrescentava um caráter dramático às séries que se
aproximavam e uma discreta luz azul no alto das faces, bem no
momento de quebrar. Surfamos até escurecer, depois voltamos a
pé para Sala’ilua sob uma chuva morna, grossa e gentil.
O vilarejo não tinha hotel. (Pelo que eu sabia não havia
nenhum hotel em toda a ilha de Savai’i.) Estávamos hospedados
com uma família, os Savaiinaeas, que tinham várias fales —
casas tradicionais sem paredes e telhado de palha — anexas.
Ficar com uma família era um negócio delicado. Tínhamos
aparecido em Sala’ilua certa tarde, depois de uma longa viagem
na traseira de um caminhão de lixo. O caminhão, com um piso de
velhas sandálias de borracha recicladas, também funcionava
como ônibus a céu aberto. Nossas pranchas foram enfiadas no
meio de cestas de inhame e peixe. O caminhão nos deixou perto
de um campo de críquete coberto de grãos verdes de cacau
espalhados para secar ao sol. O vilarejo era arrumadinho, todo
com telhados de palha e árvores de fruta-pão bem distribuídas, e
muito silencioso. Ele parecia tímido. Mal conseguíamos ver as
ondas. Tínhamos uma carta de apresentação para os
Savaiinaeas de um primo deles que conhecemos em Apia, a
capital samoana. Era possível ouvir o grito de crianças, depois as
vimos reunidas a uma distância segura. Por fim, um rapaz
vestindo um lavalava preto se aproximou. Murmuramos o que
estávamos fazendo ali, e ele nos conduziu a Sina Savaiinaea. Ela
se revelou uma mulher bonita na casa dos trinta anos. Sina leu
nossa carta, ignorando uma multidão ansiosa que tinha se
reunido a nossa volta. Olhou para as bolsas de lona compridas e
sujas que levávamos embaixo do braço — contendo nossas
pranchas —, mas não hesitou. “Vocês são bem-vindos”, disse,
revelando um sorriso eletrizante.
Sina, o marido, Tupuga, e as três filhas nos cobriram com uma
hospitalidade constrangedora. Refeição após refeição farta,
xícara após xícara de chá. Nossas camisetas manchadas de suor
desapareciam e reapareciam de manhã lavadas e passadas.
Bryan, que fumava, dizia que os cinzeiros pareciam ser
esvaziados dez vezes por dia. Tentávamos observar as maneiras
básicas locais que havíamos aprendido — nunca se sentar com o
pé apontado para alguém, nunca recusar nada oferecido,
cumprimentar todo convidado com um aperto de mão e um
“Talofa”. Mas não havia como escapar de nosso papel mimado e
privilegiado de hóspedes ignorantes. Chegamos a dormir dentro
de redes antimosquitos que tínhamos levado, como pequenos
sheiks de mochilas. As conversas eram surpreendentemente
cosmopolitas. Todo adulto em Sala’ilua parecia ter viajado e
trabalhado por toda parte — Nova Zelândia, Europa, Estados
Unidos. (Samoa tem uma grande diáspora se consideramos seu
tamanho; dizem que há mais samoanos vivendo no exterior que
no país.) Havia um matai, ou chefe, que fora às Nações Unidas.
Havia até um cara de jaqueta jeans com uma grande bandeira
americana nas costas que fizera uma peregrinação a Lourdes.
Ainda assim, Savai’i parecia um mundo em si mesmo, um
universo completo, fora do tempo. Não havia televisão. Nunca vi
um telefone. (Os celulares e a internet ainda estavam a muitos
anos de distância.) Havia produtos importados, em sua maioria
da China, nas pequenas lojas improvisadas — pás e lanternas,
cigarros Golden Deer, rádios transistorizados Long March. Mas a
vida cotidiana era, em grande parte, uma questão de “faça você
mesmo”. As pessoas plantavam, pescavam e caçavam suas
refeições. Construíam as próprias casas e os próprios barcos,
faziam redes de pesca, mastros, cestos, leques. Elas
improvisavam tudo. Fiquei encantado. Eu partira dos Estados
Unidos com a ambição ignorante de ver mais do mundo antes
que tudo se transformasse em Los Angeles. Não havia risco de
isso acontecer, é claro, mas ir parar na Polinésia rural fez com
que minha vaga insatisfação com a civilização industrial entrasse
em um foco mais preciso.
Visto por certo ângulo, tudo em Samoa — o oceano, a floresta,
as pessoas — tinha uma espécie de brilho nobre. Esse brilho
nada tinha a ver com as praias visualmente perfeitas nem com as
barracas de palha, essas ideias ultrapassadas de paraíso, nem
com meus velhos sonhos de livros infantis — meus dias de Umi e
seus irmãos tinham ficado para trás havia muito tempo. Eu nem
fantasiava com donzelas de seios desnudos, ou pelo menos
nada digno de se escrever. Também duvidava, após examinar os
adolescentes samoanos que conhecemos, que houvesse uma
adolescência pré-neurótica ali — peço desculpas a Margaret
Mead. (Gauguin, nesse quesito, se decepcionou no Taiti — ele
achou que tinha chegado lá um século tarde demais.) Não,
Samoa estava completamente cristianizada e alfabetizada. A
cultura pop global florescia com sua virulência habitual. O herói
das crianças parecia ser Bruce Lee. A música onipresente
naquele ano era o cover de Boney M. de “Rivers of Babylon”. O
que me encantou foi simplesmente as pessoas ainda estarem
vivendo tão perto da terra e do mar e de forma tão comunitária.
Para meus olhos ocidentais, eles eram paradigmas de
competência graciosa e integridade imaginada.
O irmão de Sina, Viti, era um cara baixo e musculoso de quase
quarenta anos. Tinha cabelo espetado e costeletas compridas,
um sorriso tímido e uma modéstia que quase escondia sua
mente ágil e engenhosidade descolada. Ele nos contou que
vivera na Nova Zelândia, onde trabalhou na Hellaby Corned Beef
Factory, na Bycroft Biscuit Factory e na New Zealand Milk and
Butter Factory. Havia mandado dinheiro para casa, porém era
mais feliz ali, dizia ele. “Lá você precisa usar cardigã e fica vendo
a respiração diante do seu rosto enquanto espera o ônibus para
ir trabalhar.” Toda manhã em que estávamos por lá, Viti velejava
para além do horizonte em uma canoa artesanal para um homem
com estabilizador lateral que, segundo Sina, ele tinha escavado à
mão em menos de uma semana — isso depois de derrubar
sozinho a árvore de puna usada para construí-la. À tarde, Viti
levava barcos cheios de bonito de volta para a aldeia. À noite,
carregava uma lanterna até o recife na maré baixa e pegava
peixes com uma faca. Quando precisava de dinheiro, subia a
montanha atrás de Sala’ilua até a plantação de coco de sua
família e levava um caminhão de coco seco para o mercado.
(Samoa, diferente de Guam, realmente exportava coco seco.)
Quando um porco selvagem entrava em sua plantação, ele saía
à caça.
Certa vez perguntei a Viti sobre caça a porcos. Ele, Bryan e eu
estávamos sentados em uma fale pequena sem paredes na
floresta, perto de Sala’ilua, bebendo cerveja artesanal de uma
velha garrafa de gim.
“Levo uma lanterna, um rifle e alguns cães, encontro sua trilha,
então o espero contra o vento”, explicou Viti.
Era noite. A cerveja era doce como cidra de maçã, mas forte
como scotch.
“Às vezes, preciso persegui-lo pela mata. Ele sobe e desce a
montanha”, prosseguiu Viti. Ele riu, imitando a si mesmo
correndo pela selva. “Fica escuro. Aí, depois que eu o mato,
preciso esperar com ele a noite inteira. A única coisa que tenho é
minha lavalava. Eu a ponho por cima da cabeça, mas os
mosquitos são terríveis. Terríveis. Chove. Fico com frio. Aí
aparecem outros porcos, e todos esperam a minha volta, porque
eu matei seu irmão. Os cachorros não param de latir. O porco
deve pesar uns noventa quilos. Eu o corto em duas partes. De
manhã, encontro uma vara comprida para levá-lo, uma parte de
cada lado. Mas pode ser longe até a estrada. Muito longe. Você
gostaria de caçar porcos?”
Achei que Bryan fosse ficar empolgado para ir. Bebemos mais
uma rodada da cerveja de Viti.
Agora, Viti queria um pouco de música.
“Mostrem-me uma música de seu país.”
Bryan ofereceu uma rodada de Hank Williams a capela.

I got a hot rod Ford and a two-dollar bill (Tenho um Ford envenenado e
uma nota de dois dólares)
And I know a spot just over the hill (E conheço um lugar logo depois da
colina)

O público — um grupo de crianças comendo cacau do jardim


ao lado da fale — ficou louco. Elas assobiaram, aplaudiram e
riram até não poder mais. A voz de Bryan ecoava
melodiosamente pela floresta. Viti abriu um grande sorriso. Agora
era minha vez.
Mas aí, um toque duplo, longo e triste de uma trombeta de
búzio soou em meu resgate.
“Toque de recolher”, falei. “Nada de surfe nem cantoria.”
Esses toques de recolher ocorriam duas vezes por dia.
Duravam menos de duas horas, e as pessoas os levavam a
sério. Ninguém saía do lugar nem trabalhava até que um
segundo toque de concha ou sino de igreja soasse. Tínhamos
ouvido diversas explicações diferentes — que a atividade
cessava por respeito aos chefes, ou por um período de oração
—, mas a mensagem geral sobre o poder do Fa’a Samoa, os
costumes tradicionais samoanos, era clara. Aos domingos, o
toque de recolher ficava em vigor o dia inteiro. Em algumas
ocasiões, quando as ondas pareciam boas, achei difícil acatar a
proibição. Claro que podíamos escapar para pegar algumas
ondas discretamente, longe da praia, e não ofender ninguém.
Bryan tinha um prazer estranho em me repreender por tais
sugestões ímpias.
“Você se acha um iconoclasta?”
Não, eu não achava. Só queria mais ondas.
Outro par de notas tocadas em um búzio viajou em meio às
árvores. Era minha vez de cantar. Fechei os olhos e, do fundo da
memória, sem pensar muito a respeito, entoei as cinco estrofes
da canção “Twelfth Night”. Foi uma escolha estranha, e eu sem
dúvida estava desafinando, mas entrei na onda, com as
repetições filosóficas tristes (“For the rain it raineth every
day”/“Pois a chuva caía todo dia”), e as reflexões reprimidas
sobre casamento (“By swaggering could I n-e-e-ver thrive”/“Com
bravatas n-u-u-unca tive sucesso”), e o aplauso final pareceu
ruidosamente sincero.

***

Sala’ilua tinha uma segunda onda. Ela quebrava a leste de um


salão de bilhar parcialmente em destroços em frente ao mar.
Passamos muito tempo estudando-a. Tratava-se de uma
esquerda rápida como uma bala. Era longa e cavada, e o vento
predominante, incrível, um terral praticamente reto. Parecia que
uma cadeia íngreme de montanha atrás da aldeia fazia com que
os alísios encurvassem para oeste bem ali, e um desfiladeiro no
mar de algum modo combinado com uma laje partida de recife
ajudava a dobrar os swells com o vento. O resultado era uma
onda linda, mas de aparência letal, quase certamente rápida e
rasa demais para ser surfada. Ela quebrava abaixo do nível do
mar, com um intervalo curto e profundo que a própria onda
criava, depois explodia sobre uma bancada de coral exposta. No
entanto, a onda melhorava quando crescia — pelo menos, era
mais plausível imaginar surfá-la sem acelerações impossíveis por
seções ridiculamente rápidas. Caminhei pela bancada de coral
na maré baixa para estudá-la mais de perto. A lagoa era cheia
tanto de ouriços quanto de perigos feitos pelos homens —
armadilhas para peixes e caranguejos que eram linhas
transparentes estendidas entre estacas. Uma série turquesa
após a outra passava rugindo, varrida pelo vento. As maiores
ondas quebravam a talvez um metro e meio das rochas. Não.
Não, não. Chamamos o pico de Almosts, “Quases”.
Uo’s era medíocre e fraca em comparação — apenas uma
nova regra de casamento.
Em nossa última noite em Sala’ilua, Sina nos ofereceu um
banquete. Estávamos comendo bem a semana inteira — peixe
fresco, frango, caranguejo-dos-coqueiros, mariscos, sopa de
mamão papaia, batata-doce e uma dúzia de variações de inhame
(com espinafre, banana, leite de coco). Naquele dia serviram
linguiça de porco e pão de banana com glacê de algum modo
preparado em uma fogueira. Além disso, teve uma iguaria preta e
verde de sabor forte vindo do fundo do mar — não entendi o
nome —, que brincou embaraçosamente com minha ânsia de
vômito. Bryan e eu fizemos discursos sinceros de despedida e
distribuímos presentes — um prato de vidro para Sina, balões
para as crianças, copos da cerveja Schlitz para Viti, cigarros para
o pai de Sina e um pente de concha para a mãe.
Um ônibus decente passava pela aldeia às quatro da manhã.
Sina nos acordou, nos serviu café com biscoitos e, acompanhada
de Viti, da esposa dele e de um de seus filhos, esperou conosco
na estrada. O céu estava nublado e com estrelas. Um morcego-
das-frutas voou baixo, foi possível ouvir o bater coriáceo de suas
asas. O Cruzeiro do Sul brilhava. O ônibus chegou, com música
baixa saindo pela porta aberta. Um garoto silencioso que viajava
no teto pegou nossas pranchas.

***
Encontramos nossa cota de pessoas estranhas em Samoa. Um
rapaz chamado Tia nos conduziu a uma praia remota que
descobrimos não ter ondas. Como prêmio de consolação,
imagino, ele nos contou histórias elaboradas sobre cada
enseada, afloramento rochoso e recife pelos quais passamos.
Havia fratricidas, parricidas e um elenco vívido de demônios
cristianizados. Havia um suicídio em massa — toda uma aldeia
se autossacrificou. Fiquei impressionado. Toda pedra da costa
parecia ter um lugar na literatura sagrada. Em dado momento,
Tia falou: “Se vocês voltarem em três anos, essa praia vai ser
realmente um lugar legal, porque eu tenho dinheiro no banco da
Nova Zelândia, então vou comprar dinamite e deixá-la bonita.”
Nós nos juntamos com um ministro presbiteriano, Lee, e sua
esposa, Margaret. Eles eram da Nova Zelândia, mas tinham
acabado de passar nove anos na Nigéria. Agora viviam nos
fundos de uma igreja em Apia com três filhos pequenos. Lee
estava ansioso para nos mostrar o lugar. Usava short vermelho
justo e dentaduras grandes, acinzentadas. Tinha um queixo
pontilhado com poros profundos, óculos grossos e uma
quantidade impressionante de pelos corporais. Ele, na verdade,
não sabia muito sobre Samoa, e seu interesse por nós logo
diminuiu, mas Margaret assumiu a tarefa e continuava nos
convidando para passeios ou para sua casa. Lee tinha um amigo,
Valo. Jovem e muito atraente, Valo tinha LOVE ME TENDER
tatuado no bíceps. Lee observava Valo constantemente,
extasiado, e, quando Valo não estava por perto, falava sobre ele.
“Valo e eu podíamos vir para cá e achar um cantinho onde
ninguém nunca nos encontrasse”, disse na praia, com um tom
melancólico. Eu sentia pena de Margaret, que era baixinha e
doce e, quando Lee a depreciava com sarcasmo, arregalava os
olhos de modo infantil por trás dos óculos e sorria para nós. Valo
disse a Bryan que Rothman’s era seu cigarro favorito porque
havia uma mensagem secreta no nome da marca: “Right on,
Tom, hold my ass, now shoot!” (É isso aí, Tom, agarre minha
bunda, agora mande ver!). Quando o piquenique seguinte se
aproximou, Bryan e eu conversamos em espanhol para tramar
nossas desculpas.
Nos arredores de Apia, ficamos em um lugar chamado o
Paraíso do Entretenimento. Era em parte um hotel de beira de
estrada, com alguns chalés modestos, mas cuja atividade
principal era uma boate local apropriadamente batizada, que
pertencia a um parlamentar enorme chamado Sala Suivai e era
administrada por ele. Havia um palco recuado ao ar livre, com um
lance curvo de arquibancada. Em algumas noites, eles exibiam
filmes. Bandas de música dançante tocavam nos fins de semana.
Certa vez armaram um ringue de boxe, e uma multidão eufórica
assistiu a um duelo entre cientistas locais. Ninguém prestava
muita atenção em nós — os palagis com seus pés enfaixados,
suas cartas náuticas abertas sobre mesas perto do bar. E ser
ignorado, a urbanidade disso, foi uma mudança agradável.

***

Encontrar ondas surfáveis com cartas náuticas era no mínimo


uma aposta arriscada. Procurávamos costas de ilhas que
dessem para o sul e não estivessem “obscurecidas” por
nenhuma barreira de recifes nem massa de terra mais ao sul.
Procurávamos pontos, baías e passagens em recifes onde a
água rasa ao redor mostrasse, depois de uma ou duas braças,
um mergulho pronunciado na direção do mar — locais aonde
swells chegavam repentinamente saídos de águas profundas e
entravam em zona de arrebentação, dando-lhes mais força e
mais concavidade. O ângulo de qualquer trecho de recife ou
praia era crítico. A linha grosseira ao longo da qual se podia
esperar que ondas quebrassem precisava ser inclinada, até
curvada, do mar aberto para o sul, para dar às ondas uma
chance de fazer a curva, abrir e virar para o vento. Procurávamos
desfiladeiros perto da costa que poderiam concentrar um swell de
intervalos longos e paredes de desfiladeiros que fariam com que
as ondas refratassem em águas mais rasas. Muitos trechos de
costa — a maior parte deles — podiam ser excluídos por uma
razão ou outra. Mas isso deixava um número enorme de lugares
com algum potencial abstrato de surfe e, na verdade, decidir por
um local para onde valesse a pena viajar era, no fim, apenas um
grande trabalho de adivinhação. Não tínhamos conhecimento da
região; nossos mapas não eram perfeitos, e a escala deles era
sempre grande demais para registrar pequenos afloramentos de
rochas ou fragmentos de recife que, no fim, fariam toda a
diferença. Tentávamos visualizar o significado dos muitos
números que se misturavam, à medida que caíam para um único
algarismo em faixas de água azul-claras perto da costa que
cercavam as grandes manchas amarelas sem graça de terra
seca. Olhando para o mapa de um lugar que você conhece,
sobretudo de um lugar que você sabia ter ondas, de repente era
fácil demais. É por isso que este pico é bom, sob as condições
certas. O mapa bidimensional se transformava em uma visão
multidimensional de ondas surfáveis. Você podia isolar meia
dúzia de fatores só com a ajuda dos mapas. Mas estudar os
mapas de lugares que nunca tínhamos visto? Estávamos voando
às cegas. Isso foi décadas antes do Google Earth. Nós
simplesmente precisávamos confiar em Willard Bascom, o
grande oceanógrafo que escreveu, em Waves and Beaches:
“Essa zona onde as ondas liberam sua energia e onde
movimentos sistemáticos da água dão lugar à turbulência é a
arrebentação. É a parte mais empolgante do oceano.”

***

Planejamos ir em seguida ao Taiti, ou talvez à Samoa Americana.


Os dois lugares tinham surfistas e picos de surfe conhecidos. Em
vez disso, fomos para Tonga, sobre o qual nada sabíamos.
Foi uma decisão repentina, tomada durante um encontro
fortuito em um bar à beira-mar com o comissário australiano de
um cargueiro a caminho de Nuku’alofa, a capital de Tonga.
Embarcamos, não sóbrios, à meia-noite. O barco deixou Apia ao
amanhecer.
O capitão só descobriu que estávamos a bordo mais tarde
naquela manhã. Sua ira, supostamente, foi toda despejada no
comissário. Conosco, ele foi perfeitamente agradável. Seu nome
era Brett Hilder. Usava bigode e cavanhaque estilo Van Dyke
bem aparados e um uniforme que lhe caía bem. Ele nos levou
por um tour pela ponte de comando. Aquele desenho do rei de
Tonga na parede de sua cabine? O próprio capitão Hilder o
fizera. O monarca havia gostado tanto que o assinara. Tínhamos
lido o livro de Michener, Histórias do Pacífico Sul? Bem, os
originais dessas histórias vieram todos do capitão Hilder. Por isso
o livro era dedicado a ele. (E era mesmo.) Mas sabíamos por que
e como certa ave de uma ilha do Pacífico tinha sido mencionada
por Heródoto e nos livros proféticos da Bíblia? Estávamos
prestes a descobrir. Por acaso, o capitão Cook apelidara Tonga
de Friendly Islands só por ter perdido, por dois dias, o banquete
no qual ele e sua tripulação seriam surpreendidos e
transformados em prato principal.
Bryan e eu achamos Tonga um local bem amistoso, como o
apelido sugeria. Mas o surfe era um grande aborrecimento. Em
Eua, uma ilha sólida e rochosa cerca de trinta quilômetros a
sudeste de Nuku’alofa, achei que estivéssemos à beira de uma
descoberta real. A costa leste de Eua era toda de penhascos
elevados e vento maral, mas o swell que varria a costa sudoeste
se mostrava altamente promissor. Parecia enorme. Na barca de
Tongatapu, a ilha principal em Tonga, apenas ver o mar já fez
meu coração bater depressa. Eua é pedregosa e tem poucas
estradas. Alugamos cavalos e subimos e descemos por trilhas
rústicas através de arbustos densos, verificando trechos
promissores de costa. Todo lugar que conseguíamos ver era
ruim: rochoso, revirado, fechado, impossível de surfar.
Continuamos seguindo para o norte. Parte da costa noroeste
tinha uma estrada de terra, o que facilitou nossa vida, mas o
swell diminuía constantemente. No fim da estrada, enfim
encontramos uma onda surfável em uma pequena enseada
margeada de palmeiras chamada Ufilei.
Era um pico selvagem. Remamos por uma brecha no recife
que tinha, talvez, menos de um metro e meio de largura. Uma
esquerda curta que levantava do nada explodia de modo
espetacular na extremidade sul da baía, perto de uma laje de
lava exposta. As ondas subiam tão rapidamente das águas
fundas que as paredes ainda mantinham um azul-marinho das
profundezas do oceano quando quebravam. Fomos para o line-
up. A onda era tão rápida e pesada que parecia mais uma queda
repentina no nível do mar do que um swell normal. Acabei
pegando quatro ou cinco ondas. Cada drop era crítico, nós
decolávamos, o que me obrigava a jogar os braços para o ar em
um esforço para permanecer em cima da prancha. Não caí.
Depois do drop e de uma cavada acelerando na base, a onda se
exauriu em águas profundas. A adrenalina do drop foi sinistra —
as maiores ondas eram bem mais altas que nós —, mas a razão
perigo/recompensa de surfar tão perto de uma laje exposta era
absurda. Muitos meses depois, em uma praia na Austrália,
conhecemos um cara que disse ter surfado Ufilei. Ele era um
shaper, marinheiro e cineasta conhecido na Califórnia chamado
George Greenough — um dos inventores da pranchinha. Pelos
seus cálculos, disse, uma onda de um metro e meio em Ufilei
tinha uns vinte metros de espessura. Era uma avaliação
excêntrica — não tenho ideia de como se determina a espessura
exata de uma onda quebrando —, mas uma boa descrição da
ferocidade estranha do pico. Resolvemos parar cerca de uma
hora depois.
Mas tivemos problemas para voltar pela brecha no recife.
Havia tanta água saindo violentamente da lagoa através da
pequena passagem que era como tentar remar contra as
corredeiras de um rio. Desisti, desviei alguns metros para o norte,
peguei uma linha de espuma e passei por cima de um recife com
quase três centímetros de profundidade. Bryan preferiu afundar a
cabeça e mergulhar direto na corrente, sem conseguir ir a lugar
algum até ficar exausto. Meu conselho, gritado da lagoa calma
como uma piscina, pareceu indesejado. Ele estava furioso e se
esforçava muito. Observei. O sol se pôs. Não me lembro de que
rota ele tomou no fim das contas, mas lembro quão exausto ele
parecia quando finalmente conseguiu passar pelo recife. Não me
dirigiu a palavra. Esperei que chegasse à praia rastejando como
um sobrevivente de naufrágio e descansasse, mas em vez disso
ele saiu correndo da água e foi embora a uma velocidade furiosa,
a prancha debaixo do braço. Estávamos hospedados em um
quarto alugado numa casa a oito quilômetros de distância. Eu o
encontrei lá, ainda irritado.

***

Estavam lendo a sorte das garotas que trabalhavam na pousada.


Tupo, uma adolescente de camisa listrada com um dente
quebrado e olhos sonolentos, dava as cartas. Os valetes
estavam no alto. Segundo Tupo, eles representavam as quatro
raças de marido: palagi, tonganês, japonês e samoano. Cada vez
que Tupo puxava uma carta, ela a dispunha por naipe junto ao
valete, batia nela de maneira significativa e declarava: “Vocês
sabem!” As outras garotas, encolhidas em torno de um lampião
de querosene, escutavam com os olhos arregalados e a
respiração entrecortada. Todas tinham um cheiro amanteigado,
levemente azedo.
Para mim, Tupo exclamou: “Garotas gordas e preguiçosas
conseguem maridos tonganeses, que só permitem que elas
cozinhem e lavem. Garotas magras, bonitas e trabalhadoras vão
conseguir palagis, que usam relógios e as levam ao cinema de
carro e olham, olham e olham para tudo. Garotas que se casam
com japoneses vão para o Japão e vivem muito bem, fumando
cigarros e só tendo que fazer faxina de vez em quando, mas o
marido vai ficar com raiva de sua preguiça e um dia vai chegar
em casa e cortá-las com uma faca. Garotas que se casam com
samoanos vão para Samoa e vivem como nós, tonganeses, só
que elas podem ver TV.”
Uma das garotas suspirou, então disse: “Eu vejo televisão em
Pago Pago. Muito bonito!” Tupo previu que em um mês eu iria
receber uma carta com dinheiro da minha família. Iria me casar
com uma garota palagi, mas deixaria alguém chorando em
Tonga.
Enquanto estávamos com aquelas garotas da pousada,
brincando e passando noites iluminadas a querosene, não
consegui deixar de notar que tinha abandonado, pelo menos
temporariamente, minha ambição de dormir com mulheres de
muitas terras. A Polinésia rural não é lugar para casos sem
compromisso, independentemente das histórias de marinheiros
sobre o libertino Taiti — ou, em uma versão cinematográfica
gravada na memória, a princesa da ilha fazendo a tela ferver com
o Fletcher Christian de Marlon Brando. Os marinheiros do capitão
James Cook tinham realmente encontrado uma Tonga libertina,
eu soube mais tarde (pelo livro de Tom Horowitz, Blue Latitudes).
Um dos tripulantes de Cook descreveu as mulheres locais como
“totalmente oferecidas”, dispostas a dormir com um visitante por
um único prego de ferro. E um cirurgião holandês em uma
viagem no século XVII relatou que, em Tonga, as mulheres
“apalpavam desavergonhadamente os marinheiros na parte da
frente de suas calças e indicavam com clareza que desejavam
ter relações sexuais”. Isso tudo estava muito distante das
mulheres excessivamente cristãs que conhecemos. A maioria
delas usava um tapete rígido trançado chamado ta’ovala em
torno da cintura, amarrado com firmeza sobre outras roupas
incômodas. Os locais por onde passávamos em nossas buscas
bizarras em geral tinham pequenas sociedades conservadoras.
Muitas das mulheres que encontramos foram paqueras
maravilhosas, mas os limites eram claros, e parecia essencial
respeitá-los. Não queria deixar outra pessoa chorando. Nem
queria levar porrada dos tios dela.

***
“Está bom”, disse Bryan. “Você parece um padre muito liberal.”
Ele se referia à minha barba, que se tornava cada vez mais
desgrenhada. Mas reparei que estava falando sobre mais que
isso, é claro. Estávamos começando a ficar de saco cheio um do
outro. Circulando por mundos desconhecidos, levávamos um
mundo juntos, cheio de compreensões compartilhadas, para o
qual podíamos nos retirar. Mas esse local estava muito cheio,
com dois egos grandes se empurrando. Éramos tão dependentes
um do outro, estávamos sempre tão juntos, que qualquer
diferença irritava e inflamava. Eu me vi copiando em meu diário
um trecho de Anna Karenina sobre Oblonsky e Levin e sua
amizade tensa. Será que Bryan estava sorrindo para mim com
ironia? Eu achava que sim e levava muito a sério breves
comentários como aquele do padre.
Isso porque eu sabia que ele estava tramando alguma coisa.
Bryan era um conservador sofisticado, cético em relação a tudo o
que era novo. Certa vez, na faculdade, no auge do movimento
estudantil antiguerra, ele despertou a fúria dos colegas de turma
ao levar a uma passeata de protesto a mensagem nada
entusiasmada: GUERRA É ESPAÇO — VAMOS, METS. Ele ainda achava
a expressão “paz mundial” de uma inutilidade cômica. Eu levava
as coisas mais a sério. No ensino médio, participara da passeata
contra a Guerra do Vietnã, acreditando fervorosamente que o
conflito devia ser interrompido. Eu tinha crescido ouvindo música
de protesto — Joan Baez, Phil Ochs —, e isso ainda ocupava um
lugar secreto em meu coração. Bryan odiava essas coisas e toda
a autocongratulação suburbana e sentimental que elas
representavam. Nunca o ouvi citar Tom Lehrer, que cheguei a
conhecer em Santa Cruz, mas tinha certeza de que ele ia gostar
de seus versos astutos:

We are the folk song army (Somos o exército da música folk)


Every one of us cares (Todos nós nos importamos)
We all hate poverty, war and injustice (Odiamos a pobreza, a guerra e a
injustiça)
Unlike the rest of you squares (Ao contrário do resto de vocês,
quadradões)
Eu admirava a dissidência obstinada de Bryan da ortodoxia
liberal. Também havia adquirido, enquanto trabalhava como
guarda-freios na ferrovia, um pouco do olhar do homem
trabalhador para discursos moralistas suaves.
Mas perambular pelo Pacífico Sul estava despertando outra
coisa em mim, algo mais perturbador do que — do ponto de vista
de Bryan — meus pelos faciais. Eu estava me interessando por
autotransformação. Eu me esforçava para compreender a visão
de mundo dos ilhéus com quem circulávamos e vivíamos — e eu
vinha fazendo isso desde antes de Guam, quando me joguei de
cabeça no submundo de pedrinhas de coral e no jogo de damas
local em torno do pote de sakau em Pohnpei. Tinha ido até ali
para aprender, e não apenas algumas coisas sobre lugares e
povos distantes. Queria aprender novas maneiras de ser. Queria
mudar, me sentir menos alienado existencialmente e mais à
vontade comigo mesmo e com o mundo. Era um desejo
irremediavelmente new age, e eu nunca iria mencioná-lo para
Bryan, embora se revelasse em minha rapidez para aprender
expressões e histórias locais onde quer que estivéssemos, em
minha admiração absoluta por fazendeiros e pescadores de
subsistência e na facilidade com que eu desenvolvia uma
espécie de intimidade com muitas pessoas que conhecíamos. Eu
tinha facilidade de lidar com estranhos, mas isso agora adquirira
uma intensidade nova, e me perguntei se Bryan às vezes se
sentia abandonado por mim, ou com aversão.
E também havia a autoaversão, contra a qual cada um de nós
lutava de maneira diferente. Sendo americanos brancos e ricos
em lugares muito pobres onde muita gente, sobretudo os jovens,
ansiavam abertamente pela vida, pelo conforto, pelas próprias
oportunidades para as quais tínhamos dado as costas, pelo
menos naquele momento, que parecia sem fim — bem, isso
simplesmente nunca ficaria bem. De um modo inevitável, éramos
figuras lamentáveis e sabíamos disso, portanto a humildade era
necessária. Mas tínhamos formas diferentes de interpretar essa
obrigação. Eu achava que os instintos conservadores de Bryan
se empolgavam com o forte patriarcado do sistema de chefia
samoano. Enquanto isso, meu romantismo enchia as interações
sociais na aldeia com um calor primitivo e uma saúde espiritual.
Surfar nessas circunstâncias era uma bênção. Era nosso
projeto, o motivo pelo qual nos levantávamos de manhã. Após
encontrarmos um grupo de mochileiros em Apia, resmunguei,
segundo Bryan, que eles “não passavam de malditos turistas”. Eu
não me lembrava de ter dito isso, mas era de fato como eu me
sentia. Nós mesmos olhávamos, olhávamos e olhávamos como
palagis, e havia algo obsceno nisso, mas pelo menos tínhamos
um propósito, um objetivo, por mais fugaz, supérfluo, ocioso e
insensato que pudesse parecer para qualquer outra pessoa.

***

Encontramos um surfista em Tongatapu, um americano chamado


Brad. Na verdade, ele descobriu que estávamos ali, hospedados
em uma pousada de praia a noroeste de Nuku’alofa, e um dia
apareceu a cavalo. Tinha vinte e três anos e cabelo bem curto.
Lembrava algum tipo de missionário. Disse que morava em uma
aldeia próxima, onde ajudava a construir uma igreja pentecostal,
e estava noivo e prestes a se casar com uma garota local. Ele
viera de Santa Barbara, Califórnia, via Kauai, e estava em Tonga
havia oito meses. Brad tinha modos estranhos e deliberados que
me pareceram totalmente familiares. Imaginei que ele tivesse
percorrido uma trilha que muitos surfistas pegavam, de uma
cidade praiana na Califórnia até uma ilha externa havaiana,
ingerindo uma grande quantidade de alucinógenos no caminho e
depois chegando, um tanto lesado, aos pés do Senhor e
Salvador deles. As pessoas os chamavam de loucos por Jesus.
Mas Brad não era pregador. Ele só queria falar de surfe.
Éramos os primeiros surfistas que ele vira em Tonga.
Tínhamos apenas uma pergunta: havia ondas por ali?
Ah, sim, disse ele. Ah, sim.
Mas não nessa época do ano.
Brad sabia de um pico com swell de norte, Ha’atafu, na
extremidade norte da península de Hihifo, que quebrava de
novembro a março ou abril em swells de intervalos longos vindos
do Pacífico Norte. Havia várias direitas, e Brad comparava todas
as passagens nos recifes com os melhores picos em Kauai. Isso
era um padrão muito alto. Ele surfava aquelas passagens
completamente sozinho. Explicou que nessa época do ano —
estávamos em junho — havia algumas esquerdas que
circundavam do Sul, mas eram pequenas e absurdamente rasas.
Insisti para que fôssemos na mesma hora para Ha’atafu. Era
uma caminhada longa. Brad nos levou até onde começava uma
trilha, no meio da floresta, e nos deu instruções para chegarmos
ao pico. Quando alcançamos a costa, era fim de tarde. O recife
ficava longe da praia, depois de uma lagoa ampla, e o sol
queimava forte atrás do mar, aparentemente revolto. Mas o
brilho, na verdade, estava tão forte que era difícil determinar
qualquer coisa. Eu queria sair remando para dar uma olhada
melhor. Bryan foi contra. O vento era maral. O sol estava se
pondo. Não havia tempo suficiente para discutir. Enfiei meus
chinelos embaixo de uma moita e saí remando.
Bryan, no fim das contas, estava certo. Não valia a pena. As
ondas eram terríveis. E era de fato absurdamente raso. Porém, a
pior parte eram as correntes. A península de Hihifo tem oito
quilômetros de extensão e eu estava em sua extremidade, sendo
levado em direção ao mar aberto, de lado, como destroços de um
naufrágio. Precisava me esforçar para voltar à lagoa, me
agarrando a cabeças de coral para manter posição, sendo
arrastado e cortado. Embora não tivesse tempo para pensar
nisso, estava com medo. Quando escapei da área em que as
ondas quebravam, sem ter pegado nenhuma, eu tinha zero
chance de chegar à praia em algum ponto minimamente perto de
onde eu havia começado. Havia barreiras perigosas de coral
estendidas diante de grande parte da costa. Já escurecia quando
finalmente cheguei a terra firme em uma pequena e distante
enseada ao leste. Então tive que caminhar descalço pela mata
no escuro, um esforço longo e desconfortável. Bryan estava
histérico, e com razão. Aquele era um ponto de atrito frequente
entre nós. Eu achava que ele se preocupava demais. Ele achava
que eu corria riscos idiotas. Nenhum de nós estava errado.

***

Alguém convencera o rei de Tonga de que ele estava sentado


sobre bilhões em petróleo e gás natural sob o mar. Uma empresa
americana, a Parker Oil and Drilling, concordara generosamente
em ajudá-lo a encontrar essas coisas, e alguns de seus
empregados e dependentes estavam hospedados na mesma
pousada de praia ainda em construção onde estávamos. Ela se
chamava O Bom Samaritano. O proprietário era um francês,
André. Ele tinha meia dúzia de fales para turistas prontas, outras
mais em construção e um pequeno restaurante descolado ao ar
livre com um cardápio pequeno, mas excelente (basicamente,
peixe fresco), do qual André era o chef. As mesas no André’s
eram limitadas. Eu me vi dividindo uma com Teka, do pessoal da
Parker Oil. Ela era uma garota de dezenove anos magra e de
traços fortes nascida no Texas. O pai dela estava fazendo algo
importante para o rei. Teka me contou que tinha acabado de ser
jubilada da Sam Houston State University, em Huntsville, e
estava voltando para Cingapura, onde sua família vivia e ela
trabalhava como modelo.
Teka demonstrou certo interesse antropológico por Bryan e por
mim. Estávamos surfando em Ha’atafu todos os dias, saindo
cedo enquanto os ventos estavam fracos e em geral voltando à
tarde, famintos e queimados de sol, para O Bom Samaritano. As
ondas eram frustrantemente pequenas, mas bem formadas e
perigosas. Minhas mãos e meus pés eram uma salada russa de
cortes de coral, e Bryan tinha uma grande área ralada nas
costas, cujo curativo eu trocava duas vezes ao dia. A água era
tão rasa nas passagens dos recifes onde surfávamos que
consegui até quebrar o bico da minha preciosa prancha no fundo.
Teka me observou remendar cuidadosamente o entalhe em um
suporte improvisado à sombra de uma árvore de fruta-pão.
Ela anunciou que Bryan e eu éramos exatamente como
qualquer outro “rato de praia” da Califórnia, da Flórida e do
Havaí. Não tínhamos objetivos, nenhuma preocupação com o
amanhã. Nosso tipo podia ser encontrado “especialmente em
Waikiki”, disse ela. “Se houvesse um terremoto, vocês não iriam
se preocupar com a casa nem com o carro de vocês. Iriam só
dizer: ‘Uau, uma experiência nova.’ Vocês só se preocupam em
encontrar uma onda perfeita ou algo assim. Quer dizer, o que vão
fazer se encontrarem essa onda? Surfar cinco ou seis vezes... e
depois?”
Era uma boa pergunta. Só podíamos torcer para que em
determinado momento fôssemos forçados a responder a essa
questão. Enquanto isso, sem discordar de que éramos ratos de
praia muito típicos, eu queria saber quem Teka conhecia que
tinha objetivos mais dignos que nós. “Minha mãe”, respondeu. A
mãe dela, Cherie, pretendia “escrever um livro, na verdade, três”
naquele verão. Cherie estava na área. Ela acordava tarde e
estava bêbada ao meio-dia. Suas principais ocupações pareciam
ser tomar sol, se maquiar, fumar maconha com as filhas e trocar
de roupa várias vezes por dia. Mas então, certa noite, ela me
contou: “Botei você no meu livro hoje. Disse ‘Eu amo você.’”
Então havia um livro sendo escrito. Isso era mais do que eu e
Bryan podíamos dizer que estávamos fazendo. Teka tinha outro
exemplo: o namorado, que administrava uma discoteca em
Huntsville, mas que tinha a firme intenção de, um dia, “se tornar o
dono e administrar uma loja de moda masculina”.
Um dos gerentes de campo da Parker Oil era um texano
grande de óculos grossos chamado Gene. Ele tinha um rosto que
parecia uma papada de peru, uma voz assustadora de fumante e
uma namorada local de dezessete anos. Gene estava perto dos
sessenta. Sua namorada era fantástica, mas não era feliz. Eu a
ouvi contar à esposa de um executivo da Parker que ela era uma
órfã meio fijiana e, portanto, uma pária social na homogênea
Tonga. Tinha se voltado para a prostituição. Agora estava
desesperada para se livrar de Gene. “Ajude-me! Ajude-me!”,
implorou ela.
A esposa do executivo pareceu chocada. Não consegui ouvir o
que ela disse à garota, mas eu estava por perto quando ela
abordou Gene. Timidamente tentou começar uma conversa,
mencionando ter ouvido que sua jovem amiga era meio fijiana.
“Não me interessa o que ela disse a você, querida, ela é uma
crioula”, rosnou Gene.
Brad apareceu naquela noite em seu cavalo. Perguntei-lhe se
era possível confiar na polícia para aplicar a lei contra os
funcionários da Parker Oil. Ele me lançou um olhar demorado e
pensativo e em seguida fez que não com a cabeça. “Eles estão
com o rei”, respondeu. Se houvesse acusações, a culpa recairia
sobre a namorada desesperada de Gene.
Perguntei a Brad sobre sua vida em Tonga. Ele me contou que
raramente deixava aquela área. Nuku’alofa, uma cidadezinha
pequena e insípida, começara a parecer mais empolgante. Ele
era o único palagi em sua aldeia, que ficava mais distante da
península e no interior da mata. Seus vizinhos e futuros parentes
se impressionavam com o surfe, explicou ele. “Eles me veem sair
pelo mato com esse barquinho frágil. Então volto horas depois de
mãos vazias. Acham que sou um péssimo pescador e que tudo o
que faço é ficar flutuando.”
Era impressionante pensar que aquele garoto gentil e sem
graça tinha surfado Ha’atafu sozinho, mês após mês. Ele contou
que, em swells de ciclones do Noroeste, havia surfado ondas
com duas vezes sua altura. Era um relato eletrizante. Também
era, no ultrarraso Ha’atafu, uma ideia assustadora. Ele nunca
atingiu o fundo com força? Foi o que perguntei. Ele me lançou
um olhar enviesado que significava: Em toda sessão, cara. Você
já surfou lá! Mas, se ele se machucasse feio, pensei, a distância
entre aquele recife e alguém para socorrê-lo seria enorme. Havia
as ondas, o coral, o mar ruidoso, a lagoa larga, os penhascos,
pelo menos um quilômetro e meio de floresta até a aldeia mais
próxima e pelo menos uma hora, em um ônibus que quase não
passava, até a cidade, onde provavelmente as instalações
médicas eram insuficientes. Não era necessário dizer nada disso.
A imersão de Brad na Tonga rural superava de longe, é claro,
qualquer coisa que eu provavelmente faria no Pacífico Sul, a
menos que me juntasse ao Corpo da Paz ou me casasse com
uma garota local, ou os dois. Tive que rir de mim mesmo. Será
que Brad se sentia menos existencialmente alienado como
resultado de sua experiência? Eu não o conhecia bem o
suficiente para perguntar.
Eu estava curioso em relação ao rei, Tupou IV. Ele era um
monarca absoluto que pesava, dizia-se, quase duzentos quilos.
Mas Brad empalideceu quando perguntei sobre ele. Obviamente
não me conhecia bem o suficiente para se sentir seguro para
falar sobre o rei. Perguntei se era verdade que todos os
morcegos-das-frutas de Tonga eram propriedade oficial do rei e
que apenas ele tinha permissão de caçá-los, razão pela qual as
florestas eram tão cheias de morcegos à noite. Um pescador em
Eua tinha me contado sobre o rei e os morcegos-das-frutas. Brad
se recusou a confirmar ou negar a história. Mencionou que
precisava ir a uma sessão de estudos bíblicos. Então pegou seu
cavalo e foi embora cavalgando pela praia sob o luar.

***

Vi uma pichação em Nuku’alofa: TODO PROGRESSO EXTERNO PRODUZ


CRIMINOSOS. Fui até o correio para enviar um telegrama para meu
pai. Era seu aniversário de cinquenta anos. Mas eu não sabia se
a mensagem havia sido realmente enviada. O cara atrás do
balcão, que parecia o ativista Stokely Carmichael, tinha
pequenos adesivos postais coloridos grudados por todo o rosto.
Ele foi amistoso, mas brincava com a velha máquina de escrever
usando as mãos moles de uma forma que não inspirava
confiança. Eu não tinha notícias da minha família, nem de
ninguém, desde Guam — fazia mais de um mês. Não havia como
eles entrarem em contato conosco. Será que alguém em casa
pelo menos sabia em que país estávamos? Eu escrevia muitas
cartas — para meus pais, para Sharon —, mas levavam
semanas para chegar. Telefonar nunca passou pela minha
cabeça. Entre outros motivos, era muito caro.
Eu seguia por uma estrada com casas semiacabadas de
blocos de concreto — sua construção provavelmente suspensa
até que novas remessas de dinheiro, enviadas por membros das
famílias na Austrália, chegassem. Passei por um cemitério. Havia
garrafas de cerveja finas e marrons — Steinlager, da Nova
Zelândia — enfiadas na areia com o gargalo para baixo em torno
de alguns túmulos. Havia garrafas de Steinlager por toda parte
em Samoa e Tonga. Bebidas de frutas locais vinham nelas, com
novos rótulos. Eram usadas como limites de jardins e pátios
escolares. Nos cemitérios de Tonga, no fim do dia, sempre
parecia haver idosas cuidando dos túmulos dos pais — arando
os montes de areia de coral para deixá-los com formato de
caixão, retirando folhas, lavando à mão coroas desbotadas de
flores de plástico, rearrumando os padrões assombrosos
alaranjados e verdes de grãos de pimenta, sobre a areia branca
calcinada.
Senti um tremor de pesar. E uma dor por alguma outra coisa.
Não era exatamente saudade de casa. Parecia que eu tinha
navegado além da borda do mundo conhecido. Isso, na verdade,
não era problema para mim. O mundo era mapeado de muitos
jeitos diferentes. Para americanos cosmopolitas, todo o globo era
coberto por sucursais dos melhores jornais — The New York
Times, The Washington Post, The Wall Street Journal — e, na
época, das grandes revistas semanais. Todo lugar na Terra era
parte da jurisdição de alguém. Bryan entendeu esse mapa antes
de mim, tendo estudado em Yale. Mas, quando encontrei um
exemplar velho da Newsweek na ponte de comando do capitão
Brett Hilder e tentei ler uma coluna de George Will, morri de rir.
Seus ares governistas e provincianos eram impenetráveis. A
verdade era que agora estávamos andando sem rumo por um
mundo que jamais faria parte do escopo de nenhum
correspondente (muito menos do alcance de George Will). O
lugar era cheio de notícias, mas tudo era indireto, misterioso, só
era importante se você escutasse, ouvisse e sentisse seu peso.
Na barca, voltando de Eua, eu viajara no teto com três garotos
que disseram ter planos de assistir a todos os filmes de kung fu,
de caubóis e policiais passando nos três cinemas em Nuku’alofa
que pudessem até que o dinheiro acabar. Um garoto, magro,
risonho e de quatorze anos, contou-me que havia abandonado a
escola porque era “preguiçoso”. Ele tinha uma revista em
quadrinhos japonesa que era passada de mão em mão no teto
da barca. A revista era uma mistura bizarra: desenhos fofos
infantis, histórias de guerra violentas, novelas com enfermeiras e
médicos, pornografia explícita. Um tripulante franziu a testa
quando chegou à parte pornográfica, rasgou as páginas e as
jogou, amassadas, no mar. Os garotos riram. Por fim, com uma
grande exclamação de desgosto, o tripulante jogou a revista
inteira na água, e os garotos riram ainda mais. Observei as
páginas rasgadas flutuando em uma lagoa vítrea. Fechei os
olhos. Senti o peso de mundos não mapeados, línguas não
nascidas. Era isto que eu estava buscando: não o exótico, mas
uma compreensão ampla das coisas.
A tristeza do cemitério obscuro, de anciãos não esquecidos
enterrados embaixo da areia, me deu um aperto no peito que
parecia zombar de todo aquele empreendimento vago. Ainda
assim, havia algo me chamando. Talvez fosse Fiji.

***

Nossa primeira expedição em Fiji foi um fracasso em várias


frentes. Primeiro, partimos em direção ao leste da capital Suva,
que fica do lado chuvoso da ilha principal, Viti Levu, o que
significou que apenas afundamos mais na lama. Nossos mapas
mostravam uma grande boca de rio com uma baía belamente
curvada e uma abertura com bom ângulo na barreira de recifes,
que, se não fosse por isso, deteria a maioria dos swells que
chegassem ao sudeste de Viti Levu. A baía realmente estava lá,
e o swell conseguia passar, mas a onda, apesar de grande, se
fechava, lamacenta. Porém, levamos alguns dias para descobrir
isso, em parte porque tínhamos tomado todas.
Bryan e eu havíamos aprendido a não aparecer de mãos
vazias em aldeias remotas. Canetas esferográficas e balões para
as crianças eram opcionais, mas alguma coisa para o chefe ou
os proprietários de terras na costa não era. O melhor presente, a
oferenda tradicional, era uma braçada da raiz usada para fazer
kava. Em Fiji, ela se chama waka. Tínhamos planejado, ao deixar
Suva, comprar um carregamento no mercado dos produtores
perto da estação rodoviária, mas, de repente, nosso ônibus
matinal estava de partida e, na pressa, entramos em uma loja e
compramos uma garrafa de Frigate Rum Overproof.
Imaginávamos que o rum seria bem recebido, e estávamos
certos. O problema foi que, quando chegamos a Nukui, uma
aldeia perto da baía que queríamos verificar — depois de uma
longa viagem em uma canoa com motor de popa através de um
labirinto de manguezal pantanoso e absurdamente denso —, o
chefe, Tomici, que nos recebeu calorosamente, insistiu para que
abríssemos o rum e passássemos a garrafa em torno do
pequeno círculo de homens que por acaso estava ali.
Esvaziamos a garrafa em quinze minutos. Ainda era início da
tarde. Estávamos trôpegos. Nunca conseguimos chegar à praia
naquele dia.
A kava é uma bebida muito mais civilizada. Precisa ser batida
e preparada e costuma ser consumida apenas depois do
anoitecer. Um grupo, normalmente só de homens, se senta de
pernas cruzadas em tapetes ao redor de uma grande tigela de
madeira, conhecida em Fiji como tanoa. Um copo de coco é
passado de mão em mão. O grupo bate três palmas, que ecoam
no vazio, e o bebedor bate uma vez e diz Bula (“olá” ou “vida”)
antes de pegar o copo, chamado de bilo. Após esvaziá-lo, o
bebedor bate palma uma vez, diz Maca (que significa “seco” ou
“vazio”) e todos batem palma três vezes juntos. A cerimônia pode
durar seis ou sete horas e incontáveis bilos. As pessoas tocam
violão, contam histórias, cantam hinos, frequentemente com uma
parte harmônica de soprano impressionante.
As ondas fechadas de Nukui pelo menos eram boas para
empurrar crianças na espuma com nossas pranchas. Algumas
aprendiam muito rápido. Um grupo de garotos, que ficou sem
paciência, arrastou dois troncos de coqueiro para a água e pegou
ondas com eles. Crianças menores corriam de um lado para
outro na areia com cascas de coco presas aos pés com
barbantes, fazendo um som igual ao galope de cavalos. As
crianças em Nukui tinham muitos brinquedos artesanais: nozes
redondas parecidas com bolinhas de gude que usavam em um
jogo sem fim; tampinhas de latas em um fio que de algum modo
giravam e assobiavam; uma folha de coqueiro retorcida em um
bastão como um cata-vento elegante. Em meio a toda essa
engenhosidade infantil, eu me vi, certa noite, após uma boa
quantidade de kava, olhando fixamente para o teto de uma
cabana e, de repente, percebi em uma viga um par de galochas
infantis. Os calçados estavam empoeirados e lembravam
vagamente um estilo caubói; vê-los me emocionou de um modo
inesperado. Eram um talismã tanto do mundo manufaturado
quanto de minha própria infância com o Lone Ranger.
Na canoa que voltava em um caminho sinuoso pelo
manguezal até a plataforma onde o ônibus parava, me sentei
diante de uma adolescente gorducha. A camiseta dela tinha o
desenho de um gato bêbado esparramado diante de uma
televisão, com a legenda HAPPINESS IS A TIGHT PUSSY (que tem dois
significados: “Felicidade é um gato bêbado” ou “Felicidade é uma
vagina apertada”). Precisei presumir que ninguém, começando
pela mãe dela, havia entendido a piada. O céu cinzento e baixo
do delta do rio — não tínhamos visto o sol nenhuma vez em
Nukui — despencou e nos encharcou com uma chuva fria.
Cobrimos as mochilas com ponchos. Estávamos, sem dúvida, na
parte errada de Fiji. O lugar tinha trezentas ilhas.

***
Suva é uma cidade tropical verde e agitada, a maior do Pacífico
Sul. Está situada em uma península montanhosa acima de uma
ampla baía azul. Ficamos em um local suspeito — meio bordel,
meio pensão — chamado Harbourview. Os proprietários eram
uma família indiana. Metade da população de Fiji (e a maior parte
da classe empresarial) é etnicamente indiana. Marinheiros de
todas as nacionalidades circulavam pelo bar do Harbourview à
noite, se envolviam em brigas à moda antiga e levavam as
garotas do bar para o andar de cima. Nós dormíamos e
guardávamos nossas coisas em um quarto abafado com vários
beliches por alguns dólares por noite. O centro da cidade de
Suva era cheio de turistas, expatriados e passageiros de
cruzeiros. Bryan e eu tiramos a sorte grande e tivemos breves
casos com garotas australianas de passagem.
Nosso plano era seguir para oeste, e talvez de volta ao sul
para algumas ilhas de aspecto promissor na janela do swell.
Suva é uma parada popular para iates de cruzeiro, por isso
examinamos o quadro de avisos no Royal Suva Yacht Club em
busca de veleiros à procura de tripulação. Enquanto
esperávamos que alguma coisa aparecesse, comecei a passar
meus dias na Biblioteca Municipal de Suva. Ficava em um prédio
colonial belo e arejado construído em frente ao mar. Em uma de
suas largas mesas de leitura feitas de mogno, recomecei à mão
meu romance sobre a estrada de ferro, com novos personagens
principais.
Havia alguns barcos de surfistas ancorados em Suva. Um
deles pertencia a um americano com uma namorada taitiana. Ele
se dirigia a oeste, mas seu barco, o Capella, era pequeno. O
outro era um ketch australiano de uns quinze metros chamado
Alias. Tinha um casco com marcas de ferrugem e uma aparência
gasta, como se tivesse sido exposto a muitas intempéries, com
equipamentos antiquados, bicicletas e pranchas de surfe presas
à amurada da proa. Achei que o barco devia ter uns oitenta anos.
Na verdade, tinha dois. Uma comunidade de surfistas o
construíra do zero perto de Perth, na Austrália Ocidental, usando
madeira roubada e peças e ferramentas que arranjavam. As
mulheres do grupo tiveram que trabalhar como garçonete para
manter os trabalhadores alimentados durante o processo. O
casco era de ferro e cimento. Um cara alto, queimado de sol e
com cabelo cacheado chamado Mike nos contou a história do
barco. Disse que o Alias quase não sobreviveu à sua viagem
inaugural depois que os marinheiros novatos, ansiosos por
ventos, os levaram mais para o sul, para os Roaring Forties, e
foram atingidos por uma tempestade. “O mar chegava à altura do
mastro”, disse Mick. “Fomos derrubados uma vez. Estávamos
todos lá embaixo, rezando. Achamos que íamos morrer.” Quando
eles chegaram capengando à Austrália do Sul, metade do grupo
desembarcou, jurando nunca mais navegar. Quatro pessoas —
dois casais — tinham ficado. A namorada de Mick, Jane, estava
com gravidez bem adiantada, por isso o Alias não iria a lugar
nenhum até que ela desse à luz.
Certa manhã, quando eu por acaso estava fazendo uma visita,
o rádio do Alias crepitou com o fragmento de uma notícia
animadora. Eu perdi, mas Mick não. Ele berrava como se tivesse
levado um tiro. “Graham!” Graham era o outro surfista a bordo.
Ele apareceu na escada da escotilha, os olhos brilhantes e
estreitos cercados por uma juba loura de leão. Mick prosseguiu:
“Uma esquerda perfeita de trezentos metros. Foi o que acabei de
ouvir. Acho que era Gary, chamando seu parceiro aqui.” O que
ele queria dizer, e foi o que me explicou mais tarde, era que um
terceiro barco de surfistas, comandado por um americano
chamado Gary, estava em Fiji. Gary viajava com o Capella, mas
tinha ido sozinho na frente algumas semanas antes. A chamada
pelo rádio era claramente sobre uma descoberta em algum lugar
a oeste. Mick foi fazer perguntas ao cara que recebera a
chamada. Ele era um homem rechonchudo e desconfiado
chamado Jim, e não ficou muito satisfeito ao ser interrogado por
um australiano alto e determinado. No fim, admitiu que Gary
estava viajando no Grupo Yasawa, no noroeste de Fiji, e pelo
visto tinha encontrado ondas por lá. Isso não fazia sentido. As
Yasawas estavam bloqueadas de receber swells de sul por um
arquipélago chamado Mamanucas e por uma área muito grande
a oeste de Viti Levu e cercada por recifes conhecida como as
Nadi Waters.

***

Uma notícia surgiu: um barco em busca de tripulação. Enquanto


eu anotava os detalhes, um jovem inglês também verificando o
quadro de avisos me disse que tinha acabado de deixar o barco
em questão. “Não faça isso, parceiro”, recomendou ele. Disse
que o capitão era um maníaco. Um americano. Toda a tripulação
havia desertado ali em Suva após uma travessia curta, e a
mesma coisa acontecera com o comandante várias vezes antes.
“Quando você está na água, ele começa a gritar e a insultar sem
parar”, disse o inglês, dando de ombros de forma leve mas
persuasiva. “Só mais um nova-iorquino abrindo caminho à força
pelo paraíso.”
Acabamos deixando Suva em um ônibus rumo ao oeste. A
costa sul de Viti Levu era densa com cidadezinhas e aldeias de
pescadores. Ao sairmos da zona chuvosa, a floresta tropical deu
lugar a pequenas fazendas de cana-de-açúcar. Havia placas de
resorts turísticos escondidos em baías ensolaradas. Esticando o
pescoço para captar vislumbres das ondas, não vimos nada
muito empolgante. Havia swell, mas o recife era, na maior parte,
distante demais, e os alísios sopravam maral.
O lugar óbvio para começar a procurar ondas era o canto
sudoeste de Viti Levu. Infelizmente a região estava em uma
lacuna em nossa coleção de mapas. Na loja onde os comprei, na
Califórnia, a balconista dissera que aquela carta náutica em
específico tinha permanecido confidencial desde a Segunda
Guerra Mundial, quando os Aliados, preocupados com um ataque
japonês — Fiji teria dado uma boa base de operações para
ataques à Nova Zelândia e à Austrália —, não queriam mapas
que mostrassem a entrada de navios em Nadi Waters em livre
circulação. Então estávamos fazendo mais suposições do que o
normal. Mesmo assim, ficava claro a partir de qualquer mapa
terrestre que deveríamos conferir a boca do rio Sigatoka, que
escoava a maior parte do oeste de Viti Levu, e depois seguir para
oeste a partir de lá.
A boca do rio Sigatoka revelou-se uma faixa assustadora de
costa. Para começar, havia grandes dunas de areia. Eu nunca
tinha visto nada como elas nos trópicos, e os moradores de
aldeias que conhecemos nas vizinhanças eram unânimes: as
dunas eram anormais. Na verdade, deviam ser assombradas. A
onda que quebrava depois delas também foi, em minha
experiência, algo sem comparação nos trópicos. Era uma onda
de fundo de areia grande, fria e enevoada. Pertencia ao Oregon
ou ao norte da Califórnia, não a Fiji. A água era fria porque o
poderoso Sigatoka desembocava na extremidade leste da praia.
E o grande rio não trazia apenas água barrenta, fria e salobra
das montanhas, mas um suprimento constante de animais
mortos, tapetes de junco enlameados, sacos plásticos e outros
lixos. Todas essas coisas vinham rodopiando e boiando pelo line-
up. As ondas, entretanto, eram boas, especialmente de manhã.
Tinham forma de pico e eram ardilosas e poderosas. Tirando os
cadáveres de porcos, aquelas foram as melhores ondas que
surfamos no Pacífico Sul. Não havia aldeia por perto — vide as
dunas assombradas na foto —, por isso caminhamos na direção
oeste até encontrarmos um pequeno bosque de árvores em uma
vala por trás de uma duna alta. Era um local protegido, tanto dos
ventos alísios quanto de intrusos, que só podiam se aproximar
por uma direção. Acampamos ali.
A bordo do Alias, Fiji, 1978

A barraca que levamos era muito pequena para os dois


dormirem com conforto. Por isso, eu preferia dormir ao ar livre.
Mas a vala onde acampamos tinha uma quantidade além do
normal de vida noturna no chão — ratos, caranguejos, cobras,
centopeias, e eu não queria saber o que mais. Armei uma rede e
dormi melhor ali. Para conseguir suprimentos, caminhávamos em
direção ao interior até um vilarejo chamado Yadua. Fazíamos chá
em um pequeno fogareiro aceso por um botijão de gás azul. Para
produções maiores, como aveia ou carne enlatada, montávamos
uma fogueira. Certa noite, uma chuva pesada me mandou para
dentro da barraca. Eu não gostava de ficar apertado na barraca
com Bryan, e imaginei que ele também não curtisse. Rastejei
para fora com as primeiras luzes do dia. Havia mais lixo nas
ondas do que nunca, devido ao escoamento da chuva, mas o
swell estava limpo e tinha subido durante a noite.
Na direção da boca do rio havia um canal confiável que corria
para o mar. Nós o usávamos para passar remando. Mas, quando
as ondas ficavam grandes — acima de um metro e oitenta —,
havia bancos de areia mais distantes que começavam a quebrar.
E os fiapos de névoa que vinham flutuando das dunas acima da
água de cor parda — elementos frios e úmidos do estranho
microclima do Sigatoka — davam a sensação de que podia haver
algo muito maior à espreita lá fora, uma série enorme pronta para
nos despedaçar. Naquelas circunstâncias, levei algumas vacas
depois de ir para a esquerda, surfando na direção oposta ao
canal. Não parava de dizer a mim mesmo para pegar apenas
direitas, mas então uma bela parede esquerda surgia, e eu
percebia que me faltava força de vontade para dizer não.
Mencionei que o lugar dava a impressão de ter tubarões?
Quando souberam que íamos entrar no mar ali, pescadores em
Yadua nos disseram, com um misto de nojo e alarme, que
éramos loucos. Aquela praia era um poço de tubarões. Com
todos os restos de animais na água, já tínhamos imaginado isso.
Mas ataques de tubarões ocupavam um distante terceiro lugar
em minha lista de preocupações com Sigatoka, depois de: um,
me afogar em uma série sinistra; dois, contrair alguma doença
terrível com a imundície na água.
Bryan fez trinta anos enquanto acampávamos. Só me contou
isso depois. Fiquei um pouco surpreso. Parecia um segredo
estranho de se guardar. Ou talvez “segredo” fosse a palavra
errada. Era apenas silêncio, na verdade, uma forma de
privacidade, uma rejeição a algum sentimento óbvio e
convencional e, portanto, bem típico de Bryan. Com toda a
intensidade de nossa amizade, e apesar da companhia agora
constante, sempre me senti, de algum modo, excluído. Era contra
mim ou contra o mundo em geral que ele parecia sempre manter
a guarda alta? A velha masculinidade antiquada que muitas
pessoas, inclusive eu, achavam atraente trazia consigo uma
grande solidão. Então Bryan me surpreendeu ao dizer que não
conseguia pensar em uma forma melhor de comemorar o
aniversário de trinta anos: surfando boas ondas em um pico não
mapeado nos Mares do Sul, longe do mundo conhecido.
Será que ele estava mesmo feliz? Eu não estava, na verdade.
Vinha me dedicando à nossa busca, determinado a seguir em
frente, e podia me sentir profundamente satisfeito com uma boa
sessão de surfe. Também estava interessado em Fiji, que
apresentava não só uma abundância de vida pré-industrial que
eu queria aproveitar, mas também maior complexidade social,
uma política mais viva e muito mais mulheres interessantes do
que em Tonga ou na Samoa Ocidental (contando as
australianas). Ainda assim, eu ficava ansioso com frequência e
tendia a uma insegurança dilacerante. E obviamente não via
Bryan da mesma forma que ele se via, o que me desorientava.
Para mim, ele parecia estar ficando meio maluco. Falava que
se sentia feliz por estar ali, mas não era o que aparentava.
Pequenas dificuldades e todos os tipos de pessoas inócuas que
conhecemos o irritavam. Eu achava aquilo desnecessário. Bryan
começou a caminhar com os ombros curvados, sobrancelhas
franzidas, mãos às costas, e a suspirar e proferir, com precisão
exagerada, sobre a idiotice de várias pessoas e várias coisas.
Sabe aquele motorista de ônibus que nos falou que podíamos ir
andando de Sigatoka até a costa? Não sabia onde era o mar e
muito menos de qual lado da estrada ficava. Aquela senhora
estrábica que administrava o Harbourview? Era pilantra e
ameaçadora. Realmente achei que Bryan estava ficando
assustador. Ele com certeza me deixava nervoso.
Começamos a beber kava com alguns caras em Yadua. Eles
tinham uma cabana na beira do assentamento, perto de uma via
principal pavimentada chamada Queens Road, fazendo-a
parecer mais uma cidadezinha de estrada que uma vila
tradicional de subsistência. E mesmo assim a cerimônia de kava
se deu basicamente como em qualquer outro lugar. Começava à
noite. Íamos até lá depois das nossas sessões de surfe. Às
vezes, voltávamos trôpegos para o acampamento à meia-noite.
Os frequentadores na cabana de kava eram pescadores que
deixavam o barco em uma enseada a oeste das dunas, mas
outros homens de Yadua também apareceram. A única mulher
por perto era a esposa de um cara chamado Waqa. Ela ajudava
a preparar e a servir o grogue. As pessoas estavam curiosas, é
claro, em relação aos campistas palagis — em Fiji se dizia
kaivalagis —, mas também foram muito legais com a gente,
pensei, permitindo que falássemos no nosso próprio ritmo, ou
não.
Eu amava ver as pessoas conversarem, mesmo quando não
entendia nada, o que acontecia na maioria das vezes, já que em
geral elas falavam fijiano. Pareciam ter um enorme repertório de
expressões sociais intricadas e gentis. Usavam a boca, as mãos,
os olhos — todo o aparato da comunicação habitual —, mas
também o queixo, a sobrancelha, o ombro, tudo. Ver as pessoas
ouvindo era melhor ainda. Havia um trejeito gracioso e bastante
usado entre eles que eu não conseguia me lembrar de já ter
visto: um ligeiro menear da cabeça; uma constante e lenta
esticada de pescoço, como faz uma ave. Eu interpretava isso
como um gesto de extrema tolerância. O ouvinte estava o tempo
todo reposicionando a mente em outros ângulos para
compreender pessoas diferentes falando, impressões distintas,
com o máximo de tranquilidade. Pensei que nós, kaivalagis,
provocávamos uma aceleração visível desse reposicionamento
mental-espinhal, mas podia ser só paranoia minha.
Enquanto isso, Bryan atacava minha tranquilidade com seu
mau humor a um nível que nem a menor parcela de
concordância permitia que eu tolerasse. Certa noite, encorajado
pela kava, anunciei que estava cansado de pisar em ovos perto
dele. Bryan anunciou, surpreso, que ele sentia o mesmo em
relação a mim. Caminhamos de volta para o acampamento sob o
luar em um estado de ânimo alegre. Eu disse que estava
torcendo para que a barraca dele estivesse cheia de escorpiões.
Ele respondeu que torcia para que eu caísse da rede. A
expressão, enfim, talvez não fosse pisar em ovos.

***
Quanto mais olhávamos para as Yasawas no mapa — essas
eram as ilhas onde os americanos no veleiro supostamente
haviam encontrado ondas —, mais estúpida a ideia parecia. Elas
estavam bloqueadas dos swells de sul e ponto final. Mesmo
assim, fomos até Lautoka, um porto no noroeste de Viti Levu. De
lá saíam barcos para as Yasawas. Hesitamos no cais, checando
o preço de barcas, fazendo perguntas. Nada que ouvimos nos
fez mudar de ideia. Ir até lá com nossas pranchas era besteira.
Desistimos de seguir para o oeste de Fiji, derrotados, e
reservamos um ônibus de manhã cedo para Suva. Mas só
chegamos até a rodoviária. Bryan estava com uma dor de barriga
que piorava cada vez mais. Uma viagem de ônibus de dia inteiro
não seria possível. Voltamos para o hotel. Bryan retornou para a
cama e eu saí para caminhar por Lautoka.
Naquela tarde, vi uma coisa estranha na rua: cabelo louro.
Ainda por cima, em uma mulher jovem e branca. Eu a segui até
um café e me apresentei. Ela era da Nova Zelândia, chamava-se
Lynn e gostava de conversar. Durante o café, me contou que
estava em um barco com alguns americanos, entre eles seu
namorado e uma mulher taitiana.
Perguntei por onde eles tinham navegado.
Haviam ficado ancorados ao largo de uma ilha desabitada por
semanas. “Para que os rapazes pudessem surfar”, explicou ela.
Ah.
Ela sabia que estava contando um segredo, mas pareceu se
divertir com a travessura. Seu namorado era professor na Samoa
Americana, disse ela. John Ritter.
Falei para ela que eu o conhecia. Na verdade, outro surfista
professor em Guam nos dissera para procurar por Ritter em Pago
Pago, mas nunca chegamos até lá. Falei para Lynn que aquilo
era fantástico e pedi que me levasse até ele.
Ela fez isso.
Ritter ficou surpreso quando apareci com Lynn e visivelmente
alarmado quando comecei a recitar o nome de surfistas que ele
conhecia em Guam e quando insisti para que ele fosse até o
nosso hotel conhecer Bryan. Ritter tinha menos de trinta anos,
fala mansa e um jeito reservado. Exibia uma cabeleira vasta
embranquecida pelo sol e óculos de vovó remendados com fita
adesiva. Não tentou esconder a irritação com Lynn, mas depois
pareceu decidir que a batalha estava perdida e concordou em ir
tomar uma cerveja.
Ritter nos contou que a onda não ficava nas Yasawas. Isso era
um ardil. Ela ficava nas Mamanucas, o que fazia muito mais
sentido. Na verdade, ficava na barreira de recifes Malolo, que
protegia as Mamanucas, na extremidade sul de Nadi Waters. A
ilha se chamava Tavarua. Ficava cerca de oito quilômetros a
oeste de Viti Levu. A onda acompanhava todo o lado oeste da
ilha e quebrava nos alísios. Ritter rascunhou um mapa em um
guardanapo. Explicou que podia ser inconstante. Era preciso o
swell certo. Ele dava a impressão de não querer dizer mais nada.
No dia seguinte, enquanto nos preparávamos para investigar,
encontrei a carta náutica que faltava. Bizarramente, estava em
um mostruário de brochuras turísticas. O mapa proibido tinha
sido usado como imagem de fundo para um anúncio do tamanho
de um jogo americano para um “cruzeiro mágico de três dias
pelas lagoas” em um veleiro que saía de um resort mais abaixo
na costa. O anúncio fora feito em papel pardo pesado com
bordas irregulares, como de pergaminho, desenhado para
parecer o mapa de tesouro de um pirata. A carta náutica,
evidentemente tirada da biblioteca pré-guerra de alguém,
entretanto, era a peça que faltava em nossa coleção. Tavarua
estava ali, assim como a longa barreira de recifes, que corria da
ilha para noroeste com as expressões “Ondas oceânicas fortes”,
“Arrebentação forte” e “Recifes sob a superfície” escritas em suas
ondulações. A aldeia mais próxima de Tavarua em Viti Levu se
chamava Nabila.
Pegamos um ônibus até lá. A aldeia ficava a vários
quilômetros de uma estrada pavimentada. Havia uma ferrovia em
miniatura para transportar cana-de-açúcar que corria sob colinas
marrons queimadas. Mangues cresciam em uma profusão
maçante ao longo de uma costa sem ondas. O ônibus parou sob
uma árvore de fruta-pão. “Nabila”, anunciou o motorista.
A aldeia era quente, silenciosa e sonolenta. Dava a impressão
de não haver ninguém por lá. Escalamos uma grande colina que
se erguia atrás da aldeia, subindo sinuosamente e passando por
cabanas de paredes de barro e telhados de palha nas quais as
crianças, que pareciam surpresas, entravam correndo. Elas não
viam muitos turistas por ali. A trilha era poeirenta e muito quente.
A uns cem metros de altura chegamos a um bom ponto de
observação. Nós nos viramos e apontamos nossos binóculos
para as ilhotas do outro lado do canal. Estávamos olhando direto
para a onda. Ela vinha do noroeste, depois de virar quase cento
e oitenta graus. Era uma esquerda longa e estreita — uma
esquerda muito longa, muito estreita. As paredes eram de um
cinza-escuro, em contraste com o mar cinza-claro. Era aquilo. O
alinhamento tinha uma simetria extraordinária. As ondas
quebravam com tamanha regularidade que pareciam fotografias.
Parecia não haver sessões intermediárias. Era aquilo. Olhando
fixamente pelos binóculos, eu me esqueci de respirar por toda a
série de seis ondas. Era, confesso, o que estávamos procurando.

***

Os pescadores que nos levaram de Nabila até lá nunca tinham


visto uma prancha de surfe. Nem uma foto ou desenho de uma.
Eles se recusaram a acreditar que pegávamos ondas com aquilo.
Achavam que nossas pranchas eram pequenas asas de avião.
Nós as usávamos para pescar? Quando chegamos a Tavarua e
margeamos a costa com o motor de popa erguido através de um
canal cheio de corais na costa nordeste, vimos que o swell tinha
diminuído muito desde o dia anterior. Na verdade, parecia
pequeno demais para surfar. Mas confirmaríamos as dúvidas de
nossos companheiros se eles não nos vissem surfar um pouco,
por isso saí remando depressa. A água acima do recife era
absurdamente rasa, menos de trinta centímetros de
profundidade, e as ondas estavam na altura do joelho, fracas e
realmente muito rápidas para surfar. Mas consegui pegar uma, e,
quando fiquei de pé, deu para ouvir os gritos e assobios vindos
da praia. Surfei por alguns metros, então deitei de barriga na
prancha e segui na espuma para sair do mar. O swell que
tínhamos visto da encosta estava morto.

Ilha de Tavarua, Fiji, 1978

Por terem ficado para aquela pequena demonstração, nossos


amigos acabaram presos pela maré vazante. Eles amarraram o
barco a uma árvore, que logo assentou na areia. Havia quatro
pessoas, todas de etnia indiana. Bob era o líder. Forte, falante,
de meia-idade, gostava de gritar ordens para o sobrinho, que
tinha vinte e nove anos. E havia também um menino de oito,
Atiljan, e um velho magro e calado de bigode branco. Bob e Peter
tinham muitas instruções para nós. Primeiro, as cobras.
Centenas de serpentes marinhas listradas muito venenosas
vinham à terra todas as noites em busca de água doce. “Brinque
com a cobra e você vai se dar mal”, alertou Peter. Ele desceu até
a praia, logo encontrou uma delas, segurou-a por trás da cabeça
e a ergueu. Tinha cerca de um metro e vinte, listras pretas e
brancas, além de uma cauda que parecia um remo. Peter a
devolveu à água com delicadeza. Tínhamos ouvido falar que
aquela cobra (Laticauda colubrina), cujo nome em fijiano é
dadakulachi e o apelido é “serpente dos três passos”, pois era o
máximo que você conseguiria andar se uma o mordesse. Era
considerada a sexta cobra mais venenosa do mundo, disparando
um coquetel fatal de neurotoxinas e miotoxinas por suas presas.
A boa notícia era que sua boca era muito pequena. Peter nos
ensinou a fechar o punho ao lidar com uma, ou ao passar
remando por uma delas, para que a serpente não pudesse
morder entre os dedos das mãos.
E os dedos dos pés?
Peter deu de ombros. Elas normalmente não eram agressivas.
Bob nos mostrou três grandes pilhas de madeira seca à
margem da floresta na costa leste. Ele nos explicou que aquilo
era para fogueiras de sinalização. Pescadores as usavam para
se comunicar com a família em Viti Levu. Uma fogueira
significava que você estava bem — só passaria a noite ali para
evitar as águas agitadas. Duas fogueiras significavam que você
não estava bem e precisaria de ajuda. “Talvez um motor
quebrado”, exemplificou. Três fogueiras significavam uma
emergência. Se um de nós se machucasse feio, deveríamos
acender três fogueiras ao anoitecer. Um barco iria até lá, “mesmo
com tempo ruim”.
Eles nos mostraram onde cresciam mamoeiros silvestres, não
muito embrenhado na mata, e onde bons peixes comestíveis
costumavam passar ao longo da margem na maré alta. A maré
estava enchendo agora, e pensei que logo estaria cheia o
suficiente para permitir que eles atravessassem o recife, mas
Bob disse que o vento estava forte demais. Eles iriam passar a
noite. Ele iria acender uma fogueira de sinalização mais tarde
para informar às famílias em Nabila que estavam ali. Peter levou
uma linha de pesca até o ponto de pescaria e rapidamente pegou
uma dúzia de tainhas. Nós as grelhamos em varas, comemos
com os dedos e acompanhamos a refeição com leite de coco
verde. Bob examinou nossos suprimentos. Não se impressionou
com nosso equipamento de pesca sem uso. Mandou que Peter
nos deixasse linhas mais fortes e anzóis melhores. Muito acima
de nós, o vento soprava forte nos coqueiros. O sol se punha no
oeste das Mamanucas.
Nosso acampamento, que ficava na margem da floresta, de
frente para a onda, estava bem protegido dos alísios e incluía o
que os homens de Nabila disseram ser a única estrutura feita
pelo homem em Tavarua: um suporte para secagem de peixe. O
equipamento, que consistia em seis estacas curtas de madeira
enfiadas na terra e uma cobertura de palha, ficava a cerca de
sessenta centímetros do chão. Tinha o tamanho e a forma de
uma cama de solteiro. Testei a força de sua cobertura. Parecia
robusta. Bob balançou a cabeça em aprovação. Disse que
aquele era um bom lugar para dormir. As cobras, que eram
rápidas na água mas ineptas em terra, não conseguiriam subir as
estacas. Bryan planejava dormir na barraca. Ele a vedara e
fechara bem o zíper e me informou, com linguagem de sinais,
que, se alguma vez encontrasse a tenda aberta, eu podia esperar
ser torturado com estacas afiadas, o facão de Bob e nosso
abridor de latas. Um garfo de cérebros — um popular suvenir
turístico de Fiji, supostamente usado nos tempos de canibalismo
— também poderia ser utilizado.
A lua se ergueu no céu. Peter, olhando fixamente para o fogo,
nos contou que seu cabelo estava curto e com um corte estranho
porque ele recentemente perdera o pai. Peter tinha atitudes
alegres, de uma confiança inocente. Era alto, com dentes
grandes e barba por fazer. Sua vida pessoal parecia complicada.
Ele falou sobre uma namorada com quem suas intenções
estavam incertas. “Se eu a deixar, ela vai ter que se casar”,
explicou ele. “Ela não pode ficar em casa. Você conhece as
pessoas, elas não conseguem ficar sem sexo.” Bob ordenou que
ele fosse verificar o barco, que agora precisava da âncora. Peter
deu um pulo e tirou a roupa. Bob disse: “Anda com isso, seu
maldito filho da mãe, ele não quer olhar para o seu pau sujo!”
Peter saiu apressado rumo à escuridão.
Bob se enrolou na bolsa da minha prancha. Peter usou a de
Bryan como saco de dormir, cobrindo a cabeça com ela como se
fosse um capuz. O velho mantinha o fogo aceso. Toda vez que
ele jogava uma folha de palmeira seca, Peter acordava, pegava
um livro, um romance policial em híndi, com uma capa chamativa
surrada, e lia algumas linhas à luz do fogo. O pequeno Atiljan
dormiu em um ninho de folhas verdes que tinha feito. O velho
não dormiu. Ele rezava e cantava baixo, e suas canções e
orações se entremearam com os meus sonhos. Tinha um rosto
muito magro e maçãs do rosto altas e proeminentes. Sempre que
o fogo aumentava, eu notava que ele olhava para o leste, através
da noite, na direção de Nabila, do outro lado do canal.

***

No quinto dia, ou talvez fosse o sexto, nós surfamos. A onda


ainda estava muito pequena, na verdade, mas nos sentíamos tão
famintos por surfe a essa altura que caímos na água com os
primeiros indícios de um swell. Ondas curtas quebravam sobre o
recife, a maioria delas rápida demais para pegar. As poucas que
conseguimos, porém, foram incríveis. Pareciam uma catapulta.
Se você conseguisse entrar nelas, com uma virada forte, atingir
velocidade suficiente para que não fechassem em cima de você
e depois estabelecesse a trajetória certa, as ondas pareciam
erguer a rabeta da prancha e a arremessar para a frente na
onda, sem parar, com a crista continuamente quebrando às suas
costas — um momento crucial que costumava não ser mais que
um instante, mas que parecia durar meio minuto ou mais. A água
foi ficando cada vez mais rasa, e até as melhores ondas não
acabavam bem. Mas a velocidade era um sonho. Eu nunca tinha
visto uma onda quebrar tão mecanicamente.
Quando a maré atingiu seu maior nível, algo muito estranho
aconteceu. O vento parou, e a lagoa, já extremamente clara,
ficou ainda mais. Era meio-dia, e o sol, bem acima da nossa
cabeça, tornava a água invisível. Era como se estivéssemos
suspensos acima do recife, flutuando em um vazio, incapazes até
mesmo de calcular a profundidade, a menos que por acaso
chutássemos uma cabeça de coral. As ondas que se
aproximavam pareciam ilusões de ótica. Era possível olhar
através delas para o céu, o mar e o fundo do mar. Quando
peguei uma e fiquei de pé, ela desapareceu. Eu estava voando
onda abaixo, mas tudo o que podia ver era o recife brilhante
passando por baixo dos meus pés. Era como surfar no ar. A onda
era tão pequena e transparente que eu não conseguia fazer
distinções entre a parede inclinada da onda e a superfície
horizontal, à frente e atrás dela. Tudo era apenas água
transparente. Eu tinha que surfar por instinto. Aquilo parecia
mesmo um sonho. Quando sentia a onda acelerar, eu me
agachava para ganhar velocidade e, de repente, conseguia vê-la
outra vez — porque o lip à altura da cintura, visto dali de baixo,
era mais alto que o horizonte.
Os alísios sopraram, a superfície se agitou e a hiperclaridade
desapareceu.
A maré baixou e voltamos para a praia.
Nossas mãos, nossos pés, joelhos e antebraços, e as costas
de Bryan, tudo estava manchado de sangue, que escorria dos
arranhões causados pelo recife. Até marés intermediárias
pareciam estar fora de questão.

***

Eu tinha escrito à mão oito páginas de instruções de primeiros


socorros em um caderno pequeno para todas as finalidades:
infecções, fraturas, choque, queimaduras, envenenamento,
machucados na cabeça, insolação e até ferimentos de bala — o
básico de tratamento de campo estava descrito em listas
cuidadosas, fartamente sublinhadas. Eu não tinha nenhum
treinamento, nem Bryan, pelo que eu sabia. Mas lhe mostrei
onde as instruções estavam, entre desenhos de Nuku’alofa e
anotações para meu romance sobre a ferrovia, e às vezes eu
mesmo as relia, tentando decorar as informações do material.
Não conseguia me lembrar de muita coisa. Quase afogamento,
fraturas, torniquetes, vítima inconsciente — parecia, para minha
mente primitiva, que visualizar essas coisas com demasiada
clareza traria azar. Bryan refletiu sobre como algo comum, como
apendicite, podia acabar conosco naquele lugar. Teríamos de
aguardar anoitecer até para acender as fogueiras de sinalização.
Era verdade, pensei, mas, de novo, dava azar imaginar.
Sem pressa, levava vinte e cinco minutos para dar a volta na
ilha. Bryan contou os rastros recentes de cobras pela praia certa
manhã: cento e dezessete. Como disse Bob, as serpentes eram
desajeitadas em terra. Levavam minutos para atravessar os dez
metros de areia entre a linha da maré alta e a floresta. Eram
fáceis de ver e, na verdade, nada agressivas. Longe da fogueira
do acampamento à noite, uma lanterna era útil para evitar pisar
nelas. Mas a maioria dos meus encontros próximos com as
dadakulachi se deu na água, onde elas eram muitas, tanto na
superfície quanto nas profundezas, tanto no recife quanto na
lagoa.
Tudo era abundante no recife: ouriços, enguias, polvos, e, de
acordo com minha estimativa conservadora, havia oito milhões
de espécies de peixe. Eu saía nadando todo dia na maré alta, de
máscara e snorkel, mas sem pé de pato nem arpão, seguindo
cardumes de criaturas ridiculamente bonitas por desfiladeiros
rasos nos corais, em torno de grandes leques vermelhos,
impassíveis corais-cérebro esverdeados e chifres-de-veado de
aparência perigosa. Reconheci alguns rostos familiares: peixes-
papagaio, salmonetes, cangulos (humuhumu!), garoupas.
Parecia haver uma centena de diferentes tipos de bodiões. Havia
peixes-anjo, baiacus, gobiões. Achei ter visto imperadores-
trompeta, pirás, peixes-cirurgião, vermelhos, blênios, ídolos-
mouros. Vi barracudas e um pequeno tubarão-galha-branca-
oceânico. E ainda assim, para mim, a maioria dos incontáveis
peixes que ocupavam a faixa litorânea de Tavarua não tinha
nome, era misteriosa, alguns tão absurdamente lindos que eu
acabava gemendo no snorkel.
Nossa pescaria era lamentável. Mesmo com os anzóis e a
linha que os caras deixaram, e sabendo o ponto e a maré ideais,
não conseguíamos pegar nada. Arranquei um polvo do recife,
bati-o e o cozinhei bastante, usando muita água doce, e ainda
assim ficou duro para comer. (Eu deveria ter usado sal, aprendi
depois. Isto é, se tivéssemos sal.) Fizemos um trabalho porco de
viver da terra e do mar. Logo colhemos e comemos todos os
mamões maduros que pudemos encontrar. Subi no coqueiro
mais baixo e envergado pelo vento para colher cocos verdes,
mas era derrotado pelas árvores mais altas e retas. Havia muitos
morcegos carnudos com listras amarelas no rosto — eles
ficavam pendurados como vagens no último andar da floresta
durante o dia e davam rasantes sobre a nossa cabeça à noite —,
que provavelmente dariam uma ótima sopa de morcego. Não
tínhamos noção de como capturá-los. Havia caranguejos de
vários tipos, mas os que pareciam mais apetitosos perderam todo
o seu apelo quando vimos a eficiência com que escavavam e
devoravam excrementos humanos.
De qualquer forma, tínhamos levado comida. Latas de porco
com feijão, de guisado de carne, carne enlatada, sopas de
saquinho, macarrão instantâneo, biscoitos, geleia. E apenas o
suficiente de água. Não havia água potável na ilha. As
dadakulachi bebiam, aparentemente, gotas de orvalho e poças
de lama na mata. Desejamos ter pensado em levar alguma coisa
doce. Recordávamos nossas refeições favoritas: frango frito,
grandes hambúrgueres. Até o chow mein de bode em Suva
parecia delicioso na lembrança. Fizemos uma lista de todos os
bares em Missoula, Montana, onde algum de nós já tinha bebido,
e chegamos a cinquenta e três. Sabíamos que estávamos nos
transformando em personagens de um desenho animado que se
passava em uma ilha deserta. “Faça-me um favor, está bem?
Pare de dizer entre nous.” À noite, víamos grandes aviões no céu
e navios passando nas Nadi Waters a caminho de Lautoka, todos
iluminados. Parecíamos adeptos do culto à carga, empolgados
com a ideia de luzes elétricas. Eu sentia especial falta de
cadeiras.
Bob e a turma voltaram, como combinado, depois de uma
semana. Deixamos as pranchas e a maior parte do equipamento
na ilha, fomos até Nadi, uma cidade com um mercado ao sul de
Lautoka, compramos mais suprimentos e voltamos para Tavarua
na tarde seguinte.
***

O primeiro swell consistente chegou na semana seguinte, perto


de 1o de agosto. Havia dias com ondas na altura da cabeça,
outros com ondas ainda maiores. As sessões repassadas juntas
na memória foram oníricas, altamente poderosas. Em 24 de
agosto, segundo meu diário, elas chegaram a duas vezes nossa
altura.
A onda tinha mil humores, mas em geral melhorava à medida
que crescia. Com um metro e oitenta, era de longe a melhor onda
que já víramos. Aumentada em escala, a regularidade mecânica
da velocidade da curva da onda ganhava alma, roncava, as
profundidades cintilantes e a porta do tubo abobadado pareciam
uma espécie de milagre recorrente, o trajeto na superfície e a
força elástica da parede cheios de detalhes delicados e agora
visíveis, cada onda encoberta com uma riqueza única. Às vezes
o vento virava para leste, soprando no arco da onda e mandando
uma turbulência acima, em especial nos últimos quase cem
metros até o canal. Quando soprava de sul ou sudoeste, o vento
vinha pelo lado oeste da ilha, estragando as ondas quando se
aproximavam de nós na curva de oitocentos metros de
comprimento desde a extremidade sul do recife. Mas então elas
limpavam de repente quando davam a última volta para o
alinhamento, e o aspecto de catapulta se multiplicava por um
vento pelas costas que passava por baixo da prancha,
sussurrando: Vá.
Aos poucos, deciframos o ponto de drop. Havia árvores
extremamente altas que, se fizéssemos uma triangulação,
funcionavam como marcos do line-up, e podíamos confiar nas
bolhas acima de grandes cabeças de coral perto do que parecia
ser o melhor ponto de drop. A corrente ia de suave a muito forte
e corria para cima e para baixo do recife, dependendo da maré.
Quando as ondas aumentavam, quebrando em águas mais
profundas, ser jogado no recife inspirava menos preocupação.
Mas ainda era fundamental entrar cedo na onda. Pegar a onda,
mesmo no melhor ponto possível, era como pular em um trem
que não reduzia a velocidade. O que ajudava era remar fundo,
dar braçadas fortes contra a corrente que escoava do recife e
depois virar para a esquerda quando a onda começava a erguer
a prancha, rasgando extraforte na base da onda, saltando para
cima cedo, encontrando a velocidade no interior da onda com
uma bombeada rápida antes de pegar uma linha — ou seja,
antes de determinar um curso inicial, para ser minuciosamente
ajustado à medida que a onda quebrava. Quando o mar ficava
maior e mais consistente, decidir em que onda entrar já era um
desafio por si só. Eu, nesses momentos, tentava conter o
excesso de adrenalina. Ao passar remando pela primeira onda
de uma série e ver as linhas enfileiradas atrás dela, com a
seguinte já quebrando e abrindo ao longe sobre o recife, eu me
via arquejante, com o coração batendo forte, a mente vibrando. O
que fazer? Eu nunca tinha me deparado com tamanha
abundância em toda uma vida de surfe.
Para mim, um regularfoot, era uma considerável ironia que a
onda fosse uma esquerda. Só podia surfá-la com metade do
potencial com que surfaria uma direita com as mesmas
características. Porém, minha técnica de backside melhorou.
Questões antes ocultas, como aliviar o peso da borda, que eu
nunca considerara, de repente se iluminaram na surfada sem fim
e barulhenta sob o lip que quebrava infinitamente. Comecei a
trocar de borda assim que saía da minha cavada na base,
mantendo minha borda externa, a dos dedos, junto da água
mesmo enquanto eu era sugado parede acima, ficando, dessa
forma, pronto para descer a qualquer instante, sem deixar que o
vento terral entrasse por baixo da prancha e me soprasse mais
alto do que eu queria estar. Minha prancha ia mais rápido do que
eu achava que uma prancha poderia ir. Aprendi a relaxar
bastante em posições críticas, quando meus instintos gritavam
que estava na hora de me preparar para o impacto. Repetindo,
parecia que, naquela onda, o momento do último segundo podia
durar muito, muito tempo.
Bryan estava de frontside. Ele podia ficar de pé no drop e ver
tudo se aproximando. Não precisava se virar e olhar para trás.
Podia deixar a mão esquerda tocar a parede. Bryan se recusava
a se apressar mesmo quando eu achava que ele deveria. A
primeira parte da onda, quando é preciso se levantar e pegar
velocidade rapidamente, às vezes o pegava, mas era só ter dado
algumas bombeadas rápidas perto do alto depois do drop que
talvez ele escapasse e zarpasse. Mas ele não gostava que eu
apontasse isso, e o estilo de seu ataque era irrepreensível — a
entrada natural, a calma de toureiro enquanto a onda quebrava
ao seu redor, depois ao subir e dropar em arcos longos na
velocidade máxima. Bryan ainda surfava Rainbows, lá em Maui,
pensei, fazendo as próprias trajetórias idiossincráticas longe do
crowd enlouquecedor, e eu ainda surfava Honolua ligado porque
achava que a onda exigia isso.
Remar de volta após uma onda longa era um teste para os
nervos. Ao mesmo tempo exaltado e exausto, percebi que não
conseguia observar com calma outra série chegar sem ser
surfada. Eu estava programado para pegar uma onda, mesmo
que apenas uma seção final. A ideia de que haveria mais, que
em dez minutos era bem possível que estivéssemos olhando
para outra série igualmente boa de um pico bem longe no recife,
apenas não tinha relevância na psicologia da escassez que eu
ainda sentia. Bryan ria com antipatia enquanto eu hesitava,
gemendo e hiperventilando.
Nossa conversa mudou. Em geral havia uma tensão, uma
necessidade de dizer tudo, mesmo durante os dias longos e
preguiçosos à espera de ondas em Tavarua. Mas no line-up,
quando os swells começavam a bombar, grandes piscinas de
veneração pareciam se formar à nossa volta, silenciando-nos ou
nos reduzindo a códigos e murmúrios, como se estivéssemos em
uma igreja. Havia muito a dizer, emoção demais, e, portanto,
nada a dizer. “Olha essa!” parecia uma grandiloquência. E era
apenas taquigrafia inadequada para “Meu Deus, olhe para essa
aqui”, que, por sua vez, era inadequado. Não que as ondas
esgotassem a linguagem. Era mais como se a embaralhassem.
Certa tarde nublada, com um vento de sudoeste produzindo
rolinhos crespos de pergaminho ao longo das paredes que se
aproximavam, percebi que estava vendo palavras em alemão em
letra gótica, Arbeiterpartei, Oberkommando, Weltanshauung e
Götterdämmerung, marchando de forma incongruente pelas
paredes cinzentas e quentes. Eu estava lendo, na minha rede, a
biografia de Hitler escrita por John Toland. Bryan a lera antes de
mim. Eu lhe disse o que estava vendo. “Blitzkrieg”, murmurou ele.
“Molotov-Ribbentrop.”
Certa vez peguei uma onda, muito depois do pôr do sol e
quando as primeiras estrelas já brilhavam, que se ergueu e
pareceu fazer uma curva no recife em direção ao mar aberto, o
que era impossível. Havia uma luz escura, verde-garrafa, no
fundo da parede, e uma brancura emplumando acima. Todo o
resto — a parede agitada pelo vento, o canal à frente, o céu —
estava em sombras de azul e negro. Quando a onda se curvou, e
em seguida um pouco mais, eu me vi, aparentemente, surfando
rumo ao norte de Viti Levu, na direção da cadeia de montanhas
onde o sol nascia. Não é possível, disse minha mente. Continue.
A onda era algo como uma provação, um teste de sanidade ou
um enorme presente indesejado. As leis da física pareciam ter
sido afrouxadas. Uma onda cavada se erguia de águas
profundas. Não era possível. A sensação era de um trem
desgovernado, uma erupção de realismo mágico, com aquela luz
no fundo do oceano e o dossel branco rendado. Eu a segui. Por
fim, ela se dobrou para trás, claro, encontrou o recife e se desfez
no interior do canal. Não contei a Bryan sobre isso. Ele não ia
acreditar em mim. Foi uma onda de outro mundo.
Surfistas têm fetiche por perfeição. A onda perfeita etc. Isso
não existe. Ondas não são objetos estáticos na natureza, como
rosas ou diamantes. São acontecimentos rápidos e violentos ao
fim de uma longa cadeia de ação provocada por uma tempestade
e a reação do oceano. Até as ondas mais simétricas têm suas
peculiaridades e um caráter local totalmente específico, mudando
a cada alteração na maré, no vento e no swell. Os melhores dias
nos melhores picos têm um aspecto platônico — eles começam a
incorporar um modelo daquilo que os surfistas querem que as
ondas sejam. Mas esse princípio é o fim. Eu achava que Bryan
não se interessava pela perfeição, e sua indiferença
representava, entre os surfistas que eu conhecia, um raro grau
de realismo, maturidade e apreciação filosófica do que as ondas
são. Eu mesmo não tinha muito interesse na quimera da
perfeição. Porém, tinha mais que Bryan.
Outra última onda do dia, essa no fim da sessão mais longa
que tivemos em Tavarua. As ondas estavam grandes — devia ser
dia 24 de agosto, a data que meu diário relatou que o mar estava
com duas vezes a nossa altura —, e tínhamos abandonado
nosso acordo de surfar apenas na maré alta. A onda era surfável
em marés vazantes, talvez até na maré baixa, desde que
estivesse grande o suficiente, víamos agora. Eu ficava na água
quase o dia inteiro, de uma maré intermediária com poucas
ondas, quando apenas as mais rápidas e fortes ondas azul-
turquesa passavam pelo recife com margem razoável, até a maré
alta e o auge do swell, quando as grandes séries realmente
davam uma volta larga, quebrando tão longe e em águas tão
profundas que às vezes passavam direto pelo recife, correndo
por cinco ou dez segundos — grandes paredes sólidas de
espuma sem partes cavadas — até atingirem o recife outra vez e
as paredes se erguerem e retomarem seu avanço lamentoso.
Algumas séries tinham me assustado, não porque eu houvesse
levado alguma vaca em especial nem porque fiquei muito tempo
embaixo d’água, mas simplesmente porque as ondas agora
cresciam a um tamanho considerável, e tive visões breves e
desagradáveis de encontrar algo de outro mundo atrás da onda
grande que eu já me esforçava para ultrapassar. Será que não
fazíamos ideia do que aquele lugar era capaz, e o preço de toda
aquela alegria e boa sorte estivesse prestes a ser cobrado? Era a
primeira vez que eu ficava com medo das ondas em Tavarua.
Meus medos eram desnecessários. Não veio nada muito pesado.
Em vez disso, peguei e surfei tantas ondas, durante quatro ou
cinco fases distintas do dia, que me senti absolutamente
saturado de boa sorte, e mais profundamente conectado com os
ritmos da onda do que jamais me sentira.
Então veio a última onda. A maré estava baixando. Bryan já
tinha saído. O swell também estava baixando. O vento mudara
com o passar do dia e ficara mais fraco na direção nordeste —
maral —, deixando as condições ruins e uma superfície verde-
oliva de aspecto rígido que parecia mais Ventura que os trópicos.
Uma série muito sólida surgiu, iluminada por trás e longe no
recife. Passei remando por duas, depois de aprender a ter um
pouco de paciência, e peguei a terceira onda. Ela balançava,
mas tinha uma forma maravilhosa, e me apressei porque o vento
maral iria fazê-la esfarelar rapidamente. Isso aconteceu. A onda
também quebrou com mais força que a maioria, de modo que a
parede à frente parecia estar atingindo o recife inteiro
simultaneamente, abrindo ainda mais rápido que o habitual.
Comecei a desejar não ter escolhido aquela onda, mas percebi
que era tarde demais para sair, ou até mesmo mergulhar — a
maré parecia ter baixado mais de sessenta centímetros desde
minha onda anterior, e cabeças de coral de repente começaram a
brotar por toda parte. Pior: a onda parecia estar crescendo à
medida que corria pelo recife. Ela agora tinha mais de um metro
acima da minha cabeça, e a parede não estava limpa. Havia
várias pequenas seções estranhas e fragmentos do lip caindo e
jogando, mas ela era extremamente rápida, eu estava baixo na
parede, e agora ela estava cavando, sugando toda a água de
cima do recife. Mais uma vez, não havia saída, eu não tinha
escolha além de seguir em frente, pisando fundo no acelerador.
Após uma série muito rápida de sessões críticas, surfando às
cegas, as coisas acontecendo rápido demais para que eu
reagisse, exceto por instinto, saí com dificuldade no canal. Deitei
na prancha, trêmulo. Então resolvi sair da água, remando contra
a corrente. Quando cheguei à praia, andei apenas metade do
caminho até nosso acampamento. De joelhos na areia, à luz do
crepúsculo, absolutamente exausto, fiquei surpreso ao me ver
soluçando.
***

Nem sempre surfávamos sozinhos. John Ritter e seus amigos


voltaram e ancoraram fora do canal. Porém, não havia nenhum
swell, por isso eles partiram sem surfar. O Alias e o Capella
também apareceram, e eles conseguiram ondas. Bryan e eu na
verdade servimos como práticos no Alias. Enfim pegamos aquele
ônibus de Lautoka para Suva, recebemos cartas de casa pela
primeira vez em meses na posta-restante — nossos entes
queridos pareciam estar bem, seguindo em frente em um
universo paralelo — e então, ao descobrir que Mick agora tinha
as coordenadas mais corretas da onda, navegamos de volta para
o oeste no ketch de cimento. O Alias ancorou na costa de
Tavarua, e voltamos a acampar na ilha. Um swell chegou no dia
seguinte, e Mick e Graham, os dois goofies, ficaram chocados.
Eles surfaram até pirar. Graham, em especial, era um ótimo
surfista. Quando o swell baixou, eles navegaram para Nadi. O
Capella também zarpou. Então, assim que os barcos haviam
partido, mais ondas chegaram, com um vento leve de sudoeste,
aquele que o seguia, passava por baixo de sua prancha,
sussurrando: Vá.
Nós fomos.
Quando saímos de Tavarua naquele ano, achávamos que
nove surfistas conheciam a onda. Esse número incluía alguns
tripulantes australianos e supunha que Ritter e Gary tinham sido
os primeiros a surfar ali. No pequeno mundo do surfe, a onda era
uma grande descoberta. Na lógica da escassez desse mundo,
era essencial mantê-la em segredo. Todos fizemos um juramento
de silêncio. Bryan e eu pegamos o hábito de dizer “da kine” —
pidgin havaiano para se referir a algo sem ter que dar o nome —
quando queríamos no referir a Tavarua, mesmo um com o outro.
Mick e Graham, com quem acabamos partindo a bordo do Alias,
chamavam-na de Ilha Mágica — nome pouco criativo, pensei
(mas haveria piores pela frente).
De uma trepadeira na ilha, peguei um punhado de sementes
vermelhas e pretas. Na noite após nossa partida, ficamos
completamente bêbados no Alias enquanto estávamos
ancorados ao largo de um resort perto de Nadi. Acordei com a
orelha direita recém-furada e uma das sementes brilhantes
penduradas em um anzol passado pelo buraco. Em poucos dias,
a orelha ficou terrivelmente infeccionada. Mandei o resto das
sementes para Sharon, sugerindo que fizesse um colar com elas.
Sharon o fez, mas depois me contou que nunca chegou a usá-lo
porque as sementes lhe davam alergia.
Bryan Di Salvatore e Joe, o andarilho, entre Coober Pedy e Alice Springs, Austrália,
1979
SEIS

PAÍS DE SORTE

Austrália, 1978-1979

Alguém nos enviou um exemplar da revista Outside com um


artigo de um ex-professor meu. Era sobre um fim de semana
inteiramente dedicado a esquiar e beber em Montana. Eu me
lembrava do fim de semana, embora de modo diferente. Fiquei
surpreso que alguém se interessasse por nossos desvarios na
pós-graduação. Talvez minha compreensão sobre formas de
diversão norte-americanas estivesse perdendo força com a
distância. O artigo mencionava que eu estava “vivendo uma vida
desconhecida na Austrália”. Tirando a parte da Austrália, tudo era
novidade para mim.
Bryan e eu tínhamos chegado a uma cidade de praia chamada
Kirra, em Queensland, perto da fronteira com Nova Gales do Sul.
Éramos os orgulhosos proprietários de um Falcon 1964,
comprado perto de Brisbane por 300 dólares, e havíamos
acampado no carro e surfado para cima e para baixo da costa
leste, de Sydney a Noosa. Era incrível estar de volta ao Ocidente,
com todo o conforto e as conveniências, e surfar picos
conhecidos — havia até placas de sinalização nas estradas:
PRAIA DE SURFE. Era maravilhoso estar motorizado. Comida e
gasolina eram baratos. Ainda assim, estávamos quase falidos.
Por isso, usando o que restava do nosso dinheiro, alugamos um
chalé mofado nos fundos de um complexo decrépito chamado
equivocadamente de Bonnie View Flats. A maior parte de nossos
vizinhos era de desempregados da ilha Thursday — melanésios
do estreito de Torres, perto de Papua Nova Guiné — e alguns
deles talvez tivessem vistas em suas janelas. Nós não tínhamos.
Mas a praia ficava do outro lado da estrada, e não havíamos
escolhido Kirra ao acaso. O lugar tinha uma onda lendária. Além
disso, o verão no hemisfério Sul estava começando e, com ele,
esperávamos, swells de nordeste criados por ciclones.
Bryan arranjou emprego de chef em um restaurante mexicano
em Coolan-gatta, a cidade seguinte ao sul. Ele disse aos donos
que era meio mexicano, mas estragou tudo quando perguntaram
seu nome. Ele respondeu McKnight quando queria dizer
Rodriguez. Bryan não tinha visto de trabalho válido com nenhum
dos nomes. Eles o contrataram mesmo assim. Encontrei alguns
empregos extenuantes, entre eles o de escavar valas, que
merece sua reputação como o pior tipo de trabalho braçal, em
troca de remuneração diária em dinheiro. Em seguida fui
contratado como lavador de panelas em um restaurante no Twin
Town Services Club, um grande cassino logo depois da fronteira
com Nova Gales do Sul, a quinze minutos de caminhada de onde
estávamos. Eu lhes disse que meu nome era Fitzpatrick. O
gerente falou que, para ser contratado, eu teria que fazer a
barba, então eu fiz. Quando Bryan chegou em casa à noite, me
viu e deu um grito. Aparentava estar realmente assustado. Disse
que parecia que metade de meu rosto tinha sido queimada. Eu
estava pálido onde havia barba e moreno no resto.
Falei para ele que não tinha nada de mais, que a barba
voltaria a crescer.
Torrei meus primeiros salários em pranchas de surfe. Kirra fica
em Gold Coast, um centro de surfe, e havia pranchas usadas
baratas por toda parte. Comprei duas, entre elas uma Hot
Buttered de quase dois metros de rabeta squash muito
manobrável e incrivelmente rápida. Era o equivalente a um carro
esportivo das pranchas e uma bela mudança depois de meses
surfando com minha prancha de viagem robusta. Bryan também
comprou pranchas novas muito menores. O pico próximo que
quebrava o ano inteiro se chamava Duranbah. Era uma praia
totalmente exposta de fundo de areia imediatamente ao norte da
boca do rio Tweed, muito perto do cassino onde eu trabalhava.
Duranbah sempre parecia ter ondas. Frequentemente eram ruins,
mas havia pérolas espalhadas em meio às marolas. Em meu
aniversário de vinte e seis anos, peguei um belo tubo em uma
direita reluzente e saí seco.
Os pointbreaks — Kirra, Greenmount, Snapper Rocks e
Burleigh Heads, locais que puseram Gold Coast no mapa
mundial do surfe — iriam melhorar depois do Natal, diziam. Eles
iriam começar a quebrar, de fato, no Boxing Day, dia 26 de
dezembro, assegurou-nos um vizinho que não surfava. Nós rimos
da especificidade improvável, mas aguardamos as ondas com
ansiedade.
Nesse meio-tempo, eu estava gostando muito da Austrália. O
país nunca havia me interessado. A distância, sempre me
parecera terminantemente sem graça. De perto, porém, era uma
nação de insolentes, trabalhadores sarcásticos, sem respeito
pela autoridade. Os outros lavadores de panelas no cassino, por
exemplo — eles nos chamavam de dixie bashers —, eram um
grupo estranhamente orgulhoso. Em uma grande cozinha de
restaurante, estávamos na base da hierarquia, abaixo das
lavadoras de pratos, que eram todas mulheres. Nós
descascávamos batatas (que chamávamos de idahos),
cuidávamos do lixo, lavávamos a louça mais pesada e
limpávamos o chão engordurado com água quente ao fim da
noite. E ainda assim ganhávamos um salário excelente (eu
conseguia poupar mais da metade do que recebia) e, como
funcionários, tínhamos permissão de frequentar o bar privativo
dos membros do cassino no último andar do prédio. Nós nos
reuníamos lá depois do trabalho, cansados e calejados, e
bebíamos cerveja em meio aos ricos de Gold Coast. Uma ou
duas vezes meus colegas de trabalho avistaram o dono do
cassino por lá. Eles o chamaram de filho da mãe rico e ele,
adequadamente incomodado por ser rico, nos pagou a rodada
seguinte.
Eu nunca vira a dignidade do trabalho ser tão bravamente
respeitada, nem na ferrovia. A Austrália era, de longe, o país
mais democrático que eu já tinha visitado. As pessoas a
chamavam de Lucky Country, o País de Sorte. Esse epíteto foi
cunhado por um crítico social, Donald Horne, cujo livro de 1964
com esse mesmo título condenava a mediocridade da cultura
política e empresarial australiana, argumentando que “a Austrália
é um país de sorte, administrado principalmente por pessoas de
segunda classe que compartilham de sua sorte”. Mas a
expressão perdera o significado com o tempo e tinha sido
amplamente adotada como um lema nacional otimista. Eu não
via problema nisso.
Os indicadores de classe social habituais de outros lugares
pareciam maravilhosamente misturados. Billy McCarthy, um de
meus colegas de lavagem de louça, era saudável, falava bem,
tinha quarenta anos, era casado e com filhos. Eu o interroguei
certa noite enquanto tomávamos algumas cervejas e descobri
que ele fora saxofonista profissional em Sydney, com um trabalho
diurno de capataz em uma fábrica de perfume. Seguira os pais
para Gold Coast, onde começou com um amigo um negócio de
corte de grama e lavagem de janelas, de cultivo de bonsais para
vender em mercados de pulgas, e de palmeiras em vasos para
vender por consignação em lojas. Ele ainda trabalhava como
jardineiro, mas precisava do salário fixo do restaurante. Jogava
golfe, frequentemente com músicos que vinham de Sydney tocar
no clube do cassino ou outros palcos locais. Se Billy sentia
vergonha por trabalhar como auxiliar de cozinha, eu não
conseguia perceber. Ele era trabalhador, alegre, politicamente
conservador, assobiava com frequência alguma canção brega,
sempre com uma piada pronta. Sem esforço, ele fazia com que
eu me sentisse bem-vindo. Certa vez, quando estava chegando
no trabalho, eu o ouvi chamar: “Aí está ele, o homem que eles
não conseguiram balear, enraizar nem eletrocutar.”
O chef principal, enquanto isso, me chamava de “Fitzie”, e eu,
provocando suspeitas, sempre deixava de responder quando
fazia isso. Ele mandava na cozinha. Certa vez, quando fui
provocá-lo sobre um peixe decorado de forma extravagante que
estava sendo servido, ele me olhou com raiva e disse: “Não
venha tirar onda com a minha cara, camarão.” Não sabia se tinha
ido longe demais. Mas McCarthy e os outros dixie bashers se
divertiram com a discussão. Passaram a me chamar de
Camarão.
Surfistas locais eram menos receptivos. Havia milhares deles.
O nível de habilidade era alto; a competição pelas ondas,
acirrada. Como em qualquer lugar, cada pico tinha sua galera,
seus astros, seus grandes nomes do passado. Mas havia
grandes clubes, panelinhas e dinastias familiares em toda cidade
de praia da Gold Coast — Coolangatta, Kirra, Burleigh. Também
havia hordas de turistas e pessoas que passavam o dia na praia,
e Bryan e eu supostamente pertenceríamos a esse estrato mais
baixo do mundo do surfe até que conseguíssemos estabelecer o
contrário. Os caras com quem começamos a surfar com
frequência eram outros colegas expatriados — um inglês que
chamávamos de Peter the Pom e um garoto balinês chamado
Adi. Peter era cozinheiro no cassino, um bom surfista, casado
com uma garota local. Eles moravam em um apartamento em
Rainbow Bay, de onde se via a onda de Snapper Rocks. Adi
também se casara com uma local. Era um surfista talentoso, que
trabalhava como garçom e mandava os salários para casa. Certa
noite, levei Adi e seu primo, Chook, a um drive-in para assistir a
Car Wash, onde acontece de tudo. Chook tinha cabelo até a
cintura e era o homem adulto mais magro que eu já vira —
“chook” é uma gíria australiana para galinha. Ele e Adi tinham se
embebedado com espumante e morriam de rir com o filme, que
chamavam de Wash Car. Achavam os afro-americanos, que
chamavam de negros, as pessoas mais engraçadas da Terra.
O cassino organizou uma grande festa pré-natalina para os
funcionários, o que me deu a oportunidade de reviver uma parte
dolorosa do ensino médio que eu perdera por ser um surfista
hippie que teria preferido a cadeia ao baile de formatura. Todas
as mulheres jovens da cozinha — garçonetes, lavadoras de
pratos, chefs de pâtisserie — estavam empolgadas com a festa.
Eu podia ouvi-las comentando alegremente sobre vestidos,
acompanhantes, penteados, a banda, os planos para depois da
festa. Descobri que queria muito ir, talvez até com a garçonete
mais bonita. Mas eu não tinha uma camisa de manga comprida,
muito menos o smoking que eu entendi ser exigência. Indo direto
ao ponto: estava claro que eu não existia para aquelas garotas.
Seus pretendentes eram os valentões locais com quem elas
provavelmente tinham estudado no ensino médio. Passei a noite
da festa em meu chalé minúsculo e sujo tentando trabalhar em
meu romance. Eu odiava muito ser um estrangeiro, sempre
excluído. A intensidade da minha vergonha e autodepreciação
era perturbadora.
Sharon e eu trocávamos muitas cartas, e receber as dela em
geral era um consolo, mas eu mal podia lhe contar tudo. Ela, sem
dúvida, também estava sendo discreta. Os verdadeiros
parâmetros da minha solidão eram problema apenas meu.

***

Bryan e eu queríamos escrever um artigo para a Tracks, revista


de surfe publicada em Sydney. A Tracks não tinha nada a ver
com suas primas americanas reluzentes e bonitas. Era um
tabloide. Editorialmente, era rude, inteligente, agressiva. Ela na
verdade parecia ser a principal revista jovem da Austrália, como
a Rolling Stone em seu auge nos Estados Unidos. Grandes
pacotes dela chegavam às bancas de jornal a cada duas
semanas. Nossa ideia era ridicularizar a domesticação do surfe
na Austrália. A Tracks e seus leitores já odiavam os americanos.
Quando eram educados, eles nos chamavam de “seppos”, em
referência a fossas sépticas, gíria que rimava com ianques. Mais
comumente, éramos apenas babacas. Descobrimos que
podíamos irritá-los. Os editores nos convidaram a fazer uma
tentativa.
O alvo era quase fácil demais. O surfe era totalmente
mainstream na Austrália — com todos os clubes, competições,
equipes escolares e praias de surfe bem demarcadas, completas
com estacionamentos e duchas quentes. Eu, na verdade, meio
que gostava da empolgação saudável — e o apelo de massa do
surfe era, sem dúvida, a única razão para uma revista de nicho
como a Tracks funcionar também como um jornal para jovens de
circulação nacional —, mas culturalmente isso era piegas de uma
forma gritante. Bryan e eu tínhamos crescido no Sul da
Califórnia, onde a maior parte das cidades de praia, e policiais de
praia, odiavam e perseguiam surfistas. Teriam nos expulsado da
escola no ensino médio antes de nos apoiar. Surfistas eram bad
boys, foras da lei, rebeldes. Éramos, verdade seja dita, maneiros.
O surfe não era um “esporte” domesticado, aprovado pelas
autoridades. Bryan e eu percebemos que podíamos fazer uma
provocação sobre isso na Tracks.
A parte difícil era escrever. Nunca havíamos escrito nada em
parceria, e nossa suposição de que compartilhávamos uma
sensibilidade se provou extremamente equivocada.
Concordamos na ideia para a matéria, mas Bryan odiou meus
rascunhos, e eu desdenhei dos dele. Por que eu estava sendo
tão comum, tão previsível? Por que ele estava sendo tão
empolado, tão exagerado? Quando ia crescer? Será que eu
estava aspirando à mediocridade? Não queria meu nome no
texto juvenil e cheio de autoelogios que ele estava produzindo. E
por aí vai. Fiquei com tanta raiva que amassei as páginas sobre
as quais estávamos discutindo e arremessei a bola de papel
nele. Bryan disse mais tarde que quase me deu um soco em vez
de ir embora.
Àquela altura, nós nos conhecíamos havia oito anos, e nossa
discordância completa e intensa em praticamente todas as linhas
do texto para a Tracks fez com que eu me perguntasse em que
momento nossas diferenças literárias tinham se tornado tão
pronunciadas. Quando nos conhecemos, em Lahaina, o que nos
atraiu foi a descoberta de que amávamos os mesmos livros. Na
verdade, as primeiras palavras que dirigi a Bryan foram: “O que
está fazendo com esse livro?” Ele estava atravessando o
estacionamento dos correios com Ulisses na mão, e as
extremidades familiares do grande “U” na capa da edição em
brochura da Random House chamaram minha atenção. Ficamos
ali parados sob o sol por uma ou duas horas conversando sobre
James Joyce e depois os Beats, enquanto Domenic aguardava
impacientemente na sombra, e pareceu inevitável que nos
encontrássemos outra vez. Claro, nossos gostos nunca tinham
sido exatamente os mesmos. Eu era o fã mais dedicado de Joyce
— posteriormente, passei um ano estudando Finnegans Wake
com Norman O. Brown, um exercício de obscurantismo
masturbatório que Bryan nunca teria empreendido —, e ele tinha
um olho bom para ficção mais comercial, incluindo westerns, que
eu não possuía. Eu gostava de Pynchon; Bryan achava a prosa
dele horrível. Mas estávamos sempre mostrando novos autores
um para o outro e, com bastante frequência, encontrando as
mesmas virtudes em seu trabalho. Bryan costumava estar anos à
frente do público leitor — ele enaltecia a obra de Cormac
McCarthy muito antes de a maioria dos críticos ouvir falar dele
—, e eu gostava de seguir suas dicas. Na Austrália, nós
estávamos curtindo Patrick White e Thomas Kenneally e
torcendo o nariz para Colleen McCullough. Então por que cada
frase que ele escrevia sobre o surfe na Austrália me irritava, e
vice-versa?
Seguíamos em direções diferentes, claro. Eu começara como
um lírico surrealista adolescente, embriagado pela linguagem
como Dylan Thomas, e lentamente tentava ficar sóbrio. Agora
estava mais interessado em transparência e exatidão, menos
apaixonado pela originalidade exibida. Bryan permanecia
encantado pela musicalidade das palavras — que ele uma vez
chamou de “o incrível bater de pés de alegria com uma frase bem
escrita”. Ele amava dialetos puros capturados, humor louco
vernacular, fisicalidade viva e uma grande metáfora, e não havia
nada que desprezasse mais que um jargão preguiçoso.
Votei por abandonar o artigo, ou pelo menos deixar que
seguisse apenas a linha dele. Mas Bryan estava determinado e
insistia que o artigo devia ser assinado por nós dois. Por isso,
cortamos o material dele até o ponto em que concordei em
assinar também. Usamos nossos nomes verdadeiros, o que foi
sorte, porque a matéria causou um alvoroço inesperado. Peter
the Pom, que nos conhecia apenas por nossos nomes falsos no
trabalho, chegou a me perguntar se eu lera o artigo. Ele explicou
que alguns caras locais ficaram bem irritados com todos os
insultos extravagantes daqueles punheteiros americanos. Bryan
e eu decidimos negar a autoria se nos pressionassem. Nossa
intenção era irritar os leitores. Mas não queríamos ser expulsos
de Gold Coast. A Tracks tradicionalmente publicava maravilhosas
cartas com insultos, e nós recebemos as nossas. Eu gostei de:
“Não cuspiria em vocês, mestiços, nem se estivessem pegando
fogo.” Bryan gostou de: “Que os lóbulos de suas orelhas se
transformem em cus e caguem em seus ombros.”

***

Conheci uma mulher, Sue, e ela me falou que eu era


“completamente louco”. Disse isso como um elogio. Gostei muito
dela. Sue era mãe de três, tagarela, seios fartos e olhos
brilhantes. O marido, um músico local de rock viciado em
heroína, estava na cadeia. Nós vivíamos temendo que fosse
solto. Sue e os filhos moravam em uma cidade de praia elegante
chamada (por falar em mainstream) Surfers Paradise, paraíso
dos surfistas. Sue era uma boa-vida. Ela adorava música de
vanguarda, arte, comédia, história australiana e tudo o que era
aborígine. Sabia muita fofoca de Gold Coast — que astro do
surfe cheirador de pó tinha entregado os parceiros para a polícia,
qual astro do surfe cheirador estava pegando a mulher do
patrocinador. Sue também conhecia as belas montanhas com
florestas de eucalipto atrás da costa, onde o gado pastava, os
cangurus saltavam e os pequenos agricultores desmazelados
viviam em uma versão do tempo da criação aborígine imersa em
maconha. Passávamos dias lá em cima quando o mar estava flat.
Os filhos de Sue, que tinham entre oito e quatorze anos, me
deram uma ótima colagem bem-humorada de coalas fofos
examinando com ceticismo a pompa das pessoas que vagavam
por Gold Coast. Então recebi um telefonema no meio da noite. O
marido de Sue tinha sido solto. Ela recebera a notícia, arrumara
as crianças no carro velho e já estava a centenas de quilômetros
de Surfers Paradise. “Saí rápido como camisola de noiva”, disse
ela. “Saí como um balde de camarões num dia quente.” Ela
parecia animada, levando tudo em consideração. Eles estavam a
caminho da casa da mãe dela em Melbourne, a mais de mil e
seiscentos quilômetros de distância. Ela falaria comigo em breve.
Eu devia tomar cuidado com seu marido.
Sue não era bem um exemplo disso, mas muitas mulheres
australianas pareciam fartas dos homens locais. Os “ockers”,
como eram chamados — o nome vinha de um programa de TV
popular —, bebiam cerveja demais, priorizavam os amigos e o
futebol e tratavam as mulheres muito mal. Se essa generalização
era verdadeira ou justa, eu não podia dizer, mas Bryan e eu,
após passarmos tempo suficiente em Kirra para deixar claro para
os nativos que éramos residentes, começamos a nos sentir como
os benfeitores inocentes de uma desilusão sexual em massa. Em
comparação com o ocker típico, éramos caras sensíveis,
modernos. As mulheres de Gold Coast tinham tempo para nós.
Mesmo quando éramos cafajestes, parecíamos ser um
aperfeiçoamento do produto local. Eu sentia saudade de Sue e
estava feliz por continuar sem conhecer seu marido, mas minha
fase de dor de cotovelo solitária passou, graças a Deus.
Consegui um novo emprego como barman no Queensland
Hotel em Coolangatta, que era um pub antiquado durante a
semana e, nas noites dos fins de semana, uma boate de rock
conhecida como Patch. (Sue e eu vimos Bo Diddley lá.) Aprendi
a tirar cerveja na pressão sob a supervisão atenta de um barman
com muitos anos de carreira chamado Peter. Ele me disse que,
se eu fizesse alguma coisa errada, o cliente tinha o direito de
jogar a cerveja (mas não o copo) na minha cara e exigir uma
nova. A lista de erros puníveis era longa: colarinho de mais,
colarinho de menos, cerveja sem pressão, cerveja quente,
cerveja de menos, qualquer vestígio de sabão no copo. Essa
novidade teve o efeito desejado: fiquei assustado e cuidadoso.
As noites durante a semana eram lentas e fáceis. As noites de
sexta e sábado no Patch, que ficava em um prédio grande
parecido com um celeiro atrás do velho pub, eram uma loucura,
com fileiras e mais fileiras de clientes gritando no bar, punk rock
tocando alto e dez mil runs com Coca-Cola. A temporada de
turismo de verão estava começando. Depois do trabalho, eu
caminhava pela estrada que seguia ao longo da praia de volta
para Kirra, grato pelo silêncio, parando em frente ao pico onde
diziam que a grande onda quebrava, olhando para o negrume da
água agitada além da base do quebra-mar. Todas as ondas de
Gold Coast que tínhamos surfado até então haviam sido suaves,
quentes, tranquilas, um pouco pequenas. As pessoas diziam que
Kirra, quando quebrava, era um pointbreak muito rápido sobre
fundo de pedra com uma força esmagadora. Isso era difícil de
imaginar.

***

O primeiro swell de ciclone chegou, é claro, bem no Boxing Day,


dia 26 de dezembro. Kirra acordou. O acontecimento “difícil de
imaginar” virou a única coisa em que pensávamos. Mas a onda
era uma fera estranha e tosca, nada como um pointbreak da
Califórnia. Grandes quantidades de água com areia corriam em
torno da extremidade do quebra-mar, formando uma torrente ao
longo da costa. Naquela primeira manhã, o céu estava nublado; a
superfície do oceano, cinza, marrom e de um prateado ofuscante.
As séries aparentavam ser menores do que eram, parecendo
deslizar quase com desinteresse sobre a barreira externa do
quebra-mar, em seguida se erguendo mais altas e mais espessas
do que deviam ser, decaindo e enfim descarregando em uma
série feroz de seções conectáveis, algumas ondas pesadas e
poderosas — a crista projetava-se muito longe quando quebrava.
Era difícil acreditar que elas estavam quebrando sobre um fundo
de areia. Eu nunca vira nada parecido. O crowd estava ruim ao
amanhecer e piorava rapidamente. Nós nos juntamos a ele.
Devo ter pegado três ondas naquele dia. Ninguém me dava
nenhuma chance. A corrente que margeava a costa transformava
todo o local em uma competição de quem remava mais. Ninguém
falava. A remada era difícil demais, e uma mínima pausa ou
desatenção significava metros perdidos. Eu estava em boa
forma, mas os melhores surfistas locais estavam em uma forma
absurda, e era para isso que eles viviam. Perto do topo, perto do
pico, a corrente ficava ainda mais forte. Quando uma série se
aproximava, você tinha que dar uma acelerada rio acima em um
ângulo preciso, mas não óbvio, dando um jeito de deixar
distância suficiente entre você e o grupo, agitando braços e
pernas e falando, de modo que fosse a única pessoa no pico
quando a água sugasse da bancada, então virar e, com algumas
últimas braçadas fortes, pegar a onda antes que quebrasse. Em
seguida, supondo que conseguisse dropar, você precisava surfá-
la, forçando para acelerar como louco em uma das ondas mais
rápidas do mundo. Aquilo se parecia muito com trabalho. Mas, se
você conseguisse pegar uma onda, valia a pena. Valia muito a
pena. Aquela, pensei, era uma onda a que eu poderia me dedicar
com seriedade.
Ela não tinha o tamanho do oceano aberto nem a beleza das
paredes amplas da baía de Honolua. Era uma onda muito mais
compacta e viscosa. Os primeiros cem metros davam uma
sensação de anfiteatro, com espectadores em cima do quebra-
mar em frente ao pico, junto da grade de proteção ao longo da
estrada costeira, em uma escarpa íngreme e verde que se erguia
atrás da estrada — e, às vezes, até em um estacionamento na
frente do Kirra Hotel, um pub grande e simples localizado
embaixo do penhasco. Além disso era uma praia aberta, e
quando o swell estava grande e o ângulo, certo, era possível ficar
numa onda por quase duzentos metros sem ser observado, como
uma pista de corrida vazia e extática. Não era uma onda
mecânica. Tinha falhas, variedade, trechos lentos, outros que
fechavam. Ondas menores provocadas pelo impacto no quebra-
mar ou na barreira no inside costumavam correr de volta na
direção do mar, estragando a terceira ou a quarta onda de uma
série. Porém, as mais limpas tinham uma qualidade de
compressão que era, às vezes literalmente, atordoante. As ondas
mais pesadas, na verdade, pareciam ficar mais curtas e reuniam
muita força enquanto começavam a detonar pela bancada
principal, uma faixa rasa conhecida como a seção Butter Box,
manteigueira. Mesmo com fundo de areia e uma onda de aspecto
surfável, era uma seção profundamente intimidadora. Era preciso
entrar nela rápido, mas ficar abaixado na parede, pronto para se
agachar quando a crista pesada se projetasse na horizontal, e
então permanecer na prancha de algum modo através de uma
aceleração sobrenatural. A seção Butter Box dava um novo
significado à velha expressão do surfe “bota para dentro!”. Só
havia um modo de surfá-la: através do tubo, botando para dentro.
Eu tinha surfado minha cota de tubos de frontside, desde a
seção confiável na boca da baía de Lahaina até uma onda
mutante numa laje em Santa Cruz chamada Stockton Avenue,
onde quebrei pranchas ao meio em dias de ondas de quase um
metro e tive sorte de não me machucar no recife raso de pedra.
Mas Stockton era uma onda curta e esquisita — e essa era sua
única qualidade. Kirra era igualmente oca, e era um pointbreak.
Era tão longa quanto Rincon ou Honolua, e mais tubular que
qualquer uma das duas. E o fundo, outra vez, era areia, não coral
nem pedras — uma formação sem precedentes em minha
experiência, num excelente pointbreak. Descobri que a areia não
era especialmente macia. Eu a atingi uma vez com tanta força no
Butter Box que tive uma concussão e não sabia dizer em que
país estava. Outra vez, também no Butter Box, e não em uma
onda grande, o leash se enrolou tão apertado em minha cintura
que eu não conseguia respirar. Em outra ocasião, ainda na
mesma seção, o leash atravessou a borda e arrancou metade da
rabeta de minha prancha favorita. Então a areia era uma bênção,
sem dúvida, mas a violência da onda permanecia — inseparável,
como sempre, de seu apelo feroz. Aquele fio de aço.
A ordem de prioridade em Kirra era desconcertantemente
longa, e os caras no topo costumavam ser campeões nacionais e
mundiais. Michael Peterson, bicampeão australiano, mandava no
line-up quando começamos a surfar por lá. Era moreno, reflexivo
e forte, com um bigode grosso e um olhar louco. Ele pegava
qualquer onda que quisesse e surfava como um demônio, com
uma ampla postura de poder e manobras selvagens. Certa
manhã, percebi que ele me olhava fixamente. Estávamos perto
do pico e eu remava forte, como sempre, tentando chegar à
próxima onda da série antes do grupo, mas Peterson parou de
remar. “Bobby!”, gritou ele. Balancei a cabeça em negativa e
continuei remando. Ele parecia ter visto um fantasma. “Você não
é o Bobby? Você é igual ao meu amigo que está na cadeia! Achei
que eles o tivessem soltado. Bobby!” Depois desse incidente, eu
com frequência flagrava Peter me encarando na água. Passamos
a nos cumprimentar, embora eu o assustasse, e senti a
hierarquia social se afrouxar ao meu redor quando os outros
caras perceberam que eu e o lendário Peterson estávamos
trocando cumprimentos. Fiquei feliz por ter essa moleza. Como
todo mundo, eu só queria pegar mais ondas.

Paul Stacey, de Kirra, em um tubo no Butter Box


Bryan e eu tínhamos a vantagem de viver o mais perto
possível de Kirra — a menos que você vivesse no Kirra Hotel,
que não tinha quartos. Eu checava o quebra-mar toda noite
enquanto caminhava do trabalho para casa, e, se houvesse
qualquer indício de swell, entrávamos na água antes do
amanhecer. Aquela, na verdade, foi uma temporada de surfe
maravilhosa, uma das melhores, disseram as pessoas, com pelo
menos um swell de boa qualidade a cada semana em janeiro e
fevereiro. Um ciclone, Kerry, atingiu as Ilhas Salomão, depois
pareceu circular por semanas pelo mar de Coral, bombeando um
poderoso swell de nordeste. Nossas saídas no início da manhã
costumavam ser frutíferas, rendendo ótimas ondas por uma ou
duas horas com relativamente pouca gente. Havia uma galera
habitual que surfava antes do amanhecer, nem todos muito bons.
Havia um cara barbudo, desajeitado e simpático que usava uma
prancha gun para ondas grandes e mal fazia curvas e que
sempre gritava quando ficava de pé e determinava a trajetória: “I
got a lady doctor” (tenho uma médica). Por acaso eu sabia o
verso seguinte da música: “She cure da pain for free” (ela cura a
dor de graça). Ela realmente fazia isso.

***

Kirra, por ser uma direita famosa e com muito crowd, não era o
tipo de onda de Bryan. Ele a surfava religiosamente e conseguia
encontrar os espaços na multidão em sessões bem cedo com
pouca gente, em pontos de inflexão nos vários bancos de areia
onde podia conseguir suas ondas, mas não se comprometia com
a disputa do mesmo jeito que eu, nem em buscar o Graal que em
dias excelentes encarnava repetidamente no vórtice do Butter
Box (que passamos a chamar apenas de seção selvagem).
Bryan parecia gostar da Austrália tanto quanto eu — a insolência
incorrigível dos australianos, os salários maravilhosos, a gíria
rica, o sol, as garotas. Mas não estava escrevendo, o que era
preocupante. Em Guam, ele terminara um romance ambientado
em uma cidadezinha de Idaho. O texto era ótimo, ainda melhor
que seu bildungsroman sobre os colegas de surfe no ensino
médio. Ele o enviara para um agente em Nova York. Esse era o
tipo de coisa de adulto que eu nunca ousara fazer. (Eu tinha
agora dois romances guardados na gaveta, lidos apenas por
amigos.) O manuscrito ainda não havia sido aceito por uma
editora. Bryan falou que não estava desanimado pela demora,
mas parecia ter entrado em uma fase não produtiva.
Ele lia insaciavelmente — ficção, biografias —, sentado em
uma velha cadeira de vime que pusera na porta da frente de
nosso chalé. Encontrei uma grande pilha de revistas New Yorker
velhas em um brechó em Coolangatta, vendidas por 1 centavo
cada. Comprei muitas e lhe dei de presente de Natal. Bryan pôs
a pilha ao lado de sua cadeira e começou metodicamente a ler as
revistas. Elas se transformaram em uma ampulheta de nosso
tempo em Kirra — cem exemplares lidos, duzentos faltando.
Enquanto isso, eu escrevia os capítulos de meu romance sobre a
ferrovia após enfim conseguir um enredo sólido. Nós nos
revezávamos em uma máquina de escrever antiga doada por
Sue. Bryan datilografava cartas longas e engraçadas para
nossos amigos em casa sobre nossas aventuras em Oz, algumas
delas não ficcionais. Às vezes, ele lia passagens que achava que
iriam me divertir. Uma que ficou na minha cabeça, mas não me
divertiu, nos descrevia como uma dupla fisicamente improvável
de surfistas viajantes. Ele era gordo demais, escreveu; e eu,
magro demais. Era verdade que eu era magro, e que ele era um
pouco gorducho, mas minha vaidade reagiu a essa
autodepreciação estendida. Minha reação foi estranha, em parte
porque eu sempre tentava aliviar as tensões com Bryan — e
fizera isso ainda mais com Domenic —, compulsivamente me
transformando no personagem de piadas e histórias. Mas, pelo
jeito, meu corpo estava além dos limites da zombaria, pelo
menos de uma maneira que sugerisse fraqueza ou, Deus me
livre, falta de masculinidade. Bryan tinha uma atitude melhor. Ele
não dava a seus alunos nenhuma escolha além de Clint
Eastwood, com quem não se parecia em nada. Esse truque, é
claro, era parte de seu inegável charme com as mulheres.
Por falar em corpos, Gold Coast era uma aula prática ao ar
livre de como eu estava destruindo o meu por causa do surfe.
Olhando ao redor para os australianos que passavam muito
tempo sob o sol tropical para o qual eram geneticamente
despreparados — a maioria deles tinha ascendência no norte
europeu —, eu conseguia ver meu próprio e lamentável futuro
médico. Grande parte dos surfistas, mesmo adolescentes,
parecia ter pterígio — catarata causada pelo sol — nublando
seus olhos azuis. As orelhas escamosas, os narizes roxos e os
braços assustadoramente manchados dos de meia-idade eram
um bom alerta: carcinomas basocelulares (se não carcinomas de
células escamosas, se não melanomas) à frente. Eu mesmo já
tinha pterígio nos dois olhos. Não que eu tomasse alguma
medida preventiva ou que surfar em lugares mais frios fosse
necessariamente menos danoso. Meus anos no mar congelante
em Santa Cruz me causaram exostoses — crescimentos ósseos
no canal auditivo, conhecidos como “ouvido de surfista” — que
constantemente retinham água do mar, provocando infecções
dolorosas, e que viriam a exigir três cirurgias. E havia também a
lista habitual de ferimentos causados pelo surfe: arranhões,
assaduras, ralados nos recifes, um nariz quebrado, rompimento
da cartilagem do tornozelo. Eu não dava nenhuma importância a
isso na época. Tudo o que queria do meu corpo era que remasse
mais rápido e surfasse melhor.

***

Em Kirra, me tornei uma máquina de remar. Meus braços


basicamente pararam de se cansar. Conhecer a corrente da
costa ajudava. Ela era constante, mas tinha caprichos, pontos
fracos, redemoinhos — às vezes, em marés diferentes, até
mesmo intervalos lentos e profundos um pouco depois da
arrebentação —, e seus padrões mudavam de acordo com o
tamanho e a direção do swell e o movimento da areia. Havia
relativamente poucos caras explorando esses caprichos, e
passamos a nos conhecer. Competíamos tanto, tentando dar o
máximo em cada braçada, que era raro nos falarmos, mas um
arranjo grosseiro de divisão de ondas emergiu mesmo assim, a
partir de alguma combinação de necessidade e respeito.
Comecei a pegar mais ondas. E a aprender o que fazer com elas.
Em geral, era o contrário de surfar em Tavarua. Aquela era
uma esquerda vazia e imaculada sobre um recife de coral que
quebrava com fartura paradisíaca. Esta era uma direita de fundo
de areia com um crowd absurdo na Miami Beach australiana. E
ainda assim as duas tinham ondas longas, exigentes,
superlativas que demandavam manobras rápidas e habilidosas e
recompensavam o estudo atento. A chave para surfar Kirra era
entrar na seção selvagem a toda velocidade, surfando perto da
parede — botando para dentro — e depois, se você conseguisse
entrar, permanecer calmo no tubo, com fé de que poderia apenas
cuspi-lo para fora. Ele normalmente não fazia isso, mas peguei
ondas que me provocavam duas, três vezes, com o buraco da luz
do dia correndo à minha frente, mais rápido que eu, e em
seguida fazendo uma pausa e retornando como um milagre em
minha direção, o lip em movimento aparentemente se abrindo
como a íris da lente de uma câmera até que eu estivesse quase
fora do buraco e depois se revertendo e fazendo tudo outra vez,
recuando em belo desamparo e voltando com uma esperança
ainda mais linda. Esses foram os tubos mais longos que peguei
na vida.
O que levantava a questão da gratidão. A melhor coisa a fazer,
de longe, se você saísse voando de um tubo era nada. Continuar
surfando. Agir comose coisas desse tipo acontecessem com
você o tempo todo. Era difícil, se não impossível. A liberação
emocional de uma pequena comemoração era praticamente uma
necessidade física. Talvez não um arrogante soco no ar ou
braços erguidos em estilo de comemoração de gol, mas alguma
coisa para reconhecer que algo raro e profundamente
emocionante havia acabado de acontecer. Em um dos maiores
dias que tivemos em Kirra, quando as séries estavam espaçadas
e quebrando um pouco mais fundo, com água muito mais azul
que o normal, entrei em um tubo alongado, não cavernoso, e vi o
lip à frente começar a quebrar, borrifando água. Baixei a cabeça
e me agachei, esperando o golpe, mas mantive a trajetória e
consegui me espremer. Quando saí, aturdido, levantando e
tentando permanecer tranquilo, percebi Bryan, entre os surfistas
que remavam, dar uma olhada para trás. Ouvi alguns assobios,
mas nada dele. Mais tarde, eu lhe perguntei se vira a onda. Ele
disse que sim. E falou que eu tinha exagerado na comemoração,
que eu saíra com as mãos erguidas em oração. Bem ridículo.
Expliquei que aquilo não era rezar. Era apenas um
agradecimento. Minhas mãos estavam juntas, não erguidas.
Fiquei mortificado. E também com raiva. Era infantil dar
importância a isso, mas o desdém dele por minha euforia parecia
maldoso. Mesmo assim, jurei nunca mais comemorar, não
importasse quão fantástica a onda fosse.
Ser fantástico é relativo, é claro. Naquele mesmo swell
grande, talvez naquela mesma tarde, eu estava caminhando de
volta depois de uma onda muito longa que me levara a meio
caminho de Bilinga, a cidade seguinte ao norte — ela me
carregou para tão longe que remar de volta pareceu tolice. Eu
decidira andar até Kirra e tentar entrar na água perto do pico.
Não havia mais ninguém na praia. O swell estava chegando ao
auge, o vento estava terral, as ondas pareciam ininterruptas.
Bem depois da arrebentação, vi um surfista minúsculo de calção
vermelho entrar em um grande tubo azul, sair, desaparecer e
emergir outra vez. Era um cara que eu nunca vira, surfando a
uma velocidade que eu raramente via, se é que já tinha visto. Ele
continuou fazendo aquilo: desaparecer, emergir. Parecia surfar
no lugar errado da prancha — muito para a frente —, mas, de
algum modo, se movia dali e fazia pequenos ajustes que o
mantinham no tubo por um tempo absurdo. Ele seguia em frente,
e sua postura, pude ver quando se aproximou, era relaxada,
quase desafiadora. Não comemorava nenhum dos tubos que
emendava. O cara estava pegando uma das melhores ondas que
eu já vira e agia como se merecesse aquilo. Na verdade, eu não
conseguia entender tecnicamente nem metade do que ele fazia.
Viradas de pé no bico no interior do tubo? Aquilo me lembrou da
primeira vez que vi uma pranchinha em ação: Bob McTavish em
Rincon. O que eu não sabia era que aquele garoto de calção
vermelho era o recém-coroado campeão mundial, Wayne
“Rabbit” Bartholomew. Ele era local, recém-chegado do circuito
internacional de campeonatos. Fisicamente frágil, mas corajoso
em ondas grandes e absurdamente talentoso, ele era o Mick
Jagger do surfe, elogiado sem parar nas revistas por fazer poses
de astro do rock em situações críticas. Crescera surfando Kirra, e
a onda que eu vi tinha sido uma aula de alto nível sobre como
aquilo podia ser feito se você por acaso fosse o melhor surfista
do mundo.

***

A temporada de turismo de verão estava terminando no Patch.


Bryan e eu tínhamos guardado dinheiro suficiente para seguir em
frente. Estávamos ansiosos para fazer uma grande viagem pela
Austrália. Nosso carro, no entanto, não. A bomba d’água estava
nas últimas, fazendo com que o veículo aquecesse. Bryan
encontrou uma bomba usada em um ferro-velho. Nós a
instalamos, largamos os empregos, nos despedimos das
pessoas e, em meia hora, fizemos nossa mudança de Bonnie
View Flats. Bryan fez uma pausa ao fechar a porta e disse, com
uma casualidade estudada: “Vamos chamar esse tempo aqui de
era.” Uns quinze quilômetros à frente na estrada, o mostrador de
temperatura voltou a acusar calor. Enfiei um pedaço de fita crepe
em cima dele, bloqueando as más notícias. Em seguida, escrevi
na fita: “Ela vai ficar bem.” Esse era o lema nacional australiano
extraoficial.
Em Sydney, nós nos encontramos com o Alias. Mick, Jane e
seu filho bebê nascido em Fiji estavam ancorados em um canto
tranquilo da baía, perto de Castlecrag. Graham e a namorada
tinham saído para trabalhar. Enquanto tomávamos cerveja e
comíamos camarão, Mick descreveu o esquema para ganhar
dinheiro que eles tinham bolado. Contou que havia muitos
surfistas yuppies ricos em Sydney. O plano era convencer um
pequeno grupo deles a pagar milhares de dólares para um safári
de surfe à Ilha Mágica a bordo do Alias. Eles não saberiam
aonde estariam indo, só que era “a onda mais perfeita do
mundo”. Se a primeira viagem fosse um sucesso, os passageiros
iriam contar aos amigos ricos e o negócio iria decolar no boca a
boca. O segredo, basicamente, seria mantido. O truque seria
convencer o primeiro grupo a abrir o bolso e embarcar em um
avião para Nadi. Fotos seriam de grande ajuda. Ele e Graham
estiveram ocupados demais surfando Tavarua para tirar fotos
decentes. Será que nós, por acaso, não teríamos algumas boas?
Bryan e eu murmuramos que também estivéramos ocupados
surfando e tínhamos poucas fotos, nenhuma delas boa, o que era
verdade. Também era verdade que não sentíamos nenhum
desejo em ver aquele plano ser bem-sucedido.
Seguimos para o sul, surfando e acampando por todo o
caminho pelo sudeste da Austrália até Melbourne, onde
encontramos Sue e os filhos (o marido parecia definitivamente
fora de cena agora) morando com a mãe dela. A casa estava
cheia, por isso ficamos com a irmã mais nova de Sue. Ela era
estudante universitária e vivia com um grupo de punks em um
prédio em ruínas em uma parte ruim da cidade. À noite,
bebíamos e dançávamos com os punks e assistíamos a filmes
antigos (Sargento York) em uma TV preto e branco caindo aos
pedaços que eles haviam descolado. Durante o dia, fomos com a
mãe de Sue a uma maratona internacional de críquete, Austrália
contra Paquistão, e comemos sanduíche de pepino e bebemos
Pimm’s Cup. Bryan, em um momento “por que não?”, deixou que
os punks raspassem sua cabeça. Eles usaram seus cachos
escuros como adorno, pendurando-os em suas orelhas cheias de
piercings. Depois de ficar sóbrio, Bryan anunciou com tristeza
que seu novo nome artístico era Sid Sóbrio.
Seguimos para oeste, na direção da Grande Baía Australiana,
que tem a mais longa linha de falésias do mundo, e da planície
Nullarbor, o maior pedaço de calcário do mundo. Era um local
quente, claro, sem árvores, despovoado. Cruzamos as planícies
de sal e dunas de areia em estradas de terra e acampamos em
um pico de surfe remoto e infestado de mosquitos chamado
Cactus, onde a água era fria e de um azul intenso do oceano
Austral. Havia duas esquerdas longas, uma chamada Cactus e
outra chamada Castles, quebrando perto de um pontal rochoso, e
uma direita excelente a algumas centenas de metros para oeste,
chamada Caves. O swell era sensacional, dia após dia. Em
alguns, era mais que sensacional. O vento era quente, cheio de
poeira e terral, soprando a partir do grande deserto central. Bryan
pegava as esquerdas. Eu usava uma prancha nova agora, uma
rabeta round azul-clara de pouco mais de dois metros que
comprara em Torquay, uma cidade de praia em Victoria. Eu tinha
deixado minha prancha do Pacífico Sul, agora sem
arrependimento, em consignação na loja onde encontrei a rabeta
round. E esperava que ela, feita na Nova Zelândia, pudesse
servir como minha nova prancha para todo serviço. Era leve e
rápida e, em dias maiores em Caves, parecia capaz de aguentar
um drop sério sem derrapar para os lados.
Os outros surfistas em Cactus eram uma mistura corajosa de
viajantes e moradores de outros lugares. Vinham todos de outras
partes mais populosas da Austrália — caras que reconheciam
uma ótima onda, ainda sem crowd, quando viam uma, e não se
importavam em viver no meio do nada. Eles surfavam e viviam
de auxílios do governo, ou pescavam, ou encontravam algo para
fazer em Penong, uma parada de caminhões na autoestrada
pavimentada vinte quilômetros para o interior. Alguns viviam em
barracos feitos de sucata no deserto. Esses caras mandavam no
pico, é claro, mas o local ainda não estava cheio, e nós os
achamos surpreendentemente generosos com as ondas. Alguns
podiam ser até faladores. Um deles me contou uma história — a
título de advertência — protagonizada por seu amigo Moose, que
um dia tomou uma vaca ao ser rabeado por um surfista
acampado. Moose saiu da água sorridente, mas em seguida
remou para terra, entrou em sua picape e passou várias vezes
por cima da barraca do visitante infrator antes de voltar para o
pico, ainda todo sorridente. Passei a tomar cuidado para não
entrar na onda de Moose.
Havia outro surfista local conhecido como Madman. Ele tinha o
cabelo cortado à máquina e uma quantidade anormal de energia,
remando de um lado para outro à procura dos picos mais
sinistros na extensão ampla e cheia de bolhas de Caves, que
quebrava com quase dois metros e meio e tinha ondas que
brotavam do nada. Meu informante disse que Madman certa vez
rompera o leash em um dia grande, mas, com muita raiva para
sair da água e consertar, havia continuado a surfar, simplesmente
segurando a cordinha arrebentada entre os dentes e se
agarrando à prancha dessa forma. Então um caldo feio arrancou
o leash de sua boca, junto com dois dentes da frente. Madman
depois sorriu para mim, por nenhuma razão aparente,
confirmando que os dentes em questão não existiam.
Cactus, como o resto da costa de Nullarbor, é conhecido por
grandes tubarões-brancos — as pessoas os chamavam de
grandes brancos. Conheci um cara na água que disse ter sido
atacado por um grande branco cinco anos antes no exato ponto
em que estávamos parados. Era simpático — nenhum Madman
ou Moose —, e fiquei inclinado a acreditar nele. Contou que o
tubarão na verdade mordera apenas sua prancha, mas que ele
se machucara quando o animal a sacudiu, se cortando
principalmente nas partes quebradas, as bordas afiadas de fibra
de vidro da prancha. Aquilo acontecera em meados do inverno, e
ele disse que a roupa de neoprene salvara sua vida. Ainda
assim, precisou tomar cento e cinquenta pontos e ficou um ano e
meio longe da água. Ele falava que um raio nunca cai duas vezes
no mesmo lugar, por isso agora surfava ali sem medo. Por mais
que eu tentasse, depois de ouvir sua história, não consegui mais
sentir a mesma zona cármica de segurança.
Cactus não me atraiu como lugar para morar, mas me lembrou
de outros locais de exílio de surfistas que eu encontrara no
Havaí, no Oregon, em Big Sur e no sudoeste rural de Victoria. As
pessoas chegavam atrás de ondas e ficavam. Elas aprendiam
sobre o lugar e descobriam maneiras de sobreviver. Algumas se
tornavam, com o tempo, membros respeitados da comunidade
local; outras permaneciam à margem. Eu surfara alguns picos,
em especial a baía de Honolua, onde a onda despertava
tamanha devoção que eu podia considerar renunciar a todas as
outras ambições para surfá-la, toda vez que quebrasse, para
sempre. Havia outros locais lindos com outras ondas boas ainda
vazias, locais onde a vida era barata e, a princípio, parecia fácil.
Achava que eu podia acabar em uma dessas. Mas aí havia
Tavarua. Bryan e eu continuávamos nunca dizendo o nome. Ela
existia fora do tempo. Nunca pensei em voltar a viver em Fiji.

***

Mas eu me perguntava o que estava fazendo com a minha vida.


Tínhamos partido havia tanto tempo que eu me sentia desligado
de qualquer explicação possível para aquela viagem. Sem dúvida
não eram mais férias. De que eu estava tirando férias?
Conseguira um ano de licença da ferrovia, que terminou quando
estávamos em Kirra. Largar oficialmente o emprego de ferroviário
e minha preciosa data de efetivação — 8 de junho de 1974 —
tinha sido inesperadamente difícil no lado emocional. Ainda
acreditava que nunca conseguiria outro emprego tão satisfatório
e que pagasse bem. Mas estava feito. Eu entrava em pânico às
vezes, convencido de que estava desperdiçando minha
juventude, perambulando sem rumo no lado oculto da lua
enquanto velhos amigos, colegas de turma, meus camaradas,
estavam construindo vidas, carreiras, tornando-se adultos nos
Estados Unidos. Queria, de algum modo, ser útil, trabalhar,
escrever, ensinar, realizar grandes coisas — o que tinha
acontecido com isso? Sim, eu sentira o impulso, quase a
necessidade, de fazer uma grande viagem para surfar. Mas ela
precisava mesmo durar tanto tempo?
Nosso plano era ir para Bali em seguida. Ondas incríveis,
muito barato. Sharon tinha escrito que talvez pudesse nos
encontrar na Ásia em alguns meses. Talvez ela soubesse o que
eu deveria estar fazendo por lá. Mas ela não surfava. Na
verdade, Sharon morria de medo do mar. Será que “surfar” era
mesmo o que eu estava fazendo? Perseguia ondas por instinto,
me sentia apropriadamente eufórico quando eram boas, ficava
completamente imerso em solucionar o quebra-cabeça de um
pico novo. Ainda assim, momentos de clímax eram, por definição,
poucos e a grandes intervalos. A maior parte das sessões não
era nada de mais. O que se mantinha consistente era certa
serenidade que se seguia a uma sessão rigorosa. Era físico,
esse estado de ânimo pós-surfe, mas também tinha um claro
aspecto emocional. Às vezes, era uma leve euforia. Com
frequência, uma melancolia agradável. Depois de tubos
especialmente intensos ou caldos, eu sentia uma vontade forte e
selvagem de chorar que podia durar horas. Era como a totalidade
de sentimentos poderosos que podem se seguir ao sexo sincero.
Em dias bons, eu ainda acreditava que estava fazendo a coisa
certa. Os detalhes particulares dos novos locais me atraíam e
capturavam — o movimento de novas costas, alvoradas frias e
belas. O mundo era incompreensivelmente grande, e ainda havia
muito para ver. Sim, eu às vezes me sentia mal por ser um
expatriado, sempre ignorante, por fora das coisas, mas não me
achava pronto para a vida doméstica, para ver as mesmas
pessoas, os mesmos lugares, pensando mais ou menos as
mesmas coisas todo dia. Eu gostava de me entregar ao
movimento, à incerteza, à possibilidade de fazer descobertas ao
acaso na estrada. E, em geral, gostava de ser um estrangeiro,
um observador, frequentemente surpreso. No dia em que
atravessamos de Victoria para a Austrália do Sul, passando entre
fileiras altas de pinheiros de Norfolk, um verde-escuro sob
nuvens baixas, avistamos uma pista de corrida, estacionamos,
fomos até a arquibancada e assistimos da grade a uma grande
corrida de cavalos, em seguida observamos os jóqueis com suas
jaquetas coloridas segurando as selas sobre as balanças. Atrás
do pub do hipódromo, encontramos uma bola de rúgbi e
começamos a brincar de fazer algumas jogadas de futebol
americano, arremessando espirais estranhas e nos esticando
para agarrá-la, enquanto um grupo de crianças descalças
assobiava. Nossos vistos australianos estavam quase expirando,
e eu, pelo menos, ia lamentar partir.
Bryan e eu tínhamos nossa rotina doméstica, claro, e ela era
frequentemente tensa. Ser amigos por correspondência era muito
mais fácil que ser amigos vivendo juntos. Discutíamos e, a cada
poucos meses, brigávamos feio. Ressentia-me do fato de que
parecia perigoso fazer qualquer coisa fora do comum, qualquer
coisa que fugisse do habitual. Certa manhã em Cactus, com o
vento correndo em paralelo à costa e as ondas ruins, acordei
cedo e saí para uma caminhada à beira-mar, em direção ao
oeste. As piscinas na pedra calcária deixadas pela maré
brilhavam sob a luz nascente. As onipresentes moscas do
outback estavam ausentes, talvez por causa da hora, talvez por
causa do vento. Acabei caminhando bastante e não encontrei
ninguém. Quando voltei ao acampamento, era meio da manhã e
Bryan estava puto. Aonde eu tinha ido? Ele havia preparado e
tomado café da manhã sem mim. Meu mingau de aveia estava
duro e encaroçado. Eu não estava com vontade de dar nenhuma
satisfação. Mordisquei uma maçã. Bryan continuou
resmungando. Explodi. Como ele ousava me dizer quando e
aonde eu podia ir? Infelizmente, cuspi um pedaço de maçã
semimastigada na barraca, mais ou menos de propósito. Bryan
se afastou, enojado. Felizmente ele nunca mencionou a maçã
cuspida outra vez. Essa briga foi tão feia quanto uma parecida
que tivemos na Samoa Ocidental, quando gritei com ele que
nunca mais me dissesse o que fazer e Bryan considerou
seriamente, ele me contou depois, acabar com nossa viagem
pelo Pacífico Sul, que então tinha pouco mais de duas semanas.

***
Partimos para o Never Never — o Território do Norte. Os
australianos nos alertavam a não tentar atravessar o centro
desde que começamos a planejar a viagem, ainda em Gold
Coast. Devíamos principalmente não tentar fazer isso com um
carro pouco confiável. Havia criminosos à espera de viajantes
desavisados. Era um percurso de dias entre paradas à beira da
estrada. Isso, podíamos ver pelo mapa, era um exagero, mas
compramos um galão para levar gasolina extra, uma bolsa de
água e algumas mangueiras sobressalentes, e nosso carro sem
dúvida não era confiável. Superaquecia todos os dias e com
frequência não ligava. Passamos a estacioná-lo apenas em
ladeiras, por mais suaves que fossem, para que pegasse no
tranco, como era geralmente necessário. Quando parávamos em
postos de gasolina, com o radiador fumegando e assobiando, era
comum que os frentistas quisessem verificar o mostrador de
temperatura. Eles enfiavam a cabeça pela janela do motorista.
“Ela vai ficar bem” sempre provocava uma risada.
Seguimos para nordeste partindo de Cactus, por uma estrada
de terra tão ignorada que vimos apenas um veículo — um
caminhão de gado — em trezentos quilômetros. A estrada
esburacada fez a janela traseira do carro chacoalhar com tanta
força que caiu por dentro da porta. Tentamos levantar o vidro e
prendê-lo no lugar, mas nada do que fazíamos parecia durar
mais de dez minutos. Seguimos em frente, com poeira branca de
sal e, depois, poeira grossa e vermelha entrando pela janela
traseira aberta. Tapamos a boca e o nariz com bandanas e
agradecemos por termos enchido o “esky” — uma geladeira
barata de isopor — com cerveja Crown Lager em Penong. As
distâncias entre as cidades do outback eram às vezes medidas
em “tinnies” — quantas latas de cerveja eram necessárias para ir
de uma a outra. Eram pelo menos doze tinnies ao norte até a
estrada principal, também de terra, na qual encontramos um
vilarejo chamado Kingoonya, onde um bar caindo aos pedaços
oferecia os mais bem-vindos hambúrgueres, servidos pela
garçonete mais bonita da Austrália.
Até a estrada principal pelo centro era ruim. Não vimos
pavimentação por quase mil quilômetros. Avistamos um número
enervante de veículos queimados virados nos arbustos e
decidimos ouvir os conselhos, várias vezes repetidos, de que
dirigir à noite sem uma “barra de cangurus” — um mata-cachorro
para cangurus — era um convite à tragédia. Vimos cangurus o
suficiente durante o dia, tanto na estrada quanto saltando
sozinhos pelo deserto. Então acampávamos à noite. Um grande
bando de galahs, aves rosa e cinza parecidas com papagaios,
voou acima de nós certa manhã enquanto nos esforçávamos
para fazer o Falcon pegar.
Demos carona para um andarilho, Joe, que caminhava pela
estrada com uma mochila a oitenta quilômetros de uma
construção. Joe era magro, como se ressequido pelo sol,
profundamente encarquilhado, longe de ser jovem, e eu não o
teria chamado de alegre, mas ele tagarelava o dia inteiro sobre
poços de minas, rios temporários e fazendas de criação de
carneiros onde tinha trabalhado. E bebia metodicamente nossas
cervejas. Perguntei-lhe sobre aquelas moscas loucas. Joe disse
que você nunca se acostumava com elas. E acrescentou que
nem mesmo os negros se acostumavam com elas. Em seguida
pediu que o deixássemos em uma trilha quase invisível que
seguia para leste. Enchemos sua garrafa de água e lhe demos 5
dólares.
Entramos no Território do Norte. Em uma aldeia poeirenta
chamada Ghan, olhei no interior de uma capa de prancha imunda
presa ao teto do carro. Minha nova prancha de rabeta pin estava
ali. Reluzente, azul-clara, ela era uma bela visão, toda maneira e
sinuosa. Conjurava outro mundo, um frescor inimaginável. Nosso
plano era dirigir até Darwin, uma cidadezinha na costa norte,
vender o carro e encontrar um caminho de lá para a Indonésia.
Bryan não tinha terminado de ler toda a pilha de New Yorkers
antes de deixarmos Kirra, e as cerca de cinquenta que faltavam
haviam sido enfiadas embaixo do banco da frente. Às vezes as
pegávamos e as líamos em voz alta — contos, poemas,
resenhas, textos de humor, ensaios, reportagens longas. Muitos
textos, um de nós ou os dois já haviam lido, mas ouvi-los no
outback era diferente. Era um teste. Como aquilo iria funcionar
sob a luz rígida e sem frescuras do deserto? Uma parte
funcionou bem. O texto ainda era forte, as histórias ainda eram
engraçadas. Mas pretensão e excessos se tornaram gritantes
sob aquele exame impiedoso, e certos escritores de repente
pareceram intelectuais pretensiosos. Eles se tornaram hilariantes
sem querer.
Estávamos ficando um tanto cheios de nós mesmos. Aquilo
era como as grandes viagens pela estrada que tínhamos feito
pelo oeste dos Estados Unidos, mas com menos pavimentação e
mais cerveja. A Fire on the Moon, de Mailer, não passou no teste
do outback, o que me aborreceu, pois ele era um dos meus
ídolos. Não ajudou o fato de ele ter sido comparado a Voss, de
Patrick White, um romance extremamente convincente sobre um
naturalista prussiano em uma expedição do século XIX pelo meio
da Austrália. Brincávamos, líamos e atirávamos em vombates
com pistolas de água feitas de plástico verde barato. Eu gostava
do jeito que Bryan dirigia. Ele o fazia com uma postura de
caminhoneiro de longa distância, ereto. Em grandes retas,
deixava uma das mãos na perna. Ele lia com atenção similar —
relaxada e duradoura. Raramente ficávamos sem ter o que
discutir. Mick e Jane haviam rido de nós quando partimos de
Sydney. Viajávamos em comboio com eles até Wollongong à
procura de ondas. Quando chegamos lá, eles disseram que
tinham nos observado por uma hora, os dois gesticulando,
sobretudo eu, sem parar. Eu estava desenvolvendo naquela
viagem uma versão inicial de uma teoria sobre Patrick White,
logo depois de ler The Eye of the Storm. Era a mesma coisa no
Alias, disseram eles, nós dois falando sem parar no ouvido um do
outro, divertindo os australianos.
No lado norte de Alice Springs, paramos para duas andarilhas,
Tess e Manja (a pronúncia correta é mun-yuh). Elas eram
estudantes de pós-graduação de Adelaide a caminho de uma
conferência de mulheres em Darwin. Alegaram não se importar
com as grossas camadas de poeira que enchiam cada canto do
Falcon. Taparam o rosto com bandanas e viajamos juntos por
cinco dias. Tess era uma jovem pequena e usava camisa xadrez
masculina. Era frágil, pálida, masculina, incisiva, com cabelo
escuro curto e um humor seco e perverso, que usava à custa de
caras sinceros e inocentes que encontrávamos em postos de
gasolina e nos pubs isolados onde nos escondíamos do calor do
meio-dia, que se tornara demais para o esforçado Falcon. Tess
foi gentil comigo, com Bryan e com nossas pistolas de água,
mesmo depois que insistimos ser veteranos do Vietnã, não
arrependidos, mas mentalmente perturbados. “Coitadinhos”,
disse ela. Falamos que nossas cicatrizes de surfe eram
ferimentos de guerra. “Nossa, isso deve ter doído. Compre uma
cerveja para a gente.”
Manja era alta, de voz suave, olhos calorosos e magra. Ela ria,
ou pelo menos sorria com indulgência, em todos os momentos
certos. Era ardentemente política, mas pegava leve, daquele
modo tímido australiano. À noite, nós dois fugíamos e
procurávamos um lugar silencioso para estender nossos sacos
de dormir. Ela me contou sobre sua infância. Crescera em uma
fazenda às margens do rio Murray. Caçadores por lá
costumavam atirar em cangurus e wallabies, explicou ela, e, se
encontrassem um filhote ainda vivo na bolsa, davam o bebê para
algum filho de fazendeiro como bicho de estimação. Eram ótimos
animais de estimação — delicados, leais, inteligentes. Ela
costumava vestir seu pequeno wallaby com chapéu e casaco, e
os dois saíam andando e saltando de mãos dadas até a cidade.

***

Nosso idílio virou um inferno em Darwin. Tess e Manja tinham


uma casa onde ficar, algum tipo de comunidade feminista onde
homens não eram permitidos. Tess ficou feliz em me ver pelas
costas. Pelo jeito, eu tinha interrompido um idílio preexistente —
algo que Manja deixara de mencionar. Bryan e eu ficamos em um
camping perto da cidade. Não havia muita coisa em Darwin. Ela
fora arrasada por um ciclone anos antes. A reconstrução
avançava devagar. A cidade supostamente ficava na costa, mas
tudo o que encontramos foi lama, arbustos e águas rasas
parecendo contaminadas. Era um lugar quente, plano e muito
feio. Porém, havia um aeroporto com voos semanais baratos
para Denpasar. Vendemos o carro por 200 dólares para um
bando de mineiros de bauxita iugoslavos. Por algum milagre, o
carro ligou quando eles chegaram para examiná-lo. Trocamos de
camping, sem ter certeza se os mineiros tinham captado o
sentido correto de “à venda no estado em que está”.
Eu sentia falta de Manja. Conseguimos nos encontrar em um
velho hotel que sobrevivera ao ciclone. De repente, eu não queria
deixar a Austrália. Ela falou que seria melhor se eu partisse.
Manja tinha razão. Apareci na comunidade naquela noite sem
ser convidado. Ninguém atendeu à porta. Abri e entrei. Ouvi
ruídos festivos no quintal dos fundos. Cheguei até a porta de trás.
Em um deque de concreto, sob a luz forte da varanda, Manja
cortava o cabelo. A maior parte de suas madeixas louras e
compridas já estava no chão. Tess cortava alegremente o resto.
O novo corte rente de Manja era castanho-claro, e a cabeça dela
ficou muito redonda e de aparência vulnerável, como a de um
bebê. Quatro ou cinco mulheres aplaudiam sua transformação.
Ela sorria de forma boba, bebendo uma cerveja — uma
garrafinha bojuda de Tooheys, percebi, enquanto uma onda de
desespero subia até minha garganta. Devo ter feito algum
barulho. Manja gritou. As outras berraram. Houve brigas,
empurrões e gritos. Eu meio que pensei que Manja pudesse sair
dali comigo. Em vez disso, saí acompanhado da polícia.
Semanas depois, em Bali, recebi uma carta de Manja. Ela se
desculpou por chamar a polícia. Eles eram fascistas, e ela
esperava que não tivessem abusado de mim. Não tinham. Na
verdade, como bons ockers, eles me soltaram com juramentos
de mau gosto sobre solidariedade de gênero. Manja escreveu
que o acidente comigo só havia reforçado sua decisão de não ter
mais nenhum relacionamento com homens. Eu não havia
respeitado os limites dela, o que era muito típico. Eu não tinha
argumentos. Mas ainda gostava dela. Se houvesse escrito que
estava indo me encontrar na Indonésia, eu teria ido buscá-la no
aeroporto.
Bryan Di Salvatore, eu e José, do Equador, em Grajagan, Java, 1979
SETE

ESCOLHENDO A ETIÓPIA

Ásia e África, 1979-1981

Bryan odiou Bali. Ele escreveu uma matéria para a Tracks — que
levava, por tradição, o nome de nós dois, embora eu tivesse
dado apenas uma leve editada no texto — zombando da noção,
na época amplamente divulgada entre os surfistas australianos,
de que Bali ainda era um paraíso imaculado de ondas sem crowd
e com nativos hindus simpáticos. Bryan escreveu que, na
verdade, o local estava repleto de surfistas e outros turistas. Em
Bali era possível “ver europeus de ambos os sexos sem a parte
de cima e de baixo da roupa de banho”, “escutar as mentiras de
surfistas do mundo inteiro”, “contratar um carregador de prancha
e experimentar a emoção estonteante do colonialismo” e “dizer
às pessoas que você é de Cronulla quando na verdade é de
Parramatta” — este último, um subúrbio de Sydney menos legal
que o primeiro.
Eu concordava que Bali estava cheia demais, e a colisão do
turismo de massa com a pobreza indonésia era grotesca, mas
ainda assim o lugar me agradou. Ficamos em um losmen
(hospedaria) barato e limpo na praia de Kuta, comemos bem sem
gastar quase nada e surfamos todos os dias. Encontrei um bom
lugar para escrever na biblioteca de uma faculdade em
Denpasar, a capital da província, e todas as manhãs pegava um
ônibus até lá. Era um refúgio fresco e silencioso em uma ilha
quente e barulhenta. Meu romance avançava. Um vendedor
ambulante com um carrinho azul-turquesa aparecia na porta da
biblioteca ao meio-dia, meu sinal de que era hora de parar. Ele
servia arroz, sopa, doces e satay pelas janelas abertas das salas
do campus. Eu gostava do seu arroz frito — nasi goreng, em
indonésio. À tarde, se houvesse swell, Bryan e eu seguíamos
para a península de Bukit, onde esquerdas maravilhosas
quebravam em frente a penhascos de calcário. Também havia
boas ondas perto de Kuta, mesmo em swells pequenos, e,
quando soprava um vento sudoeste, em uma área de resorts na
costa leste chamada Sanur.
O pico que cravou mais profundamente seus anzóis em mim
foi uma esquerda ampla já famosa chamada Uluwatu. Ela ficava
diante da extremidade sudoeste de Bukit. Havia um templo hindu
do século XI, feito de coral cinza, empoleirado na beira de um
alto penhasco logo a leste da onda. Você entrava no mar na
maré alta através de uma caverna marinha onde batia água.
Uluwatu ficava grande e, nos maiores dias, quando havia um leve
vento terral, as paredes longas e azuis faziam algo que eu nunca
tinha visto. Em pontos distintos e bem separados ao longo da
linha do swell, elas começavam a borrifar com delicadeza bem à
frente de onde você estava surfando — centenas de metros à
frente e a centenas de metros da costa. Aparentemente havia
uma série de contrafortes rochosos estreitos que se projetavam
para o mar a partir do recife interior, formações rasas o suficiente
para fazer uma onda grande borrifar água, mas, pelo menos nos
swells que surfamos, não para fazê-la quebrar. No início era
perturbador, mas depois de surfadas radicais em algumas ondas
maciças que não fechavam, a visão daquelas seções borrifando
ao longe apenas aumentava a alegria de voar pela parte da onda
que quebrava, já que aqueles borrifos distantes na baía logo
iriam se tornar — você passava a confiar — belas seções na laje
interna.
O inside de Uluwatu era conhecido, sem muita originalidade,
como a Racetrack, pista de corrida. Era raso e muito rápido, com
um coral afiado que deixou a marca de suas garras em meus
pés, meus braços e minhas costas. Certa tarde, a onda me
assustou muito. O crowd, que podia ser grande em Uluwatu,
mesmo em 1979, tinha diminuído, o que achei misterioso, já que
o surfe estava excelente. Havia talvez cinco de nós ainda na
água. A maré estava baixa; as ondas, grandes e rápidas. Eu
conseguia ver uns vinte ou trinta caras na falésia, todos
estreitando os olhos na direção do sol poente, o que devia ter
feito com que eu me perguntasse: Por que eles estão olhando e
não surfando? Peguei algumas boas ondas até que uma
respondesse à pergunta que eu deixara de fazer. Era bem mais
alta do que eu, de parede escura, pesada, e eu, ligadão de
testosterona, cometi o erro de forçar uma manobra cavada para
dentro da Racetrack. Toda a água escoara do recife. A maré
estava baixa demais para surfar uma onda daquele tamanho. Era
por isso que todo mundo tinha saído da água. Eu não tinha como
escapar dali, era tarde demais. Não podia mergulhar da prancha.
Não havia água. Peguei o tubo de backside mais profundo da
minha vida. Era muito escuro e barulhento. Não curti. Na
verdade, mesmo quando ficou claro que eu talvez conseguisse
sair, desejei, com uma noção estranha e amarga da ironia
daquilo, estar em qualquer outro lugar da Terra. Deve ter sido um
momento de satori, um raio de iluminação após um treino longo e
paciente. Em vez disso, eu me sentia infeliz porque o medo,
totalmente justificado, tomava meu coração e meu cérebro.
Completei a onda, mas escapei de ferimentos terríveis, se não de
coisa pior, por pura sorte. Botar para dentro tinha sido uma
decisão com pouca probabilidade de sobrevivência. A estupidez
havia me colocado no interior daquele tubo. Se eu tivesse a
chance de fazer aquilo de novo, não faria.
Havia tantos surfistas em Kuta que era como ir a uma
conferência mundial de obcecados por ondas. Todos eles podiam
estar mentindo, mas havia pessoas falando de surfe em praias e
esquinas, em bares, cafés e pátios de losmen, vinte e quatro
horas por dia, sete dias por semana. Max, que uma vez tinha
zombado de mim e de Bryan, teria se divertido com aquela
multidão. Mas achei estranhamente comovente a intensidade
com que um grupo de caras podia falar sobre as linhas de uma
prancha apoiada na parede — seus pontos de liberação, o rocker
—, ou a forma como surfistas costumavam se abaixar para
desenhar no chão de terra a disposição de seus picos de origem
para caras de outros lugares, outros países. Eles sabiam que
suas histórias não fariam sentido se os ouvintes não
entendessem exatamente como um fundo de recife de Perth
pegava um swell de oeste. Eles se perdiam em diagramas com
mais informações do que qualquer um poderia querer. Parte
desse estranho ardor podia ser explicada pela saudade de casa,
ou simplesmente pelas horas incontáveis passadas surfando e
estudando aquele recife em particular, mas boa parte disso
também era, devo dizer, estimulada pelas drogas. Surfistas em
Bali, junto com legiões de mochileiros ocidentais que não
surfavam, fumavam quantidades assombrosas de haxixe e
maconha. Bryan e eu fazíamos parte dos pouquíssimos
abstêmios. A maconha começara a me deixar ansioso na
faculdade. Eu não fumava nada havia uns cinco anos,
provavelmente. Bryan gostava de chamar tudo de “drogas
falsas”, com exceção do álcool.
Eu começara a tentar atrair o interesse de revistas por
matérias de viagens. Minha primeira pauta veio da edição de
Hong Kong de uma publicação das Forças Armadas norte-
americanas chamada Off Duty. Nunca tinha visto a revista
(continuo nunca tendo visto), mas os 150 dólares que me
ofereciam pareciam ótimos. Eles queriam uma matéria sobre
receber uma massagem em Bali. Havia mulheres massagistas
por toda parte em Kuta, com suas cestas de plástico cor-de-rosa
cheias de óleos aromáticos. Eu era tímido demais para abordar
uma delas na praia, onde dezenas de corpos pálidos eram
esfregados o dia inteiro. Mas, assim que mencionei meu
interesse, a família que administrava nosso losmen chamou uma
velha senhora de braços fortes. As crianças do estabelecimento
riram quando ela olhou para mim com um prazer sádico e me
mandou deitar de bruços em uma cama de armar no pátio. Fiquei
realmente assustado quando ela mergulhou aquelas mãos
poderosas nos músculos das minhas costas. Eu havia distendido
um músculo do alto das costas quando trabalhava na ferrovia,
enquanto puxava uma alavanca enferrujada de engate em
Redwood City, que nunca havia sido curado direito. Imaginei
aquela massagista valentona apertando com força a área
machucada e causando um dano ainda maior. Perguntei-me
desconfortavelmente se esse episódio daria ao menos um bom
material para a reportagem. A lesão em si já tinha uma história
um tanto agridoce. Quando aconteceu, meus colegas ferroviários
me aconselharam a não pegar nenhum dinheiro e não assinar
nenhum papel da empresa. Disseram que aquilo podia ser meu
bilhete de 1 milhão de dólares — a peça defeituosa do
equipamento que me permitia processar a ferrovia, ficar rico e me
aposentar cedo. Achei aquele pensamento desprezível. Por isso,
alguns dias depois, quando minhas costas melhoraram, recebi
um cheque, assinei uma liberação e retornei ao trabalho. Claro
que minhas costas voltaram a doer no dia seguinte e desde
então não pararam. Mas a massagista não me machucou. Seus
dedos encontraram o músculo danificado, massagearam e
trabalharam ao redor dele com delicadeza. O músculo parou de
doer naquele dia e ficou semanas sem latejar.
Em determinado momento, fiquei doente. Tive febre, dor de
cabeça, tonteira, calafrios, uma tosse seca. Estava fraco demais
para surfar, me sentia péssimo para trabalhar. Depois de um ou
dois dias, eu me arrastei até Sanur, deitado nos fundos de um
micro-ônibus, e encontrei um médico alemão em um dos grandes
hotéis. Ele disse que eu tinha febre paratifoide, que não era tão
grave quanto a tifoide. Falou que eu provavelmente a pegara por
causa de algo que tinha comido na rua. O médico me deu
antibióticos e disse que eu não ia morrer. Eu quase nunca ficava
doente, o que significava que eu não possuía nenhuma outra
experiência de fraqueza física para servir de parâmetro.
Mergulhei em um sofrimento intermitente, suando, apático, me
autodepreciando. Comecei a pensar, agora com mais desespero,
que tinha desperdiçado a vida. Desejei ter dado ouvidos aos
meus pais. (Patrick White: “Pais, aqueles arquiamadores da
vida.”) Minha mãe sempre quisera que eu me tornasse um
Nader’s Raider — um dos jovens advogados idealistas que
trabalhavam para Ralph Nader, expondo os crimes das grandes
corporações. Por que eu não tinha feito isso? Meu pai teria
gostado que eu me tornasse jornalista. Seu herói tinha sido
Edward R. Murrow. Quando jovem, meu pai trabalhou como
contínuo para Murrow e seus camaradas em Nova York. Por que
eu não dera ouvidos a ele? Bryan entrava e saía do quarto, acho
que olhando desconfiado para mim, enquanto eu chafurdava em
autopiedade. Não, as ondas não estavam muito boas, ele dizia.
Bali ainda era uma droga. Onde estava dormindo? Bryan tinha
conhecido uma mulher. Pelo que entendi, uma italiana.
Recebíamos correspondência — posta-restante — na praia de
Kuta. Mas eu não tinha notícias de Sharon havia semanas.
Comecei a me sentir esquecido, com raiva. Certa manhã, quando
já me sentia um pouco mais forte, fui andando lentamente até o
correio. Havia cartões e cartas da família e de amigos, mas nada
de Sharon. Pensei em lhe mandar um telegrama, mas percebi
um grupo de turistas reunido perto de alguns velhos telefones
presos à parede sob uma placa: INTERNASIONAL. O telefone — que
ideia! Liguei para ela. Era apenas a segunda ou terceira vez que
nos falávamos em um ano. A voz dela era como música de outra
vida. Fiquei em transe. Ela e eu trocamos várias cartas, mas a
grande e delicadamente equilibrada distância entre nós dois
desmoronou quando Sharon murmurou em meu ouvido em
tempo real. Ela ficou assustada quando eu disse que estava
doente. Eu tinha que melhorar. Sharon disse que ia me encontrar
em Cingapura no fim de junho. Aquela era uma grande notícia.
Estávamos em meados de maio.
Melhorei.

***

A Indonésia é um lugar grande, com mais de mil e seiscentos


quilômetros de costa exposta aos swells do oceano Índico.
Apenas Bali tinha sido suficientemente explorada por surfistas.
Bryan e eu já estávamos prontos para sair à procura de ondas
em outro lugar. Na extremidade sul de Java, restava uma floresta
conhecida como Grajagan. Um americano, Mike Boyum, montara
acampamento ali em meados dos anos 1970, mas não havia
notícias recentes dele. Parecia o lugar certo para começar.
Vendemos nossas pranchas australianas extras. Em meio às
hordas de Bali, encontramos dois cúmplices: um fotógrafo
californiano de origem indonésia chamado Mike e um
equatoriano louro e goofy chamado José.
Foi uma expedição difícil. Compramos suprimentos em uma
cidade no leste de Java, Banyuwangi, a grande distância da
costa. Barganhar veementemente parecia ser a norma local para
toda transação, pelo menos com orang putih — homens brancos.
O domínio de Mike de bahasa indonésia, a língua local, que no
princípio achamos ser bom, se desintegrou sob pressão. Tornei-
me o pechinchador-chefe. (A língua indonésia é fácil de aprender
se você não se importar de falar mal. Não tem tempos verbais e,
em grande parte do país, não é — ou pelo menos não era na
época — a primeira língua de ninguém, o que ajudava a nivelar
as coisas para um estrangeiro.) Na costa, no vilarejo de
Grajagan, precisamos de um barco para fazer a travessia de uns
quinze quilômetros da baía até a onda. Mais muitas horas suadas
de barganhas ferozes. Os moradores do vilarejo afirmaram ter
visto surfistas antes, mas nenhum no ano anterior ou perto disso.
Escrevi um contrato em meu diário, que um pescador chamado
Kosua e eu assinamos. Eles nos levariam até o outro lado por 20
mil rúpias (32 dólares) e voltariam para nos buscar em uma
semana. Também forneceriam oito galões de água doce. Nós
iríamos no dia seguinte, às cinco da manhã.
O barco em que navegamos não era nada como os delicados
e coloridos jukungs com flutuadores que pescavam em Uluwatu.
Era uma fera de casco largo e fundo pesado, movida não por um
pedaço de vela, mas por um motor de popa velho, grande e
barulhento com um eixo de hélice estranhamente longo. Levava
uma tripulação de dez pessoas. Em cinco minutos de viagem, o
barco virou nas ondas em frente à aldeia. Ninguém se machucou,
mas todo mundo ficou irritado e muita coisa se molhou. Kosua
quis renegociar nosso contrato. Tentou argumentar que aquela
viagem era mais perigosa do que deixamos transparecer. Essa é
boa, pensei, depois de um acidente em um banco de areia do
qual ele tinha que desviar sempre que zarpava com seu barco.
Então barganhamos por mais quase um dia inteiro, até que as
ondas diminuíram. Depois partimos.
O pico de surfe Grajagan, conhecido na região como
Plengkung, ficava longe em um local não pavimentado, onde se
dizia que a floresta densa era um dos últimos redutos do tigre-de-
java. Kosua nos deixou na praia em uma enseada a cerca de um
quilômetro de estruturas caindo aos pedaços que tinham sido o
acampamento de Boyum. A maré estava baixa, e havia ondas
muito bonitas quebrando além de um recife largo e exposto
depois do acampamento. Começamos a arrumar nossas coisas
no calor enquanto Kosua se afastava com o barco. Os galões de
água eram terrivelmente pesados. O máximo que pude fazer foi
arrastar um pela areia. Mike não conseguiu nem isso. Bryan
carregou dois de uma vez. Eu sabia que ele era forte, mas aquilo
era ridículo. Mais impressionante ainda: após chegarmos ao
acampamento e todos cairmos prostrados na sombra, morrendo
de sede, Bryan abriu um galão, provou a água, cuspiu-a e disse
calmamente: “Gasolina.” O impressionante foi sua calma. Ele
percorreu a fileira dos enormes recipientes. Dos oito, seis eram
impróprios para beber. Tinham sido usados para levar
combustível e não foram limpos corretamente. Bryan arrastou os
dois galões de água potável para a base de uma árvore. “Parece
que o racionamento vai ser rigoroso”, disse ele. “Querem que eu
cuide disso?”
Mike e José pareceram chocados. Eles ficaram em silêncio.
“Claro”, falei.
Toda a aventura malsucedida de Grajagan foi desse jeito.
Erros, contratempos, sede constante e Mike e José meio
catatônicos. Bryan e eu parecíamos, em comparação,
experientes e cheios de recursos. O padrão começara em
Banyuwangi. Enquanto eles ficavam amedrontados, Bryan e eu
dividimos tarefas e cuidamos das coisas. Nós dois viajávamos
juntos havia mais de um ano, e era bom — até libertador —
saber que podíamos confiar completamente um no outro. Por
isso, eu sabia que a divisão da água seria justa até a última gota.
Boyum construíra várias casas de bambu. Todas tinham
desabado, menos uma. Dormimos cuidadosamente na que
restava de pé. Não vimos tigres, mas ouvimos animais grandes à
noite, incluindo touros selvagens conhecidos como banteng e
javalis que soavam raivosos em torno do tronco da nossa árvore.
Dormir no chão estava fora de questão.
Nosso azar continuou durante nossa primeira sessão de surfe.
Bryan saiu de uma vaca segurando a lateral da cabeça, com o
rosto lívido de dor. Suspeitamos de um tímpano estourado. Ele
ficou longe da água pelo resto da semana.
Tentei lhe assegurar que as ondas não estavam tão boas
quanto aparentavam, e era verdade. Pareciam incríveis —
esquerdas cavadas muito, muito longas, com um metro e oitenta
nos menores dias, mais de dois metros e meio quando o swell
pulsava. Hoje em dia acho que José e eu estávamos surfando no
lugar errado. Para mim, era natural me mover acima no pico, em
direção à sua extremidade, para o primeiro lugar onde era
possível pegar uma onda. Grajagan era grande, cheia de seções
e gorda mais para cima, mas foi para onde eu fui, e José seguiu
meu exemplo. Achei que iria conseguir conectar algumas das
partes mais rápidas da onda mais à frente. Só que eu raramente
conseguia. Sempre havia pontos onde a onda morria, depois
seções impossíveis. Eu estava lendo o recife de maneira
completamente equivocada. Nunca me ocorreu ir para o inside,
encontrar um canto ali onde um pico surfável levasse a uma onda
mais limpa e que abrisse melhor. No maior dia, José não quis
surfar, e Mike, que quase nunca deixava seu mosquiteiro, me
convenceu a remar até onde estava realmente grande. Ele até
me convenceu a usar um pequeno colete branco de neoprene
que carregava. Mike disse que faria um belo contraste com a
água azul-turquesa e meus braços morenos. Peguei uma onda
monstruosa, contrariando meu bom senso, mal conseguindo
dropá-la em minha confiável prancha neozelandesa de rabeta
round. Mike disse ter batido a foto, embora eu nunca a tenha
visto.
Na verdade, a única vez que eu soube com certeza que havia
filme em sua câmera foi um ou dois anos mais tarde, quando
alguém me mandou uma foto de página inteira feita por Mike em
uma revista americana de surfe. Lá estava Grajagan vazia, na
maré baixa, e eu parado de pé em primeiro plano, com a prancha
de rabeta round embaixo do braço. As ondas, como sempre,
pareciam magníficas.
A frustração é uma parte grande do surfe. É a parte que todos
costumamos esquecer — sessões idiotas, ondas perdidas, ondas
estragadas, calmarias aparentemente infinitas. Mas o fato de a
frustração ser o tema principal do meu surfe durante uma
semana de ondas grandes, limpas e vazias em Grajagan é tão
improvável para outros surfistas que eu não me esqueci disso.
Bryan também nunca acreditou.

***

Meus pais tinham mandado para mim e para Bryan dois bonés
de um filme para TV no qual tinham trabalhado, Vacation in Hell.
As pessoas perguntavam o que a expressão significava. Meu
bahasa indonésio não permitia uma boa tradução para “férias no
inferno”. Bryan passou a responder: “Você está olhando para
elas, colega.”
Mike voltou direto para Bali com José. Quando partimos, ele
havia nos avisado solenemente: “A Indonésia é uma armadilha
mortal.” Isso foi melodramático, mas não era fácil viajar por Java
e Sumatra com pranchas de surfe gastando pouco. Todo ônibus
e toda van que pegávamos era desconfortável e insultante de tão
lotado, os motoristas tentando, literalmente, espremer os
passageiros para obter mais lucro. Ainda assim, eu precisava
reconhecer o heroísmo dos meninos condutores, seus feitos
incríveis de equilíbrio, agilidade e força, agarrados à beira da
porta, em velocidades de arrepiar, pechinchando as tarifas em
altíssima velocidade e, em alguns casos, suas relações públicas
habilidosas, que mantinham os fregueses ao menos parcialmente
satisfeitos. Descalças, vestindo trapos, essas crianças brilhantes
faziam com que os ferroviários americanos, sempre
desembarcando com cuidado de locomotivas e vagões de carga
de acordo com manuais de instruções detalhados, sempre
usando nossas botas de bico de aço, parecessem extremamente
cautelosos.
Pegamos um trem que atravessava parte de Java. Com
metade do corpo para fora da janela a fim de pegar vento, fiquei
impressionado com a maneira como, para alguém vendo de um
trem a Indonésia, o principal negócio da nação parecia ser
defecar. Todo córrego, rio, barragem e campo de arroz parecia
ter uma fila de fazendeiros e aldeões placidamente agachados.
Era um tour pelo maior e mais pitoresco banheiro do mundo, e
aquilo me lembrou de que eu tinha jurado ser mais cuidadoso
com o que comia e bebia após minhas loucuras paratifoides em
Bali. Porém, ainda me alimentava em barracas de rua e nos
hospedávamos em lugares suspeitos. De qualquer forma, eu
havia contraído malária em Plengkung, mas ainda não sabia
disso. Nesse meio-tempo, um médico em Jacarta disse que o
tímpano de Bryan estava mesmo rompido. Ele lhe deu algumas
pastilhas e disse que logo ficaria bom.
A região rural do sudeste da Ásia, com seu tropicalismo
intenso, trazia pequena semelhança com a Polinésia rural. Mas
as diferenças entre os dois lugares eram bem mais
pronunciadas. Vastas civilizações haviam se erguido ali nos
excedentes criados por uma agricultura baseada no plantio de
arroz. Centenas de milhões de pessoas viviam e trabalhavam na
área, em sociedades de castas incompreensivelmente
complexas. Comecei a entrevistar algumas de maneira
semiformal — era uma coisa estranha de fazer, sem nenhum
projeto especial em mente, mas eu estava curioso, e elas
frequentemente pareciam satisfeitas em serem entrevistadas —
sobre a história de suas famílias, sua renda, suas perspectivas e
esperanças. Um produtor de arroz perto de Jogjakarta, um
capitão do Exército aposentado, me fez um relato detalhado de
sua carreira, das despesas operacionais de sua fazenda, do
progresso do filho mais velho na universidade. Porém, em quase
toda história que ouvia, eu notava um grosso véu em torno do
período de 1965-1966, quando mais de meio milhão de
indonésios foram mortos em massacres liderados pelos militares
e clérigos islâmicos. Os alvos principais tinham sido comunistas e
supostos comunistas, mas pessoas de etnia chinesa e cristãos
também morreram ou foram desalojados em massa. A ditadura
de Suharto, que emergiu desse banho de sangue, ainda estava
no poder, e os massacres eram história suprimida, não ensinada
nas escolas nem discutida em público. Um motorista de táxi com
pedal em Padang, cidade portuária no oeste de Sumatra, me
contou em voz baixa sobre os anos que passou na prisão por
suspeita de ser esquerdista. Ele tinha sido professor antes do
grande expurgo. Gostava de americanos, mas falou que o
governo dos Estados Unidos tinha ajudado e aplaudido a
matança.
Para nós, Sumatra foi uma mudança refrescante depois de
Java. Mais montanhosa, menos cheia, mais próspera, menos
abafada, pelo menos nas áreas que cruzamos. Tínhamos um
mapa do tesouro que nos fora dado no Pacífico Sul por uma
intrépida kneeboarder australiana que disse ter surfado uma
grande onda em Pulau Nias, uma ilha a oeste de Sumatra. Pelo
visto não era mais um pico secreto, mas um portal-chave que
ainda não havia sido cruzado — nenhuma foto fora publicada.
Pegamos uma barca pequena, espartana e movida a diesel em
Padang. Eram cerca de trezentos e vinte quilômetros até Nias, e
uma tempestade nos atingiu na primeira noite após a partida.
Nós nos balançamos em total escuridão. Às vezes, de forma
aterrorizante, parecíamos perder o controle do barco. Ondas
passavam pelo convés. A única cabine era um pequeno barraco
sujo de compensado para o timoneiro. A maioria dos passageiros
estava enjoada. Mas as pessoas eram de uma força
impressionante. Ninguém gritava. Todos rezavam. Tivemos sorte
por ninguém ter caído no mar e por aquela banheira velha não ter
afundado. Entramos com o ruído intermitente do motor em Teluk
Dalam, um pequeno porto na extremidade sul de Nias, em uma
manhã cinzenta, úmida e quente. Achei que tudo em Teluk Dalam
se encaixaria em um romance de Joseph Conrad. Nias tinha uma
população de quinhentas mil pessoas e não possuía eletricidade.
A onda ficava cerca de quinze quilômetros a oeste, perto de
uma aldeia chamada Lagundri. A kneeboarder estava certa. Era
uma direita imaculada. Ela quebrava em um pontal, mas na
verdade era uma onda de recife, já que não acompanhava a linha
da costa e se erguia nitidamente, uma parede reta como uma
régua quando atingia o recife, e depois se abria em paralelo à
costa, sem seções, por provavelmente oitenta metros, fazendo
um belo tubo com o vento antes de atingir águas profundas. Uma
pequena fileira de coqueiros altos no pontal se inclinava sobre a
água como se quisesse ter uma vista melhor da onda. Era
realmente uma imagem esplêndida. A baía de Lagundri tinha
forma de ferradura e era funda. A aldeia, a menos de dois
quilômetros do pico e separada da praia por um palmeiral, era
composta por uma coleção modesta de cabanas de pescadores,
exceto por uma casa de madeira de três andares, imponente e
bastante ornamentada, com um telhado íngreme bem elaborado.
Era o losmen. Havia quatro ou cinco surfistas hospedados ali,
todos australianos. Se eles ficaram chateados com a nossa
chegada, esconderam bem. Penduramos os mosquiteiros em
uma varanda no segundo andar.
Foi naquela varanda que Bryan me avisou que estava caindo
fora. Lembro que, quando ele disse isso, eu estava lendo uma
biografa de Mark Twain, escrita por Justin Kaplan, que trocamos
várias vezes entre nós. Era uma tarde quente. Estávamos
esperando que o pior do calor passasse antes de cair na água ao
fim do dia. A notícia não foi uma surpresa completa. Bryan vinha
comentando sobre encontrar Diane na Europa durante as férias
de verão dela.
Ainda assim, doeu. Não tirei os olhos do livro.
Quando perguntei o porquê, ele explicou que não era por
minha causa. Que estava apenas cansado. E com saudade de
casa. E de saco cheio de viajar. Diane lhe dera um ultimato, mas
Bryan estava pronto para ir. Ele ia procurar um voo barato em
Cingapura ou Bangcoc e provavelmente partir no fim de julho.
Isso seria em seis ou sete semanas.

***

Nós surfamos. O swell foi incrivelmente consistente durante


cerca de uma semana. O brilhantismo da onda só parecia
aumentar. Era surfável em todas as marés e nunca parecia
mexida. Havia uma pequena corrente contrária que seguia na
direção do mar a partir do fundo da baía e ajudava a manter a
superfície regular em todas as condições. Remar até a onda era
absurdamente fácil. Você caminhava até o pontal, depois da
onda, entrava por uma fenda no recife e chegava ao line-up com
o cabelo seco. Exceto pelo fato de ser uma direita de nível
mundial, era o oposto categórico de Kirra. Não era preciso
enfrentar nenhuma corrente demoníaca. Se todos os surfistas em
um raio de oitocentos quilômetros estivessem na água ao mesmo
tempo, ainda assim não haveria crowd. E enquanto a qualidade
essencial de Kirra era a compressão de tirar o fôlego, a onda em
Nias parecia expansão pura. Ela era um convite a seguir mais
para longe, entrar na onda mais cedo, assumir uma trajetória
mais alta, entrar mais fundo no tubo. O drop era íngreme, mas
fácil. Você precisava apenas encaixar no lip e estar na onda
quando ela quebrava. Não havia tempo para dar grandes
cavadas na parede principal. Era uma onda poderosa, com um
tubo glorioso se você pegasse uma trajetória alta e tivesse o
timing certo em uma onda que se abria. Não era um tubo de alto
a baixo, embora quebrasse com força suficiente para partir
pranchas. A onda não era extremamente longa, como Tavarua,
mas também não era perigosamente rasa. E tinha um toque de
graça extraordinário. Os últimos quase dez metros da parede
principal, logo antes de ela atingir águas profundas, erguiam-se
muito alto. A parede ali era, sem nenhuma razão aparente,
normalmente bem mais alta que o resto da onda. Essa grande
descida verde, em especial seu terço superior, implorava por um
floreio em alta velocidade, uma manobra inesquecível, uma
demonstração tanto de gratidão quanto de habilidade.
De certa forma, Nias foi meu auge como surfista, embora eu
não soubesse disso na época. Eu tinha vinte e seis anos,
provavelmente era mais forte do que nunca, mais rápido do que
jamais seria. Estava na prancha certa, na onda certa. Surfava
com regularidade havia mais de um ano. Parecia que eu podia
fazer qualquer coisa que me passasse pela cabeça em uma
onda. Quando o mar subiu, no final daquela semana, me
arrisquei mais e surfei com mais liberdade. A seção final extra-
alta me permitiu bater no lip em uma altura que eu nunca tinha
tentado, e em geral descia limpo na prancha. Eu sabia que nunca
havia surfado tão solto em ondas daquele tamanho. Eu me sentia
imortal.

***

Embora fosse a estação seca, uma tempestade de dois dias


inundou a aldeia e encheu a baía de água doce barrenta, o que
pareceu matar as ondas.
Fui para a cama me sentindo estranho e acordei com febre.
Supus que fosse uma recaída da febre paratifoide.
Provavelmente era malária. Comecei a me sentir menos imortal.
Talvez a Indonésia fosse uma armadilha fatal mesmo. Três
surfistas australianos tinham descoberto a onda em Lagundri em
1975, e um deles, John Giesel, após diversas crises de malária,
morrera, supostamente de pneumonia, nove meses depois. Ele
tinha vinte e três anos. Um dos dois primeiros caras a surfar
Grajagan, um americano chamado Bob Laverty — o outro cara
era irmão de Mike Boyum — morreu apenas alguns dias depois
de voltar para Bali. Ele se afogou em Uluwatu. Mike Boyum
sobreviveu à Indonésia, mas se envolveu com tráfico de cocaína,
foi para a cadeia em Vanuatu e posteriormente morreu, enquanto
vivia com nome falso, em uma onda espetacular que descobriu
nas Filipinas.
Eu também estava exausto, com saudade de casa e cansado
de viajar. Não me sentia tentado a ir embora da Ásia com Bryan,
mas estava com dificuldade para lembrar por que eu estava ali
exatamente. Havia o surfe, mas isso não ia ficar melhor do que
em Lagundri. Eu simplesmente não conseguia me imaginar
voltando aos Estados Unidos. Copiei uma passagem de Lord
Jim: “Vagamos aos milhares pela superfície da Terra, os ilustres e
os obscuros, ganhando além dos mares nossa fama, nosso
dinheiro ou apenas uma migalha de pão; mas me parece que,
para cada um de nós, voltar para casa deve ser como prestar
contas.” Eu não estava pronto para essa prestação de contas.
Um dos motivos era que eu não podia voltar para os Estados
Unidos sem terminar aquele romance. Pensava nele
constantemente, enchendo diários com tramas, ideias
repensadas, autopunição e exortação a maiores esforços, mas
não tinha escrito nenhum material novo desde Bali. Onde eu
poderia me esconder e voltar a trabalhar? Escrever parecia
justificar, pelo menos um pouco, minha existência — a
extremidade da obscuridade que eu havia perversamente
escolhido. Mas também começava a me preocupar com dinheiro.
Vivíamos com alguns dólares por dia, mas lugares como
Cingapura e Bangcoc eram outra história. Bryan tinha o suficiente
para chegar em casa. Ficar sem dinheiro no Sudeste Asiático
poderia ser terrível. Duvidei que Sharon tivesse muito dinheiro
guardado. Precisaríamos levar uma vida frugal.
Sei que era grotesco, grosseiro, eu reclamar de dinheiro em
Lagundri, onde as ironias envolvendo a Trilha da Ásia nunca
estavam distantes. A Trilha da Ásia era uma grande rota
serpenteante por terra da Europa até Bali, percorrida por
milhares de mochileiros ocidentais desde os anos 1960. Ela
estava sendo partida em pedaços em 1979 pela Revolução
Iraniana, e a invasão soviética do Afeganistão estava prestes a
remover do itinerário outra Shangri-Lá de muita pobreza e repleta
de drogas. Mas a trilha, que incluía uma parada importante no
lago Toba, norte de Sumatra, também contava com uma pequena
ramificação que corria até Nias. Isso ainda tinha pouco a ver com
surfe. Devido à cultura local, que se desenvolvera em relativo
isolamento e incluía alguns megálitos, existia, aparentemente,
uma arquitetura espetacular em madeira dura conhecida como
omo sebua, danças de guerra e aldeias no alto de montanhas
com casas inspiradas nos galeões holandeses dos dias de
comércio de escravos. E, portanto, uma coleção bizarra de
hippies europeus vagava pela estrada costeira passando por
Lagundri. Os aldeões viam todos eles com desconfiança, em
especial os mochileiros desgrenhados. Não era difícil saber por
quê. Ali estava um grande e esquisito membro da elite
governante global, que tinha provavelmente gastado mais em
viagens aéreas do que qualquer um em Nias podia ganhar em
um ano de trabalho pesado, tudo pelo prazer de deixar um lugar
inimaginavelmente rico e limpo por aquele desesperadamente
pobre e insalubre. Ali estava ele, esforçando-se cegamente na
estrada sob uma mochila enorme, desorientado e ignorante,
suando feito um animal. Ele queria ver a Ásia do chão, não da
altura de um Hilton em algum resort refrigerado que qualquer
pessoa sã preferiria. As ambições e aversões complexas que
levavam o pobre mochileiro a viajar mais de dez mil quilômetros
para se submeter a grande esforço e sofrer de disenteria,
insolação, desidratação ou algo pior na selva equatorial —
qualquer coisa para ser um “viajante” e não um “turista” — talvez
fossem impossíveis de decifrar, mas era bem sabido que ele
levava tão pouco dinheiro que mal valia a pena roubá-lo.
Bryan e eu estávamos no mesmo patamar econômico, claro. E
ser um orang putih rico em um mundo pobre e escuro ainda era
irremediavelmente ruim. Ou seja, nós éramos ruins.
A família que administrava o losmen em Lagundri era
muçulmana, algo incomum em Nias, que é predominantemente
cristã. Nas aldeias próximas, as igrejas trepidavam com cânticos
fervorosos. Nas trilhas da floresta, pequenos homens de
expressão séria com facões na cintura levavam grandes sacas
de juta cheias de cocos. Nossos anfitriões eram afáveis e
relativamente cosmopolitas — eles vinham da Sumatra — e nos
alertaram sobre sair da aldeia à noite. Disseram que o
cristianismo local era apenas de fachada. Durante a Segunda
Guerra Mundial, quando a ilha foi isolada do mundo exterior,
congregações voltaram rapidamente à prática pré-colonial e
comeram os missionários holandeses e alemães entre eles. Não
consegui confirmar essa fofoca macabra.
Minha febre se alternava com calafrios. Sentia uma dor de
cabeça constante. Eu estava tomando cloroquina, um profilático
popular contra a malária, sem saber que era inútil contra muitas
cepas locais da doença. Os aldeões indonésios frequentemente
pediam comprimidos sem especificar de que tipo. Vitaminas,
aspirinas, antibióticos — parecia haver uma fé geral nos
comprimidos. No início, eu achava que os pedidos podiam ser
para parentes ou amigos enfermos, ou para armazenar em caso
de doença, mas então vi pessoas de aspecto absolutamente
saudável tomarem qualquer coisa que lhes dessem sem fazer
perguntas. Teria sido engraçado se não fosse tão sinistro. Agora
que eu estava doente, as pessoas me deixavam em paz. Bebês
choravam. Indiferente, eu lia uma coletânea de contos de Donald
Barthelme. Frases ficavam em minha cabeça. “Chamar Bomba, o
menino da selva? Conseguir sua informação?” A execrável
“Rivers of Babylon”, de Boney M., sibilava do toca-fitas de um
adolescente da aldeia.
Eu ouvia Bryan e os australianos conversando. Bryan estava
numa boa. Ele fizera com que inalassem café de Sumatra pelo
nariz. Eu o ouvi dizer: “Ah, é, se um pico de surfe é longe demais
de uma cidade nos Estados Unidos, nós simplesmente
chamamos o Corpo de Engenheiros do Exército e eles mudam o
pico de lugar. Leva dois ou três dias, muitos caminhões, eles
precisam fechar toda a autoestrada. Às vezes, levam a baía
inteira; em outras, só o recife e a onda. Você tinha que ver isso
tudo sendo transportado pela estrada, com os caras ainda
surfando e tudo o mais. Eles precisam ir muito, muito devagar. É
uma operação e tanto.”
Eu ia sentir uma saudade indescritível dele. Bryan disse que
não era por minha causa, mas eu sabia que, em parte, era. Nós
agora colaborávamos quase sem esforço e não brigávamos
havia meses, mas a dinâmica subterrânea da nossa parceria não
tinha mudado. Eu estava atrás de algo, o que quer que fosse. E a
combinação da minha ousadia com o que Bryan chamava de sua
passividade, que ele vinha percebendo desde a Air Nauru e o
Guam Hilton, não lhe fazia nenhum bem. Bryan não queria se
sentir como se estivesse ali só pela diversão. Ele precisava
escapar. Mas como seria aquela viagem longa e estranha sem
ele? Nós dois falávamos uma língua que mais ninguém entendia.
“Uau, uma experiência nova.” Era isso que devíamos dizer
depois de um terremoto ou se alguém roubasse nosso carro,
segundo Teka, de Tonga. Mas dizíamos isso após fiascos
menores: noites infernais em barcas com vazamento, dias de
sede irremediável devido a galões sujos. “Radio Ethiopia” era
uma canção inaudível de Patti Smith, um clichê de um Rimbaud
de segunda mão. Mas valia para todos os hippies falsamente
exóticos que faziam pose — nomes ditos em Nova York de
lugares nunca visitados, muito menos vivenciados. Nós nos
sentíamos superiores a tudo isso, mesmo que de modo vago.
Essas eram pessoas dedicadas a carreiras nas artes, alcançando
o que Bryan chamava de sucesso idiota. Agora ele ia voltar para
os Estados Unidos. Eu ia ficar na Etiópia. Eu o invejava em
silêncio.
Comecei a me sentir mais forte e a fazer pequenas
caminhadas. Em uma trilha na selva, encontrei um velho que
estendeu a mão e, sem dizer nada, deu tapinhas em minha
barriga. Era seu modo de dizer bom dia.
“Jam berapa?” Que horas são? Essa era a pergunta que as
crianças adoravam fazer, apontando para seus pulsos sem
relógio.
“Jam karet.” Hora de borracha. Era uma resposta bem-
humorada clássica, significando que o tempo era um conceito
flexível na Indonésia.
Pessoas que eu encontrava frequentemente perguntavam:
“Dimana?” Aonde você vai?
“Jalan, jalan, saja.” Andando, só andando.
Todo mundo na Indonésia sempre queria saber se eu era
casado. Era rude responder: Tidak (não). Seria indelicado
demais. Desrespeitava o casamento. Era melhor dizer: Belum
(ainda não).
Perguntei-me o que Sharon acharia de Nias. Ela havia sido
intrépida no Marrocos, pronta para dar uma volta pela casbá.
Comecei a dizer às pessoas em Lagundri que eu ia para
Cingapura, mas que voltaria em alguns meses. Elas fizeram suas
encomendas: um relógio Seiko masculino automático prateado;
uma bola de vôlei Mikasa; um livro de hóspedes para o losmen.
Comecei a fazer uma lista das coisas que eu desejaria que
tivéssemos levado: mel, uísque, silver tape, frutas secas, nozes,
leite em pó, aveia. Mais proteína seria bom. Carne e até,
estranhamente, peixe fresco eram raridades em Lagundri.
Nossas refeições eram compostas, em sua maioria, de arroz e
verduras, com pimentas fortes para ajudar a combater as
bactérias. Como todo mundo, comíamos com as mãos. Um
pescador em Java havia me ensinado a melhor maneira de
comer arroz com os dedos. Você usava os três do meio como
canaleta, e a parte de trás do polegar como pá. Funcionava. Mas
eu precisava de mais comida, mais vitaminas. Minha bermuda
caía da cintura.
O sol tornou a surgir. A lama deixou a baía.
Peguei uma carona para Teluk Dalam na garupa de uma
motocicleta. Eu ouvira dizer que havia uma loja na cidade com
um gerador e uma geladeira. Encontrei a loja e pus duas garrafas
grandes de Bintang, a versão indonésia da Heineken, na
geladeira. Caminhei pela cidade, mandei um telegrama para
Sharon ratificando nossos planos de encontro. Então, quando as
cervejas ficaram geladas, eu as guardei em serragem e voltei
correndo para Lagundri. Eu as dei de presente para Bryan na
varanda do segundo andar, ainda geladas. Achei que ele fosse
chorar de alegria. Eu quase chorei. Poucas coisas em minha vida
tiveram um gosto melhor que aquelas cervejas. Nós ficamos até
sem palavras.
Tudo tinha uma sensação de despedida. Bryan me pediu que
tirasse uma foto dele “para os netos”. Ficou parado na praia com
a prancha, olhando o pôr do sol com uma expressão
zombeteiramente heroica. Ele usava um sarongue, que todo
mundo, locais e estrangeiros, costumava usar, mas Bryan, em
geral, não.
As ondas ficaram boas outra vez. Mas isso sempre parecia
acontecer no fim da tarde, a hora dourada. Em nossa última
tarde, sem qualquer discussão, Bryan e eu entramos na mesma
onda — coisa que nunca fazíamos. Surfamos por um tempo, em
seguida nos deitamos na prancha e surfamos a espuma, lado a
lado, através do recife, celebrando com um toque de punhos
enquanto deslizávamos para águas rasas.

***

Cingapura foi um choque depois de três meses na Indonésia. Era


muito organizada, rica e limpa. Quando nos encontramos no
aeroporto, Sharon ficou chocada em ver como eu e Bryan
éramos grosseiros com motoristas de táxi e carregadores de rua.
Tentei explicar que estávamos sofrendo de síndrome de estresse
pós-Indonésia e não sabíamos como agir perto de pessoas que
não quisessem regatear conosco até a exaustão. Era verdade,
mas ela não pareceu convencida.
Nosso quarto de hotel tinha ar-condicionado. Sharon trouxera
uma camisola antiquada, elaborada, branca, com um número
vitoriano de botõezinhos na frente. A camisola podia ser
simplesmente tirada por cima, mas os botões eram inspiradores.
Bryan foi a Hong Kong encontrar amigos, e Sharon e eu
viajamos para Ko Samui, uma ilha no golfo da Tailândia, onde
ficamos em um bangalô na praia. Era um lugar tranquilo, bonito,
budista, barato. (Soube que, posteriormente, centenas de hotéis
foram construídos lá. Na época, havia apenas pescadores e
produtores de coco.) Não tinha ondas nem eletricidade, e era
bom para mergulhar com snorkel. Sharon, recém-chegada do
norte da Califórnia, pareceu um pouco atordoada com o Sudeste
Asiático rural — o calor selvagem, insetos implacáveis, a falta de
confortos pessoais. Ainda assim, estava animada: aliviada por ter
terminado o doutorado, feliz por ter deixado a gaiola acadêmica.
Quando nos conhecemos, ela era especialista em Chaucer, mas
acabou escrevendo uma tese sobre a figura do samurai na ficção
americana moderna. “A extensão da tolerância é imensa”,
Sharon gostava de dizer, citando Philip K. Dick, referindo-se aqui
a seus orientadores de tese flexíveis, ali a práticas sexuais
arcanas, e, mais frequentemente, a um esforço filosófico geral
para compreender o que não era familiar. Ela mesma tinha
profundas reservas de adaptabilidade e certo interesse romântico
pela vida pré-industrial que eu conhecia bem, embora tenha
percebido que o meu havia diminuído. Sentia-me feliz e muito
grato por ela ter ido me encontrar. Sharon anunciou que estava
ansiosa para ir às montanhas no norte da Tailândia e à Birmânia
— Yangon, Mandalay — e disse sim para Sumatra e Nias. Sua
pele começou a perder a palidez enevoada. Seu riso voltou —
aquele riso agudo e baixo, com o final rouco e teatral que era tão
envolvente.
Verdade seja dita, eu me sentia um tanto perdido. Depois da
Indonésia, achei a falta de discussões e o excesso de
privacidade em Ko Samui enervantes. Havia quase tempo e
espaço demais para que nos concentrássemos um no outro. Eu
estava acostumado — profundamente acostumado, àquela altura
— a um tipo diferente de companheirismo. Além da busca
constante por ondas ou, pelo menos, do esforço para seguir na
direção delas. Então essa era a minha nova vida. Estávamos
sendo cuidadosos — talvez até educados demais. Mas tínhamos
levado uma garrafa de uísque de Cingapura e, quando a
abrimos, ficamos mais impulsivos. Eu tinha mudado, me tornado
mais magro e moreno. E não só fisicamente: estava mais
contido, até reservado, o que Sharon achou desconcertante.
Nesse meio-tempo, ela dizia coisas que me irritavam. “Essas
pessoas têm um amor especial pelas crianças”, falou ela um dia,
observando uma família passar por uma trilha de terra. Era uma
coisa doce, ou pelo menos inofensiva, de se dizer, mas me
aborreceu. Parecia se referir a toda a população da Tailândia —
todos os quarenta e seis milhões de tailandeses, talvez três dos
quais ela conhecera. Era apenas um problema de estilo, disse a
mim mesmo. Havia muito tempo, eu falava uma língua diferente:
mais cortante, irônica, masculina, prestando atenção permanente
para não parecer idiota. Eu era fluente nesse dialeto, que tinhas
suas cruezas libidinosas, e precisava aprender, ou reaprender,
uma nova língua compartilhada. Depois de alguns drinques,
Sharon exigiu saber por que fiquei tão fora do normal com ela —
“hipercrítico” talvez fosse a palavra que ela buscasse. Eu era tão
intolerante com Bryan quando ele ficava bêbado? A resposta era
não. Então fiquei calado quando tive pensamentos maldosos.
Não ajudou o fato de estar me sentindo um pouco mal. Em
Cingapura, eu fora brevemente acometido por outra febre, que
um médico disse ser malária. Quando os sintomas passaram,
achei que devia ser um caso leve. Sharon insistiu para que eu
comesse mais arroz e macarrão. Eu era apenas músculos
salientes. Um corpo precisa de algumas reservas de gordura.
Percebi que era ótimo ter alguém cuidando de mim, olhando para
mim daquele jeito.
Seguimos para Bangcoc, onde tornamos a nos reunir com
Bryan, e nos hospedamos em um lugar grande e decrépito
chamado Station Hotel. A cidade era quente, caótica,
empolgante, exaustiva, com táxis fluviais chamativos deslizando
para cima e para baixo pelos canais, templos budistas
impressionantes, ótimo satay de rua e um palácio de aspecto um
tanto europeu. Uma quantidade impressionante de consumo de
droga e pequeno tráfico parecia ocorrer em nosso hotel, em meio
a tanto ocidentais quanto asiáticos. A presença de múltiplos
submundos criminais era palpável em certas áreas de Bangcoc.
Eu tinha algumas pautas da Tracks — matérias sobre a
Indonésia além de Bali — e trabalhei nelas. O crédito de Bryan
estaria em todas — a juventude australiana não esperava menos
— depois que ele desse uma leve editada em meu texto. Mas o
pagamento seria pouco, só quando eles nos encontrassem, e eu
estava cada vez mais preocupado com dinheiro. Após receber
uma incrível restituição de imposto de renda daquele paraíso dos
trabalhadores, a Austrália, eu tinha pouco mais de 1.000 dólares.
Sharon tinha menos que isso. Um golpista alemão com feições
angelicais em Sibolga, Sumatra, se oferecera para comprar todos
os meus cheques de viagem por 60 centavos cada dólar — tudo
o que eu precisava fazer era registrá-los como roubados, e
receberia um reembolso integral —, e eu agora desejava ter
pensado mais seriamente naquela proposta. O Station Hotel
tinha mais golpistas por metro quadrado do que qualquer lugar
em que estivéramos. Talvez eu pudesse vender meus cheques
de viagem ali. Bryan e Sharon rejeitaram a ideia. Era arriscado e
errado, e seria algo que eu não saberia fazer. Tudo verdade,
claro. Mas nosso período como trabalhadores estrangeiros
ilegais em Oz tinha funcionado bem, não tinha?
O noticiário falava muito de uma crise humanitária na fronteira
entre a Tailândia e o Camboja. O exército vietnamita havia tirado
o Khmer Vermelho do poder no início daquele ano, e um grande
número de refugiados fora levado a cruzar a fronteira, onde o
Khmer Vermelho, que voltara para as florestas, tinha forças
lutando contra os vietnamitas e aumentando o sofrimento geral.
Eu me vi examinando atentamente mapas e reportagens,
imaginando o que seria preciso para chegar até lá como
voluntário de uma agência humanitária. Ficava a apenas um dia
de carro. Duas jovens francesas que conheci em um café
estavam indo. Uma era fotojornalista. A outra, enfermeira. Eu não
receberia dinheiro para fazer aquilo e ainda não tinha discutido a
ideia com Sharon, mas ela lera Dog Soldiers, de Robert Stone —
de fato, fora citado em sua tese. A ação literária estava no
Vietnã, ou pelo menos em seus infinitos abalos secundários. Em
meio àqueles planos e sonhos de guerra, tomei minha decisão e
fui até o escritório local da American Express, onde comuniquei a
perda de meus cheques de viagem. O balconista que registrou
meu falso comunicado pareceu cético, e minha boca ficou seca
de medo, mas o golpista alemão estava certo. Recebi um
reembolso completo em um ou dois dias. Ainda assim, não sabia
o que fazer com os cheques originais, que agora eram ilegais.
Fraudar a American Express para mim parecia uma boa ação,
estilo Robin Hood. Eu estava ferrando com uma corporação que
normalmente ferrava com todo mundo. Na verdade, aquilo
parecia bobo em comparação aos feitos de alguns de meus
ídolos literários. Dean Moriarty roubava carros por prazer. William
Burroughs! Bryan e Sharon não ficaram impressionados quando
eu lhes contei sobre meu truque. Sugeriram que eu jogasse os
cheques velhos na privada se não quisesse acabar em uma
cadeia de Bangcoc.
De qualquer forma, tudo foi esquecido na noite seguinte,
quando, em vez de uma cadeia, acabei em um hospital de
Bangcoc. Era um excelente hospital com jardim, o melhor que
meus amigos conseguiram encontrar. Minha memória daquela
noite e dos dias posteriores é turva e difusa. Sei que tive febre
alta, comecei a delirar e estava fraco demais até para atravessar
um quarto de hotel, imagine resistir à decisão de me hospitalizar.
Sei que fiquei horrorizado pela elegância do lugar para onde me
levaram — era uma clínica para diplomatas estrangeiros,
aparentemente —, mas me mandaram com firmeza calar a boca.
A médica era alemã. Ela disse que meu sangue estava “negro de
malária” e que eu deveria ser enviado imediatamente aos
Estados Unidos. Àquela altura, meus amigos hesitaram.
Consegui deixar clara minha completa oposição a essa medida
tão drástica, e eles ficaram relutantes em me contrariar. Houve
uma discussão sobre as minhas chances de sobrevivência e
todos os casos de malária que a médica tinha visto em quarenta
anos na Ásia. Não me botaram em um avião.
Seguiram-se dias sombrios. Febres loucas e latejantes se
transformavam em calafrios trêmulos e gelados. Perdi uma
quantidade absurda de peso, chegando a sessenta e um quilos.
(Tenho um metro e oitenta e oito.) A médica idosa — o nome dela
era dra. Ettinger — era severa, mas gentil. Disse que eu era um
garoto de sorte e que iria sobreviver. Enfermeiras me deram
grandes injeções em ambos os lados do quadril. Eu estava tão
fraco que não saí da cama por uma semana. Paranoia e
depressão tomaram meu cérebro. Não suportava pensar na
conta impagável que se acumulava. Bryan e Sharon me
visitavam diariamente e me divertiam com histórias da Bangcoc
além dos gramados silenciosos e das cercas vivas que eu
conseguia ver. Mas, para mim, era difícil rir ou mesmo sorrir. Eu
me sentia perdido espiritualmente, e a crescente desconfiança de
que estava desperdiçando a vida voltou, vingativa. Desejei que
meu pai aparecesse e me desse algum conselho concreto e
compreensível. Eu iria segui-lo ao pé da letra. Não que eu
quisesse que meus pais soubessem que eu estava doente. E
eles não souberam.
Então Bryan parou de me visitar. Sharon foi vaga sobre os
motivos dele. Bryan estava se encontrando com algumas
pessoas. Cheguei à conclusão de que os dois estavam dormindo
juntos. Repensei muitas vezes em um incidente no Station Hotel.
Bryan estava sentado em nosso quarto enquanto Sharon tomava
banho. Ela saiu nua do banheiro, e Bryan gritou e tapou os olhos.
Ela riu e o chamou de puritano enquanto ele implorava para que
Sharon vestisse algo e mantinha os olhos tapados. Na época,
achei a cena engraçada. Ela sabia que ficava ótima nua e se
divertiu ao chocá-lo. Os dois eram bons amigos, e ela sabia que,
por trás da grosseria de macho, havia certo recato e um senso
estrito de limites em Bryan. Por isso gostava de provocá-lo. Era
só isso. Não havia tensão sexual entre eles, pensei.
Mas talvez eu estivesse errado. Ou talvez Sharon estivesse se
vingando de mim por eu ter sido um babaca egoísta que a
deixara esperando para sempre enquanto perseguia ondas.
Certa vez, desesperada com minhas viagens com Bryan, ela me
chocou, perguntando: “Por que vocês dois não trepam logo e
resolvem isso de uma vez?” Era algo totalmente fora de propósito
e, em seu literalismo insensato, nada a ver com ela. Mas quão
bem eu realmente a conhecia? Por falar nisso, quão bem eu
conhecia Bryan? Nunca lhe contei que Sharon disse isso, mas
podia imaginar a resposta dele se eu tivesse. “Aham, beleza...”
Essa era sua fala favorita quando o assunto era a
homossexualidade masculina, que apenas eu entendia. Mas eu
já havia julgado meus amigos de maneira equivocada e tinha
sido traído sexualmente.
As noites eram piores. Eu me sentia como se estivesse nas
Pinturas negras, de Goya. Demônios pareciam cercar minha
cama, suas sombras nas paredes. Minha dor de cabeça
preenchia o mundo. Eu não conseguia dormir. Meu lado racional
sabia que Bryan e Sharon tinham feito a coisa certa ao me levar
para aquele lugar. Eles provavelmente salvaram a minha vida. Eu
estava recebendo bons cuidados. Mas a conta agora estava tão
além do meu alcance que eu teria sorte se eles — e isso
significava o hospital? A embaixada americana? — me
deixassem comprar uma passagem para casa. Eu voltaria para
os Estados Unidos em desgraça: sem dinheiro, com a saúde
abalada, um fracasso.
No meio de uma noite, bem depois do horário de visitas, Bryan
apareceu ao lado da minha cama. Ele carregava uma grande
sacola de compras e não disse uma palavra. Virou a sacola de
cabeça para baixo e despejou seu conteúdo em meu colo —
muitos maços grossos e sujos de baht tailandês, a moeda local.
Era muito dinheiro. Bryan disse que seria suficiente para cobrir a
maior parte, se não o total, da minha conta hospitalar. Ele parecia
exausto, triunfante, com raiva, um pouco louco.
Eu nunca soube a história toda, mas Sharon me explicou a
ideia geral. Bryan, vendo que minha situação era desesperadora,
revistara minhas bolsas em nosso quarto e encontrara os
cheques que eu comunicara ter perdido. (Em meu delírio, eu me
esquecera havia muito tempo da existência dos cheques.) Então
ele saiu e os vendeu por 60 centavos o dólar para mafiosos
chineses. Não fora uma transação fácil. Bryan se recusara a
entregar o produto até ter o pagamento integral em mãos. A
coisa toda levara dias e se transformara na maior barganha de
todas. Aquilo não era nem um pouco do feitio de Bryan, do
princípio ao fim, e ainda assim ele fora bem-sucedido. Para nós
dois, era uma inversão completa de papéis. Bryan assumiu um
risco enorme, me libertou do hospital e, no processo, se libertou
de mim.

***

Sharon e eu acabamos chegando a Nias. Porém, era temporada


de monções e as chuvas atrapalhavam as ondas. Também havia
quinze surfistas em Lagundri, e descobri a razão disso ao chegar
lá: uma foto arrebatadora da onda impressionante aparecera em
uma revista de surfe americana. A era do semissegredo havia
terminado. Cinco caras logo seriam cinquenta. Muitas pessoas
na aldeia, inclusive crianças, pareciam doentes. Os proprietários
do losmen alegaram ser malária endêmica. Ver pessoas
implorando por quaisquer remédios era ainda menos engraçado
agora. Eu tomava um novo profilático para malária — dois, na
verdade — e ainda mancava devido às injeções que as
enfermeiras me deram meses antes em Bangcoc. Houve alguns
dias de boas ondas. Descobri que tinha recuperado as forças o
suficiente para surfar. O livro de hóspedes, a bola de vôlei e o
relógio foram recebidos com gratidão. Mas esses pequenos
sinais de permuta agora me pareciam horrivelmente sem sentido.
Seguimos em frente, sempre na direção oeste. Pegamos um
navio da Malásia para a Índia, dormindo no convés. Alugamos
uma casinha na floresta no sudoeste do Sri Lanka, pagando 29
dólares por mês. Sharon retirava artigos de sua tese de forma
ostensiva. Retomei o trabalho em meu romance. Compramos
bicicletas chinesas e, toda manhã, eu saía na minha com a
prancha embaixo do braço e descia uma trilha até a praia, onde
uma onda razoável quebrava quase todos os dias. Não tínhamos
eletricidade e tirávamos água de um poço. Macacos roubavam
frutas mais expostas. Sharon aprendeu a fazer um curry delicioso
com nossa senhoria, Chandima. Uma mulher louca vivia em
frente. Ela gritava e uivava dia e noite. Os insetos — mosquitos,
formigas, moscas — e as centopeias eram implacáveis. No
mosteiro budista ao pé da montanha, jovens monges faziam
festas barulhentas, tocando música alta e cincerros até o
amanhecer. Ouvi muita conversa antitâmil — vivíamos em um
distrito cingalês —, mas isso foi antes da guerra civil.
Agora me pergunto se Sharon tinha algum interesse em meu
grande plano de viagem, ou se ela ao menos sabia qual era. O
plano era trivial, por isso nunca o mencionei: minha ambição era
dar a volta ao mundo sem recorrer a muitos atalhos. Eu me
lembro, na manhã em que deixei Missoula, de contar a uma
amiga de lá. Estávamos parados na calçada, cercados por
montanhas indistintas e nevadas, em frente ao café onde ela
trabalhava. Falei que, naquele dia, estava viajando para o oeste,
para a costa. Quando eu voltasse — pausa para efeito
melodramático —, seria do leste. Ela inclinou a cabeça, riu e me
desafiou a fazer aquilo.
Sharon estava interessada na África, por isso nossas ideias
ainda estavam no mesmo compasso. Continuamos seguindo
para oeste. Procuramos um navio para o Quênia ou a Tanzânia,
mas os dois países exigiam vistos que não estavam disponíveis
no Sri Lanka. Acabamos voando para a África do Sul. Em
Joanesburgo, compramos uma perua velha e seguimos para a
costa, em Durban. Acampamos no carro por toda Natal e o
Transkei até a Cidade do Cabo. Eu surfei. Isso aconteceu em
1980, ainda o auge do apartheid. Continuei fazendo minhas
entrevistas informais com pessoas locais que encontrava de
forma aleatória. Ali, essas conversas renderam uma quantidade
enorme de esquisitices: evasivas inescrutáveis de trabalhadores
negros educados e moradores do campo; o racismo mais
relaxado e profundo de colegas brancos de acampamento.
Sharon e eu estávamos em uma curva acentuada de
aprendizado, lendo Gordimer, Coetzee, Fugard, Breytenbach,
Brinks — ou, pelo menos, os trabalhos não banidos desses
autores. Todo surfista era branco, o que não era grande surpresa.
Durante a etapa seguinte de nossas andanças, tivemos uma
ideia ousada: uma grande jornada para o norte, “do Cabo ao
Cairo” por terra. Mas estávamos ficando sem dinheiro.
Na Cidade do Cabo, descobrimos que as escolas locais para
negros sofriam de uma escassez permanente de professores e
que o ano letivo estava começando. Alguém me deu uma lista de
escolas municipais. Na segunda que visitei, a Grassy Park High
School, o diretor, um sujeito tempestuoso chamado George Van
der Heever, me contratou no ato. Eu daria aulas de inglês,
geografia e algo chamado instrução religiosa, começando
imediatamente. Meus alunos, que usavam uniforme e tinham
entre doze e vinte e três anos, pareceram espantados ao ver um
americano branco sem noção parado na sala de aula, calçando
mocassins de plástico do Sri Lanka e uma gravata listrada de 3
dólares comprada naquela manhã no Woolworth’s, mas eles
engoliram as dúvidas, me chamaram de “senhor” e foram, em
geral, cooperativos e simpáticos.
Sharon e eu alugamos um quarto em uma velha casa azul-
turquesa e úmida que dava para a False Bay, no lado do oceano
Índico do Cabo da Boa Esperança. A península do Cabo é um
dedo longo e fino apontando para a Antártida, no Sul. Na base da
península — sua extremidade norte —, há um maciço elevado
espetacular em torno do qual a Cidade do Cabo se desenvolve. A
face norte do maciço é a Table Mountain, que dá para o centro da
cidade. A população negra da Cidade do Cabo tinha sido banida
em massa para uma área desértica cheia de arbustos a leste da
cidade, chamada de Cape Flats — uma das obras emblemáticas
da raivosa e inclemente engenharia social do apartheid. Grassy
Park era uma cidade “de cor” em Flats — uma comunidade pobre
assolada pelo crime e ainda assim muito menos miserável que
algumas das favelas que a cercavam. Vivíamos, por lei, em uma
“área branca”. Como Grassy Park ficava a apenas alguns
quilômetros da costa de False Bay, meu deslocamento para o
trabalho não era ruim. Diante de nossa mansão úmida, havia
uma onda ampla e sem forma, de fundo de areia, que eu surfava
quando não estava ocupado demais corrigindo trabalhos ou
planejando aulas.
O emprego passou a consumir todo o meu tempo. Sharon
pensou em dar aulas também, mas tinha problemas com a
papelada da burocracia. Então soubemos que a mãe dela estava
gravemente doente. Sharon jogou suas coisas em uma bolsa e
voou para Los Angeles. Murmurei algo sobre ir com ela, mas não
considerei de verdade essa ideia. Fazia um ano desde que
Sharon viajara para Cingapura. Tínhamos encontrado um bom
ritmo juntos: nossas curiosidades coincidiam e raramente
discutíamos. Mas eu tinha projetos: um romance, uma volta ao
mundo, lugares em que queria surfar e, naquele momento, dar
aulas em Grassy Park. Os objetivos de Sharon eram menos
imediatos, menos evidentes. Com minha habitual miopia
autocentrada, nunca perguntei o que ela queria. Nunca
conversamos sobre o futuro. Sharon tinha quase trinta e cinco
anos. A verdade era que não combinávamos. Eu, de algum
modo, a mantivera interessada por anos, mas não era o que ela
queria. Enquanto isso, eu achava que ela sempre estaria à
disposição. Não fizemos planos nem juramentos quando Sharon
foi embora da Cidade do Cabo.

***

Uma das razões pelas quais dar aulas me monopolizou foi que
era impossível ensinar usando os livros didáticos que
recebíamos. Eles tinham ranço de propaganda do apartheid e
informações incorretas. O currículo de geografia, por exemplo,
incluía uma seção sobre os vizinhos da África do Sul que os
retratava como colônias portuguesas pacíficas. Na verdade, até
eu sabia que Moçambique e Angola tinham lutado guerras longas
e sangrentas de libertação nacional, haviam expulsado os
portugueses alguns anos antes e agora travavam guerras civis
desesperadas nas quais a África do Sul armava e treinava os
rebeldes. Nossa versão curricular da geografia urbana da África
do Sul era, à sua maneira, pior. Tratava a segregação racial
residencial, por exemplo, como se fosse uma lei da natureza, que
evoluíra pacificamente. Apresentar aquela ficção, que servia ao
regime como fato, em uma comunidade que só existia devido aos
despejos violentos em massa de bairros designados como
“brancos” sem dúvida não era legal. Por isso, mergulhei em
pesquisa, tentando aprender rapidamente esse e outros tópicos,
o que se revelou mais difícil do que o esperado. Muitos dos livros
relevantes eram proibidos. Consegui encontrar uma seção
especial na biblioteca da Universidade da Cidade do Cabo, onde
algumas publicações proibidas podiam ser consultadas, não
emprestadas; mas eu ainda estava, é claro, desgraçadamente
correndo atrás do prejuízo quando se tratava de política e história
local e regional.

Alguns alunos meus da Grassy Park High School, Cidade do Cabo, 1980

Não que meus alunos parecessem especialmente


preocupados com meu conhecimento ou com a falta dele. Todos
se recusavam a se envolver em temas políticos — eu não sabia
se por indiferença ou desconfiança. As exceções estavam entre
os alunos do último ano, sobretudo quanto à instrução religiosa.
Por insistência deles, nunca abríamos as Bíblias, que eram
nossos livros didáticos, mas passávamos a aula tendo
discussões de tema livre. Seus tópicos favoritos eram carreiras,
computadores e os prós e contras do sexo antes do casamento.
Entre os formandos não avessos a falar de política havia um
garoto taciturno e mundano chamado Cecil Prinsloo. Ele sabia
um pouco sobre meus esforços para ensinar algo além do plano
de estudos do governo. Cecil começou a ficar depois da aula
para conversar, me questionando atentamente sobre minha
formação e meus pontos de vista, testando minha compreensão
falha da situação na África do Sul. A única resistência real a
meus esforços para driblar o plano de estudos não vinha dos
meus alunos, mas dos meus colegas de trabalho mais
conservadores. Eles também descobriram que eu não estava
simplesmente preparando as aulas para os exames padrão que
os alunos iriam enfrentar e me informaram que isso era
inaceitável. Eu não sabia o que fazer. Por sorte, nenhum dos
meus alunos iria fazer os exames nacionais padronizados
naquele ano. Ainda faltavam um ou dois anos para eles. Por isso,
o fato de eu ter abandonado o tóxico programa de estudos não
os colocara em risco acadêmico imediato. Tentei me conformar
com a perspectiva de ser demitido em breve. Eu não possuía
nenhuma segurança no emprego — apenas a boa vontade do
diretor, que era bastante conservador. Mas, na verdade, eu não
queria mesmo parar de dar aulas.
Tudo mudou em uma manhã de abril, quando os alunos de
repente começaram a boicotar as aulas, protestando contra o
apartheid na educação. Falei que foi repentino porque me
surpreendeu. Na verdade, o boicote tinha sido planejado por
muito tempo e com muito cuidado. A escola estava coberta de
cartazes: CHEGA DE EDUCAÇÃO DE SARJETA; LIBERTEM TODOS OS
PRISIONEIROS POLÍTICOS. Os estudantes fizeram passeatas,
cantando com punhos erguidos, gritando o chamado e resposta
zulu da luta de libertação:
“Amandla!” (“Poder!”)
“NGAWETHU!” “Para o povo!”)
Em uma grande assembleia no pátio da escola, Cecil Prinsloo
disse à multidão: “Este não é um dia sem aula.” Ele enfatizava
cada palavra. “Este é um dia sem lavagem cerebral.”
Outras escolas de ensino médio de Cape Flats também
participavam do boicote, e o protesto rapidamente se tornou
nacional. Em semanas, duzentos mil alunos rejeitavam as lições,
exigindo o fim do apartheid. Na Grassy Park High, os alunos
continuaram indo à escola todos os dias, organizando, com a
ajuda de professores simpatizantes, um currículo alternativo. Eu
era um dos professores simpatizantes. Com estudantes de mente
revolucionária no controle, meus desvios anteriores do plano de
estudos não pareciam mais negligentes, e parei de temer por
meu emprego. Minhas aulas sobre a Declaração de Direitos
americana lotavam. Foi um período caótico e empolgante.
Mas a empolgação teve vida curta — apenas algumas
semanas. As autoridades foram pegas de surpresa. O primeiro-
ministro, P. W. Botha, gritou e fez ameaças, mas a enorme
máquina de repressão do Estado parecia lenta para pegar no
tranco. Entretanto, depois que pegou, o clima rapidamente ficou
sombrio. Líderes estudantis, incluindo alguns de nossa escola, e
professores de mente revolucionária, incluindo meu colega
Matthew Cloete, que dava aulas na sala ao lado da minha,
começaram a desaparecer — alguns na clandestinidade, a
maioria nas prisões do regime. Chamavam isso de detenção sem
acusação, e o número conhecido de detidos rapidamente chegou
às centenas.
O confronto se agravou. Na Cidade do Cabo, alcançou o
clímax em uma greve geral em meados de junho. Por dois dias,
centenas de milhares de trabalhadores negros ficaram em casa.
Fábricas e empresas foram obrigadas a fechar. A polícia, agora
armada e completamente mobilizada, atacava reuniões ilegais —
e todas as reuniões de pessoas negras passaram a ser
efetivamente ilegais, segundo algo chamado Riotous Assembly
Act (Lei de Assembleias Revoltosas). Incêndios e saques
começaram, e a polícia anunciou que iria “atirar para matar”.
Cape Flats transformou-se em um campo de batalha. Hospitais
reportavam centenas de mutilados e feridos. A imprensa noticiou
quarenta e dois mortos. Muitos dos mortos e feridos eram
crianças. Todas as escolas estavam fechadas, assim como todas
as estradas para Grassy Park. Era difícil conseguir informação.
Quando as estradas foram reabertas, fui de carro até lá. A
destruição em algumas áreas de Flats era vasta, mas nossa
escola estava bem. Encontrei três alunos meus. Eles disseram
que tinham ficado dentro de casa durante a violência.
Aparentemente, nenhum dos alunos de Grassy Park tinha se
machucado, o que parecia um milagre.
Três semanas mais tarde, as aulas foram retomadas.
Estávamos apenas na metade do ano letivo e, como o diretor
sempre nos lembrava, agora havia grande quantidade de
trabalho extra a fazer.

***

Se eu peguei onda enquanto meu mundo se resumiu


abruptamente a uma escola municipal e algumas dezenas de
adolescentes que estudavam lá? Um pouco. Havia boas ondas
no lado atlântico do Cabo, onde a água era surpreendentemente
fria — meus pais me mandaram minha roupa de neoprene.
Swells pesados entravam do oceano Austral com o princípio do
inverno. A maior parte dos melhores picos estava em enseadas
rochosas, alguns deles bem na cidade, junto de elegantes
prédios residenciais. Outros ficavam mais abaixo do Cabo
montanhoso e varrido pelo vento. Meu pico favorito era uma
direita tranquila no interior chamada Noordhoek. Ela quebrava na
extremidade norte de uma extensão magnífica de praia deserta:
uma onda afunilada com uma bela parede interna e um bom
vento sudeste. Em geral a água era de um azul-esverdeado. Eu
às vezes surfava completamente sozinho. Certa tarde, subi a
colina de volta ao meu carro e o encontrei cheio de babuínos. Eu
tinha deixado uma janela aberta. Os macacos haviam ficado à
vontade e não se assustavam com facilidade. Acabei precisando
usar a prancha como espada, porrete e escudo quando eles
começaram a avançar em ataques falsos, exibindo os dentes,
antes de irem embora.
No entanto, o lugar que eu aguardava ficava no Eastern Cape,
cerca de seiscentos e cinquenta quilômetros subindo a costa do
oceano Índico desde a Cidade do Cabo. Chamava-se Jeffreys
Bay, e nenhuma volta ao mundo com uma prancha de surfe seria
completa sem uma parada ali. The Endless Summer, filme de
1964 que desviou as metas profissionais de muitos jovens
surfistas, incluindo a minha, tinha seu clímax perto de Jeffreys,
quando dois surfistas americanos encontravam “a onda perfeita”
em Cape St. Francis. O pico mostrado no filme revelou-se uma
coisa instável, nem sempre surfável, mas em Jeffreys Bay o
negócio era sério: um pico com uma direita longa e da melhor
qualidade, com montes de swells no inverno e um frequente
vento terral. Tentei ficar de olho nas condições e fiz algumas
viagens partindo da Cidade do Cabo para experimentar, sem
pegá-la especialmente boa. Então, em agosto, fui para passar
uma semana depois de ver um mapa meteorológico promissor:
duas grandes espirais de baixa pressão nos Roaring Forties.
Pareciam tempestades geradoras de ondas girando bem na
janela para Jeffreys.
E eram. As ondas bombaram a semana inteira, com o auge
em um dia tão grande que só um cara conseguiu surfar — vários
de nós tentaram e falharam —, e ele só pegou uma onda.
Jeffreys Bay era uma pequena aldeia de pescadores em ruínas,
com algumas casas de verão de alvenaria espalhadas em meio
às babosas. Fiquei em uma pousada castigada pelo tempo nas
dunas a leste da aldeia. Havia quatro ou cinco australianos
também hospedados no local, e descobri que era reconfortante
estar outra vez na companhia tranquila de surfistas australianos.
A grande onda ficava logo ali na praia, um pouco mais para leste.
Havia poucas pessoas por lá — raramente mais de dez surfistas
na água — e, com o tamanho e a duração das ondas,
costumávamos ficar espalhados pelo pico de alto a baixo. Em
algumas manhãs, fui o primeiro a cair na água, passando por
uma fenda que tinha visto os locais usarem perto do pico. Em
geral, havia um vento terral congelante e, ao amanhecer, as
ondas se aproximavam, vindas de um mar ofuscante. Entretanto,
assim que você pegava uma onda, ela lançava uma sombra
densa verde e prateada em seu interior, e quando você se
levantava na prancha, tudo ficava radiante e nítido.
Era uma onda impressionantemente longa. Mais longa até que
Tavarua. E era uma direita — no meu frontside. Os dois picos, na
verdade, não se parecem. Jeffreys é rochoso, mas não muito
raso. É uma onda de parede grande, uma tela ampla para
manobras longas, incluindo cutbacks na direção do lip. É rápida e
poderosa, mas não particularmente tubular — não tem sessões
de quebrar ossos como Kirra. Algumas ondas têm seções flat, ou
balançadas estranhas, ou ficam fracas; outras fecham. A regra,
entretanto, é uma parede em movimento, erguendo-se
continuamente por centenas de metros. Minha prancha
neozelandesa de rabeta pin azul-clara adorou essa onda. Mesmo
quando estava com o dobro da minha altura, dropando contra o
vento, nunca desgarrando. Ninguém quis algumas das maiores
séries naquela semana, pelo menos não no principal ponto do
pico, onde as paredes nos dias grandes eram enormes e
intimidadoras. “Você quer ir?” “Não, vai você!” E o momento
passava, a fera seguia sem ser surfada. Mais abaixo na linha, em
uma junção menos assustadora, alguém podia subir a bordo.
Essas eram as melhores ondas que eu tinha surfado desde
nossa primeira viagem a Nias, mais de um ano antes. Surfar de
roupa de neoprene era diferente, e a famosa Jeffreys nada tinha
a ver com a obscuridade equatorial de Lugundri, mas
tecnicamente era como se minha prancha e eu tivéssemos
recomeçado do ponto exato onde havíamos parado. Grande
parede direita, poderosa, veloz, escolher uma trajetória, acelerar
para ganhar velocidade. Tentar não gritar de alegria.
À noite, arremessávamos dardos, jogávamos sinuca,
bebíamos cerveja, falávamos de surfe. O dono da pousada era
um homem mais velho, um fanfarrão colonial britânico que tinha
sido perseguido da África Oriental até o Sul pela descolonização.
Ele gostava de gim, amava se gabar de todos os africanos que
havia “derrubado da árvore” e ensinava algumas habilidades
úteis, como engraxar botas ou usar uma vassoura. Eu não
aguentava escutar aquele homem. Os australianos, porém, não
se incomodavam, o que me lembrava da coisa que eu menos
gostara na Austrália. Na cozinha do cassino onde eu tinha
trabalhado, todos os outros delinquentes do sul falavam com
desprezo dos “wogs”, uma vasta categoria da humanidade que
incluía europeus do sul. Na época, jorravam refugiados do
Sudeste Asiático — “pessoas de barco” —, e o racismo cáustico
que permeava o assunto em quase todas as discussões que ouvi
em Oz era assustador.
No desenrolar das coisas, acabei retornando a Jeffreys Bay no
inverno seguinte, 1981, e a peguei boa outra vez. Nessa época,
eu estava na África do Sul havia dezoito meses — muito mais do
que jamais esperaria ficar — e, mesmo assim, ainda não tinha
encontrado nenhuma companhia para surfar. Conheci surfistas
na Cidade do Cabo, mas sua obsessão familiar por pegar ondas
parecia, sob as circunstâncias do apartheid, vagamente
embaraçosa, quase infame. Eu não tinha o direito de julgar como
os sul-africanos — brancos ou negros — lidavam individualmente
com sua situação excepcional, mas trabalhar em Cape Flats, ver
mais ou menos de perto o funcionamento da injustiça
institucionalizada e do terror de Estado me afetava
profundamente — entre outras coisas, fazia com que eu me
sentisse exasperado comigo mesmo. Não havia como escapar
da política, e eu não tinha nada em comum politicamente com
nenhum dos surfistas que conheci. Por isso, eu ia atrás das
ondas sozinho.

***

Meus pais viajaram para a Cidade do Cabo avisando com pouca


antecedência e sem serem convidados. Eu não queria que eles
fossem. Estava excepcionalmente ocupado na escola, mas não
era isso. Sentia saudade crônica de casa, ainda mais depois de
Sharon ter ido embora, e fiquei preocupado com o fato de que
ver minha mãe e meu pai — ver o rosto e ouvir a voz deles,
sobretudo o riso de minha mãe — fosse destruir minha resolução
de permanecer naquela trilha solitária de expatriado e de
completar os projetos que escolhera: dar aulas e terminar o
romance.
Também havia a dissonância cognitiva entre o mundo em que
eu vivia e o que eu imaginava ser o mundo deles. Não que eu
tivesse uma visão clara da vida dos meus pais. Eles escreviam
cartas religiosamente, e eu também. Por isso sabia as linhas
gerais, até detalhes, de projetos, contratempos e interesses da
minha família. Meus irmãos estavam na faculdade e também
escreviam. Mas os relatos dos meus pais sobre filmes feitos,
férias tiradas, veleiros comprados pareciam chegar de um
planeta muito distante. Meu pai estivera na corda bamba
profissionalmente alguns anos antes. Ele e minha mãe tinham
aberto a própria produtora, em seguida programas foram
cancelados, acordos fracassaram e o financiamento sumiu. Só
entendi como a situação era ruim quando descobri que os dois
frequentavam seminários neobudistas “est” da moda, oferecidos
por um charlatão autoritário chamado Werner Erhard, que por um
breve tempo encantou grande parte de Hollywood. Essa
descoberta me assustou e, tenho vergonha de dizer, não me
deixou nada contente. Sugeria desespero e tinha uma
semelhança chocante com Los Angeles. (Na verdade, os “est”
foram populares em Nova York, Israel, São Francisco e vários
outros lugares — até na parte branca da Cidade do Cabo!)
Entretanto, agora, o fundo do poço new age dos meus pais
parecia ter ocorrido muito tempo antes. Nos anos seguintes, a
produtora prosperou, os horizontes de meus pais se ampliaram.
Eles faziam filmes dos quais se orgulhavam e trabalhavam com
pessoas de quem gostavam. Isso tudo era ótimo, claro. O
problema era que eu tinha partido havia tanto tempo que a vida
deles agora parecia estrangeira e glamorosa demais enquanto
minha rotina na Cidade do Cabo era muito descolada e modesta.
Eu não estava pronto para alguma versão empolada e jet set dos
meus pais chegando de repente em minha vida humilde e difícil
de professor. Eles entenderam isso, tenho certeza. Mas tudo
tinha um limite — fazia dois anos e meio —, e não tive coragem
de pedir que eles continuassem afastados.
Sorte a minha. Foi maravilhoso vê-los, sem dúvida nenhuma.
E eles pareceram exultantes em me ver. Minha mãe não parava
de segurar minha mão e apertá-la entre as dela. Ambos pareciam
mais jovens, com olhos mais brilhantes e mais ativos do que eu
lembrava — e não havia nada empolado neles. Mostrei a Cidade
do Cabo para os dois, que pareceram fascinados diante de cada
fachada de Cape Dutch e cada placa de APENAS PARA BRANCOS,
cada favela e vinhedo. Àquela altura, eu morava em um quarto
perto da universidade, na encosta leste da Table Mountain. Com
dois dos meus colegas de casa, subimos a montanha — uma
caminhada e tanto — e fizemos um piquenique no topo. Lá de
cima podíamos ver, na Table Bay, a ilha Robben, onde Nelson
Mandela e seus camaradas estavam presos, mas não
esquecidos. (Veicular palavras e imagens deles era estritamente
proibido.) Em seguida, descemos a encosta leste até a praia.
Meus pais insistiram em visitar a Grassy Park. Meus alunos
insistiram ainda mais para que eu os levasse. Então nós fomos
no meu dia de folga. O diretor foi um anfitrião entusiasmado —
ele adorava americanos. Levou meus pais por um tour no
campus, e me assegurei de que parássemos onde estavam
meus alunos, cujos horários sempre os moviam em grupo. Cada
vez que entrávamos em uma sala de aula, todos eles ficavam de
pé na mesma hora, olhando fixamente, e gritavam: “Boa tarde, sr.
e sra. Finnegan.” Eu não sabia o que fazer, por isso eu os
apresentei um a um, percorrendo as fileiras de alto a baixo —
Amy, Jasmine, Marius, Philip, Desiree, Myron, Natalie, Oscar,
Mareldia, Shaun —, provocando sorrisos e rubores no caminho.
Depois de fazer a mesma coisa em cinco ou seis turmas, o
diretor afirmou nunca ter visto tamanha proeza de memória, mas
na verdade não foi esforço algum, e percebi que era um modo
fácil de mostrar a meus pais, sem precisar entrar em detalhes, a
extensão do meu envolvimento com aquelas crianças. Minha
própria sala de aula, a Sala Nova 16, fora assumida por um
grupo de garotas do último ano que tinha preparado um
banquete. Havia uma grande caçarola de curry e uma enorme
variedade de especialidades malaias do Cabo: bredie, samosas,
sosaties, frikkadels, arroz amarelo com passas e canela, frango
assado, bobotie, biriyani. A essa altura, as aulas tinham
terminado, e os outros professores foram convidados a se juntar
a nós. June Charles, minha colega de trabalho mais nova —
tinha apenas dezoito anos e já dava aulas no ensino médio —
guiou meus pais pelos pratos estranhos e saborosos. Nesse
meio-tempo, minha mãe se deu especialmente bem com um
professor de matemática, Brian Dublin, e lhe fez um elogio maior
do que poderia imaginar quando disse que, com a boina e a
barba, ele se parecia com Che Guevara. Brian era um ativista
cujas seriedade e dedicação eu acabei admirando.
Ocorreu-me que meus pais sentiam orgulho de mim. Tudo
bem, não era o Corpo da Paz — ambição inicial da minha mãe
para mim — e sem dúvida não eram os Nader’s Raiders. Mas eu
me tornara o “filho que ajudava as crianças negras oprimidas na
África do Sul”, o que não era nada mau. Eles ficaram
especialmente empolgados com um projeto ad hoc de orientação
profissional que eu começara, sobre o qual souberam tudo por
meu maior fã, o diretor. O projeto nascera de minhas primeiras
conversas com alunos do último ano, que sonhavam com
grandes carreiras, mas pareciam não ter nenhuma informação
sobre faculdades e bolsas de estudo. Escrevemos para
universidades e escolas técnicas por toda a África do Sul e
recebemos montanhas de folhetos, brochuras e formulários de
inscrição, incluindo muitas notícias encorajadoras sobre auxílio
financeiro e “autorizações” que permitiriam a alunos negros
frequentarem instituições anteriormente destinadas apenas a
brancos. O material acabou enchendo toda uma prateleira na
biblioteca e mostrou ser uma leitura popular — e não só entre
alunos do último ano. Com estes, eu tinha trabalhado planos e
estratégias de inscrição que me pareciam bastante promissores.
O que eu não sabia era que as “autorizações” de que
precisávamos eram terrivelmente controversas na comunidade
negra e tinham se tornado, na verdade, objeto de um boicote do
movimento de libertação — ninguém conseguiu me dizer. Na
verdade, o que eu não sabia era muito mais que isso.
Pouquíssimos de nossos alunos do último ano, por exemplo,
iriam se qualificar depois dos exames para entrada na maioria
das universidades nas quais estávamos interessados, entre as
quais a Universidade da Cidade do Cabo. Apesar de invisíveis
para mim, já havia redes de contatos para que alunos do último
ano que se formassem ingressassem no mundo do trabalho ou
de estudos posteriores. No fim, passei a ver meu programa de
carreiras como uma grande bobagem americana, até mesmo, em
certos casos, bem destrutiva, pois encorajava falsas esperanças
ou estimulava os garotos a desafiar boicotes sobre os quais eu
nada sabia.
Mas meus pais, que sabiam ainda menos que eu, acharam
meu trabalho excelente. O que, de um modo triste, foi uma coisa
boa.

***

A remediação de minha falta de informação — minha educação


rasteira em política progressista sul-africana — veio em grande
parte de ativistas como Brian Dublin, Cecil Prinsloo e outros que
depois de algum tempo decidiram confiar em mim. Meu principal
interlocutor passou a ser uma aluna do último ano de outra
escola. Ela se chamava Mandy Sanger. Era amiga de Cecil e
havia sido uma das líderes regionais do boicote. Mandy tinha um
prazer especial em acabar com o que considerava ilusões
liberais em causa própria. À medida que o ano letivo chegava ao
fim e eu não via nada — depois do fim violento e conflituoso do
grande boicote dos estudantes — além de desânimo e recuo do
que todos chamavam de a Luta, Mandy me botou a par da
verdade sobre as lições aprendidas, os compromissos
aprofundados e as organizações nacionais fortalecidas. “Este
ano foi um grande passo adiante, e não apenas para os alunos”,
disse ela. Mandy tinha apenas dezoito anos, mas visualizava o
futuro.
Não havia cerimônia de formatura, nenhum ritual de fim de
ano. Meus alunos foram embora depois das provas desejando-
me boas festas, esperando me ver de novo no ano seguinte.
Porém, eu não iria mais dar aulas. Tinha economizado o
suficiente para retomar minhas viagens, gastando o menos
possível — mas decidi que só depois que eu finalmente
terminasse meu pobre romance sobre a ferrovia. Antes de tomar
essa decisão, planejei passar o Natal em Joanesburgo com
amigos. Meu carro velho não estava apto para a longa viagem,
por isso eu iria pedir carona. Para minha surpresa, Mandy
perguntou se podia ir junto. Parecia que tinha negócios, não
revelados, em Joanesburgo. Não pude negar. A viagem nos
tomou vários dias. Evitamos policiais, dormimos ao ar livre na
savana, discutimos, rimos, ficamos queimados de sol,
ressequidos pelo vento, e encontramos uma miscelânea louca de
sul-africanos. Depois do Natal, fomos de carona até Durban,
onde Mandy tinha mais assuntos relacionados ao movimento
estudantil, outra vez não revelados. Os telefones e o correio não
serviam — a Special Branch, como era chamada, gravava
telefonemas e abria correspondências. Ativistas da resistência
precisavam se encontrar pessoalmente. Depois de Durban,
descemos a costa de carona. No Transkei, acampamos na praia.
Peguei uma prancha emprestada e empurrei Mandy em ondas
suaves. Ela me xingou sem parar. Mas Mandy era atlética e logo
conseguiu ficar de pé sem ajuda.
Ela estava interessada nos meus planos — se eu pretendia
simplesmente ficar viajando para sempre. Respondi que de forma
alguma. Eu logo voltaria para os Estados Unidos. Mas pedi seu
conselho. Será que ela achava que havia algo útil que eu
devesse escrever para leitores americanos sobre a situação na
África do Sul? Sabia que Mandy tinha uma visão prática e
utilitária do que estrangeiros podiam fazer para ajudar na Luta, e
eu mesmo havia assimilado tanto dessa visão que divertir meus
compatriotas com histórias revoltantes do apartheid agora
parecia inadequado ou algo pior. Obviamente, meus leitores não
fariam nada. A causa não iria para a frente. Talvez fosse melhor
se eu apenas escrevesse sobre... bem, sobre algo que eu
conhecesse de verdade. Surfe. Debatíamos essa questão
intermitentemente em nossa grande viagem de carona em um
longo círculo, da Cidade do Cabo à Cidade do Cabo. Mandy
reclamou que eu tinha complicado a visão dela sobre os Estados
Unidos — que ela em geral enxergava como um ogro capitalista
dedicado furiosamente a destruir movimentos progressistas pelo
mundo — com minhas histórias de vida de guarda-freios na
ferrovia na Califórnia. Então, em um ponto ensolarado do
Transkei, observando pescadores xhosa pegarem galjoen com
varas de bambu, Mandy me encorajou a voltar para casa e
descobrir por lá o que eu podia escrever de útil, o que
provavelmente envolvia outros assuntos além do surfe. “E eu
digo isso de surfista para surfista!”

***

Voltei para meu romance. Levei mais oito meses para terminá-lo.
Percebi que meu interesse naquele tipo de ficção estava
diminuindo. A África do Sul havia me mudado, me guiado na
direção da política, do jornalismo, de questões de poder. A única
nota amarga durante a visita de meus pais à Cidade do Cabo
ocorreu quando meu pai me perguntou o que eu estava
escrevendo e então pareceu impaciente ao ouvir que eu ainda
era basicamente um amador. No fim do ano letivo, jurei não
pegar mais empregos durante o dia. Eu viveria de escrever,
ponto. Comecei a desenvolver ensaios, matérias curtas, para
revistas americanas. Não escrevi nada sobre a África do Sul,
embora tivesse uma pilha de cadernos. Queria ir para casa —
onde quer que isso pudesse ser exatamente. Agarrei-me a uma
frase de uma das cartas de Bryan. Ele tinha se mudado de volta
para Missoula e escreveu que havia uma vaga no time de softball
para mim. Uma vaga no time de softball.
Sharon e eu enfim terminamos definitivamente. A mãe dela
tinha morrido, e Sharon conseguira um emprego no Zimbábue
dirigindo uma escola para ex-guerrilheiros deficientes. A longa
guerra de libertação nacional do Zimbábue tinha terminado havia
pouco tempo, e a “construção do socialismo” começara. A
decisão do nosso término foi toda de Sharon. Fiquei mais
aborrecido do que tinha direito. O fim do relacionamento deveria
ter acontecido muito antes.
Meu irmão Kevin apareceu na Cidade do Cabo. Eu o
incentivara a ir. Ainda assim, fiquei paranoico com a ideia de que
nossos pais o haviam mandado para me buscar. Se esse fosse o
caso, o momento era bom. Eu finalmente estava pronto para
partir. Talvez Kevin e eu fôssemos da Cidade do Cabo até o
Cairo. Minha odisseia de surfe tinha acabado. Tentei enviar
minha prancha azul de rabeta pin para os Estados Unidos — eu
gostava muito daquela prancha. Mas enviá-la custava dinheiro, e
eu precisava de cada centavo. Portanto, em vez disso, eu a
vendi. Minha perua velha estava dando problema. Nós a
trocamos por um Rover igualmente velho, porém um tanto mais
robusto.
Depois de me despedir das pessoas na Cidade do Cabo, liguei
para Mandy. A mãe dela atendeu e, quando pedi para falar com
Mandy, ela irrompeu em lágrimas. A Special Branch a havia
detido. A mãe não sabia onde ela estava sendo mantida. Mandy
continuava presa quando deixamos a África do Sul.
Kevin e eu seguimos para o norte, acampando, através da
Namíbia, de Botsuana e do Zimbábue. Vimos muitos animais
grandes. Kevin pareceu entusiasmado, envolvido, e não como se
estivesse em uma tarefa pesada, o que era um alívio. Ele parecia
saber muito sobre praticamente tudo: história da África, política.
Quando aquilo tinha acontecido? Ele estudara história na
faculdade e conseguira um diploma em arte. Trabalhava com
produção de cinema. E podia beber muito mais que eu.
Deixamos o carro no Zimbábue com Sharon — uma cena triste
para mim, pois ela já estava com outro: um jovem ex-guerrilhero
ndebele, agora oficial do Exército.
Continuamos avançando rumo ao norte, atravessando o lago
Malawi em um barco velho e lotado, o MV Mtendere, parando em
aldeias isoladas e dormindo no convés. Zâmbia, Tanzânia,
Zanzibar. Chegamos à terra dos masai de ônibus local e
acampamos à beira da cratera Ngorongoro. Depois, ao pé do
monte Kilimanjaro, perdi meu passaporte para um batedor de
carteiras em uma rodoviária, e não pudemos atravessar para o
Quênia. Voltamos para Dar Es Salaam. Sentia-me bem cansado.
Anunciei que estava pronto para o Ocidente. Então Kevin
pareceu aliviado — ele tinha uma vida para tocar na Califórnia.
Abandonamos a viagem da Cidade do Cabo ao Cairo e pegamos
o voo mais barato para o norte: um da Aeroflot para
Copenhagen, via Moscou.
Atravessei a Europa Ocidental sozinho. Dormia no sofá de
amigos, grato a cada pequeno conforto pessoal. Em Londres,
peguei um avião para Nova York. A alegria de tudo o que era
americano. A essa altura, o outono chegava ao fim. Meu irmão
Michael estava na Universidade de Nova York. Dormi no chão de
seu quarto no alojamento. Michael estudava literatura francesa e
tocava piano, com notável elegância, em bares. Quando aquilo
tinha acontecido? Peguei carona até Missoula — uma viagem
longa, fria e magnífica. Um caminhão me deixou na interestadual
e entrei a pé na cidade. Se valia alguma coisa, eu estava
chegando do leste, como prometido.
Noriega Street, Ocean Beach, São Francisco, 1985
OITO

CONTRA A VAGABUNDAGEM

São Francisco, 1983-1986

O oceano tem o temperamento sem


consciência de um autocrata selvagem
mimado por demasiada adulação.
— Joseph Conrad, O espelho do mar

***

Quando me mudei para São Francisco, fazia anos que vinha,


com sucesso, confinando o surfe às margens da minha vida. Era
o início do outono de 1983. Eu tinha passado o verão anterior em
um porão infestado de baratas no East Village, escrevendo um
roteiro e dormindo no chão. Meu romance sobre a ferrovia ainda
quicava entre editoras. Os poucos editores interessados queriam
que eu simplificasse a linguagem técnica, o jargão ferroviário,
para o leitor geral, mas eu achava que a poesia estava aí, a
genialidade fugaz do lugar e do ambiente de trabalho que eu
queria capturar. Não topei. Na verdade, não queria mergulhar
outra vez no manuscrito, por qualquer motivo que fosse. Tinha
medo do que poderia encontrar — infelicidades, bobagens
pretensiosas e ainda mais coisas juvenis.
Eu vinha ricocheteando pelo país. Sem conseguir pagar
aluguel, fiquei hospedado com Bryan em Montana, com meus
pais em Los Angeles e com Domenic em Malibu. Ao voltar para
os Estados Unidos, a administração dos meus recursos
financeiros, como diria Conrad, não tinha sido triunfante nem
incapacitante. Tive momentos dignos de Rip Van Winkle. Não
estava familiarizado com secretárias eletrônicas, e agora todo
mundo tinha uma. Mas me sentia feliz pelo simples fato de ter
voltado e estava ansioso para trabalhar. Missoula tinha sido
esplêndida, tudo exatamente como eu lembrava. Bryan estava
abrigado ali, escrevendo muito, de volta ao ritmo americano. Não
vinha surfando. Parecia polido, confiante, mais velho — as
latitudes mais altas combinavam com ele. Nenhuma outra pessoa
era capaz de entender por onde eu estivera naqueles últimos
anos. E nós dois ainda conseguíamos conversar a noite toda. Fui
caçar cervos nas montanhas acima do rio Blackfoot no dia do
meu aniversário de vinte e nove anos. Mesmo assim, não fiquei
por lá. Algo me dizia que meu lugar era em uma grande cidade.
Algum ímpeto teimoso de ambição, sem dúvida. Cheguei até a
considerar Los Angeles, mas meus velhos preconceitos eram
fortes demais. Eu trabalhava como freelancer. Apareciam poucos
trabalhos, entre os quais aquele roteiro, que pagou o aluguel,
mesmo em Nova York. Ainda me sentia mentalmente açoitado
pelo tempo que passara na África do Sul. Mas minhas reservas
em relação aos leitores americanos e a escrever sobre política —
até a escrever sobre a África do Sul — haviam passado.
Eu tinha uma nova namorada incrível, Caroline. Ela era do
Zimbábue. Nós nos conhecemos na Cidade do Cabo, onde ela
estudava arte. Agora, fazia pós-graduação no Art Institute em
São Francisco. Caroline se juntara a mim naquele porão em
Nova York — foi o primeiro lugar em que moramos juntos. Ela
trabalhava como hostess em um restaurante na Quinta Avenida.
Não saímos de Manhattan nem uma vez durante aquele verão.
Nosso quarteirão era popular entre viciados, traficantes de
drogas e prostitutas. Era quente e sujo, e brigávamos com
frequência. Éramos teimosos e irritadiços. Mas, quando Caroline
voltou às aulas, fui atrás dela.
***

O fato de São Francisco ter algumas das melhores ondas da


Califórnia foi um segredo por muitos anos. Santa Cruz, mais de
cento e dez quilômetros ao sul, já era um pico crowdeado quando
fiz faculdade lá, mas, dos milhares de pessoas que surfavam em
Santa Cruz, apenas algumas se aventuravam a ir até São
Francisco. Eu tinha surfado algumas vezes Ocean Beach, o
principal pico da cidade, enquanto trabalhava na ferrovia próxima
a Bayshore Yard, perto do Candlestick Park. Então, conhecia o
lugar. Ainda assim, não sabia no que estava me metendo ao me
mudar para lá. Tinha um contrato para escrever um livro sobre
dar aulas na Cidade do Cabo. Alugamos um apartamento em
Outer Richmond, uma região fora de moda, enevoada e habitada
principalmente por asiáticos. O quarto que eu usava como
escritório tinha papel de parede verde-limão manchado. Era
possível ver a extremidade norte de Ocean Beach da minha
escrivaninha.
Lá de cima, na maioria dos dias, Ocean Beach parecia
razoável. Seis quilômetros e meio de comprimento, perfeitamente
reta, muitos swells, vários bancos de areia promissores. O vento
predominante era nordeste, maral e frio, a brisa marítima padrão
nas tardes da Califórnia. Mas havia muitas exceções felizes —
manhãs, outono, inverno —, quando o mar ficava liso ou soprava
um terral. Todos os seis quilômetros e meio eram de fundo de
areia, o que significava que não havia nenhum ponto de
obstrução, nem natural nem construído — nenhum recife,
nenhuma boca de rio, nenhum píer nem quebra-mar —, para
defini-lo. A forma e a localização das ondas dependiam
principalmente da configuração do banco de areia, que mudava
com frequência. Todas as ondas oceânicas são complexas
demais para serem representadas graficamente em detalhes,
mas fundos de areia são, entre os picos de surfe, um tipo
especialmente imprevisível. E Ocean Beach, que recebe uma
quantidade incomum de swells de período longo, principalmente
do norte do Pacífico — e também é assolada por grandes
correntes provocadas pelas marés, porque a baía de São
Francisco, em todos os seus mil quilômetros quadrados, se
enche e se esvazia duas vezes por dia através do estreito de
Golden Gate, logo depois da curva, ao norte —, era uma
proposta mais complicada que qualquer pico de surfe que eu já
tinha visto. Se fosse um livro, seria sobre um assunto
assustadoramente difícil. Filosofia continental, física teórica. Além
de ser complexa, Ocean Beach ficava grande. Não grande para
os padrões da Califórnia, e sim para os padrões do Havaí. Além
disso, a água era fria, não mapeada e, quando se estava dentro
dela, frequentemente irracional.

***

Comecei a surfá-la na extremidade norte, um pico protegido pelo


vento e relativamente tranquilo conhecido como Kelly’s Cove.
Kelly’s tinha pontos profundos e uma turbulência aleatória no
outside, mas produzia com regularidade picos triangulares verdes
que quebravam depressa num banco no inside. As ondas não
eram bonitas; entretanto, tinham personalidade e força e, se você
conseguisse decodificar algumas de suas excentricidades,
ofereciam tubos que quebravam no backdoor. Kelly’s era o pico
mais popular ao longo de Ocean Beach, mas ainda assim não
ficava crowdeado. Indo em direção ao sul, a faixa seguinte,
conhecida como VFW’s, era um campo mais vasto, com ondas
maiores e uma grande variedade de bancos de areia. VFW’s
ficava depois da extremidade oeste do Golden Gate Park. Um
quebra-mar coberto de grafite se erguia acima da praia.
Os cinco quilômetros seguintes de Ocean Beach ficavam
localizados no Sunset District, que era uma versão mais pobre de
Richmond — construções baixas, um lugar sonolento, com uma
rede de ruas íngremes construídas às pressas em cima de dunas
de areia para abrigar moradias para trabalhadores durante a
guerra. A orla ali era um aterro grosseiro perfurado por úmidos
túneis de pedestres e encimado por uma estrada costeira em
mau estado de conservação conhecida como Great Highway. A
praia ficava deserta na maior parte do tempo, exceto nos raros
dias quentes. Bêbados se espalhavam nas poucas faixas de sol,
e moradores de rua às vezes acampavam ali por breves
períodos, antes que o vento e o frio os afugentassem. Na maré
alta, pescadores coreanos com botas de borracha lançavam com
dificuldade seus anzóis. Rumo ao sul, as ondas em geral ficavam
maiores, mais intimidantes, com os bancos de areia externos
mais distantes da praia. Vistas da água, em especial quando as
ondas estavam grandes, as ruas perpendiculares à praia se
tornavam marcadores de picos — elas situavam o surfista. No
Sunset, tinham nomes em ordem alfabética, de norte a sul: Irving,
Judah, Kirkham, Lawton, Moraga, Noriega, Ortega, Pacheco,
Quintara, Rivera, Santiago, Taraval, Ulloa, Vicente, Wawona e,
então, a exceção: Sloat. Ninguém dizia que surfava Ocean
Beach: surfava-se Judah, Taraval ou Sloat. Ao sul do Sloat
Boulevard ficava o zoológico municipal, e, logo depois,
penhascos arenosos começavam a se erguer e a orla urbana —
Ocean Beach — terminava.
Eu me vi entrando na água quase todos os dias naquele
primeiro outono. Surfava com uma monoquilha de segunda mão
com cerca de dois metros de comprimento. Era uma prancha de
cor creme, dura, mas versátil, uma boa pegadora de ondas,
estável e rápida. Eu tinha uma velha roupa de neoprene feita sob
medida que agora estava meio gasta e vazando, uma relíquia
dos meus dias prósperos como guarda-freios. Encontrei alguns
bancos de areia que produziam belos picos, pelo menos por
alguns dias, em certas marés e ângulos do swell, antes que a
areia seguisse adiante. Comecei a conhecer melhor a prancha.
Era boa para paredes grandes e abertas, cortando através do
terral, e respondia bem em altas velocidades. Mas era difícil furar
ondas com ela, pois a prancha era grossa e, portanto, difícil de
afundar o suficiente para escapar da espuma. Varar a
arrebentação em Ocean Beach era quase sempre uma provação
— mais um motivo para que poucas pessoas surfassem ali —, e
o volume extra da minha prancha não facilitava a tarefa. Eu
tentava surfar por pouco tempo. Contudo, trabalhava melhor
depois de cair no mar. A água gelada, o esforço e, depois, uma
ducha quente me deixavam fisicamente tranquilo, capaz de me
sentar à escrivaninha sem ficar inquieto. Eu também dormia
melhor. Isso foi antes dos primeiros grandes swells do inverno.

***

Havia um pequeno grupo de surfistas locais. Na prática, eles


eram invisíveis para o resto da cidade. De fato, os moradores de
São Francisco diziam que não existia surfe por lá. Existia surfe, é
claro, mas fui informado mais de uma vez de que o oceano era
frio e tempestuoso demais para surfar. Na verdade, em geral era
forte demais para aprender a surfar — os picos mais próximos
para principiantes ficavam fora da cidade. E havia um
contingente em meio aos frequentadores de Ocean Beach que
aprendera as manobras em outro lugar — no Havaí, na Austrália
ou no sul da Califórnia — e tinha se mudado para São Francisco
já adulto. Esses recém-chegados — que costumavam ser
profissionais que iam trabalhar na cidade e em cujo grupo eu
agora me enquadrava — permaneciam, em certos aspectos,
diferentes dos surfistas dali, em sua maioria criados em Sunset.
Mas os dois grupos compravam as parafinas e as roupas de
neoprene na Wise Surfboards, um lugar bem iluminado e de pé-
direito alto em Wawona, a alguns quarteirões da praia.
Localizada entre um restaurante mexicano e uma creche cristã,
era a única loja de surfe na cidade. Havia uma grande fileira de
pranchas novas reluzentes junto a uma parede e cabides com
roupas de neoprene no fundo. Se você estivesse em busca de
uma companhia para surfar, a Wise era o lugar certo para
começar a procura.
O proprietário, Bob Wise, era um fã de James Brown com
traços fortes e sardônicos entrando na casa dos quarenta. De
trás do balcão, promovia uma discussão permanente sobre as
peculiaridades de Ocean Beach e dos caras que surfavam ali.
Ele era uma espécie de jukebox do surfe, com uma coleção de
histórias antigas: a vez que Edwin Salem, com água até a
cintura, ficou cara a cara com uma onda que trazia um tronco de
sequoia; a vez que um barril de resina explodiu, queimando as
sobrancelhas de Peewee. Em geral, não havia muito movimento
na loja, exceto quando ricos plantadores de maconha do norte
chegavam cheios da grana, perguntando aos amigos: “Quer uma
prancha? Deixa que eu compro para você. Será que o Bobby
também quer uma? Vamos comprar para ele também.”
Certa tarde, quando entrei, Wise estava no meio de uma
história, entretendo alguns clientes.
“Então o Doc, que consegue ver as ondas da janela, me liga e
diz: ‘Vamos lá, vamos para a água.’ E eu pergunto a ele: ‘Mas
como ela está?’ E ele responde: ‘Está interessante.’ Então vou
até lá, nós dois caímos na água, e está totalmente horrível.
Depois ele pergunta: ‘O que você esperava?’ Foi assim que
descobri que, quando o Doc diz que está interessante, isso
significa pior que horrível.”

***

O Doc da história de Wise era Mark Renneker, um dos assuntos


favoritos nas conversas sobre surfe em São Francisco, até
mesmo uma espécie de obsessão local. Ele era um médico de
família que morava a algumas quadras da loja de Wise, de frente
para a praia em Taraval. Na verdade, eu conhecia Mark da
faculdade em Santa Cruz. Ele tinha ido a São Francisco para
estudar medicina e me dizia havia anos que eu devia me mudar
para lá, escrevendo cartas nas quais exaltava a qualidade do
surfe, mandando fotos dele próprio em ondas lindas que
descrevia apenas como “medianas”. Eu não sabia se ele estava
brincando.
Agora que morava na cidade, eu surfava com Mark com
frequência. Ele era louco por Ocean Beach e tinha feito um
estudo absurdamente detalhado de suas complexidades. Mark
fazia estudos detalhados de tudo ligado ao surfe. Descobri que,
desde 1969, ele mantinha um registro minucioso de todas as
vezes que caíra na água, registrando onde surfava, o tamanho
das ondas, a direção do swell, uma descrição das condições, que
prancha usava, quem eram seus companheiros (se houvesse
algum), quaisquer acontecimentos memoráveis ou observações,
além de dados para comparações ano a ano. Seu livro de
registros mostrava que, desde 1969, o maior período que ele
havia passado sem surfar fora de três semanas. Isso acontecera
em 1971, quando precisara realizar uma tarefa para a faculdade
no Arizona. Fora isso, Mark raramente havia passado mais do
que alguns dias sem pegar onda, e com frequência tinha surfado
todos os dias durante semanas seguidas. Em um passatempo
que só se abre de fato para aqueles com dedicação extrema, ele
era o mais fanático dos fanáticos.
Mark morava com a namorada, Jessica, que era pintora, na
cobertura de um prédio bege de três andares na Great Highway.
Em frente ao apartamento deles, junto ao túnel para a praia,
havia uma placa: AFOGAMENTOS OCORREM TODOS OS ANOS DEVIDO AO
SURFE E ÀS CORRENTES SEVERAS. POR FAVOR, PERMANEÇA EM TERRA —
POLÍCIA DE PARQUES DOS ESTADOS UNIDOS. A garagem de Mark e
Jessica era cheia de pranchas até o teto — havia pelo menos
dez, a maioria ainda em serviço, embora eu tenha percebido, na
visita que fiz ao lugar, um item de colecionador: uma monoquilha
de dois metros e dez com bordas cor-de-rosa e um deck
amarelo, shapeada e usada originalmente por Mark Richards, um
australiano quatro vezes campeão mundial. “É como ter os tacos
de golfe antigos do Jack Nicklaus”, disse Doc.
A Richards era imediatamente reconhecível por qualquer leitor
de revistas de surfe. Mark Renneker não a usava havia anos.
Outras cinco pranchas estavam de pé, apoiadas na escada. Por
que ele precisava de tantas? Para surfar em condições
diferentes, claro, e sobretudo para ondas maiores, quando a
escolha do equipamento podia ser crucial. Estudante dedicado
de design de pranchas, Mark mantinha até as duas metades de
uma prancha querida de dois metros e vinte e cinco, shapeada
no North Shore de Oahu e quebrada em um dia grande em Sloat,
“como referência”. Ondas grandes eram a maior paixão dele.
Na parede da loja de Wise havia uma foto emoldurada de Doc
dropando uma enorme parede cor de lama, quase vertical, em
Ocean Beach. A onda tinha pelo menos cinco vezes a altura
dele. Eu nunca tinha visto ninguém surfar uma onda tão grande
na Califórnia. Não conseguia me lembrar de qualquer outra foto
de alguém fazendo isso. A onda tinha um tamanho digno da
escala de North Shore — Waimea, Sunset. Só que a temperatura
da água devia ser de uns dez graus, ou seja, fria o suficiente
para deixar a superfície difícil de penetrar e fazer um lip parecer
concreto ao quebrar. E o pico não era um recife famoso e bem
mapeado, mas um fundo de areia ardiloso, feroz e obscuro. Eu
torcia para nunca ver Ocean Beach tão grande. Enquanto isso,
aquela foto ajudava muito a explicar a obsessão local por Mark.
De qualquer modo, ele era um cara difícil de não notar. Com
mais de um metro e noventa, magro, ombros largos, barba
castanha revolta e cabelo comprido até o meio das costas, Mark
era escandaloso e imponente, com uma risada alta que era um
misto de buzina e rugido. Para alguém tão alto, ele parecia
extremamente à vontade em seus movimentos, que pareciam os
de um bailarino. Antes de cair na água, Mark desempenhava
uma série de alongamentos de ioga na margem, como se fosse
um ritual. Com as pessoas de quem gostava, era infinitamente
prolixo. Sempre havia algo acontecendo com as ondas, o vento,
os bancos de areia ou os pontos de referência dos picos em
Santiago que exigia algum comentário detalhado e espirituoso.
Todo mundo sabia quando Mark estava na água. “Você não
conhece a lei do filme de surfe?”, gritou ele para mim certa
manhã, em ondas medíocres.
Eu não conhecia.
“No dia seguinte à exibição de um filme de surfe, ou até
mesmo de slides de surfe, nunca haverá ondas boas!”
Na noite anterior, tínhamos visto slides de uma viagem a
Portugal que ele fizera com Jessica para surfar.
Mais tarde naquela manhã, estávamos sentados no estúdio de
Mark, aquecendo-nos com café. A escrivaninha dele tinha vista
para o oceano. As estantes estavam cheias de livros de medicina
(Epidemiologia e prevenção do câncer), guias naturais (Aves
mexicanas), obras sobre o oceano e o clima e centenas de
romances policiais. Nas paredes, havia fotos de Mark e os
amigos surfando, além de pôsteres desbotados de velhos filmes
de surfe — The Performers, The Glass Wall. Havia uma coleção
de revistas sobre o assunto, com décadas de idade e números
na casa dos milhares, cuidadosamente empilhada e catalogada.
Uma rádio de previsões climáticas repassava as informações
mais recentes das boias. Sentei-me e folheei algumas velhas
revistas de surfe enquanto Mark falava com Bob Wise ao
telefone.
Ele desligou e anunciou que, agora, Wise tinha na loja
exatamente a prancha nova de que eu precisava.
Eu não sabia que precisava de uma prancha nova.
Mark ficou incrédulo. Como era possível eu estar satisfeito
com apenas uma prancha? E, além do mais, uma monoquilha
velha!
Eu não sabia explicar. Simplesmente estava satisfeito.
Isso tinha começado a virar rotina entre nós. Mark ficava
irritado com minha suposta falta de seriedade e meu desleixo
despreocupado em relação ao surfe. Não era eu o cara que tinha
feito o grande safári, a circum-navegação em busca de ondas
distantes? Sim, era. E ele era o cara que tinha ficado onde
estava para fazer faculdade de medicina. Mas isso não
significava que surfar fosse uma parte tão essencial da minha
existência quanto era para Mark. Ele ficava horrorizado com a
minha ambivalência em relação ao esporte que
compartilhávamos. Era uma heresia. Surfar, para começo de
conversa, não era um “esporte”. Era um “caminho”. E, quanto
mais investia nele, mais você recebia em troca — o próprio Mark
era uma prova exuberante disso.
Na verdade, eu não discordava. Chamar o surfe de esporte
era interpretá-lo de maneira equivocada em quase todos os jeitos
possíveis. E, sim, Mark me parecia um pôster ambulante e
grande demais sobre as vantagens da obsessão pelo surfe. Mas
eu temia o canto de sereia e as exigências incessantes que
surfar acarretava. Eu relutava até em pensar sobre surfe mais
que o necessário. Por isso, não queria uma prancha nova. E, de
qualquer modo, não tinha dinheiro.
Mark suspirou com impaciência e digitou alguma coisa no
teclado do computador. “Você é engraçado”, falou, por fim.

***

Eu sabia que tinha dedicado quantidades absurdas de tempo e


sangue ao surfe. Em 1981, uma revista especializada publicou
uma lista das dez melhores ondas do mundo segundo os
editores. Fiquei espantado ao ver que tinha surfado nove delas. A
exceção era uma esquerda longa no Peru. A lista incluía vários
picos com os quais eu estivera profundamente envolvido: Kirra,
baía de Honolua, Jeffreys. Não gostei muito de ver aqueles
nomes ali. Eram picos famosos, mas me pareciam assuntos
confidenciais. Fiquei satisfeito ao constatar que a melhor onda
que eu já tinha surfado não havia sido mencionada, porque o
mundo não sabia da existência dela. Bryan e eu, por superstição,
nunca falávamos nem escrevíamos a palavra Tavarua. Dizíamos
apenas “da kine” e pensávamos que voltaríamos lá no momento
certo.
Uma das muitas coisas esplêndidas em Caroline era seu
ceticismo em relação ao surfe. Na primeira vez que observamos
ondas juntos, em um lugar ao sul da Cidade do Cabo, alguns
meses depois de nos conhecermos, ela ficou horrorizada ao me
ouvir falando em uma língua que não sabia que eu conhecia.
“Não era só o vocabulário, todas aquelas palavras que eu nunca
tinha ouvido você usar: ‘onda pesada’, ‘sugando’ e ‘paneleiro’”,
disse ela depois de se recuperar. “Eram os sons: grunhidos,
rugidos e resmungos horríveis.”
Depois disso, Caroline se acostumou a alguns dos códigos
insulares e ao jargão obscuro dos surfistas, até aos grunhidos,
rugidos e resmungos horríveis, mas continuou sem entender por
que, depois de horas na praia estudando as ondas,
frequentemente anunciávamos nossa intenção de cair na água
dizendo coisas como: “Vamos resolver logo essa parada.” Ela
conseguia enxergar a relutância — roupa de neoprene fria e
úmida, água gelada, surfe pesado e ruim. Só não entendia nosso
ar solene.
Certa vez, em Santa Cruz, Caroline captou um vislumbre mais
completo da coisa. Estávamos nas falésias em um pico popular
chamado Steamer Lane. Enquanto os surfistas passavam pelo
ponto onde estávamos, podíamos ver as ondas praticamente
direto do alto e, depois, por trás. Durante alguns segundos,
captávamos uma versão elevada do que os próprios surfistas
viam, e o que Caroline pensava a respeito do surfe se
transformou no mesmo instante. Ela falou que antes enxergava
as ondas como objetos bidimensionais, altos e agressivos, que
se erguiam em direção ao céu. De repente, pôde ver que eram,
na verdade, pirâmides dinâmicas, com faces íngremes,
espessura, rampas largas e inclinadas e uma projeção
tridimensional complexa, que mudava, quebrando, subindo e
quebrando de novo, muito rápido. A espuma era forte e frenética;
a água verde era lisa e convidativa; e o lip quebrando, uma
locomotiva fugaz e cascateante e, ocasionalmente, um buraco.
Caroline disse que isso tudo era quase o suficiente para que ver
alguém surfando ficasse interessante.
Ela não corria o risco de se transformar em uma pessoa do
oceano. Tinha nascido e crescido em um país sem litoral, o
Zimbábue. Às vezes, eu achava que a opinião crítica e descolada
dela sobre vários entusiasmos americanos (desenvolvimento
pessoal, autoestima, algumas das formas mais rústicas de
patriotismo) se originava no fato de ela ter crescido em meio a
uma guerra civil no que então se chamava Rodésia. Caroline
tinha menos ilusões sobre a natureza humana do que qualquer
outra pessoa que eu conhecia. Mais tarde, percebi que estava
enganado sobre o impacto da guerra no pensamento dela. Na
verdade, ela contava apenas com um bom senso extraordinário e
uma grande modéstia, que faziam com que se envergonhasse
com facilidade. O importante para Caroline era fazer arte, em
especial gravuras. O processo de placa de cobre que usava era
elaborado, além de ultrajantemente trabalhoso, quase medieval,
e seus colegas de classe no Art Institute pareciam
impressionados com seu traço, seu conhecimento técnico, sua
obsessão, seu olho. Eu, sem dúvida, me impressionava. Com
frequência, ela trabalhava a noite inteira. Era alta, esguia e
pálida. Tinha uma imobilidade pré-rafaelita, como se tivesse
saído de uma pintura de Burne-Jones direto para a imunda São
Francisco pós-punk. Com as pessoas de quem gostava, Caroline
podia ser alegre, até desbocada, proferindo uma mescla perversa
de gírias de rua britânicas e africanas. Sabia — e encontrava um
número surpreendente de ocasiões para usar — a expressão
guzerati para masturbação: Muthiya maar!

Caroline Rule e eu, São Francisco, 1985


Nos fins de tarde, costumávamos caminhar pelas colinas logo
ao norte de nossa casa. O parque lá em cima era conhecido
como Lands End, e as encostas davam para o oceano, a oeste, e
para a Golden Gate, ao norte. Ciprestes, eucaliptos e pinheiros
altos e retorcidos ajudavam a dissipar a fria brisa marinha. Lá em
cima havia também um velho campo de golfe público que nunca
ficava cheio. Alguém me deu três ou quatro tacos enferrujados —
eu conseguia carregar todos com uma mão só — e, durante
nossas caminhadas, comecei a jogar por diversão nos poucos
buracos perto de casa. Eu não sabia nada de golfe, e nunca
chegamos a ver a sede do clube, mas eu gostava de golpear a
bola embaixo das sombras e passar pelos campos luxuriantes
enquanto o sol baixo fazia as colinas reluzirem antes de
mergulhar no Pacífico. Caroline usava suéteres largos e saias
compridas e ornamentadas que ela mesma costurava. Tinha
olhos enormes e um riso que ressoava de modo vibrante no
crepúsculo.
Eu estava sossegando. Não por ordem de Caroline — ela era
uma estudante de arte expatriada de vinte e quatro anos, sem
nenhum interesse visível por se estabelecer em um lugar —, mas
por minha opção cautelosa, com concessões pequenas e
minúsculas à estabilidade e à conveniência. Abri uma conta
bancária, a primeira da minha vida, aos trinta e um anos.
Comecei a pagar impostos nos Estados Unidos outra vez, e com
alegria — fazer isso significava que eu estava mesmo de volta.
Consegui um cartão de crédito American Express, jurando
pesarosamente ser um cliente-modelo — minha própria maneira,
débil e particular, de compensar a fraude na empresa em
Bangcoc. Percebi que, nos treze anos passados desde o ensino
médio, o período mais longo em que eu mantivera o mesmo
endereço tinha sido de quinze meses, na Cidade do Cabo. Basta.
Era o fim da minha vida itinerante. Eu escrevia meu livro à mão,
mas, se um dia tivesse dinheiro, compraria um computador,
exatamente como todas as outras pessoas pareciam estar
fazendo, pelo menos na Bay Area. Eu desenvolvera um interesse
ávido por política americana, sobretudo política externa. Um
trabalho me mandou à Nicarágua para fazer o perfil de um poeta
sandinista para uma revista de Boston, e voltei me sentindo mal
pela guerra que financiávamos por lá. Escrevi uma matéria curta
para a New Yorker sobre a Nicarágua e fiquei eletrizado quando
a publicaram na semana seguinte.
Na maior parte do tempo, minha mente se concentrava na
África do Sul. Eu vivia em meus diários e minhas lembranças, em
grandes pilhas de livros e periódicos que nunca tinha conseguido
ler enquanto morava lá — tanta coisa era proibida — e em
correspondências com amigos na Cidade do Cabo. Mandy saíra
da cadeia pouco depois da minha partida, embora não antes de
perder as provas e ser reprovada no primeiro ano da faculdade.
Em suas cartas, ela parecia bem. Mandava seus pêsames para
mim e todo mundo que morava nos Estados Unidos sob o
comando de Reagan. Havia um número razoável de sul-africanos
na Bay Area, alguns acadêmicos, outros ativistas dedicados
contra o apartheid. Agradecido, me juntei a eles. Comecei a dar
algumas palestras numa faculdade, num colégio. Ficava
angustiado, nervoso e sem saber ao certo onde ficava a fronteira
entre o jornalismo e o ativismo quando se tratava de algo tão
claramente injusto quanto o apartheid. Eu escrevia. Meu primeiro
plano para o livro contava com nove capítulos. Acabou tendo
noventa e um. Cobri as paredes verde-limão do escritório com
papel pardo e o preenchi com anotações, listas e gráficos,
esforçando-me para enxergar o livro que talvez existisse ali.

***

Quando os primeiros swells do início do inverno começaram a


chegar, varar a arrebentação em Ocean Beach ficou muito pior. A
maioria dos picos de surfe tem rotas recomendadas, da praia ao
line-up; muitos têm canais onde não quebram ondas. Ocean
Beach tinha canais, mas eles mudavam muito de lugar. Você
podia permanecer no quebra-mar o tempo que quisesse,
mapeando com cuidado onde as ondas estavam quebrando,
planejando uma rota infalível — toda aquela água que chegava à
praia precisava voltar para o oceano de alguma forma, e era
provável que cada onda escavasse um canal ao longo do
caminho que havia tomado, onde, supostamente, menos ondas
quebrariam —, e então correr para remar por ali, só para
descobrir que as condições tinham mudado tão depressa que era
impossível passar da arrebentação.
Em dias menores, a perseverança costumava ser
recompensada. Dias maiores eram outra história. Da beira da
água, olhando para seis ou sete paredes de espuma fria
rosnando e avançando, a ideia de cair na água e remar tinha um
quê de insanidade. O projeto parecia impossível, como tentar
subir uma cachoeira a nado. Era preciso ter fé para se lançar ao
mar. Você se jogava na torrente congelante e começava a remar.
Conforme se aproximavam, as ondas soavam como bolas de
boliche barulhentas em uma pista, depois como a queda dos
pinos quando elas desabavam e rolavam por cima da sua cabeça
curvada e dos seus ombros, provocando uma dor de cabeça
instantânea, como quando se toma sorvete gelado. Os minutos
se arrastavam, cheios de tensão. Pouco ou nenhum progresso.
As ondas vívidas e impiedosas chegavam sem parar. Você
tentava apresentar a menor resistência possível às paredes de
espuma que avançavam, desejando que passassem por seu
corpo mesmo quando pegavam você e o sugavam para trás. A
respiração virava um arquejo, depois apenas um ruído rouco; sua
mente começava a entrar em ciclos cada vez mais curtos,
repetindo as mesmas perguntas sem sentido: será que a
perseverança é recompensada? Será que é ao menos
registrada? Enquanto isso, sob essa atividade semi-histérica sem
sentido, seu cérebro se esforçava para detectar os padrões
ocultos nas ondas. Em algum lugar — costa acima, costa abaixo
ou talvez logo além desse ponto raso — as ondas podiam estar
mais fracas. Em algum lugar a corrente devia estar seguindo em
uma direção mais proveitosa. A melhor rota disponível seria
óbvia de praticamente qualquer outro ponto de observação — do
quebra-mar ou da perspectiva daquele pelicano. No entanto, do
meio do turbilhão — onde você às vezes passava mais tempo
embaixo d’água do que no mundo visível, e com frequência
conseguia apenas pegar um fôlego apressado em meio à
espuma —, essa rota simplesmente dançava de forma cruel na
imaginação: a solução teórica para um problema com uma
complexidade impossível.
Na verdade, havia uma estrutura básica no pico de Ocean
Beach. Em qualquer dia acima de um metro e meio ou um metro
e oitenta, sobretudo ao sul de VFW’s, você normalmente surfava
no banco de areia externo, onde as ondas quebravam primeiro.
Para chegar lá, em geral era preciso passar pelo banco de areia
no inside, onde as ondas quebravam mais fortes e impiedosas.
Os caras que acabavam empurrados para a arrebentação
próxima da praia, derrotados pela remada, costumavam ser
detidos pelo banco de areia do inside. Entre os dois bancos
normalmente havia área de calmaria — água mais profunda,
onde você às vezes conseguia dar uma respirada, limpar a visão
e drenar as cavidades nasais, fazer os braços voltarem à vida e
planejar uma passagem através do banco externo.
Mas eu nem sempre ficava contente ao conseguir chegar a
essa área. Passar pelo banco de areia no inside às vezes me
levava ao limite. Se desistisse a tempo, você era simplesmente
empurrado para a praia; mas, se passasse de certo ponto, essa
opção desaparecia. Quando começava a ficar seriamente
cansado, eu em geral abandonava totalmente a minha prancha e
confiava no leash. Então, avançava apoiando as mãos no fundo,
agarrando-me aos punhados de areia e subindo para pegar
fôlego entre uma onda e outra. Com frequência, chegava um
momento em que eu pensava: Não, deixa pra lá, isso está
ficando pesado demais, quero voltar para a praia. Mas, a essa
altura, era sempre tarde demais. Em Ocean Beach, a violência
na zona de impacto no banco de areia do inside em um dia de
inverno era tanta que os desejos de uma pessoa, suas escolhas,
pouco significavam. Não era possível voltar. As ondas sugavam
você na direção delas com uma força monstruosa. Por sorte, a
onda mais assustadora e poderosa, a que parecia ter de fato
uma intenção sanguinária, costumava cuspir você pela parte de
trás dela, para a área mais profunda, depois de atacá-lo. Era por
isso que, cada vez mais, eu achava a calmaria um lugar
horripilante. De repente, eu perdia todo o interesse por surfar,
mas não podia mais voltar à praia. Na verdade, eu agora
encarava outro teste, através de um campo mais vasto, de ondas
muito maiores.
Lembrar a mim mesmo que as ondas no banco externo, por
maiores que fossem, eram em geral mais suaves do que as
bombas de águas rasas no inside tinha sua utilidade. Ainda
assim, naquele momento, eu precisava descobrir um canal no
outside, o que significava esticar o pescoço para ler o horizonte
da crista de cada ondulação que passava pela calmaria. Quais
eram os padrões significativos nos movimentos distantes e
débeis da água azul-acinzentada a quase um quilômetro de
distância? E nas ondulações depois disso? Onde, ao longo do
vasto e ondulante banco de areia externo, a energia parecia estar
se concentrando? Para onde eu deveria ir? Quando começar a
remar? Agora? Daqui a dois minutos? Como evitar um caldo
assustador em águas profundas? O medo nesses longos
momentos na calmaria não era nada comparado ao pânico
concentrado que senti uma vez no grande Rice Bowl, quando era
menino. Essa sensação era mais difusa, desconfortável, incerta.
Afogar-se era apenas uma possibilidade vaga e improvável, o
supremo resultado indesejado que flutuava em torno do limite
das coisas — um espectro verde e frio, nada mais. Se eu
chegasse intacto ao banco de areia externo, seria hora de surfar,
de encontrar ondas para pegar. Afinal de contas, era para isso
que estávamos na água.
Uma palavrinha sobre a intenção sanguinária. Acho que, para
a maioria dos surfistas — para mim, com certeza —, as ondas
têm uma dualidade assustadora. Quando se está absorto em
surfá-las, elas parecem vivas. Têm personalidades distintas e
intrincadas, além de estados de ânimo que mudam depressa, e é
preciso reagir de modo intuitivo, quase íntimo — muita gente já
comparou pegar onda com fazer amor. E, no entanto, as ondas
obviamente não são vivas nem conscientes, e a amante para
quem você estende os braços a fim de enlaçá-la pode se
transformar em assassina sem mais nem menos. Não é nada
pessoal. A onda mortífera que estripa a si mesma no banco de
areia no inside não tem uma intenção sanguinária. Pensar dessa
forma não passa de antropomorfismo. O amor pelas ondas é
uma via de mão única.
O surfe em Ocean Beach valia o esforço da remada até o
pico? Em certos dias, sem dúvida. Mas só para algumas
pessoas. Isso dependia de sua tolerância a ser castigado, do
estado de seus nervos, de sua habilidade para ler os bancos de
areia e para surfar ondas grandes, da força de sua remada e de
sua sorte no dia. Podia haver belas ondas — grandes direitas
fortes, esquerdas de paredes longas —, mas descobri que os
picos raramente eram coerentes e bem definidos, o que tornava
difícil saber onde esperar. Se houvesse outras pessoas na água,
você podia trocar opiniões e referências do pico. Como recém-
chegado a Ocean Beach, eu devorava avidamente qualquer dica.
Tinha uma quantidade absurda de coisas para aprender. A
camaradagem em si era um conforto. E, ainda assim, eu sabia
que, em ondas maiores, a segurança de ter companhia, de surfar
em dupla, era geralmente inútil. Pelo menos de acordo com
minha experiência, quando as coisas ficavam pesadas, nunca
parecia haver alguém por perto, muito menos em posição de
ajudar. Sobretudo em um pico aberto e mal definido como Ocean
Beach, você estaria por conta própria caso se metesse em algum
problema. E eu nem tinha visto as maiores ondas ainda.
Naqueles primeiros meses, o maior dia que surfei foi o que os
locais poderiam ter chamado de três metros.

***

O tamanho das ondas é um tópico de debates eternos entre os


surfistas. Não há um método amplamente aceito para medi-las —
ou melhor, nenhum método amplamente aceito pelos surfistas.
Por isso, as discussões são naturalmente cômicas — em geral, o
típico duelo de egos masculinos para decidir quem tinha surfado
a onda maior —, e sempre tentei ficar fora delas. Para descrições
da altura de ondas, tento confiar no aspecto visual, tendo um
surfista como referência: altura da cintura, altura da cabeça,
acima da cabeça. Uma onda duas vezes acima da cabeça tem
uma parede com duas vezes a altura do surfista, e por aí vai.
Mas, para ondas sem surfistas, ou ondas com ótica ilusória — ou
seja, a maioria delas —, costuma fazer mais sentido descrevê-las
em metros. Simplesmente olhar a parede de uma onda, estimar a
distância vertical do lip até a base — fingindo, para o exercício,
que uma onda quebrando no oceano seja um objeto
bidimensional — resulta em um número aproximado honesto.
Mas esse número é considerado alto demais e desprezado por
quase todos os surfistas, inclusive por mim. Por quê? Porque
subestimar é más macho.
Na verdade, a questão do tamanho de uma onda surge
apenas em alguns contextos. Não me lembro de já ter debatido,
ou mesmo discutido, sobre o tamanho de uma onda com Bryan,
por exemplo. Uma onda era grande ou pequena, fraca ou
poderosa, medíocre ou magnífica, assustadora ou não, no grau
exato em que ela era de fato essas coisas. Juntar um número a
essas descrições não acrescentava nada. Se fosse necessário
fazer um relatório para alguém que não estivesse lá, algumas
abreviaturas convencionais (“de um e meio a dois”) podiam ser
úteis, com as aspas sempre implícitas. A crueza da descrição era
compreendida. Mas isso era comigo e com Bryan. Em Ocean
Beach, calcular o tamanho das ondas era levado a sério. Picos
de ondas grandes têm esse efeito nas pessoas. Eles induzem
uma seriedade em cada um e ampliam as inseguranças.
De fato, subestimar é algo que se faz com a maior serenidade
no North Shore de Oahu. Lá, uma onda precisa ser do tamanho
de uma pequena catedral para que os locais digam que tem dois
metros e meio. A arbitrariedade subcientífica de tudo isso fica
óbvia pelo fato de que, entre surfistas de qualquer lugar, não
existem ondas de dois metros e setenta e quatro nem de três
metros e noventa e seis. (Qualquer um que afirme sua existência
será motivo de chacota na praia.) Quando morava em Honolulu,
Ricky Grigg, um oceanógrafo e surfista de ondas grandes,
costumava ligar para um amigo que vivia na baía de Waimea a
fim de obter informações sobre as ondas. A esposa do amigo,
que via o mar da cozinha, nunca conseguiu entender o sistema
irracional de medição de ondas usado pelos surfistas, mas era
capaz de estimar com bastante precisão quantas geladeiras
empilhadas seriam equivalentes à altura das ondas, por isso
Grigg costumava perguntar a ela: “Está com quantas
geladeiras?”
O tamanho das ondas acaba sendo uma questão de consenso
local. Determinada onda, transferida intacta do Havaí, onde era
considerada de um metro e oitenta, seria avaliada como de três
metros no sul da Califórnia. Na Flórida, essa mesma onda teria
três metros e meio, talvez quatro e meio. Em São Francisco,
quando morei lá, diziam que uma onda com o dobro da altura de
um surfista tinha dois metros e meio, por nenhuma razão em
especial. Uma com o triplo da altura tinha três metros, e uma com
quatro vezes tinha três e meio. Cinco vezes eram quatro metros
e meio, mais ou menos. A partir daí, o sistema — se é que é
possível chamá-lo assim — se desintegrava. Buzzy Trent, um
antigo surfista de ondas grandes, teria dito: “Ondas grandes não
são medidas em metros, mas em níveis de medo.” Se disse isso
mesmo, ele acertou. O poder de uma onda quebrando não
aumenta de modo equivalente à altura, mas à altura ao
quadrado. Dessa forma, uma onda de três metros não é
levemente mais poderosa do que uma de dois e meio, porque o
salto não é de dois metros e meio para três, e sim de seis metros
e vinte e cinco para nove metros, o que significa que ela é 50%
mais poderosa. Esse é um fato que todos os surfistas conhecem
intimamente, tendo ouvido a fórmula ou não. Além disso, duas
ondas da mesma altura podem ser bem diferentes em volume,
em ferocidade. E há também o fator humano. Como diz uma
variante da velha máxima: “Ondas grandes não são medidas em
metros, mas no tamanho da mentira.”
Quando eu era garoto, ondas grandes eram importantes.
Havia um grupo famoso, incluindo Grigg e Trent, que surfava
Waimea, Makaha e Sunset Beach. Eles usavam pranchas
longas, pesadas e especializadas chamadas de elephant guns —
posteriormente, apenas guns. As revistas e os filmes de surfe
celebravam seus feitos. Havia histórias aterrorizantes que todo
surfista conhecia, como a vez que dois pioneiros de North Shore,
Woody Brown e Dickie Cross, caíram na água em Sunset durante
um swell crescente em 1943. Quando as séries ficaram maiores
e os forçaram a remar mais para longe, eles viram que seria
impossível voltar à praia — Sunset estava fechando — e
resolveram remar quase cinco quilômetros para oeste, até a baía
de Waimea, na esperança de que o canal de águas profundas
ainda estivesse aberto por lá. Não estava, e o sol começou a se
pôr. Desesperado, Cross rumou para a praia. Tinha dezessete
anos. O corpo dele nunca foi encontrado. Mais tarde, Woody
Brown foi arrastado até a praia, semiafogado e nu. As aventuras
de Grigg, Trent e companhia nos anos 1950 e 1960 eram sagas
míticas para as massas de surfistas — para moleques como eu.
Eles não eram os melhores surfistas do mundo, mas eram
extremamente arrojados. Eu adorava astronautas quando
criança; porém, um pequeno círculo de surfistas de ondas
grandes era um grupo ainda mais maneiro.
O auge passou por volta da época da revolução da
pranchinha. As pessoas continuaram surfando ondas enormes,
mas pareciam ter alcançado um limite de desempenho, assim
como um tamanho máximo das ondas que podiam ser pegas e
surfadas. Qualquer coisa maior do que aquilo que chamávamos
de oito metros parecia se mover rápido demais; era fisicamente
impossível. De qualquer modo, pouquíssimos surfistas estavam
interessados em ondas desse tamanho. Matt Warshaw, o maior
estudioso do surfe — autor de The Encyclopedia of Surfing e The
History of Surfing, ambos volumes pesados e fidedignos —,
estabelece a proporção de surfistas prontos para pegar ondas de
oito metros em menos de um em vinte mil. Outros acham que é
menos ainda. Nat Young, o grande campeão australiano, um
homem que Warshaw considera “talvez o surfista mais influente
do século [XX]” e que, em seu auge, era uma fera apelidada de O
Animal, não tinha interesse em surfar ondas acima de seis
metros. Em um filme de surfe de 1967, Young disse: “Só fiz isso
uma vez, em uma onda, e não desejo repetir a dose nunca mais.
Se esses caras conseguem se divertir enquanto o coração e as
entranhas estão despencando por um poço de mina, então tenho
respeito por eles e por sua coragem. Só acho que nunca
conseguiria me expressar enquanto estivesse morrendo de
medo.”
Eu estava com Young e com os outros 99,99%. Tinha surfado
com alguns especialistas em ondas grandes no North Shore, mas
eu os considerava mutantes, místicos, peregrinos viajando por
uma estrada diferente da que todos nós percorríamos, talvez
feitos de uma matéria-prima distinta. Pareciam biônicos, eram
suspeitamente imunes a reações normais (pânico, luta ou fuga)
diante do perigo. Na verdade, havia um amplo campo
intermediário de ondas pesadas que não eram o fim do mundo,
não eram apocalipticamente grandes, e todos nós entrávamos
em uma fronteira de medo sombria e altamente pessoal sempre
que um swell grande chegava. Meu próprio limite máximo se
retraía havia vinte anos. Eu tinha surfado ondas relativamente
grandes em Sunset, Uluwatu, a onda externa em Grajagan, até
em Santa Cruz — às vezes havia umas bombas em Middle Peak,
em Steamer Lane. Eu surfara de modo agressivo, louco de
adrenalina e sem medo, na grande Honolua, em Nias com mais
de três metros. Cheguei a surfar algumas vezes Pipeline, uma
onda muito assustadora e perigosa, embora apenas em dias
menores. Mas nunca tivera uma gun e não queria uma.

***

Mark tinha a arrogância biônica completa, em uma versão rara de


médico hippie excêntrico. Ele dizia que nunca sentira medo de
ondas grandes. Na verdade, alegava que o medo comum de
ondas grandes era infundado. Da mesma maneira que, segundo
ele, as pessoas têm mais medo de câncer do que de cardiopatia,
apesar de a última matar muito mais gente, os surfistas têm mais
medo de ondas grandes do que de ondas pequenas, apesar de
ondas menores e crowdeadas ferirem e matarem muito mais
surfistas do que as grandes. Eu achava essa teoria uma
bobagem. Ondas grandes são violentas e assustadoras e ponto
final. E, de maneira geral, quanto maiores, mais assustadoras e
violentas. Para antropomorfizar: ondas grandes querem,
desesperadamente, afogar você. Poucas pessoas as surfam, e
essa é a única razão para não matarem mais gente do que já
matam.
Assim como todo mundo que surfa estabelece um limite de
tamanho das ondas nas quais se aventura, os surfistas que
vivem em um lugar que tem ondas grandes acabam, com o
tempo, conhecendo os limites uns dos outros. Quando morei em
São Francisco, o único outro surfista cujo alcance se equiparava
ao de Mark era Bill Bergerson, um carpinteiro que todos
chamavam de Peewee — um apelido improvável, remanescente
dos dias em que era o irmão caçula de alguém. Peewee era
quieto, intenso e excepcionalmente tranquilo; deve ser o melhor
surfista puro já produzido por São Francisco. Entretanto, seu
interesse por ondas grandes não era indiscriminado. Ele não
tentava surfar todo dia grande em Ocean Beach; só caía na água
quando o mar estava razoavelmente limpo. Por outro lado, Mark
beirava a loucura, aventurando-se quando mais ninguém nem
considerava a ideia e voltando rindo. Havia pessoas que
achavam esse tipo de atitude irritante.
Mas Mark treinava para ondas grandes com um masoquismo
alegre. Certa manhã, eu me vi parado no quebra-mar em
Quintara, observando-o tentar remar até o pico. As ondas
estavam com mais de dois metros e meio, irregulares,
impiedosas, com vento maral, sem passagens visíveis. Nem a
área de calmaria estava em evidência. Chegar ao pico parecia
impossível, e, de qualquer modo, as ondas não pareciam valer o
esforço. Ainda assim, Mark estava na água, uma pequena figura
de roupa de neoprene preta em um mundo espumante furioso,
lançando-se de encontro às paredes cobertas de espuma que se
moviam à frente. Cada vez que ele parecia avançar, surgia uma
nova série no horizonte, maior que a anterior e quebrando mais
longe — as maiores ondas estavam quebrando, talvez, a quase
duzentos metros da praia —, levando-o outra vez para a zona de
impacto. Tim Bodkin, hidrogeólogo, surfista e vizinho de Mark,
assistia comigo. Bodkin estava se divertindo muito com as
dificuldades de Mark. “Pode esquecer, Doc!”, gritava ele para o
vento, rindo. “Ele nunca vai conseguir chegar. Só não vai admitir
isso.” Às vezes, nós o perdíamos de vista por completo. As
ondas quase nunca lhe davam chance sequer de subir na
prancha e remar; ele passava a maior parte do tempo embaixo
d’água, furando ondas, nadando para o pico junto ao fundo,
puxando a prancha às suas costas. Depois de meia hora,
comecei a me preocupar: a água estava fria e as ondas, fortes.
Bodkin, eufórico de prazer com o sofrimento alheio, não
compartilhava da minha preocupação. Por fim, após cerca de
quarenta e cinco minutos, o mar acalmou um pouco. Mark subiu
na prancha, remou furiosamente e, em três minutos, estava lá
fora, passando pelas cristas da série seguinte com quase cinco
metros de sobra. Já em segurança depois da arrebentação,
sentou-se na prancha para descansar, um ponto negro boiando
em um mar azul mexido pelo vento. Bodkin, indignado, me
deixou sozinho no quebra-mar.
Mark adquiriu o hábito de me telefonar assim que o dia raiava.
Passei a ter horror de suas ligações. Sonhos com grandes ondas
cinzentas e um medo mórbido de me afogar chegavam ao clímax
com o toque do telefone no escuro. Do outro lado da linha, a voz
dele ao amanhecer vinha sempre animada e estrondosa, já no
mundo iluminado pelo sol.
“Então? Como está o mar?”
Ele conseguia ver de casa a extremidade sul de Ocean Beach;
eu conseguia ver a norte. Mark queria um relatório. Eu ia
cambaleando e tremendo até a janela e olhava com os binóculos
embaçados para o mar selvagem e frio.
“Parece... cabeludo.”
“Sério? Vamos pra cima!”
Outros surfistas também recebiam esses telefonemas. Edwin
Salem, um universitário simpático da Argentina e protegido de
Mark, me contou que costumava ficar acordado durante metade
da noite, na cama, com medo de que o telefone tocasse, e que
ficava em pânico quando de fato tocava. “O Doc só me ligava
quando o mar estava grande e sabia que mais ninguém cairia na
água com ele. Em geral, eu caía.”
Em geral, eu também caía: meu limite ainda não tinha sido
determinado.

***

Em um dia claro e frio no início de novembro, Mark e eu caímos


na água em Sloat. Era o início de um pequeno swell de norte, e
as ondas estavam irregulares — encrespadas, fortes,
incoerentes. Ele me convencera de que, antes de as ondas terem
tempo para se acalmar, ventos noroeste — que, segundo sua
rádio do clima, já sopravam a vinte e cinco nós nas ilhas Farallon,
a pouco mais de trinta quilômetros da costa — chegariam à
cidade. Quando chegassem, acabariam completamente com as
ondas; por isso, essa podia ser nossa única chance de surfar
aquele swell. Sim, éramos os únicos surfistas à vista, mas isso se
devia ao fato de que os outros estavam esperando que o mar
melhorasse depois, com a maré vazante. Não sabiam sobre o
vento noroeste.
“Ou talvez eles tenham emprego”, opinei, arfando.
“Emprego?” Mark riu. “Esse foi o primeiro erro deles.”
A manhã estava chegando ao fim, ainda praticamente sem
vento. Minhas mãos queimavam de frio. Mesmo depois de passar
da arrebentação, não havia chance de aquecê-las nas axilas
porque havia uma corrente forte para o norte, o que significava
que precisávamos remar constantemente só para permanecer no
mesmo lugar. A corrente também significava que procurávamos
somente direitas, que nos levariam para o sul. Eu estava com
muita dificuldade de respirar para ficar discutindo sobre
empregos. Mark tinha um horário de trabalho organizado em
torno do surfe, com uma variedade de empregadores e máxima
flexibilidade. Reorganizar os horários por causa de swells, marés
e vento era uma constante na vida dele. Então, ele tinha bastante
trabalho, que descrevia como altamente recompensador, e
nenhum problema para pagar o aluguel. E eu era uma
companhia de surfe conveniente, em parte porque meu horário
era flexível. O desprezo de Mark pelas pessoas com empregos
convencionais era, em grande parte, uma piada com a intenção
de me irritar — coisa que ele gostava de fazer.
O desdém de Mark pelo casamento e por filhos era ainda mais
forte. “A regra sobre caras que se casam: a disposição deles
para pegar ondas grandes cai um ponto na mesma hora”, dizia
ele. “E cai outro ponto grande a cada filho. A maioria dos caras
com três filhos não entra na água se as ondas estiverem com
mais de um metro!”
No fim das contas, o mar estava melhor do que parecia
quando se via da praia, e pegamos uma série de ondas rápidas e
de bom tamanho. A textura delas fazia com que houvesse
espaços ocos e estranhos nos quais ganhavam uma velocidade
inesperada. Mark saiu voando de uma onda forte e fechada,
falando que precisava de uma prancha maior. Ele usava uma
com cerca de dois metros. Nos momentos em que o ruído das
ondas acalmava, ouvíamos macacos gritando no zoológico
municipal, depois do quebra-mar na praia. Mas a sensação era
que São Francisco podia ficar em outro hemisfério. Ocean Beach
no inverno é um local tão inóspito, rústico e selvagem quanto
qualquer lugar nas Montanhas Rochosas. Víamos o trânsito na
estrada costeira, mas era improvável que as pessoas dentro dos
carros nos vissem. A maior parte delas sem dúvida diria, se lhes
perguntassem, que não havia surfe em São Francisco.
Mark não conseguiu resistir a uma grande esquerda rodando.
Ele a dropou e, em questão de segundos, surfou metade do
caminho até Ulloa. Peguei a onda seguinte, também uma
esquerda, e fui levado ainda mais para o norte. Ao remarmos de
volta, nós dois fomos carregados ainda mais para o norte por
uma série que quebrou ao sul de onde estávamos. Agora
estávamos tão longe em meio à corrente que decidimos trocar
Sloat por Taraval. Porém, o pico que quebrava sobre o banco de
areia em Taraval era esquivo e medíocre, e paramos de pegar
ondas. Parecia haver um pico melhor em Santiago. Mark teve
uma ideia: íamos parar de lutar contra a corrente. Quando ela
estava tão ruim assim na maré enchente, transformava-se no
Expresso Sloat-para-Kelly. Mark disse que era só seguir nela
para o norte, surfando onde fosse possível. Eu estava exausto,
portanto, propenso a concordar. Paramos de remar para o sul, e
logo a praia começou a passar depressa. Era uma sensação
patética e desagradável deixar que os bancos de areia viessem
até nós em vez de fazer esforço para chegar a um pico e
permanecer lá. Quando passa pelos bancos de areia, a água
pode tornar difícil manter posição na borda externa do banco,
onde as ondas se preparam para quebrar, mas a corrente forte e
sinuosa nos levava por todo tipo de arrebentação, todo tipo de
ângulo, indiscriminadamente.
Mark, que amava esse tipo de experimento
semidescontrolado, fazia comentários breves sobre os bancos
que atravessávamos. Aqui foi onde aquele pico maravilhoso
quebrou no ano passado — no outside de Quintara. E este era o
pico nos dias gigantes em Pacheco. Está vendo a cruz na
montanha? A gente precisava ficar onde a víssemos acima da
igreja. E dava para ver que Noriega estava começando a fazer
algo interessante. “Na verdade, essas ondulações meias-bocas
não estão quebrando nem no outside nem no inside. O banco de
areia do inside se moveu aqui para fora agora, por isso está
quebrando no meio e abrindo nas duas direções.”
Mark tinha razão sobre os bancos de areia em Noriega. As
ondas não estavam mais quebrando nos bancos do outside que
estivéramos percorrendo. Giramos devagar através de um campo
amplo e sem ondas. Uma lontra surgiu bem na nossa frente,
nadando de costas. Tinha uma pequena cabeça marrom-
avermelhada e reluzente, com olhos escuros enormes. Lontras
não eram comuns em Ocean Beach; era como se aquela tivesse
sido invocada por nosso estranho comportamento passivo.
A corrente agora nos levava para o mar aberto. Sugeri que
remássemos na direção da praia. Relutante, Mark concordou em
encerrar nosso experimento à deriva.
No banco de areia interno, à medida que progredíamos na
direção de Judah, encontramos ondas curtas e volumosas que
quebravam com uma força surpreendente. Os drops rápidos e
íngremes me agradaram, e peguei três direitas de alta adrenalina
seguidas antes de cometer um erro sem tamanho. Minha
prancha se prendeu por um instante no lip da onda. Fui lançado
para o alto. Tentei me afastar da prancha, mas não ousei
mergulhar direto para baixo — o banco de areia no inside era
raso. Atingi a água de um jeito estranho, girei e bati no fundo,
delicadamente, com o ombro. Senti a prancha passar em alta
velocidade — ela chegou a tocar meus braços, que cobriam meu
rosto — um pouco antes de a onda quebrar em cima de mim.
Levei um caldo considerável e, por fim, cheguei à superfície, sem
fôlego, com o que parecia ser alguns quilos de areia dentro da
roupa de neoprene. Tive sorte — podia ter me machucado. Voltei
depressa, com a cabeça latejando e o nariz escorrendo.
Mark tinha começado a surfar com mais cautela. “É quando as
ondas estão sugando em cima de um banco de areia raso que se
quebra o pescoço”, disse ele. Era um paradoxo que alguém
conhecido por assumir os riscos mais extremos fosse ao mesmo
tempo tão prudente, mas também era verdade que Mark
“completava” um percentual mais alto de suas ondas (ou seja,
saía da onda ainda de pé) do que qualquer outro surfista que eu
conhecia. Ele simplesmente não pegava ondas que não
acreditava terem grande chance de serem completadas, e,
quando se entregava a uma, raramente fazia um movimento
descuidado ou mal calculado.
Tornamos a nos reunir depois que Mark pegou uma direita e
eu peguei uma esquerda longa. Enquanto remávamos de volta
para o pico, ele anunciou: “Novembro é grande e ruim.” Com
isso, queria dizer que as ondas de Ocean Beach em novembro
frequentemente eram grandes, mas quase nunca bem formadas.
Porém, antes que ele conseguisse dizer mais alguma coisa, nós
nos separamos ao acelerar para evitar uma série que se
aproximava. Alguns minutos depois, Mark prosseguiu: “A
correspondência entre o que se vê no mapa meteorológico e o
que realmente chega à praia ainda não está muito estabelecida.”
Na verdade, havia grandes dias de outono em Ocean Beach,
quando os primeiros swells de norte e oeste da temporada
encontravam as primeiras ventadas de terral. Esses ventos
começavam a soprar depois da queda da primeira neve nas High
Sierras. Claro, o surfe de outono se beneficiava da comparação
inevitável com os meses de verão, repletos de vento maral,
névoa e marolas. Os primeiros swells grandes da temporada
chegavam em novembro, embora, com frequência, isso
ocorresse antes de os bancos de areia estarem prontos para
transformá-los em ondas surfáveis. O inverno era a melhor
temporada para o surfe. Em dezembro e janeiro, a combinação
dos grandes swells produzidos pelas tempestades de inverno
com as condições locais da praia e do clima costumava ser
excelente.
Fazia frio — a temperatura da água podia cair para uns cinco
graus, e o ar nas manhãs de inverno às vezes ficava abaixo de
zero. Eu estava pensando em investir em botas, luvas e um
capuz de neoprene, acessórios que alguns caras já usavam.
Uma cordinha arrebentada e uma nadada longa podiam resultar
em hipotermia. A perda da sensação nas mãos e nos pés já
estava me causando problemas. Com frequência, eu precisava
pedir a estranhos que abrissem a porta do meu carro e
pusessem a chave na ignição, pois minha habilidade manual
havia sido eliminada pelo surfe. Às vezes, a própria passagem do
tempo parecia distorcida: algumas sessões longas na água fria,
com vento forte e ondas grandes, podiam fazer com que dois
dias parecessem duas semanas.
Agora, chegávamos à VFW’s, onde os bancos de areia
estavam uma confusão. Tínhamos seguido cerca de cinco
quilômetros na corrente. Mas a essa altura a maré já estava
quase alta; a corrente parecia perder a força. Estávamos na água
havia pelo menos duas horas. Minhas mãos tinham ficado
dormentes e, por mais que eu as esfregasse na borracha que
cobria minhas axilas, não voltavam ao normal. Eu estava pronto
para sair da água.
Resolvemos pedir carona de volta para Sloat em vez de
caminhar. Enquanto subíamos a praia até a estrada, Mark se
virou de repente e disse, triunfante: “Sentiu isso? Agora o maral
vai entrar!” Ele tinha razão. Uma linha de vento pronunciada e
escura já se movia na direção das ondas nos bancos de areia do
outside, acabando com os lips. “Aqueles outros caras perderam”,
completou Mark.

***

Meus velhos amigos Becket e Domenic pareciam estar deixando


o surfe de lado. Becket estava de volta a Newport, trabalhando
em construções, fazendo carpintaria para barcos, fabricando
veleiros. Pensei que seu tipo de hedonismo de “rato de cais”,
estilo “esconda suas filhas”, estava pronto para ser patenteado.
Enquanto seus vizinhos tinham adesivos de EU PREFERIA ESTAR
VELEJANDO no carro, ele saía pelo Orange County em uma picape
de trabalho com um adesivo no para-choque que dizia EU
PREFERIA ESTAR FAZENDO CUNILÍNGUA. Quando fui visitá-lo, fiquei
surpreso ao ver uma foto minha emoldurada na parede do
escritório. Era a foto de Grajagan, recortada de uma revista de
surfe, na qual eu estava parado com a prancha embaixo do braço
na borda do recife enquanto uma esquerda vazia, fabulosa e
iluminada por trás passava rugindo. Becket incluíra uma legenda:
“Galinhas surfam.” Era uma referência a meus tornozelos finos.
“Eu sei por que você precisou dar a volta ao mundo”, disse ele
enquanto eu observava a foto. “Foi porque não conseguiu
encontrar reclamações suficientes deste país.”
Era uma teoria, não sem interesse, e não muito diferente da
de Domenic sobre minha política de autoaversão. Nesse meio-
tempo, Domenic encontrara seu lugar no mundo. Estava dirigindo
comerciais de TV de primeira qualidade e se casara com uma
igualmente bem-sucedida diretora de comerciais francesa. Os
dois tinham um apartamento em Paris, uma casa em Beverly
Hills e um apartamento em Malibu. A mulher tinha filhos
crescidos. Tanto Domenic quanto Becket ainda surfavam, ou pelo
menos tinham pranchas, mas nenhum dos dois parecia ser um
surfista local de respeito em qualquer pico. Eu sabia que a
Califórnia, com seus crowds desagradáveis, desestimulava isso.
Depois que cheguei a São Francisco e comecei meu aprendizado
em Ocean Beach, nunca pensei em contar aos meus velhos
parceiros de surfe sobre as fantásticas ondas sem crowd que eu
tivera a sorte de encontrar. Não que estivesse tentando guardar
segredo. Simplesmente sabia que eles não se interessariam. Era
trabalhoso demais para umas poucas ondas boas. O mar era frio
demais, forte demais, hardcore demais.
Minha mãe, em geral, tinha suas dúvidas com relação a São
Francisco. Isso fazia dela uma pessoa incomum em Los Angeles,
onde os habitantes costumam falar com romantismo sobre sua
contraparte ao norte: a Bagdá da baía, o coração perdido de
Tony Bennett etc. Ela achava que a cidade era um bom lugar
para visitar, apesar de ser presunçosa e estar um tanto
envelhecida, sobretudo desde o auge dos hippies. Certa vez a
ouvi chamar São Francisco de “um lar de idosos para jovens”, um
gracejo que fazia efeito, já que tanto Kevin quanto eu morávamos
lá. Depois de largar a indústria cinematográfica, meu irmão
estava na faculdade de direito. Morava no centro da cidade, em
uma vizinhança chamada Tenderloin. Nenhum de nós estava
exatamente de bobeira, mas, quando voltamos para casa nas
festas de fim de ano, percebi como Los Angeles pulsava com
uma espécie de impulso ácido, um frenesi endêmico de ambição
à indústria cinematográfica que eu tinha ignorado ao crescer ali,
mas que agora podia apreciar em segurança. Não havia nada
parecido com isso na Bay Area, pelo menos não em torno do
Vale do Silício, o qual não me interessava nem um pouco, mas
evidentemente fervilhava com cérebros poderosos.
Eu sabia que minha mãe voltara a trabalhar, e ainda assim a
ficha não tinha caído até eu observar uma cineasta sorridente e
articulada, Patricia Finnegan, receber um prêmio no salão de
festas de um hotel em Washington, D.C., por um filme que ela
havia produzido. Aquela era minha mãe? Ela havia começado
como voluntária em uma produtora sem fins lucrativos, tomado
pé da situação rapidamente e, em seguida, aberto a própria
empresa com meu pai. Os dois tiveram suas dificuldades de
empresa iniciante, mas, em poucos anos, minha mãe passara a
contratar meu pai como diretor de produção em longas para a
TV. Tinha um bom olho para roteiros e fama de se dar bem —
com facilidade e de forma produtiva — com roteiristas, diretores,
atores e executivos de emissoras de TV, o que parece simples,
mas é um talento raro. Meus pais viviam loucamente ocupados.
Colleen e Michael observaram com atenção o negócio da família
e, em seguida, foram para outras áreas — Colleen para a
medicina, Michael para o jornalismo, ambos no leste do país.
Kevin, que tinha fortes tendências políticas de esquerda, não
queria voltar para Hollywood depois da faculdade de direito.
Então todos havíamos deixado o ninho da indústria
cinematográfica. Eu não sabia se o fato de finalmente ter
conseguido publicar alguns artigos aqui e ali agradava meu pai, o
velho repórter. Pensei que talvez o livro que eu estava
escrevendo surpreendesse os dois. Eles ainda consideravam
meu período como professor na Cidade do Cabo um bom
trabalho. Mas grande parte do livro seria sobre meu fracasso em
ajudar meus alunos e as consequências não intencionais de
meus esforços mais ignorantes.
A confusão emocional que me acompanhou quando saí da
África do Sul não havia me deixado. Eu ainda tinha sonhos
terríveis e agonizantes com Sharon. Não mantinha contato com
ela e tentava esconder minha tristeza de Caroline. Mas às vezes
me perguntava como isso podia influenciar meu relato da luta
pela libertação dos negros na África do Sul.
Kevin, que tinha feito faculdade em São Francisco, vivia com
um pesadelo categoricamente mais sério. A pandemia de aids
estava em seus estágios iniciais e ainda era pouco
compreendida. Em São Francisco, jovens ficavam doentes, em
estágio terminal, às centenas, e logo depois aos milhares.
Caroline e eu éramos novos na cidade e não conhecíamos
nenhum soropositivo, mas os amigos e vizinhos de Kevin no
centro viviam aterrorizados e estavam sendo cruelmente
reduzidos. Em 1983, o San Francisco General Hospital abriu a
primeira enfermaria dedicada a pacientes com aids nos Estados
Unidos. Em questão de dias, estava lotada. Uma das melhores
amigas de Kevin, uma advogada jovem e meiga chamada Sue,
que havia sido colega de quarto dele e tinha passado o Natal
conosco, morreu com o vírus, aos trinta e um anos. A maior parte
das vítimas na cidade era formada por homens gays, é claro.
Kevin, que é gay, participava ativamente do movimento que
exigia mais recursos para a pesquisa e o tratamento da aids, mas
não falava muito sobre isso comigo. Nossas viagens na África
davam a impressão de terem ocorrido em outro século, em uma
época menos árida. Ele parecia, na melhor das hipóteses,
distraído. Poupei-o de minhas histórias de quase afogamento no
banco de areia em Ocean Beach.

***

Caí na água com Mark em um dia claro e de aparência


assustadora em Pacheco. Era difícil estimar o tamanho das
ondas porque não havia mais ninguém no mar. Remamos até o
pico com facilidade — as condições estavam imaculadas; os
canais, fáceis de ler —, mas avaliamos mal as condições e
assumimos uma posição muito próxima da praia. Antes de
droparmos nossas primeiras ondas, uma série enorme nos pegou
no inside. A primeira onda arrebentou meu leash do tornozelo
como se fosse um pedaço de barbante. Nadei por baixo dela e,
em seguida, continuei em direção ao mar aberto. A segunda
onda parecia um prédio de três andares. Assim como a primeira,
ela se preparava para quebrar alguns metros à minha frente.
Mergulhei fundo e nadei com força. Ao atingir a superfície acima
de mim, o lip da onda pareceu um raio explodindo muito perto,
enchendo a água de ondas de choque. Consegui ficar embaixo
da turbulência, mas, quando cheguei à superfície, vi que a
terceira onda da série era um ser que pertencia a uma ordem
distinta. Era maior e mais volumosa e puxava o fundo com muito
mais pressão do que as outras. Meus braços pareciam de
borracha, e comecei a hiperventilar. Mergulhei muito cedo e
muito fundo. Quanto mais fundo nadava, mais fria e escura ficava
a água. Assim que a onda quebrou, o barulho foi
sobrenaturalmente baixo, uma violência absoluta em baixo
profundo, e a força que me puxou para trás e para cima pareceu
uma inversão da gravidade digna de pesadelo. Consegui escapar
mais uma vez e, quando enfim emergi, estava longe no outside.
Não havia mais ondas, o que foi uma sorte, já que eu tinha
certeza de que mais uma teria acabado comigo. No entanto,
Mark estava ali, talvez uns dez metros à minha direita. Ele havia
mergulhado e escapado do inimaginável por tão pouco quanto
eu. Porém, o leash dele não havia arrebentado, e ele tentava se
equilibrar em cima da prancha. Nesse meio-tempo, ele se virou
para mim com um olhar maníaco e gritou: “Isso está
sensacional!” Podia ter sido pior. Ele podia ter berrado: “Isso está
interessante!”
Mais tarde, eu soube que, do ponto de vista da manutenção
de registros, Mark tinha de fato achado aquela tarde de surfe
interessante. Ele permaneceu na água por quatro horas (eu
nadei o longo caminho até a praia, recolhi a prancha na areia e
voltei para casa, direto para a cama) e mensurou o intervalo
entre as ondas — o tempo que leva para duas ondas passarem
por determinado ponto — em vinte e cinco segundos. Era o
intervalo mais longo que Mark já vira em Ocean Beach. Isso não
me surpreendeu por completo. Ondas de intervalos longos se
movem pelo oceano mais rápido do que suas primas de
intervalos curtos, chegam mais fundo abaixo da superfície e,
quando quebram, jogam mais água à frente, por terem mais
energia. A anotação no diário de Mark sobre aquela sessão
também mostrou, entre outras coisas, que minha cordinha
arrebentara no vigésimo primeiro dia daquela temporada de
surfe, no qual Mark pegara ondas de dois metros e meio ou mais,
e no nono dia em que ele surfara ondas de três metros ou mais.
Eu achava que aquilo que deveria temer acima de tudo era
ficar preso embaixo d’água por duas ondas. Era um caldo tão
prolongado que não se chegava à superfície antes que a
segunda onda o atingisse. Isso nunca tinha acontecido comigo.
As pessoas sobreviviam a isso, mas nunca felizes. Eu já ouvira
falar de caras que deixaram de surfar depois de ficarem presos
embaixo d’água por duas ondas seguidas. Quando alguém se
afogava em ondas grandes, raramente era possível saber o
motivo exato, mas eu acreditava que, na maioria das vezes, o
afogamento começava com duas ondas seguidas que prendiam
a pessoa debaixo d’água. O maior motivo para eu ficar tão
apavorado com a terceira onda naquela sequência monstruosa
que rompeu meu leash foi o fato de que estava na cara que ela ia
me manter submerso por duas ondas seguidas. Aquela onda era
um espécime raro para Ocean Beach. Era como o pior tipo de
arrastão no banco de areia interno, só que com duas ou três
vezes o tamanho. Nunca entendi em que ponto do banco de
areia ela estava quebrando, nem por quê — e ainda não entendo
—, mas, com seu volume enorme, eu soube, ao nadar por baixo
dela, que não haveria muita água sobrando à frente, o que
significava que era muito provável que, se fosse sugado, eu
tivesse ao menos um encontro — possivelmente catastrófico —
com o fundo. Além disso, passaria um período bastante longo,
talvez fatalmente longo, submerso. Eu não sabia o intervalo entre
as ondulações, mas tinha percebido, pelas primeiras ondas que
vimos, que era excepcionalmente longo. Um caldo de duas
ondas de intervalo muito grande seria, por razões óbvias, de fato
muito longo.
Passar quarenta ou cinquenta segundos embaixo d’água pode
não parecer algo muito ruim. A maioria dos surfistas de ondas
grandes é capaz de prender a respiração por vários minutos, mas
em terra ou em uma piscina. Dez segundos no meio de um caldo
de uma onda grande é uma eternidade. Aos trinta segundos,
quase todo mundo está prestes a apagar. Depois dos piores
caldos que já tomei, não tive como saber com precisão — nem
mesmo sem qualquer precisão — quanto tempo ficara preso
embaixo d’água. Procurava me concentrar em relaxar, em
aguentar o caldo, não lutar contra ele, não gastar oxigênio,
tentando conservar energia para nadar para cima quando a surra
terminasse. Às vezes, precisava escalar meu próprio leash até a
superfície, já que a prancha flutuava melhor que eu. Meus piores
caldos sempre foram aqueles que achei que tinham terminado —
mais uma batida de pernas até chegar à tona — antes de
acabarem de fato. Ter que, sem esperar, dar uma batida extra de
pernas, ou duas, ou três, ainda assim sem alcançar a superfície,
fazia com que o desespero por ar e o espasmo na garganta
parecessem um soluço ou um grito abafado. Conter o reflexo de
sugar água para os pulmões era horrível, frenético.
Nada fisicamente desagradável tinha acontecido durante a
terceira onda na série de Pacheco. E nenhuma outra onda se
seguiu àquela, então o caldo de duas ondas que eu temia caso
fosse sugado de volta não teria acontecido. Ainda assim, fiquei
assustado com o fato de ter sido por um triz. Sabia que não
estava pronto para as consequências de ser atingido em cheio
por uma onda tão potencialmente mortal. Duvidava de que um
dia estivesse.

***

Para mim, era surpreendente que alguém aprendesse a surfar


em São Francisco. Comecei a entrevistar de maneira informal
alguns caras que tinham feito isso. Edwin Salem me contou que,
quando criança, construiu um suporte de prancha para prender à
bicicleta, usando compensado e caibros encontrados na rua e as
rodas de um carrinho de compras. Ele saía do Sunset District
duas horas antes de a maré ficar boa em Fort Point, porque esse
era o tempo que demorava para pedalar até lá. Fort Point é uma
esquerda pequena embaixo da extremidade sul da Golden Gate
Bridge. Ela fica crowdeada, mas é uma onda relativamente
amigável. Aos doze, treze anos, Edwin começou a surfar a
espuma em Ocean Beach. Peewee, que já era um dos caras que
dominavam o pico por lá, disse a ele que, antes de poder surfar,
precisava recolher muita madeira — bons galhos secos para uma
fogueira que estaria em chamas quando ele saísse da água. “Eu
recolhi muita madeira”, disse Edwin. “E aturei muita coisa.” Aos
poucos, ele foi se tornando um dos locais de Ocean Beach.
Agora, na casa dos vinte anos, Edwin era um surfista tranquilo
e poderoso, com cabelo preto encaracolado e meigos olhos
verdes. Ele e eu estávamos na água em Sloat, recuperando o
fôlego depois de uma remada sofrida. Fazia frio naquele meio de
manhã. As ondas estavam fortes, porém medianas; não havia
mais ninguém no mar. O cheiro de rosquinhas frescas nos
alcançou, vindo de uma padaria perto da loja de Wise. No
horizonte, um navio de carga seguia na direção da Golden Gate.
Decidimos que estávamos longe demais. Quando começamos a
remar de volta para o pico, passando atentamente por cima das
ondulações, perguntei a Edwin sobre o surfe na Argentina. Eu
sabia que ainda viajava para o país de vez em quando a fim de
visitar a família. Edwin riu. “Depois deste lugar, eu não conseguia
acreditar como era fácil surfar lá”, contou. “A água era tão
quente! As ondas eram tão suaves! Tinha garotas na praia!”

***

Em um dia muito grande, a própria cidade assumiu uma


aparência diferente. As ruas e os prédios pareciam vitrificados e
distantes, os sinais característicos de uma esfera exausta: a
terra. Toda a ação estava no mar. Certa manhã de janeiro de
1984, as ondas em Ocean Beach estavam tão grandes que São
Francisco parecia uma cidade fantasma enquanto eu percorria de
carro os poucos quarteirões até a praia. O dia estava escuro e
feio, com chuva fraca e frio. O oceano estava cinza, marrom e
extremamente agourento. Não havia carros em Kelly’s nem em
VFW’s. Dirigi devagar rumo ao sul, para poder observar as
ondas. Era impossível saber seu tamanho. Não havia nada nem
ninguém na água para fornecer qualquer escala. As ondas
tinham no mínimo seis metros, provavelmente mais.
Sloat parecia fora de controle quando parei no
estacionamento. As ondas que quebravam mais longe estavam
quase invisíveis da praia. Remar até lá era impensável. Não
havia vento, mas, de qualquer modo, as maiores ondas estavam
borrifando um pouco devido ao volume brutal de água que
lançavam para a frente ao quebrar. As explosões que se seguiam
eram de um branco sobrenatural. Pareciam pequenas
detonações nucleares; observá-las fez meu estômago se revirar.
Mark tinha me ligado mais cedo e simplesmente dissera: “Sloat.
Se não for até lá, você é um careta.” Mas Sloat estava fora de
questão. Mark entrou no estacionamento alguns minutos depois
de mim. Virou-se na minha direção e arregalou os olhos: seu
modo de dizer que as ondas estavam ainda maiores do que ele
pensara. Deu uma risada sinistra. Concordamos em ver como
estavam as ondas no lado sul de um píer temporário que a
prefeitura erguera a menos de um quilômetro de Sloat. Quando
estávamos de partida, Edwin chegou ao estacionamento. Mark
também o acordara ao amanhecer. Nós três seguimos de carro
para as dunas ao sul de Sloat.
O swell vinha do noroeste — estava sendo gerado por uma
grande tempestade nas Aleutas —, por isso o píer, que tinha
cerca de quatrocentos metros de comprimento, diluía de forma
significativa o poder das ondas imediatamente ao sul. Ali, elas
pareciam quase surfáveis, com metade da altura das coisas
gigantescas no lado norte. Porém, ainda havia a questão de
chegar ao pico. Às vezes, as pessoas remavam por baixo do píer
— uma contracorrente que carregava de volta ao oceano a água
acumulada perto da praia cavara uma vala profunda naquele
ponto, por isso as ondas quase nunca quebravam ali. Mas a
coisa estava feia embaixo do píer. Havia cabos soltos
pendurados e grandes placas de ferro se projetando em ângulos
esquisitos para fora d’água, sem falar nos próprios pilares, que
eram próximos uns dos outros e não saíam da frente quando as
ondas arremessavam alguém na direção deles. Eu já tinha
remado por ali algumas vezes, em dias em que chegar ao pico
em Sloat estava acima das minhas possibilidades, mas
prometera não fazer aquilo outra vez. De qualquer modo, até
remar por baixo do píer parecia impossível naquela manhã.
Ondas quebradas rugiam através das colunas como se fossem
pequenas avalanches atravessando uma floresta de ferro. O
único meio não letal de chegar ao pico naquele dia seria passar
escondido pelo guarda do canteiro de obras, correr pelo píer e
saltar na extremidade, que ficava seguramente além da
arrebentação.
“Vamos lá”, disse Mark.
Nós três estávamos na van dele — uma Dodge 1975 robusta,
aos pedaços e preparada para viagens —, estacionada em uma
estrada de terra logo ao sul do píer. Ninguém dissera nada além
de “Ah, meu Deus!” e “Olhem só aquilo!” durante os dez minutos
anteriores. Eu não estava com absolutamente nenhuma vontade
de surfar. Por sorte, minha prancha não era adequada para
aquelas condições; nem mesmo a gun de dois metros e meio de
Edwin parecia grande o suficiente. Mark sempre carregava duas
pranchas de ondas grandes, ambas com mais de dois metros e
setenta. Ele disse que um de nós podia usar uma delas.
“É por isso que eu não tenho uma prancha com mais de dois
metros e setenta”, disse Edwin, rindo de nervoso.
Na verdade, era por isso que a maioria dos surfistas não tinha
pranchas com mais de dois metros e meio: talvez elas um dia
fizessem você cogitar realmente cair na água em condições que
exigiam esse tipo de prancha. Certa vez, na loja de Wise, eu
ouvira um surfista murmurar enquanto ele e os amigos
observavam uma gun de três metros em exposição: “Essa vem
com um caixão grátis.” O mercado para pranchas com natureza
dessa gravidade era minúsculo.
Mark saltou da van, deu a volta até a porta lateral e começou a
vestir a roupa de neoprene. Pela primeira vez desde que havia
me mudado para São Francisco, eu estava pronto para me
recusar a cair na água, e talvez Mark tenha percebido. “Vamos lá,
Edwin”, disse. “A gente já surfou ondas maiores.”
Era provável que houvessem mesmo feito isso. Mark e Edwin
tinham um pacto informal, mas firme, em relação a ondas
grandes. Os dois surfavam juntos desde que haviam se
conhecido, em 1978. Mark se interessava pelo bem-estar de
Edwin, aconselhando-o sobre como se virar nos Estados Unidos
e estimulando-o a ir para a faculdade. Edwin, que morava com a
mãe — seus pais eram divorciados —, valorizava o
aconselhamento de pai adotivo de Mark, que em certo momento
passou a incluir um discurso contínuo de incentivo sobre o tema
de surfar ondas grandes. Edwin tinha o físico perfeito para elas:
era de constituição forte, um nadador robusto, um bom surfista.
Também contava com sangue-frio e uma grande dose de alegria
juvenil. Por fim, havia o fato de que ele confiava — até idolatrava
— Mark. Isso fazia de Edwin um aprendiz ideal em um programa
que, ao longo de vários invernos, o levara para ondas cada vez
maiores, até que o fez chegar a ondas enormes. O pacto de Mark
e Edwin consistia, em grande parte, em uma compreensão não
verbal de que Mark não levaria Edwin para a água em dias em
que ele provavelmente se afogaria.
Edwin balançava a cabeça de modo lúgubre enquanto abria o
zíper da jaqueta acolchoada. Na companhia da maior parte das
pessoas, ele pareceria uma escolha muito improvável para o
papel de Sancho Pança — tem mais de um metro e oitenta,
queixo largo e aparência de galã —, mas percebi, ao ver os dois
vestirem as roupas de neoprene, que Mark podia fazer qualquer
companheiro parecer coadjuvante.
Enquanto Edwin brincava com um leash que transferia de sua
prancha para a que Mark tinha lhe emprestado — uma gun
monoquilha pesada, amarelo-clara, de dois metros e noventa —,
Mark me ensinou a usar a câmera dele. Em seguida, levou a
prancha que ia usar — uma magnífica três quilhas estreita maior
ainda — até as dunas, esfregou cuidadosamente a parafina no
deck e fez uma série de alongamentos intensos de ioga, tudo
sem tirar os olhos das ondas.
“Por que a gente faz isso?”, perguntou-me Edwin, com um riso
nervoso e entrecortado.
Finalmente, ele estava pronto. Os dois saíram e passaram
trotando de leve pelo trailer do guarda, desapareceram por trás
de montes de manilhas de esgoto mastodônticas e reapareceram
um minuto depois já no píer, ainda correndo — as silhuetas
flexíveis e as pranchas grandes e dramáticas em contraste com o
céu esbranquiçado. Além do píer, eu via as ondas quebrando
perto de Sloat, o que para mim era inédito. Ainda mais ao norte,
as elevações de ondulações bege-acinzentadas e paredes
brancas eram uma cena saída dos meus pesadelos de surfe.
Mesmo sentado, aquecido e seco na van, eu ficava assustado
com as ondas.
Na extremidade do píer, Mark e Edwin desceram por uma
escada, pularam em cima das pranchas e começaram a remar de
volta na direção da praia. A aproximação deles deu escala às
ondas, que se revelaram menos monstruosas do que eu
imaginara. Edwin dropou uma esquerda corpulenta, que se
ergueu com cerca de três vezes a altura dele. A onda era
marrom, cor de barro, e tinha um aspecto faminto. Comecei a
tirar fotos. Edwin entrou nela bem, mas de repente a onda se
alinhou por toda a distância até o píer, quase cinquenta metros
ao norte, e fechou, então ele foi obrigado a virar, seguindo reto
na direção da praia. A espuma explodiu e o engolfou. No
momento seguinte, a prancha surgiu dando piruetas na espuma;
o leash tinha arrebentado. As ondas estavam quebrando perto da
praia — não havia banco de areia externo no lado sul do píer —,
e Edwin foi jogado rapidamente na areia. Ele veio subindo com
esforço as dunas e sorriu quando eu lhe disse que tinha tirado
várias fotos dele pegando a onda. “A situação não está tão difícil
na água. Acho que não”, disse ele. “Meio fechado, talvez.” Edwin
queria pegar o leash da minha prancha emprestado. Concordei
de bom grado. As ondas pareciam mais que “meio fechadas”, e a
temperatura continuava baixa, em torno de cinco graus.
Quando Edwin saiu andando outra vez pelo píer, percebi uma
série impressionante quebrar em um banco de areia externo,
talvez uns duzentos metros ao norte. Com pessoas na água,
agora era possível dizer que Sloat estava mesmo com mais de
seis metros. Mas a série que vi quebrando no banco de areia
externo era mais que gigantesca: era também fenomenalmente
violenta. As ondas pareciam se virar do avesso ao quebrar e,
quando faziam uma pausa, cuspiam nuvens de ar enevoado —
ar que havia ficado preso no interior dos tubos, do tamanho de
caminhões. Eu nunca tinha visto nada parecido, nem no North
Shore: tubos de seis metros baforando. Edwin gesticulava para
Mark, tentando mostrar a ele onde uma série no horizonte no
lado sul parecia estar planejando quebrar. O trovejar das ondas
embaixo do píer abafava o ronco das maiores e mais distantes, e
Edwin nunca olhava para o norte; teria congelado com o que
veria.
Mark pegou duas direitas triangulares de três metros e
completou ambas. Porém, de onde estava, eu não tinha um bom
ângulo para fotografar as direitas. E, fotograficamente falando, a
situação ao sul do píer começou a se deteriorar depois que
Edwin caiu outra vez na água. Começou a chover forte, e Mark e
Edwin, que eu mal conseguia enxergar através da névoa, ficaram
meia hora sem pegar nenhuma onda. Guardei a câmera de Mark,
tranquei a van e fui para casa.
Mais tarde, Edwin me contou que pegou outra esquerda logo
depois que fui embora. Ele a completou, mas a onda seguinte,
um pico de quatro metros e meio que veio quebrando através do
píer, o pegou no inside. Meu leash arrebentou, mas dessa vez
ele não foi jogado na praia. Em vez disso, foi puxado e carregado
por uma corrente poderosa direto para o píer. Aterrorizado,
conseguiu desviar dos pilares com dificuldade e saiu ileso do
lado norte. Mas ali a corrente virou rumo ao mar e começou a
levá-lo na direção do banco de areia externo — o mesmo onde
eu tinha visto tubos de seis metros se virando do avesso e
cuspindo água. Ele nadou na direção da praia, mas a corrente
era mais forte. Edwin já estava a centenas de metros de distância
da praia, fraco e em pânico — no entanto, ainda ao sul do banco
de areia assassino —, quando uma série bizarra de águas
profundas quebrou atrás dele. Eram ondas muito mais fracas do
que as que quebravam no lugar para o qual ele se dirigia, por
isso Edwin ficou na superfície e deixou que elas o atingissem. A
série o levou até a parte interna da margem. Ali, ele conseguiu
nadar na trilha de espuma que chegava trovejante do banco de
areia assassino e que o levou ainda mais para o inside. Ao
chegar à praia, em algum lugar perto de Sloat, estava fraco
demais para andar.
Mark o encontrou ali. Edwin estava muito abalado para dirigir,
por isso Mark o levou para casa de carro. Não sei se ele
mencionou a Edwin o que estivera fazendo enquanto o outro
tinha lutado pela vida na água e ficado deitado, sem fôlego, na
areia, mas depois Mark me contou que ficara entediado com as
longas calmarias ao sul do píer e remara até o lado norte.
Permanecera no outside do banco de areia assassino, mas
pegara algumas ondas gigantescas em Sloat antes de seguir
rumo ao sul a fim de procurar Edwin. Ficara preocupado depois
de encontrar jogada na praia a prancha que havia emprestado, e
muito aliviado quando enfim avistara o próprio Edwin. O pacto
sobrevivera a um teste severo. Após Mark levá-lo de volta para o
apartamento que dividia com a mãe, Edwin ficou vários dias sem
cair na água. Surfou pouco pelo restante daquele inverno, e não
o vi na água em ondas grandes outra vez.

***

Outro dia frio em Sloat. Há meia dúzia de pessoas na água, com


ondas lisas de dois metros e meio. Estou na praia, aquecido e
seco, fora de combate desde que arrebentei o tornozelo duas
semanas antes, em uma queda livre em Dead Man’s, uma
parede íngreme à esquerda do lado sul da Golden Gate. Estou
de volta à van de Mark, outra vez com a câmera. Quase nunca
tiro fotos de surfe — não consigo ficar parado quando as ondas
parecem boas —, mas Mark notou e aproveitou outra chance de
pôr a câmera em minhas mãos. Quase todos os surfistas amam
fotos de si mesmos surfando. Dizer que as ondas e as surfadas
que elas propiciam são eventos inerentemente passageiros e
que, portanto, os surfistas naturalmente querem lembranças não
é nem o começo da explicação para a paixão coletiva por
retratos. Eu deveria fotografar dois ou três caras, Mark e os
amigos, mas eles não estavam pegando muitas ondas. O pico
mudou para o sul, levando o crowd junto, de modo que meus
modelos se dissolveram em um campo cintilante de luz.
O combinado era que eu seguisse para o sul com eles.
Arrasto-me para o banco do motorista, ligo o motor e de repente
me sinto como uma criança usando o sobretudo do pai: as
mangas caindo até a altura dos joelhos, a barra arrastando no
chão. Na verdade, Mark não é muito mais alto que eu — entre
três e cinco centímetros —, mas o banco parece estranhamente
grande, até o volante parece gigantesco, e a própria van parece
menos um carro que um navio de passadiço alto e leme firme
enquanto eu a conduzo pelas poças e pelos buracos no
estacionamento de Sloat. Do banco do motorista, o veículo, com
pranchas empilhadas no alto, parece permeado por uma
sensação de poder de um grande felino se alongando, de bem-
estar e boa saúde. Desse ponto de vista de rei da selva
mergulhado em surfe, penso, talvez eu também ficasse inclinado
a catequisar.
Mark entendia a compulsão por fotos de surfe. Não só fazia
exibições de slides e tinha fotos de si mesmo expostas por todo o
apartamento, mas também adorava presentear os amigos com
fotos deles mesmos surfando. Eu vira essas imagens
penduradas nas casas de seus modelos, emolduradas como
imagens religiosas. Ele me deu uma foto na qual eu estava
semiagachado no interior de um tubo cinza-ardósia em Noriega.
Caroline mandou emoldurá-la para o meu aniversário. Era uma
ótima foto, mas me frustrava olhar para ela porque o fotógrafo,
um amigo de Mark, fizera o disparo um instante antes do ideal.
Logo depois do momento registrado, desapareci no interior
daquela onda. Era a foto que eu cobiçava: a onda sozinha, com a
consciência de que eu estava ali dentro, traçando uma linha alta
por trás da cortina de contas prateadas que derramava. Aquela
passagem invisível, não o momento de expectativa, era o
coração da surfada. Mas as fotos não têm a ver com a sensação
de surfar uma onda, têm a ver com a aparência daquela onda
para outras pessoas. Esse registro em Noriega — estou olhando
para ele agora — mostra um mar escuro; no entanto, minha
lembrança daquela onda é banhada de luz prateada. Isso porque
eu estava olhando para o sul enquanto navegava nas
profundezas da onda e quando saí por seu olho amendoado de
volta ao mundo.
Para mim, e não apenas para mim, o surfe abriga este
paradoxo: um desejo de estar sozinho com as ondas fundido a
um desejo de ser observado, de realizar uma performance.
O lado social pode ser competitivo ou um desejo puro por
companheirismo — ou, com mais frequência, ambos. Em São
Francisco, descobri que isso era atipicamente forte. A
comunidade de surfistas era pequena, e a solidão de surfar
Ocean Beach quando as ondas se agitavam era enorme. A
esposa de Tim Bodkin, Kim, me deixou ciente de qual era minha
posição na comunidade em uma bela manhã de primavera. Eu
estava passando parafina na prancha diante da casa dela na
Great Highway. Vários outros surfistas avançavam pelo túnel de
Taraval. Kim estava com o filho bebê no colo. Ela o ninava sob o
sol. (Mark já tinha previsto que Tim iria parar de surfar Sloat no
inverno seguinte.) “Então, essa história toda de Esquadrão do
Doc está rolando?”, perguntou ela.
“O quê?”
“O Esquadrão do Doc”, repetiu Kim. “Não me diga que nunca
ouviu falar! Você é membro de carteirinha.”

***
A nova edição da Surfer estava no balcão da Wise.
Normalmente, eu a pegaria e começaria a folheá-la. Mas a capa
trazia uma esquerda azul familiar quebrando ao fundo enquanto
um surfista saltava com sua prancha de um barco no primeiro
plano. “FIJI FANTÁSTICA!”, dizia a manchete. Uma faixa no canto
superior esquerdo gritava: “DESCOBERTA!” Era, é claro, Tavarua.
Tive vontade de vomitar. E ainda não sabia nem metade da
história.
Acabou que a reportagem da Surfer não era sobre a
descoberta de uma grande onda nova, mas sobre a abertura de
um resort. Pelo jeito, dois surfistas da Califórnia tinham comprado
ou alugado a ilha e construído um hotel, que agora estava aberto
e em funcionamento. Ofereciam acesso exclusivo àquela que
talvez fosse a melhor onda do mundo a um máximo de seis
convidados pagantes. Este era um novo conceito: pagar para
surfar ondas sem crowd. Reportagens sobre a descoberta de um
novo pico incrível eram uma tradição das capas de revistas de
surfe, mas as regras implícitas sobre não revelar sua localização
eram. Talvez o continente fosse divulgado, mas em geral o país,
às vezes até mesmo o oceano, permanecia secreto. As pessoas
podiam adivinhar, mas apenas algumas, e precisariam se
esforçar para isso, depois iriam querer guardar o segredo para si.
Na matéria em questão, todas essas regras tinham sido
ignoradas. Crowds em Tavarua seriam impedidos pelo resort e
pelo acordo feito com as autoridades locais. Seria uma onda
particular. Reserve já! Aceitamos todos os principais cartões de
crédito. Havia até um anúncio do resort na mesma edição da
revista.
Bryan, por acaso, estava a caminho de São Francisco naquela
semana, vindo de Tóquio. Ele vinha trabalhando como repórter
freelancer para revistas de viagem; tinha ido fazer uma pauta em
Hokkaido. Fui esperá-lo no aeroporto. No carro, a caminho de
casa, botei a Surfer no colo dele. Bryan começou a xingar em voz
baixa. Aos poucos, passou a falar mais alto. Especular sobre
quem tinha dado com a língua nos dentes era inútil. Nossa
fantasia compartilhada estivera errada. No fim das contas,
Tavarua não ficara esperando castamente por seis anos, com
ondas transcendentais rugindo recife abaixo sem serem
surfadas.
Bryan encarou a situação pior do que eu; ou, pelo menos, de
maneira menos passiva — escreveu uma carta mordaz para a
Surfer. Ele me disse que, ao nos sentirmos prejudicados,
estávamos, sim, agindo de maneira egoísta, reclamando de
terem usado algo que nem estávamos usando. Ainda assim,
detestou tudo aquilo, e eu também. Tudo o que é livre neste
mundo acaba explorado, sujo e estragado, constatou ele. Sua
carta à Surfer fazia as perguntas certas sobre acordos
financeiros entre a revista e o resort, chamando os editores de
cafetões ou, no melhor dos casos, de imbecis.
Foi estranho ver Bryan em carne e osso. Ainda éramos
correspondentes fiéis e escrevíamos um para o outro com grande
frequência, de tal modo que, às vezes, eu me sentia como se
estivesse vivendo uma segunda vida, mais alegre, em Montana
— esquiando muito, bebendo muito e convivendo com escritores
malcomportados e talentosos que sempre pareciam se reunir ali.
Bryan vinha publicando muita coisa, reportagens e resenhas, e
estava trabalhando em outro romance. Morava com uma “mulher
magrinha e malvada”, como ele dizia, uma escritora chamada
Deirdre McNamer, que não tinha nada de malvada e que
acabaria fazendo o grande favor de se casar com ele. As
reportagens de viagem o levavam a toda parte — Tasmânia,
Cingapura, Bangcoc. Deirdre o acompanhou a Bangcoc, onde
Bryan lhe mostrou o Station Hotel, nossa velha morada. Até ele
ficou chocado com a pobreza. “Como uma cidade é diferente
com dinheiro”, escreveu na página quinze de uma carta
endereçada a mim do sudeste asiático. “Ela se torna refrigerada,
administrável, fluente.” As cartas de Bryan tinham um quê de
Whitman; eram vulcânicas, engraçadas — mesmo as assoladas
por autopunição, que eram angustiantemente frequentes. Certa
vez, ele escreveu que acabara de se dar conta de que a
hospitalidade que recebemos em 1978 de Sina Savaiinaea e sua
família em Samoa lhes custara muito em relação aos recursos
que eles tinham, e que nós havíamos retribuído com
quinquilharias em vez do dinheiro de que eles precisavam e
esperavam desesperadamente, mas que foram educados demais
para mencionar. Bryan ficou tão horrorizado que não conseguiu
dormir. Não sei bem se ele estava errado.
Fazia algum tempo que Bryan não surfava. Houve um
pequeno swell em outubro. Mark emprestou a ele uma prancha e
uma roupa de neoprene. O traje era pequeno demais, e Bryan se
esforçou muito para vesti-lo, contorcendo-se na penumbra da
garagem de Mark enquanto o dono da casa e os amigos
observavam a cena e se divertiam muito. Ajudei Bryan a fechar o
zíper do traje. Na água, ele teve problemas outra vez. A espuma
de Ocean Beach mostrava-se, como sempre, impiedosa, e ele
estava fora de forma. Eu furava as ondas ao lado dele, fazendo
pequenas sugestões indesejadas. Surfamos duas vezes durante
sua estadia, e Bryan afirmou estar eufórico por voltar ao oceano.
Esperei por uma observação desdenhosa de algum membro
mais novo do Esquadrão do Doc, louco para repreender qualquer
um que falasse alguma coisa, mas ninguém disse nada. Bryan
avaliou Mark e vice-versa. As pessoas de que Bryan menos
gostava eram as arrogantes.
Enquanto isso, Bryan e Caroline estavam falando a mesma
língua. Percebi que ele anotava observações descartáveis dela
— quando ela me chamou de “hiena” por fugir pela cozinha ou
quando perguntou indignada por que um viciado em malhação
local achava que alguém se interessaria pelo “corpo nojento”
dele. Bryan nos trouxe adesivos turísticos do Japão escritos em
inglês — FIZEMOS UM BELO TOUR e TIRAMOS FOTO DE TUDO —, que
colamos na geladeira.
Cerca de um ano depois dessa visita, ele escreveu um texto
curto sobre seu time de softball, o Montana Review of Books, e
me enviou o manuscrito. Será que eu achava que a New Yorker
poderia se interessar? Respondi que o texto era bom, mas não
se encaixaria na seção Talk of the Town. Romanceado demais,
confessional demais. Eu era um especialista, é claro, depois de
vender um único texto para a revista. No entanto, Bryan não
esperou que minha carta com os conselhos chegasse. Enviou o
artigo. William Shawn, editor da revista, leu o texto e telefonou
para ele, cheio de elogios. Shawn pagou para que Bryan fosse
até Nova York, instalou-o no Algonquin Hotel e perguntou-lhe o
que mais ele gostaria de escrever. O editor publicou o texto sobre
softball imediatamente e pautou Bryan para escrever uma
reportagem em duas partes sobre a história da dinamite — ideia
do próprio Bryan. Quando Deirdre me contou que meu amigo
estava em Nova York e a razão, pedi humildemente que ele não
abrisse minha carta, que, naquele momento, esperava em
Missoula pela volta dele.

***

Um dia muito grande no fim do inverno em VFW’s. Tim Bodkin e


Peewee são os únicos na água. Da praia, o mar é apenas um
lençol ofuscante e incolor de brilho da tarde, rompido
intermitentemente pelas paredes negras de ondas. Mark esteve
na água mais cedo. Quando voltou para a praia, disse que as
ondas alcançavam entre três metros e três metros e meio e que a
corrente para o norte estava “matadora”. Um leve vento noroeste
tinha começado desde então, estragando a superfície e tornando
as ondas um pouco mais perigosas e difíceis de surfar. Bodkin e
Peewee estão pegando poucas ondas. Na maior parte do tempo,
ficam invisíveis em meio ao brilho. As ondas que conseguem
pegar são todas esquerdas enormes que quebram em um banco
de areia externo, que raramente vi quebrar e nunca vi surfável.
Em geral, não considero VFW’s um pico de ondas grandes. Em
dias pequenos e limpos, costuma ser o trecho mais crowdeado
de Ocean Beach. Mas esse é o tipo de dia em que Bob Wise diz
receber muitos telefonemas de caras perguntando,
esperançosos: “Está pequeno?” Quando Bob responde “Não,
está enorme”, eles subitamente se lembram de todas as coisas
que precisam fazer em locais distantes da Bay Area.
Oito ou dez surfistas observam do quebra-mar, nervosos e
ranzinzas. Todos parecem concordar que o vento estragou as
ondas, que não há razão para cair na água agora. Uma
quantidade incomum de palavrões — incomum até para surfistas
— é usada para discutir as ondas, o clima, o mundo. As pessoas
andam de um lado para outro, os punhos metidos nos bolsos,
rindo alto demais, a boca seca. Então Edwin, que vem
observando o oceano em silêncio por trás de óculos escuros
espelhados, se pronuncia: “Tenho uma ideia. Vamos formar um
grupo de apoio. Não vou cair na água porque estou com medo de
cair na água. Por que todos nós simplesmente não dizemos isso?
‘Não vou cair na água porque estou com medo de cair na água.’
Vamos lá, Domond, diga.”
Domond, um cara barulhento e durão que trabalha na loja de
Wise quando não está dirigindo um táxi, vira o rosto, enojado.
Então Edwin se dirige a outro garoto local conhecido como
Beeper Dave, mas ele também lhe dá as costas, resmungando e
balançando a cabeça. Todo mundo ignora Edwin, que
simplesmente ri e dá de ombros.
“Série”, alguém grunhe. Todos os olhos se voltam para o
horizonte, onde a lâmina reluzente do mar começa a erguer
linhas cinzentas assustadoramente grandes. “Aqueles caras
estão mortos.”

***

Decidi tentar escrever sobre Mark. Ele topou. Mandei uma pauta
para a New Yorker: um perfil desse maravilhoso surfista urbano
de ondas grandes que também é médico. Shawn gostou da ideia.
A matéria foi encomendada.
Depois disso, as coisas mudaram entre mim e Mark. Parei de
ficar mortificado com a possibilidade de as pessoas me
confundirem com um de seus acólitos. Eu era o Boswell dele,
entende? Entrevistei-o sobre sua infância — o pai dele era
psiquiatra em Beverly Hills. Cataloguei o conteúdo da van.
Acompanhei-o no trabalho e observei enquanto examinava
pacientes. Ele tinha sido uma espécie de prodígio quando
estávamos na faculdade. Depois que o pai desenvolveu um
tumor, Mark, então no curso preparatório para a escola de
medicina, começou a estudar o câncer com uma intensidade que
convenceu muitos de seus amigos de que o objetivo dele era
encontrar uma cura a tempo de salvar o pai. No fim das contas, o
pai nem tinha câncer. Mas Mark seguiu em frente com os estudos
sobre a doença. Seu interesse não era na verdade a oncologia —
descobrir a cura —, mas a educação e a prevenção do câncer.
Quando entrou na escola de medicina, Mark já tinha criado uma
série de cursos universitários sobre a doença com outro aluno e
sido coautor de The Biology of Cancer Sourcebook, obra didática
de um curso que acabou sendo oferecido a dezenas de milhares
de estudantes. Foi coautor de um segundo livro, Understanding
Cancer, que se tornou um best-seller universitário, e seguiu
ministrando palestras pelos Estados Unidos sobre pesquisa,
educação e prevenção do câncer.
“O engraçado é que, na verdade, eu não me interesso pela
doença”, contou-me Mark. “Eu me interesso pela reação das
pessoas a ela. Muitos pacientes e sobreviventes de câncer
contam que nunca tinham vivido até o diagnóstico, que a doença
os forçou a encarar as coisas, a experimentar a vida de maneira
mais intensa. O que você vê na prática da medicina familiar é
que os familiares simplesmente não podem mais se dar ao luxo
de serem superficiais uns com os outros quando alguém tem
câncer. Por mais sentimental que isso possa parecer, o que me
interessa de fato é a coragem humana, como as pessoas reagem
ao estresse e à adversidade. Sou fascinado pela forma como
eles lutam, como continuam se esforçando para voltar à tona.”
Mark deu braçadas no ar. Imitava o esforço para chegar à
superfície através da turbulência de uma onda grande.
Pedi a Geoff Booth, um jornalista, surfista e médico
australiano, sua opinião profissional. “Sem dúvida, Mark tem
dentro de si um desejo de morte”, opinou Booth. “É uma força
motivadora extrema, que acho que pouca gente no mundo
conseguiria entender. Só conheci outra pessoa que tinha isso:
Jose Angel.” Jose Angel era um grande surfista havaiano de
ondas grandes que desapareceu quando mergulhava perto de
Maui, em 1976.
A teoria de Edwin era que Mark se sentia atraído pelo surfe de
ondas grandes por causa da raiva e da insignificância que sentia
quando os pacientes morriam. Mark disse que isso era ridículo. A
outra hipótese de Edwin era freudiana. (Ele era da Argentina,
lembre-se, país onde a psicanálise é uma religião da classe
média.) “É obviamente erótico”, disse ele. “Aquela prancha
grande é o pau dele.” Essa parte eu nem contei para Mark.

***

Terminei meu livro sobre a África do Sul. Enquanto aguardava


notícias da editora, fui para Washington fazer uma matéria sobre
a política dos Estados Unidos em relação ao país. A agitação civil
na África do Sul estava nas manchetes, e o movimento
antiapartheid ganhava força no mundo todo. Um grupo de
congressistas conservadores jovens, liderado por Newt Gingrich,
prevendo corretamente que o apartheid estava condenado, havia
armado uma revolta contra a política do governo Reagan, que
era basicamente pró-apartheid. Seguiu-se uma onda de lutas
internas no Partido Republicano, e alguns dos principais nomes
estavam ansiosos para falar. Eu era bastante a favor do
movimento antiapartheid, mas minha cara de paisagem estava
cada vez melhor (apesar de continuar misturando metáforas) e o
refinamento da minha compreensão do poder prosseguiu. Eu
usava um terno preto barato, carregava uma pasta nova que
Caroline me dera e tentava agir como se soubesse o que estava
fazendo nos escritórios de deputados e senadores, no
Departamento de Estado, na Heritage Foundation. Abri caminho
até a ala militarista na qual o tenente-coronel Oliver North, que
ainda não era uma figura pública na época, operava. Eu era
imaturo e esquisitão, mas amava o trabalho: seguir pistas,
estabelecer conexões, fazer perguntas difíceis. Era minha
terceira ou quarta matéria para a Mother Jones, uma revista
mensal de esquerda de São Francisco que também tentava
encontrar caminho em um mundo maior. A revolta dos jovens
conservadores no Congresso foi bem-sucedida. Aos poucos e
com delicadeza, Reagan reverteu as sanções econômicas contra
Pretória. Entretanto, seu governo continuou a provocar inúmeras
mortes na Nicarágua.
Meu novo status de repórter pareceu ser compreendido aos
poucos pela pequena comunidade de surfe de São Francisco. A
essa altura, eu conhecia a maioria dos principais caras — e ainda
havia apenas homens na água em Ocean Beach, nenhuma
mulher —, embora poucos soubessem muita coisa sobre mim.
Quando a notícia de que eu estava escrevendo sobre Mark se
espalhou, achei que as pessoas passaram a me olhar de
maneira diferente. Algumas ofereciam suas opiniões. “Ele é a
maior criança de Ocean Beach”, disse Beeper Dave, no bom
sentido. “Uma coisa sobre o Doc: ele acredita que qualquer coisa
é possível”, opinou Bob Wise. Outra imagem de Mark, até então
invisível para mim, também começou a emergir. A expressão
mais vívida dela veio de um estranho que remou, determinado,
até onde eu estava em VFW’s. O sujeito tinha cara de durão,
com cabelo comprido louro-escuro e uma expressão de quem já
tinha visto de tudo, e se aproximou muito mais de mim do que a
etiqueta social do surfe permitia. Ele me encarou e resmungou:
“O Doc é a porra de um prego.” Não respondi nada, e depois de
um tempo o cara se afastou. Também foi um prazer conhecê-lo.
De cara, a observação que ele tinha feito era absurda. No dialeto
do surfe, “prego” significa iniciante. Mas a questão era o insulto,
que era o mais forte possível no mundo do surfe, e a hostilidade
efervescente. Anotado.
Eu via Mark como um aluno dedicado de Ocean Beach. Mas
descobri que, para alguns surfistas locais, ele era apenas um
garoto rico de Los Angeles que ocupava muito espaço físico. A
divisão social entre nativos da classe operária e recém-chegados
de classe mais alta não era nem simples nem clara. Muitos dos
amigos de Mark moravam em Sunset District. E havia vários
frequentadores habituais de Ocean Beach cujas histórias não se
encaixavam em nenhuma das categorias. Sloat Bill, por exemplo,
era um negociante de commodities do Texas, com passagem por
Harvard. Ganhara o apelido quando, após um de seus divórcios,
mudou-se para o carro e morou por um mês no estacionamento
de Sloat, jurando não sair até ter dominado a difícil arte de surfar
ali. Tendo ou não alcançado esse objetivo, ele sem dúvida
ganhou mais dinheiro digitando ordens de compra e venda em
um computador plugado no isqueiro do carro no estacionamento
de Sloat do que qualquer um de nós. Sloat Bill se mudara de
volta para São Francisco, depois de um período em San Diego, e
declarou: “Surfar por lá era como dirigir numa autoestrada.
Totalmente anônimo.”

***

O contrato social do surfe é um documento delicado. Ele é


redigido novamente toda vez que você cai na água. Em picos
crowdeados, durante a disputa por ondas com uma multidão de
estranhos, talento, agressividade, conhecimento da área e
reputação no local (se você tiver alguma) ajudam a estabelecer
certa ordem de prioridade. Em geral, eu competira alegremente
em Kirra, Malibu, Rincon e Honolua. Mas na maioria dos picos,
que são menos famosos, tudo é mais sutil, com regras implícitas
construídas com base em personalidades e condições locais.
Dias crowdeados eram raros em Ocean Beach. No entanto,
existiam, e as sensibilidades e o decoro entravam em jogo, como
em qualquer outro lugar.
Certa tarde de fevereiro, caí na água em Sloat e encontrei pelo
menos sessenta pessoas no line-up. Não reconheci ninguém. Era
o terceiro dia de um swell sólido de oeste. As condições estavam
incríveis: quase dois metros, nem um sopro de vento. Em geral,
os bancos de areia de inverno começavam a se desfazer no
início de fevereiro, mas não nesse ano. O que aconteceu, pensei,
foi que os surfistas de um lado a outro da costa, que em geral
não queriam saber de Ocean Beach, tinham decidido em massa
que, com os principais swells de inverno provavelmente
terminados e as condições ainda improvavelmente limpas, a
temida Ocean Beach podia ser atacada com segurança. Eu
entendia aquela bravata seletiva, é claro, porque também a
sentia, junto com um alívio imenso por ter sobrevivido a mais um
inverno — aquele era meu terceiro. Ainda assim, fiquei
ressentido com a horda. Fui esmagado no banco de areia
interno, mas consegui escapar dali e comecei a procurar um pico
para surfar. O crowd tinha um aspecto amorfo, sem foco — não
havia conversas em andamento. Todo mundo parecia
concentrado nas ondas e em si mesmo. Tomei fôlego, escolhi o
marco de um pico — um ônibus escolar parado no
estacionamento de Sloat — e optei por uma posição arriscada
bem no meio de um grupo de quatro ou cinco caras.
Naquele lugar, eu estava vulnerável a uma série grande, mas,
em um crowd, era importante mostrar serviço nas suas primeiras
ondas. Além disso, depois de um longo inverno, eu conhecia os
bancos de areia ali melhor do que aqueles turistas. Acabou que a
onda que chegou em seguida foi ótima, frustrando os esforços de
dois caras que estavam mais para fora e me proporcionando uma
primeira surfada rápida, ágil e segura. Ao remar para o pico outra
vez, eu estava morrendo de vontade de falar com alguém sobre a
onda, sobre o grande estrondo do lip ao romper a superfície às
minhas costas, sobre as partes ocas matizadas de âmbar da
parede interna. Mas não havia ninguém para quem contar isso.
Dois mergulhões negros surgiram da espuma ao meu lado, com
o pescoço comprido parecendo um periscópio emplumado e os
olhos grandes e surpresos me olhando fixamente. “Vocês viram
minha onda?”, murmurei.
Todo mundo na água era a estrela do próprio filme, e era
necessário ter permissão antes de jogar na cara de qualquer
outra pessoa suas façanhas. Reprises vocais instantâneas e
exultação barulhenta não são desconhecidas no surfe, mas são
sujeitas a um código estrito de controle do ego. Surfistas jovens
às vezes não entendem essa parte do contrato social do surfe e
se gabam e intimidam uns aos outros na água, mas em geral
maneiram quando há surfistas mais velhos por perto. O crowd
habitual em Ocean Beach era mais velho que a maioria — na
verdade, não conseguia me lembrar de já ter visto um
adolescente na água em um dia grande —, e os limites implícitos
de tagarelice entre estranhos eram firmes. Quem os ultrapassava
era deixado de lado. Quem os ultrapassava de modo consciente
era odiado, pois não respeitava a qualidade poderosamente
autocontida do que outros surfistas, sobretudo os menos
faladores, faziam ali na água.
Dirigi-me a um pico vazio um pouco ao norte do ônibus
escolar. Peguei duas ondas rápidas, e meia dúzia de pessoas
achou apropriado se juntar a mim. A disputa por ondas se tornou,
para os padrões de Ocean Beach, bem ruim. Ninguém falava.
Cada sonhador ficava profundamente imerso no próprio sonho —
se apressando, dissimulando, deslizando e remando em direção
a todas as ondas possíveis. Então uma série grande chegou e
quebrou quase cinquenta metros antes do banco de areia em
que surfávamos. Paredes de espuma enormes arrancaram todos
nós das pranchas, empurrando algumas almas sem sorte para
bem além do banco de areia no inside. O grupo que voltou a se
reunir alguns minutos depois era menor e, agora, tinha algo
sobre o que falar. “Minha perna do leash acabou de crescer
quinze centímetros.” “Aquelas ondas pareciam as de dezembro.”
Estabelecemos uma espécie de rotação. Ondas eram cedidas e
tomadas, e os que cediam às vezes recebiam até um
agradecimento. Depois de ondas dignas de nota, murmuravam-
se elogios. As chances de aquele swell durar mais um dia foram
discutidas em sessão geral. Um asiático musculoso de Marin
County estava pessimista: “É um oeste de três dias. Temos um
desse todo ano.” Ele repetiu a previsão, depois a disse outra vez
para aqueles que pudessem tê-la perdido. O grupinho no pico do
ônibus escolar nunca seria conhecido por sua conversa
inteligente, mas conseguira alcançar uma coerência tosca. Um
tecido delicado de iniciativa compartilhada havia baixado sobre
todos nós, e percebi que meu ressentimento com os não locais
tinha desaparecido. A maré, que subia, foi unanimemente
culpada por uma calmaria longa. O sol, aproximando-se do
horizonte, acendeu um “Z” reluzente de janelas de frente para o
mar ao longo de uma estrada que descia em zigue-zague uma
colina distante em São Francisco.
Então um grito familiar e rouco se ergueu do banco de areia
no inside. “Doc”, disse alguém, desnecessariamente. Mark era o
único surfista de São Francisco que as pessoas de fora
provavelmente conheciam. Ele vinha remando ao lado de outro
cara, presenteando-o com a trama de um filme de terror: “Então a
cabeça sai correndo sozinha, matando pessoas a mordidas.”
Mark estava usando um capuz de neoprene de aba curta e
aspecto idiota, com a barba se projetando acima da tira do
queixo e o rabo de cavalo se agitando às costas, vindo em minha
direção. Quando ainda estava a uns dez metros de distância, ele
fez uma careta e gritou: “Isso aqui está um zoológico!” Perguntei-
me o que as pessoas à nossa volta acharam dessa observação.
“Vamos surfar Santiago”, acrescentou ele.
Mark não conhecia os limites implícitos da tagarelice na água.
Rasgou o contrato social do surfe e assoou o nariz grande e
queimado de sol no que restara dele. E era grande, inteligente e
intrépido demais para alguém se opor. Sentindo-me
comprometido, abandonei com relutância meu lugar na rotação
do pico e saí com Mark em direção aos picos que quebravam em
Santiago, pouco menos de um quilômetro ao norte. “Um oeste de
três dias!”, escarneceu ele. “Quem são esses caras? Amanhã vai
ficar maior. Todos os indicadores dizem isso.”
Em geral, Mark acertava a previsão das ondas. Porém, errou
em relação a Santiago. Os bancos de areia estavam piores do
que aqueles que deixáramos para trás em Sloat. Não havia
ninguém surfando por perto. Na verdade, era por isso que Mark
queria surfar ali. Essa era uma velha desavença entre nós. Ele
acreditava que os crowds eram idiotas. “As pessoas são
ovelhas”, gostava de dizer. E volta e meia afirmava saber mais do
que o crowd sobre onde e quando surfar. Seguia praia abaixo até
um pico de aparência improvável e permanecia ali, teimoso,
pegando ondas marginais e inconsistentes em vez de se misturar
às massas. Eu havia passado uma eternidade remando,
esperançoso, na direção de picos sem crowd, sonhando que eles
estivessem prestes a ficar melhores que o pico popular. Às vezes
— raramente, brevemente —, eles de fato pareciam fazer isso.
Mas eu tinha uma fé lamentável no bom senso básico do
rebanho. Crowds se reuniam onde as ondas estavam melhores.
Essa postura deixava Mark louco. E Ocean Beach, com suas
grandes ondas de inverno sem crowd, na verdade alterava a
equação malthusiana do surfe: água congelante, medo abjeto e
punição absurda eram úteis.
Dropei uma onda de tamanho médio; um desvio do qual logo
me arrependi: a série atrás dela me atingiu em cheio e quase me
levou para depois do banco de areia no inside. Quando voltei
para o pico, o sol estava se pondo, eu tremia de frio, e Mark
estava uns noventa metros mais ao norte. Decidi não segui-lo e
comecei a procurar uma última onda. Mas as ondulações
naquela área estavam volúveis, e eu sempre avaliava de forma
errada a velocidade e o ângulo da parede. Quase fui sugado para
trás por uma onda perversa e desgarrada, depois precisei me
apressar para evitar uma série monstruosa.
O crepúsculo se aprofundou. Os borrifos que se erguiam das
cristas ainda tinham um tom avermelhado de pôr do sol, mas as
ondas haviam se transformado em paredes azul-marinho
grandes e uniformes. Ficava cada vez mais difícil avaliá-las. Não
havia mais nenhum surfista ao redor. Tremendo muito, eu estava
pronto para tentar remar na direção da praia — por mais
desonroso que isso fosse. Quando o mar deu uma acalmada, foi
o que fiz, com braçadas fortes, esforçando-me para manter a
prancha apontada na direção da praia através das
contracorrentes do banco de areia do outside, usando uma
fogueira na areia como referência visual e olhando para trás a
cada cinco ou seis braçadas. Estava quase na metade do
caminho, chegando ao banco de areia do inside, quando uma
série se formou no outside. Eu estava seguro em águas
profundas, e não fazia sentido tentar atravessar o banco de areia
do inside durante uma série, por isso me virei e sentei para
esperar.
Contra o céu ainda claro, no alto de uma onda enorme para o
sul e muito, muito longe no outside, uma silhueta flexível ficou de
pé e, em seguida, mergulhou na escuridão. Esforcei-me para ver
o que aconteceu depois, mas a onda desapareceu por trás de
outras mais próximas. Meu estômago tinha dado um nó ao ver
alguém dropando uma onda daquelas ao anoitecer e, enquanto
boiava nas ondulações que se reuniam para atacar o banco de
areia do inside, não parei de olhar para o lugar onde ele havia
desaparecido, à procura de uma prancha sem surfista sendo
trazida pelas ondas. Aquela onda tivera a aparência de uma
destruidora de leash. Por fim, a menos de quarenta metros de
distância, uma figura escura surgiu, passando depressa por uma
parede interna irregular. Quem quer que fosse não apenas tinha
completado o drop, como ainda estava de pé e voando. Quando
a onda atingiu águas profundas, o sujeito se inclinou em um
enorme cutback elegante e cavado. O cutback me revelou a
identidade do surfista. Peewee era o único local que dava viradas
daquelas. Ele deu outra virada, chegando a poucos metros de
mim, e saiu da onda. Sua expressão estava tranquila. Ele acenou
com a cabeça para mim, mas não disse nada. Fiquei sem
palavras, porém aliviado com a ideia de ter companhia para a
passagem pelo banco de areia do inside, que agora detonava
continuamente. Mas Peewee tinha outros planos. Virou-se e, sem
falar nada, saiu remando de volta na direção do mar.

***

Mais tarde naquela noite, grunhidos, roncos e resmungos


horríveis preencheram o apartamento de Mark. Slides dos
invernos anteriores em Ocean Beach estavam sendo exibidos, e
a maioria dos surfistas retratados havia comparecido. “Esse não
pode ser você, Edwin. Você se esconde embaixo da cama
quando fica grande assim!” Mark organizava esses encontros
quase todo ano. “Esse foi o melhor dia do inverno passado”,
disse ele, projetando uma foto de Sloat enorme e imaculada que
provocou um gemido geral. “Mas não tenho mais nenhuma foto.
Caí na água depois de tirar esta e fiquei lá o dia inteiro.” A voz de
Mark tinha o tom anasalado e embebido próprio de quem acaba
uma sessão longa. Na verdade, estivera surfando apenas uma
hora antes — o trovejar contínuo das ondas em frente à Great
Highway fornecia uma linha de contrabaixo para a diversão. “A
lua nasceu assim que ficou bem escuro”, contou-me ele. “Voltei
para Sloat. Todos aqueles pregos tinham ido embora. Ficamos só
Peewee e eu. Foi ótimo.” Achei difícil visualizar aquela cena. Não
que eu não acreditasse nele — o cabelo de Mark ainda estava
molhado. Só não conseguia imaginar como alguém podia surfar
ao luar em ondas grandes como as que quebravam em Sloat ao
anoitecer. “Claro”, disse Mark. “Peewee e eu fazemos isso uma
vez a cada inverno.”
Peewee estava na casa de Mark naquela noite, assim como a
maioria dos surfistas que eu conhecia de nome em São
Francisco. A faixa etária variava do fim da adolescência à casa
dos quarenta. Com apenas três anos por ali, eu provavelmente
era o mais recente na cidade. Um slide que me mostrava
surfando Ocean Beach no inverno anterior arrancou alguns
assobios, mas nenhum insulto — eu não estava ali por tempo
suficiente para isso. Houve uma sequência de imagens de Mark
explorando um recife externo assustador em Mendocino County.
Surfistas locais viam o lugar quebrar havia anos, mas ninguém
nunca tentara surfá-lo até que, no início daquele inverno, Mark
convenceu dois surfistas de ondas grandes da área a cair na
água e remar para lá com ele. A onda quebrava a pelo menos
oitocentos metros da praia, em um recife rochoso raso, e tinha
um drop horrendo, além de algas problemáticas. Os slides de
Mark, tirados por um cúmplice com uma teleobjetiva da encosta
de uma montanha, mostravam-no surfando com cuidado paredes
verde-escuras com duas ou três vezes sua altura. Ele disse que
a parte mais traiçoeira ocorrera não na água, mas em uma
cidade próxima naquela noite. As pessoas no vilarejo tinham
ficado alarmadas ao saber que ele surfara o recife externo, e
desconfiadas, confessou ele, até que souberam que ele o fizera
na companhia de dois caras locais.
Foi surpreendente ouvir Mark mencionar as sensibilidades das
pessoas daquele lugar. Elas eram uma questão verdadeira —
certa vez, vi um recorte de um jornal de Mendocino no qual um
colunista local descrevia Mark como “um supersurfista lendário
da Bay Area” e acrescentava, de forma sarcástica: “Lamento não
ter ficado para pegar o autógrafo dele” —, mas eu pensava que
Mark fosse indiferente a essas questões. Claro, também era
complicado mostrar os slides para aquele público; isso exigia
habilidade, até uma dose de autodepreciação. Mark podia
desrespeitar os aspectos mais sutis do contrato social do surfe
entre estranhos na água, mas Ocean Beach era sua casa; ali, a
bebida forte de sua personalidade precisava ser adoçada. Mais
cedo naquela mesma noite, quando Mark reclamou que sua
asma o incomodava, dificultando a respiração, Beeper Dave
murmurara: “Agora você sabe como nós, mortais, nos sentimos.”
Seguiu-se um desfile de fotógrafos com seus carrosséis de
slides. Havia fotos na água, algumas boas, e muitas imagens
borradas de uma Ocean Beach gigante. Alguns veteranos
mostraram slides dos anos 1970, destacando surfistas dos quais
eu nunca ouvira falar. “Este aqui foi para Kauai”, disseram. “A
última notícia que tivemos é que foi para o oeste da Austrália.”
Peewee mostrou uma série de slides de uma viagem recente ao
Havaí. Tiradas em Sunset, um dos melhores picos de ondas
grandes do mundo, as fotos, que eram de baixa qualidade,
mostravam alguns amigos praticando windsurf em um dia
pequeno e mexido. “Inacreditável”, murmurou alguém.
“Windsurf.” Peewee, um dos primeiros caras de São Francisco
realmente capazes de surfar Sunset em dias grandes, não falou
muita coisa. Mas pareceu se divertir com a decepção do grupo.

***
Havia outra foto na parede da loja de Wise quando me mudei
para São Francisco. Manchada, enrolando nas pontas, sem
legenda e incrivelmente bela. Mostrava um surfista — Peewee,
segundo Wise — surfando em trajetória elevada uma esquerda
de três metros que parecia infinita, iluminada por trás. A onda era
verde-clara e esculpida pelo vento, e a foto parecia ter sido tirada
em algum lugar em Bali, mas Wise disse que era no outside em
VFW’s. A onda tinha proporções tão estranhas que fazia com que
a gun de quase três metros que Peewee usava parecesse uma
pranchinha. E a trajetória que ele percorria parecia saída de um
sonho — alta, bonita e inspirada demais para que fosse real.
Durante meu segundo ou terceiro inverno na cidade, mais
fotos começaram a aparecer na parede da loja. Eram todas
imagens grandes em molduras de madeira de Mark surfando
Ocean Beach gigante, com legendas datilografadas
especificando a data e o local onde foram tiradas e identificando
o surfista.
Mark e Peewee representavam polos opostos do surfe de São
Francisco: a tese exageradamente enaltecida e a antítese
subestimada. Eles eram como duas teorias opostas de formação
de caráter. No caso de Peewee, a experiência parecia se basear
na remoção de elementos supérfluos; no caso de Mark, tudo se
resumia a acumulação. Mais pranchas, mais recordes, mais
picos conquistados. Praticamente tudo nele envolvia o surfe, da
infância à idade madura. Ao recordar sua juventude em Los
Angeles, ele me disse: “Entre meus amigos, havia uma forte
crença no caminho do surfista. A maioria das pessoas desviava
dele, mais cedo ou mais tarde.” Seus exemplos de como
envelhecer bem vinham de outros surfistas, que ele chamava de
“anciões”. Doc Ball, um dentista aposentado do norte da
Califórnia que passara a vida inteira surfando e que, na época,
estava na casa dos oitenta anos, era um de seus favoritos. “Ele
ainda tem alegria”, disse Mark. “Ainda anda de skate!”
Peewee concordava que Mark tinha uma personalidade
sobrenaturalmente jovem. “Ele é como alguém de vinte ou vinte e
dois anos, com muita alegria para surfar, muito entusiasmo”,
confessou-me em uma rara conversa. Mas Peewee discordava
dos benefícios de longo prazo de uma vida no surfe: “Os
melhores surfistas locais podem ser os maiores vagabundos.”
Estávamos sentados em um restaurante chinês perto da casa
dele. Peewee me observava, desconfiado, enquanto eu tomava
notas. “É um esporte tão bom que corrompe as pessoas”, disse
ele. “É como o vício em drogas. Você simplesmente não quer
fazer mais nada. Não quer ir trabalhar. Se vai, acaba escutando
‘Você perdeu!’ no fim do expediente.”
Peewee contou que, como carpinteiro, tinha alguma
flexibilidade e tentava tirar um mês de férias todos os anos para
surfar em algum lugar, como o Havaí ou a Indonésia. Mas não
havia como continuar surfando com tanta avidez quanto na
juventude — não sem arriscar cair na vagabundagem.
Ele aprendeu a surfar com pranchas emprestadas em Pedro
Point, um pico de principiantes alguns quilômetros ao sul de São
Francisco. Precisou de cinco anos para chegar a Ocean Beach.
Era um garoto do Sunset District, assombrado pelos grandes de
sua era. Com o tempo, ele mesmo se transformou em um cara
grande, com mais de um metro e oitenta, ombros largos,
expressão indecifrável, louro e com a boa aparência de um
pistoleiro de filme antigo. Mas nunca conseguiu se livrar do
apelido. Também parecia nunca ter perdido a humildade de um
novato. Fazê-lo falar, bebendo chá morno em um restaurante
vazio, foi o equivalente jornalístico a cair na água em Sloat em
um dia perigoso. Meu pedido para uma entrevista sem dúvida o
assustou. Peewee me conhecia como um rosto na água, um
frequentador assíduo recente de Ocean Beach, alguém do grupo
de Mark. Agora, de repente, eu era um repórter. Isso não
significava que eu fosse imparcial. Como fazia vários invernos
que eu lutava contra a alegação de Mark de que perder um swell
era um pecado muito maior que perder um prazo, a simples
descrição do conflito inevitável entre o surfe e o trabalho me
reconfortou mais do que Peewee poderia imaginar. Claro, essa
era uma discussão tão antiga quanto Hiram Bingham — o
missionário que enxergou o surfe como algo bárbaro e quase o
estrangulou em seu berço no Havaí.
Peewee tinha uma modéstia tão persistente que era fácil
considerá-lo uma pessoa distante. Porém, após um tempo, até
eu consegui enxergar que seu exterior contido escondia uma
timidez aguda, que por sua vez ocultava uma sensibilidade
antiquada. Ele tinha sido um estudante que só tirava nota
máxima na escola — eu soube disso não por ele, mas por outras
pessoas — e era formado em inglês pela San Francisco State
University. Também fez vários cursos de ciências na faculdade,
entre eles uma aula de oceanografia na qual o instrutor certa vez
afirmou que os grandes swells de inverno que atingiam a costa
do norte da Califórnia vinham tipicamente do sul. Essa afirmação
é, sem dúvida nenhuma, falsa. O instrutor se recusou a ser
corrigido, e Peewee deixou passar.
No entanto, quando deixar para lá algum comportamento tolo
se tornava impossível, ele era capaz de marcar posição de forma
memorável. Certa vez, em um dia crowdeado em VFW’s, durante
meu primeiro inverno em São Francisco, um surfista local estava
se comportando mal — roubando ondas, furando a fila e
ameaçando qualquer um que reclamasse. Peewee alertou-o uma
vez, discretamente. Quando o cara continuou a fazer aquilo e,
em seguida, quase decapitou outro surfista em uma saída
desajeitada no fim da onda, Peewee o convidou a sair da água.
O sacana resmungou. Peewee o derrubou da prancha, virou-a e,
com golpes curtos e precisos, quebrou todas as três quilhas. O
cara remou para a praia. Anos mais tarde, frequentadores
habituais de Ocean Beach que não tinham visto esse incidente
ainda pediam àqueles que o haviam presenciado que contassem
a história.
Peewee sabia tudo sobre a cidade. Era o tipo de cara que,
surfando em Fort Point, embaixo da Golden Gate Bridge, era
capaz de olhar para o alto e dizer quantos operários tinham sido
enterrados nos pilares, qual era o tamanho das filas de homens
esperando para trabalhar na construção da ponte na época da
Grande Depressão e o salário deles. Também sabia quanto os
funcionários de manutenção de hoje em dia, alguns dos quais
seus amigos ou parentes, ganhavam. Peewee era carpinteiro
sindicalizado e costumava servir como representante sindical em
canteiros de obra. Quando lhe perguntei sobre isso, ele disse
apenas: “Acredito nos sindicatos da construção civil.” Era
igualmente reservado em relação a ondas grandes. Falou que as
preferia às pequenas, porque não eram crowdeadas. “Os crowds
podem ficar tensos”, explicou ele. “Em ondas grandes, é só você
e o oceano.” Peewee era conhecido na área de Ocean Beach por
seus nervos de aço quando o mar estava grande, mas confessou
que precisou de vários anos para evoluir até encarar as ondas
enormes. “Cada novo caldo faz você perceber que, na verdade,
está mais seguro do que pensava. É só água. É só prender a
respiração. A onda vai passar.” Ele nunca entrava em pânico?
“Claro, mas tudo o que você precisa fazer, de verdade, é relaxar.
Você sempre vai voltar à superfície.” Em retrospecto, confessou,
toda vez que achou que estivesse se afogando, sua situação não
era tão desesperadora.
“O Doc está meio que construindo uma reputação aqui”,
admitiu Peewee, dez anos depois de Mark começar a surfar
Ocean Beach. E o próprio Peewee? “Eu meio que mantenho uma
reputação aqui”, assumiu. Ainda assim, só surfava ondas
grandes quando estavam limpas. Qual era a maior onda que ele
tinha surfado em Ocean Beach? “A maior que tentei dropar por
lá, eu não consegui”, respondeu. “A onda era perfeita, minha
prancha é que era pequena demais. Tinha dois metros e meio.
Só cheguei até três quartos do caminho na parede. Caí, fui
sugado para cima e para a frente. Foi o momento mais
assustador que já vivi. Achei que a queda livre não teria fim
nunca. Mas não foi tão ruim.” Qual era o tamanho? “Uns três
metros e meio”, disse Peewee. “Talvez quatro e meio.” Deu de
ombros. “Raramente tento medir ondas em metros hoje em dia.”
Isso fazia sentido, pensei, porque vários surfistas na cidade
acreditavam ter visto Peewee surfar ondas com mais de quatro
metros e meio.
***

Enquanto combatíamos, bajulávamos e glorificávamos em um


mundo invisível para os outros moradores de São Francisco,
ainda estávamos na cidade, e às vezes nos dávamos conta
disso. Em um dia claro, com maré baixa, Ocean Beach estava
larga e cheia de gente. O surfe estava bom, e eu corria pela areia
com a prancha embaixo do braço. À minha esquerda, dois
homens negros com agasalhos do time de futebol americano
49ers testavam em silêncio duas miniaturas de bugres de
controle remoto; eles iam de um lado para outro, zuniam e
rabeavam na areia. À minha direita, um grupo de pessoas
brancas espancava almofadas com tacos plásticos amarelos.
Quando passei, ouvi gritos e xingamentos: “Vadia! Vadia!” “Saia
desta casa!” Algumas pessoas choravam. Um homem gorducho
na casa dos quarenta anos golpeava uma folha de papel em
cima de uma almofada. Quando o papel voou, ele o perseguiu,
gritando: “Volte aqui, sua vadia!” Perto da beira da água,
encontrei outro homem de meia-idade olhando fixamente para o
mar, com um taco amarelo a seus pés e uma expressão beatífica
no rosto. Ele olhou para a minha prancha enquanto eu me
ajoelhava para prender o leash. Perguntei sobre as pessoas que
estavam batendo nas almofadas. O sujeito me contou que elas
estavam envolvidas em um negócio chamado de o Processo
Pacífico. Treze semanas, 3 mil dólares. Ele explicou que aquele
exercício se chamava Xingar a Mãe. Percebi que usava luvas de
trabalho. Realmente, não vale a pena ficar com bolhas nas mãos
ao quebrar a mamãe na porrada.
Mais tarde, na água, vi um surfista que não conhecia dropar
atrasado em uma onda com pico grande e liso. A prancha dele
era azul-clara com bico estreito, e ele se esforçou para manter o
equilíbrio enquanto a onda, que tinha duas vezes o seu tamanho,
foi se erguendo e começou a quebrar. O surfista não caiu, mas
perdeu velocidade na luta para se manter de pé, e sua primeira
virada, agora fundo na sombra da onda, foi fraca. Se a onda não
tivesse atingido uma faixa de águas profundas e parado por um
instante, ele teria sido enterrado pela primeira seção. No entanto,
o surfista conseguiu fazer a volta e, depois, entrar na seção
seguinte e estabelecer um trajeto alto ao longo de um paredão
verde. Quando passou por mim, estava em total controle, talvez a
uma virada do fim de uma surfada excelente. Mas seu rosto,
pude ver no momento em que passou voando, estava tomado
pela angústia e por algo que se assemelhava a raiva. Surfar uma
onda perigosa exige, mesmo para um surfista experiente, intensa
concentração técnica. Mas muitas emoções menos abnegadas
também entram em cena. Mesmo em ondas que não apresentam
desafio, o rosto dos surfistas às vezes se transforma em
máscaras horríveis de medo, frustração, raiva. O momento mais
revelador é a saída no final de uma onda, que em geral provoca
uma careta que é um misto de alívio, preocupação, euforia e
insatisfação. O rosto do estranho na prancha azul-clara me
lembrou principalmente das expressões chorosas e contorcidas
dos espancadores de almofada na praia.
Nada desse Sturm und Drang correspondia à ideia leve e
alegre de surfar — diversão ao sol — que sempre pareceu
disseminada entre os não surfistas, e, agora que eu planejava
escrever sobre isso, me perguntei até que ponto eu seria capaz
de transmitir a verdade às pessoas de fora desse universo. Havia
caras que não franziam o rosto, é claro, cujo estilo parecia se
estender a uma serenidade discreta, até mesmo a um leve
sorriso interior. Mas na minha experiência era raro encontrar
esses indivíduos.
Havia também grandes surfistas, aqueles que tinham um
talento fora do comum. Eles eram, por definição, incrivelmente
raros — embora surfistas profissionais estivessem, aos poucos,
se tornando mais comuns, à medida que a popularidade do surfe
crescia e um circuito mundial amadurecia. Para eles, o surfe era
um esporte, com treinos, competições, patrocínios, o pacote
completo. Na Austrália, eram tratados como outros atletas
profissionais; campeões chegavam a receber adulação pública.
Isso não acontecia muito nos Estados Unidos, onde o fã comum
de esportes não sabia praticamente nada sobre surfe, e onde até
mesmo surfistas davam pouca atenção a resultados de
campeonatos e rankings. Os melhores surfistas eram admirados,
até reverenciados, por seu estilo e habilidade, mas o que
compartilhávamos de importante era esotérico, obsessivo, não
uma tendência, mas algo da subcultura, certamente não
comercial. (Parte disso — não muito — mudou nos últimos anos.)
Aquilo que compartilhávamos, acima de tudo e entre
indivíduos com todos os níveis de talento, era uma concentração
profunda nas ondas. Mark gostava de dizer que o surfe “é
essencialmente uma prática religiosa”. Mas havia performance
demais, competição demais (mesmo que desorganizada), apetite
e orgulho demais nele para que essa descrição me soasse
verdadeira. Estilo era tudo no surfe — a graciosidade dos
movimentos, a velocidade das reações, a engenhosidade das
soluções para os quebra-cabeças apresentados, a profundidade
e a conexão das manobras, até mesmo o que se fazia com as
mãos. Grandes surfistas podiam deixar qualquer um sem ar com
a beleza dos seus gestos. Eram capazes de fazer com que as
manobras mais difíceis parecessem fáceis. Um poder
despreocupado, a proverbial graça sob pressão: esses eram
nossos ideais de beleza. Entrar em um tubo pesado e sair limpo
dele. Agir como se já tivesse feito aquilo antes. Fazer com que
tivesse uma aparência bonita. Esse era o verdadeiro fascínio, e o
medo, que sentíamos quando alguém tirava fotos nossas. Será
que ficou bonito? Se isso fosse mesmo uma religião, talvez não
valesse a pena pensar no que estava sendo cultuado. “Muthiya
maar”, disparava Caroline, da mesa de trabalho, enquanto outros
surfistas e eu bebíamos cerveja e contávamos histórias.
Todos os surfistas são oceanógrafos, e, na área onde as
ondas quebram, dedicam-se à pesquisa avançada. Surfistas não
precisam que lhes digam que, quando uma onda quebra,
verdadeiras partículas de água, em vez de simplesmente a forma
da onda, começam a se mover para a frente. Eles estão
ocupados tentando descobrir relações mais arcanas, como
aquela entre a maré e a consistência, ou entre a direção do swell
e a batimetria perto da praia. Claro que a ciência dos surfistas
não é pura, mas é fortemente aplicada. O objetivo é entender,
com o propósito de surfar, o que as ondas estão fazendo e,
sobretudo, o que provavelmente vão fazer em seguida. Mas elas
dançam ao som de uma música infinitamente complexa. Para
uma pessoa sentada no line-up, tentando decifrar a estrutura de
um swell, o problema pode de fato se apresentar de forma
musical. Essas ondas estão se aproximando em um compasso
de treze por oito, talvez, com sete séries por hora, e a terceira
onda de cada série se abre larga em uma espécie de crescendo
dissonante? Ou este swell é um dos solos de jazz de Deus, cuja
estrutura está além de nossa compreensão?
Quando as ondas estão grandes, ou de alguma forma
deixando o surfista humilde, até mesmo essas perguntas
costumam ser deixadas de lado. A intensificada sensação de que
se está na presença de algo vasto e indecifrável silencia o
esforço para compreender. Você se sente honrado apenas por
estar na água. Em certos dias magníficos — isto aconteceu
comigo na baía de Honolua, em Jeffreys Bay, em Tavarua e até
uma ou duas vezes em Ocean Beach —, fiquei apenas boiando
no rabo da onda, observando, admirado, a transformação de
água do mar comum em um swell belo e consistente, em
urgência borrifante, em energia pura, impossivelmente esculpida,
com uma estática afiada, e, por fim, em espuma violenta.

***

Eu precisava admitir que, em parte, Mark fora bem-sucedido


comigo. Eu estava surfando mais do que surfaria. Adquirira
algumas pranchas novas — modelos de três quilhas conhecidos
como thrusters — e uma roupa de neoprene melhor, reduzindo
meu problema de hipotermia. Fizemos excursões de surfe para o
norte e para o sul. Quando Ocean Beach estava grande e
mexida, seguíamos para Mendocino County, onde Mark conhecia
alguns picos protegidos. No verão, quando Ocean Beach ficava
horrível, ele me levava para seu pico de fundo de recife com
swell de sul favorito, em Big Sur. A generosidade dele parecia
não exigir esforço, era sua essência. Mark se autointitulara meu
técnico de surfe, médico-chefe e conselheiro-geral. Agora, estava
sentado, contente, esperando que tirassem seu retrato. E eu
andava pensando mais em surfe — no mínimo porque tinha me
oferecido para escrever sobre isso. Mas será que o estava
levando mais a sério? Na verdade, não. Eu vinha tomando mais
notas, porém surfar parecia algo que eu fazia basicamente
porque sempre tinha feito. Eu estava casado com o surfe, por
assim dizer, durante grande parte da minha vida, mas era um
daqueles casamentos em que não havia muito diálogo. Mark
queria ajudar a consertar meu matrimônio teimoso e silencioso.
Eu não sabia se queria que ele fosse consertado. Ter um terreno
de tamanho considerável de inconsciência perto do centro da
minha vida era algo que, de algum modo, combinava comigo. Eu
quase nunca falava sobre surfe, exceto com outros surfistas. E
ser um surfista pouco contribuía para o modo como eu me
enxergava. Eu estava relutante em pensar nisso como parte da
minha vida de adulto, na qual agora eu estava tentando dar o
pontapé inicial. O jornalismo me levava para mundos que me
interessavam mais que perseguir ondas.
No entanto, algo estranho estava acontecendo. Deixando de
lado minha ambivalência, eu vinha permitindo que a exuberância
de Mark me levasse, permitindo que ele se tornasse o motor que
movimentava minha vida de surfe. Percebi que, de certas
maneiras, deixara que Mark se metesse entre mim e o surfe,
preenchendo atabalhoadamente o primeiro plano, assombrando
minha vida dos sonhos com suas fantasias, destruindo minhas
noites de sono de inverno com telefonemas aos berros. Eu até o
deixei presidir momentos primordiais, com seu riso mefistofélico
estendendo uma corda entre o abismo do meu medo de ondas
grandes e uma encosta rochosa onde se fixavam os grampos de
escalada da minha psique. Essa rendição a um alter ego era uma
típica passividade de repórter, mas, nesse caso, ela estava me
desfigurando. Eu mal me reconhecia no espelho do Esquadrão
do Doc.
Sim, eu tinha sido enfeitiçado pelo surfe quando criança —
descer uma trilha ao amanhecer cheio de sonhos, iluminado por
visões de ondas sopradas por alísios, extasiado até mesmo com
a longa remada até Cliffs. O velho feitiço fora quebrado às vezes,
ou parecia ter sido. Mas ele sempre estava lá, logo abaixo da
superfície, adormecido, porém não destruído, enquanto eu
perambulava por lugares distantes do mundo, morando em locais
sem ondas — Montana, Londres, Nova York. Eu me lembrava da
primeira vez que acompanhei Mark até a costa de Mendocino,
logo depois de me mudar para São Francisco. O swell estava
grande e assustador, com um vento nordeste entorpecente
estragando todos os picos, exceto Point Arena Cove, que era
protegido por um manto de algas. Segui Mark nervosamente na
direção do pico pelo canal que havia ali, intimidado pelo vento,
pela água congelante e, acima de tudo, pelas ondas pesadas que
mergulhavam e quebravam no recife rochoso. Mark se jogou na
batalha, surfando agressivamente, e, aos poucos, fui cada vez
mais distante ao longo do recife, dropando ondas maiores. Por
fim, dropei uma muito grande e quase caí quando o bico da
prancha pegou uma turbulência de uma onda com vento cruzado
no início do drop. Recuperei-me por pouco e consegui completar
a onda. Depois, Mark, que vira o drop do canal, alegou ter se
assustado de verdade por minha causa. “Seria muito, muito ruim
se você não tivesse conseguido”, disse ele. “Aquela onda tinha
três metros, e a única coisa que fez você conseguir dropar a
parede foram vinte anos de experiência.” Era verdade que,
àquela altura, eu surfava por puro instinto, resoluto demais para
ficar com medo, embora os períodos durante os quais as ondas
nos mantinham debaixo d’água naquela parte do recife
parecessem ser brutalmente longos. Foi constrangedor admitir
isso, mas a avaliação de Mark me agradou demais. Eu vinha
tentando descobrir como conviver com o encanto incapacitante
do surfe — e com os esforços de Mark para intensificar ainda
mais o feitiço —, mas percebi que ele dissera várias coisas que
eu achava gratificantes.
Mark também falava muitas coisas que me irritavam. Certa
vez, em outra viagem a Mendocino, enquanto surfávamos em
uma bela enseada escondida, eu tinha acabado de pegar uma
onda bastante bem, na minha opinião, e Mark viu meu
desempenho. “Você estava com um bom ritmo naquela”, elogiou
enquanto remávamos para o pico. “Precisa fazer isso mais
vezes.” Dar conselhos indesejados na água era uma quebra do
que eu entendia como o contrato social do surfe, e a
condescendência da observação só piorou as coisas. Mas
segurei a língua, o que não era do meu feitio. Sabia que era
ridículo ser tão sensível. Porém, na verdade, esse não foi o
motivo para não mandar Mark enfiar o conselho no rabo. Não fiz
isso porque, naquele momento, estava planejando escrever
sobre ele. Eu havia mudado desde que vendera a pauta. Ficara
menos franco, menos espontâneo. Para mim, aquilo já não se
tratava apenas de uma amizade de surfe complicada. Era um
projeto de escrita, uma reportagem, era trabalho — na verdade,
uma grande oportunidade. Brigar com ele podia estragar tudo.
Por isso, tentei permanecer como o observador inabalável. Eu
achava que a própria indiferença alucinada de Mark o isolava dos
sentimentos das outras pessoas. Além do seu senso permanente
de merecimento e invulnerabilidade.
A perfeição do mundo dele me fascinava — a continuidade e
concentração obstinadas, as satisfações manifestas. Minha
própria vida, em comparação, parecia tomada por
descontinuidades. Para começar, surfar era como um vestígio
arruinado da infância que continuava boiando, incongruente, e
ocupando lugar de destaque em meus dias. Surfar ondas
maiores, em especial, me parecia algo atávico — um retorno
compulsivo a alguma cena ancestral para provar um fato primitivo
da masculinidade. Peewee também tinha começado a me
fascinar. O mundo dele também parecia perfeito, mas de um jeito
bem diferente do de Mark. As continuidades poderosas entre seu
passado e seu presente, a infância e a vida adulta, eram elos de
lugar, de comunidade, de caráter. Eles eram muito discretos. Não
pareciam precisar se exibir.

***

Sloat devia estar na altura de pelo menos cinco geladeiras


quando cheguei, em uma tarde de domingo em janeiro. No
entanto, as ondas que quebravam no banco de areia externo
estavam difíceis de enxergar. O sol brilhava, mas a arrebentação
gerava uma névoa salgada que preenchia o ar nos dois lados da
Great Highway — uma neblina de cheiro forte, como uma
essência do fundo do oceano. Não havia vento; contudo, grandes
plumas de borrifos se erguiam do lip das ondas maiores,
produzidas pela massa e pela velocidade das cristas no
momento em que mergulhavam. O banco de areia no inside era
um turbilhão de ondas assassinas médias que sugavam, com
paredes cor de chocolate manchadas por correntes de espuma.
O banco de areia externo não parecia bem definido, e o swell
tinha uma aparência confusa; no entanto, as ondas no outside
estavam lisas e reluzentes, com picos limpos e seções que
surgiam aleatoriamente em meio à neblina. Algumas delas
pareciam surfáveis — a delicadeza em meio à letalidade.
Fiquei surpreso ao encontrar o estacionamento de Sloat cheio.
Era dia de Super Bowl, os 49ers estavam jogando, e o pontapé
inicial aconteceria em uma hora. Entretanto, a maioria dos carros,
picapes e vans era familiar: a galera do surfe de Ocean Beach
estava lá em peso. Alguns dos integrantes do grupo estavam
curvados atrás do volante; outros, sentados nos capôs dos
carros; alguns se encontravam de pé no quebra-mar acima da
praia. Ninguém estava de roupa de neoprene e nenhuma
prancha tinha saído da capa. Mas todos encaravam fixamente o
mar. Olhei por um minuto e não vi nada. Baixei a janela e chamei
Sloat Bill, que estava parado no quebra-mar, grandes ombros
curvados, mãos enfiadas no bolso do casado de esqui. Ele se
virou, me olhou por um instante por trás dos óculos escuros
espelhados, em seguida indicou as ondas com um gesto de
cabeça e disse: “Doc e Peewee.”
Saí e parei no quebra-mar, protegendo os olhos da
luminosidade, e acabei vendo duas figuras diminutas se
erguendo em um swell imenso e prateado. “Nenhum deles
dropou nenhuma onda na última meia hora”, informou-me Sloat
Bill. “Está muito mexido.” Alguém montara uma câmera em um
tripé, mas não estava se dando o trabalho de usá-la; a névoa
fazia com que tirar fotos fosse impossível. “Os dois estão usando
guns amarelas”, disse Sloat Bill, mantendo os olhos no horizonte.
Ele parecia arrasado — ainda mais rude que de costume. É
provável que estivesse agoniado, sem saber se caía na água.
Sloat Bill se considerava um surfista de ondas grandes e se
aventurava em alguns dias enormes. Mas remava devagar e
raramente passava do banco de areia do inside. Tinha uma
constituição física poderosa, com um pescoço de touro —
participava de competições de rugby, embora tivesse mais de
quarenta anos —, e devia conseguir levantar duas vezes mais
peso que eu no supino. No entanto, remar rápido não é uma
questão apenas de força. Fazer com que uma prancha deslize na
superfície é, em parte, questão de alavancagem habilidosa, e
furar ondas é sobretudo questão de apresentar a menor
resistência possível a elas. Ondas grandes exigem uma
combinação paradoxal — ferocidade e passividade — que Sloat
Bill nunca parecera dominar. Ele tinha apenas a ferocidade. Ele
rolava para furar ondas como um tronco de sequoia, ou um
frasco de testosterona pura. Impressionava outros surfistas,
poucos dos quais jogavam rugby. E despertava o meu interesse,
embora eu desconfiasse de que eu o irritava. Certa vez, ele me
chamou de comunista durante um jogo de pôquer em seu
apartamento. Pior: eu às vezes surfava em dias em que Sloat Bill
não conseguia.
Naquele dia, eu não me sentia instigado a tentar. Aquelas
ondas estavam muito além de meu limite máximo. Eu não
conseguia entender como Mark e Peewee haviam chegado ao
pico — ou como Peewee fora convencido a tentar. Aquele não
era o tipo de surfe dele — não estava limpo. Fiquei parado com
Sloat Bill por um tempo, tentando manter Mark e Peewee à vista.
Eles desapareciam atrás de swells, às vezes por minutos. Os
dois remavam para o norte constantemente, mal conseguindo
manter a posição contra uma corrente que se dirigia para o sul.
Depois de quinze minutos, um deles surgiu de repente no alto de
uma parede imensa, remando com toda a força na direção da
praia, do alto de um pico que parecia ter um quarteirão de
largura. Uma salva de gritos e palavrões altos soou pelo quebra-
mar de Sloat. Mas a onda passou pelo surfista; ela se manteve
erguida, firme e negra contra o horizonte pelo que pareceu muito
tempo, em seguida quebrou em silêncio, de cima a baixo. Houve
gritos de alívio e estranhos xingamentos amargos. Todos os não
surfistas no estacionamento, no quebra-mar e na praia ergueram
os olhos, confusos. Nenhum deles parecia consciente de que
havia alguém na água.
Eu tinha um compromisso no outro lado da cidade — na casa
de um amigo, onde um grupo de pessoas, nenhuma delas
surfista, se reunia todos os anos para assistir ao Super Bowl.
Perguntei a Sloat Bill quanto tempo fazia que Mark e Peewee
estavam na água. “Algumas horas”, respondeu ele. “Os dois
demoraram meia hora para varar até a arrebentação”,
acrescentou, sem virar a cabeça.
Vinte minutos depois, eu continuava lá, esperando que algo
acontecesse. A névoa estava mais densa; o sol, mais baixo. Eu
ia perder o início do jogo. Algumas séries grandes tinham
passado, mas Mark e Peewee estavam distantes delas. Embora
ainda não houvesse vento, as condições pareciam no mínimo se
deteriorar. Fortes correntes de retorno tinham começado a se
mover ao longo dos bancos de areia externos, aumentando a
confusão. Em pouco tempo, a única questão seria como Mark e
Peewee conseguiriam voltar à praia.
Por fim, alguém pegou uma onda. Era uma direita gigantesca,
da altura de quatro ou cinco homens, com uma onda na frente
que bloqueou toda a visão do surfista depois do drop. Vários
segundos se passaram. Então, ele reapareceu uns cinquenta
metros adiante, subindo pela parede em um ângulo radical e
arrancando gritos de surpresa dos espectadores. Era impossível
identificar quem estava surfando. Ele seguiu até o alto da onda,
girou em direção ao céu, depois tornou a mergulhar e sumir de
vista. Houve gritos e rugidos de apreciação. “O filho da puta está
arrebentando!”, exclamou alguém. O sujeito estava mesmo
surfando aquela onda como se ela tivesse um terço do seu
tamanho de fato. Ele seguiu em frente, avançando e fazendo
cutbacks enormes, surfando da base ao lip em arcos irritantes de
tão precisos enquanto a onda à sua frente morria, permitindo
uma visão clara. Ainda era impossível dizer quem era, mesmo
quando o amarelo da prancha se tornou visível através da névoa.
Eu nunca vira Mark nem Peewee surfar uma onda daquele
tamanho com tal abandono. A onda perdeu metade da altura e
toda a força quando atingiu as águas profundas entre os bancos
de areia, mas o surfista encontrou um pedaço perdido de
ondulação íngreme que o levou com tranquilidade através do
canal e por cima do banco de areia interno. De algum modo,
enquanto a onda se erguia sobre o banco de areia interno, o
surfista desceu pela parede cedo o suficiente para dar uma
virada e, em seguida, traçou uma linha impressionante e deslizou
por cerca de quarenta metros por baixo de um lip íngreme, com
os braços estendidos contra uma parede iluminada por trás,
antes de enfim se aprumar e escapar da explosão do lip,
navegando para longe na água flat diante da onda. Ele
permaneceu de pé quando a espuma, com a energia exaurida,
enfim o alcançou, e a trabalhou de um lado para outro até chegar
à areia.
O homem começou a subir pela praia, com a prancha embaixo
do braço, mas ainda era difícil dizer quem era. Por fim, ficou claro
que se tratava de Peewee. No momento do reconhecimento,
Sloat Bill caminhou até a borda do quebra-mar e começou a
bater palmas, solene. Outros, inclusive eu, se juntaram. Peewee
olhou para cima, surpreso. Sua expressão foi de alarme e, em
seguida, de timidez. Ele se virou e se dirigiu para o sul pela praia,
balançando a cabeça, então subiu em uma parte do quebra-mar
onde ninguém podia vê-lo.

***

Caroline tinha se formado. Fazia gravuras à noite e vendia cópias


nas galerias locais — imagens de cativeiro, asas atadas em
caixas, muito ricas em detalhes. Arranjou um emprego diurno
como secretária de um detetive particular, em seguida se tornou
ela mesma detetive. Vigiou donos de cortiços, entrevistou
presidiários, passou-se por funcionária de banco, potencial
inquilina e angariadora de fundos da United Way. Fui com ela
uma ou duas vezes para dar um suporte em reuniões arriscadas.
Caroline enganava as pessoas para que dissessem seus nomes,
em seguida lhes entregava intimações. As pessoas chutavam as
intimações escada abaixo, acreditando que, se não tocassem os
documentos com as mãos, isso significava que não eram válidos.
(Elas estavam erradas.) Eu acompanhava Caroline para garantir
que os indivíduos não a jogassem escada abaixo. (Eles
tentavam. Um marginal que tinha caído na história da United Way
a perseguiu pelas colinas de Oakland. Por sorte, ela havia
praticado atletismo na escola.) Caroline trabalhava para
advogados e começou a se interessar pela legislação americana.
Ela viera para os Estados Unidos pelo mundo da arte.
Concordava em grande parte com minha mãe sobre o problema
da mediocridade de São Francisco. Se o objetivo dela fosse
morar em uma cidade agradável e tranquila, poderia ter ficado
em Harare, com os pais e os amigos de infância. Nova York a
chamava. No entanto, ela começava a encarar com descrença
uma possível carreira artística. Uma galeria em Nova York
comprara algumas de suas gravuras, mas para ganhar a vida
como gravurista ela precisaria vender seu trabalho por preços
cada vez mais altos. Tudo parecia um tanto abafado, precioso,
desconectado demais da agitação básica da vida para o gosto de
Caroline. Ela também não se satisfazia com a ideia de que sua
educação formal estava completa.
O pai dela, Mark, nos visitou em São Francisco durante uma
viagem de trabalho. Ele era negociante de minérios e, agora,
administrava a exportação dos minérios recém-nacionalizados do
Zimbábue. Ele e Caroline ficaram acordados até tarde, beberam
um garrafão de vinho barato inteiro e bateram cabeça falando
sobre a guerra. A família estivera entre os poucos brancos que
se opuseram ao governo na velha Rodésia branca governada por
brancos. No entanto, Mark fizera algumas sanções para o regime
desonesto. Sua filha queria saber por quê. Noite difícil e ressaca
cruel, mas uma conversa que deveria ter acontecido antes. Em
determinado momento, Caroline anunciou a intenção de estudar
direito nos Estados Unidos. Mark se ofereceu para ajudá-la a
pagar as mensalidades, confiante de que a filha com mentalidade
artística nunca seguiria em frente com o plano. (Ele estava
errado. Doutorado, Yale, 1989.)
Meu livro sobre dar aulas na Cidade do Cabo seria publicado
em breve. Eu queria voltar à África do Sul antes que isso
acontecesse. O governo vinha expulsando jornalistas
estrangeiros e recusando vistos para aqueles que haviam
publicados trabalhos que não agradavam ao Estado. Era possível
que eu ainda não estivesse no radar deles. Consegui obter um
visto de turista. A New Yorker me enviou uma pauta de uma
reportagem sobre jornalistas negros em um jornal liberal branco
de Joanesburgo. Shawn, o editor, não pareceu preocupado com
o fato de eu ainda não ter entregado o texto sobre o médico
surfista, embora já fizesse um ano desde que o propusera. Nova
York também me chamava. Mas não era coincidência que
Caroline e eu quiséssemos ir para o leste ao mesmo tempo.
Havíamos sobrevivido a um começo difícil, e às vezes eu ainda
agia como um tirano, mas nossos corações tinham se
entrelaçado. Achávamos graça das mesmas coisas.

***
Perto do fim de nosso terceiro inverno em São Francisco, depois
de uma série de tempestades, o banco de areia externo em
VFW’s começou a quebrar com regularidade pela primeira vez
desde nossa chegada. Entendi por que a onda era uma lenda
local. O banco era estranhamente longo e reto para Ocean
Beach, com um canal profundo na extremidade norte. Swells de
noroeste produziam ondas limpas ali, mas proporcionavam
apenas surfadas curtas. As ondas atingiam direto o banco de
areia; era preciso dropar muito perto do canal para surfá-las. Por
outro lado, swells mais de oeste atingiam o banco de areia em
um ângulo mais fechado, produzindo esquerdas longas e rápidas
de qualidade excepcional. Como o banco de areia só começava
a quebrar quando o swell chegava a dois metros, o outside de
VFW’s nunca ficava crowdeado. Eu o vira quebrar várias vezes,
inclusive em dias assustadores nos quais apenas Mark, Peewee,
Tim Bodkin e alguns surfistas de ondas grandes experientes
caíam na água. Na verdade, eu mesmo o surfara algumas vezes
em dias menores, quando ele não estava quebrando com muita
autoridade. Então, no início de 1986, houve um dia muito grande
e razoavelmente limpo. Eu não tinha uma prancha para tais
ondas. Mas Mark tinha. “Você pode usar a minha de dois metros
e setenta”, dizia ele sem parar, indicando a gun amarela na van
enquanto vestia a roupa de neoprene. “Vou usar a de dois e
sessenta.”
Ocorreu-me que Mark talvez estivesse tentando oferecer
minha vida para os deuses impiedosos de Ocean Beach uma
última vez. Ele poderia já saber que eu estava reunindo coragem
para lhe contar que decidira me mudar de volta para Nova York.
A ideia de deixar São Francisco me provocava um misto de
sentimentos, mas um dos mais fortes era alívio. A cada inverno
em Ocean Beach eu levava pelo menos um susto sério —
alguma situação sinistra em ondas grandes que perturbava meu
sono por muitas noites. Bob Wise entendia. “Surfistas nunca se
afogam aqui”, contou-me uma vez. “São turistas, motociclistas e
marinheiros bêbados que se afogam. Mas até os surfistas mais
experientes pelo menos uma vez por inverno se convencem de
que estão prestes a se afogar. É isso que torna Ocean Beach tão
esquisita.” Mark, que se superava na esquisitice, não entenderia,
supus. Mas eu estava feliz por escapar sem me afogar. Também
estava feliz por sair da mira do olhar evangelizador de Mark.
Estava cansado de ser acompanhante. Certa vez, no sudeste
asiático, Bryan se sentira impelido a se safar de mim. Mas aquilo
tinha sido diferente. Éramos parceiros. Eu não sabia como contar
a Mark que estava de partida. Não queria ouvir um discurso
sobre como isso significava me desviar do caminho de surfista.
Dez ou quinze caras estavam de bobeira no quebra-mar.
VFW’s — o VFW’s do inside — era o pico mais popular em
Ocean Beach, e os caras que estavam por ali naquele dia, sem
fazer qualquer menção de cair na água, o surfavam com
regularidade. Entre eles havia um pintor de paredes musculoso
chamado Rich, um dos surfistas dominantes naquela
extremidade da praia. Rich me olhou de cara feia quando passei
por ele com a prancha amarela de dois metros e setenta embaixo
do braço. Percebi que nunca o vira na água em dias de ondas de
dois metros. Hoje elas alcançavam alturas entre dois e três, pelo
menos. O swell estava enorme e razoavelmente de oeste. Não
estava imaculado — havia um pouco de vento lateral e uma
contracorrente furiosa —, mas várias esquerdas incríveis
passavam rugindo, sem serem surfadas, enquanto nos
preparávamos para cair na água. Bodkin e Peewee já estavam
lá, e cada um deles pegara algumas ondas enormes, mas os dois
vinham surfando de maneira conservadora, deixando que as
séries mais em pé passassem.
Remar a prancha de Mark me dava a sensação de estar
remando um petroleiro em miniatura. Eu tinha uma velha
monoquilha de dois metros e trinta para dias grandes, mas tinha
usado uma triquilha de dois metros e dez durante a maior parte
do inverno. De bordas grossas e bico pronunciado, a gun de dois
e setenta me fazia flutuar alto fora d’água, e não tive dificuldade
para acompanhar Mark quando entramos pelo canal. A água
estava verde-amarronzada e muito fria; apesar de correr limpo
das ondas que quebravam perto da praia na direção do mar, sem
bancos de areia no inside para atravessar, o canal estava mexido
e assustador, com ondulações enormes vindo dos dois lados,
formando ondas triangulares grossas e desagradáveis que
quebravam parcialmente antes de desaparecer. Havia um banco
de areia raso no outside ao norte, onde ondas enormes se
erguiam e quebravam com um rugido terrível. Ao sul, a última
seção da esquerda longa e mexida no outside de VFW’s não
estava muito mais convidativa. Ela também parecia rasa e muito
pesada. Mark e eu demos uma parada para observar uma
parede lisa quebrar com força em cima da última parte do banco
de areia, a apenas vinte metros de onde estávamos. Na direção
do interior do grande tubo que ela formou, Mark berrou: “Morte!”
A ideia parecia agradá-lo.
Continuei a seguir para o outside quando Mark virou à
esquerda e ultrapassou a extremidade do banco de areia.
Peewee e Bodkin estavam a uns duzentos metros ao sul, e Mark
foi direto até eles. Eu fiz um círculo maior por fora, preferindo
parecer um covarde a arriscar ser pego por uma série grande.
Uma série pequena passou, longe demais no inside para que
qualquer um de nós a pegasse, mas até mesmo ela fez um
estrondo assustador ao enfim quebrar. Achei a escala das coisas
ali muito amedrontadora. Não estava ansioso para ver uma série
grande. Verifiquei minha posição em relação à praia e segui
devagar para o sul. Pichações com letras enormes no quebra-
mar — MARIA, KIMO e PTAH — marcavam meu progresso. A praia
parecia, como costumava acontecer em dias grandes,
bizarramente pacífica e normal. Uma linha escura de ciprestes se
erguia além do quebra-mar — um quebra-vento para a
extremidade oceânica do Golden Gate Park —, e dois moinhos
de vento despontavam acima das árvores. Logo ao norte, os
penhascos estavam pintados de flores cor-de-rosa e marcado por
um belvedere de pedra pertencente às ruínas da velha mansão
Sutro. Tudo parecia muito estável. Eu não parava de olhar de um
lado para outro, esticando o pescoço a fim de ver onde estava e,
em seguida, para checar se algo saído de um pesadelo já se
agigantava no mar.
Estar na água com ondas grandes é como um sonho. Terror e
êxtase retrocedem e fluem nas beiradas de tudo, ameaçando
subjugar o sonhador. Uma beleza sobrenatural satura uma arena
enorme de água em movimento, violência latente, explosões
reais demais e céu. As cenas parecem míticas, mesmo enquanto
se desenrolam. Sempre senti uma ambivalência feroz: não quero
estar em nenhum outro lugar; quero estar em qualquer outro
lugar. Quero ser levado pela corrente e observar, absorver tudo,
no entanto a vigilância máxima, um estado de alerta extremo
àquilo que o oceano está fazendo, não pode ser afrouxada.
Ondas grandes (o termo é relativo, claro — um surfista pode
achar totalmente administrável aquilo que considero uma ameaça
à minha vida) são um campo de força que diminui a pessoa, e só
é possível sobreviver ao tempo que se passa ali ao se ler essas
forças com cuidado e bem. Contudo, o êxtase de surfar ondas
grandes exige que você se coloque ao lado do medo de ser
enterrado por elas: o filamento que separa os dois estados se
torna diáfano. A sorte muda excessiva e dolorosamente. E,
quando as coisas correm mal, o que inevitavelmente acontece —
quando você é pego no inside por uma onda muito grande ou
não consegue completar uma —, sua habilidade, sua força e seu
raciocínio não significam nada. Ninguém mantém a dignidade
enquanto leva um caldo de uma onda grande. A única coisa que
se pode ter esperança de controlar a essa altura é o pânico.
Segui devagar para o sul, na direção de Mark e dos outros,
respirando profunda e regularmente em um esforço para
desacelerar o coração, que batia forte de um jeito desagradável
desde o momento em que considerei de fato cair na água. Mark
dropou uma onda quando eu me aproximava do line-up. Ele
gritou ao se lançar em direção a uma parede do tamanho de um
mamute e desapareceu por trás de uma muralha marrom
tempestuosa. Percebi que o pico ficava exatamente em frente a
uma pichação grande e vermelha: PTAH VIVE. Bodkin, que ainda
estava sentado com Peewee, gritou meu nome com um sorriso
largo. O sorriso me pareceu metade diversão perversa com
minha rota que priorizava a segurança até o pico e metade
parabenização pelo simples fato de eu ter chegado até ali.
Peewee só balançou a cabeça para dizer oi. A brandura de
Peewee na água costumava ser uma bênção. Sua expressão
indecifrável deixava espaço psicológico para outros surfistas, o
que eu acreditava ser algo que muitos deles prezavam. Porém,
às vezes — nesse dia, talvez —, eu achava que Peewee levava
a indiferença no surfe um pouco longe demais. Claro, era
provável que ele não considerasse o outside de VFW’s com
aquele tamanho um lugar tão assustador, e talvez não
percebesse que, para mim, estar ali exigia um grande esforço.
Por acaso, a sorte — e a prancha certa — estava comigo
naquela tarde. Peguei várias ondas grandes e boas nas horas
seguintes. Não as surfei tão bem — fiz apenas o possível para
manter a prancha de dois metros e setenta apontada mais ou
menos na direção certa —, mas as surfadas foram longas e
velozes e, depois de cada uma delas, consegui voltar para o
outside ileso. A prancha de Mark era maravilhosamente estável e
me permitiu entrar nas ondas bem no início delas. Até peguei o
que Mark disse mais tarde ter sido a “onda do dia”. Em outra
tarde, com uma prancha diferente, eu provavelmente a teria
deixado passar, mas me encontrava sozinho no centro do pico,
bem no outside, quando uma onda extensa chegou. A parede se
estendia para o norte por quadras, parecendo impossível de ser
surfada, no entanto, àquela altura, eu senti muita fé no banco de
areia e no canal. Entrei cedo na onda, dando uma pequena
adiantada na parede — aquilo que surfistas de ondas grandes
chamam de passada — para me lançar por cima do lip. Precisei
desviar de uma pequena pontada de acrofobia quando fiquei de
pé. A base da onda parecia estar a quilômetros de mim. Mais ou
menos na metade da parede, inclinei-me em uma virada forte,
esforçando-me para me manter em cima da prancha, avançando
cada vez mais rápido na água que corria pela parede. Minha
coragem vacilou uma segunda vez quando olhei por cima do
ombro para a parede à frente. Ela era muito maior do que eu
esperava: mais alta, mais íngreme e mais ameaçadora. Virei-me
e me concentrei, como se estivesse usando antolhos, nos poucos
metros de água que corriam logo à minha frente, dando grandes
viradas graduais e cavadas em alta velocidade. A onda se
manteve lindamente, e eu a completei com facilidade, embora a
seção final, do tamanho de uma casa, ao lado do canal, tenha
me jogado para fora tão rápido que precisei abandonar qualquer
fantasia de controle e qualquer estilo para simplesmente
permanecer ali, de pé, com os joelhos dobrados — um
passageiro satisfeito.
Peewee estava no canal e passou remando por mim quando
saí da onda. Acenou com a cabeça. Começamos a remar juntos
para o pico. Meu corpo inteiro tremia. Depois de um minuto, não
consegui me segurar. “Qual foi o tamanho daquela onda?”,
perguntei. Peewee riu. “Meio metro”, respondeu.

***

Caroline e eu nos mudamos para Nova York naquele verão.


Levei sete anos para escrever a matéria sobre Mark e Ocean
Beach. Temas mais urgentes — apartheid, guerras, calamidades
de diferentes tipos — não paravam de exigir minha atenção.
Esses eram assuntos sérios, desgastantes em termos de
trabalho, autojustificáveis como projetos. Surfar era o contrário.
Antes que terminasse o perfil de Mark, eu já havia publicado três
livros — dois sobre a África do Sul e um sobre uma guerra civil
em Moçambique —, além de já ter escrito a primeira parte de um
livro ambicioso sobre o declínio da mobilidade social nos Estados
Unidos. Passara a trabalhar em tempo integral para a New
Yorker, na qual publiquei, entre outras coisas, dezenas de textos
de opinião. Essa era outra fonte de minha hesitação. Ali estava
eu escrevendo, com frequência de forma contenciosa, sobre
pobreza, política, raça, política externa americana, justiça
criminal e desenvolvimento econômico, na esperança de que
meus argumentos fossem levados a sério. Não sabia ao certo se
sair do armário como surfista seria útil. Outros especialistas em
política talvez dissessem: Ah, você é só um surfista idiota, o que
sabe?
Mas a maior razão para minha relutância em terminar a
matéria foi uma preocupação mordaz com a possibilidade de
Mark não gostar dela. Eu o admirava e achava fácil escrever
sobre ele, mas Mark era um personagem complicado, com um
autoapreço enorme que, na melhor das hipóteses, incomodava
muita gente na pequena comunidade do surfe que eu também
tentava retratar. Depois que deixei São Francisco, ele começou a
editar uma coluna de aconselhamento médico para a Surfer. As
aventuras e os ditados de Mark se tornaram uma tradição nas
colunas regionais do periódico. As revistas de surfe descobriram
Ocean Beach, em parte, graças aos esforços de Mark. Então, em
1990, a Surfer publicou uma sequência fenomenal de quatorze
quadros de um jovem surfista canhoto, Aaron Plank, em uma
esquerda rápida com duas vezes sua altura em Ocean Beach.
Aaron ficava completamente escondido por sete quadros —
cerca de quatro segundos — e saía limpo. Parecia o fim de uma
era. O mundo inteiro sabia sobre Ocean Beach agora. Ouvi dizer
que houve até um campeonato profissional sediado em VFW’s.
Entretanto, a notícia mais estranha que recebi de São
Francisco através da Surfer foi um peã a Peewee feito por Mark.
“Calado, aparentemente sem ego, ele atrai pouca atenção para si
mesmo — até remar para o pico e pegar uma onda”, escreveu.
“O melhor pico da praia — Peewee está lá. A melhor onda da
série — Peewee está nela. A melhor onda do dia — Peewee
pegou.” Mark comparava Peewee a Clint Eastwood, e o famoso
incidente em que ele destruiu as quilhas foi mencionado. O texto
era um brinde divertido e nada ambivalente. Será que eu
interpretara mal a rivalidade entre os dois? Ou Mark
simplesmente tentara proporcionar um efeito comovente à
coluna?
Por falar nisso, eu estivera errado ao temer a reação de Mark
à notícia de que eu ia deixar São Francisco. Ele nem hesitou.
Fizemos uma última viagem juntos a Big Sur, e Mark me desejou
boa sorte. Entretanto, depois de Caroline e eu aterrissarmos em
Nova York, ele parecia nunca deixar escapar uma oportunidade
de me contar tudo sobre as ondas maravilhosas que eu estava
perdendo em Ocean Beach, ou sobre as várias viagens de surfe
das quais, inexplicavelmente, eu me recusava a participar —
Indonésia, Costa Rica, Escócia. No Alasca, ele fretou um avião,
explorou centenas de quilômetros da costa e, quase no pé de
uma geleira, descobriu e surfou sozinho ondas magníficas em
frente a uma praia marcada com pegadas frescas de ursos.
Eu também estivera errado em relação à perda de
credibilidade como colunista político por revelar que surfava.
Ninguém pareceu dar a mínima para nada disso.
Mas descobri que não estivera errado sobre a reação de Mark
à matéria quando ela foi enfim publicada. Ele a odiou.
Peter Spacek, Jardim do Mar, ilha da Madeira, 1995
NOVE

BAIXO PROFUNDO

Ilha da Madeira, 1994-2003

Minha vida assumira um caráter mais estável, de meia-idade.


Caroline e eu estávamos casados. Morávamos em Nova York
havia oito anos. Eu vinha trabalhando muito — colunas, artigos,
livros. Jornalismo. Tinha feito quarenta anos. Nós criáramos um
mundo. Compráramos um apartamento. Nossos amigos eram
escritores, editores, artistas, acadêmicos. Caroline deixara a arte
de lado e se tornara, para a própria surpresa, advogada de
defesa. Ela gostava da disputa de inteligência com “o governo”.
Eu confiava mais do que nunca em sua visão cálida e generosa.
Caroline e eu havíamos chegado ao baile juntos. Ninguém mais
tinha como saber as coisas que sabíamos, a linguagem particular
que havíamos construído. Antes de nos casarmos, terminamos e
moramos separados por um tempo. Pareceu uma experiência de
quase morte.
Minhas reportagens me levaram a toda parte, a guerras civis e
mundos desconhecidos. Alguns projetos me tomaram por inteiro
durante meses, até mesmo anos. A maior parte das minhas
reportagens era carregada com a sombra do sofrimento e da
injustiça, mas algumas, como as primeiras eleições democráticas
na África do Sul, foram muito gratificantes. Na velha luta que a
vida profissional adulta e o surfe travavam por minha devoção, o
trabalho dera uma chave de braço definitiva na perseguição a
ondas. Mas então o surfe, sempre astuto, se livrou do golpe.
Essa reversão foi provocada, até inspirada, por um surfista destro
treinado em Rincon chamado Peter Spacek.
Peter e eu nos conhecemos em Montauk, a velha aldeia de
pescadores na extremidade leste de Long Island. O editor de
uma revista de surfe tinha me dado o endereço de Peter, que
morava em uma área em frente ao mar conhecida como Ditch
Plains. A casa se revelou um bangalô para aluguel por
temporada, com telhado de madeira e um bilhete preso com fita
adesiva na porta da frente. Havia um pranchão Herbie Fletcher
embaixo do alpendre, dizia o bilhete. Eu devia cair na água com
ele. Sob o recado, havia um desenho despretensioso, apesar de
bem-feito, de ondas pequenas e crowdeadas. Ditch Plains fica,
para o surfe, em um local interessante. É o povoado mais a leste
na costa oceânica de Long Island. Para oeste, estendem-se mais
de cento e cinquenta quilômetros de picos de fundo de areia por
todo o caminho até Coney Island, em Nova York. É uma costa
impressionantemente plana e arenosa. Mas a areia se transforma
em rocha em Ditch, e os últimos seis quilômetros até Montauk
Point são de fundo de recife e de pedra espalhados por uma
costa com falésias argilosas e sem estrada. No verão, Ditch é
uma praia popular entre famílias, com trailers que vendem
burritos estacionados nas dunas e uma esquerda delicada e
longa que quebra ao longo da linha onde o fundo de areia se
transforma em pedra. É um bom pico para iniciantes. Eu nunca
tivera vontade de surfar ali.
As ondas pareciam chegar à altura do peito, farelentas, fracas.
Era uma tarde ensolarada de fim de verão. Havia cerca de
quarenta pessoas na água, de longe o maior crowd que eu já
tinha visto na Costa Leste. Era a primeira vez em décadas que
eu usava um pranchão. O surfe passara por um renascimento do
longboard nos anos 1980, motivado principalmente por caras
mais velhos que já não tinham mais condições de usar
pranchinhas. Pranchões exigem menos força e agilidade. Pegam
ondas com mais facilidade. Mas surfistas de pranchão pegam as
ondas tão cedo que, em muitos picos, tinham começado a
atrapalhar as pranchas de maior desempenho. Para mim, era
uma questão de orgulho entrar na casa dos quarenta anos ainda
usando pranchinhas. Eu pensava que me render a um pranchão
seria como usar um andador geriátrico — significaria que meus
dias dourados haviam acabado. Planejava adiar isso o máximo
possível. Remei de joelhos em torno do crowd em Ditch e peguei
uma onda no outside. Pareceu estranho manobrar uma prancha
de três metros, mas os movimentos antigos voltaram um a um e,
no fim da onda, eu me vi caminhando com cuidado — e
sobretudo com ironia — na direção do bico. Quando saí da onda,
havia um cara sentado na parede me observando. Tinha um
nariz adunco, mais ou menos a minha idade, cabelo louro
comprido e cavanhaque. “Não me contaram que você era um
surfista de pranchão”, gritou ele.
Peter era ilustrador, e o editor que nos apresentou queria que
colaborássemos um com o outro em um artigo sobre seguir um
swell de furacão Costa Leste acima. Eu surfara alguns swells de
furacão em Fire Island, mas agora praticamente só surfava em
viagens — para Califórnia, México, Costa Rica, Caribe, França.
E, para ser totalmente franco, a maior parte dessas viagens
também podia ser descrita como férias. Então eu ainda surfava,
mas não de verdade. Ninguém me telefonava para me informar
sobre as ondas nos arredores de Nova York.
Depois que esclareci a questão do pranchão, Peter e eu
concordamos que a ideia da reportagem da busca do swell era
ruim. Significaria pegar estrada demais em uma linha costeira
que achávamos incoerente. Então ele começou a me apresentar
a Montauk. “É o meu pequeno paraíso”, disse. Não estava se
referindo a Ditch Plains, mas aos picos de fundo de recife e areia
sem crowd nas duas direções. Peter morava em Manhattan e
dividia chalés de aluguel por temporada em Ditch havia anos,
mas ainda estava descobrindo os picos mais obscuros e
inconstantes em torno de Montauk. Ele era de Santa Barbara e
tinha morado no Havaí. A primeira vez que pegamos boas ondas
juntos, em um swell de outono sólido no recife rochoso a leste de
Ditch, fiquei impressionado com a suavidade e o poder de seu
surfe. Não era um estilo comum de se ver na Costa Leste, onde
ondas pequenas e curtas tendiam a um surfe de movimentos
irregulares e sem graça.
Naquela noite, durante o jantar, ele me mostrou uma
reportagem de viagem em uma revista de surfe que o deixara
empolgado. As ondas nas fotos pareciam saídas de um sonho:
eram grandes, de coloração escura, de cair o queixo de tão
limpas. A localização delas, de acordo com a convenção das
revistas de surfe, não era citada, mas os editores não tinham se
esforçado muito para disfarçar o lugar, e Peter afirmou saber
onde ficava. “Madeira”, disse. “Como o vinho.” Ele abriu um
mapa. A ilha da Madeira parecia o centro do alvo na janela do
swell de inverno no Atlântico Norte, mais de novecentos e
cinquenta quilômetros a sudoeste de Lisboa. Ele queria conferi-
la. E, de repente, eu também.

***

Fizemos nossa primeira viagem em novembro de 1994. A ilha da


Madeira era um choque para os sentidos: costas íngremes
verdejantes, estradinhas à beira de penhascos, camponeses
portugueses que observavam nossas pranchas com
desconfiança, ondas que se erguiam pesadamente das
profundezas do oceano. Percorremos de carro gargantas e
florestas no topo elevado e vertiginoso de montanhas. Comemos
prego no pão (um sanduíche de carne com alho) em restaurantes
de beira de estrada e bebemos café espresso. Subimos quebra-
mares e descemos escarpas. Não parecia haver outros surfistas
na área. Na costa norte, em frente a uma aldeia chamada Ponta
Delgada, encontramos uma grande esquerda. Era mexida e,
como todo pico que víamos, quebrava perto demais de rochas
com aparência faminta. Mas a onda limpava ao virar para o
interior protegido do pico, e a parede no inside era longa, rápida
e poderosa. Peguei uma série de morras. Peter passou por mim
remando e rosnou: “Você poderia parar de mandar tão bem?”
Gostei daquela competitividade declarada. Em geral, Peter
surfava melhor que eu, e, em Delgada, ele se aventurou sozinho
em uma zona açoitada pelo vento e de águas azuis além do pico,
à caça de monstros com os quais eu não queria contato. Mas, ao
contrário de mim, ele estava tendo azar na escolha das ondas.
Também ao contrário de mim, Peter tinha uma namorada o
observando da praia.
Alison fora um acréscimo surpresa à viagem. Ela e Peter
haviam se conhecido recentemente. Alison era magra, forte,
sarcástica, com espírito esportivo, cabelo preto e também
trabalhava como ilustradora. Os dois desenhavam o tempo todo
— em cafés e saguões de aeroporto, distraindo-se ao traçar
sombras em linhas cruzadas, ela estendendo a mão para
adicionar tinta ao trabalho em andamento dele. “Não tenha medo
do preto!” Eles enviavam o resultado por fax de hotéis e
locadoras de carro para clientes nos Estados Unidos. Eram
viajantes estilosos, tranquilos e nada medrosos. Mas podiam ser
temperamentais. Um dia, após chegarmos à ilha da Madeira,
antes de encontrarmos ondas, eles anunciaram que queriam
voltar para a parte continental de Portugal, que lhes parecera
mais divertida. Falei que isso estava fora de questão. Fiquei
horrorizado, em silêncio. Qual era o problema daqueles dois?
Peter começara a usar uma boina — outro mau sinal. Então
passamos a pegar ondas. Primeiro em Ponta Delgada; depois,
alguns quilômetros a leste dali, encontramos um pico de fundo de
recife volumoso e consistente que ele chamou de Shadowlands.
O penhasco era tão alto — quase mil metros — que o sol de
inverno nunca alcançava a praia. Usávamos trajes finos de
neoprene — mangas compridas, pernas curtas — e, aos poucos,
descobrimos como delinear a surpreendente seção de tubos na
maré baixa em Shadowlands.
Mas a principal região de ondas era a costa sudoeste, onde
swells de noroeste varriam a extremidade esquerda da ilha,
ordenados em linhas compridas e organizadas. Tendo a revista
de surfe como fonte, sabíamos onde procurar. Havia uma aldeia
chamada Jardim do Mar. Ficava em um pontal pequeno que
parecia saído de um livro de histórias. À frente do pontal, se
acreditássemos nas fotos, quebrava uma grande onda. Na
primeira vez que verificamos, o vento estava errado, e as ondas,
pequenas. Fui explorar a costa (vertical, deserta, linda) a oeste
de Jardim em minha prancha, sem esperar encontrar ondas,
enquanto Peter e Alison caminhavam pelas rochas. Ele
carregava uma prancha, só por garantia. Em um promontório
pedregoso chamado Ponta Pequena, nos deparamos com um
pico surpreendente: pequenas direitas sinistras que quebravam
no interior de uma angra rasa. Peter e eu fomos até lá. Para
ondas na altura do peito, o preço a se pagar por cair se mostrou
muito alto, e Peter deixou uma boa quantidade de sangue nas
rochas. Tive outra sessão de sorte. Mais tarde, em seus
desenhos de nossa primeira sessão em Ponta Pequena, vi que,
mais uma vez, Peter anotara nosso desempenho. Ele tinha
pegado um tubo e meio, enquanto eu pegara cinco, segundo um
placar incluído no desenho. Além disso, Peter se machucara; eu,
não. Tudo isso enquanto a namorada dele assistia.
Mais tarde, ocorreu-me que a razão de eu gostar dessas
disputas inventadas por Peter era que eu sempre parecia vencê-
las. Do contrário, é provável que Peter não as tivesse
mencionado. Por baixo de sua aparência de skatista grunge
(ainda andava de skate, com mais de quarenta anos, em seu
bairro, TriBeCa), ele mantinha discretamente um comportamento
perfeito. Seus pais eram imigrantes tchecos que fugiram do Leste
Europeu quando ele era pequeno, e eu achava que parte de sua
civilidade incomum vinha deles: Peter recebera uma criação
típica do Velho Mundo na Califórnia. O restante, porém, vinha
dele próprio. Mas eu adorava o modo como ele pegava o
exibicionismo e a demonstração de superioridade do surfe e os
transformava em piadas diretas. Eu havia surfado com muitos
caras com quem a competição latente era pesada e, portanto,
nunca mencionada. O herói de Peter na faculdade de arte tinha
sido Robert Crumb, e ele e o mestre compartilhavam uma
afinidade por satirizar verdades constrangedoras.
Para a ilha da Madeira, eu comprara uma prancha de ondas
grandes, uma gun, a primeira da minha vida. Era uma triquilha de
rabeta squash de quase dois metros e meio, grossa e com
formato de flecha, construída para pura velocidade. Ela fora
ostensivamente shapeada por um velho profissional de North
Shore chamado Dick Brewer. Ele era o mais famoso shaper de
ondas grandes no mundo do surfe, e eu duvidava de que seu
papel na fabricação da minha prancha tivesse ido além do projeto
e da assinatura. Eu a comprara do mostruário de uma loja em
Long Island. O que a Brewer estava fazendo ali era um mistério
— Long Island provavelmente nunca veria, nem mesmo nos
maiores swells de furacão, ondas que exigissem uma prancha
dessa —, mas considerei sua aparição um sinal. Peter insistiu
para que eu a comprasse, então o fiz. Ele também levou uma
gun na viagem.
Na ilha da Madeira, descobrimos depois de alguns dias que
havíamos encontrado algo extraordinário. Porém, foram
necessárias algumas tentativas para que compreendêssemos a
dimensão daquele lugar.

***

A primeira vez que surfamos Jardim do Mar, ou a primeira vez


que a surfamos bem, foi provavelmente no ano seguinte. Mesmo
com menos de dois metros, tratava-se de uma onda séria. Linhas
pesadas com intervalos longos vinham marchando do oeste e
viravam em torno do pontal em uma curva de tirar o fôlego. Elas
borrifavam água, tinham uma sessão em pé e quebravam no
ponto mais externo da ferradura; em seguida, corriam ao longo
de uma costa rochosa. Remamos a partir de uma rampa de
barcos primitiva — uma rampa de concreto coberta de musgo
que saía de um quebra-mar — até bem longe no pontal. Quando
nos aproximamos da arrebentação, o poder e a beleza das ondas
ficaram mais evidentes. Uma série passou por nós, reluzindo e
rugindo sob o sol baixo da tarde de inverno, e senti um nó na
garganta de tanta emoção — uma mistura inexplicável de alegria,
medo, amor, desejo e gratidão.
Um grupo de aldeões tinha se reunido em um terraço abaixo
da torre do sino da igreja. Não éramos os primeiros surfistas que
eles viam. Ainda assim, pareciam muito curiosos quanto ao
nosso progresso enquanto tentávamos decifrar o pico. Vibravam
quando um de nós pegava uma onda. Os drops eram intensos e
é provável que tivessem uma aparência dramática, com a grande
rampa da parede prateada e, depois, uma parede ampla e
dourada, iluminada por trás, elevando-se depressa. Nós dois
surfamos de maneira conservadora, escolhendo com cuidado as
ondas, então acelerando com força, usando as faces amplas
para dar rasgadas em torno de seções, mostrando respeito, sem
botar para dentro. A velocidade, a profundidade e a escala das
ondas foram uma revelação, uma glória. E os aldeões sem
dúvida reconheciam uma boa surfada quando viam uma.
Também conheciam bem aquele trecho do oceano e, de onde
estavam, viam mais que nós. Os aldeões começaram a assobiar
para nos ajudar a encontrar uma posição. Um assobio forte
significava que uma onda grande estava a caminho e
precisávamos remar mais para fora. Um assobio mais forte
significava que precisávamos remar mais rápido. Um assobio
fraco significava que estávamos no ponto certo. Surfamos até
escurecer.
Jardim do Mar, 1998

***

Naquela noite, comemos espada preta — um peixe de águas


profundas, carne adocicada e aspecto monstruoso — em um
restaurante da aldeia. Queríamos agradecer às pessoas que
tinham assobiado, oferecer uma bebida, mas elas eram tímidas,
não acostumadas a estranhos. Peter declarou que a onda era
“suprema”. Comecei a procurar onde ficar.

***

A ilha da Madeira se transformou no meu refúgio de inverno.


Com certeza os períodos que passei lá não eram férias. Eram
imersões, e algumas duravam semanas a fio. Os picos que
surfamos eram todos de fundo de recife, imprevisíveis e
supercomplexos, exigindo o estudo mais diligente e castigando
duramente os erros mais sutis. Com minha capacidade física
diminuindo e meu trabalho de jornalista em alta rotação, aquele
era um momento estranho para assumir um projeto tão arriscado,
fora de padrão e impiedoso.
Mas eu achava a ilha um refúgio ressonante. A maioria dos
imigrantes portugueses no Havaí tinha vindo, aparentemente, da
ilha da Madeira. As malassadas (rosquinhas portuguesas) que
comíamos na infância vinham dali, assim como as linguiças
portuguesas que certa vez devorei cruas. Até o ukulele tivera
origem na ilha da Madeira, onde era conhecido como braguinha.
Eu era capaz de ver — ou pelo menos pensava que era — os
traços fortes dos Pereiras e Carvalhos que conhecera em Oahu e
Maui nos rostos dos habitantes da Madeira. Madeirenses tinham
ido para o Havaí aos milhares a fim de trabalhar nas plantações
de cana — o açúcar fora a primeira cultura de exportação do
lugar. A ilha era famosa pelo vinho, mas seu maior produto de
exportação não era o vinho: eram as pessoas. A ilha da Madeira
era incapaz de sustentar a própria população desde meados do
século XIX. Os habitantes, em especial os jovens, ainda
emigravam em grandes números. África do Sul, Estados Unidos,
Inglaterra, Venezuela, Brasil — todo madeirense que eu conheci
parecia ter parentes que moravam no exterior.
A conexão africana era a mais intensa. Quando António
Salazar, ditador português da metade do século passado, tentou
exportar seu problema de excesso de camponeses para as
colônias em Angola e Moçambique, muitos madeirenses se
juntaram ao êxodo. A maior parte se transformou em fazendeiros
(algodão, caju). Muitos serviram como soldados, o que era
inevitável. Até a pequena Jardim do Mar tinha, entre suas poucas
centenas de moradores, vários veteranos das guerras
anticoloniais. Eu conhecia Moçambique, pois havia escrito sobre
a guerra civil que eclodiu por lá depois da independência. No
entanto, nunca vi razão para mencionar na Madeira, em meio a
ex-colonos, meu período no país africano. Quase todos os
portugueses tinham fugido depois da independência.
Agora eles fugiam da recém-democratizada África do Sul.
Contêineres de navios apareciam na praça em Jardim. Toda a
aldeia se voltava para descarregar o butim — móveis de madeira
de lei, eletrodomésticos modernos, até carros, tudo direto de
Pretória. Fiz amizade com um nativo de Jardim chamado José
Nunes. Ele tinha morado na África do Sul. Quando nos
conhecemos, vivia com a família em cima de um pequeno bar e
mercearia que herdara do pai. “As pessoas voltam porque não se
sentem seguras na África do Sul agora”, explicou José. “Aqui
estão seguras, mas não há trabalho.”
Na verdade, as pessoas ainda pescavam e cuidavam da
lavoura, mas a agricultura era toda manual — um trabalho
extenuante — em pequenos terraços de paredes de pedra.
Idosos de boina de tweed e casacos de lã, com rosto vermelho,
pernas arqueadas e corpo robusto trabalhavam nos terraços.
Uvas viníferas, bananas, cana-de-açúcar, mamões — pequenos
lotes e campos eram abertos em todas as encostas, com
exceção das mais íngremes. Em Jardim, toda varanda e todo
muro pareciam transbordar de flores. Havia luz constante e a
música envolvente da água de uma nascente que descia pela
montanha — corria pela aldeia, através de um sistema intrincado
de canais, irrigando as luxuriantes hortas domésticas. Nos cantos
dos telhados das casas havia pombos, gatos, cãezinhos
parecidos com boxers e bustos de cerâmica de jovens estudiosos
em chapéus antiquados.
Eu às vezes ficava em um hotel novo na aldeia e, mais tarde,
em quartos alugados. Levava trabalho para quando não havia
ondas ou os ventos estavam ruins. Mas o surfe regia meus dias.
Quando estava grande, névoa e trovões enchiam o ar. À noite,
durante um swell, havia um ronco geral em Jardim — uma
pulsação grave e profunda que não era o mar, mas o gemido das
rochas debaixo do pico. A ilha da Madeira não tem plataforma
continental. Nesse sentido, é igual ao Havaí. Swells gigantescos
de tempestades do norte e do oeste atravessam livremente
águas muito profundas e atingem a ilha com toda a força. No
entanto, até mesmo o Havaí tem recifes costeiros em vários
lugares que absorvem o impacto, além de praias de areia.
Supostamente, a ilha da Madeira tem uma praia em algum lugar
no lado leste, mas nunca a vi durante a década que frequentei o
lugar em busca de ondas. A costa era formada por pedras e
falésias, que costumavam multiplicar de maneira contundente o
quociente de perigo, que já era elevado. Estávamos garimpando
um rico filão de felicidade. Mas o desastre nunca parecia estar
longe.

***

Nosso primeiro incidente ocorreu durante aquele segundo


inverno. Aconteceu com Peter em Ponta Pequena. Tínhamos
caído na água em Jardim no início da manhã. Estava lisa e
grande, duas vezes o tamanho daquela primeira sessão
vespertina maravilhosa. Nós dois estávamos com nossas guns. A
escala de tudo tinha se expandido. Havia ondas excelentes
quebrando onde havíamos surfado, mas agora essa zona não
estava segura. As séries grandes surgiam ao longe no mar —
faixas escurecidas em uma superfície azul-clara, largas e
pesadas, avançando silenciosamente do sudoeste em nossa
direção. Quando se aproximavam, eu achava difícil me manter na
posição em que estava. Não parava de seguir para sudeste, à
procura de águas mais profundas, nervoso com o tamanho do
swell. Estava tão grande quanto qualquer coisa que eu já tinha
surfado em Ocean Beach, e isso fora em outra vida, em melhores
condições físicas. Parecia haver algumas pessoas no terraço da
igreja assistindo, mas não assobiavam — ou talvez seus
assobios estivessem sendo afogados pelo estrondo constante da
arrebentação na costa. Peter demonstrava mais coragem e
remava com mais calma na direção do horizonte quando uma
série surgiu. Ele remou para a parede externa, não em direção
contrária.
O pico surgiu com uma parede enorme, limpa e aberta, que
não quebrava com força excepcional e parecia se manter
razoavelmente, sem nenhuma seção catastrófica, por toda a
distância até o pontal. Por fim, Peter pegou uma onda. Com um
grito, ficou de pé, surfou sobre o lip e desapareceu pelo que
pareceu muito tempo. Achei ter visto sua trajetória uma vez ao
longo da linha da onda, mas não tive certeza. Então ele surgiu
voando com os braços erguidos por cima da parede muito, muito
longe no inside. Voltou eufórico e disse que era surfável. E que
era insana. Segui para o pico com o coração batendo forte e
peguei algumas. Os drops eram vertiginosos, quase causavam
náuseas, mas não extremamente íngremes. As faces deviam ter
seis metros. (Poderíamos dizer que as ondas tinham três metros,
três metros e meio.) Surfei com cuidado, estendendo os braços
para me equilibrar. As surfadas eram longas e rápidas, as
paredes azuis pareciam grandes lonas estendidas. Terminei
todas as minhas ondas deslizando rapidamente por saídas
seguras em algum lugar perto da rampa de barcos. Eu me sentia
bem feliz por estar em minha gun. Minha confiança aos poucos
começou a voltar. Então Peter me surpreendeu: “Vamos sair
daqui”, disse ele. “É muita pressão.”
Fiquei feliz em ir embora. Meu cabelo ainda estava seco.
Subimos a costa remando por cerca de um quilômetro de águas
calmas até Ponta Pequena. Lá também estava grande, mais de
duas vezes a altura de um homem, mas não intimidava. O pico
no outside era suave e fácil — mas não inconsequente, com
aquele tamanho. Pequena era uma onda estranha. Quando
chegava perto dos dois metros, não perdia a força à medida que
você a surfava, como ocorre com a maioria das ondas. Na
verdade, ficava repentinamente mais poderosa no inside — perto
da angra rasa onde a tínhamos surfado —, mais rápida e muito
intensa. Você precisava estar preparado para aquela aceleração.
Era como surfar de Malibu ao North Shore em uma única onda.
Mas, havia uma pausa antes da transformação, que dava tempo
apenas para planejar a mudança para a hipervelocidade, decidir
a trajetória a tomar e como escapar. Eu estava começando a
amar Pequena, principalmente por essa transformação mutante.
E, naquela manhã ensolarada, depois de sobreviver ileso ao
grande Jardim, eu a surfava com firmeza, alegria e sem medo.
Talvez por isso eu tenha demorado tanto para perceber que Peter
desaparecera. Estávamos surfando em rotação. A seguir, eu
surfava sozinho. Não parava de olhar o canal, de verificar a zona
de impacto. Não estava preocupado. Peter era forte e esperto.
Meu intenso medo de antes se dissipara. Por fim, eu o avistei.
Ele estava em terra, bem além dos rochedos que demarcavam a
extremidade baixa de Pequena, sentado ao lado da prancha com
a cabeça apoiada nos joelhos. Segui até lá, disparando na
direção da praia.
Peter balançou a cabeça de leve para mim. Encarava o mar.
Não era exatamente um olhar perdido e desfocado, mas se
aproximava disso. Parecia que tinha ficado tempo demais em
uma onda, foi pego pela próxima, sugado para a arrebentação na
costa, e, em seguida, seu leash se enrolou com força em uma
pedra. Naquela maré (alta) e daquele tamanho, a arrebentação
costeira de Pequena estava totalmente fora de questão.
Quebrava em uma base rochosa vulcânica irregular, em seguida
atingia um penhasco íngreme. Sem conseguir soltar a cordinha
nem alcançar o tornozelo para arrancá-la, Peter ficara
aprisionado — sendo arrastado para fora, jogado de volta.
Passou a maior parte do tempo embaixo d’água. Peter não sabia
quantas ondas o haviam atingido. No fim, mas não antes de ter
chegado à conclusão de que estava prestes a se afogar, a
cordinha arrebentou. “Foi um milagre”, murmurou ele. “Não faço
ideia de como arrebentou.”
A prancha parecia mais estropiada do que ele. Mais tarde,
Peter fez uma série de desenhos de sua situação aflitiva na
arrebentação costeira de Ponta Pequena. Com títulos como
Situação indesejada no 002, eram quase cômicos. Mas os
rochedos, penhascos e a costa vazia cheia de terraços
projetavam-se sombriamente acima do surfista narigudo e
amarrado em sua cordinha.

***

Não éramos mais os únicos surfistas na área. Pouco depois de


nossa primeira visita, um grupo de profissionais havaianos
chegou à ilha da Madeira. Pegaram ondas espetaculares e, na
bela matéria em uma revista sobre sua viagem, teceram
comparações positivas entre Jardim e a baía de Honolua. Então
o segredo foi totalmente revelado. Soube que até Mark Renneker
fizera uma visita e usara capacete para surfar Jardim. O local
estava sendo vendido no cenário underground do surfe mundial
não apenas como uma onda classe A, mas uma raridade
extrema: um pointbreak de ondas grandes, talvez o melhor do
mundo. Ninguém sabia que tamanho de swell ela aguentaria;
ninguém a vira fechar ainda. Os havaianos também ficaram
impressionados com outro pico, um tubo triturador que quebrava
perto da costa em Paul do Mar, a aldeia seguinte a oeste. De
Jardim era possível ver a onda — ela ficava depois de Ponta
Pequena —, mas a viagem de carro pela montanha até Paul era
tortuosa.
Um mural grande e de perspectiva provocante da onda em
Jardim, pintado por um surfista da Califórnia, surgira durante
nossa ausência em uma parede da praça. Um grupo variado de
surfistas — britânicos, australianos, americanos e portugueses
do continente — começou a passar pela aldeia, hospedando-se
onde conseguiam. Fizemos amizade com um jovem casal que
tinha viajado até ali para o inverno, Moona e Monica. Ele era
escocês; ela, romena. Os dois haviam se conhecido na Bósnia,
onde fizeram trabalho humanitário durante a guerra. Agora
tinham uma filha ainda bebê, Nikita. Monica estava traduzindo O
paciente inglês para o romeno. Moona, que fora skatista
profissional, tentava destemidamente verter suas manobras de
skate para a prancha de surfe, com resultados distintos, em
ondas extremamente impiedosas. Eles formavam um casal
radiante que vivia em um quarto de frente para o mar, no meio do
nada. Eu escrevera sobre a Bósnia, e Moona e Monica disseram
que eu precisava visitar Tuzla, a velha cidade de mineração de
sal onde os dois tinham se conhecido. Disseram que era uma ilha
antinacionalista em um mar de nacionalismos inflamados. Os
dois foram tão convincentes que, mais tarde naquele inverno, de
volta ao trabalho, segui seu conselho e fui a Tuzla. Moona e
Monica tinham razão. Era um lugar desolado e pungente para se
observar a guerra, que havia terminado recentemente em uma
amargura multiétnica.
Certa manhã, alguns de nós fomos juntos até Paul do Mar.
Estava com dois metros e meio e muitos redemoinhos. Em
menos de uma hora, Peter quebrou a prancha e cortou o pé, e
um americano chamado James fora arrastado e quebrara o
tornozelo. Eles foram juntos para o hospital em Funchal, a
capital, que ficava a três horas de distância. Dois dias depois,
outra vez em Paul, meu pé ficou preso entre duas pedras na
arrebentação perto da costa. Fui parar no mesmo hospital para
tirar radiografias, que não apontaram lesões, e durante a semana
seguinte surfei com o pé e os tornozelos firmemente presos com
silver tape para ter maior estabilidade. Peter anunciou que Paul
do Mar não era um pico de surfe, mas apenas um caixote bonito
e kamikaze. Eu discordava. Considerava-a uma onda fascinante.
Era absurdamente perigosa. Além da força bruta, havia a linha
da costa. A maioria das rochas era arredondada, mas o trecho
limítrofe da arrebentação costeira para entrar na água era largo
demais, sobretudo quando as ondas estavam grandes. Mesmo
depois de cronometrá-lo com cuidado — esperando um momento
mais calmo, deixando que uma onda que quebrou na costa se
exaurisse —, e após correr loucamente com a prancha por
rochedos molhados, às vezes não dava para alcançar a água
com profundidade suficiente para remar antes que a onda
seguinte o atingisse e o jogasse para trás por cima das pedras —
prancha, corpo e dignidade atingidos, de vez em quando com
severidade. Isso não era um problema normal do mar. Parecia
matemática malfeita: o tempo e a distância, por alguma razão
que ocorria apenas na ilha da Madeira, não batiam. Eu nunca
tinha visto um pico de surfe com uma entrada tão
amedrontadora. E a saída, a volta para a terra, podia ser ainda
pior. A onda que nos fizera ir até ali ficava no máximo a trinta
metros da costa, mas eu às vezes recorria a uma remada muito
longa, em torno de um quebra-mar na distante extremidade leste
da aldeia, em vez de encarar as ondas que quebravam perto da
costa.
A glória da onda era sua velocidade tardia. A água costumava
ser extremamente clara em Paul, provocando um efeito
inquietante no pico. Às vezes, quando você pegava a onda,
ficava de pé e, supondo que tudo corresse conforme o planejado,
dava uma virada rápida para a direita, o fundo não se deslocava
nem um pouco. Os grandes rochedos brancos embaixo d’água
ficavam estacionários, ou chegavam a se mover levemente para
trás. Na verdade, havia tanta água correndo pela superfície que
você ficava imóvel em relação à terra, mesmo estando a toda
velocidade. Isso, mais uma vez, não era um comportamento
normal do mar. Em seguida, após alguns momentos dessa
animação suspensa de embrulhar o estômago, você de repente
partia como um foguete pela costa, com os rochedos se
transformando em um borrão branco e longo abaixo da água
azul. Você seguia tão rápido em uma onda de grande angulação
do oeste que podia surfar por quase cem metros com a
impressão de não chegar nem um pouco mais perto da costa.
Peter tinha razão: a onda possuía um forte elemento kamikaze.
Era cavada, rasa, e muitas ondas fechavam. Mas, para mim, a
onda certa em Paul do Mar valia por si só a passagem de ida e
volta partindo de Nova York.

***

Peguei três delas, uma logo atrás da outra, em uma manhã


cinzenta. Peter tinha ido para a costa norte ao amanhecer,
fazendo previsões equivocadas sobre o vento e o swell. Durante
o inverno anterior, encontramos na costa norte um pico que, por
razões agora obscuras, intitulamos de Madonna. Nunca tínhamos
visto mais ninguém na água ali. Era uma esquerda sedosa e ao
abrigo do vento na base de um penhasco marcado por
cachoeiras — uma onda imprevisível, maravilhosa e rápida.
Todos os dias eu sentia o seu chamado e me perguntava como a
onda estaria. Peter tivera um palpite e seguira naquela manhã
para Madonna. Mas era uma viagem longa e havia um swell
sólido atingindo Paul do Mar, e a primeira regra da procura por
ondas era nunca se afastar delas, por isso eu não o acompanhei.
Peter levou outro cara com ele.
A arrebentação costeira em Paul pareceu assustadora demais
para mim. Fiz a volta desde o leste, arduamente. A aldeia de
Paul do Mar era comprida, estreita, poeirenta e semi-industrial —
bem diferente do vilarejo denso de telhados vermelhos de Jardim
no alto de seu pontal reluzente. Para começar, Paul fedia. Na
extremidade leste da cidade, perto do cais, havia um forte cheiro
de peixe. Mais a oeste, onde ficava o pico, o fedor era de
banheiro — as pessoas usavam as rochas costeiras como
sanitário a céu aberto. Havia moradias primitivas de
trabalhadores enfileiradas ao longo da estrada em frente ao mar.
Crianças sujas e seminuas zombavam de carros estranhos. Em
algumas tardes, cerca de metade dos adultos de Paul do Mar
parecia estar caindo de tão bêbada. Aprendi mais tarde que as
pessoas em Paul consideravam os moradores de Jardim
esnobes. Jardineiros consideravam os paulinhos a escória. As
duas aldeias ficavam uma diante da outra, separadas por um
quilômetro e meio de mar, com uma montanha entre elas e
nenhum outro povoado à vista. A rivalidade datava de séculos.
Aos poucos, passei a gostar das duas.
Naquela manhã cinzenta, remei muito até o outside e, em
seguida, em paralelo à costa, tentando ver o que a onda à frente
fazia. Parecia grande, fluida, triangular e feroz. Havia alguns
caras na água, jovens muito habilidosos da porção continental de
Portugal com pranchas bem pequenas. Parei e surfei um pouco
com eles. Eram excelentes, mas não se arriscavam, surfando os
rabos de ondas que já quebravam muito antes de conseguirmos
um vislumbre delas. Na verdade, eles se contentavam com as
sobras. Belas sobras, diga-se de passagem. Apesar disso, eu
estava com minha gun. Sentia-me nervoso, mas não
enfraquecido pelo medo, mesmo quando as seções pesadas das
maiores ondas da série arrebentavam e trovejavam costa acima.
Comecei a ir mais para o fundo, remando para oeste. Os pontos
de referência habituais do pico eram uma dupla de chaminés de
tijolos, mas vi que elas não iam funcionar naquele dia. O pico
principal estava bem mais para oeste.
O pico que acabei surfando não era exatamente longe da
costa. Ficava do lado oeste de um canal que eu não tinha visto
antes: um trecho revolto onde uma corrente forte, uma enorme
quantidade de água, corria para o mar. Precisei seguir em
diagonal e remar com força para atravessar o canal, que não
parecia estar seguindo nenhum contorno do fundo.
Evidentemente, esse rio que ia para o mar fora criado apenas
pela dinâmica, o ângulo e o grande volume do swell da manhã.
Depois dele, encontrei um pico assustador, mas totalmente
decifrável (mesmo que de forma não muito usual): um pico
clássico em forma de ferradura, grande, limpo e veloz. Eu sabia
aonde ir — até o ponto no qual ele se erguia mais alto — e me
dirigi para lá.
Peguei três ondas com apenas alguns minutos de diferença
entre elas, cada uma a partir do coração do pico. Eram ondas
aparentemente perfeitas: drops enormes, tubos ocos, rabos
confiáveis, surfadas não muito longas. A água era turva, um
cinza-turquesa remexido, de modo que eu não conseguia ver se
as rochas no fundo se moviam para trás nos drops ou não. Ainda
assim, era capaz de dizer, do fundo do coração, que estava tudo
errado com aquelas ondas. A água subia pela parede rápido
demais, o lip quebrava com muita força. Para qualquer um,
mesmo moderadamente experiente, a física daquelas ondas
pareceria estranha. Era raso demais, obviamente. As ondas eram
muito grandes para a quantidade de água em que estavam
quebrando. Era por isso que quebravam com tanta força e me
lançaram pela parede como um brinquedo extremamente leve.
Corrigi a física assustadora sendo ultra-agressivo, superando
meus instintos normais no drop e estando com a prancha certa.
Exatamente a prancha certa. Minha terceira onda tinha uma
parede mais longa que as outras. Surfei até mais longe, saindo
da câmara distorcida na incrível seção de tubo no drop, para uma
face quase horizontal, onde fui golpeado por uma pata de
espuma, me desequilibrei um pouco, e em seguida cheguei a
uma área calma, bem perto da costa, no interior da grande
contracorrente. Vi minha chance, avancei para a terra e cheguei
às pedras de pé nas costas de uma onda que quebrara na praia
e que, depois de parecer refletir imperiosamente sobre o assunto,
decidiu me poupar. Ela recuou sem a força avassaladora de
costume enquanto eu me agarrava a uma pedra, e alguns
segundos depois eu estava em terra seca, sob um sol fraco,
acenando para um grupo de crianças que me observava em um
muro de concreto, gritando e assobiando depois de cada onda
que eu pegava. Agora estavam em silêncio e acenaram com
certa hesitação.
Caminhei devagar pela costa e atravessei a aldeia. Estava
descalço e pingando. Eu sabia que para os paulinhos eu era um
desses novos estrangeiros selvagens que chegavam do mar em
um barquinho frágil, dotados de barbatanas e pálidos. Ninguém
disse “bom dia”. Um grande muro corroído pelo sal bloqueava
minha visão do mar. Aquelas três ondas. Eu raramente, se é que
tinha feito isso alguma vez, surfara ondas tão cruciais. Eu não
aguentava pensar no que teria acontecido se eu tivesse me
equivocado em um drop, escorregado ou hesitado por um
instante. Na verdade, tudo o que fiz foi surfá-las corretamente,
depois de elevar minha agressividade a um nível que
corresponderia a um surfista muito melhor e mais corajoso que
eu. A sorte teve grande influência, mas minha longa experiência
também contou. Reconheci que aquelas ondas eram letais, mas
também quase impecáveis, e, com o equipamento certo e técnica
suficiente, surfáveis.
Minha expectativa era que eu fosse começar a tremer, ser
atingido por uma torrente avassaladora de adrenalina, agora que
estava seguro em terra. Em vez disso, eu me senti fantástico,
tranquilo, leve. Fui a um pequeno café. Já estivera ali, e o
proprietário me deu café e um pão fiado. Dos degraus altos do
café, era possível ver o oceano. Séries majestosas quebravam
ao longo da costa agora, ainda maiores que mais cedo. O canal
da contracorrente desaparecera. Então eu pegara uma janela
breve de ondas grandes, altamente concentradas e bem
organizadas em um pico que não existia mais. Minha sorte tinha
sido uma extravagância. Tive vontade de encontrar uma igreja,
acender uma vela e me ajoelhar.
O que eu estava fazendo? Por que estava ali? Eu era um
adulto, um marido, um cidadão, convencionalmente preocupado
com o bem-estar público em minha vida real. Minha vida
americana. Eu tinha quarenta e quatro anos, pelo amor de Deus.
E não frequentava a igreja. Tudo parecia surreal, até mesmo
minha incredulidade. Ainda assim, a xícara em minha mão não
tremia. Na verdade, o café solúvel fraco estava delicioso.

***

No início de nossa amizade, eu às vezes julgava Peter de forma


equivocada. Convidei-o para um vernissage em uma galeria no
SoHo. Todo o trabalho tinha sido feito por presidiários. “É, é, ‘arte
dos excluídos’”, disse ele, olhando para os quadros. Peter
inclinava a cabeça, se aproximava, se afastava, franzia a testa.
“Parece que esse cara tem visto muito Magritte”, falei, tentando
ajudar.
Nesse momento, Peter fez cara feia: “Não venha com esse
papo de história da arte para cima de mim.”
Percebi que, nos termos dele, eu provavelmente estava
apenas pensando em clichês. Isso era o mais rude que ele
conseguia ser.
Voltamos para seu loft na Murray Street, onde ele fez
margaritas (“Eles não sabem fazer isso em Nova York”) e
assistimos a vídeos de surfe com seu cachorro, um poodle toy de
olhos brilhantes chamado Alex. No térreo, havia um bar de
topless, o New York Dolls. O lugar faturava com os caras de Wall
Street. Peter, o skatista calado, engraçado e envelhecido que
morava no andar de cima e, às vezes, levava até lá seu caderno
de desenho e trabalhava, recebia tratamento especial — cerveja
barata, nenhuma pressão por sexo —, e o passe livre na casa se
estendia aos amigos dele. As garçonetes passavam para
conversar entre sessões de lap dance. Todas elas, um lugar-
comum, faziam pós-graduação e tinham seios maravilhosos. Era
um local improvável, mas surpreendentemente relaxante e
gemütlich — Peter de fato usou essa palavra. A Nova York dele
era cheia de surpresas. Logo depois da faculdade de arte e antes
de prosperar como freelancer, seu primeiro trabalho fora em uma
grande agência de publicidade, algo bem difícil de imaginar. Ele
tinha se casado e se divorciado. Quando era mais novo, vivia na
noite, e os amigos daqueles tempos ainda falavam da vez que
Peter viu Cher em uma boate, chamou-a para dançar e os dois
arrasaram na pista.
“Era a Cher!”, exclamou quando manifestei descrença. “Foi a
minha grande chance!” Sua ironia, às vezes, tinha mais níveis do
que eu conseguia captar.
Mas os dias de cidade grande de Peter terminaram de
maneira abrupta depois que ele e Alison encontraram uma
casinha antiga em um lote de terra especial de Ditch Plains. Os
dois venderam seus lofts e se mudaram para lá com Alex.
Construíram um estúdio em frente à casa, dividiram o espaço e,
trabalhando a alguns metros de distância, produziam ilustrações
sem parar. O mar ficava do outro lado da rua. Tinham um caiaque
e pescavam robalo-riscado, pargo, anchova e linguado. Catavam
mariscos na baía de Napeague, caranguejos nos manguezais
locais. Peter instalou um defumador comercial em um barracão.
Depois de um ou dois anos, eles pareciam estar praticamente
consumindo apenas o que coletavam do mar e de sua horta.
Compraram um velho barco de pesca, que Peter reformou no
quintal. Quando ficou frio demais para trabalhar ao ar livre, ele
construiu um barracão semicilíndrico por cima do barco. Eu era
um visitante frequente. Em swells de furacões, eu ficava com
eles, e Peter e eu surfávamos os obscuros, e às vezes
maravilhosos, recifes rochosos e pointbreaks a leste de Ditch.
Peter e Alison se casaram durante um swell de sul bombante.
A cerimônia foi ao ar livre em Montauk Point, em uma encosta
gramada sob o farol. Era fim de tarde, a hora de ouro, e um
pointbreak chamado Turtles, logo ao sul de onde nos
encontrávamos, estava alucinante. O lado do noivo estava cheio
de surfistas, muitos deles de Santa Barbara. Os californianos em
especial não conseguiam acreditar no que viam em Turtles.
Parecia um dia bom em Rincon. Todo mundo tentou prestar
atenção na cerimônia, mas, toda vez que alguém murmurava
“série”, muitas cabeças viravam. Havia alguns olhares, chutes
discretos com saltos altos, mas antes que a cerimônia chegasse
ao fim até Alison já estava rindo.

Peter Spacek e Alex em Montauk com um robalo-riscado pego com o caiaque, 1998

A banda tocou “Up, Up and Away” na recepção, realizada no


jardim do casal. As pessoas (e eu era uma delas) se assustaram
e acharam que devia haver algo errado. “É a nossa música!”,
gritou Peter enquanto dançava com a noiva. Talvez a breguice
fosse a nova moda. Peter usava uma roupa extraordinária: calça
skinny de couro com cadarços na frente, botas de bico fino e uma
espécie de blusa de babados de pirata. “Não sei por que ela é a
única que tem o direito de estar sexy”, disse-me ele. Caroline
confirmou que Peter parecia estiloso. Ele tinha a estrutura de
alguém que surfou a vida inteira: cintura fina e um grande
triângulo de músculos às costas. Caroline o observou dançar e,
por muitos anos depois, o chamava de Ol’ Snake Hips (velho
quadril de cobra). Eles distribuíram canecas de café
comemorativas que mostravam um casal, ambos de galochas de
pescador, usando grandes anéis de metal, os dois bem
inclinados para trás e enganchados um no outro. A imagem era
poderosa e levemente perturbadora, em um estilo de desenho
que era uma combinação artística dos dois.
No fim daquele ano — depois do Dia de Ação de Graças —,
nós quatro saímos para pescar no barco reformado de Peter e
Alison. Era impressionante como estava frio. Seguimos até um
ponto profundo que Peter conhecia, de água cinza-escuro,
alguns quilômetros a noroeste de Montauk Point. Ele me mostrou
quanta linha eu deveria soltar. Os peixes que queríamos estavam
no fundo. O vento aumentou, e cada borrifo de água que passava
por cima da amurada se transformava rapidamente em gelo no
convés. Caroline e Alison se encolheram na casa do leme com
uma garrafa de chá quente batizado. Por fim, pouco antes de
escurecer, tanto Peter quanto eu fisgamos um peixe de bom
tamanho. Meu rosto estava dormente. Nossas mãos eram
inúteis. Trouxemos os peixes a bordo e então voltamos
rapidamente, vitoriosos, para a baía de Montauk. Naquela noite,
em casa, limpei meu peixe, que ainda se remexia. Cansado
demais para cozinhar, eu o pus para gelar. Horas depois,
ouvimos o peixe se remexer dentro da geladeira.

***
Peter e eu continuamos fazendo nossas peregrinações à ilha da
Madeira. Porém, comecei a suspeitar da devoção dele. Peter
sempre sugeria que tentássemos algum lugar novo. Por que ele
dizia isso, afinal? Isso me lembrava da nossa primeira viagem à
ilha da Madeira, quando ele e Alison quase voltaram para a parte
continental de Portugal. Eles agora faziam grandes viagens de
pesca — a Christmas Island, no Pacífico Central; às Bahamas
em busca de peixe-rato — quando tinham tempo e dinheiro. “É
bom experimentar coisas novas”, dizia Peter. E me via
respondendo: “Não, eu quero continuar fazendo a mesma coisa:
ir para a ilha da Madeira.” Quando eu tinha me transformado
nesse escravo da rotina tão rabugento?
Na verdade, havia bons argumentos para voltar sempre para
lá. Um era a qualidade fenomenal das ondas e a sua sedução
assustadora, singular, bem diferente de qualquer outro lugar que
já tivéssemos surfado. E não era que o mar fosse fácil — uma
série de desafios que agora dominávamos. Nem perto disso. A
ilha da Madeira, além do mais, estava se tornando famosa no
mundo do surfe. Ficava mais crowdeada a cada ano. Logo
estaria arruinada, lotada, como Bali e dezenas de outras mecas
do surfe por todo o planeta. Já havia conversas sobre uma
grande competição de ondas grandes a ser realizada em Jardim,
com empresas patrocinadoras e um enorme prêmio em dinheiro.
Eu observava esses sinais, ouvia esses rumores, com um medo
cada vez maior. Precisávamos surfá-la agora, antes que virasse
um inferno e acabasse.
Quem mais estimulava o surfe na ilha da Madeira eram os
portugueses do continente. A ilha se transformou depressa em
seu Havaí, seu North Shore. Profissionais do continente voavam
para lá a cada swell. Um cara novo, Tiago Pires, era nitidamente
um talento raro e muito corajoso — ele construiria uma carreira
respeitável no circuito mundial profissional, o primeiro (e ainda o
único) surfista português classificado para o torneio. As revistas
portuguesas de surfe não se cansavam da ilha da Madeira.
Estampavam o nome nas capas, faziam reportagens enormes
com discrição zero. Parecia ser uma questão de tamanho. O
primeiro pôster da Madeira que vi, que vinha dobrado e
encartado em uma revista, exibia um profissional do continente
surfando uma enorme parede verde em Jardim, com uma
legenda que a chamava de “a maior onda já surfada no território
nacional português”. O pôster era intitulado “Heróis do mar”.
Peter compreendia a urgência de surfar a ilha da Madeira
antes que ela virasse, como nós diríamos, um zoológico. Mas
também entendia, diferentemente de mim, que o mais provável
era que pouquíssimos surfistas cairiam na água em um bom dia
em Jardim ou Paul do Mar. Ele mostrara aquela primeira
reportagem na Surfer para vários caras em Montauk, achando
que pudessem se interessar. Mas não se interessaram. A
aparência era pesada demais. Só eu fui fisgado, por mais que
tivesse achado que as fotos a faziam parecer idílica. Agora eu as
achava enganadoras. Sem as rochas e as falésias, sem o fator
medo, não era possível entender nada sobre aqueles picos. Mas
eu me sentia acorrentado a eles agora, apesar do medo. Peter
tinha uma relação mais distante e menos obsessiva. E sentia
menos medo.
Ele era o que os surfistas costumavam chamar (alguns ainda
chamam) de um cara cascudo. Sempre houve caras, em geral
surfistas de ondas grandes, que, discretamente, faziam coisas
difíceis de acreditar. Lembro-me de ouvir, na usina de boatos do
Havaí, que Mike Doyle e Joey Cabell, dois heróis do surfe da
minha juventude, tinham saído a nado pela costa de Na Pali, em
Kauai. A costa de Na Pali tem vinte e sete quilômetros de região
selvagem inacessível, de frente para o nordeste, para a área de
maior produção de tempestades do Pacífico. Eles levaram três
dias no percurso, usando apenas short e óculos de natação.
Tudo o que carregaram foi um canivete para tirar mariscos das
pedras. Fizeram por diversão, para descobrir o que veriam. Os
dois eram cascudos, razão pela qual fizeram isso e pela qual
sobreviveram.
Peter era feito desse mesmo material. Ele saía em seu
caiaque para Amagansett, vinte e quatro quilômetros a oeste de
Ditch Plains, pescando com uma vara apoiada no ombro para ver
o que conseguia pegar, ou ingressava em um barco de pesca de
bacalhau no inverno para ir pescar nos naufrágios de Block
Island. Certa vez enfiou um grande anzol triplo na mão e dirigiu
assim até o hospital em Southampton, a quarenta quilômetros de
distância. Surfou os maiores dias já vistos em Montauk,
geralmente sozinho, e as histórias que contava sobre essas
sessões, se o pressionassem por detalhes, eram sempre
engraçadas, vivas e autoirônicas. Ele transformava episódios
aterrorizantes em desenhos cômicos. Em uma tarde grande em
Jardim, Peter levou uma vaca feia num drop atrasado e quase
acabou engolido por duas ondas. Ficou embaixo d’água por tanto
tempo que se viu dando adeus a seus entes queridos, contou ele
depois de finalmente conseguir voltar à terra. Em um desenho
que vi mais tarde, lá estava o anti-herói familiar, confuso,
narigudo e cabeludo embaixo de uma onda monstruosa,
produzindo com escárnio balõezinhos de pensamento
preenchidos por Alison e um poodle toy de aparência alarmada.
Quando morei em São Francisco, Mark Renneker e Peewee
Bergerson eram os caras mais cascudos. Por conta disso os
outros ficaram obcecados pelos dois. Era uma aventura de
garotos — bobeira, na maior parte das vezes. Mas surfar ondas
que exigem verdadeira coragem e habilidade sem fazer alarde de
si mesmo é um sério teste de caráter. No surfe profissional, há
um nicho crescente de caras cascudos com assessores de
imprensa. Essa de fato não é a ideia.

***

Peter levou dois amigos para a ilha da Madeira. Eu gostava


deles, mas a atitude casual de Peter de “vamos nos misturar”
continuava me incomodando. Na esperança de fazer com que
nossas viagens coincidissem com bons swells, eu começara a
tentar prever o surfe na Madeira. Reunia o que conseguia de
relatórios climáticos, mantinha registros obsessivos das
tempestades no Atlântico Norte — os caminhos passando pela
Islândia e pela Irlanda até entrar na baía de Biscaia, a velocidade
máxima dos ventos e as leituras de pressão mais baixas nos
centros — e formulava previsões para como eu achava que as
ondas se comportariam no sudoeste da ilha. Depois, ligava para
José Nunes e ouvia relatórios sobre como as ondas realmente
estavam em Jardim. José era um homem ocupado, tinha outras
coisas para fazer além de sair andando até a beira-mar e estudar
as ondas e não dominava o vocabulário especializado para me
dizer muito, mas fazia o possível e me ajudava a perceber que eu
consistentemente previa errado. Isso foi antes do surgimento das
previsões globais de ondas, que tornaram irrelevantes meus
esforços primitivos.
Por isso, Peter e eu não sabíamos nada sobre o swell gigante
que caía sobre nós em uma tarde de inverno em Jardim do Mar,
em 1997. Eu estava surfando desde o amanhecer, em Paul e em
Pequena, e tremia de exaustão. Então vi uma série de belas
ondas se aproximar de Jardim. Já estava tarde, mas não me
ocorreu não remar até lá. Não sabia ao certo onde Peter estava.
Não havia ninguém na água, o que dificultava a tarefa de avaliar
o tamanho. Peguei minha gun, que se revelou a escolha certa.
As ondas eram rápidas e poderosas, de um verde profundo e
com duas vezes a altura de um homem, o vento terral soprava
nas paredes. Peguei duas ou três. Meu cansaço desapareceu em
uma torrente de adrenalina. Acelerando para superar uma parede
longa, percebi outro surfista passar remando pela onda e
esticando o pescoço para olhar nas sombras do buraco, onde eu
tentava manter uma trajetória alta. Era Peter.
“Sabia que só podia ser você”, gritou ele. “Da rampa de
barcos, nós mal conseguíamos ver essa silhueta pequena.”
O reflexo do sol, ao olhar para as ondas no oeste, estava
mesmo ofuscante. Fiquei extremamente feliz ao ver Peter. A
presença dele fazia com que as ondas parecessem menos
apavorantes. Os amigos de Peter tinham ficado em terra.
“Parece que tem umas filhas da puta bem grandes vindo aí”,
disse ele.
Nós dois remamos com força para o sul a fim de evitar uma
série maior que quebrou mais para o outside. O swell parecia
estar aumentando. Voltamos para o pico, e cada um de nós
pegou ondas pesadas. Não era um dia clássico em Jardim —
havia muito vento —, mas o mar estava grande, rápido e
empolgante. Talvez Peter tivesse razão: esse lugar nunca ficaria
crowdeado. Era cabeludo demais.
Houve outra série grande que quebrou mais longe, uma
varredora, e outra longa e mais desgarrada ao sul. Peter passou
primeiro por cima da onda maior, e eu me lembro de vê-lo
despencar lateralmente pela crista iluminada por trás, quase
cinco ou seis metros acima de mim, enquanto eu remava até o
outro lado do rabo. Foi por pouco, mas nós dois conseguimos
passar. No outside, vinha um barquinho de pesca motorizado.
Estava perigosamente perto das ondas, e havia meia dúzia de
pescadores na amurada, nos observando.
“Eles acham que somos loucos.”
“Eles têm razão.”
Não me ocorreu que os pescadores, interpretando
corretamente seu trecho de mar, pudessem estar nos oferecendo
uma carona para uma baía segura, em alguma cidade mais a
leste. Acenamos para eles, tomamos fôlego e começamos a
remar de volta ao pico, tentando alinhar a torre do sino da igreja
com um penhasco distante que parecia uma coluna. Aquele
costumava ser o pico. O barco foi embora.
Séries maiores continuaram chegando, levando-nos cada vez
mais para fora. Elas começaram a quebrar em um novo pico,
mais à frente, e se elevavam com um ressalto que eu nunca tinha
visto em Jardim. Quando passamos remando por cima da parede
de uma onda enorme, Peter gritou: “O que Brock Little disse?
Você deve olhar ou não?”
Não entendi o que ele quis dizer. Brock Little era um surfista
havaiano de ondas grandes. Agora estávamos bem além do pico
habitual em Jardim. Tínhamos conseguido passar pela série. O
sol estava se pondo. “Ele disse que ou você deve olhar para
saber exatamente o que ela está fazendo”, continuou Peter, “ou
não deve olhar e ser otimista, sem pensar no que a onda podia
ter feito com você, concentrando-se apenas em completar toda
porra de onda que conseguir pegar.”
Preferi não olhar. As duas últimas tinham sido realmente
assustadoras. Quando quebraram, soaram como uma colisão de
locomotivas.
“Precisamos ir para mais perto da costa se quisermos pegar
uma onda”, falei. “Veja onde estamos.”
Peter concordou. Estávamos absurdamente longe da costa.
Começamos a remar para lá, na direção do pico, olhando para
trás a cada braçada. Uma série de tamanho médio apareceu.
Peter baixou a cabeça e remou com força. Ele se afastou
rapidamente. Minha exaustão estava de volta, agora misturada
com o mal-estar do medo. Olhei para trás. Uma onda muito
grande se aproximava. Eu estava mais ou menos na posição
certa. Supus que Peter tivesse surfado a onda anterior, e eu não
queria ficar sozinho naquele lugar. Remei com força. Quando a
onda começou a me erguer, uma marola lateral pegou minha
rabeta e atrapalhou a braçada. Não parei de remar. Ouvi Peter
gritar. Não conseguia vê-lo, mas achei ter ouvido: “Vai! Vai!” A
onda parecia estar me afastando. Não conseguia fazer com que
ela encaixasse minha prancha. Então percebi que Peter estava
gritando: “Não! Não!” Virei para a direita, agarrei a borda
esquerda da prancha e subi de lado pela grande parede. Cheguei
ao topo, em seguida fui açoitado por um aguaceiro de borrifo
terral quando a onda se elevou e quebrou a apenas alguns
metros do inside.
Assim que a névoa se dissipou, vi Peter distante a sudeste,
remando para o sul e apontando, para o meu bem, na direção do
mar. O horizonte sudoeste estava escuro com uma série
monumental, ainda bem distante. Comecei a remar para sudeste,
lutando contra o pânico, tentando não hiperventilar.
Passamos por cima da série em segurança. Entretanto, as
ondas eram as maiores que eu já tinha visto em cima de uma
prancha de surfe. Quando enfim paramos de remar, Peter fez um
comentário estranho: “Pelo menos sabemos que o mar não
consegue produzir ondas maiores que essas.” Eu sabia o que ele
queria dizer, porque essa sem dúvida era a sensação. Também
sabia que, infelizmente, Peter estava errado. Ele, com certeza,
também sabia. O mar podia produzir ondas muito maiores e,
naquele ritmo, era provável que fosse fazer isso. A ideia era
simplesmente horrível demais para ser contemplada. Era melhor
fingir que algum limite científico fora atingido.
“Sabe aquela onda que você chegou a remar para entrar?”
Eu sabia.
“Você parecia uma formiga. Estava sendo sugado para trás,
como se nem estivesse remando. A prancha parecia um palito de
dente. Você não estava nem olhando para trás.”
Isso era verdade. Contrariando o bom senso básico, eu
decidira não olhar para trás na direção da onda. Agora eu sabia
por que Peter tinha gritado: “Não!”
Nossas pranchas, duas guns de dois metros e meio, eram tão
inúteis quanto skates ali. Eram pequenas demais.
O sol tinha se posto.
“Vamos só remar na direção da rampa de barcos”, sugeri.
“Não vamos conseguir nunca pegar uma dessas.”
Saímos remando bem para sudeste, para longe da onda, e
depois para leste, ao longo da costa. Ondas grandes passavam
rugindo pelo pico, mas naquele momento, pelo menos, não havia
mais séries apocalípticas bloqueando a vista do horizonte. Dava
para ver um grupo no terraço da igreja em Jardim e na mureta
perto da rampa de barcos. Era como nos velhos tempos, exceto
que agora, entre as pessoas, provavelmente havia surfistas
estrangeiros, e, se alguém estivesse assobiando, as ondas
faziam barulho demais e estávamos muito longe da costa para
ouvir. Além disso, embora não pudesse falar por Peter, eu temia
pela minha vida.
Viramos na direção da costa acima da rampa. A espuma batia
com força nas rochas grandes abaixo da aldeia. Nós nos
dirigimos para essas pedras, sabendo que seríamos varridos em
direção à costa antes de alcançá-las. Mesmo assim,
subestimamos demais o nível de violência contínua na zona de
impacto e o poder da corrente no inside. Tentamos calcular o
tempo que levaria para chegarmos à costa, movendo-nos através
de séries de tamanho mediano, mas progredimos pouco pelas
correntes em turbilhão, e de repente a aldeia passava por nós.
Ainda estávamos a pelo menos cinquenta metros da costa. Eu
ouvia gritos. Mas passamos deslizando, impotentes, pela rampa
de barcos, sem esperança de chegar à praia. Então ouvi Peter
gritar: “Outside!” Nós nos viramos e começamos a remar
depressa na direção do mar.
Estávamos em outro mundo agora, em algum lugar a leste de
Jardim. As ondas que avançavam sobre nós não eram parte do
grande pointbreak. Elas formavam apenas uma arrebentação
gigante e amorfa que avançava rumo a um muro de falésias e
rochas — uma costa desconhecida para nós. O vento não estava
nem terral ali. A superfície estava remexida e cinzenta, e parecia
que íamos levar aquela série na cabeça. Sem falar nada, nós nos
afastamos um do outro. Não queríamos ser jogados juntos ou
ficar emaranhados embaixo d’água. Três ondas quebraram em
cima de nós. Abandonamos as pranchas e nadamos para o mais
fundo possível. Nossos leashs aguentaram, e conseguimos nos
manter longe das pedras. Quando a série terminou, remamos
lentamente na direção do mar, exaustos demais para falar
alguma coisa. Meus braços pareciam tubos cheios de chumbo
pendurados nos ombros.
Parei de remar. “Vamos direto para a costa aqui”, falei.
Peter se sentou ereto, virou-se e observou a costa.
“Impossível”, disse ele.
“Vou tentar.”
“Você não pode.”
“Vou correr o risco.”
“Você vai morrer.”
Eu imaginava que provavelmente me machucaria, mas não iria
morrer. Só queria chegar em terra firme antes que anoitecesse.
Meus braços estavam acabados. Eu não planejava nem estudar
a costa. Sabia que era extremamente pedregosa e vazia por
quilômetros a leste de Jardim. Atingir as pedras e tentar subir por
um penhasco seria, na melhor das hipóteses, ruim. Ainda assim,
me parecia preferível ao afogamento.
“O que acha que devemos fazer?”
“Remar de volta para Jardim.”
“Não consigo. Meus braços estão esgotados.”
“Vou ficar com você.”
Não era um plano de sobrevivência muito elaborado. Mas,
àquela altura, eu confiava mais na avaliação de Peter do que na
minha.
“Está bem.”
Começamos a remar para oeste, em uma água remexida,
ondulada e escura. Aos poucos, meus braços voltaram à vida.
Peter, ainda muito mais forte, acompanhava pacientemente o
meu ritmo. Era impossível saber se avançávamos. A costa à
nossa direita estava negra. As luzes de Jardim erguiam-se à
vista, ainda a grande distância. Apontamos as pranchas para
quarenta e cinco graus acima dela. Nossa esperança era
estarmos além da corrente que acompanhava a costa.
Estávamos, sem dúvida, bem longe da costa. Grandes swells
passavam por baixo de nós, e em seguida explodiam, vinte ou
trinta segundos depois, distante no inside. Era difícil dizer se as
luzes da aldeia se aproximavam. Mas então percebemos luzes
menores, mais baixas, movendo-se rapidamente: lanternas.
Então de fato chegávamos mais perto, e as pessoas sabiam que
estávamos na água. Não havia guarda costeira nessa região,
mas senti certo conforto ao ver as lanternas.
Nosso plano era meio insano. Nós o bolamos praticamente
sem discutir nenhum detalhe. Íamos remar até a extremidade do
pontal, em seguida nos separar outra vez para evitar uma
colisão, e então nos mover em um ângulo maior, logo abaixo do
pontal. Não podíamos mais ver as ondas, mas quando elas
viessem, quando nós as ouvíssemos, não faríamos nada para
evitá-las. Em vez disso, permaneceríamos na superfície e
torceríamos para sermos empurrados na direção da costa pela
corrente costeira. O objetivo era atingir as rochas acima da
rampa de barcos.
O plano funcionou. Após uma remada bem longa, durante a
qual ouvimos uma série atrás da outra passar ribombando para o
inside, as luzes no quebra-mar continuavam a se agitar
heroicamente em movimentos verticais, tentando nos guiar. Nós
nos viramos, desejamos sorte um para o outro e nos dirigimos
para a torre da igreja. Não vi a rota tomada por Peter; apenas
remei na direção da costa, respirando fundo e com regularidade.
Percebi o cheiro da água mudar quando entrei na zona de
impacto. Um cheiro de espuma e fundo do mar. Eu estava mais
longe do que esperava quando ouvi a primeira onda de uma série
estourar no outside. Restava luz apenas no céu a oeste, o
suficiente para me permitir enxergar uma grande parede escura
de água acima de mim antes de me atingir.
Foi muito estranho empurrar a prancha para longe mas
permanecer na superfície. Isso contrariava meus instintos, e a
violência do impacto da onda daquela posição deliberadamente
vulnerável foi esmagadora. Ela me virou muito rápido e, em
seguida, me empurrou tão para baixo que bati de cara no fundo.
Normalmente, estaria com o braço na frente do rosto, mas eu
estava tentando ser um míssil, deixando que a onda me
empurrasse para onde quisesse. A pancada no rosto em meio à
escuridão foi um choque, mas o golpe atingiu minha testa, e não
foi exatamente forte. Pelo menos parte do choque se devia à
constatação de que eu não estava em águas muito profundas;
provavelmente me encontrava bem perto da costa. Quando enfim
voltei à superfície, as luzes da aldeia estavam bem acima de
mim, e o rugido da espuma atingindo as rochas estava terrível e
encorajadoramente perto. Deixei que a onda seguinte me
atingisse da mesma maneira nada instintiva. Ela me carregou
para as rochas, depois me afastou delas. A corrente que descia
pela costa agora tinha me pegado. Ela me carregou rapidamente
para depois do pontal, para bem perto da costa, fazendo com
que eu quicasse pelas rochas maiores. Outra onda veio e me
jogou contra o quebra-mar, logo acima da rampa de barcos.
Preso em um repuxo, deslizei sobre a superfície coberta de
musgo da rampa, sem conseguir encontrar algo em que me
segurar, e fui cuspido costa abaixo no interior da escuridão.
Podia ouvir as pessoas gritando. Elas tinham me visto passar. Eu
ouvia as pancadas ocas da minha prancha — ainda presa ao
meu tornozelo. Então a corrente, interrompida pelo muro de
pedras da rampa, me soltou quando a onda que quebrara foi
drenada das rochas. Passei um braço em torno de uma pedra,
me agarrei e senti a água, cada vez mais fraca, me deixar. Eu me
virei e, já sentado, puxei a prancha por cima das pedras. Com ela
embaixo do braço, subi pela parede da rampa de barcos, ao
abrigo do vento, e ali estava Peter, subindo de forma
cambaleante a mesma inclinação molhada e coberta de musgo
com sua prancha.

***

“Vocês, surfistas, não têm respeito nenhum pelos pais, pela


família e pelos amigos. Ir lá para a água e arriscar a vida num
mar desses... Para quê? Vocês não têm respeito por esta aldeia,
pelas gerações de pescadores que arriscaram a vida no mar para
alimentar as famílias. As pessoas aqui perderam a vida e
perderam entes queridos neste mar. Vocês não têm respeito por
elas!”
Essas foram as pragas (traduzidas por mim) de uma idosa em
Jardim, repreendendo quatro surfistas portugueses no quebra-
mar ao lado da rampa de barcos pouco depois de eles tentarem
remar até o pico em um dia grande. Eles não tinham conseguido,
quebrando pranchas e arrebentando cordinhas, e foram apenas
levados pelas ondas até a costa, completamente arrasados. Eu,
por acaso, entendi a falação. Isso foi dois anos depois de nosso
Götterdämmerung ao pôr do sol. Ninguém nos repreendera
naquela noite, mas soube depois que os sentimentos daquela
senhora eram algo comum na aldeia. Havia exceções — José
Nunes falava abertamente sobre a coragem de certos surfistas,
em especial um canhoto da Nova Zelândia chamado Terence.
Mas a maioria dos moradores da aldeia tinha ficado cansada (se
não com raiva) do surfe, a não ser pelas poucas oportunidades
comerciais que o turismo gerado pela atividade proporcionava.
Peter não voltara. Cascudo como era, aceitara o aviso
daqueles momentos em que escapamos por pouco. Quando lhe
perguntei sobre isso um tempo depois, ele disse: “As coisas
finalmente estavam arranjadas como eu queria, e aquele único
deslize ia arruinar tudo e deixar muita gente triste.” Eu poderia ter
dito a mesma coisa. Na verdade, eu deveria ter dito. Mas me
faltava a clareza de Peter. Eu ainda não tinha me cansado da ilha
da Madeira.
Estava hospedado em um quarto no pontal de Jardim. Minha
senhoria, Rosa, morava no andar de baixo. Ela estava na casa
dos vinte anos e nascera na aldeia. O marido encontrava-se na
Inglaterra, trabalhando em uma lanchonete no aeroporto de
Gatwick. Rosa tinha dois quartos que alugava para surfistas de
visita. Os dois eram pequenos e simples, mas tinham vista para a
onda sensacional. Os 8 dólares por noite que paguei não
pareceram melhorar muito o quadro financeiro da família. A mãe
de Rosa morava com ela, e as duas subiam a pé pela montanha
até a estrada principal em Prazeres, uma caminhada difícil de
uma hora, em vez de pagar alguns escudos pelo ônibus. Como
todos os madeirenses da zona rural, suas pernas eram
formidáveis.
Jardim, com toda a sua beleza, era um lugar melancólico e
turbulento. Havia rixas familiares. Havia uma mulher barbada
com problemas mentais que vivia descalça. Contaram-me que,
na juventude, ela fora abusada sexualmente por homens e
meninos. Certa noite, a mulher despencou do penhasco perto do
pontal e aterrissou nas pedras sentada, morta. Algumas pessoas
acharam que ela tinha pulado. Havia uma mulher jovem,
inteligente e frustrada com a vida na aldeia que me repreendeu
por caminhar na costa sob os penhascos até Ponta Pequena. Ela
disse que o irmão tinha sido morto por pedras que caíram
naquela trilha. A aguardente cobrava seu preço na aldeia,
sobretudo aos homens desempregados.
A única família realmente próspera parecia ser a dos
Vasconcellos. Eram os senhores tradicionais de Jardim. Todos os
membros da família moravam agora em Funchal ou em Lisboa,
mas tinham mandado no local por séculos. Toda a ilha da
Madeira fora dividida e distribuída, junto com servos e escravos,
entre facções e indivíduos pertencentes à parte inferior da longa
lista de bajuladores da coroa. Velhos jardineiros se lembravam de
quando os aldeões tinham que carregar padres e pessoas ricas
em redes para cima e para baixo pelas montanhas. Isso foi antes
da construção da estrada que descia de Prazeres, em 1968.
Tivera um padre gordo cujas visitas eram especialmente temidas.
E a história da ilha ficava ainda mais sombria à medida que se
olhava para trás.
A quinta — a mansão senhorial — em Jardim pertencia aos
Vasconcellos. Era uma construção antiga e caindo aos pedaços,
com uma capela, e era facilmente a maior casa do lugar. Certo
ano, o conselho da aldeia reuniu coragem e perguntou à família
da quinta se podiam converter alguma das plantações de banana
da família em um campo de futebol. Não havia em Jardim outra
faixa de terra grande ou plana o suficiente para se fazer um
campo, e quase toda aldeia — até a decrépita e inferior Paul do
Mar — tinha um. A família da quinta, ou talvez seus advogados,
negou o pedido. Por isso, certa noite, não muito tempo depois,
alguém entrou escondido nos campos da família e cortou todas
as bananeiras. No inverno seguinte, quando voltei a Jardim, os
campos não tinham sido replantados. Rosa deu um sorriso
malicioso quando lhe perguntei sobre isso. Parecia acreditar que
replantar iria apenas gerar mais vandalismo. O que eu não soube
dizer era se ela achava que o ataque às bananas era revolta
camponesa justificada ou um ato destrutivo vergonhoso. Nunca
conseguia descobrir o que as pessoas em Jardim de fato
pensavam sobre qualquer assunto político. Eu, a princípio,
desprezava a família da quinta. Provavelmente o fato de nunca
ter conhecido nenhum deles ajudava.
Eu passara aquele outono escrevendo sobre a guerra civil no
Sudão. Em dias sem ondas, sentava-me a uma mesa em meu
quarto e escrevia sobre a geopolítica do Nilo, fome, escravidão, o
islã político, nômades criadores de gado e minhas viagens com
guerrilheiros sudaneses no sul liberado e aterrorizante. Passei
muito tempo olhando para o oceano assolado por ventos. Fomos
atormentados naquele ano por ventos sudeste — o “peido do
diabo”, ouvi um surfista da Cornualha dizer. Na maré baixa, os
aldeões catavam lapas nas rochas expostas. Havia um anão,
Kiko, que também ia, mas suas pernas eram curtas demais para
subir por grandes rochas escorregadias, e chegava a ser
doloroso observar seu esforço. No entanto, na maré alta, Kiko
pescava com arpão perto do pontal, e nessas horas sua alegria e
habilidade eram claramente visíveis. Os pés de pato e a cabeça
com máscara pareciam enormes nas extremidades do corpo
musculoso e encurtado. Desaparecia embaixo d’água pelo que
me pareciam minutos. As pessoas diziam que Kiko se enfiava
intrepidamente em fendas onde os polvos se escondiam. Nascido
e criado em Jardim, conhecia cada pedra do mar que banhava a
aldeia. Ele vendia o que pescava para um café local, o Tar Mar,
cuja especialidade da casa era o polvo. Era um prato que eu
comia com frequência.
Eu gostava de estudar os movimentos dos barquinhos de
pesca que trabalhavam na costa de fundo íngreme de Jardim.
Em noites sem vento, eles ficavam no mar, com suas luzes
amarelas tricotando bravamente a escuridão embaixo de um
lençol de estrelas. O hino nacional português é “Heróis do mar”.
E Os lusíadas é oceânico tanto em ritmo quanto em tema,
celebrando a viagem de Vasco da Gama à Índia em mais de mil
estrofes em oitava-rima. O poema é fantástico e adornado
demais para o gosto moderno, mas é incrível no mar e em
barcos. Pequenos detalhes entram em foco de modo radiante,
assim como o fazem na arquitetura da idade de ouro do Império
Português — o estilo manuelino, batizado em homenagem ao rei
Manuel I. Até nas esculturas em pedra em torno das portas de
igreja daquele período, os detalhes mais delicados (reproduções
perfeitas de fragmentos de coral, algas marinhas
espantosamente precisas) são, por via de regra, marítimos.
Henrique, o Navegador, o rei João II — a Renascença
portuguesa foi breve, porém rica e solidamente centrada no mar.
Na época em que Luís de Camões, um patriota sem sorte,
marinheiro e autor de Os lusíadas, escreveu sua obra-prima, a
Inquisição estava em ação, e o império, em declínio terminal — já
entregue aos banqueiros alemães.
Perguntei-me se a tristeza nostálgica e melancólica do fado,
que costuma ter o mar como tema, vinha de uma sensação
difusa de grandeza perdida. Era mais provável que eu estivesse
escutando apenas as raízes árabes do fado. Portugal, como a
Espanha, sempre foi o interlocutor da Europa Ocidental e
território fronteiriço com o Marrocos e o norte muçulmano da
África.
A ilha da Madeira, que fica mais perto do Marrocos do que da
Europa, era desabitada até 1420, quando exploradores
portugueses se depararam com ela. A ilha tinha muitas florestas
— por isso ganhou esse nome. Os pioneiros desbastaram a terra
queimando as matas primitivas. Segundo a lenda, um grande
incêndio ardeu sem controle por sete anos. A ilha da Madeira se
transformou no centro do comércio de açúcar e depois do de
escravos. Tudo chegava e saía pelo mar e, nesse sentido, a ilha
da Madeira era mais portuguesa que Portugal; até ainda mais
oceânica. Atualmente, o sustentáculo da economia da ilha é o
turismo. Navios de cruzeiro visitam Funchal, uma cidade repleta
de hotéis, cassinos e lojas para turistas. Alemães, britânicos e
escandinavos circulam pela ilha em ônibus enormes e carros de
aluguel diminutos. Os mais aventureiros caminham pelas
montanhas e gargantas.
Em certo momento daquele inverno, peguei um resfriado feio.
A mãe de Rosa, Cecília, também pegou. Ela botava a culpa da
doença em um vendedor de frutas que deixara de lavar os
pesticidas de uma batelada de frutas-do-conde. Fomos juntos em
meu carro a uma clínica na costa, em Calheta. Cecília tossia, os
olhos inchados. Passamos por vários homens com grandes
galões amarelos presos às costas e tubos parecidos com varetas
nas mãos — borrifadores de pesticida. Cecília olhava fixamente
para os homens, murmurando.
Mas nós dois nos recuperamos a tempo para o Carnaval, que
dura quatro dias e culmina numa farra na terça-feira. Em Jardim,
as pessoas se reuniam no Tar Mar. Rosa, Cecília e a sobrinha e
o sobrinho pequenos de Rosa estavam arrumando fantasias.
Colocaram em mim uma peruca verde-limão horrível, com
grandes óculos escuros estilo disco, e fomos todos para o café.
Pelo menos metade da aldeia estava presente. O jukebox
berrava samba, europop e fados. A maioria das pessoas estava
fantasiada — crianças pequenas com capas de super-heróis e
fantasias de coelhinho. Para minha surpresa, muitos adultos
estavam vestidos como mulheres feias e extremamente
sensuais, com seios grandes, bundas enormes feitas de
travesseiros, perucas e máscaras de borracha com rugas
profundas e excesso de maquiagem. Certa histeria cercava
essas bruxas exuberantes, principalmente porque era impossível
dizer se a pessoa fantasiada era homem ou mulher. As mulheres
maquiadas dançavam, bebiam e flertavam de forma descarada,
mas tomavam o cuidado de não falar. Eu, sem dúvida, estava
mais no escuro que os outros sobre quem era quem, mas a
confusão vertiginosa e a palhaçada sexual eram gerais. Um
delírio coletivo parecia crescer ao longo da noite à medida que o
vinho corria solto e a música tocava; risadas irrompiam em
grandes ondas na direção do teto. Foi uma festa incrível e,
cercado por disfarces espirituosos, nunca me senti tão próximo
da vida comunitária, secreta e velada de Jardim do Mar.

***

Peter me convidou para uma exibição de slides de surfe no


Flatiron, em Manhattan. O local se revelou um escritório elegante
— uma agência de publicidade de um amigo dele. O pequeno
grupo era composto apenas por homens, alguns deles surfistas
que eu conhecia vagamente de Montauk. Isso foi tarde da noite,
com muita cerveja, e provavelmente cocaína para os mais
informados. Houve fotos de surfe em Montauk, assobios
(nenhum resmungo horrível, não era um grupo hardcore), alguns
risos. Fotos com qualidade profissional de uma viagem à Costa
Rica. Mas o evento principal era uma série de imagens da ilha da
Madeira fornecidas por Peter. Eu não tinha visto a maioria delas
antes. Como sempre, eu não tirara praticamente nenhuma foto
durante nossas viagens juntos. Peter fora um pouco mais
consciencioso. Fizera várias fotos do pico do alto da montanha,
mostrando Jardim, Pequena e Paul do Mar detonando. A sala
ecoava com palavrões sinceros de aprovação. Fora isso, Peter
era como eu — não gostava de ficar em terra quando as ondas
estavam boas.
Mas vários colegas e passantes tinham tirado fotos nossas na
ilha da Madeira ao longo dos anos e enviado os resultados. As
imagens eram de qualidade variada, na melhor das hipóteses,
mas vê-las me deixou com o coração acelerado. Havia algumas
fotos minhas em um dia inesquecível em Pequena, tiradas por
um dos velhos amigos de Peter que viajou conosco em 1997. A
exultação desesperada dessa sessão — surfei por seis horas —
voltou de uma só vez quando vi aqueles vislumbres distantes e
borrados de algumas ondas minhas. Elas estavam grandes, e eu
me empenhava. Havia uma foto de Peter em um dia grande em
Jardim tirada por James, o americano que quebrou o tornozelo
em Paul e depois, mais tarde naquela semana, foi mancando até
o pico com a perna engessada para tirar fotos do alto da falésia.
“Vocês estavam rebocados?”, perguntou alguém.
Nós rimos. “Claro que não.”
Na época, a expressão “surfe rebocado” era um acréscimo
recente ao surfe de ondas grandes nascido no Havaí. Usando jet
skis para posicionar caras presos pelos pés a pranchas
pequenas e pesadas em ondas enormes, o surfe rebocado
dobrou ou triplicou praticamente da noite para o dia a altura
máxima de uma onda surfável. Era uma prática estrita a
especialistas — na verdade, um pequeno subgrupo de malucos
que surfavam as maiores ondas do mundo. Não nós, para ser
mais exato. Nada sequer relacionado a nós. Mas, olhando para a
foto de Peter em Jardim, achei que aquela não tinha sido uma
pergunta idiota. Ele saía da base de uma onda grande e escura
— uma parede de oito metros —, deixando uma esteira branca
estranhamente longa. Estava inclinado para a frente e com os
joelhos flexionados, obtendo máxima velocidade da prancha e
projetando a virada muito, muito abaixo da linha. Peter parecia
ter sido colocado na onda por alguma força além dela. Eu
conhecia bem a seção que o arremessara naquele momento e
sabia por que ele seguia com tanta intensidade. Na verdade,
Peter estava chegando à parede do inside, sentindo todo o poder
de catapulta de Jardim. Havia uma razão para as pessoas a
chamarem de o melhor pointbreak para ondas grandes do
mundo.
Peter também tinha fotos, tiradas por um de seus velhos
colegas, da noite em que quase morremos. Havia uma dele em
uma onda grande, de aparência selvagem, antes de o sol se pôr
— provavelmente a última onda surfada naquele dia. Em
seguida, vieram algumas fotos iluminadas com flash de nós
depois de chegar em terra, meio enlouquecidos, acima da rampa
de barcos. Curiosamente, as imagens me lembraram do que os
amigos de Peter disseram mais tarde, no jantar. Um deles, um
kneeboarder de Santa Barbara, confessou que, após
desaparecermos, ele começou a planejar o que iria dizer à mãe
de Peter. O outro, um velho colega de turma da escola de arte,
parecia aturdido. Admitiu ter feito a mesma coisa. Os dois se
sentiram terrivelmente culpados por supor o pior e ainda
pareciam bastante abalados. Peter e eu, embora provavelmente
em estado de choque, estávamos muito animados — bebendo
vinho, brindando à vida. Na primeira foto na rampa de barcos,
nós dois parecíamos atônitos. Peter estava fazendo o gesto de
hang loose para a câmera. Eu tinha um filete de sangue no rosto.
“Ai”, disse alguém na sala.
Decidimos, sem discutir o assunto, não contar a história. A foto
seguinte, a última da exibição, significaria menos ainda para o
grupo. Peter e eu, precisando nos recompor, havíamos nos
afastado da multidão em júbilo no alto da rampa de barcos. Nós
nos retiramos para a beira do quebra-mar, sentamos por um
minuto e olhamos fixamente para a escuridão barulhenta. A foto
mostrava apenas nossas costas e as roupas de neoprene
brilhando. Não era uma grande foto. As luzes se acenderam, com
gritos por mais cerveja. Ouvi Peter dizer do outro lado da sala:
“Eu ia passar meu braço em torno dos seus ombros, mas,
você sabe...” Eu sabia.

***

Caroline passou a me acompanhar na primeira semana de meus


retiros na ilha da Madeira. Nós ficávamos no hotel novo em
Jardim — um lugar frio, em geral vazio, construído, dizia-se, com
dinheiro sul-africano. Ela ficou apropriadamente impressionada
com a beleza natural da Madeira e adorava ficar fora do alcance
de seu escritório. Ela podia passar dias inteiros caminhando
pelos terraços e lendo o que chamava de livros de assassinato —
romances policiais — enquanto eu surfava. Lembro-me de uma
manhã enevoada: eu surfava Jardim sozinho. Ela lia em uma
sacada do hotel exatamente acima do pico. As ondas estavam da
minha altura, mal passando pelas rochas nas séries. Depois de
cada surfada, eu olhava para cima. Caroline ainda estava focada
no livro. Eu gritava. Ela acenava. Não viu nenhuma das minhas
ondas. Quando enfim saí da água e reclamei, ela tentou explicar,
não pela primeira vez, como era absurdamente entediante
observar o surfe. Os períodos de calmaria entre as séries
pareciam durar horas. Houvera, é certo, alguns longos períodos
de calmaria.
Na verdade, minhas reclamações eram triviais e não levadas
para o lado pessoal. Caroline aturava minha febre de surfe,
mesmo seus momentos mais juvenis, muito além do que eu teria
o direito de esperar, e eu tentava conscientemente nunca perder
esse fato de vista. Por mais indiferente que ela fosse ao mar e a
todas as coisas relacionadas ao surfe, nossa vida juntos era
entrelaçada por ondas. Elas eram um fundo, uma força
gravitacional, e raramente estavam distantes. Em nosso
casamento, fizemos os votos embaixo de uma macieira de onde
não se via o oceano. Entretanto, naquela manhã, Bryan e eu
tínhamos saído em busca de ondas. Não encontramos nenhuma,
mas caí na água em uma praia ruim na costa sul de Martha’s
Vineyard, onde peguei uma onda na altura do joelho que
quebrava perto da praia só para que Bryan pudesse tirar uma
foto minha “surfando” no dia do meu casamento — com a alma
em êxtase um momento antes de chegar à areia. Mais tarde, no
jantar de comemoração, ele fez um belo e elaborado brinde. Um
dos temas principais foi um alerta para Caroline de que ela devia
esperar que qualquer passeio, com certeza qualquer feriado,
fosse impiedosa e até cruelmente transformado em uma viagem
de surfe. Acabou se revelando que Bryan estava certo várias
vezes — na França, na Irlanda, em Tortola, depois na Espanha e
em Portugal. Caroline, que ninguém jamais consideraria ingênua,
levava totalmente na esportiva.
Ela tirava o maior proveito das situações: os lugares obscuros
e com frequência extremamente belos para os quais eu a
arrastava; a liberdade para ler; os frutos do mar. Para uma
pessoa do interior, Caroline tinha uma afinidade impressionante
com frutos do mar. Na ilha da Madeira, gostava especialmente do
peixe-espada do Tar Mar e do vinho jovem conhecido como vinho
verde.
Como Caroline aturava minhas ausências, não apenas quando
eu perseguia ondas sem ela, mas também quando viajava com
frequência e por períodos mais longos para fazer reportagens? A
resposta mudava à medida que nós dois mudávamos. Ela às
vezes viajava sozinha por semanas para visitar os amigos e a
família no Zimbábue, e eu achava que esse distanciamento era
bom para o relacionamento, pelo menos nos primeiros anos. Nós
precisávamos de folgas. Mais tarde, tornou-se mais difícil
ficarmos separados. Porém, Caroline tinha uma veia firme de
autossuficiência. Ela era excepcionalmente boa em ficar sozinha.
Eu às vezes achava que isso vinha da mãe dela, June, que era
ao mesmo tempo profundamente ligada ao marido e dona de
uma personalidade severa e reservada que passava a noite
inteira escutando o Africa Service da BBC e raramente dormia. O
pai de Caroline, Mark, que não gostava muito de viajar, ainda
assim passava grande parte do tempo em viagens de negócios
no exterior como negociante de minerais. Caroline trabalhava
com muito afinco — como advogada, era tão perfeccionista
quanto fora como gravurista. Na cabeça dela, minhas viagens à
ilha da Madeira eram justificadas em parte por não se tratarem
apenas de viagens de surfe, mas de retiros para escrever. Eu,
sem dúvida, achava a mesma coisa. Ficava solitário. Ainda não
havia internet nem serviço de celular em Jardim, por isso eu
telefonava para casa à noite da cabine telefônica na praça. Ao
lado dela ficava um viveiro de pássaros comunitário, lar de
periquitos de várias cores. Durante o dia, as aves cantavam e
bicavam um grande repolho que alguém jogava lá dentro. À
noite, elas se encolhiam para se aquecer, formando bolinhas
cinzentas. Eu me encolhia na cabine em noites chuvosas e com
vento, esforçando-me para ouvir o som reconfortante da voz de
Caroline, seus relatos animados sobre a vida esplendorosa de
nosso monótono trabalho diário.

***

Tenho passado a impressão de que as ondas sempre eram


grandes. Na verdade, tive vários dias divertidos de pranchinha na
ilha da Madeira — sessões como a daquela manhã com Caroline
na varanda, em meio ao nevoeiro. Dias grandes e assustadores
na prancha de dois metros e meio não eram a regra. Ainda
assim, tudo relacionado ao surfe tinha se tornado mais sério.
Após longos anos surfando basicamente com qualquer prancha
que conseguisse, eu passara a tomar cuidado real com aquela
em que surfava agora. Encontrara um shaper no Havaí, um cara
excêntrico do North Shore chamado Owl Chapman cujas
pranchas eu amava. Eram triquilhas de bico estreito e rabeta
swallow, rápidas e grossas, com pouquíssima curva e bordas fora
de moda viradas para baixo — basicamente pranchas dos anos
1970, mas com linhas mais sutis, materiais mais leves e três
quilhas. Quebrei algumas Owls em ondas pesadas (carregadores
de bagagem de companhias aéreas também quebraram uma ou
outra), e nem todas as substituições funcionaram bem — Owl
tinha as próprias ideias sobre o que eu devia usar. Ainda assim, a
maioria de minhas Owls eram pranchas mágicas — manobráveis,
de remada rápida e firmeza no tubo. Surfei em uma delas pela
primeira vez em meados dos anos 1990, em uma viagem de
trabalho ao North Shore, e raramente surfei com qualquer outra
prancha pelos dez anos seguintes.
Por que eu ficara tão interessado nos pormenores do
desempenho das pranchas? Em poucas palavras, por causa da
ilha da Madeira. Ela me jogara em ondas grandes e poderosas
de um jeito novo. A ambivalência que me assombrava em Ocean
Beach desaparecera. Infelizmente, meu surfe se encontrava em
declínio. Eu estava envelhecendo. Isso ficava claro para mim em
dias crowdeados em Pequena. Na ilha da Madeira, crowdeado
ainda era um termo relativo — podia haver doze pessoas na
água. A maioria eram portugueses com a pele muito bronzeada,
provavelmente alguns dos principais profissionais do país. Eles
remavam e surfavam em círculos ao meu redor. Dizer a mim
mesmo que eles tinham metade da minha idade, ou menos, e
que provavelmente surfavam dez vezes mais que eu naquele
momento deveria ter ajudado. Não ajudou. Eu estava chocado
comigo mesmo. Perdia ondas que deveria pegar, ficava de pé
com lentidão quando deveria saltar. Eu ouvira dizer que, como
surfista, envelhecer era apenas o processo longo e lento de
humilhação de se transformar em um iniciante outra vez. Agarrei-
me a minhas ilusões de que ainda podia surfar decentemente. As
pranchas Owl ajudavam.
Meu pesadelo de uma ilha da Madeira invadida e espoliada
parecia estar se tornando realidade aos poucos. Houvera a
primeira competição em Jardim. Tomei o cuidado de estar em
Nova York quando ela aconteceu. O vencedor foi um sul-africano
de dreadlocks. Foi marcada uma segunda competição com uma
lista alarmante de empresas patrocinadoras e profissionais de
ondas grandes bem conhecidos. Mais abominável ainda: os
malucos que viviam percorrendo o globo em busca do paraíso
das ondas eram cada vez mais comuns. Tim, da Carolina do
Norte, agora perambulava pelas ruas de paralelepípedos de
Jardim com uma calça de cadarço roxa e um moletom com
capuz, delirando sobre os “tubos infinitos” que pegara na “Indo”
no ano anterior. “Bawa, cara, surreal. Melhor que G-Land. Melhor
que Ulu. Melhor que isto.” Eu sabia que não tinha o direito de
desprezá-los, mas me encolhia quando pessoas como Hatteras
Tim começavam a assombrar Jardim e a fazer afirmações lentas
e rabugentas na água.
Os aldeões pareciam desconfiados, com um bom motivo, dos
visitantes mais grosseiros, e nada felizes ao ver que alguns
garotos locais aderiam àquele esporte perigoso. Ainda assim, as
competições eram bem-vindas — traziam dinheiro para a aldeia
— e com certeza nenhum morador local compartilhava minhas
preocupações com crowds na água. O surfe conectava Jardim ao
mundo, e eu tinha que lembrar a mim mesmo quão intenso era o
anseio por essa conexão. Eu entendia, ou acreditava entender,
sobre feudalismo e isolamento. A ordem antiga e despótica da
Igreja e dos nobres tinha maior sucesso onde o contato com o
mundo exterior era menor. Em Jardim, a chegada da eletricidade,
da TV ou da estrada pavimentada de Prazeres foi uma explosão
de oxigênio espiritual, apesar de seus defeitos. Em uma manhã
de domingo sem ondas, ouvi um sermão na igreja da aldeia feito
por um padre brasileiro de visita que exaltava a Teologia da
Libertação. Isso não seria ouvido na época em que os únicos
meios de chegar a Jardim eram por trilha de cabras ou em barco
aberto.
Certa noite, a equipe nacional de surfe de Portugal apareceu
em Jardim. Eu não estava familiarizado com o conceito de uma
equipe nacional de surfe. Mas fiquei surpreso ao ver como os
aldeões ficaram impressionados. Meu Deus, aquela era a
seleção nacional. Eles surfavam por Portugal. Usavam jaquetas
oficiais, como atletas olímpicos — ou a amada seleção nacional
de futebol. Para mim, é claro, eram apenas mais um bando de
moleques desmazelados bons de surfe. Mas fiquei fascinado
pelo técnico. Nunca falei com ele. Apenas o observei descer
devagar do carro alugado em uma manhã na praça. Estava
acompanhado da esposa e de um bebê em um carrinho. Usava a
jaqueta oficial e calças de moletom combinando e parecia um
administrador esportivo, um professor de educação física ou um
técnico de futebol. O que me fascinou foi sua normalidade, seu
desembaraço. Eu ainda enxergava o surfe como algo selvagem.
Era praticado com os amigos, ou então sozinho, mas era algo
que acontecia no mar. Não podia ser socializado. Claro, eu tinha
visto como o surfe na Austrália era difundido, apresentável e
compartilhado. Ele podia ser socializado, e ali, na aconchegante
e remota Jardim, eu captava um vislumbre de minha velha
obsessão de eremita se integrando às normas euro-yuppies dos
esportes de equipe. Soube que algo parecido acontecia, a duras
penas, no sul da Califórnia e na Flórida.
Ainda assim, algumas pessoas interessantes chegavam a
Jardim. Além de Moona e Monica, que depois foram fazer
trabalho assistencial na Libéria durante a guerra, havia um grupo
indefinido de britânicos, nem todos surfistas, cujo destino de
férias anterior fora algum ponto rural na Irlanda onde tiveram uma
bela chance, em uma tarde, de ver Seamus Heaney em um
passeio. O poeta era considerado uma megacelebridade pelo
grupo, e eles estavam orgulhosos de não terem interrompido os
pensamentos de Heaney. Duas das mulheres naquele grupo
versado em livros se interessaram por um surfista americano que
visitava Jardim — um profissional louro e simpático de Long
Island. Ele trouxera um grande número de pranchas de seu
patrocinador e parecia, para suas fãs britânicas, não pensar em
nada além do céu azul. Quando não estava por perto, elas me
perturbavam enquanto bebíamos vinho, ansiosas por detalhes
sobre a mente pós-verbal e resistente do surfista americano
samurai. Eu tentava corresponder, em especial porque também
estava interessado no cara — com sinceridade, não com ironia.
Ele era o que chamávamos de especialista em Pipeline. Passava
os invernos no Havaí surfando uma das ondas mais perigosas e
bonitas do mundo. Quando pegava uma prancha de sua pilha e
tentava explicar como a curva dela o ajudava a se manter no
limite do foamball — a espuma no interior de uma onda oca
quebrando, não visível da praia — e ficar por mais tempo no
tubo, eu fazia perguntas e ouvia com atenção. Esse garoto
estivera em lugares de ondas aonde eu jamais iria.
No centro do contingente britânico havia um casal, Tony e
Rose. Ele era surfista e pintor de paisagens do País de Gales.
Ela administrava um restaurante ali no verão. Os dois tinham
comprado uma casa caindo aos pedaços em Jardim, onde eram
conhecidos como Sr. e Sra. Estaca. Isso porque, quando
chegaram pela primeira vez, ganharam uma casa ainda mais
decadente, dada pelo conselho da aldeia em troca de trabalho, e
uma de suas primeiras tarefas foi fazer centenas das varas que
foram usadas para sustentar bananeiras, as estacas. Até o
cachorro deles era chamado de Estaca. Na verdade, os aldeões
gostavam de Tony e Rose. Quando o tempo ficava tempestuoso,
com vento sudeste, e Tony e eu seguíamos para a costa norte,
as idosas ficavam com raiva. Não sabíamos que não devíamos
deixar a aldeia com tempo ruim? Havia deslizamentos de rochas.
As estradas desmoronavam nas montanhas. Íamos mesmo
assim. Eu precisava verificar minha sedosa onda de esquerda,
Madonna. Mesmo que não encontrássemos ondas, Caroline e eu
tínhamos descoberto um café no norte que servia um peixe-
papagaio grelhado que justificava qualquer expedição.

***

Fui a Pequena a pé em uma tarde ensolarada. Um swell crescia.


As ondas pareciam ruins a distância, com um vento oeste
deixando o pico remexido, razão pela qual não havia ninguém na
água, mas àquela altura eu sabia algumas coisas sobre Pequena
— como esse vento, por exemplo, podia ricochetear nas falésias
e soprar terral ao longo do fundo de pedra, transformando a
parede do inside em algo espetacular. E foi o que aconteceu.
Surfei sozinho por uma hora, pegando ondas pequenas e sem
força no outside, deslizando sobre o fundo de pedra e em
seguida prosseguindo através do tubo em minha robusta Owl.
Depois de um tempo, três profissionais portugueses se juntaram
a mim, incluindo o maior fera de todos, Tiago Pires. Eles
obviamente estavam usando binóculos em Jardim. Ainda havia
muitas ondas para surfar, mas Pires era tão radical que o achei
imprevisível, e nós dois acabamos enroscados e despencamos
juntos na maior onda que apareceu. Tivemos sorte de não nos
machucarmos. Foi um caldo longo, e depois fomos atingidos por
uma série pesada. Ele dava a impressão de que nada tinha
acontecido, mas eu fiquei abalado.
Pensei em voltar à costa. Caroline viajaria para Nova York na
manhã seguinte. Decidi pegar mais uma boa. Mas o mar ficava
maior, e eu estava surfando mal. Os drops eram intimidadores,
mas não difíceis se você conhecesse a onda — e eu conhecia.
Ainda assim, consegui deixar passar duas e levar outra série na
cabeça. Eu me sentia exausto. As séries aumentavam — cada
uma maior que a última. Agora alcançavam pelo menos três
metros. Os outros caras estavam em algum lugar atrás — não à
vista. Decidi pegar a primeira onda que pudesse e voltar para a
costa. Encontrei uma bela onda de tamanho médio,
possivelmente a primeira de uma série. Eu a peguei, trêmulo de
alívio. Então consegui cair. Voltei à superfície irritado e me
deparei com uma parede de água que parecia saída de meus
piores pesadelos.
Ela já puxava a água do recife, arrastando-me em sua direção,
e eu não tinha a menor chance de escapar. Era a maior onda que
eu já vira em Pequena e começava a quebrar. Nadei depressa
em sua direção e mergulhei cedo, mas ela me arrancou das
profundezas e me surrou até me fazer gritar em um protesto
desesperado. Quando enfim emergi, vinha outra atrás dela,
igualmente grande e maligna. Parecia haver um pouco mais de
água no recife. Nadei para o fundo e tentei me agarrar a uma laje
áspera de pedra, mas fui instantaneamente arrastado dali. Outra
surra longa e completa. Tentei cobrir a cabeça com os braços
para o caso de ela me jogar contra o fundo, mas não fez isso.
Acabei voltando à superfície.
Veio mais uma. Era maior que as outras. Mas a questão foi
que sugou toda a água do recife. Rochedos começaram a
emergir à minha frente, e me vi parado em um campo de pedras
com água corrente na altura da cintura. Não entendia onde
estava — um campo de rochas se erguera do oceano, bem longe
da costa, em um pico que eu acreditava conhecer. Em uma vida
inteira de surfe, nunca tinha visto nada como aquilo. A onda se
transformou em uma parede horrenda e fervilhante de dois
andares de água espumosa quase sem quebrar — ela havia
ficado sem água para sugar. Tive um instante para decidir o que
fazer antes de ser atingido. Identifiquei uma brecha na parede e
me joguei para cima e para dentro dela. Tinha a vaga esperança
de que, se nadasse fundo o bastante, a espuma poderia me
engolir em vez de simplesmente me partir em pedaços nas
pedras. Ao que parece, foi algo assim que aconteceu. Cortei
meus pés quando saltei, mas não atingi o fundo enquanto era
arrastado em direção à costa nas entranhas da onda. E, no
momento que voltei à superfície, estava seguro, em águas
profundas, no canal a leste de Pequena.
Voltei devagar para Jardim. Meu cérebro parecia desligado.
Por um momento, achei que fosse morrer. Não em um futuro
vago, mas bem ali, naquele instante. Agora era difícil saber
exatamente como voltar ao mundo. Cheguei ao nosso hotel.
Caroline percebeu que havia algo errado. Ela preparou um banho
— em geral não tomo banho de banheira. Deitei na água. A noite
caiu. Caroline acendeu velas e limpou os cortes em meus pés.
Tentei explicar o que acontecera. Não cheguei longe. Disse que
queria voltar para Nova York com ela. Caroline lavou meu cabelo.
Perguntei por que ela não ficava com raiva de todas as coisas
estúpidas e arriscadas que eu fazia. Ela sabia que eu estava
falando tanto das reportagens de guerra quanto do surfe.
Respondeu que supunha que eu precisava fazer aquilo.
Mas ela não se preocupava?
Caroline levou um bom tempo para responder. “Quando as
coisas ficam ruins, acho que você fica muito calmo”, falou ela.
“Confio no seu julgamento.”
Não era assim que eu me via, ou já tinha visto. Ainda assim,
foi interessante ouvir. Mais tarde Caroline admitiu que se permitia
um pouco de pensamento mágico, principalmente quando eu
desaparecia em zonas de conflito e áreas de sequestros.
Envergonhado demais para partir, fiquei me lamentando
sozinho depois que Caroline foi embora. O dia estava tão grande
que ninguém tentou entrar na água. As condições estavam
limpas. Equipes de surfe rebocado possivelmente podiam ter
surfado ali, partindo de alguma baía segura. Mas ninguém fazia
surfe rebocado na ilha da Madeira, pelo menos não naquela
época. Eu o observei por horas, nem remotamente tentado. Tony,
o pintor de paisagens do País de Gales, disse que tinha visto um
dia tão grande que as ondas quebravam limpas do outro lado da
baía, entre Paul do Mar e Pequena. Contou que, parado no cais
em Paul, tudo o que se via era um monte de montanhas de
espuma com o pico distante da parte oca da onda mais externa,
quebrando visivelmente alto acima de toda a espuma e névoa,
talvez os quase cinco metros superiores da onda, movendo-se da
direita para a esquerda — toda uma tarde de gigantes místicos
surgindo um após o outro na costa.
Tony era ruivo, passional, talvez tivesse quarenta anos.
Confessou que a ilha da Madeira tinha virado sua pintura de
ponta-cabeça. “São as falésias de seiscentos metros”, disse ele.
“De repente, o horizonte está bem na sua cara e o mar
desaparece no céu. As nuvens estão abaixo de você, o mar está
acima.” Contou que a ilha também mudara seu estilo de surfe.
“Mudou de forma definitiva. Não surfo mais em casa. Não faz
sentido. Isso aqui é o poder do oceano profundo. Você sabe bem
como é. Essas coisas o perseguem até o pico, e você só quer
dar logo o fora da água.” Como Peter, Tony não estava
especialmente preocupado com os crowds. “As pessoas têm
medo deste lugar.”
Com razão, pensei.
Mas eu surfava para assustar a mim mesmo? Não. Eu amava
o poder, a energia, mas só até certo ponto, então saía da água —
isso era surfe conservador, não surfe radical arriscado, e
provavelmente era tudo para o que eu servia nessa idade. Caía
na água em busca de uma dose de dopamina que era ao mesmo
tempo familiar e rara, que exigia nervos e experiência, mas não
tinha nada a ver com terror. De forma parecida, quando fazia
uma reportagem, eu saía à procura de histórias para satisfazer
minha curiosidade, para tentar dar sentido a calamidades — com
certeza não para levar um tiro. De fato, um de meus piores
momentos como repórter ocorrera em El Salvador, em um dia de
eleição durante a guerra civil. Três jornalistas foram mortos e um
ficou ferido. Fiquei preso em um tiroteio em uma aldeia na
província de Usulután. Na aldeia seguinte, um cinegrafista
holandês chamado Cornel Lagrouw foi baleado no peito. O
Exército atacou o carro que tentava levá-lo ao hospital,
prendendo-o com fogo aéreo. Lagrouw morreu na estrada. Eu
estava lá quando o declararam morto. A namorada dele,
Annelies, que era sua técnica de som, não tirava os olhos dele.
Ela beijou suas mãos, seu peito, seus olhos, sua boca. Limpou a
poeira de seus dentes com o lenço. Depois que escrevi e enviei a
matéria, fui surfar. El Salvador tem uma bela onda chamada La
Libertad, que naqueles dias estava vazia por causa da guerra.
Passei uma semana escondido em Libertad. Surfar era um
antídoto, por mais suave que fosse, para o horror.
Essas coisas pertenciam a lados opostos da contabilidade.
As ondas baixaram totalmente e o mar permaneceu pequeno.
Deixei a barba crescer. Trabalhava em uma matéria sobre o
movimento anticorporativo global, que estava em voga na época.
Escrevia cartas, principalmente para Bryan. Eu não achava que a
ilha da Madeira fosse ser de grande interesse para ele; exceto,
talvez, no papel. Nossa última viagem de surfe juntos fora alguns
anos antes: uma rápida investida de cinco dias durante o outono
até a Nova Escócia, enquanto ele e Deirdre faziam um trabalho
para o Williams College. Tivemos sorte e encontramos belas
ondas vazias.
Bryan tinha seguido sua inspiração até as entranhas dos
Estados Unidos. Escreveu uma matéria em duas partes para a
New Yorker chamada “Carros grandes”, sobre a vida de um
caminhoneiro de longas distâncias, e depois um perfil
inesquecível de Merle Haggard. Bryan escreveu um livro
apaixonado, erudito e belo sobre um jogador de beisebol do
século XIX chamado John Montgomery Ward. Depois voltou para
seu primeiro amor, a ficção.

***

Uma ideia bizarra circulava por Jardim. O governo ia construir um


túnel entre Jardim e Paul. Parecia a trama de uma piada
absurda. Um túnel com quase dois quilômetros de extensão em
uma autoestrada, atravessando uma montanha rochosa, para
conectar duas aldeias de pescadores minúsculas e que se
odiavam?
Sim. E, pelo jeito, era só o começo. A União Europeia estava
investindo muito dinheiro em suas “regiões subdesenvolvidas”.
Portugal recebia grande parte dessa verba, e a ilha da Madeira
está para Portugal assim como o país está para a Europa —
mais ao sul e a oeste e, pelo menos tradicionalmente, mais
pobre. Como resultado, agora pontes e túneis estavam sendo
construídos por toda a ilha da Madeira, consumindo furiosamente
as subvenções do bloco europeu para “infraestrutura de
transporte”. Segundo a União Europeia, esses projetos
produziriam “economia de tempo”. Enquanto isso, geravam
empregos para madeirenses e lucros inesperados para
corporações e empreiteiras locais com conexões políticas.
Segundo diziam, havia muito suborno e corrupção. Mas não vi
nada sobre isso nos jornais, nos quais o homem poderoso local e
governador regional, Alberto João Jardim (sem qualquer relação
com a aldeia), aparecia em uma cerimônia de inauguração de
uma nova e grande construção todo dia. Havia pressa para
construir o que fosse possível antes de o bloco admitir países do
Leste Europeu, que, então, passariam a receber esses subsídios.
Os rumores de corrupção eram verdadeiros? Difícil saber. Eu
estava lá como turista, não como repórter. Sem dúvida havia uma
loucura à solta na ilha. Era o momento de ganhar dinheiro em um
lugar onde existira, ao longo dos séculos, poucas e preciosas
oportunidades como essa. Várias pessoas mais velhas pareciam
atônitas, observando as encostas tranquilas com terraços que
conheceram a vida inteira serem terraplanadas em leitos para
autoestradas novas e lisas. Em Jardim, ouvi pessoas
preocupadas com a possibilidade de que, quando o túnel
estivesse pronto, bêbados grosseiros de Paul chegassem aos
montes, transformando a praça tranquila de Jardim em um ponto
de encontro malcheiroso. Ainda assim, homens de Jardim
arranjaram trabalho no túnel, e suas famílias ficaram gratas por
isso. Era melhor do que emigrar para a Venezuela.

***

Quando voltei no ano seguinte, o túnel estava em construção. À


noite, quando não havia o barulho das ondas, eu ouvia as
máquinas, as detonações no interior da montanha. Insone em
meu quarto úmido, imaginei Adamastor, um monstro marinho
feito de rocha citado em Os lusíadas: “Os olhos encovados, e a
postura/ Medonha e má e a cor terrena e pálida;/ Cheios de terra
e crespos os cabelos,/ A boca negra, os dentes amarelos.”
O surfe foi ruim naquele inverno. As tempestades no Atlântico
Norte com as quais contávamos estavam mais fracas que o
habitual e atingiam a própria ilha da Madeira, estragando as
ondas. Quando chegou a hora de eu ir para casa, os mapas
meteorológicos mostravam que ainda havia outra tempestade
vindo em nossa direção. Pensei que essa talvez seria diferente.
Decidi ficar. A tempestade chegou. Não foi diferente, pelo menos
não em Jardim, onde as ondas ficaram grandes, mas impossíveis
de surfar.
Fui de carro até a costa norte com um cara jovem do Oregon,
André. Ele era louro, calado e forte, como um lenhador. Um túnel
novo, com três quilômetros de comprimento, permitiu que
atravessássemos as montanhas centrais em menos de uma
hora. O norte estava ensolarado e sem vento, um mundo
diferente, e minha velha paixão, Madonna, estava, como dizem,
pegando fogo. O mar estava gigante. A onda normalmente corria
perto das pedras, restrita à sombra dos penhascos. Agora ela
quebrava longe, com águas azul-escuras, lisa e pesada sob o
sol. Fiquei feliz por ter levado minha gun. Saltamos das pedras
bem longe na enseada. André parecia entusiasmado demais. Eu
me movia com cuidado, com a garganta seca. Ele logo avançou
uns cem metros à minha frente. Eu tinha vislumbres de André
remando por cima de ondas enormes. As ondas estavam ainda
maiores do que eu pensava. Não tinha muita certeza se devia
estar na água.
Então André apareceu, agitando os braços no alto de uma
onda enorme. Ele a pegou, em queda livre durante o drop de
backside, de algum modo aterrissando na prancha e, depois,
surfando com agressividade, com cavadas fortes, antes de voar
por cima do rabo. Foi uma surfada brilhante. Mas eu a vi —
assim como tudo à minha volta — através de uma tela de medo.
Achei assustador o ronco da espuma que atingia os penhascos à
minha esquerda. Não parava de me forçar a não olhar para
aquele lado. As ondas do tamanho de caminhões que explodiam
à frente também não ajudavam a aumentar minha confiança.
Elas faziam com que eu desejasse ter ficado em terra firme. O
pico parecia incrivelmente rápido e íngreme, e o castigo por um
drop errado era muito severo. Na verdade, provavelmente
aquelas ondas não eram tão mais difíceis do que as três
monstras que surfei naquele dia grande em Paul do Mar. Mas as
de agora eram esquerdas, e as outras tinham ocorrido três anos
antes, em um dia em que minha confiança estava absurdamente
alta. Hoje, eu sentia medo e cheiro de desastre.
O desastre encontrou André primeiro. Ele tinha remado para
longe, até o pico, no interior de uma zona terrivelmente perigosa.
Eu havia parado e usava os pontos de referência do pico de
Madonna que eu conhecia — um túnel na estrada, uma
cachoeira. No entanto, estava uns trinta ou quarenta metros
distante do pico habitual e fugia rápido para a água aberta
sempre que surgia uma série. Eu não tinha pegado uma onda,
nem mesmo tentado para valer. André surfara várias,
posicionando-se tão fundo que, mesmo quando saía no fim de
uma onda, estava tão longe que não conseguiria nem ouvir um
grito meu. Para mim, parecia que André estava em uma missão
suicida. Uma série grande podia começar a quebrar onde eu
estava e continuar quebrando por todo o caminho até o pico,
prendendo-o de forma terrível. Em pouco tempo, isso aconteceu.
Ele quase escapou. Tentou furar o lip de uma onda gigante, mas
ela o sugou, arrebentou sua cordinha e deu-lhe um caldo que
durou um período assustadoramente longo. Sua prancha já tinha
atingido o penhasco quando a onda seguinte quebrou em cima
dele. André acabou chegando à costa, na direção da enseada.
Recuperou a prancha danificada, mostrou-a para mim, avisando
que tinha parado, e voltou para o carro.
Fiquei na água por horas. Estava assustado demais para
surfar direito, mas não conseguia encarar a remada para a terra
firme. Peguei algumas ondas, todas apenas grandes rabos,
relativamente fáceis e seguras. Quase tive problemas algumas
vezes enquanto desviava das séries. Em vez de tentar passar
pelo alto da maior onda que surgiu — um monstro —, abandonei
a prancha e nadei por baixo dela. A água estava clara e
profunda, ecoando com pancadas ocas e aterrorizantes — o som
de grandes pedras rolando, percebi. Conseguia vê-las abaixo de
mim, rochas do tamanho de armários de arquivo sendo erguidas
do fundo pelo swell que passava. Eu nunca tinha visto isso antes.
Meu leash segurou, e não houve mais ondas nessa série. Fiquei
ainda mais assustado, se é que era possível.
Vários carros de surfistas chegaram. Vi Tony em meio ao
grupinho que assistia. Ter plateia só piorou as coisas — a
humilhação de surfar de modo tão tímido. Mas a pior parte era a
sensação no peito enquanto eu remava por cima de ondas
grandes excelentes, várias e várias vezes, sem disposição para
arriscar um drop. Era um grande desperdício. Uma grande
covardia. Minha autodepreciação aumentou insuportavelmente.

***

Naquela noite, de volta a Jardim, eu estava deitado em uma


cama de armar cheia de calombos pensando em abandonar o
surfe. O vento sudeste gemia nas beiradas da velha casa onde
eu estava hospedado. Várias partes do meu corpo doíam. O olho
esquerdo lacrimejava por causa do excesso de sol e água
salgada. Uma das mãos latejava com um corte sofrido ao tentar
chegar à costa em Madonna. A outra tinha sido machucada por
espinhos de ouriço durante uma colisão com o recife em
Shadowlands na semana anterior. Os pés doíam com cortes
infeccionados. Pela dor que sentia na região lombar, parecia que
eu tinha passado o mês inteiro quebrando pedras.
Eu estava velho demais para isso. Vinha perdendo velocidade,
força, coragem. Por que simplesmente não deixava aquilo para
os surfistas no auge da forma física, como André? Mesmo os
caras da minha idade que ainda tentavam surfar ondas sérias —
caras na casa dos quarenta, até dos cinquenta — conseguiam
cair na água duzentos, trezentos dias por ano. Quem eu estava
tentando enganar procurando me sair bem com apenas uma
fração disso? Por que não parar enquanto podia? Será que
desistir deixaria um vazio psíquico tão grande?

***

De manhã, Jardim ainda estava mexida. André e eu fomos para a


costa norte. Fiz a viagem no piloto automático, sem pensar em
nada, sem me entusiasmar. Durante o percurso, André me
contou sobre seu divórcio. Fiquei surpreso por ele ter sido
casado — era muito jovem. Explicou que ele e a esposa haviam
se separado por causa do surfe, é claro. Disse que as garotas
precisavam se dar conta de que, ao se casarem com um surfista,
casavam-se com o surfe. Ou elas se adaptavam, ou terminavam
o relacionamento. “É como se você ou eu ficássemos com uma
consumista fanática”, exemplificou ele. “Quer dizer, uma fanática
completa. Você precisaria aceitar que toda a sua vida se
resumiria a viajar por shopping centers. Ou, na verdade, a
esperar pela abertura dos shoppings.”
Deu para imaginar por que o casamento dele tinha
desmoronado.
Na costa norte, o swell diminuíra. Ventava e chovia em
Madonna. As ondas estavam pequenas; a maré, alta demais.
Cochilamos no carro — apenas dois consumidores esperando o
shopping abrir.
Então, de maneira improvável, o tempo abriu. O vento
diminuiu, a maré baixou, o sol saiu e o surfe começou a bombar.
Caímos na água. Estava com metade do tamanho da véspera.
Os drops ainda eram traiçoeiros — muitos deles incluíam
pequenas quedas livres —, mas me flagrei ansioso por esses
momentos de ausência de peso, na verdade usando-os para
preparar uma virada forte na base, que então intensificava a
aceleração na trajetória. As ondas menores corriam um pouco
perto demais da falésia, que, por eu estar de backside,
encontrava-se bem na minha cara. Mas as rochas que passavam
depressa só aumentavam a sensação de velocidade. Alguns
turistas pararam na estrada a fim de tirar fotos, mas nenhum
surfista apareceu. Éramos apenas eu e um jovem maníaco do
Oregon, nos alternando em ondas lindas, surfando até não
aguentar mais, uma hora suave após a outra.

***

Por incrível que pareça, o túnel para Paul do Mar ficou pronto
antes do inverno seguinte. Vagabundos de Paul não invadiram a
praça de Jardim. Na verdade, o túnel mal parecia ser utilizado.
Era longo, escuro e bolorento. Ninguém caminhava por ele. Mas
era muitíssimo conveniente para surfistas. As ondas de Paul
agora estavam a cinco minutos de carro. Logo tudo na ilha da
Madeira ia ficando mais perto. Funchal, que ficava a três horas
de carro de Jardim quando começamos a frequentá-la, agora
estava a menos de uma hora. Os madeirenses ficaram contentes
com a conveniência, é claro, mas eu temia, de forma avarenta,
que o acesso mais fácil pudesse significar mais surfistas. Uma
segunda competição havia sido realizada em Jardim. O vencedor
fora um taitiano conhecido por seu surfe baseado na força
chamado Poto — uma celebridade do surfe internacional. Isso
não era nada bom.
A enorme transferência de capital da União Europeia para a
ilha da Madeira que estava em andamento — centenas de
milhões de euros — era, para mim, um pouco irônica. Eu apoiava
o negócio, na teoria. Ele se alinhava com a minha visão do lado
benigno (talvez a única coisa benigna) da globalização
econômica: países mais ricos ajudando diretamente os mais
pobres. De forma abstrata, a infraestrutura era boa. Mas, na
realidade, fiquei horrorizado com a maioria dos projetos. Além de
serem horrendos e um desperdício, muitos pareciam
completamente inúteis, exceto como fonte temporária de
empregos e de grana para os figurões embolsarem.
Naquele ano — início de 2001 —, comecei a ouvir rumores
sobre um “passeio” que o governo queria construir em torno da
costa de Jardim. Isso não fazia sentido. Na maré alta, o oceano
quebrava nos penhascos. Conversei com um empreiteiro na
cidade sobre os boatos. Ele disse que apoiava o projeto, mas foi
vago sobre qual poderia ser o legado da obra. Também afirmou
que, se fosse mesmo adiante, o projeto seria algo modesto —
apenas uma passagem calçada. Falei que seria impossível
construí-la. E quem iria usá-la? José Nunes disse para eu não
me preocupar. Era provável que fosse apenas conversa.
***

Em novembro de 2001, nossa filha, Mollie, nasceu. Fazia um


tempo que queríamos um bebê. Dizer que ficamos enlouquecidos
seria um eufemismo grave. De repente, nosso mundo ficou muito
menor e muito maior. Um sorriso divertido era um universo. Perdi
a vontade de sair de Nova York. Antes de Caroline engravidar, eu
fizera reportagens na Bolívia e na África do Sul. Agora Miami
parecia um lugar distante demais para ir fazer uma reportagem.
Quando viajei a Londres a trabalho, Caroline e Mollie me
acompanharam. Parei de escrever sobre guerras, até mesmo
sobre minha versão branda disso. Perdi dois invernos na ilha da
Madeira sem qualquer traço de arrependimento.
Mas fiquei sabendo de algumas coisas. O “passeio” em Jardim
se transformara em uma estrada à beira-mar. Quando consegui
voltar à Madeira, com Caroline e Mollie, em outubro de 2003, ela
estava em construção.
O projeto sofrera certa oposição. Um surfista da Califórnia
chamado Will Henry, que frequentava a ilha da Madeira,
organizou protestos. Ambientalistas, geólogos, biólogos e
surfistas, tanto de Portugal quanto do exterior, se reuniram e
fizeram manifestações em Funchal e Jardim. A ameaça à grande
onda de Jardim não era a única questão — havia outros picos de
surfe enterrados sob outras construções desnecessárias, entre
as quais marinas. Os manifestantes argumentavam que o boom
da construção civil promovido pelo bloco europeu prejudicava a
ecologia costeira da ilha da Madeira como um todo, e revelou-se
que uma das beneficiárias desses grandes contratos era, na
verdade, uma empresa do genro de Alberto João Jardim, o
governador regional.
O governador ficou louco. Chamou os manifestantes de
“comunistas”. Disse a um jornal local que os surfistas
representavam o “tipo de turista descalço que não queremos na
Madeira. Vão surfar em outro lugar!”. Ele até zombou da
compreensão dos surfistas em relação às ondas do oceano.
“Surfistas? São um bando de tolos que devem achar que as
ondas quebram da terra para o mar. Qual o problema se elas
quebrarem aqui ou cinco metros mais longe na água? As ondas
serão sempre as mesmas.”
Os manifestantes foram recepcionados de forma hostil em
Jardim do Mar. Homens locais ligados ao partido do governo os
expulsaram da aldeia, arremessando alimentos e insultando-os.
Até um garoto da aldeia que surfava foi expulso. Will Henry foi
atingido no rosto. Quem eram esses estrangeiros, esses idiotas
descalços, para achar que podiam impedir o progresso na ilha da
Madeira? A construção seguiu em frente.
Por sugestão de Tony, não ficamos em Jardim, mas em uma
pousada no alto da montanha, em uma quinta do século XVII. O
lugar tinha uma piscina pequena com vista para o oceano. Mollie,
com quase dois anos, chamava o mar de “piscinão”. Quando
desci até Jardim com uma prancha no carro, senti as pessoas
virarem a cara na praça. Imaginei que estivessem com vergonha.
Ou talvez agora simplesmente odiassem surfistas.
A devastação ao longo da costa era difícil de entender, mesmo
estando parado ao lado dela. Eu tinha dito que seria impossível
construir um passeio, mas isso porque não tinha imaginação
suficiente. Uma grande quantidade de pedras e terra havia sido
levada de caminhão e despejada ao longo da costa, bem em
torno do pontal. O trabalho não fora concluído, mas já estava
claro que, com aterro suficiente, seria possível construir uma
autoestrada de oito pistas ao longo da costa, caso se resolvesse
fazer isso. Grandes escavadeiras amarelas roncavam de um lado
para outro no aterro ainda não pavimentado. Em um leque que
se projetava desde Jardim, o oceano apresentava um tom leitoso
de marrom por causa da lama. E, entre a estrada não terminada
e a água, havia o quebra-mar mais horrendo que já vi — uma
pilha caótica de blocos cinzentos de concreto. Era
agressivamente inexpressivo e, ainda assim, de doer os olhos.
Os blocos pareciam milhares de caixões descartados com raiva.
Essa era a nova linha costeira. Ondinhas pequenas e marrons
quebravam nos blocos.
O governador, é claro, estava errado. Para um descendente
de uma linhagem de exploradores marinhos, sua ignorância em
relação ao mar era impressionante. As ondas não se movem
para longe da costa quando se soterra um recife. Elas
simplesmente batem contra qualquer coisa que esteja onde
ficava o recife. Ainda assim, ao olhar fixamente para a destruição
em Jardim, achei difícil entender qual seria sua finalidade. Talvez
em um dia muito grande, com maré baixa... Mas mesmo nas
raras circunstâncias em que o surfe ainda fosse possível, um
pico que sempre fora arriscado agora seria tremendamente
perigoso. Além disso, a beleza arrebatadora da costa quando
vista da água — as falésias e os terraços com bananas,
hortaliças, mamões e cana-de-açúcar entre o pontal e a enseada
— tinha sido eliminada, substituída por um muro industrial
sinistro. Era preciso aceitar: a grande onda não existia mais.
Assim como as piscinas formadas pela maré onde, por gerações,
os habitantes locais catavam frutos do mar, os rochedos e as
áreas de água rasa onde Kiko pegava seus polvos agora
estavam enterrados sob milhares de toneladas de pedra
quebrada.
José Nunes era fatalista. “Você acha que está vivendo no
paraíso”, disse. “E aí...” Ele deu de ombros de forma eloquente, o
equivalente gestual do fado.
Rosa era menos diplomática. Denunciou todo o fiasco e deu
nome aos bois — quem lucrara, quem mentira. O seu negócio de
aluguel de quartos tinha secado, claro. Conversando com ela,
percebi que enfim meu desejo tinha sido realizado: não havia
mais surfistas por perto.
Dos outros aldeões, ouvi justificativas para o novo quebra-mar
e a nova estrada. Eles ajudariam a proteger a aldeia do mar.
Mais aldeões poderiam ir de carro até mais perto de casa. Isso
representava progresso — afinal de contas, outras aldeias
haviam obtido tais melhorias. Alguém chegou a me dizer que
turistas viriam para admirar o mar a partir da estrada nova. Esses
comentários eram feitos de um jeito tímido, na defensiva, com
belicosidade ou desânimo. Em alguns deles, havia um pingo de
verdade; mas outros eram completamente falsos. O fato brutal
era que as autoridades tinham resolvido construir o projeto pelas
próprias razões, tanto financeiras quanto políticas, e os aldeões
não puderam opinar sobre o assunto.
Fiz mentalmente um relatório para Peter — ele e Alison agora
tinham uma filha, Anni, que era um ano mais nova que Mollie.
Caminhamos pelas montanhas, acompanhando um sistema de
canais de irrigação conhecido como “levadas”, que riscava toda a
ilha da Madeira. As levadas, quase todas construídas à mão por
escravos, se deterioravam à medida que a economia passava da
agricultura para o turismo. Na quinta reformada onde nos
hospedamos, os outros clientes — dinamarqueses, alemães e
franceses — queixavam-se sobre como todas aquelas novas
construções diminuíam o charme da ilha da Madeira.

***

Picos de surfe são criados e destruídos tanto pela natureza


quanto pela ação humana. Kirra, uma das melhores ondas do
mundo, desapareceu pouco depois que Bryan e eu moramos lá.
Um novo regime de dragagem na boca do rio Tweed, uns dois ou
três quilômetros ao sul, derramou areia na enseada onde Kirra
quebrava e, em questão de meses, a onda milagrosa
desapareceu. Um pico novo, conhecido como Superbank, mais
perto da boca do rio, foi criado pela mesma mudança no fluxo de
areia. A onda magnífica que surfamos em Nias, na baía de
Lagundri, foi violentamente alterada por um terremoto em 2005
— não aquele perto de Sumatra que provocou o tsunami que
matou mais de duzentas mil pessoas no fim do ano anterior, mas
um segundo, que ocorreu três meses depois e atingiu Nias com
mais força. O recife em Lagundri foi erguido em pelo menos
sessenta centímetros, e a onda melhorou, ficando muito mais
cavada e pesada — pela aparência, mais difícil de surfar, porém
inegavelmente melhor.
Para além das perdas e dos ganhos, eu achava perturbadoras
essas mudanças repentinas em picos de surfe estabelecidos.
Lembro-me de uma tempestade de inverno, quando eu cursava o
ensino médio, que encheu a lagoa em Malibu e mudou a forma
do famoso pico. Simplesmente não consegui aceitar o fato de
que Malibu tinha virado uma onda diferente. O batalhão de
engenharia do Exército podia montar um quebra-mar em algum
pico de fundo de areia ou em uma boca de rio e apagar uma
onda surfável ou então criar outra. Eu achava que Malibu fosse
eterno; um ponto fixo em meu universo. Continuei a surfá-lo
depois da grande tempestade. Agora era uma direita curta e sem
forma. Mas eu estava em negação total. O verdadeiro Malibu
estava por baixo de toda aquela areia. Ele reemergeria em breve.
O velho pico de fundo de pedras acabou por reaparecer, mais
ou menos igual, nos anos depois que deixei Los Angeles. Talvez,
como filho do sul da Califórnia, eu devesse ser um catastrofista
calejado, compreendendo que a história natural segue em
apenas uma direção, frequentemente violenta (terremotos,
incêndios florestais, megassecas). Mas meu desconforto em
relação à enchente de 1969 persistia. O pilar central de uma
cosmogonia estável passava, até onde eu sabia, por certos picos
de surfe. (Após um grande esforço de retirada de areia, Kirra
acabou dando sinais de que ressurgiria.)
De vez em quando, com intervalo de alguns anos, Peter e eu
ainda conversamos sobre voltar à ilha da Madeira. Deveríamos
fazer isso. No próximo inverno. Ninguém mais vai para lá. Muitos
picos excelentes ainda quebram. Talvez até Jardim, com a maré
certa, se estiver grande o bastante. Mas não posso encarar isso
e acho que nem ele.

***

Em nossa última manhã na ilha da Madeira, o surfe ainda estava


medíocre. Enquanto Caroline e Mollie dormiam, corri para a costa
norte a fim de dar uma última olhada. Devia haver um verdadeiro
swell de norte, mas nem mesmo uma marola chegara a Jardim.
Já a costa norte estava gigantesca, com linhas visíveis por
quilômetros. Ondas quebravam no mar em recifes que eu não
sabia que existiam. O vento terral estava suave. A arrebentação
perto da estrada parecia ter pelo menos três metros.
Segui de carro para oeste até Madonna. Estacionei no velho
ponto ao lado da estrada. Os penhascos altos e negros, as
cachoeiras diáfanas — nada mudara. Não havia ninguém na
área. O surfe estava limpo e grande. O pico no outside, onde
uma vez eu ouvira rochedos rolando no fundo, quebrava em
todas as séries. Eu sabia que ali era fundo, mas as ondas
formavam paredes negras e se dobravam para a frente como se
fosse raso, como se precisassem de ainda mais água para
expressar por completo sua fúria. Pareciam malignas demais
para serem surfadas. Contudo, depois, quebravam e seguiam
pelo recife de maneira razoavelmente ordenada. As paredes
enormes daquelas esquerdas eram surfáveis — com a prancha
certa, pela pessoa certa, fazendo tudo certo, mandando ver com
coragem.
Observei o pico por pelo menos uma hora. Caminhei de volta
pela estrada analisando as ondas que quebravam na costa,
tentando cronometrar as séries e os intervalos. Incrivelmente
violenta, a onda que atingia a costa parecia não ter pausas. Era
mais proibitiva que os piores dias que eu vira em Paul do Mar —
meu ponto de referência para ondas muito perigosas perto da
costa. Seria preciso entrar na água em outro lugar, talvez na baía
em Seixal, alguns quilômetros a leste. E remar de volta para lá.
Não havia como chegar à costa perto de Madonna.
Será que de fato pensei em tentar surfar? Se houvesse outra
pessoa ali, vestindo uma roupa de neoprene, passando parafina,
é provável que eu tivesse feito o mesmo. Sei que senti as
engrenagens girando, acionadas por uma antiga compulsão.
Partes de mim já estavam ansiando pelo choque da água,
visualizando a linha de aproximação. Era mais reflexo que
pensamento. Esse era meu lado mais insensato e menos
razoável, que não calculava riscos e probabilidades. As decisões
que ele tomava não mereciam ser levadas a sério. Eu não me
orgulhava dele. Ainda assim, quando parti de carro, senti
vergonha e arrependimento.
Tavarua, Fiji, 2002
DEZ

OS MONTES AFUNDAM NO CORAÇÃO DO


MAR

Nova York, 2002-2015

Um pranchão me tenta. Se eu morasse em uma casa perto da


praia, ou simplesmente em uma casa, ou se tivesse uma van, é
provável que adquirisse um agora. Mas moro na atulhada
Manhattan e só posso guardar minhas pranchas pequenas em
armários e cantos, embaixo de camas, em suportes caseiros. É
possível entrar em trens, ônibus e até no metrô com uma
pranchinha, correr por aeroportos com relativa facilidade e
trancá-la em carros nos quais um pranchão não caberia. Por
isso, continuo adiando o inevitável. Agora me esforço para ficar
de pé em ondas pequenas e fracas, sobretudo se estiver com
uma roupa de neoprene grossa. Nesses dias, um pranchão seria
uma bênção — planar com facilidade e graça em vez de passar
pelas ondas com frustração. Em vez disso, evito ondas fracas e
pequenas. Naquelas um pouco maiores, minhas pranchinhas
ainda funcionam bem. O empurrão mais forte, a dimensão
vertical — a prancha cai aos poucos nos drops, deixando espaço
para meus pés se encaixarem direito. Não uso as pranchas muito
pequenas modernas, que agora têm, na maioria, menos de um
metro e oitenta. Porém, ainda uso pranchas que, pelos meus
padrões, são leves e rápidas e se encaixam muito bem no tubo
— nos momentos raros e eletrizantes em que consigo pegar um.
É estranho dizer isso, mas ao longo da última década me
transformei em um surfista habitual de Nova York. Em relação à
costa, a cidade se localiza na virilha formada pelas pernas
abertas de Long Island e da costa de Nova Jersey. Levei anos
para descobrir as ondas de Montauk — em parte porque estava
ocupado, mas principalmente devido a um esnobismo absoluto
da Costa Oeste em relação a tudo que tivesse a ver com o
Atlântico. Contudo, levei mais tempo ainda para ver que havia
surfe bem interessante quase na porta da cidade. O biombo
opaco por trás do qual as melhores ondas quebravam — eu
devia saber — era o inverno. No entanto, os dias dessa estação
são curtos e extremamente frios e, além disso, a janela de boas
condições — swell sólido, vento terral ou vento nenhum —
costuma ser breve. Os verões da Costa Leste são deprimentes
para o surfe. O outono é a temporada dos furacões, que pode
trazer bons swells. Mas foi o inverno que me fisgou para buscar
ondas nas proximidades da cidade. Tempestades conhecidas
como nor’easters assolam a costa, com certa frequência
produzindo combinações de swell e vento de qualidade tão alta
que chega a ser chocante. Só é necessário saber aonde ir e
quando.
Também é preciso que a pessoa tenha um trabalho que possa
ser feito à noite, uma família tolerante e a roupa de neoprene
com capuz mais moderna do mercado — e, de acordo com
minha experiência, internet. Sem dados on-line das boias,
leituras de ventos em tempo real, previsões precisas de ventos e
swells e “câmeras de surfe”, seria impossível, pelo menos para
mim, saber aonde e quando ir. As câmeras fornecem vídeos de
diversos lugares — em muretas de proteção e grades de
segurança —, apontadas para o oceano em locais onde se sabe
que há ondas. Em dias em que a janela de surfe dura apenas
algumas horas, as câmeras costumam lhe dizer o que você
perdeu. Se o surfe está parecendo bom pela tela, é provável que
já seja tarde demais. As condições vão se deteriorar antes de
você chegar à costa. Então, o que resta é decidir, com base em
adivinhação e conhecimento prévio, se vale a pena ir correndo
até lá.
Para mim, perseguir ondas continua sendo algo que
proporciona grandes amizades. Minha educação a respeito dos
caprichos de quebra-mares, bancos de areia, padrões de vento
locais, policiais de cidadezinhas costeiras e pontos em que se
pode vestir apressadamente a roupa de neoprene em torno de
Nova York veio em especial de um dançarino canhoto chamado
John Selya. Nós nos conhecemos quando Mollie era pequena.
Selya morava a apenas algumas quadras de nós, no antiquado
Upper West Side, mas também alugava uma casa com um bando
de outros surfistas em Long Beach, em Long Island, durante o
inverno, quando os aluguéis custavam uma mixaria. Long Beach
tem ondas e uma estação de trem. Fica a menos de uma hora de
carro de Manhattan. Se surfássemos ali, ou em qualquer lugar
próximo, a casa servia como local onde trocar de roupa, tirar os
trajes de neoprene molhados, deixar pranchas e até dormir no
caso de um swell de dois dias. Mas a casa não era essencial. Se
os ventos soprassem de oeste, como acontece com frequência,
íamos para Nova Jersey, não Long Island. Os principais
companheiros de surfe de Selya eram outro dançarino chamado
Alex Brady e um geofísico canhoto que eles chamavam de
Lobbyist. Nem percebi quando eles pararam de alugar a casa —
a essa altura, eu estava em movimento, em alerta permanente.
Quando os planetas (e as boias) se alinhavam, eu largava tudo e
ia, em carros emprestados, surfar sozinho na metade das vezes.
John Selya em Nova York, 2015

Ainda assim, Selya faz com que eu pareça pouco


comprometido. “Isso de surfar uma vez por semana não é bom”,
diz ele. “Mal pode ser chamado de manutenção.” Selya tem um
dos piores casos de febre do surfe que já vi. É insaciável:
persegue qualquer indício de swell. Além disso, é viciado em
vídeos de surfe, um conhecedor minucioso de grandes surfistas e
grandes ondas, um estudante de técnica avançada. Ele espera
de verdade que seu surfe melhore. E de fato melhora, a olhos
vistos, ano após ano. Nunca testemunhei isso em ninguém
depois da adolescência. Selya estava na casa dos trinta anos
quando nos conhecemos e já era um surfista excelente, com um
estilo ao mesmo tempo potente e delicado, mas, quando eu o
elogio por uma onda bem surfada, ele diz coisas como:
“Obrigado. É muito gentil da sua parte, mas preciso de mais
verticalidade.”
Isso deve ser alguma coisa de dançarinos.
“E de judeus”, diz ele. “É preciso sofrer.”
Mas não, no caso dele, reclamar. Selya surfa com alegria
ondas horríveis, pelas quais eu nem cogitaria deixar minha mesa
de trabalho. Ele é um artífice à moda antiga — trabalha com
afinco para fazer com que as coisas pareçam fáceis. Certa tarde
de dezembro, nos encontramos sob uma tempestade de neve no
Laurelton Boulevard, em Long Beach. As ondas estavam
grandes: esquerdas volumosas, de paredes compridas, bem
maiores que a altura de um homem, vindas do leste, todas cinza-
chumbo e irregulares, com uma horrível corrente para oeste.
Selya e eu parecíamos ser as únicas pessoas no oceano. Havia
um vento norte forte, terral. Tivemos que remar sem parar contra
a corrente. Quando um de nós virava para pegar uma onda, os
fragmentos de gelo que vinham da terra eram ofuscantes. Era
preciso encarar o deck da prancha, pressionar a borda sem ver
e, em seguida, surfar com o olhar enviesado. Selya pegou uma
onda longa e a surfou por uma quadra ou mais. Voltou com
dificuldade para o outside. Perguntei-lhe como tinha sido. “Como
manteiga”, berrou ele. Esse virou o bordão da sessão.
Estávamos cansados demais para falar mais que isso. Na
verdade, as ondas estavam excelentes, mais do que dignas do
tempo e do esforço. E fingir que aquele oceano tempestuoso e
feio do Atlântico Norte era fácil me pareceu, em alguma medida,
uma atitude perfeita.
Quando enfim chegamos à praia, uma hipotermia incipiente se
infiltrava em minha noção de tempo e espaço. Enquanto
caminhava com dificuldade, a prancha embaixo do braço e a
cabeça baixa para me proteger do vento, passando pelas
grandes casas de repouso de Long Beach, eu não sabia ao certo
que dia era, nem se estávamos na mesma rua coberta de gelo
onde havíamos deixado o carro. Sim, estávamos. Selya não
podia se dar ao luxo de ficar atordoado por causa do surfe. Ele
tinha uma apresentação naquela noite. Na verdade, Selya era o
astro de um sucesso de longa temporada na Broadway: Moving
Out, de Twyla Tharp. Trocamos de roupa no carro (isso foi depois
da casa alugada) e voltamos apressados para Manhattan. Eu o
deixei na porta do teatro. Ele entrou depressa, alguns minutos
antes da hora.

***

Meus pais tinham se mudado para Nova York em meados dos


anos 1990. Ou melhor, se mudado de volta para Nova York.
Enxerguei aquilo como um retorno triunfante, um grande “bote
isto na lista negra” para o fantasma de Joe McCarthy. Contudo,
quando falei isso, eles pareceram constrangidos. Para os dois,
essa história tinha ficado no passado. Eles voltaram porque os
filhos estavam na cidade. Michael se tornara repórter
investigativo no Daily News. Kevin era advogado trabalhista em
Manhattan. E Colleen estava perto: ela e a família moravam no
oeste de Massachusetts.
Os dois ainda trabalhavam com produção de filmes e
programas de TV, o que significava que iam com frequência para
Los Angeles ou outras locações. Mas o apartamento deles na
East 90th Street se tornou o novo ponto de reunião do clã,
sobretudo quando os netos começaram a chegar — as duas
filhas de Colleen e, depois, nossa Mollie. Para mim, era uma
segunda chance de, na meia-idade, me envolver outra vez com a
família que eu havia deixado jovem demais. Moll tinha uma
cadeirinha na garupa da minha bicicleta, e era um trajeto curto
pelo parque até a casa dos meus pais, onde sempre nos
sentimos muito bem-vindos. Comíamos na cozinha com os
cachorros aos pés e o noticiário da TV resmungando ao fundo.
Era impossível que eu me encaixasse no lugar onde parte de
mim ansiava por morar novamente. Não havia volta, é claro.
Ainda assim, eu ficava chocado com o conforto que sentia ao
ficar perto daquelas pessoas vivazes, carinhosas e
absurdamente familiares: meus pais.
De imediato, os dois estabeleceram uma vida social
misteriosamente intensa. Alguns de seus novos amigos eram, na
verdade, velhos amigos — pessoas do cinema e do teatro com
quem tinham trabalhado. Porém, eles também pareciam se
reinventar com uma facilidade enervante. Quando Frank McCourt
fez sucesso com a autobiografia Angela’s Ashes, revelou-se que
meus pais haviam se tornado amigos dele no Centro Irlandês de
Artes — ou talvez fosse a Sociedade Histórica Irlandesa
Americana. Eu nunca soubera que eles tinham qualquer
interesse pela Irlanda, mas, bem, os dois eram novos na cidade e
tinham um belo nome antigo irlandês. Iam a concertos, peças e
leituras com uma frequência impressionante. Minha mãe, em
especial, tinha um apetite cultural formidável. Meu pai atracou o
veleiro em Long Island e começou a explorar as águas locais.
Imaginei que sentisse falta da Califórnia. No entanto, quanto mais
viajávamos juntos, mais eu via que estava errado. Ele adorava
explorar baías e lugares novos. Nesse meio-tempo, minha mãe
logo começou a dizer que mal se lembrava de L.A. (Na verdade,
ela não chamava a cidade de L.A. Durante a vida toda, chamou-a
de Los Angeles, devido a alguma questão obscura de princípios
ou de orgulho de sua terra natal.) E, então, quase setenta anos
morando lá se dissiparam depressa nas névoas da memória.
Nova York agora era o lar. Falando assim, faço com que minha
mãe pareça uma perua. Ela não era. Na realidade, sempre
olhava para o futuro. Embora fizesse aulas de francês havia
anos, começara a estudar italiano também.

***

Caroline e eu cantávamos para Mollie dormir, primeiro em nosso


quarto, onde seu berço ficou por alguns anos, depois no quarto
dela. Criamos uma música com o nome de todas as tias, os tios,
os primos e os avós, celebrando como cada uma dessas
pessoas a amava e terminando com nossas próprias
declarações. Era uma canção soporífica e profundamente
emotiva e sempre a primeira a ser cantada. Depois, cada um
tinha a própria lista de canções. Eu ouvia a voz aguda e nítida de
Caroline pelo corredor, entoando, solene, “The Holly and the Ivy”.
Meu repertório era principalmente música folk dos LPs que minha
família tinha quando eu era criança — velhas canções
americanas, ou imitações posteriores cantadas por Joan Baez,
Pete Seeger e Peter, Paul and Mary. Além de um pouco de Bob
Dylan no início da carreira e, é claro, a canção do bobo do fim de
Noite de Reis.

Ao ficar homem de voz atroante,


com vento e chuva, com hei, com hô,
fugiam todos do grão tunante,
porque chovia todos os dias.

Essa música tinha se infiltrado em mim, é óbvio, além de


qualquer crítica. Eu cantava até Moll dormir, depois saía na ponta
dos pés.
À medida que Mollie crescia, eu me perguntava se ela ouvia
as letras. Cantávamos para niná-la, como um ritual, até seus oito
ou nove anos. Certa vez, perguntei a ela, só para ver o que diria,
sobre um verso na quarta estrofe de “Autumn to May”. Ela
parecia saber a letra inteira. Disse que o filhote do cisne virava
lesma, depois ave e, em seguida, borboleta, completando: “E
aquele que contar uma história maior será obrigado a mentir.”
Mollie Finnegan em Long Island, 2009

Fui à procura, como repórter, do lugar em Los Angeles onde


eu crescera. Ele não existia mais. As colinas estavam cobertas
de casas. A Mulholland Drive tinha sido pavimentada. Mudas
recém-plantadas haviam se transformado em sequoias.
Woodland Hills se tornara um subúrbio maduro. Entrevistei o sr.
Jay, meu professor de inglês favorito no ensino médio. Ele disse
que a escola tinha virado um inferno. Gangues étnicas brigavam
no estacionamento. (Armênios contra persas, contou.) As aulas
de Shakespeare tinham sido extintas havia muito. As famílias
com dinheiro mandavam os filhos para escolas particulares
agora. Se eu quisesse escrever sobre crescer em um bairro
residencial recém-criado, que era o meu objetivo, precisaria ir
pelo menos mais dois vales adiante.
Cheguei a Antelope Valley, no norte do condado de Los
Angeles. Todos os descontentes da região metropolitana se
concentravam ali, junto com as consequências do estouro da
bolha imobiliária, do encolhimento das indústrias de defesa e
aeroespacial e da redução de orçamentos públicos para tudo,
exceto prisões. Havia uma tensão racial sufocante nas escolas e
a metanfetamina se espalhava como uma epidemia. Acabei
escrevendo sobre alguns adolescentes que se debatiam,
tentando não se afogar, naquele tóxico lago urbano. Minha
reportagem se concentrava em duas gangues de skinheads em
guerra uma contra a outra: a primeira era antirracista, e a outra,
neonazista. Foi um tema difícil de abordar, mesmo antes de um
dos garotos que conheci esfaquear e matar um rival em uma
festa.
Aquele não era o lugar onde eu tinha crescido, nem mesmo
uma espécie de fac-símile atualizada. Era um mundo novo e frio,
com a mobilidade social em queda livre.
Fazer essa reportagem levou vários meses e foi uma
experiência perturbadora. Tentei tirar folgas de vez em quando,
programando-as para coincidir com previsões promissoras de
surfe. Eu ia de carro tarde da noite para um apartamentinho que
Domenic mantinha no norte de Malibu, dormia lá e, de manhã,
surfava com uma prancha emprestada em um pointbreak ali
perto. Essas manhãs eram ao mesmo tempo catárticas e
paradisíacas. Buganvílias se derramavam por penhascos pálidos.
Havia algas laminárias, zosteras, ondas azuis delicadas. Focas
gritavam, gaivotas piavam, golfinhos cantavam. Eu tinha a
sensação de que meu espírito estava envenenado — um
coquetel amargo de raiva, tristeza e desamparo — pela
reportagem em que trabalhava. O surfe nunca tinha feito tanto
sentido.
O surfe traça um belo fio de memória através de uma
variedade de trabalhos. Em 2010, quando precisei de uma
manhã livre depois de entrevistar vítimas de tortura policial em
Tijuana, ouvi falar de uma onda, uma esquerda lisa logo depois
da fronteira, e foi para lá que corri. Em 2011, estava em
Madagascar com uma equipe de especialistas em répteis que
tentava impedir caçadores ilegais de levar uma tartaruga rara de
casco dourado à extinção. Os integrantes da equipe eram
capazes de falar sobre tartarugas, cobras e lagartos o dia inteiro,
a noite inteira. Aparentemente, eles eram capazes de abrir
caminho pela mata sem cessar, em meio a um calor assassino,
se achassem que um bom espécime podia estar escondido
embaixo de uma pedra na região. Em determinado momento,
percebi que Selya e eu éramos quase a mesma coisa que eles —
deixando de lado a ciência e a defesa do meio ambiente —
quando se tratava de surfe. Éramos capazes de falar sobre
ondas até que qualquer um que não fosse surfista e estivesse
por perto, a começar por nossas esposas, fugisse horrorizado.
Fazíamos isso em saídas para surfar, por causa de revistas e
vídeos de surfe, em cafés na calçada na Broadway ou bebendo
shots de tequila, que Selya chamava de “sopa solta-língua”. Para
nós, o assunto era inesgotável, e seus pontos mais sutis eram de
fato infinitos. Em Madagascar, meus companheiros decidiram
lançar ainda outra expedição para ver mais uma tartaruga, mas
pulei fora e, depois do trabalho, fui até uma cidade costeira
chamada Fort Dauphin, onde encontrei uma prancha — de dois
metros, surrada, mas usável — e surfei ondas brutas e
entrecortadas pelo vento até ficar exausto, por três dias
seguidos, até eles voltarem.
Em 2012, uma reportagem me levou à Austrália. Era a
primeira vez lá desde que Bryan e eu deixamos Darwin. Eu
estava escrevendo sobre um boom na mineração impulsionado
pela China e uma magnata da indústria da mineração chamada
Gina Rinehart. Ela era a pessoa mais rica do país, com
tendências políticas de direita e certa obsessão nacionalista.
Minha apuração foi feita em parte em Sydney e Melbourne, mas
principalmente na Austrália Ocidental, onde estavam o minério de
ferro e a personagem da minha matéria. Achei a Austrália
mudada, menos insolente, menos indiferente à riqueza ou ao
status social, mais preocupada com seus bilionários — ou talvez
essa percepção se devesse ao simples fato de eu estar
escrevendo sobre uma bilionária. Procurei Sue, minha velha
amiga de Surfer’s Paradise que morava na costa ao sul de Perth.
Ela, pelo menos, continuava insolente como sempre. Bendita
seja sua alma desordenada. Agora, ela era uma avó inebriada
que morava em uma casa cheia de livros em uma baía
maravilhosa. “Aposto que você nunca pensou que eu fosse
ganhar um centavo”, disse ela, o que era verdade. Sue tinha, de
algum modo, transformado uma licença para coleta de mariscos
em uma vida confortável. Ela me aconselhou a lembrar que
Rinehart, que me passara a impressão de ser uma paranoica de
pavio curto, era a única mulher em um mundo masculino formado
por donos de minas. Tentei seguir esse conselho. O filho de Sue,
Simon, que morava por perto, me emprestou uma prancha e uma
roupa de neoprene e me explicou como chegar a um pico de
fundo de areia chamado Boranup. Era um pico rural, com água
azul-turquesa fria e clara, areia branca, grandes colinas cobertas
de arbustos, um monte de vans de surfistas estacionadas na
praia e nenhum prédio nas redondezas. As ondas alcançavam de
um metro e meio a dois metros, eram triangulares e claras; o
vento era terral. Surfei por horas, lentamente compreendendo os
bancos de areia. Minha última onda pareceu uma recompensa
pelo esforço: uma esquerda comprida borrifando água no alto
que me levou até o raso.

***

O surfe estourou, mas não sei bem quando. Em minha visão


estreita, ele sempre foi muito popular. Crowds eram um eterno
problema em picos conhecidos. Mas agora era diferente. O
número de pessoas surfando dobrou e tornou a dobrar — uma
estimativa de cinco milhões em todo o mundo em 2002, vinte
milhões em 2010 —, com garotos começando a praticá-lo em
quase todos os países com litoral, ou até mesmo apenas um lago
grande. Mais que isso: a ideia do surfe se transformou em um
fenômeno de marketing mundial. Logos identificadas com surfe
estampadas em camisetas, sapatos, óculos escuros, skates,
bonés e mochilas voavam das prateleiras nos shopping centers,
de Helsinque a Idaho Falls. Algumas dessas marcas bilionárias
começaram como lojinhas de short de surfistas na traseira de
uma van na Califórnia e na Austrália. Outras foram criações
corporativas posteriores.
Na verdade, faz muito tempo que o imaginário do surfe é
usado para vender produtos. Há cinquenta anos, os outdoors de
cerveja mostrando Rusty Miller dropando em Sunset eram um
clássico dos bares e das lojas de bebida nos Estados Unidos.
Nos territórios industriais inóspitos de New Haven, em
Connecticut, vi certa vez um outdoor retratando um cara no fundo
de um tubo — também em uma onda típica de Sunset — com
SALEM estampado em anéis de fumaça na parede da onda.
Empresas de álcool e tabaco, ávidas para terem seus nomes
ligados a um esporte saudável e visual, eram importantes
patrocinadoras de competições nos primórdios do surfe
profissional. Contudo, a onipresença assustadora e incongruente
das imagens de surfe hoje em dia é algo novo.
Há cinco pranchas de surfe vermelho-sangue afixadas a uma
parede de granito na Times Square. Passo pela praça em todos
os climas desde 1987, quando fui trabalhar para a New Yorker
pela primeira vez. Mas só comecei a me sentir furtivo ali nos
últimos anos. Em parte, isso se deve a essas pranchas. Elas são
todas monoquilhas de rabeta pin com um shape elegante,
exagerado e pontiagudo no bico. Não são pranchas de surfe
verdadeiras: servem apenas como decoração na vitrine de um
outlet da Quiksilver. No entanto, para mim, sua silhueta de gota
estendida lembra, visceralmente, uma época e um local (o Havaí
no fim da minha adolescência), quando as pranchas de um
shape bem parecido faziam a diferença nas ondas grandes. Além
disso, há o vídeo passando em múltiplos telões acima da mesma
loja. Suponho que, para qualquer pessoa na rua, essas imagens
sejam apenas mais um chamariz visual. A onda azul-turquesa
que corre de tela em tela? Eu conheço essa onda. Fica no leste
de Java, em frente a uma floresta selvagem. Bryan e eu
acampamos ali, em uma casa frágil numa árvore, em outra vida.
Por que eles têm que mostrar aquela onda? E o jovem relaxado
que a surfa? Eu sei quem ele é. É um sujeito interessante,
principalmente por causa das coisas que se recusa a fazer com
seu talento. Ele não compete nem faz as grandes manobras
óbvias nas situações óbvias. Seus patrocinadores, incluindo a
Quiksilver, pagam para que ele surfe de um jeito preguiçoso, com
estilo próprio. Trata-se de um Bartleby pós-moderno, admirado
no mundo do surfe por suas recusas. Então, por que o fato de eu
reconhecer aquele surfista pegando um tubo indonésio que me é
familiar em um vídeo na Times Square importa? Porque, às
vezes, sinto como se minha vida particular, um canto nada
pequeno da minha alma, estivesse sendo utilizada para vender
de tudo, de empréstimos pessoais a caminhonetes, em
propagandas que aparecem em todo lugar para onde eu olho,
incluindo, ultimamente, TVs de táxis.
Os surfistas esperam de forma deprimente que o surfe um dia
se torne, como patins in-line, fora de moda. Então, talvez,
milhões de pregos parem de surfar e deixem as ondas para os
fissurados. Porém, as empresas que vendem a ideia do surfe
estão determinadas, é claro, a “promover o esporte”. Alguma
pretensão underground pode ser útil para o marketing, mas, na
verdade, quanto mais mainstream, melhor. Enquanto isso,
milhares de empreendedores, a maior parte deles surfistas
desempregados, abriram negócios na praia para ensinar surfe
em dezenas de países. Hoje, os resorts costeiros incluem aulas
de surfe entre os serviços oferecidos. “Corte o surfe da lista de
coisas a fazer antes de morrer.” É improvável que escolas de
surfe para turistas acrescentem muitas caras novas aos picos
crowdeados onde surfistas experientes disputam ondas
escassas. Ainda assim, acho inquietante quando moradores
aleatórios de Manhattan que por acaso conheço anunciam
alegremente que surfam. Ah, sim, e eles dizem que aprenderam
nas férias do verão passado na Costa Rica.

***

Surfistas por aqui — locais de Long Island e Nova Jersey — são


estranhamente simpáticos. Nunca me acostumei a isso. Na
Califórnia e no Havaí, havia uma linha imaginária de
circunspecção, uma ideia a respeito do que era maneiro na água
— do que merecia ser dito e do nível da surfada, da onda ou da
manobra que era digna de um assobio de aprovação —, que
internalizei quando criança e não consigo desaprender. Nesta
costa, as pessoas assobiam para qualquer um, seja ele amigo ou
estranho, e para qualquer coisa que pareça mais ou menos
decente. Gosto da despretensão e da falta de esnobismo, mas,
ainda assim, uma parte irredimível de mim se contrai. Os picos
da grande Nova York são, ao contrário do estereótipo, pacíficos.
Nunca vi uma ameaça nem uma discussão raivosa na água aqui,
muito menos uma briga. Isso ocorre, em parte, porque os crowds
nunca são tão terríveis quanto em Malibu e Rincon e, em parte,
porque as ondas geralmente não merecem que se brigue por
elas. No entanto, o principal motivo é a cultura local. Certa
arrogância e autoabsorção que há muito se tornaram norma nas
costas e ilhas mais celebradas do mundo do surfe nunca se
enraizaram por aqui. É fácil começar uma conversa no pico com
um estranho aqui — já fiz isso centenas de vezes. As pessoas
são até ávidas por compartilhar conhecimento detalhado sobre
seus picos locais. Outro surfista de fora que conheço chama isso
de “aloha urbano”. Mas, na verdade, é mais suburbano, ou de
cidade costeira. Pelo menos, nunca conheci ninguém na água
que dizia morar em Manhattan. Brooklyn, algumas vezes, sim.
Selya é local em todos os lugares para onde vamos. Ele
nasceu e cresceu em Manhattan, mas, na adolescência —
durante um período crucial de desenvolvimento do surfe —,
morou na costa de Nova Jersey, e se sente completamente em
casa em Long Island. Na verdade, Movin’ Out é um musical
sobre garotos da classe operária em Long Island, com músicas
de Billy Joel. Selya interpretava uma espécie de rei do baile,
Eddie, que é mandado para o Vietnã e volta para casa com
problemas. Bastante musculoso, tenso, carismático, não muito
alto, ele era perfeito para o papel. Sua dança brilhava sob as
luzes. Quando nos conhecemos, ele perguntou se eu conhecia a
crítica de dança da The New Yorker, Arlene Croce. Eu não
conhecia. “Preciso dar um prêmio a essa senhora”, murmurou
ele. Procurei o tal texto sobre Movin’ Out. Nele, Arlene dizia que
Selya era “um dançarino absolutamente excepcional”. Ele
passara grande parte da carreira no American Ballet Theatre, no
início sob a direção de Mikhail Baryshnikov, antes de ir para a
Broadway. Ainda caminhava como um bailarino. Percebi que, em
uma entrevista para o The New York Times, Selya comparava a
dança ao surfe: “Tanto com a música quanto com as ondas, a
pessoa se submete a algo mais poderoso do que ela.” Achei que
ele tinha razão.
Buscar ondas com Selya é como mergulhar sob a superfície
dessa megalópole que chamamos de lar. Ele conhece atalhos,
piadas internas, bares locais, fatos curiosos. Selya entra em uma
lanchonete na Broadway ao amanhecer e pede um sanduíche de
ovo com um jeito de cliente habitual que, normalmente, só se vê
em filmes muito editados. “No capricho.” John Selya escuta
detestáveis programas esportivos no rádio com sorriso distante.
Desconfio de que ele seja capaz de descrever a técnica de cada
arremessador dos Mets tão bem quanto os radialistas. Assim
como Peter, Selya é uma ótima companhia para surfar. É
competitivo e tem autocrítica. É um remador muito mais forte do
que eu sou hoje em dia e pega uma onda atrás da outra. Seu
surfe é preciso, agressivo, explosivo — um balé. Ele também é
uma plateia de inteligência excepcional. Em uma tarde fria de
inverno em Nova Jersey, estávamos surfando ondas grandes e
difíceis em um pico que raramente frequentamos. Nossos picos
habituais nesse dia estavam grandes demais, todos fechando.
Mais tarde na sessão, remei na direção de uma onda da série
que entrou assobiando, balançada. Fiquei preso no lip —
xingando minha roupa de neoprene pesada e meus braços fracos
— e mal consegui completar o drop, cavando encolhido para
botar pressão na base de uma parede surpreendentemente alta e
escura. Completei a onda e saí dela à sombra de um penhasco
bem no inside. Perdi Selya de vista. Conforme eu voltava pelo
canal, me perguntando se ele teria visto aquele drop, avistei-o
longe no outside, boiando por cima de uma ondulação em uma
última coluna inclinada de luz do sol. Ele estava de costas para
mim, mas com um dos braços para o alto, de punho cerrado. Isso
respondeu a minha pergunta: ele tinha visto.
Em outro dia de inverno em Jersey, ainda maior e mais mexido
— o swell estava muito de leste; nosso palpite nesse dia não foi
dos melhores —, Selya disse: “Não estou inspirado.” Ele ficou na
praia. Selya não é um surfista de ondas grandes. Nem eu. Mas
não queria voltar para a cidade completamente derrotado. Então,
vesti a roupa de neoprene e entrei no mar. A temperatura da
água estava perto de zero, assim como a do ar, com um vento
oeste congelante. Um oceano marrom maligno. Tive uma sessão
horrível: perdi ondas, levei caldos. As ondas estavam enormes
para os padrões da Costa Leste, mas não estava bom. Deixei-me
levar até a praia. Quando voltei ao carro, Selya falou: “Desculpe
pelo cheiro de derrota aqui.” Durante a viagem para casa, acho
que consegui convencê-lo de que ele não havia perdido nada
além de caldos. Quando a silhueta de Manhattan se ergueu do
outro lado dos lodaçais e das docas da zona portuária da baía de
Newark, Selya disse: “Olhe isso. É como um recife gigante. A
rocha e o coral se projetando, toda a vida embaixo nas fendas.”
O trabalho de Selya o leva para lugares do mundo todo, e ele
sempre dá um jeito de surfar entre as apresentações em turnê.
No Brasil e no Japão, encontrou pranchas e ondas. Certa vez, foi
de Londres à Cornualha, uma viagem de cinco horas, para surfar.
No ano passado, me mandou uma mensagem da Dinamarca
com fotos de pequenas marolas cinzentas e horrorosas do mar
do Norte: ele estava todo animado, andando por cima de rochas
pontiagudas. Selya faz uma apresentação anual com o Balé do
Havaí, em Honolulu, em dezembro — o auge da temporada de
surfe em North Shore. Ele e a esposa, Jackie, que é cantora da
Broadway, voam para Porto Rico sempre que podem. Em 2013,
os dois alugaram uma casa no canto noroeste da ilha, uma zona
boa para cair na água, durante a temporada de surfe. Hospedei-
me com eles durante um swell tão sólido que fiquei feliz por ter
levado minha gun Brewer de dois metros e meio.
Às vezes, nós dois caçamos ondas longe de casa. Há alguns
anos, com um bando de outros surfistas, alugamos um barco no
oeste de Java. Em termos de surfe, a viagem foi um fracasso.
Ficamos ancorados por dez dias diante de uma ilha desabitada
no estreito de Sunda, conhecido por ter grandes ondas. Era o
auge da estação dos swells na Indonésia, mas as ondas
permaneceram pequenas. Selya levara uma bolsa de DVDs —
alguns filmes de Steve Buscemi e a série completa The Office, a
original britânica, com Ricky Gervais. À noite, ele os colocava em
um pequenino aparelho portátil, no porão sufocante onde nós
todos dormíamos. Assim, Gervais se tornou a improvável
mascote da viagem. Selya sabia os roteiros de cor. Era possível
ouvi-lo no pico, rindo sozinho com suas falas favoritas, imitando o
sotaque provinciano pretensioso de David Brent, o gerente do
escritório interpretado por Gervais, enquanto remávamos em
círculos atrás de ondas medíocres. Selya é um connoisseur da
vergonha. Ama a engenhosidade dos esforços desesperados
para manter a dignidade diante da humilhação. “Eu me
identifico”, explica ele. Perto do fim da viagem, sofri, ao que
parece, uma recaída da malária. Tive outros episódios como
esse, com pouca frequência, ao longo dos anos. Febre e
calafrios severos. Não havia cobertores grossos a bordo —
estávamos ancorados em seis graus sul. Por isso, Selya me
emprestou, quando os calafrios pioraram, um conjunto esportivo
de veludo — preto com detalhes em vermelho — que ele levara
para os voos de avião. Encolhi-me em meu beliche, congelando,
gemendo, vestido como um mafioso de Nova Jersey. Suei o
conjunto todo. Selya disse que não tinha problema. Podíamos
queimá-lo se um dia voltássemos a terra.
Peter Spacek estava nessa viagem. Quando a doença me
acometeu, ele ficou de olho em mim. Peter quase não surfou —
as ondas não valiam a pena —, mas fez muitos desenhos:
estudos atentos da vida nos recifes, da vida a bordo e das muitas
espécies de peixe que ele pegava. Nós dois colecionávamos
pedaços quebrados de coral azul e vermelho para nossas filhas.
***

Meu pai velejou com seu barco até a Flórida para o inverno. Não
era necessário — no nordeste do país, a maioria dos
proprietários de barco apenas os despacha de caminhão —, mas
agora ele estava basicamente aposentado, então tinha tempo.
Na primavera, juntei-me a ele para uma perna rumo ao norte,
começando em Norfolk, Virgínia. Navegamos por toda a
Chesapeake Bay, depois descemos o rio Delaware, fizemos a
volta em Cape May e subimos a costa de Nova Jersey. Ao rodear
Cape May, saindo da baía de Delaware, tivemos o nosso
tradicional quase desastre. Uma grande frota de pequenos
barcos pesqueiros de casco branco parecia estar trabalhando
nos baixios em frente ao cabo. Era uma manhã fria e clara. Nós
nos perguntamos o que podia estar acontecendo para atrair
tantos barcos. Os “barcos”, na verdade, eram ondas quebrando.
Não estávamos perto de nenhum ponto da costa, mas o sonar de
profundidade começou a ler seis metros, quatro metros, três e de
repente as ondas estavam quebrando por toda parte ao nosso
redor. Eu estava no leme, desviando delas, tentando
freneticamente encontrar águas profundas. O calado do barco
era de um metro e oitenta, e vi o sonar cair para um metro e
meio, um metro e vinte, um metro. A essa altura, eu estava com
o veleiro muito adernado, avançando pelos canais apenas para
manter a quilha longe da areia. As ondas não eram grandes, mas
não estavam apenas encapeladas — quebravam em uma água
com profundidade na altura do peito. Dava para ver o fundo. Era
pálido. Teria sido um lugar muito ruim para encalhar: água a
quatro graus, a quilômetros da costa. De algum modo,
conseguimos sair do baixio. Seguimos a motor na direção do mar
e revisamos nossas cartas náuticas. Sim, ali estavam eles.
Perigos horrendos. O canal navegável abraçava a margem do
Delaware. Depois de uma semana de navegação cuidadosa
através de baías rasas e canais estreitos, tínhamos visto o mar
aberto e ingenuamente relaxado. Ficamos abalados demais para
rir. Navegamos devagar na direção de Atlantic City, amarramos o
veleiro e pegamos um ônibus para Nova York.
Tinha sido uma semana boa. Ao acompanhar a costa de
Chesapeake, entramos em enseadas que seriam impossíveis de
encontrar de carro. Comemos caranguejos duros, caranguejos
moles, caranguejos azuis, caranguejos fêmeas. Jogamos
conversa fora com garçonetes e proprietários de lojas de
equipamento. Meu pai e eu sempre tivemos uma afeição que
beira a compulsão por verificar lugares obscuros. Nossas
esposas brincavam com os desvios sem sentido que fazíamos
nas viagens em família. Ao fazer produções cinematográficas e
televisivas, a parte favorita do meu pai era a busca por locações.
E aquilo de que mais gosto em meu trabalho é seguir minha
curiosidade além da curva, depois do cume, no interior do
mercado ao ar livre, à procura de fatos, fazendo perguntas, indo
aonde a história pode parecer rica. Certa noite, com o barco
atracado a uma poita embaixo de um penhasco coberto de
carvalhos, bebendo a vodca tônica que se permitia, meu pai me
perguntou sobre a Somália. Tinha lido minha matéria sobre o
país, mas queria saber como era o lugar e como eu me sentira lá,
como as pessoas comuns sobreviviam, o que comiam, como eu
transitava por lá. Contei tudo, e ele ouviu com muita atenção, às
sombras que se aprofundavam naquela enseada pacífica,
minhas descrições da Mogadício bombardeada, dos xales
compridos usados pelas mulheres, dos pistoleiros adolescentes
que precisei contratar como guarda-costas, dos carros de
combate conhecidos como “técnicos” que esses garotos dirigiam
por lá e que eram usados para a batalha e como abrigo para
dormir. Ele absorveu a tragédia e cada detalhe daquele mundo
distante com um assombro tão autêntico que me senti honrado
de lhe contar as notícias. Era um lugar que meu pai sabia que
nunca visitaria, mas eu tinha estado lá, e ele queria saber como
era. Se sentia alguma preocupação em relação a minha
segurança, ele guardou para si. Nós sempre tivemos sorte —
éramos burros, mas sortudos, como ele gostava de dizer.
Tínhamos essa curiosidade insaciável em comum.
O lugar mais estranho que encontramos naquela semana se
chamava Delaware City. Era uma cidadezinha na extremidade de
um canal do rio Delaware que corria até Chesapeake —
conectando a Filadélfia e outros pontos do norte a Baltimore e
Washington — antes de ser suplantado por um canal maior e
mais profundo construído em outra rota. A sossegada rua
principal de Delaware City era um monumento a seu apogeu:
uma fileira impressionante de grandes prédios de tijolos do
século XIX. Jantamos em um hotel grandioso construído em
1828. Éramos os únicos clientes.

Bill e Pat Finnegan em Yosemite, Califórnia, anos 1990

Aquela jornada no veleiro pareceu uma viagem no tempo, na


qual atravessamos as camadas de um país mais velho, de nossa
própria história, compartilhada ou não. Perguntei a meu pai se
ele mantivera contato com alguém de Escanaba, sua cidade
natal. Ele literalmente estremeceu diante da ideia. Não. Mas não
seria interessante aparecer, digamos, na reunião de sessenta
anos de formatura do ensino médio, que se aproximava? Não.
Ele falou que preferiria cortar fora o braço direito. Por quê?
“Porque eu precisaria contar o que aconteceu comigo”,
respondeu ele. “E o que eu vou dizer? O que sou ‘produtor de
Hollywood’?” Eu não entendia o que havia de tão terrível nisso.
Mas não sou do norte do Meio-Oeste.
Em determinado momento, quando nos afastávamos de
Annapolis, ele disse: “Você tem o hábito de deixar coisas por
dizer, de varrê-las para debaixo do tapete.” Levei um susto, fiquei
nervoso. “Talvez seja hereditário”, acrescentou.
Perguntei-me que coisas ele tinha em mente. Meu pai parecia
estar se referindo a ressentimentos. Será que eu tinha tantos
assim? Tempos antes, eu o culpara em segredo por minhas
desgraças, pela angústia que me atormentara na faculdade
depois de Caryn me deixar. Eu pensava que a devoção dele à
minha mãe, sua dependência emocional dela, tinha me dado um
mau exemplo, um modelo de amor que acabara me arruinando.
No entanto, fazia tempo que eu abandonara essa ideia, esse
ressentimento absurdo. Na verdade, havia várias coisas que
estava grato por ter deixado de dizer. Ainda assim, o comentário
me assombrou. E me assombra até hoje. Todas as coisas que eu
gostaria de ter dito quando tive a chance.
Um momento em especial vem à mente de tempos em
tempos. Estávamos seguindo a motor pelo canal Chesapeake e
Delaware — o grande, que não sai na pequena Delaware City.
Um tremendo rebocador capaz de navegar em águas oceânicas
passou roncando por nós, arrastando uma barcaça. Meu pai,
vestindo uma capa de chuva com capuz, estava parado junto à
amurada, com os braços para baixo nas laterais do corpo,
olhando para o alto a fim de ver a embarcação passar,
aparentemente encantado com a ponte altíssima e a pintura
reluzente vermelha e branca. Lembro-me do nome do barco:
Diplomat, em letras douradas na popa. No convés de popa, um
marinheiro ruivo e musculoso fumava; era jovem, com braços
enormes cruzados sobre o peito. Parecia estar fazendo pose
quando seu olhar passou por nós. Papai ficou imóvel,
assombrado. Fiquei sensibilizado com seu êxtase. Abismado,
tocado. Admirei a espontaneidade dele. Mas havia também algo
alarmante em sua imobilidade, na maneira como seus braços
estavam estendidos para baixo.

***

Tavarua foi uma onda dos sonhos por muito tempo. Era famosa
— pelo menos no mundo do surfe — por ser quase perfeita, mas
também pela exclusividade, já que era particular. Era a única
grande onda do planeta que não sucumbira à tragédia dos
lugares públicos. Ela não se tornara terrivelmente crowdeada, o
que a teria estragado para todo mundo. O resort dos americanos
havia prosperado. Para os surfistas contrários a ter uma onda
reservada para clientes pagantes, essa situação uma aberração.
A princípio, fiquei do lado deles. Eu escrevera sobre privatização
em diferentes contextos, inclusive sobre a água municipal na
Bolívia e a manutenção do metrô em Londres; e em geral eu era
contra iniciativas desse tipo. Também tinha minhas opiniões em
relação ao resort, enraizadas naqueles velhos dias na ilha com
Bryan.
Entretanto, como surfista, eu era tão suscetível quanto
qualquer outro à fantasia de ondas espetaculares sem crowd.
Todos vivemos em um mundo decadente, pensava. Eu ansiava
surfar aquela onda outra vez. Mas o governo de Fiji, na época
uma ditadura militar, matou a fantasia de Tavarua em 2010,
quando cancelou do nada o acordo de “gerenciamento do recife”
com o resort. As ondas foram abertas ao público, o que significou
na prática que foram abertas a operadoras turísticas
especializadas em surfe. Barcos repletos de surfistas logo
passaram a chegar a Tavarua, partindo de hotéis e marinas nas
proximidades a qualquer indício de swell e transformando o pico
no típico frenesi malthusiano.
Mas, antes que isso acontecesse, virei hóspede frequente do
hotel. Começou em 2002. O resort funcionava assim: grupos de
cerca de trinta pessoas alugavam o local inteiro por uma semana,
e a maioria deles voltava todo ano; naquele ano, um grupo com
base na Califórnia me convidou a preencher uma vaga. Não
pensei duas vezes. Eu ia fazer cinquenta anos, e Tavarua estava
bem distante de minhas convicções sobre as privatizações.
Queria surfá-la outra vez enquanto ainda podia.
O resort era simples. Dezesseis bangalôs, refeições
comunitárias. Parecia que os donos tinham feito algumas
explosões no recife para abrir o canal para barcos, mas a onda
não mudara. A mesma esquerda rodando boa demais para ser
verdade disparando pelo recife à velocidade máxima. Surfá-la era
como uma torrente de sensações e lembranças. O swell azul
quebrava longe no recife, com desenhos intricados na parede, o
coral impiedoso. O momento crítico que parecia durar para
sempre, a sensação irreal de abundância. Eu tinha ficado um
pouco mais lento nos vinte e quatro anos desde que a surfara
pela última vez, e a onda, em especial o drop, continuava rápida
como sempre. Mas, com minha longa experiência, eu era sagaz,
ainda conseguia completá-la, ainda conseguia surfá-la de
maneira respeitável. O pico não estava mais vazio, é claro. Era
preciso dividi-lo com outros hóspedes. Mas isso era simples. O
pico do drop, que tínhamos descoberto antes usando dois
coqueiros altíssimos, agora era determinado pelo reflexo de um
espelho no bar do restaurante do hotel.
Na ilha, eu gravitava em torno de nosso velho ponto de
acampamento. A estrutura para secagem de peixe na qual eu
dormia havia desaparecido, mas, fora isso, o local estava
inalterado. A vista para a onda, as ilhas em frente. A areia
áspera, a brisa suave. As cobras mortíferas, as dadakulachi,
agora eram raridade. Senti-me transportado para um mundo
novo cheio de mimos. Havia cerveja gelada. Havia cadeiras.
Havia um heliporto no local onde antes os pescadores
empilhavam lenha para fazer as fogueiras de sinalização.
Perguntei-me o que o pequeno Atiljan, que dormira em um ninho
de folhas verdes, fazia agora. Será que era pescador e tinha os
próprios filhos? Muitos funcionários do hotel eram aldeões de
Nabila, mas apenas um ou dois tinham etnia indiana. A
democracia fora destroçada por uma série de golpes militares
tramados por nacionalistas étnicos do lado fijiano. Pessoas de
etnia indiana haviam sido transformadas em cidadãos de
segunda classe. O resort de Tavarua tentara agradar o regime
militar ao receber uma competição profissional de surfe em uma
época em que as ligações esportivas de Fiji com o mundo tinham
sido em grande parte eliminadas pelas sanções internacionais.
Quando perguntei a uma jovem e delicada bartender de Nabila o
que ela achava dos atos do governo contra a democracia e a
etnia indiana, ela respondeu timidamente que apoiava o governo.
“Eles são a favor dos fijianos”, opinou.
Depois de eu perguntar — em vão — sobre Bob e Peter,
nossos antigos barqueiros, alguns caras mais velhos de Nabila
que agora trabalhavam em Tavarua descobriram quem eu era.
Eles me trataram como um primo que não viam havia bastante
tempo e riram muito à minha custa. Eu era o americano que não
conseguira abrir um hotel. Toda semana o resort organizava uma
coisa chamada “Noite de Fiji”, com tambores, kava e discursos
em fijiano feitos por anciãos da aldeia para os hóspedes. Eu me
vi entremeado aos discursos, tendo participado da história da ilha
e da chegada do surfe. Nenhum de meus colegas hóspedes
percebeu, mas todos os fijianos no show balançaram a cabeça,
conscientes, rindo. Depois, me davam tapinhas simpáticos no
ombro quando nos encontrávamos nas trilhas da ilha. Imaginei
que eles soubessem só de olhar que, na verdade, eu não tinha o
necessário para abrir e administrar um negócio em Fiji.
Aparentemente, um dos surfistas americanos fundadores
fornecera o capital. Havia muito ele tinha se retirado, vendendo o
negócio para outros investidores. O outro fundador era o cara
durão responsável pela construção daquele pequeno império na
selva tropical. Agora, ele morava na Califórnia e só fazia visitas
ocasionais. Tinha uma casa grande encravada na floresta no
lado sul da ilha.
Eu tinha medo de escrever a Bryan sobre minha visita. Ele
estava à espera de um relatório. E, na realidade, não se opôs,
como achei que fosse fazer, ao fato de eu me beneficiar das
ondas privatizadas, transformadas em caras commodities do
resort. (Alojamento e alimentação custavam cerca de 400 dólares
por noite.) Bryan nem mesmo pareceu enojado com minha
descrição da Noite de Fiji. Estranhamente, o que o deixou mais
revoltado foi a imagem de uma partida de vôlei entre os
funcionários e os hóspedes. “Imaginei ‘sorriso no rosto’ e puro
veneno por dentro”, escreveu ele. No entanto, a reação dele a
meu relatório foi complexa e reflexiva, cheia de raiva, piadas,
inveja, assombro e, como sempre, autocrítica. Ele jurou fazer
viagens mais frequentes à costa do Oregon, onde ia surfar de
vez em quando.
Os donos do resort haviam descoberto uma segunda onda,
também uma esquerda longa, em um recife em mar aberto cerca
de três quilômetros ao sul de Tavarua. Batizaram o pico de
Cloudbreak, e, na verdade, era ele que tornava o resort viável. A
onda da ilha, embora mundialmente famosa pela perfeição, era
inconstante demais para sustentar um negócio de luxo com
rotatividade semanal. Era comum que passasse uma semana
sem quebrar direito. (Os donos a apelidaram, de forma
imperdoável, de “Restaurants”.) Cloudbreak, que pegava todo
swell que passava, era muito mais constante. Barcos iam até lá o
dia inteiro e ancoravam no canal enquanto os hóspedes
surfavam. Cloudbreak era maior, mais sinuosa e mais aguçada
que a onda da ilha, com muito mais imperfeições. Ela possuía
diversos picos de drop e muitas ondas insurfáveis. Mas tinha a
própria magnificência. Comecei a acordar ainda no escuro, pegar
o primeiro barco e surfar Cloudbreak ao amanhecer, aprendendo
aos poucos as referências dos picos. Se você fizesse algumas
triangulações básicas, as montanhas de Viti Levu, oito
quilômetros a leste, serviam de ponto de referência para sua
localização no longo recife liso e brilhante.
Cloudbreak, Fiji, 2005

Quebrei uma Owl novinha ali naquela primeira semana. Os


pedaços foram para uma pilha grande de pranchas quebradas
que apodrecia na floresta, atrás do barraco dos barqueiros da
ilha. Supus que todas aquelas pranchas fossem destroços de
Cloudbreak. A onda tinha reservas infinitas de poder
subaquático. Nesse sentido, era como a ilha da Madeira. No
entanto, ela não me assustava como a Madeira, em parte porque
era muito mais mapeada por outros surfistas em todas as
condições, mas principalmente porque não tinha rochas nem
penhascos. Era possível atingir o fundo, sobretudo na seção do
inside, onde ela ficava tão rasa quanto a onda da ilha. Contudo,
ao levar um caldo ou ficar preso em seu interior, você sempre
podia se deixar conduzir por ela por cima do recife. A violência ia
se dissipando, assim como ocorre na maioria dos lugares,
conforme você era varrido na direção da costa. Em marés
extremamente baixas, o recife rompia a superfície da água, e era
possível caminhar nele até um lugar bom para mergulhar. Por
falar nisso, havia salva-vidas — os barqueiros, que ficavam de
olho nos hóspedes. Em dias grandes, eles ficavam no canal com
jet skis e avançavam até a zona de impacto para pegar quem
estivesse em apuros. Durante aquela primeira semana, um jet ski
foi me buscar duas vezes. Dispensei a ajuda em ambas — eu
estava bem. Levei Cloudbreak a sério, mas percebi que minha
década de viagens à ilha da Madeira, a picos de surfe onde se
deixar levar pela onda até a costa não era uma opção para
sobrevivência, me habituara aos perigos normais do oceano.
Eu nunca passaria em Tavarua a quantidade de tempo que
tinha passado na ilha da Madeira. Agora que Mollie era o centro
de nossas vidas, eu não desejava fazer isso. Mal podíamos nos
dar ao luxo de pagar pelas viagens que eu fazia. Ainda assim,
tornei-me um frequentador habitual de Cloudbreak, indo até lá
ano após ano e passando seis, oito horas por dia na água. Os
grupos com quem viajei eram bem variados. Havia empreiteiros
republicanos da Flórida, com seus filhos prepotentes, e pessoas
da indústria do cinema, com seus filhos prepotentes. Jovens
figurões do Havaí viajando com a grana dos patrocinadores.
Alguns dos principais profissionais do mundo iam até lá com
frequência. Domenic foi algumas vezes nos primeiros anos. Ele
morava em Malibu e estava no segundo casamento, feliz, com
quatro filhos pequenos. Ainda ria de minha autoironia, e foi um
sonho surfar com ele no Pacífico Sul. Mas viagens centradas no
surfe sem a família logo pararam de fazer sentido para Domenic.
Nunca falei com Bryan sobre um possível retorno dele àquele
lugar. Fiz algumas amizades em Tavarua, com destaque para
dois californianos, Dan Pelsinger e Kevin Naughton, que tinham
quase a minha idade e, como eu, ainda gostavam muito de
surfar. Passamos a fazer viagens de surfe de baixo orçamento
juntos — México, Nicarágua, Indonésia. Mas as viagens para as
quais eu treinava, economizava e vivia eram para Fiji.

***

“As pessoas que conheço em Nova York estão sempre prestes a


voltar para o local de onde vieram a fim de escrever um livro ou a
permanecer em Nova York para escrever um livro sobre o local
de onde vieram”, disse A.J. Liebling em “Apology for Breathing”,
um breve ensaio sensacional. Liebling fingia se desculpar por ser
de Nova York, uma cidade que amava com precisão e
abundância. Agora sou um desses nova-iorquinos sempre
prestes a voltar para o local de onde vieram. Mas comigo não é
questão de fazer as malas ou de ficar onde estou, mas de estar
sempre pronto a deixar minha mesa de trabalho e cancelar
compromissos para me jogar em algum trecho próximo de
oceano no momento em que as ondas, o vento e as marés
possam conspirar para produzir algo surfável. Esse trecho de
oceano extraordinário e fugaz é minha terra natal.
Na verdade, este é um livro sobre esse lugar incrustado de
mitos.
Ao observar minhas frequentes deserções repentinas de meu
posto, um editor de conteúdo web da The New Yorker sugeriu
que eu tentasse escrever um blog sobre surfe em Nova York.
Achei que parecia uma boa ideia. As escapadas do trabalho e a
queda na produtividade podiam ser transformadas em textos
interessantes que apresentassem o leitor a, como talvez
aparecesse em um subtítulo jornalístico, “um submundo de
caçadores de ondas urbanos”. Era provável que nossas
estranhas devoções, nossas frustrações, nossas pequenas
vitórias e nossas grandes peculiaridades, além de alguns
personagens da praia e de fotos, dessem um blog interessante.
Eu me vi criando mentalmente posts vigorosos e enigmáticos
enquanto caminhava para casa, semicongelado na via expressa
Van Wyck.
Como cortesia, mostrei o projeto do blog para os caras com
quem mais surfo. “Não”, disse um. “Sem chance”, falou outro.
Eles não queriam que nossos picos fossem expostos. Não
queriam ser vistos como meus coadjuvantes. Blogs são idiotas.
Objeções aceitas, plano engavetado.
Em geral, informo às pessoas quando estou atuando como
jornalista. Já livros de memórias se enquadram em uma área
cinzenta quanto ao aspecto moral. Gente que não tem uma vida
pública não espera que se escreva sobre ela, ainda mais se
quem escreve é alguém próximo. Eu sempre mantive diários,
com mais ou menos afinco. Mas a ideia de um livro contando
minha vida no surfe, principalmente sobre as pessoas
desavisadas com as quais persegui ondas, é relativamente
recente. Poucos de meus companheiros foram alertados.
Já trabalhando no livro, apresentei a ideia, esperando o pior,
aos caras que surfavam comigo em Nova York. Estávamos
voltando para casa pela Van Wyck. Eles ficaram
surpreendentemente entusiasmados. Por alguma razão, para
eles um livro tinha menos objeções do que um blog — talvez
menos verbos no presente, uma traição de privacidade menos
inerente.
“John vai estar nele?”, perguntou o Lobbyist.
Ele se referia a Selya, que dirigia.
“Sou uma mera nota de rodapé”, disse Selya.
Isso não é verdade, como está comprovado.
Mas eis uma verdadeira nota de rodapé: Barack Obama não
acreditou em mim quando lhe contei onde tinha estudado no
começo do ensino médio. Isso foi no início de 2004, antes de ele
ficar muito famoso. Eu estava escrevendo uma reportagem sobre
Obama e fiz uma brincadeira sobre ele ter estudado na Punahou
School, a melhor escola preparatória do Havaí. Estávamos em
um restaurante com temática caribenha em um pequeno
shopping em Hyde Park, Chicago. “Nem ferrando”, disse ele,
rindo. (Não foi exatamente o que ele falou, mas nós estávamos
em off.) Estudei, sim, na Kaimuki Intermediate por um tempo.
Mas ninguém ali sabia que eu iria escrever sobre eles. Nossas
vidas estavam em off. Essa é a parte complicada. Fatos são
fáceis.

***

O arrebatamento de meu pai na amurada do barco não era


apenas isso. Era mal de Parkinson. Os sintomas começaram
devagar, depois nem tanto. A doença o levou de nós
mentalmente. A vida dele se tornou um tormento. Meu pai não
dormiu por um ano. Morreu em novembro de 2008, nos braços
de minha mãe, com os filhos ao redor. Os dois foram casados por
cinquenta e seis anos.
O último ano de vida dele deixou minha mãe arrasada de um
jeito que eu nunca vira. Ela sempre foi magra, mas ficou seca e
abatida. Voltou a sair — indo a concertos, peças de teatro,
cinema — com amigos e comigo. Ainda era uma entusiasta —
me lembro de como gostou de Inverno da Alma, de como odiou
Avatar —, mas seus pulmões começaram a apresentar
problemas. Ela teve bronquiectasia, uma doença respiratória que
causa, entre outros sintomas, dificuldade de respiração. Isso
minou suas forças. Uma vida inteira em meio à poluição de Los
Angeles teve sua parcela de culpa. Nós a levamos de férias a
Honolulu e alugamos uma casa no antigo bairro perto de
Diamond Head. O quarto dela tinha vista para o mar. As três
netas se encolhiam na cama grande com a avó. Minha mãe disse
que não podia estar mais feliz.
Nós dois tivemos um momento engraçado no verão seguinte.
Foi a última vez que ela foi à praia — uma tarde ensolarada e
fresca em Long Island. Minha mãe estava tão frágil que a
enrolamos em cobertores e a pusemos ao sol, fora do alcance da
brisa, de frente para as ondas. Suas netas se encolheram em
torno dela para aquecê-la. Comentei que, embora terríveis, as
ondas pareciam surfáveis. O vento oeste levantava uma direita
rápida da altura da cintura perto da areia. “Vá surfar”, disse ela.
Eu não tinha uma prancha comigo, mas Colleen tinha um
pranchão na caminhonete. Era pesada, grande e antiga,
comprada em uma venda de garagem com propósitos
indeterminados. Apesar de revirar os olhos, Caroline assentiu.
Saí correndo e peguei algumas ondas. O pranchão era ideal para
deslizar pela arrebentação perto da areia, e voei ao longo da
praia, fazendo manobras à moda antiga nas ondinhas merrecas
até bater na areia. Voltei correndo para nosso pequeno
acampamento nas dunas. Os olhos azuis de minha mãe
brilhavam. Senti-me como se tivesse dez anos — me exibindo
para minha mãe —, e ela disse, com um sorriso: “Você estava
igualzinho a quando era pequeno.” Era o pranchão antigo. Todos
os outros estavam conversando e rindo. Será que alguém mais
tinha visto minhas ondas? “Não”, respondeu minha filha. “Vá
pegar outra.”
Conforme passou a sentir menos firmeza nas pernas, minha
mãe começou a andar mais depressa. Ela sempre caminhara
depressa, mas agora era diferente: uma corrida cambaleante
para a frente que fazia com que você quisesse correr atrás dela
para prevenir um acidente. Quando ela caiu, eu me culpei.
Estávamos voltando para casa do pneumologista e eu a deixei
sozinha, sem apoio, por alguns segundos na East 90th Street.
Virei-me e vi que estava tentando dar um passo grande demais.
Caiu para trás antes que eu pudesse segurá-la e quebrou a
pelve. Com isso, ficou de cama. Mollie e eu começamos a passar
quase todas as tardes com ela. Velhos amigos da Califórnia a
visitaram. Michael, que agora trabalhava no Los Angeles Times,
aparecia sempre que dava. Assim como Colleen e a família, e
Kevin e o parceiro.
Mas na maioria das noites éramos só nós três — Caroline
estava presa em um longo julgamento federal. Éramos um trio
aconchegante. Moll se enroscava com um livro e minha mãe e eu
conversávamos sobre reminiscências, assistíamos à TV ou
solucionávamos os problemas do mundo. Ela mantinha um
interesse aguçado pelos meus projetos, e não usou eufemismos
quando lhe mostrei rascunhos que achou arrastados. Sua ironia
estava intacta. Minha mãe sempre ironizara o savoir-faire
desajeitado, e um de seus gestos era pressionar o interior da
bochecha com a língua, inclinar a cabeça, jogar o cabelo e dizer:
“Vejo você amanhã.” Isso era o que pessoas que não tinham
muita coisa acontecendo na vida, cujo mundo era pequeno,
diziam umas às outras, de maneira leve, ao se despedir. Certa
noite, enquanto Mollie e eu juntávamos nossas coisas a fim de ir
para casa, ela fez a velha inclinação de cabeça e, para minha
surpresa, disse “Até amanhã” com uma ruga a mais de diversão
triste. Então tínhamos nos tornado esse tipo de família. Nosso
mundo com certeza havia encolhido. Minha mãe estava
mudando. Enxergava-me por completo agora. Amor sem medo,
inabalável. Ela e Mollie pareciam, se é que era possível, ainda
mais sintonizadas. Minha mãe não acreditava em vida após a
morte. Isso era tudo.
Ela foi tomada por náusea crônica. Isso matou seu apetite, e
ela foi enfraquecendo. Seu olhar para o futuro enfim cedeu.
Espalhamos as cinzas dela, e as de meu pai, no mar, diante de
um lugar chamado Cedar Point, perto de Sag Harbor, onde eles
sempre velejavam.

***

É impossível não odiar o modo como o mundo segue em frente.

***

Percebi que estava ficando mais incauto, mesmo antes da morte


de meus pais. Em Dubai, ao trabalhar em uma pauta sobre
tráfico de pessoas, pisei nos calos de traficantes de escravos
uzbeques e seus protetores e precisei deixar o emirado às
pressas. Ao escrever sobre o crime organizado no México,
adentrei mais a cova do leão do que deveria. Esse era o tipo de
trabalho que eu jurara não fazer mais depois que Mollie nasceu.
Os mesmos impulsos apareciam em meu surfe. Fui a Oaxaca
para surfar Puerto Escondido, que em geral é considerado o pico
de fundo de areia mais pesado do mundo. Quebrei duas
pranchas e voltei para casa com um tímpano perfurado. Eu não
estava me transformando em um surfista de ondas grandes —
nunca teria a coragem necessária para tal —, mas estava me
enfiando em lugares aos quais não pertencia. Nos dias maiores
em Puerto Escondido, eu era o cara mais velho na água, com
décadas a mais do que os outros.
No que eu estava pensando? Gostava da ideia de envelhecer
com graça. Afinal de contas, a alternativa era mortificante. No
entanto, era raro eu refletir sobre minha idade. Simplesmente não
podia deixar passar nem a menor chance de pegar uma grande
onda. Seria essa uma maneira de viver o luto ao contrário,
desprezando a morte? Eu achava que não. Algumas semanas
depois de meu aniversário de sessenta anos, entrei em dois
tubos, de ponta a ponta, em Pua‘ena Point, no North Shore de
Oahu. Foram os tubos tão profundos e tão longos quanto
qualquer um que eu pegara desde Kirra, mais de trinta anos
antes. As duas ondas me permitiram sair delas intocado. Estar ao
lado de tamanha beleza — mais que ao lado, imerso nela,
perfurado por ela — era o que importava. Os riscos físicos eram
secundários.
Para uma busca de ondas obsessiva antes-que-seja-tarde-
demais, Selya era uma companhia excelente. Ele tinha feito
quarenta anos, e os papéis de protagonista começaram a rarear.
Selya afirmou que ainda era capaz de saltar, erguer e segurar as
parceiras, que continuava dançando tão bem quanto antes. Mas
rostos e corpos mais jovens tinham preferência. Em 2010, ele
conseguiu um papel grande em um espetáculo de Twyla Tharp
inspirado nas músicas de Frank Sinatra. Para mim, o melhor
número da produção era seu solo ao som de “September of My
Years”. Era contido, quase reflexivo, e elegante, e ninguém podia
deixar de perceber o simbolismo. “Eu queria que o solo fosse a
cara de John”, disse Twyla Tharp ao Times. Depois de cento e
oitenta e oito apresentações na Broadway, Selya caiu na estrada
com o espetáculo, atuando como diretor residente, enquanto
ainda dançava nele. Coreografava, dava aulas e escrevera um
roteiro. E, ainda assim, as oportunidades de trabalhar como
dançarino estavam diminuindo. Ouvi alguém em uma festa
perguntar a John sobre seus futuros projetos. Selya mencionou
um asteroide que vira no noticiário, que vinha alarmando as
pessoas por se aproximar demais da Terra, e disse que torcia por
um impacto direto. Esse era o melhor futuro que enxergava para
a carreira.
Ele canalizava sua fúria no surfe. Transformava dias de
marolas em treinamento, como se estivesse em uma pista de
skate, sugando até o último grama de energia de ondas na altura
da cintura. Seria possível que ainda estivesse melhorando? Sua
atenção aos pontos mais refinados da técnica era total. Ele era
motivado e tinha uma paciência infinita. Aperfeiçoou seu estilo,
pegando mais pesado ao mesmo tempo que fazia tudo parecer
fácil. Enxergava sutilezas de desempenho que eu não havia
percebido em toda a minha vida. Segundo Selya, depois de uma
onda bem-sucedida, caras da Costa Oeste passavam a mão no
cabelo. Já os australianos afirmavam a mesma coisa limpando o
nariz. Parecia bobo demais para ser verdade, porém, ao assistir
a um vídeo de surfe, ele dizia: “Legal! Agora limpe o nariz.” E,
bem na hora, o surfista fazia isso. “Estilo.”
Sempre que havia um swell de noroeste, se não estivesse
preso na Dinamarca ou em Dallas, Selya estava pronto para
correr em direção ao leste ou ao sul, dependendo dos ventos. Ele
recebia dicas sutis sobre que bancos de areia e quebra-mares
podiam estar funcionando a partir de posts no Instagram de
certos profissionais locais, e eles raramente nos conduziam ao
lugar errado. Quando Jackie ia trabalhar fora da cidade, Selya ia
lhe fazer companhia, e, se o destino fosse qualquer lugar perto
da costa, ele levava pranchas. John esteve em Boston durante
uma série de swells que pareceu produzir ondas em cada ponta
de terra adentrando o mar da Nova Inglaterra. Suas mensagens
de texto eram extáticas.
Um desses swells foi o furacão Irene. Peguei a borda dianteira
do Irene em Montauk. Estava excelente. Depois, corri para casa
a fim de passar a noite de ventos fortes com Caroline e Mollie.
De manhã, depois que a tempestade chegou ao interior do
continente e assolou Vermont, os ventos dobraram para oeste, e
eu, com permissão da família, fui de carro até Nova Jersey. Os
surfistas da Costa Leste têm uma relação mórbida com os
furacões do Atlântico, ofegando enquanto eles despejam
destruição nas ilhas do Caribe e, às vezes, na própria Costa
Leste dos Estados Unidos. Nesse sentido, Irene foi ruim. (Sandy
foi ainda pior.) Nova Jersey não foi atingida com força, mas,
quando cheguei, as praias ainda estavam fechadas,
desnecessariamente, por ordens do governador. (Chris Christie
anunciou ao público, antes do Irene: “Saiam da droga da praia
(...) Vocês já maximizaram seu bronzeado.”) O surfe estava
grande e limpo, e o vento diminuía. Estacionei a algumas
quadras da praia, fui pé ante pé até a costa e surfei por horas.
Minha onda favorita no Leste, uma direita ruidosa que dava em
um quebra-mar, começou a funcionar no fim da tarde. Estava
quase grande demais, porém não havia mais ninguém na água, o
que significava que eu podia escolher minhas ondas com cuidado
entre as séries arrumadas e numerosas. Peguei as que
afunilavam para o norte. Eram escuras, guturais e ótimas. Havia
luzes de sirenes da polícia piscando, vermelhas e azuis, na
semiescuridão da orla. Toda a cena parecia um sonho, exceto
pelo fato de que meus sonhos de surfe nunca incluem ondas de
fato surfadas. Na verdade, são sempre marcados por frustração,
medo ou um tipo especial de angústia por quase lembrar deles.
Eu não sabia se os guardas estavam à minha espera, mas, por
garantia, fiquei na água até anoitecer, depois remei para dois
quebra-mares ao norte e saí por ali.

***

Eu considerava meu trabalho a antítese do show business. Agora


não tenho tanta certeza. Quando eu era mais novo, ver meu pai
em um set ou em uma locação era como conhecer a outra família
dele. A equipe de um filme é um mundo cheio de emoção,
propósito, grandes personalidades. Pessoas reunidas que vão se
envolvendo de um jeito intricado e tempestuoso por determinado
período. Vamos fazer logo as coisas. A maior parte de meus
projetos — textos longos, sem dúvida — tem um arco
semelhante. Eu me amarro às pessoas sobre as quais quero
escrever. Circulo junto com elas enquanto me explicam seu
mundo. Então, em algum ponto, o texto é publicado, a
reportagem sai, e nós terminamos. Desmontamos os cenários.
Às vezes, permanecemos em contato e até nos tornamos
amigos, mas isso é exceção. Selya vive sua versão disso a cada
espetáculo. Sou um cara de sorte: tenho uma equipe
permanente, a revista para a qual trabalho há décadas. A maior
parte de meus amigos, agora que penso nisso, são escritores,
surfistas ou ambos. Nunca gostei de espelhos, mas, hoje em dia,
quando vislumbro meus olhos em um reflexo, costumo enxergar
meu pai ali. Ele parece preocupado, até mesmo envergonhado, e
sofro com isso. Meu pai tinha muita energia. Certa vez, me disse
que tudo se resumia a medo do fracasso. Quando era mais
velho, ao acordar no hospital após uma operação no joelho, ele
olhou para mim, indignado, e perguntou: “Quando foi que seu
cabelo ficou grisalho?”
A atenção que damos a Mollie é de um jeito diferente da que
meus pais me deram. Ela é adorada, incluída, cuidada de perto,
ouvida com atenção. Eu costumava me preocupar que fôssemos
superprotetores. Quando Mollie tinha cinco ou seis anos, eu
estava furando ondas com ela em Long Island. Calculei mal uma
onda maior e perdi sua mãozinha. Os momentos durante os
quais me levantei e ela não estava à vista foram como um
paredão de pânico para mim. Ela voltou à superfície alguns
metros adiante, parecendo assustada, traída e chorando, mas
não, ela não queria sair da água, obrigada. Só queria que eu
tomasse mais cuidado. E foi o que fiz. Lembrei-me de minhas
meditações fetais sob as ondas marrons e ruidosas em Will
Rogers antes que eu pudesse ao menos pegar jacaré. Havia
alguém atento para que eu voltasse à tona? Nunca achei que
houvesse. Sem dúvida só era possível aprender a se virar no mar
levando uma surra a cada erro. Mas eu não conseguia imaginar
minha querida filha sofrendo as consequências desse jeito. Por
sorte, embora goste de nadar como um golfinho, Mollie não tem
nenhum interesse pelo surfe. Ela tem, aliviando minhas
preocupações, uma forte tendência a ser independente que não
precisa de estímulo. Quando a deixamos no acampamento de
verão, somos Caroline e eu que nos sentimos abandonados.
Com doze anos, ela começou a pegar sozinha o ônibus que
atravessa a cidade até a escola, com uma alegria silenciosa. Por
enquanto, o metrô é o limite que estabelecemos.
Se eu não penso em minha filha quando corro riscos idiotas?
Penso. Em março de 2014, fiquei sem ar de forma inesperada
embaixo de duas ondas em um pico que já foi famoso chamado
Makaha, no lado oeste de Oahu. Era um dia chuvoso e sem
vento. Eu havia acabado de dar aula em Honolulu e tinha
algumas horas antes do meu voo para casa. Makaha estava
grande, diziam os boletins — de três a quatro metros e meio —,
porém parecia mais tratável que o North Shore, por isso segui
para lá. Da praia, somente a espuma e a névoa eram visíveis. As
ondas surfáveis estavam em algum lugar mais longe, além da
cortina de espuma. Eu não levara minha gun para o Havaí e vejo
agora que isso foi um erro. Havia alguns caras na água remando,
seguindo através de um canal largo e fácil para o sul, mas todos
em pranchas maciças de ondas grandes. Eu estava com uma
quadriquilha de dois metros e vinte que amava — era a prancha
que me carregara através daqueles dois tubos em Pua‘ena Point
no inverno anterior, com as quilhas internas se prendendo à
parede cavada perto da base como bisturis —, mas obviamente
não era a prancha certa para aquele dia. Caí na água mesmo
assim. Achei que me arrependeria mais se não caísse — sentiria
um arrependimento corrosivo e um ódio por mim mesmo do qual
eu ainda me lembrava de sentir por não ter entrado em Rice Bowl
aos quatorze anos. Seria diferente, é claro, se eu pudesse ver as
ondas. Em Puerto Escondido, no maior dia que vi ali, nunca
considerei cair na água. Havia pessoas surfando, mas eu teria
me afogado. Isso estava claro. Em Makaha, um pico menos
assustador, eu precisava pelo menos ver o mar.
Revelou-se que estava estranhamente bonito. O canal, que
era grande, suave, com ondulações bem espaçadas, parecia
magnífico, um aquecimento de uma orquestra. O pico, quando
surgiu à vista, era um campo inesperadamente amplo, não muito
mexido, pelo menos durante um momento de calmaria, com um
pequeno grupo de caras na água e outro menor talvez uns
duzentos metros mais além. O grupo mais próximo se reunia
para surfar Makaha Bowl — uma seção final poderosa que
aparecia com frequência nas revistas e nos filmes de surfe da
minha juventude. O grupo mais distante estava em Makaha
Point, uma onda quase nunca fotografada. Em dias grandes, os
dois picos são conectados por uma parede muito longa que
quebra forte e raramente é surfável por inteiro. Faz muito tempo
que o Bowl perdeu seu charme para ondas grandes mais ocas
que quebravam mais perto da praia. O Point mantém uma forte
reputação no underground. Tomei uma rota cautelosa até o Bowl,
permanecendo em águas profundas ao sul. Ondas menores, que
não tinham nada de pequenas, de repente começaram a quebrar
com frequência no inside, obscurecendo a praia. Eu mantinha um
olho prudente no horizonte. A chuva estava fraca; a superfície do
mar, lisa e pálida, quase branca, o mesmo cinza-claro do céu. Os
swells que se aproximavam eram mais escuros. Quanto mais
escuros, mais íngremes. Tudo estava em uma escala
estranhamente precisa de preto e branco.
Na média, o grupo no Bowl era velho. Alguns caras tinham
pelo menos a minha idade. Quase todo mundo usava uma gun.
O estado de ânimo era ao mesmo tempo irrefletido e sério, não
hostil. Tive a impressão de que aqueles caras, a maioria deles
locais de West Oahu, viviam para aquelas ondas. Segui o grupo,
remando para fora com a aproximação de séries grandes.
Quando os swells ficaram escuros ao longe, remei depressa para
o canal. No momento em que as ondas estavam prestes a
quebrar, as paredes ficavam quase pretas. Minha prancha era
totalmente inadequada. Havia apenas dois ou três caras que de
fato queriam as ondas maiores. Um havaiano mais velho em uma
enorme gun amarela entrou com tranquilidade em vários
monstros. Peguei três ondas em três horas. Completei todas,
mas os drops foram atrasados e sem absolutamente nenhum
refinamento, com a prancha balançando sob meus pés. Em todos
os três drops, não resisti e gritei. Minhas ondas não foram
excepcionalmente grandes, e não as surfei muito bem.
Houve algumas séries maiores varredoras: paredes de seis
metros quebrando em águas mais profundas no outside. Nós
todos fomos pegos no inside. Permaneci calmo e mergulhei com
antecedência em direção ao fundo. Uma delas arrebentou minha
cordinha. Um salva-vidas de jet ski que circulava pelo canal
acelerava para a zona de impacto quando pranchas ou cordinhas
se partiam. Ele recuperou minha prancha no inside. Ao devolvê-
la, olhou para mim por um bom tempo, mas tudo o que disse foi:
“Você está bem?” Eu estava quase extático, obrigado. Estava
com medo e em uma prancha errada, mas via coisas das quais
nunca ia me esquecer. Nas paredes negras das ondas, as cores
das pranchas ganhavam importância. O cara na prancha
vermelha não vai. O cara na prancha laranja vai. Veja a prancha
laranja dele presa à parede negra, tentando obter tração para
fazer o drop. O havaiano mais velho na prancha amarela pintava
a linha mais brilhante e apaixonada através das mais altas e
escuras paredes do buraco. Algumas ondas, ao quebrarem,
ficavam azul-cobalto no topo, embaixo do lip. Outras, as grandes
ondas da série que formavam tubos no pico, ganhavam uma
tonalidade diferente e mais quente de azul-marinho na parte
sombreada da boca do tubo. Era como se, naquele ponto, o céu
cinzento não fizesse mais parte do esquema de cores, como se o
oceano fornecesse as próprias nuances submarinas.
Havia também os caras em Point. Eles tinham pranchinhas. As
ondas lá em cima não eram tão grandes quanto os monstros do
Bowl, mas eram paredes cinzentas longas, muito longas, e
escalonadas, com aquelas figuras diminutas caindo do céu,
bombeando ao longo da linha da onda, nas profundezas das
sombras embaixo do lip, arrepiando em ondas enormes e
crescentes com uma espécie de liberdade respeitosa, surfando
no mais alto nível. Quem eram aqueles caras? Eu estava com
medo demais para remar até lá, e nunca nesta vida iria surfar
daquele jeito, mas ver aquelas coisas me encheu de alegria.
Meu pequeno fiasco em Makaha foi causado em parte pela
impaciência, em parte por observar aqueles surfistas de prancha
pequena e, em parte, por um mergulho idiota no escuro. Eu
estava agindo como um sonâmbulo, regredindo. Saí da
extremidade do canal do Bowl, onde estivera caçando ondas
para entrar no último segundo, e remei forte para o interior da
zona de impacto. Ali, havia maravilhosas ondas grandes que
vinham de Point e passavam rugindo com regularidade sem
serem surfadas. Parecia possível pegá-las com minha prancha.
Estavam vazias porque o pico se localizava em uma área aonde
não se ia, no inside do Bowl e costa acima — o lugar totalmente
errado para se estar quando vinha uma série grande. Fui
depressa até lá, fazendo uma pequena aposta com o destino:
que eu conseguiria uma onda boa antes da chegada da série
grande seguinte. Foi uma aposta ruim, uma aposta preguiçosa, e
eu perdi. As ondas que me pegaram no inside eram
montanhosas. Achei que talvez não houvesse problema porque a
água ainda parecia funda. Nadei para baixo com força, mas não
consegui escapar da turbulência. Grandes colunas violentas
dispararam para o fundo e me atingiram. Não entrei em pânico,
mas fiquei sem ar. Precisei subir por meu leash muito antes do
que eu considerava seguro. Foi difícil recuperar o fôlego quando
cheguei à superfície — havia espuma demais e uma corrente
fortíssima. Mas só tive tempo para respirar algumas poucas
vezes, porque a onda seguinte era maior e já estava quebrando,
preparando-se para acabar comigo. Foi quando vi Mollie
claramente em meus pensamentos. Por favor, que essa não seja
minha hora. Precisam de mim.
Foi a idade, concluí mais tarde. Meus cálculos rápidos e
minhas intuições certeiras sobre minha capacidade pulmonar
estavam desligados. Sobrevivi a essa segunda onda, é claro,
mas fiquei outra vez sem ar muitos segundos antes do previsto.
O intervalo naquele dia estava longo, o que me ajudou a evitar
ficar preso no fundo por duas ondas, experiência da qual eu
provavelmente não teria saído vivo. Por sorte, a terceira foi
menor. Voltei apressado para o canal. Depois, me senti em paz.
Com vergonha de mim mesmo, exausto, mas com a nova
decisão de não fazer aquilo outra vez — não baixar a cabeça e
confiar a alma ao oceano violento na esperança de alguma
absolvição. Ainda escorria água do mar do meu nariz no táxi de
Newark para casa.
***

Hoje, se não estou na estrada nem surfando perto de casa, tento


nadar mil e quinhentos metros por dia em uma piscina no subsolo
na West End Avenue. Essa rotina humilde e o exercício em terra
firme que a acompanha são minha salvação para o surfe. Na
época em que podia viver sem isso, eu adotava a opinião de
Norman Mailer de que exercício sem empolgação, competição,
perigo ou propósito não reforçava o corpo; pelo contrário, apenas
o desgastava. Nadar em uma piscina sempre me pareceu
especialmente sem propósito. Mas não consigo me safar com
essa atitude agora. Se não nadar, vou me transformar em um
pilar de sebo em forma de pera. Meu esforço pelas marolas
cloradas da aula de aeróbica na água é tudo o que existe entre
mim e uma existência apenas com um pranchão. Esqueça
capacidade pulmonar para ondas grandes. Só quero conseguir
remar e ficar de pé. Quando me senti pela primeira vez velho
demais para surfar, abatido e desestimulado na ilha da Madeira
nos anos 1990, eu nunca tinha dado uma volta na piscina nem
tocado em um haltere. Agora, estou em melhor forma física do
que naquela época. Ainda assim, ficar de pé está se tornando
cada vez mais difícil, exigindo mais esforço a cada ano. Isso não
pode nem ser chamado de manutenção, como diria Selya. É
apenas uma tentativa de reduzir o ritmo do declínio.
Selya, um verdadeiro filho do Upper West Side, acha Jerry
Seinfeld um gênio. Seinfeld, que não precisa trabalhar, ainda faz
shows de comédia stand-up, aperfeiçoando suas apresentações
obsessivamente, com uma média de cem shows por ano. Ele diz
que vai continuar fazendo isso “até os oitenta anos, e depois”.
Em uma entrevista recente, Seinfeld se comparou a surfistas:
“Por que eles fazem isso? Porque é puro. Você está sozinho.
Aquela onda é muito maior e mais forte que você. Você está
sempre em inferioridade numérica. Elas sempre podem esmagar
você. E, ainda assim, você aceita isso e as transforma em uma
forma de arte sutil, breve e insignificante.”
Recentemente, Selya desenvolveu artrite no quadril. Falou que
ainda conseguiria dançar e dar aulas, mas não surfar. Doía
demais. Fez cirurgia de prótese de recapeamento. Durante o
período em que o quadril não lhe permitiu surfar, ele continuou
nos acompanhando quando saíamos para ir atrás das ondas.
Enquanto o resto de nós surfava, ele fazia surfe de peito,
pegando jacaré. Dizia que era melhor do que ficar parado.

***

Perto do fim da minha temporada infame como cliente pagante


de Tavarua, destruí minha última prancha Owl. Primeiro,
Cloudbreak a amassou e abriu rachaduras no fundo. Em seguida,
enquanto eu pegava uma onda, um metro e vinte de fibra de
vidro se soltou de repente da superfície plana a partir das
quilhas, uma das quais foi arrancada. Isso foi em 2008, no fim da
semana, e o swell estava crescendo. Por sorte, Selya também
tinha levado uma Owl para Tavarua naquela semana. A dele era
vermelha, mas, fora isso, idêntica à minha. Depois da sessão da
manhã que acabou com a minha prancha, um vento norte
pesado começou a soprar. Ele chegaria a Cloudbreak como um
vento lateral — uma direção terrível. Os barcos pararam de
circular. Eu queria ao menos dar uma olhada, porém não havia
mais ninguém interessado. Estava sofrendo de uma mania com a
qual Cloudbreak costumava me contaminar. Eu precisava ir.
Convenci alguns barqueiros a me levar até lá. Selya me
emprestou a Owl, para o caso de encontrarmos alguma coisa.
Durante a passagem pelo canal, o vento norte parou e o mar se
tornou liso. Fiquei empolgado, embora os barqueiros
permanecessem reservados. Soube mais tarde que Selya se
posicionou em uma torre de observação, uma pequena
plataforma coberta acima das árvores, no lado sudoeste da ilha.
Ficou nos olhando com binóculos durante todo o tempo que
passamos lá.
Ao nos aproximarmos de Cloudbreak, as ondas pareciam
fantásticas. Algum sacolejo residual de vento norte, talvez, mas
limpando rápido e bombando. Estava quase um metro maior que
de manhã, e eu nunca tinha visto as linhas do swell tão longas e
contínuas ali. Um dos barqueiros, um surfista canhoto de ombros
largos chamado Inia Nakalevu, pulou na água comigo. Seu
parceiro, um californiano chamado Jimmy, ficou no barco, que
ancorou no canal. Falou que talvez se juntasse a nós depois.
Minhas duas primeiras ondas foram de aquecimento, testando
a prancha e a onda. A prancha era perfeita — estável, mas leve,
familiar, rápida. As ondas estavam volumosas, com duas vezes a
minha altura, seguindo em alta velocidade ao longo do recife.
Surfei-as com cuidado e as completei com facilidade. Percebi
que Inia remava com muita força depois de suas ondas,
balançando a cabeça. Eu conhecia a sensação: aquilo era
demais, bom demais. Ainda havia um pouco de vibração na
parede, mas isso só aumentava a sensação de velocidade.
Minha terceira onda foi maior, mais decisiva. Surfei mais fundo,
embaixo da sombra do lip, fazendo bombeadas velozes de longo
alcance, indo o mais rápido que conseguia. Não era um tubo
complicado, técnico. Eu só precisava manter a prancha na
trajetória e ficar longe da base, onde o lip aterrissava com um
estrondo alto e contínuo. Por fim, saí dele em direção à luz do
sol, bem no inside, e fiz uma última manobra em “S” para fora
antes que a onda fechasse por cima do recife raso. Conforme
deslizava até a área sem ondas, tentei me lembrar da última vez
que surfara uma onda tão bem, com tanta intensidade. Não
consegui. Fazia anos.
O orgulho cresceu, e não levei minha onda seguinte a sério o
bastante. Direcionei-me de forma radical em minha primeira
virada na base, sem me dar ao trabalho de olhar para trás e
checar o que a onda se preparava para fazer, concentrando-me,
em vez disso, em minha virada incomumente estilosa. O bico da
prancha deve ter pegado um trecho perdido de turbulência norte
que não vi. Caí com força e tão rápido que nem ergui o braço
para proteger o rosto. A lateral da minha cabeça bateu na
superfície com tanta força que pareceu que eu tinha atingido —
ou sido atingido por — um objeto sólido. A onda me expeliu. Ela
não me sugou. Eu caíra em alta velocidade antes mesmo que a
onda estivesse pronta para quebrar. Subi na prancha e comecei
a remar com a cabeça zunindo, atônito. Tossi e vi sangue. Estava
empoçado no fundo da minha garganta. Eu não sentia dor, mas
precisava tossir e expelir aquele sangue para conseguir respirar.
Cheguei a águas claras e me sentei na prancha. Não parava de
tossir sangue na mão. O zunido na cabeça diminuiu. Agora
parecia apenas que eu tinha levado um tapa.
“Bill!”, Inia vira o sangue. Ele quis seguir para o barco. “Você
consegue remar?”
Sim, eu conseguia remar. Estava me sentindo bem, exceto
pela dor de cabeça e pela necessidade de tossir. Eu estava bem.
Disse que queria continuar surfando.
“Não, você não pode.”
Inia parecia assustado. Era seu trabalho cuidar dos hóspedes.
Eu me senti mal por ele.
“Eu estou bem.”
Ele me encarou. Estava quase chegando aos trinta anos —
um homem, não um garoto. Seu olhar tinha um peso
surpreendente. “Você conhece Deus, Bill?”, perguntou. “Sabe
que Ele ama você?”
Inia queria uma resposta.
“Na verdade, não”, murmurei.
Sua testa franzida se alterou. Agora era minha alma, não
minha tosse, que o preocupava.
Fizemos um acordo. Íamos continuar surfando, mas ele ficaria
perto de mim — o que quer que isso significasse — e eu tomaria
cuidado — o que quer que isso significasse.
O swell estava ficando maior; as linhas, ainda mais longas.
Remamos por cima de uma série muito grande que pareceu,
vista de trás, ter se fechado. Inia a estudou. Outra preocupação.
Minha cabeça estava melhor. Eu queria uma onda. Havia uma
de aparência maravilhosa se aproximando, já começando a
quebrar ao longe no recife. “Não, Bill, essa não”, disse Inia. “Ela
vai fechar.”
Ouvi seu conselho e remei por cima dela. A seguinte parecia
idêntica. “Essa”, falou Inia. “É boa.”
Então era isso que nosso acordo significava. Eu iria confiar no
julgamento de Inia. Virei e remei para a onda. A avaliação dele
era extraordinária. A onda que peguei quebrou perfeitamente ao
longo do recife. Aquela anterior, idêntica aos meus olhos, tinha,
na verdade, quebrado de uma só vez, como eu percebia agora.
Surfei de maneira conservadora, só seguindo na direção da
costa. Assim que saí da onda, vi que Inia estava na onda logo
atrás de mim. Então era isso que “ficar perto de mim” significava.
Inia surfava com força, bem no limite de sua habilidade — o
contrário do conservadorismo. A expressão dele estava feroz, os
olhos pareciam holofotes. Notei que não estava satisfeito.
Quando remamos de volta para o pico, perguntei se Deus
amava todo mundo.
Inia pareceu contente. A resposta foi um enfático sim.
Então por que Ele permitia as guerras e as doenças?
“O Juiz de toda a Terra não devia fazer o certo?”
Inia era um pregador leigo, com a mente cheia até a borda
com as Escrituras. Ele abriu um sorriso. Queria partir para o
debate teológico. Conseguiria me converter. Aquele era um
Hiram Bingham duplamente invertido, pensei, o evangelizador de
pele escura arrepiando no surfe.
Continuamos a surfar. Inia me dizia para não entrar em
algumas ondas e para ir em frente em outras, e nunca errava. Eu
não conseguia entender o que ele enxergava, não conseguia ver
as distinções que fazia. Era uma demonstração suprema de
conhecimento local das ondas e de que estava me mantendo em
segurança. Tentei surfar com prudência e não caí nem uma vez.
Vi Inia ir com tudo e pegar um tubo enorme. Depois de sair,
declarou que tinha sido a melhor onda de sua vida. “Louvado
seja Deus”, falei. “Aleluia”, disse ele.
Selya depois me contou que tudo o que ele conseguia
enxergar a um quilômetro e meio de distância eram os drops, a
prancha vermelha diminuta destoando nas ondas verde-claras.
Depois disso, quando as ondas se inclinavam na direção dos
recifes, ficavam apenas nossos rastros, linhas brancas finas se
desenrolando ao longo da trajetória.
Mais ondas chegavam, reluzentes e misteriosas, enchendo o
ar com uma exaltação austera. Inia estava a toda, como surfista
e como pregador. Eu ainda duvidava? “Por isso não temeremos,
embora a Terra trema e os montes afundem no coração do mar,
embora estrondem as suas águas turbulentas e os montes sejam
sacudidos pela sua fúria.”
Continuei duvidando. Mas não senti medo. Só não queria que
acabasse.
SOBRE O AUTOR

© The New Yorker

William Finnegan colabora regularmente com a revista The New


Yorker desde 1987 com artigos escritos de várias partes do
mundo, como América Central, América do Sul, Europa, Austrália
e Estados Unidos. Foi duas vezes finalista do National Magazine
Awards e ganhou diversos prêmios de destaque no jornalismo,
incluindo dois Overseas Press Club Awards. Dias bárbaros foi
agraciado com o Prêmio Pulitzer de Biografia em 2016.
LEIA TAMBÉM

Breve história de sete assassinatos


Marlon James

F de Falcão
Helen Macdonald

Você também pode gostar