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TÍTULO ORIGINAL
Barbarian Days: A Surfing Life
PREPARAÇÃO
Renata Dib
REVISÃO
Carolina Rodrigues
Paula de Carvalho
Taís Monteiro
REVISÃO TÉCNICA
Adrian Kojin
DESIGN DE CAPA
Darren Haggar
FOTO DE CAPA
Cortesia de William Finnegan
ADAPTAÇÃO DE CAPA
ô de casa
REVISÃO DE E-BOOK
Manuela Brandão
Taynée Mendes
GERAÇÃO DE E-BOOK
Intrínseca
E-ISBN
978-85-510-0148-6
Edição digital: 2017
1a edição
FOLHA DE ROSTO
CRÉDITOS
MÍDIAS SOCIAIS
DEDICATÓRIA
EPÍGRAFE
UM
ARREDORES DE DIAMOND HEAD
Honolulu, 1966-1967
DOIS
O CHEIRO DO OCEANO
Califórnia, 1956-1965
TRÊS
O CHOQUE DO NOVO
Califórnia, 1968
QUATRO
‘SCUSE ME WHILE I KISS THE SKY
Maui, 1971
CINCO
A BUSCA
Pacífico Sul, 1978
SEIS
PAÍS DE SORTE
Austrália, 1978-1979
SETE
ESCOLHENDO A ETIÓPIA
Ásia e África, 1979-1981
OITO
CONTRA A VAGABUNDAGEM
São Francisco, 1983-1986
NOVE
BAIXO PROFUNDO
Ilha da Madeira, 1994-2003
DEZ
OS MONTES AFUNDAM NO CORAÇÃO DO MAR
Nova York, 2002-2015
SOBRE O AUTOR
LEIA TAMBÉM
UM
Honolulu, 1966-1967
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O racismo do In Crowd era situacionista, não doutrinário. Parecia
não haver pretensões históricas — diferente, por exemplo, dos
skinheads, que apareceram depois alegando descendência do
nazismo e da Ku Klux Klan. O Havaí tinha testemunhado
bastante a supremacia branca, sobretudo entre as elites, mas o
In Crowd não sabia nada de elites. A maioria dos garotos era
miserável, vivendo em circunstâncias difíceis, embora alguns
tivessem sido expulsos de escolas particulares e estivessem
apenas em uma situação ruim. Entre o reduzido número de
alunos haoles no meu colégio, a maioria era, na verdade, evitada
pelo In Crowd por não ser suficientemente descolada. Esses
haoles sem afiliação aparentavam ser em maior parte filhos de
militares. Todos pareciam desorientados e assustados. Os dois
caras que tinham me visto brigar com os Freitas sem oferecer
ajuda estavam entre eles, assim como um garoto extremamente
alto, quieto e sem amigos que as pessoas chamavam de
Tropeço.
Percebi mais tarde que havia outros haoles espertos demais
para se envolverem naquela baboseira de gangue. Esses
garotos, a maioria surfistas do lado Waikiki da cratera Diamond
Head, sabiam não chamar a atenção quando em minoria.
Também reconheciam perdedores quando os viam. E tinham, em
caso de verdadeira necessidade, estruturas próprias de
assistência mútua para se apoiar. Mas eu estava perdido demais
naqueles primeiros meses para me dar conta da existência deles.
Ser um adolescente descolado era, como sempre, em grande
parte um mistério, mas tudo contava, desde força física (leia-se:
puberdade precoce) e autoconfiança (pontos extras para os que
desafiam adultos) até gosto musical e roupas. Eu não sabia
como me qualificava em nenhuma categoria. Eu não era grande
— na verdade a puberdade, para minha vergonha, parecia estar
fugindo de mim. Não ligava muito para moda nem música. Sem
dúvida não era mau — nunca tinha nem ido para a cadeia. Mas
admirava a coragem dos garotos do In Crowd e não pretendia
questionar ninguém que me protegesse.
Eu achava que a principal atividade do In Crowd fosse briga
de gangues, e havia, sem dúvida, muitas conversas sobre
guerras iminentes com vários grupos mokes rivais. Porém,
nessas horas, Mike sempre parecia estar conduzindo uma
delegação de paz a alguma conferência de última hora, e o
derramamento de sangue era evitado por meio de uma
diplomacia meticulosa e capaz de preservar a dignidade. Tréguas
eram formalizadas de modo solene pelo consumo de álcool por
menores de idade. A maior parte da energia do grupo na verdade
ia para fofocas, festas, pequenos furtos, vandalismo e confusão
no ônibus da cidade depois da escola. Havia várias garotas
bonitas no In Crowd, e fiquei seriamente apaixonado por todas.
Ninguém do grupo surfava.
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Mas o surfe sempre tinha esse limiar, esse limite do medo que o
tornava diferente das outras coisas, e sem dúvida dos outros
esportes que eu conhecia. Você podia praticar com amigos, mas,
quando as ondas ficavam grandes ou você se encrencava, nunca
parecia haver ninguém por perto.
Tudo lá fora era interligado de uma forma perturbadora. As
ondas eram o campo do jogo. Eram a meta, o objeto de sua
devoção e de seus desejos mais profundos. Ao mesmo tempo,
eram seu adversário, sua nêmesis, até seu inimigo mortal. O
surfe era seu refúgio, seu esconderijo feliz, mas também um
mundo selvagem e hostil — um mundo indiferente, dinâmico. Aos
treze anos, eu tinha praticamente parado de acreditar em Deus,
mas esse era um novo desdobramento, e ele deixara um vazio
no meu mundo, uma sensação de que eu havia sido
abandonado. O oceano era como um deus indiferente,
infinitamente perigoso e com um poder imensurável.
E ainda assim esperava-se que você, mesmo quando criança,
o avaliasse todo dia. Exigia-se que — isso era essencial, uma
questão de sobrevivência — você conhecesse os próprios
limites, tanto físicos quanto emocionais. Mas como era possível
conhecer os próprios limites sem testá-los? E se você não
passasse no teste? Exigia-se também que permanecesse calmo
se as coisas dessem errado. Todo mundo dizia que o pânico era
o primeiro passo para o afogamento. Supunha-se também que as
habilidades das crianças iam aumentando. O que era impensável
em um ano se tornava razoável, possível, viável no seguinte.
Minhas cartas de Honolulu em 1966, que me foram gentilmente
devolvidas há pouco tempo, são mais marcadas por discussões
francas sobre o medo do que por uma babaquice arrogante. “Não
pense que de repente fiquei corajoso. Eu não fiquei.” Mas as
fronteiras do que era razoável estavam, de forma silenciosa e
constante, recuando para mim.
Isso ficou claro no primeiro grande dia que presenciei em
Cliffs. Ondulações de período longo tinham chegado à noite. As
séries (ondas maiores, que normalmente vêm em grupos)
estavam bem acima da cabeça, lisas e cinza, com longas
paredes e seções poderosas. Fiquei tão empolgado em ver a
excelência que o pico no fundo de meu quintal era capaz de
produzir que perdi a timidez habitual e comecei a surfar com o
crowd no pico principal. Eu estava em desvantagem ali e também
com medo, por isso fui judiado pelas séries maiores. Eu não era
forte o suficiente para segurar a prancha quando ondas de quase
dois metros me pegavam, embora eu as furasse no estilo
“tartaruga” — virava a prancha com o fundo para cima, puxava o
bico para dentro d’água, colava as pernas ao redor dela e dava
um abraço apertado nas bordas. A espuma arrancou a prancha
das minhas mãos, em seguida me atacou violentamente,
mantendo-me submerso por diversas sacudidas longas e
intensas. Passei grande parte da tarde nadando. Ainda assim,
fiquei até o anoitecer. Cheguei a pegar e completar algumas
ondas carnudas. E vi um surfe naquele dia — de Leslie Wong e
outros — que fez meu peito doer: longos momentos de graça sob
pressão que pareciam gravados nas profundezas do meu ser; e
era o que eu queria, de alguma forma, mais do que qualquer
coisa. Naquela noite, enquanto minha família dormia, fiquei
acordado no sofá de armação de bambu ouvindo a chuva,
inquieto, o coração batendo com a adrenalina residual.
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Meu pai ainda não tinha nem quarenta anos. A idade dos adultos
é absurda para as crianças, números altos demais, em sua
maioria sem qualquer significado. Mas a idade de meu pai era
estranhamente constante, de um modo que até eu sabia que era
esquisito. Era possível ver isso no álbum de fotos da família. Em
um momento, ele era um garoto esperto de cabelo escuro,
patinando e andando de trenó, tocando trompete em uma banda
de baile. Então, aos vinte, dispensado da Marinha, ele de repente
se tornara de meia-idade. Fumava cachimbo, usava chapéu
Fedora, olhava decidido para uma máquina de escrever,
satisfeito diante de um tabuleiro de xadrez. Casou-se aos vinte e
três, foi pai aos vinte e quatro. Isso não era estranho no mundo
dos meus pais, mas ele parecia assumir a vida adulta com um
prazer incomum. Queria ter quarenta anos. Não que fosse um
homem cauteloso e comedido; estava mais para instável e
imprudente. Só parecia ter o desejo de deixar a juventude para
trás.
Eu sabia que meu pai odiara a Marinha, a claustrofobia da
vida a bordo (a guerra tinha acabado — ele ficara de fora por
pouco —, mas havia servido no Pacífico em um porta-aviões).
Ele odiava principalmente a impotência do marinheiro comum.
“Não são chamados de patentes de baixo escalão à toa”, dizia. O
que eu não sabia na época era que o início de sua infância fora
um show de horrores. Os pais biológicos eram bêbados
itinerantes. Os dois filhos que tiveram acabaram sob os cuidados
de tias idosas. Meu pai teve sorte e foi parar em uma cidade
pequena do Michigan com Martha Finnegan, uma professora de
temperamento doce, e seu marido, um maquinista ferroviário
conhecido como Will, mas passou a vida inteira assombrado pela
desordem e pelos terrores sofridos antes de seus pais biológicos
abrirem mão dele.
Meus pais eram, e isso não é surpresa, abstêmios. Mesmo no
auge do martíni, eu nunca tinha visto nenhum deles alto. Um dos
seus medos permanentes era de que os filhos se tornassem
alcoólatras.
Os dois queriam uma família grande e começaram rápido,
comigo. Vivíamos no quarto andar de um prédio sem elevador na
Segunda Avenida, em Manhattan. Eles pagavam 1 dólar por mês
para estacionar meu carrinho de bebê na barbearia no térreo.
Queriam se mudar para Levittown, subúrbio prototípico em Long
Island, na época novinho em folha — em retrospecto, uma ideia
trágica. Por sorte, em vez disso, se mudaram para Los Angeles.
Minha mãe então sofreu três abortos espontâneos consecutivos.
Um pode ter sido natimorto. Garotas católicas solteiras e
grávidas, enviadas por algum ramo da igreja, cuidavam de mim.
Quando minha mãe engravidou de Kevin, passou seis meses de
cama. Tudo isso aconteceu durante a suposta idade de ouro.
Por essa época, meu pai parecia ter mil empregos. Era
eletricista e carpinteiro cenográfico, depois eletricista-chefe e faz-
tudo em programas ao vivo, gravados e no palco. De todos os
empregos, meu favorito era o de frentista. Ele trabalhava em um
posto de gasolina da Chevron em Van Nuys — não muito longe
de Reseda, onde morávamos na época —, e nós podíamos levar
o almoço dele. Meu pai usava um uniforme branco para bombear
gasolina, assim como todos os frentistas. Eu achava que o
emblema da Chevron nas mangas engomadas do uniforme era
extremamente elegante. Ele trabalhou como diretor de palco em
um programa de TV infantil chamado The Pinky Lee Show, ao
qual minha mãe e eu assistíamos principalmente para vê-lo em
rápidas aparições ao lado do palco com fones de ouvido. Até eu
compreendia vagamente que meu pai se preocupava muito em
nos sustentar, por isso estava quase sempre trabalhando.
Também entendi, em certo nível, que, embora ele fosse nosso
herói particular, lá fora no grande mundo, usando fones de ouvido
e emblemas da Chevron, também era, a seu modo, tão
dependente do apoio da minha mãe quanto eu.
Éramos católicos se não devotos, ao menos particularmente
entusiasmados. Missa todo domingo, catecismo aos sábados
para mim, peixe empanado às sextas. Então, por volta de meu
aniversário de treze anos, recebi o sacramento da crisma,
tornando-me adulto aos olhos da Igreja, e fiquei chocado quando
meus pais disseram que eu não tinha mais obrigação de ir à
missa. A decisão agora era minha. Eles não estavam
preocupados com a situação da minha alma? As respostas
evasivas e ambíguas me chocaram outra vez. Os dois tinham
sido grandes fãs do papa João XXIII. Mas percebi que não
acreditavam realmente em toda a doutrina e nas orações —
todas aquelas oblações, sermões, confissões assustadoras e
atos de contrição evasivos que eu memorizava e tentava
compreender desde pequeno. Talvez eles nem mesmo
acreditassem em Deus. Parei de ir à missa na mesma hora. Deus
não ficou visivelmente aborrecido. Meus pais continuaram
arrastando meus irmãos mais novos para a igreja. Que hipocrisia!
Esse alegre abandono das minhas obrigações religiosas
aconteceu pouco antes de nos mudarmos para o Havaí.
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O CHEIRO DO OCEANO
Califórnia, 1956-1965
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Turma de primeira comunhão, igreja católica de St. Mel, Woodland Hills, 1960 (estou
na terceira fileira, de cima para baixo, o terceiro da direita para a esquerda)
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Steve Painter também ajudou a me direcionar para o surfe. O
interesse dele não tinha relação com o envolvimento com o mar à
maneira tradicional, como os Becket — ou os Kaulukukui.
Derivava, em vez disso, da febre que tomara os Estados Unidos
alguns anos antes — filmes como Maldosamente Ingênua e
afins, surf music, moda surfe. Inúmeros garotos em ambas as
costas compraram pranchas e começaram a surfar. Revistas, em
especial a Surfer, tinham se transformado no principal canal da
autocelebração da cultura do surfe, e Painter e os colegas de
turma liam as publicações com avidez e conversavam com cada
vez mais autoridade, usando a nova linguagem encontrada ali.
Tudo era bitchen ou boss (sinônimos para excelente), e qualquer
pessoa de quem não gostavam era um kook (um insulto
normalmente reservado para um surfista incompetente — o
termo é derivado de kuk, palavra havaiana que significa
excremento).
Na época não me dei conta, mas era revelador eu nunca ter
visto um exemplar da Surfer na casa dos Becket. Deviam ter
interesse na revista — caramba, ela havia sido criada por um
amigo deles em San Onofre —, mas os Becket sem dúvida
tinham coisas melhores para fazer com 75 centavos.
Para a maioria dos que moravam longe da costa, a estrada
para o surfe passava pelo skate. Sem dúvida, era assim em
Woodland Hills. Todos tínhamos skates e transformamos
algumas ruas íngremes em pistas. A ênfase era na velocidade,
nas curvas, nos kick turns e nos giros, não nos saltos. Paradas
de mão eram consideradas truques excelentes, mas acabavam
com os nós dos dedos. No playground superior da minha escola
havia uma encosta longa e côncava asfaltada que parecia uma
onda oceânica. Seu cume, por trás da quadra de handebol, era
uma direita grande, rápida e relativamente curta, ou, indo para o
outro lado, uma inclinação longa que se afunilava perfeitamente
por uns noventa metros para a esquerda. Andar de skate na
encosta da escola nos fins de semana era tão empolgante que
parecia proibido. Na verdade, era proibido — tínhamos que pular
a cerca para entrar. Os prazeres de andar naquela encosta,
ainda mais para a esquerda, que chamávamos de Ala Moana,
ficavam apenas alguns graus abaixo da animação de ficar em pé
em uma prancha nas ondas de San Onofre.
Ir para a costa de Woodland Hills era difícil. Ficava a pouco
mais de trinta quilômetros de distância, para além das
montanhas. Painter e os amigos tinham idade suficiente para
pedir carona; eu, não. Minha mãe, com sua paixão pela praia,
havia começado a nos levar ao Will Rogers Beach State Park
assim que conseguiu o próprio carro. Na época, eu devia ter sete
ou oito anos. Era um velho Chevrolet azul-celeste, e
costumávamos seguir pelo Topanga Canyon. Pouco antes da
boca do desfiladeiro, atingíamos uma muralha de maresia.
Quando virávamos para o sul na Pacific Coast Highway, minha
mãe dizia: “Sintam o cheiro do oceano. Não é bom?” Eu
resmungava ou não dizia nada. Nunca gostei do cheiro do mar.
Havia algo aparentemente errado comigo. Um fedor de peixe
envolvia a costa, parecendo emanar dos pilares sob as casas de
telhados planos, aglomeradas lado a lado na estrada à beira-mar.
Meu nariz se retorcia com o cheiro.
O mar em si era outra história. Eu chapinhava pelas ondas no
Will Rogers, mergulhava por baixo de fortes linhas de espuma
que seguiam na direção do banco de areia principal, onde as
paredes marrons das ondas grandes se erguiam e quebravam.
Eu adorava aquela violência ritmada. As ondas puxavam a
pessoa na direção delas como gigantes famintos. Extraíam a
água da bancada quando subiam à altura máxima, em seguida
mergulhavam para a frente e explodiam. Embaixo d’água, o
impacto era imensamente prazeroso. Ondas eram melhores que
qualquer coisa nos livros e nos filmes, melhores até que um
passeio na Disneyland, porque, com elas, a carga de perigo não
era planejada. Era real. E dava para aprender a manobrar em
torno das ondas, quanto tempo esperar no fundo, como nadar
para além da arrebentação e, por fim, até como pegar jacaré.
Aprendi técnicas autênticas de bodysurf em Newport, observando
e imitando Becket e seus amigos, mas eu ficava à vontade com
as ondas em Will Rogers.
Ainda assim, não era um pico adequado para o surfe, e havia
pouca chance de que os passeios com minha mãe algum dia nos
levassem a um. Mas então meu pai ficou interessado em
Ventura, uma antiga cidade petroleira a pouco mais de sessenta
quilômetros ao norte de Woodland Hills. Ele percebeu que era
possível comprar uma casa dúplex geminada a algumas quadras
da praia em Ventura por 11 mil dólares, e foi o que fez. Depois
disso, passei o que pareceu ser a maior parte dos meus fins de
semana arrancando ervas daninhas e cuidando de jardins sob
uma fria brisa do mar em torno daquela casa na Ayala Street.
Outros investimentos modestos se seguiram a esse, e depois um
salto com a construção de uma nova casa: dois dúplex para
alugar idênticos, todos com garagem e uma fachada moderna de
madeira rústica. Ventura, na época, não tinha qualquer atrativo
como cidade praiana — era fria e com muito vento, longe de
tudo. Mas meu pai enxergou o futuro — autoestradas, uma
marina, superpopulação — e convenceu alguns amigos a investir
em projetos conjuntos, o que permitiu que ele continuasse a
construir. Enquanto isso, fui percebendo que Ventura era
abençoada pelas ondas. Tive essa visão enquanto comia um
chiliburger no píer.
Em meu aniversário de onze anos, meu pai me levou à loja
Dave Sweet Surfboards, no Olympic Boulevard, em Santa
Monica. Do mostruário de pranchas usadas, escolhi uma sólida
marrom-alaranjada de cerca de dois metros e setenta, com
bordas decoradas em azul-piscina e uma quilha construída com
pelo menos oito tipos diferentes de madeira. Custou 70 dólares.
Eu tinha um metro e meio, pesava menos de quarenta quilos e
não conseguia nem envolver a prancha com o braço. Saí da loja
levando meu presente na cabeça, com vergonha e com medo de
deixá-lo cair, mas estava feliz como nunca.
Os Finnegan, Ventura, 1966
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O CHOQUE DO NOVO
Califórnia, 1968
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Maui, 1971
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A cidade estava flat. Toda a ilha estava flat havia uma semana.
Eu estava de folga naquele dia. Becket tinha ácido. Nós tomamos
antes do amanhecer, depois nos reunimos em torno de uma
fogueira no quintal dos fundos de Kobatake e esperamos o sol
nascer. O velho Kobatake parecia não dormir nunca. Ele atiçou o
fogo com um pé de cabra, seu rosto oval e dourado contrastando
com a escuridão aveludada do quintal. Ele riu alto quando Becket
brincou sobre os galos acordarem sua esposa. Talvez nosso
senhorio calculista e bigodudo não fosse um cara tão ruim.
Pegamos meu carro florido, o antigo Rhino Chaser, e seguimos
rumo ao norte.
Nosso plano era curtir o barato na área rural, longe da
perturbação da cidade, até que a nossa onda passasse. Depois
de atravessar Kaanapali, vimos os primeiros raios de sol
atingirem, de forma bem suave, as muralhas e ameias das
montanhas de Molokai do outro lado do canal. Havia uma leve
névoa avermelhada no ar — provavelmente vindo de queimadas
de cana, ou talvez fosse fumaça vulcânica subindo da Big Island.
As pessoas de Maui a chamavam de vog (uma adaptação de fog,
névoa). Era uma invenção tão ruim que nos fazia morrer de rir.
Então Becket percebeu, na superfície do oceano além de Napili,
um estranho padrão de veludo. Em parte, aquilo foi estranho por
si só, como todo o resto naquela manhã, mas principalmente por
ser tão inesperado. Era, na verdade, um enorme swell do norte,
passando velozmente pela extremidade oeste de Maui. Não se
via nenhum traço dele em Lahaina. Percebi que tinha perdido o
fôlego. Não sabia se estava empolgado ou amedrontado. Pus o
carro no piloto automático do surfe. Ele nos levou rapidamente
por estradas de barro vermelho através de plantações de abacaxi
até os penhascos acima de Honolua.
O swell podia ter passado despercebido pela baía se seu
ângulo estivesse um pouco mais para leste. Mas se curvava de
forma maciça em torno da ponta da enseada, com séries
quebrando em lugares onde eu nunca vira ondas quebrarem,
enchendo com espuma todo o lado norte da baía, toda a arena
onde costumávamos surfar. Não havia ninguém na área. Não me
lembro de muita discussão. Estávamos com nossas pranchas no
teto. Becket e eu ficávamos fissurados para surfar quando havia
ondas. Passamos parafina nas pranchas e tentamos estudar o
line-up. Sem chance. Era um caos, impossível de mapear,
fechando, e nós estávamos muito chapados. Em determinado
momento, desistimos e descemos pela trilha. Reparei que nós
dois ríamos de nervoso. O estrondo na praia estreita era
constante, operístico, ameaçador. Eu tinha certeza de que nunca
ouvira algo assim. A má notícia, que uma parte racional
remanescente em mim sabia, era a boa notícia: nunca iríamos
passar a arrebentação, seríamos levados de volta para a areia,
rapidamente derrotados pelas múltiplas paredes de espuma
empilhadas contra nós.
Entramos na água da extremidade superior da praia, ao abrigo
de algumas rochas grandes. Em geral, não era um lugar
inteligente para cair na água, mas queríamos ficar o mais longe
possível do penhasco na outra ponta, que tinha uma caverna na
parede costa acima que devorava pranchas e corpos em dias
bons, e agora estava sendo açoitada sem parar. Começamos a
remar, caímos em um redemoinho perto das pedras e em
seguida fomos jogados em sentido anti-horário, como formigas
em um ralo esvaziando, em direção ao enorme campo de
paredes grandes de espuma. Lutando para me segurar na minha
prancha, acabei perdendo Becket de vista. Meus pensamentos
se voltaram para a sobrevivência. Eu ia girar e tentar pegar a
próxima parede de espuma, depois tentar chegar à praia além do
penhasco. Os imperativos, de repente, tornaram-se simples: ficar
longe da caverna e não se afogar. Mas nenhuma espuma surgiu.
Eu estava sendo arrastado para o lado através da baía, além do
penhasco, remando por cima do rabo liso de grandes ondas
espumosas. Isso, aparentemente, era uma trégua entre as
séries. Continuei remando na direção do mar aberto. A má
notícia tinha se tornado boa, o que era ruim. Eu ia conseguir
passar a arrebentação. Becket pagou seus pecados e também
conseguiu. Remamos longe no outside, rumo à luz do sol,
passando por cima de ondulações enormes que ainda se
reuniam para as festividades apocalípticas no interior da baía.
Sentados no meio do oceano em nossas pranchas, tivemos
uma conversa que qualquer observador — se houvesse algum —
teria achado incoerente. Mas para nós tinha um sentido perfeito,
entrecortado. Eu me lembro de erguer as mãos cheias de água
do mar na direção do céu e deixar que ela cascateasse através
da luz da manhã, falando: “Água? Água?” “Sei o que você está
querendo dizer”, respondeu Becket. Eu havia tomado ácido umas
seis ou oito vezes antes e tivera experiências horríveis em quase
todas. Depois de um tempo, a droga costumava me reduzir a
fascinações moleculares. Isso era legal, desde que
permanecesse a certo ângulo da percepção cotidiana, revelando
sua pomposidade hilariante, sua arbitrariedade — essa era a
grande promessa da psicodelia, no fim das contas —, mas eram
menos engraçadas quando se juntavam a psicodramas pessoais,
sentimentos verdadeiros, muito distorcidos. Certa vez Domenic
teve que me levar a uma enfermeira que conhecíamos para me
aplicar Amplictil, um antipsicótico, depois que mergulhei no poço
da culpa por enganar meus pais sobre fumar maconha no ensino
médio. Caryn gostava de dizer, citando Walpole, que a vida é
uma comédia para aqueles que pensam e uma tragédia para os
que sentem. Isso basicamente sintetizava meu problema com o
LSD. A parte cerebral era incrível; a parte emocional, nem tanto.
Com aquele swell enorme, o boca a boca do surfe funcionou
mais depressa que na primeira vez que surfei Honolua, quando
Domenic e eu pegamos um swell modesto acampados lá e
ninguém apareceu durante a manhã inteira. Dessa vez, carros
começaram a surgir no penhasco pouco tempo depois de eu e
Becket entrarmos na água. Mas ninguém se juntou a nós.
Devíamos estar parecendo exatamente o que éramos: dois
idiotas que haviam cometido um grande erro e agora boiavam,
além das ondas, com muito medo de sair de lá. As ondas
estavam desorganizadas demais para surfar. Talvez limpassem
mais tarde. Meu medo, entretanto, não era do tipo habitual e
meticulosamente calculado. Era uma sensação que ia e vinha,
conforme meus pensamentos ricocheteavam entre a troposfera e
a ionosfera, com eventuais retornos para baixo provocados pela
força inercial de Coriolis até a superfície do mar, que subia e
descia abaixo de nós. Eu sabia que queria voltar para a areia,
mas não parecia conseguir manter esse pensamento por tempo
suficiente. Comecei a me dirigir ao pontal, com a vaga ideia de
que poderia pegar um trem expresso esverdeado por lá, em
direção à terra seca. Becket me observou retornar com uma
expressão intrigada de preocupação.
Minha Potts não era uma prancha de ondas grandes, mas
tinha uma remada rápida. Logo me vi diante de uma grande
parede verde que passou pelo pontal atravessada pelo repuxo
proveniente dos penhascos acima da costa de Honolua. Eu
estava perto de uma área onde as pessoas surfavam em dias
bons, embora eu mesmo nunca tivesse surfado ali — não era o
pico clássico, mas o pico externo, onde os swells começavam a
entrar na baía. Uma das marolas do repuxo atravessou a grande
parede verde como se fosse um fantasma e falou comigo. Era a
minha porta. Uma pequena elevação de água escura movendo-
se de lado através de uma parede enorme de água que seguia
para a terra. Ela iria formar um bolsão íngreme onde uma
prancha pequena podia pegar uma onda grande bem no início.
Virei-me e fui atrás dela. Nós nos encontramos no ponto em que
eu tinha imaginado. Enquanto a grande onda me erguia de
maneira preocupante, peguei a onda pequena e limpa, fiquei de
pé e a surfei sobre o degrau, descendo a grande parede com
bastante facilidade. O paradoxo não terminou ali. Embora talvez
fosse a maior onda que eu já surfara — um pouco difícil dizer
chapado de LSD —, eu a surfei como se fosse uma onda
pequena, fazendo curvas radicais e curtas, sem olhar muito além
do bico da prancha. Eu estava completamente envolvido nas
sensações das viradas — “em transe” não seria uma expressão
forte demais. Era como se eu estivesse andando de skate em
uma velocidade maior que o normal, quando na verdade tentava
conectar a extremidade externa da baía ao lugar onde era feito o
drop clássico no bowl da onda, surfando por toda a sua extensão,
algo que já tinha ouvido falar, mas nunca vira alguém fazer, e eu
provavelmente encontrei a onda que me possibilitaria fazê-lo.
Cheguei ao bowl, ou ao menos a uma grande seção cavada
saída diretamente do ponto habitual de drop, ainda de pé. Mas,
do jeito que aconteceu, falhei completamente ao deixar de tomar
a linha voltada para a costa, indo até a base da onda, o que teria
feito com que eu seguisse em frente. Em vez disso, dei uma
rasgada na face sob a crista, ainda mal olhando além do bico da
prancha. Fui arremessado, e minha prancha tristemente se
afastou dos meus pés enquanto caíamos de modo esquisito pelo
ar.
Eu devia estar com muito fôlego, porque a onda me espancou
com toda a brutalidade e por muito tempo, mas não conseguiu
convencer meu corpo a entrar em pânico e beber água. Tomei
muitas outras ondas na cabeça, mergulhei fundo e me senti ser
arrastado para águas mais rasas. Logo estava sendo jogado nas
rochas do lado do penhasco, empurrado pelas correntes
costeiras. Consegui me segurar, mas só subi pouco mais de um
metro para me sentar e examinar minhas canelas e meus pés,
que estavam machucados e sangrando. Uma onda me arrastou.
Por incrível que pareça, fiz a mesma coisa de novo algumas
ondas depois. Eu parecia não entender que precisava subir mais
o penhasco, em direção às rochas secas. Da terceira vez que
subi, um homem gentil que descera o penhasco para ajudar me
segurou pelo braço e me acompanhou até um terreno mais alto.
Eu estava cansado e desorientado demais para falar. Expressei
meus agradecimentos por linguagem de sinais. Também
perguntei pela minha prancha, recorrendo à pantomima. “Entrou
na caverna”, disse o homem.
Resolvi tirar um cochilo. Subi o penhasco, ignorei os olhares,
encontrei meu carro e me deitei no banco traseiro. O sono não
vinha. Saí às pressas do carro, cada vez mais desorientado.
Procurei Becket. Ele ainda estava sozinho na água, a meio
caminho de Molokai. Decidi descer até a parte mais interna da
baía, onde o oceano era sempre calmo, para esperar por ele.
Caryn e eu costumávamos fazer piqueniques ali. Era preciso
atravessar uma floresta sobre um leito seco de rio a partir da
estrada. Mas resolvi ir dirigindo. De algum modo, consegui
passar com o carro, arrebentando a mata até a praia, que, no
entanto, não parecia segura. Havia coqueiros muito altos, e
cocos caindo eram um perigo. Caminhei pela água até ficar com
o peito submerso, mas eu ainda sentia a ameaça dos cocos.
Resolvi ir até a sorveteria em Kaanapali para ver Caryn.
Ela pareceu surpresa em me ver. Eu ainda usava linguagem
de sinais. Ela pediu um intervalo e foi comigo até uma mesinha
redonda no lado de fora. Pôs um copo de sundae cheio de água
à minha frente. O sol da manhã dava a impressão de concentrar
todo o seu brilho no interior daquele copo de água. Olhei
fixamente dentro do copo e notei Puu Kukui flutuando de cabeça
para baixo no céu. Disse a Caryn, na minha mente, que a água
na baía de Honolua não era mais clara como na época em que
mergulhamos com snorkels no verão, que estava toda
tumultuada e escura. Caryn pegou a minha mão para demonstrar
que entendia. Também falei, ainda na minha mente, que iríamos
encontrar seu pai. Ela apertou a minha mão. Depois lembrei que
tinha deixado Becket em perigo e que nunca mais acharia a
minha prancha. Reencontrei minha voz e disse que precisava ir.
Ela também e acrescentou, apontando a cabeça na direção do
local de trabalho: “Hana haha.”
“Humuhumu.”
Parti outra vez para Honolua. Ao lado da estrada, perto do
acesso para Kaanapali, Leslie Potts estava pedindo carona. Eu
parei. Ele segurava uma prancha e um violão. Eu não parecia
estar imaginando aquilo. Potts botou a prancha dentro do carro,
do lado do carona, e se sentou bem atrás de mim. Segui
dirigindo. Ele dedilhou alguns riffs de blues no violão.
Começamos a ver linhas do swell no mar, dirigindo-se para o sul.
Potts assobiava baixo. Ele cantarolou alguns compassos, cantou
algumas letras. Tinha uma voz triste e rouca, bem apropriada
para o blues tradicional. “Como está a prancha?”
“Entrou na caverna.”
“Ai. Ela saiu?”
“Não sei.”
Não insistimos no assunto.
De volta a Honolua, percebi que havia uns dez caras na água
e uns dez passando parafina. As ondas pareciam muito mais
organizadas do que antes. Ainda enormes. Estacionei e corri
para a trilha da praia. Becket estava sentado nas pedras, lá
embaixo, com a prancha ao lado. Desci até lá. Ele ficou aliviado
ao me ver — não com raiva por ter sido abandonado, como eu
esperava. Na verdade, parecia confuso, preocupado. Então segui
seu olhar até uma prancha destruída escorada de pé nas rochas
atrás dele. Era a minha, é claro. Fui até lá. A rabeta estava
destroçada; a quilha, arrancada. Havia tantas marcas que era
impossível contar. Uma apara de fibra de vidro pendia embaixo
do bico. Becket murmurou que tudo podia ser consertado. Era
surpreendente a prancha não ter partido ao meio. Não fiquei
surpreso, mas me senti aturdido e aborrecido ao examinar os
danos. A prancha nunca mais seria a mesma. Becket dirigiu
minha atenção para o line-up, onde alguns dos heróis locais
começavam a surfar. O swell estava baixando; o surfe,
melhorando. Becket, com a prancha intacta, saiu remando outra
vez.
Fiquei na praia estreita assistindo ao show. Era o pior lugar,
mas parecia adequado estar no nível da água, onde o rugido das
ondas tomava conta da mente. Mais caras caíram na água. As
ondas continuavam melhorando. Becket saiu do mar outra vez,
arfando, exultante. Aquelas ondas eram insanas. Exigi sua
prancha emprestada. Ele concordou, com relutância. Lutei para
passar pelas linhas de espuma, aliviado por ter algo a fazer. A
água parecia menos interessante que antes a nível molecular.
Agora eu queria apenas uma onda para surfar. Remei até o pico,
onde tinha menos gente. Havia uma névoa suave — era água do
mar vaporizada, de toda a força da arrebentação — sem vento, o
que deixava a superfície do oceano lisa e reluzente. A cor era de
um branco-acinzentado atenuado até uma onda se erguer; então
refletores azul-turquesa pareciam se acender, iluminando as
entranhas da onda. Eu circulava pelo line-up do pico, remando
constantemente sem conseguir ficar parado. Quando uma onda
enfim chegou até onde eu estava, eu a peguei. Os refletores se
acenderam no meio da minha primeira virada. Tentei olhar para a
frente, tentei ver o que havia reservado para mim adiante e fazer
um plano adequado, mas estava cercado de luz azul-turquesa.
Senti uma espécie de êxtase das profundezas. Olhei para cima.
Havia um teto prateado brilhante. Eu parecia estar surfando um
colchão de ar. Então as luzes se apagaram.
Becket resgatou a prancha antes que atingisse os penhascos.
Pronto, já era o suficiente, disse ele quando cheguei à terra,
cambaleando. Chega. Ele tinha visto minha onda. Eu havia
desaparecido no interior do tubo completamente ereto, com os
braços estendidos no estilo de um crucifixo, o rosto virado para o
céu. Nunca tive a menor chance de conseguir sair. Mas ele
explicou que eu reapareci por um instante, expelindo através da
cortina de água, impotente e dando cambalhotas. O termo que
ele usou foi “boneco de pano”. Não conseguia me lembrar do
caldo. Só do êxtase. Eu me deitei nas rochas, tremendo. Becket
explicou que havia anfetamina no ácido. Por isso eu estava
gelado. Ele caiu na água outra vez e ficou lá por horas.
Lentamente, me encolhi em posição fetal, com os braços em
torno dos joelhos. Algo parecia estar curvando minha coluna,
forçando minha cabeça para baixo, em direção ao meu peito.
Muitas coisas estavam acabando ao mesmo tempo, pensei, e,
pelo menos dessa vez, eu tinha razão.
***
***
A BUSCA
***
***
O nome da minha namorada era Sharon. Ela era sete anos mais
velha que eu. Naquela época, trabalhava como professora
universitária em Santa Cruz. Estávamos juntos havia quatro
anos, entre idas e vindas, e nossa ligação era mais profunda do
que provavelmente parecia. Ela era uma medievalista, uma
entusiasta, aventureira, a filha do dono de uma loja de bebidas
em Los Angeles. Tinha uma risada que ia de aguda a grave —
que atraía o outro para a confiança que demonstrava —, olhos
alegres e um glamour intelectual eclético que impressionava as
pessoas, inclusive a mim. Por trás de toda a brincadeira, porém,
por trás de sua graciosa autoconfiança de olhos amendoados,
havia uma pessoa delicada e magoada cuja inquietação era,
como ela dizia, molecular. Sharon tinha um histórico duvidoso,
que incluía um ex-marido brilhante que não arranjava emprego.
Ela e eu havíamos sobrevivido a longas separações e nunca
tínhamos sido especialmente monogâmicos — ela gostava de
citar Janis Joplin: Honey, get it while you can (querido, aproveite
sua chance enquanto pode). Tínhamos planos vagos de nos
encontrarmos depois que ela terminasse o ph.D., o que não seria
logo. Eu era ambivalente, imagino, em relação à minha ligação
com ela, mas não lhe dei sequer a possibilidade de vetar minha
decisão de partir.
Mandei fazer uma prancha sob medida para a viagem. Era
uma monoquilha de dois metros e trinta centímetros, mais longa,
grossa e muito mais pesada do que aquelas com as quais eu
costumava surfar. Mas essa prancha de viagem precisava ter boa
flutuação e boa remada — nós estaríamos em um mundo
desconhecido de correntes à beira de recifes — e precisava
funcionar em ondas grandes e poderosas. Acima de tudo, não
podia quebrar. Aonde estávamos indo, seria impossível substituir
uma prancha quebrada. Pus um leash nela, o que, para mim, foi
uma concessão. Leashes eram usados havia alguns anos e, em
Santa Cruz, tinham traçado uma linha bem definida separando os
puristas, que achavam que o leash encorajava o surfe burro e
desleixado, das pessoas que imediatamente o adotaram, que,
por sua vez, achavam que uma boa definição de burrice era ter a
prancha perdida destroçada sem necessidade nos penhascos em
picos como Steamer Lane. Eu era um purista, então nunca usara
um leash. Mas mesmo eu sabia que não podia me dar ao luxo de
perder minha prancha do Pacífico Sul em alguma onda qualquer
no meio do oceano em Fiji e arriscar nunca mais vê-la. Usei a
prancha por alguns meses antes de partirmos e amei como ela
encarava dias grandes em Lane. Durante uma sessão
assustadora de fim de inverno em Ocean Beach, São Francisco,
meu leash arrebentou, me deixando solto em ondas grandes,
tendo que nadar no frio e por muito tempo até depois de
escurecer. Depois disso, comprei um leash mais grosso e alguns
sobressalentes.
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I got a hot rod Ford and a two-dollar bill (Tenho um Ford envenenado e
uma nota de dois dólares)
And I know a spot just over the hill (E conheço um lugar logo depois da
colina)
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Encontramos nossa cota de pessoas estranhas em Samoa. Um
rapaz chamado Tia nos conduziu a uma praia remota que
descobrimos não ter ondas. Como prêmio de consolação,
imagino, ele nos contou histórias elaboradas sobre cada
enseada, afloramento rochoso e recife pelos quais passamos.
Havia fratricidas, parricidas e um elenco vívido de demônios
cristianizados. Havia um suicídio em massa — toda uma aldeia
se autossacrificou. Fiquei impressionado. Toda pedra da costa
parecia ter um lugar na literatura sagrada. Em dado momento,
Tia falou: “Se vocês voltarem em três anos, essa praia vai ser
realmente um lugar legal, porque eu tenho dinheiro no banco da
Nova Zelândia, então vou comprar dinamite e deixá-la bonita.”
Nós nos juntamos com um ministro presbiteriano, Lee, e sua
esposa, Margaret. Eles eram da Nova Zelândia, mas tinham
acabado de passar nove anos na Nigéria. Agora viviam nos
fundos de uma igreja em Apia com três filhos pequenos. Lee
estava ansioso para nos mostrar o lugar. Usava short vermelho
justo e dentaduras grandes, acinzentadas. Tinha um queixo
pontilhado com poros profundos, óculos grossos e uma
quantidade impressionante de pelos corporais. Ele, na verdade,
não sabia muito sobre Samoa, e seu interesse por nós logo
diminuiu, mas Margaret assumiu a tarefa e continuava nos
convidando para passeios ou para sua casa. Lee tinha um amigo,
Valo. Jovem e muito atraente, Valo tinha LOVE ME TENDER
tatuado no bíceps. Lee observava Valo constantemente,
extasiado, e, quando Valo não estava por perto, falava sobre ele.
“Valo e eu podíamos vir para cá e achar um cantinho onde
ninguém nunca nos encontrasse”, disse na praia, com um tom
melancólico. Eu sentia pena de Margaret, que era baixinha e
doce e, quando Lee a depreciava com sarcasmo, arregalava os
olhos de modo infantil por trás dos óculos e sorria para nós. Valo
disse a Bryan que Rothman’s era seu cigarro favorito porque
havia uma mensagem secreta no nome da marca: “Right on,
Tom, hold my ass, now shoot!” (É isso aí, Tom, agarre minha
bunda, agora mande ver!). Quando o piquenique seguinte se
aproximou, Bryan e eu conversamos em espanhol para tramar
nossas desculpas.
Nos arredores de Apia, ficamos em um lugar chamado o
Paraíso do Entretenimento. Era em parte um hotel de beira de
estrada, com alguns chalés modestos, mas cuja atividade
principal era uma boate local apropriadamente batizada, que
pertencia a um parlamentar enorme chamado Sala Suivai e era
administrada por ele. Havia um palco recuado ao ar livre, com um
lance curvo de arquibancada. Em algumas noites, eles exibiam
filmes. Bandas de música dançante tocavam nos fins de semana.
Certa vez armaram um ringue de boxe, e uma multidão eufórica
assistiu a um duelo entre cientistas locais. Ninguém prestava
muita atenção em nós — os palagis com seus pés enfaixados,
suas cartas náuticas abertas sobre mesas perto do bar. E ser
ignorado, a urbanidade disso, foi uma mudança agradável.
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“Está bom”, disse Bryan. “Você parece um padre muito liberal.”
Ele se referia à minha barba, que se tornava cada vez mais
desgrenhada. Mas reparei que estava falando sobre mais que
isso, é claro. Estávamos começando a ficar de saco cheio um do
outro. Circulando por mundos desconhecidos, levávamos um
mundo juntos, cheio de compreensões compartilhadas, para o
qual podíamos nos retirar. Mas esse local estava muito cheio,
com dois egos grandes se empurrando. Éramos tão dependentes
um do outro, estávamos sempre tão juntos, que qualquer
diferença irritava e inflamava. Eu me vi copiando em meu diário
um trecho de Anna Karenina sobre Oblonsky e Levin e sua
amizade tensa. Será que Bryan estava sorrindo para mim com
ironia? Eu achava que sim e levava muito a sério breves
comentários como aquele do padre.
Isso porque eu sabia que ele estava tramando alguma coisa.
Bryan era um conservador sofisticado, cético em relação a tudo o
que era novo. Certa vez, na faculdade, no auge do movimento
estudantil antiguerra, ele despertou a fúria dos colegas de turma
ao levar a uma passeata de protesto a mensagem nada
entusiasmada: GUERRA É ESPAÇO — VAMOS, METS. Ele ainda achava
a expressão “paz mundial” de uma inutilidade cômica. Eu levava
as coisas mais a sério. No ensino médio, participara da passeata
contra a Guerra do Vietnã, acreditando fervorosamente que o
conflito devia ser interrompido. Eu tinha crescido ouvindo música
de protesto — Joan Baez, Phil Ochs —, e isso ainda ocupava um
lugar secreto em meu coração. Bryan odiava essas coisas e toda
a autocongratulação suburbana e sentimental que elas
representavam. Nunca o ouvi citar Tom Lehrer, que cheguei a
conhecer em Santa Cruz, mas tinha certeza de que ele ia gostar
de seus versos astutos:
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Suva é uma cidade tropical verde e agitada, a maior do Pacífico
Sul. Está situada em uma península montanhosa acima de uma
ampla baía azul. Ficamos em um local suspeito — meio bordel,
meio pensão — chamado Harbourview. Os proprietários eram
uma família indiana. Metade da população de Fiji (e a maior parte
da classe empresarial) é etnicamente indiana. Marinheiros de
todas as nacionalidades circulavam pelo bar do Harbourview à
noite, se envolviam em brigas à moda antiga e levavam as
garotas do bar para o andar de cima. Nós dormíamos e
guardávamos nossas coisas em um quarto abafado com vários
beliches por alguns dólares por noite. O centro da cidade de
Suva era cheio de turistas, expatriados e passageiros de
cruzeiros. Bryan e eu tiramos a sorte grande e tivemos breves
casos com garotas australianas de passagem.
Nosso plano era seguir para oeste, e talvez de volta ao sul
para algumas ilhas de aspecto promissor na janela do swell.
Suva é uma parada popular para iates de cruzeiro, por isso
examinamos o quadro de avisos no Royal Suva Yacht Club em
busca de veleiros à procura de tripulação. Enquanto
esperávamos que alguma coisa aparecesse, comecei a passar
meus dias na Biblioteca Municipal de Suva. Ficava em um prédio
colonial belo e arejado construído em frente ao mar. Em uma de
suas largas mesas de leitura feitas de mogno, recomecei à mão
meu romance sobre a estrada de ferro, com novos personagens
principais.
Havia alguns barcos de surfistas ancorados em Suva. Um
deles pertencia a um americano com uma namorada taitiana. Ele
se dirigia a oeste, mas seu barco, o Capella, era pequeno. O
outro era um ketch australiano de uns quinze metros chamado
Alias. Tinha um casco com marcas de ferrugem e uma aparência
gasta, como se tivesse sido exposto a muitas intempéries, com
equipamentos antiquados, bicicletas e pranchas de surfe presas
à amurada da proa. Achei que o barco devia ter uns oitenta anos.
Na verdade, tinha dois. Uma comunidade de surfistas o
construíra do zero perto de Perth, na Austrália Ocidental, usando
madeira roubada e peças e ferramentas que arranjavam. As
mulheres do grupo tiveram que trabalhar como garçonete para
manter os trabalhadores alimentados durante o processo. O
casco era de ferro e cimento. Um cara alto, queimado de sol e
com cabelo cacheado chamado Mike nos contou a história do
barco. Disse que o Alias quase não sobreviveu à sua viagem
inaugural depois que os marinheiros novatos, ansiosos por
ventos, os levaram mais para o sul, para os Roaring Forties, e
foram atingidos por uma tempestade. “O mar chegava à altura do
mastro”, disse Mick. “Fomos derrubados uma vez. Estávamos
todos lá embaixo, rezando. Achamos que íamos morrer.” Quando
eles chegaram capengando à Austrália do Sul, metade do grupo
desembarcou, jurando nunca mais navegar. Quatro pessoas —
dois casais — tinham ficado. A namorada de Mick, Jane, estava
com gravidez bem adiantada, por isso o Alias não iria a lugar
nenhum até que ela desse à luz.
Certa manhã, quando eu por acaso estava fazendo uma visita,
o rádio do Alias crepitou com o fragmento de uma notícia
animadora. Eu perdi, mas Mick não. Ele berrava como se tivesse
levado um tiro. “Graham!” Graham era o outro surfista a bordo.
Ele apareceu na escada da escotilha, os olhos brilhantes e
estreitos cercados por uma juba loura de leão. Mick prosseguiu:
“Uma esquerda perfeita de trezentos metros. Foi o que acabei de
ouvir. Acho que era Gary, chamando seu parceiro aqui.” O que
ele queria dizer, e foi o que me explicou mais tarde, era que um
terceiro barco de surfistas, comandado por um americano
chamado Gary, estava em Fiji. Gary viajava com o Capella, mas
tinha ido sozinho na frente algumas semanas antes. A chamada
pelo rádio era claramente sobre uma descoberta em algum lugar
a oeste. Mick foi fazer perguntas ao cara que recebera a
chamada. Ele era um homem rechonchudo e desconfiado
chamado Jim, e não ficou muito satisfeito ao ser interrogado por
um australiano alto e determinado. No fim, admitiu que Gary
estava viajando no Grupo Yasawa, no noroeste de Fiji, e pelo
visto tinha encontrado ondas por lá. Isso não fazia sentido. As
Yasawas estavam bloqueadas de receber swells de sul por um
arquipélago chamado Mamanucas e por uma área muito grande
a oeste de Viti Levu e cercada por recifes conhecida como as
Nadi Waters.
***
***
Quanto mais olhávamos para as Yasawas no mapa — essas
eram as ilhas onde os americanos no veleiro supostamente
haviam encontrado ondas —, mais estúpida a ideia parecia. Elas
estavam bloqueadas dos swells de sul e ponto final. Mesmo
assim, fomos até Lautoka, um porto no noroeste de Viti Levu. De
lá saíam barcos para as Yasawas. Hesitamos no cais, checando
o preço de barcas, fazendo perguntas. Nada que ouvimos nos
fez mudar de ideia. Ir até lá com nossas pranchas era besteira.
Desistimos de seguir para o oeste de Fiji, derrotados, e
reservamos um ônibus de manhã cedo para Suva. Mas só
chegamos até a rodoviária. Bryan estava com uma dor de barriga
que piorava cada vez mais. Uma viagem de ônibus de dia inteiro
não seria possível. Voltamos para o hotel. Bryan retornou para a
cama e eu saí para caminhar por Lautoka.
Naquela tarde, vi uma coisa estranha na rua: cabelo louro.
Ainda por cima, em uma mulher jovem e branca. Eu a segui até
um café e me apresentei. Ela era da Nova Zelândia, chamava-se
Lynn e gostava de conversar. Durante o café, me contou que
estava em um barco com alguns americanos, entre eles seu
namorado e uma mulher taitiana.
Perguntei por onde eles tinham navegado.
Haviam ficado ancorados ao largo de uma ilha desabitada por
semanas. “Para que os rapazes pudessem surfar”, explicou ela.
Ah.
Ela sabia que estava contando um segredo, mas pareceu se
divertir com a travessura. Seu namorado era professor na Samoa
Americana, disse ela. John Ritter.
Falei para ela que eu o conhecia. Na verdade, outro surfista
professor em Guam nos dissera para procurar por Ritter em Pago
Pago, mas nunca chegamos até lá. Falei para Lynn que aquilo
era fantástico e pedi que me levasse até ele.
Ela fez isso.
Ritter ficou surpreso quando apareci com Lynn e visivelmente
alarmado quando comecei a recitar o nome de surfistas que ele
conhecia em Guam e quando insisti para que ele fosse até o
nosso hotel conhecer Bryan. Ritter tinha menos de trinta anos,
fala mansa e um jeito reservado. Exibia uma cabeleira vasta
embranquecida pelo sol e óculos de vovó remendados com fita
adesiva. Não tentou esconder a irritação com Lynn, mas depois
pareceu decidir que a batalha estava perdida e concordou em ir
tomar uma cerveja.
Ritter nos contou que a onda não ficava nas Yasawas. Isso era
um ardil. Ela ficava nas Mamanucas, o que fazia muito mais
sentido. Na verdade, ficava na barreira de recifes Malolo, que
protegia as Mamanucas, na extremidade sul de Nadi Waters. A
ilha se chamava Tavarua. Ficava cerca de oito quilômetros a
oeste de Viti Levu. A onda acompanhava todo o lado oeste da
ilha e quebrava nos alísios. Ritter rascunhou um mapa em um
guardanapo. Explicou que podia ser inconstante. Era preciso o
swell certo. Ele dava a impressão de não querer dizer mais nada.
No dia seguinte, enquanto nos preparávamos para investigar,
encontrei a carta náutica que faltava. Bizarramente, estava em
um mostruário de brochuras turísticas. O mapa proibido tinha
sido usado como imagem de fundo para um anúncio do tamanho
de um jogo americano para um “cruzeiro mágico de três dias
pelas lagoas” em um veleiro que saía de um resort mais abaixo
na costa. O anúncio fora feito em papel pardo pesado com
bordas irregulares, como de pergaminho, desenhado para
parecer o mapa de tesouro de um pirata. A carta náutica,
evidentemente tirada da biblioteca pré-guerra de alguém,
entretanto, era a peça que faltava em nossa coleção. Tavarua
estava ali, assim como a longa barreira de recifes, que corria da
ilha para noroeste com as expressões “Ondas oceânicas fortes”,
“Arrebentação forte” e “Recifes sob a superfície” escritas em suas
ondulações. A aldeia mais próxima de Tavarua em Viti Levu se
chamava Nabila.
Pegamos um ônibus até lá. A aldeia ficava a vários
quilômetros de uma estrada pavimentada. Havia uma ferrovia em
miniatura para transportar cana-de-açúcar que corria sob colinas
marrons queimadas. Mangues cresciam em uma profusão
maçante ao longo de uma costa sem ondas. O ônibus parou sob
uma árvore de fruta-pão. “Nabila”, anunciou o motorista.
A aldeia era quente, silenciosa e sonolenta. Dava a impressão
de não haver ninguém por lá. Escalamos uma grande colina que
se erguia atrás da aldeia, subindo sinuosamente e passando por
cabanas de paredes de barro e telhados de palha nas quais as
crianças, que pareciam surpresas, entravam correndo. Elas não
viam muitos turistas por ali. A trilha era poeirenta e muito quente.
A uns cem metros de altura chegamos a um bom ponto de
observação. Nós nos viramos e apontamos nossos binóculos
para as ilhotas do outro lado do canal. Estávamos olhando direto
para a onda. Ela vinha do noroeste, depois de virar quase cento
e oitenta graus. Era uma esquerda longa e estreita — uma
esquerda muito longa, muito estreita. As paredes eram de um
cinza-escuro, em contraste com o mar cinza-claro. Era aquilo. O
alinhamento tinha uma simetria extraordinária. As ondas
quebravam com tamanha regularidade que pareciam fotografias.
Parecia não haver sessões intermediárias. Era aquilo. Olhando
fixamente pelos binóculos, eu me esqueci de respirar por toda a
série de seis ondas. Era, confesso, o que estávamos procurando.
***
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PAÍS DE SORTE
Austrália, 1978-1979
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Kirra, por ser uma direita famosa e com muito crowd, não era o
tipo de onda de Bryan. Ele a surfava religiosamente e conseguia
encontrar os espaços na multidão em sessões bem cedo com
pouca gente, em pontos de inflexão nos vários bancos de areia
onde podia conseguir suas ondas, mas não se comprometia com
a disputa do mesmo jeito que eu, nem em buscar o Graal que em
dias excelentes encarnava repetidamente no vórtice do Butter
Box (que passamos a chamar apenas de seção selvagem).
Bryan parecia gostar da Austrália tanto quanto eu — a insolência
incorrigível dos australianos, os salários maravilhosos, a gíria
rica, o sol, as garotas. Mas não estava escrevendo, o que era
preocupante. Em Guam, ele terminara um romance ambientado
em uma cidadezinha de Idaho. O texto era ótimo, ainda melhor
que seu bildungsroman sobre os colegas de surfe no ensino
médio. Ele o enviara para um agente em Nova York. Esse era o
tipo de coisa de adulto que eu nunca ousara fazer. (Eu tinha
agora dois romances guardados na gaveta, lidos apenas por
amigos.) O manuscrito ainda não havia sido aceito por uma
editora. Bryan falou que não estava desanimado pela demora,
mas parecia ter entrado em uma fase não produtiva.
Ele lia insaciavelmente — ficção, biografias —, sentado em
uma velha cadeira de vime que pusera na porta da frente de
nosso chalé. Encontrei uma grande pilha de revistas New Yorker
velhas em um brechó em Coolangatta, vendidas por 1 centavo
cada. Comprei muitas e lhe dei de presente de Natal. Bryan pôs
a pilha ao lado de sua cadeira e começou metodicamente a ler as
revistas. Elas se transformaram em uma ampulheta de nosso
tempo em Kirra — cem exemplares lidos, duzentos faltando.
Enquanto isso, eu escrevia os capítulos de meu romance sobre a
ferrovia após enfim conseguir um enredo sólido. Nós nos
revezávamos em uma máquina de escrever antiga doada por
Sue. Bryan datilografava cartas longas e engraçadas para
nossos amigos em casa sobre nossas aventuras em Oz, algumas
delas não ficcionais. Às vezes, ele lia passagens que achava que
iriam me divertir. Uma que ficou na minha cabeça, mas não me
divertiu, nos descrevia como uma dupla fisicamente improvável
de surfistas viajantes. Ele era gordo demais, escreveu; e eu,
magro demais. Era verdade que eu era magro, e que ele era um
pouco gorducho, mas minha vaidade reagiu a essa
autodepreciação estendida. Minha reação foi estranha, em parte
porque eu sempre tentava aliviar as tensões com Bryan — e
fizera isso ainda mais com Domenic —, compulsivamente me
transformando no personagem de piadas e histórias. Mas, pelo
jeito, meu corpo estava além dos limites da zombaria, pelo
menos de uma maneira que sugerisse fraqueza ou, Deus me
livre, falta de masculinidade. Bryan tinha uma atitude melhor. Ele
não dava a seus alunos nenhuma escolha além de Clint
Eastwood, com quem não se parecia em nada. Esse truque, é
claro, era parte de seu inegável charme com as mulheres.
Por falar em corpos, Gold Coast era uma aula prática ao ar
livre de como eu estava destruindo o meu por causa do surfe.
Olhando ao redor para os australianos que passavam muito
tempo sob o sol tropical para o qual eram geneticamente
despreparados — a maioria deles tinha ascendência no norte
europeu —, eu conseguia ver meu próprio e lamentável futuro
médico. Grande parte dos surfistas, mesmo adolescentes,
parecia ter pterígio — catarata causada pelo sol — nublando
seus olhos azuis. As orelhas escamosas, os narizes roxos e os
braços assustadoramente manchados dos de meia-idade eram
um bom alerta: carcinomas basocelulares (se não carcinomas de
células escamosas, se não melanomas) à frente. Eu mesmo já
tinha pterígio nos dois olhos. Não que eu tomasse alguma
medida preventiva ou que surfar em lugares mais frios fosse
necessariamente menos danoso. Meus anos no mar congelante
em Santa Cruz me causaram exostoses — crescimentos ósseos
no canal auditivo, conhecidos como “ouvido de surfista” — que
constantemente retinham água do mar, provocando infecções
dolorosas, e que viriam a exigir três cirurgias. E havia também a
lista habitual de ferimentos causados pelo surfe: arranhões,
assaduras, ralados nos recifes, um nariz quebrado, rompimento
da cartilagem do tornozelo. Eu não dava nenhuma importância a
isso na época. Tudo o que queria do meu corpo era que remasse
mais rápido e surfasse melhor.
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***
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Partimos para o Never Never — o Território do Norte. Os
australianos nos alertavam a não tentar atravessar o centro
desde que começamos a planejar a viagem, ainda em Gold
Coast. Devíamos principalmente não tentar fazer isso com um
carro pouco confiável. Havia criminosos à espera de viajantes
desavisados. Era um percurso de dias entre paradas à beira da
estrada. Isso, podíamos ver pelo mapa, era um exagero, mas
compramos um galão para levar gasolina extra, uma bolsa de
água e algumas mangueiras sobressalentes, e nosso carro sem
dúvida não era confiável. Superaquecia todos os dias e com
frequência não ligava. Passamos a estacioná-lo apenas em
ladeiras, por mais suaves que fossem, para que pegasse no
tranco, como era geralmente necessário. Quando parávamos em
postos de gasolina, com o radiador fumegando e assobiando, era
comum que os frentistas quisessem verificar o mostrador de
temperatura. Eles enfiavam a cabeça pela janela do motorista.
“Ela vai ficar bem” sempre provocava uma risada.
Seguimos para nordeste partindo de Cactus, por uma estrada
de terra tão ignorada que vimos apenas um veículo — um
caminhão de gado — em trezentos quilômetros. A estrada
esburacada fez a janela traseira do carro chacoalhar com tanta
força que caiu por dentro da porta. Tentamos levantar o vidro e
prendê-lo no lugar, mas nada do que fazíamos parecia durar
mais de dez minutos. Seguimos em frente, com poeira branca de
sal e, depois, poeira grossa e vermelha entrando pela janela
traseira aberta. Tapamos a boca e o nariz com bandanas e
agradecemos por termos enchido o “esky” — uma geladeira
barata de isopor — com cerveja Crown Lager em Penong. As
distâncias entre as cidades do outback eram às vezes medidas
em “tinnies” — quantas latas de cerveja eram necessárias para ir
de uma a outra. Eram pelo menos doze tinnies ao norte até a
estrada principal, também de terra, na qual encontramos um
vilarejo chamado Kingoonya, onde um bar caindo aos pedaços
oferecia os mais bem-vindos hambúrgueres, servidos pela
garçonete mais bonita da Austrália.
Até a estrada principal pelo centro era ruim. Não vimos
pavimentação por quase mil quilômetros. Avistamos um número
enervante de veículos queimados virados nos arbustos e
decidimos ouvir os conselhos, várias vezes repetidos, de que
dirigir à noite sem uma “barra de cangurus” — um mata-cachorro
para cangurus — era um convite à tragédia. Vimos cangurus o
suficiente durante o dia, tanto na estrada quanto saltando
sozinhos pelo deserto. Então acampávamos à noite. Um grande
bando de galahs, aves rosa e cinza parecidas com papagaios,
voou acima de nós certa manhã enquanto nos esforçávamos
para fazer o Falcon pegar.
Demos carona para um andarilho, Joe, que caminhava pela
estrada com uma mochila a oitenta quilômetros de uma
construção. Joe era magro, como se ressequido pelo sol,
profundamente encarquilhado, longe de ser jovem, e eu não o
teria chamado de alegre, mas ele tagarelava o dia inteiro sobre
poços de minas, rios temporários e fazendas de criação de
carneiros onde tinha trabalhado. E bebia metodicamente nossas
cervejas. Perguntei-lhe sobre aquelas moscas loucas. Joe disse
que você nunca se acostumava com elas. E acrescentou que
nem mesmo os negros se acostumavam com elas. Em seguida
pediu que o deixássemos em uma trilha quase invisível que
seguia para leste. Enchemos sua garrafa de água e lhe demos 5
dólares.
Entramos no Território do Norte. Em uma aldeia poeirenta
chamada Ghan, olhei no interior de uma capa de prancha imunda
presa ao teto do carro. Minha nova prancha de rabeta pin estava
ali. Reluzente, azul-clara, ela era uma bela visão, toda maneira e
sinuosa. Conjurava outro mundo, um frescor inimaginável. Nosso
plano era dirigir até Darwin, uma cidadezinha na costa norte,
vender o carro e encontrar um caminho de lá para a Indonésia.
Bryan não tinha terminado de ler toda a pilha de New Yorkers
antes de deixarmos Kirra, e as cerca de cinquenta que faltavam
haviam sido enfiadas embaixo do banco da frente. Às vezes as
pegávamos e as líamos em voz alta — contos, poemas,
resenhas, textos de humor, ensaios, reportagens longas. Muitos
textos, um de nós ou os dois já haviam lido, mas ouvi-los no
outback era diferente. Era um teste. Como aquilo iria funcionar
sob a luz rígida e sem frescuras do deserto? Uma parte
funcionou bem. O texto ainda era forte, as histórias ainda eram
engraçadas. Mas pretensão e excessos se tornaram gritantes
sob aquele exame impiedoso, e certos escritores de repente
pareceram intelectuais pretensiosos. Eles se tornaram hilariantes
sem querer.
Estávamos ficando um tanto cheios de nós mesmos. Aquilo
era como as grandes viagens pela estrada que tínhamos feito
pelo oeste dos Estados Unidos, mas com menos pavimentação e
mais cerveja. A Fire on the Moon, de Mailer, não passou no teste
do outback, o que me aborreceu, pois ele era um dos meus
ídolos. Não ajudou o fato de ele ter sido comparado a Voss, de
Patrick White, um romance extremamente convincente sobre um
naturalista prussiano em uma expedição do século XIX pelo meio
da Austrália. Brincávamos, líamos e atirávamos em vombates
com pistolas de água feitas de plástico verde barato. Eu gostava
do jeito que Bryan dirigia. Ele o fazia com uma postura de
caminhoneiro de longa distância, ereto. Em grandes retas,
deixava uma das mãos na perna. Ele lia com atenção similar —
relaxada e duradoura. Raramente ficávamos sem ter o que
discutir. Mick e Jane haviam rido de nós quando partimos de
Sydney. Viajávamos em comboio com eles até Wollongong à
procura de ondas. Quando chegamos lá, eles disseram que
tinham nos observado por uma hora, os dois gesticulando,
sobretudo eu, sem parar. Eu estava desenvolvendo naquela
viagem uma versão inicial de uma teoria sobre Patrick White,
logo depois de ler The Eye of the Storm. Era a mesma coisa no
Alias, disseram eles, nós dois falando sem parar no ouvido um do
outro, divertindo os australianos.
No lado norte de Alice Springs, paramos para duas andarilhas,
Tess e Manja (a pronúncia correta é mun-yuh). Elas eram
estudantes de pós-graduação de Adelaide a caminho de uma
conferência de mulheres em Darwin. Alegaram não se importar
com as grossas camadas de poeira que enchiam cada canto do
Falcon. Taparam o rosto com bandanas e viajamos juntos por
cinco dias. Tess era uma jovem pequena e usava camisa xadrez
masculina. Era frágil, pálida, masculina, incisiva, com cabelo
escuro curto e um humor seco e perverso, que usava à custa de
caras sinceros e inocentes que encontrávamos em postos de
gasolina e nos pubs isolados onde nos escondíamos do calor do
meio-dia, que se tornara demais para o esforçado Falcon. Tess
foi gentil comigo, com Bryan e com nossas pistolas de água,
mesmo depois que insistimos ser veteranos do Vietnã, não
arrependidos, mas mentalmente perturbados. “Coitadinhos”,
disse ela. Falamos que nossas cicatrizes de surfe eram
ferimentos de guerra. “Nossa, isso deve ter doído. Compre uma
cerveja para a gente.”
Manja era alta, de voz suave, olhos calorosos e magra. Ela ria,
ou pelo menos sorria com indulgência, em todos os momentos
certos. Era ardentemente política, mas pegava leve, daquele
modo tímido australiano. À noite, nós dois fugíamos e
procurávamos um lugar silencioso para estender nossos sacos
de dormir. Ela me contou sobre sua infância. Crescera em uma
fazenda às margens do rio Murray. Caçadores por lá
costumavam atirar em cangurus e wallabies, explicou ela, e, se
encontrassem um filhote ainda vivo na bolsa, davam o bebê para
algum filho de fazendeiro como bicho de estimação. Eram ótimos
animais de estimação — delicados, leais, inteligentes. Ela
costumava vestir seu pequeno wallaby com chapéu e casaco, e
os dois saíam andando e saltando de mãos dadas até a cidade.
***
ESCOLHENDO A ETIÓPIA
Bryan odiou Bali. Ele escreveu uma matéria para a Tracks — que
levava, por tradição, o nome de nós dois, embora eu tivesse
dado apenas uma leve editada no texto — zombando da noção,
na época amplamente divulgada entre os surfistas australianos,
de que Bali ainda era um paraíso imaculado de ondas sem crowd
e com nativos hindus simpáticos. Bryan escreveu que, na
verdade, o local estava repleto de surfistas e outros turistas. Em
Bali era possível “ver europeus de ambos os sexos sem a parte
de cima e de baixo da roupa de banho”, “escutar as mentiras de
surfistas do mundo inteiro”, “contratar um carregador de prancha
e experimentar a emoção estonteante do colonialismo” e “dizer
às pessoas que você é de Cronulla quando na verdade é de
Parramatta” — este último, um subúrbio de Sydney menos legal
que o primeiro.
Eu concordava que Bali estava cheia demais, e a colisão do
turismo de massa com a pobreza indonésia era grotesca, mas
ainda assim o lugar me agradou. Ficamos em um losmen
(hospedaria) barato e limpo na praia de Kuta, comemos bem sem
gastar quase nada e surfamos todos os dias. Encontrei um bom
lugar para escrever na biblioteca de uma faculdade em
Denpasar, a capital da província, e todas as manhãs pegava um
ônibus até lá. Era um refúgio fresco e silencioso em uma ilha
quente e barulhenta. Meu romance avançava. Um vendedor
ambulante com um carrinho azul-turquesa aparecia na porta da
biblioteca ao meio-dia, meu sinal de que era hora de parar. Ele
servia arroz, sopa, doces e satay pelas janelas abertas das salas
do campus. Eu gostava do seu arroz frito — nasi goreng, em
indonésio. À tarde, se houvesse swell, Bryan e eu seguíamos
para a península de Bukit, onde esquerdas maravilhosas
quebravam em frente a penhascos de calcário. Também havia
boas ondas perto de Kuta, mesmo em swells pequenos, e,
quando soprava um vento sudoeste, em uma área de resorts na
costa leste chamada Sanur.
O pico que cravou mais profundamente seus anzóis em mim
foi uma esquerda ampla já famosa chamada Uluwatu. Ela ficava
diante da extremidade sudoeste de Bukit. Havia um templo hindu
do século XI, feito de coral cinza, empoleirado na beira de um
alto penhasco logo a leste da onda. Você entrava no mar na
maré alta através de uma caverna marinha onde batia água.
Uluwatu ficava grande e, nos maiores dias, quando havia um leve
vento terral, as paredes longas e azuis faziam algo que eu nunca
tinha visto. Em pontos distintos e bem separados ao longo da
linha do swell, elas começavam a borrifar com delicadeza bem à
frente de onde você estava surfando — centenas de metros à
frente e a centenas de metros da costa. Aparentemente havia
uma série de contrafortes rochosos estreitos que se projetavam
para o mar a partir do recife interior, formações rasas o suficiente
para fazer uma onda grande borrifar água, mas, pelo menos nos
swells que surfamos, não para fazê-la quebrar. No início era
perturbador, mas depois de surfadas radicais em algumas ondas
maciças que não fechavam, a visão daquelas seções borrifando
ao longe apenas aumentava a alegria de voar pela parte da onda
que quebrava, já que aqueles borrifos distantes na baía logo
iriam se tornar — você passava a confiar — belas seções na laje
interna.
O inside de Uluwatu era conhecido, sem muita originalidade,
como a Racetrack, pista de corrida. Era raso e muito rápido, com
um coral afiado que deixou a marca de suas garras em meus
pés, meus braços e minhas costas. Certa tarde, a onda me
assustou muito. O crowd, que podia ser grande em Uluwatu,
mesmo em 1979, tinha diminuído, o que achei misterioso, já que
o surfe estava excelente. Havia talvez cinco de nós ainda na
água. A maré estava baixa; as ondas, grandes e rápidas. Eu
conseguia ver uns vinte ou trinta caras na falésia, todos
estreitando os olhos na direção do sol poente, o que devia ter
feito com que eu me perguntasse: Por que eles estão olhando e
não surfando? Peguei algumas boas ondas até que uma
respondesse à pergunta que eu deixara de fazer. Era bem mais
alta do que eu, de parede escura, pesada, e eu, ligadão de
testosterona, cometi o erro de forçar uma manobra cavada para
dentro da Racetrack. Toda a água escoara do recife. A maré
estava baixa demais para surfar uma onda daquele tamanho. Era
por isso que todo mundo tinha saído da água. Eu não tinha como
escapar dali, era tarde demais. Não podia mergulhar da prancha.
Não havia água. Peguei o tubo de backside mais profundo da
minha vida. Era muito escuro e barulhento. Não curti. Na
verdade, mesmo quando ficou claro que eu talvez conseguisse
sair, desejei, com uma noção estranha e amarga da ironia
daquilo, estar em qualquer outro lugar da Terra. Deve ter sido um
momento de satori, um raio de iluminação após um treino longo e
paciente. Em vez disso, eu me sentia infeliz porque o medo,
totalmente justificado, tomava meu coração e meu cérebro.
Completei a onda, mas escapei de ferimentos terríveis, se não de
coisa pior, por pura sorte. Botar para dentro tinha sido uma
decisão com pouca probabilidade de sobrevivência. A estupidez
havia me colocado no interior daquele tubo. Se eu tivesse a
chance de fazer aquilo de novo, não faria.
Havia tantos surfistas em Kuta que era como ir a uma
conferência mundial de obcecados por ondas. Todos eles podiam
estar mentindo, mas havia pessoas falando de surfe em praias e
esquinas, em bares, cafés e pátios de losmen, vinte e quatro
horas por dia, sete dias por semana. Max, que uma vez tinha
zombado de mim e de Bryan, teria se divertido com aquela
multidão. Mas achei estranhamente comovente a intensidade
com que um grupo de caras podia falar sobre as linhas de uma
prancha apoiada na parede — seus pontos de liberação, o rocker
—, ou a forma como surfistas costumavam se abaixar para
desenhar no chão de terra a disposição de seus picos de origem
para caras de outros lugares, outros países. Eles sabiam que
suas histórias não fariam sentido se os ouvintes não
entendessem exatamente como um fundo de recife de Perth
pegava um swell de oeste. Eles se perdiam em diagramas com
mais informações do que qualquer um poderia querer. Parte
desse estranho ardor podia ser explicada pela saudade de casa,
ou simplesmente pelas horas incontáveis passadas surfando e
estudando aquele recife em particular, mas boa parte disso
também era, devo dizer, estimulada pelas drogas. Surfistas em
Bali, junto com legiões de mochileiros ocidentais que não
surfavam, fumavam quantidades assombrosas de haxixe e
maconha. Bryan e eu fazíamos parte dos pouquíssimos
abstêmios. A maconha começara a me deixar ansioso na
faculdade. Eu não fumava nada havia uns cinco anos,
provavelmente. Bryan gostava de chamar tudo de “drogas
falsas”, com exceção do álcool.
Eu começara a tentar atrair o interesse de revistas por
matérias de viagens. Minha primeira pauta veio da edição de
Hong Kong de uma publicação das Forças Armadas norte-
americanas chamada Off Duty. Nunca tinha visto a revista
(continuo nunca tendo visto), mas os 150 dólares que me
ofereciam pareciam ótimos. Eles queriam uma matéria sobre
receber uma massagem em Bali. Havia mulheres massagistas
por toda parte em Kuta, com suas cestas de plástico cor-de-rosa
cheias de óleos aromáticos. Eu era tímido demais para abordar
uma delas na praia, onde dezenas de corpos pálidos eram
esfregados o dia inteiro. Mas, assim que mencionei meu
interesse, a família que administrava nosso losmen chamou uma
velha senhora de braços fortes. As crianças do estabelecimento
riram quando ela olhou para mim com um prazer sádico e me
mandou deitar de bruços em uma cama de armar no pátio. Fiquei
realmente assustado quando ela mergulhou aquelas mãos
poderosas nos músculos das minhas costas. Eu havia distendido
um músculo do alto das costas quando trabalhava na ferrovia,
enquanto puxava uma alavanca enferrujada de engate em
Redwood City, que nunca havia sido curado direito. Imaginei
aquela massagista valentona apertando com força a área
machucada e causando um dano ainda maior. Perguntei-me
desconfortavelmente se esse episódio daria ao menos um bom
material para a reportagem. A lesão em si já tinha uma história
um tanto agridoce. Quando aconteceu, meus colegas ferroviários
me aconselharam a não pegar nenhum dinheiro e não assinar
nenhum papel da empresa. Disseram que aquilo podia ser meu
bilhete de 1 milhão de dólares — a peça defeituosa do
equipamento que me permitia processar a ferrovia, ficar rico e me
aposentar cedo. Achei aquele pensamento desprezível. Por isso,
alguns dias depois, quando minhas costas melhoraram, recebi
um cheque, assinei uma liberação e retornei ao trabalho. Claro
que minhas costas voltaram a doer no dia seguinte e desde
então não pararam. Mas a massagista não me machucou. Seus
dedos encontraram o músculo danificado, massagearam e
trabalharam ao redor dele com delicadeza. O músculo parou de
doer naquele dia e ficou semanas sem latejar.
Em determinado momento, fiquei doente. Tive febre, dor de
cabeça, tonteira, calafrios, uma tosse seca. Estava fraco demais
para surfar, me sentia péssimo para trabalhar. Depois de um ou
dois dias, eu me arrastei até Sanur, deitado nos fundos de um
micro-ônibus, e encontrei um médico alemão em um dos grandes
hotéis. Ele disse que eu tinha febre paratifoide, que não era tão
grave quanto a tifoide. Falou que eu provavelmente a pegara por
causa de algo que tinha comido na rua. O médico me deu
antibióticos e disse que eu não ia morrer. Eu quase nunca ficava
doente, o que significava que eu não possuía nenhuma outra
experiência de fraqueza física para servir de parâmetro.
Mergulhei em um sofrimento intermitente, suando, apático, me
autodepreciando. Comecei a pensar, agora com mais desespero,
que tinha desperdiçado a vida. Desejei ter dado ouvidos aos
meus pais. (Patrick White: “Pais, aqueles arquiamadores da
vida.”) Minha mãe sempre quisera que eu me tornasse um
Nader’s Raider — um dos jovens advogados idealistas que
trabalhavam para Ralph Nader, expondo os crimes das grandes
corporações. Por que eu não tinha feito isso? Meu pai teria
gostado que eu me tornasse jornalista. Seu herói tinha sido
Edward R. Murrow. Quando jovem, meu pai trabalhou como
contínuo para Murrow e seus camaradas em Nova York. Por que
eu não dera ouvidos a ele? Bryan entrava e saía do quarto, acho
que olhando desconfiado para mim, enquanto eu chafurdava em
autopiedade. Não, as ondas não estavam muito boas, ele dizia.
Bali ainda era uma droga. Onde estava dormindo? Bryan tinha
conhecido uma mulher. Pelo que entendi, uma italiana.
Recebíamos correspondência — posta-restante — na praia de
Kuta. Mas eu não tinha notícias de Sharon havia semanas.
Comecei a me sentir esquecido, com raiva. Certa manhã, quando
já me sentia um pouco mais forte, fui andando lentamente até o
correio. Havia cartões e cartas da família e de amigos, mas nada
de Sharon. Pensei em lhe mandar um telegrama, mas percebi
um grupo de turistas reunido perto de alguns velhos telefones
presos à parede sob uma placa: INTERNASIONAL. O telefone — que
ideia! Liguei para ela. Era apenas a segunda ou terceira vez que
nos falávamos em um ano. A voz dela era como música de outra
vida. Fiquei em transe. Ela e eu trocamos várias cartas, mas a
grande e delicadamente equilibrada distância entre nós dois
desmoronou quando Sharon murmurou em meu ouvido em
tempo real. Ela ficou assustada quando eu disse que estava
doente. Eu tinha que melhorar. Sharon disse que ia me encontrar
em Cingapura no fim de junho. Aquela era uma grande notícia.
Estávamos em meados de maio.
Melhorei.
***
***
Meus pais tinham mandado para mim e para Bryan dois bonés
de um filme para TV no qual tinham trabalhado, Vacation in Hell.
As pessoas perguntavam o que a expressão significava. Meu
bahasa indonésio não permitia uma boa tradução para “férias no
inferno”. Bryan passou a responder: “Você está olhando para
elas, colega.”
Mike voltou direto para Bali com José. Quando partimos, ele
havia nos avisado solenemente: “A Indonésia é uma armadilha
mortal.” Isso foi melodramático, mas não era fácil viajar por Java
e Sumatra com pranchas de surfe gastando pouco. Todo ônibus
e toda van que pegávamos era desconfortável e insultante de tão
lotado, os motoristas tentando, literalmente, espremer os
passageiros para obter mais lucro. Ainda assim, eu precisava
reconhecer o heroísmo dos meninos condutores, seus feitos
incríveis de equilíbrio, agilidade e força, agarrados à beira da
porta, em velocidades de arrepiar, pechinchando as tarifas em
altíssima velocidade e, em alguns casos, suas relações públicas
habilidosas, que mantinham os fregueses ao menos parcialmente
satisfeitos. Descalças, vestindo trapos, essas crianças brilhantes
faziam com que os ferroviários americanos, sempre
desembarcando com cuidado de locomotivas e vagões de carga
de acordo com manuais de instruções detalhados, sempre
usando nossas botas de bico de aço, parecessem extremamente
cautelosos.
Pegamos um trem que atravessava parte de Java. Com
metade do corpo para fora da janela a fim de pegar vento, fiquei
impressionado com a maneira como, para alguém vendo de um
trem a Indonésia, o principal negócio da nação parecia ser
defecar. Todo córrego, rio, barragem e campo de arroz parecia
ter uma fila de fazendeiros e aldeões placidamente agachados.
Era um tour pelo maior e mais pitoresco banheiro do mundo, e
aquilo me lembrou de que eu tinha jurado ser mais cuidadoso
com o que comia e bebia após minhas loucuras paratifoides em
Bali. Porém, ainda me alimentava em barracas de rua e nos
hospedávamos em lugares suspeitos. De qualquer forma, eu
havia contraído malária em Plengkung, mas ainda não sabia
disso. Nesse meio-tempo, um médico em Jacarta disse que o
tímpano de Bryan estava mesmo rompido. Ele lhe deu algumas
pastilhas e disse que logo ficaria bom.
A região rural do sudeste da Ásia, com seu tropicalismo
intenso, trazia pequena semelhança com a Polinésia rural. Mas
as diferenças entre os dois lugares eram bem mais
pronunciadas. Vastas civilizações haviam se erguido ali nos
excedentes criados por uma agricultura baseada no plantio de
arroz. Centenas de milhões de pessoas viviam e trabalhavam na
área, em sociedades de castas incompreensivelmente
complexas. Comecei a entrevistar algumas de maneira
semiformal — era uma coisa estranha de fazer, sem nenhum
projeto especial em mente, mas eu estava curioso, e elas
frequentemente pareciam satisfeitas em serem entrevistadas —
sobre a história de suas famílias, sua renda, suas perspectivas e
esperanças. Um produtor de arroz perto de Jogjakarta, um
capitão do Exército aposentado, me fez um relato detalhado de
sua carreira, das despesas operacionais de sua fazenda, do
progresso do filho mais velho na universidade. Porém, em quase
toda história que ouvia, eu notava um grosso véu em torno do
período de 1965-1966, quando mais de meio milhão de
indonésios foram mortos em massacres liderados pelos militares
e clérigos islâmicos. Os alvos principais tinham sido comunistas e
supostos comunistas, mas pessoas de etnia chinesa e cristãos
também morreram ou foram desalojados em massa. A ditadura
de Suharto, que emergiu desse banho de sangue, ainda estava
no poder, e os massacres eram história suprimida, não ensinada
nas escolas nem discutida em público. Um motorista de táxi com
pedal em Padang, cidade portuária no oeste de Sumatra, me
contou em voz baixa sobre os anos que passou na prisão por
suspeita de ser esquerdista. Ele tinha sido professor antes do
grande expurgo. Gostava de americanos, mas falou que o
governo dos Estados Unidos tinha ajudado e aplaudido a
matança.
Para nós, Sumatra foi uma mudança refrescante depois de
Java. Mais montanhosa, menos cheia, mais próspera, menos
abafada, pelo menos nas áreas que cruzamos. Tínhamos um
mapa do tesouro que nos fora dado no Pacífico Sul por uma
intrépida kneeboarder australiana que disse ter surfado uma
grande onda em Pulau Nias, uma ilha a oeste de Sumatra. Pelo
visto não era mais um pico secreto, mas um portal-chave que
ainda não havia sido cruzado — nenhuma foto fora publicada.
Pegamos uma barca pequena, espartana e movida a diesel em
Padang. Eram cerca de trezentos e vinte quilômetros até Nias, e
uma tempestade nos atingiu na primeira noite após a partida.
Nós nos balançamos em total escuridão. Às vezes, de forma
aterrorizante, parecíamos perder o controle do barco. Ondas
passavam pelo convés. A única cabine era um pequeno barraco
sujo de compensado para o timoneiro. A maioria dos passageiros
estava enjoada. Mas as pessoas eram de uma força
impressionante. Ninguém gritava. Todos rezavam. Tivemos sorte
por ninguém ter caído no mar e por aquela banheira velha não ter
afundado. Entramos com o ruído intermitente do motor em Teluk
Dalam, um pequeno porto na extremidade sul de Nias, em uma
manhã cinzenta, úmida e quente. Achei que tudo em Teluk Dalam
se encaixaria em um romance de Joseph Conrad. Nias tinha uma
população de quinhentas mil pessoas e não possuía eletricidade.
A onda ficava cerca de quinze quilômetros a oeste, perto de
uma aldeia chamada Lagundri. A kneeboarder estava certa. Era
uma direita imaculada. Ela quebrava em um pontal, mas na
verdade era uma onda de recife, já que não acompanhava a linha
da costa e se erguia nitidamente, uma parede reta como uma
régua quando atingia o recife, e depois se abria em paralelo à
costa, sem seções, por provavelmente oitenta metros, fazendo
um belo tubo com o vento antes de atingir águas profundas. Uma
pequena fileira de coqueiros altos no pontal se inclinava sobre a
água como se quisesse ter uma vista melhor da onda. Era
realmente uma imagem esplêndida. A baía de Lagundri tinha
forma de ferradura e era funda. A aldeia, a menos de dois
quilômetros do pico e separada da praia por um palmeiral, era
composta por uma coleção modesta de cabanas de pescadores,
exceto por uma casa de madeira de três andares, imponente e
bastante ornamentada, com um telhado íngreme bem elaborado.
Era o losmen. Havia quatro ou cinco surfistas hospedados ali,
todos australianos. Se eles ficaram chateados com a nossa
chegada, esconderam bem. Penduramos os mosquiteiros em
uma varanda no segundo andar.
Foi naquela varanda que Bryan me avisou que estava caindo
fora. Lembro que, quando ele disse isso, eu estava lendo uma
biografa de Mark Twain, escrita por Justin Kaplan, que trocamos
várias vezes entre nós. Era uma tarde quente. Estávamos
esperando que o pior do calor passasse antes de cair na água ao
fim do dia. A notícia não foi uma surpresa completa. Bryan vinha
comentando sobre encontrar Diane na Europa durante as férias
de verão dela.
Ainda assim, doeu. Não tirei os olhos do livro.
Quando perguntei o porquê, ele explicou que não era por
minha causa. Que estava apenas cansado. E com saudade de
casa. E de saco cheio de viajar. Diane lhe dera um ultimato, mas
Bryan estava pronto para ir. Ele ia procurar um voo barato em
Cingapura ou Bangcoc e provavelmente partir no fim de julho.
Isso seria em seis ou sete semanas.
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Uma das razões pelas quais dar aulas me monopolizou foi que
era impossível ensinar usando os livros didáticos que
recebíamos. Eles tinham ranço de propaganda do apartheid e
informações incorretas. O currículo de geografia, por exemplo,
incluía uma seção sobre os vizinhos da África do Sul que os
retratava como colônias portuguesas pacíficas. Na verdade, até
eu sabia que Moçambique e Angola tinham lutado guerras longas
e sangrentas de libertação nacional, haviam expulsado os
portugueses alguns anos antes e agora travavam guerras civis
desesperadas nas quais a África do Sul armava e treinava os
rebeldes. Nossa versão curricular da geografia urbana da África
do Sul era, à sua maneira, pior. Tratava a segregação racial
residencial, por exemplo, como se fosse uma lei da natureza, que
evoluíra pacificamente. Apresentar aquela ficção, que servia ao
regime como fato, em uma comunidade que só existia devido aos
despejos violentos em massa de bairros designados como
“brancos” sem dúvida não era legal. Por isso, mergulhei em
pesquisa, tentando aprender rapidamente esse e outros tópicos,
o que se revelou mais difícil do que o esperado. Muitos dos livros
relevantes eram proibidos. Consegui encontrar uma seção
especial na biblioteca da Universidade da Cidade do Cabo, onde
algumas publicações proibidas podiam ser consultadas, não
emprestadas; mas eu ainda estava, é claro, desgraçadamente
correndo atrás do prejuízo quando se tratava de política e história
local e regional.
Alguns alunos meus da Grassy Park High School, Cidade do Cabo, 1980
***
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***
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Voltei para meu romance. Levei mais oito meses para terminá-lo.
Percebi que meu interesse naquele tipo de ficção estava
diminuindo. A África do Sul havia me mudado, me guiado na
direção da política, do jornalismo, de questões de poder. A única
nota amarga durante a visita de meus pais à Cidade do Cabo
ocorreu quando meu pai me perguntou o que eu estava
escrevendo e então pareceu impaciente ao ouvir que eu ainda
era basicamente um amador. No fim do ano letivo, jurei não
pegar mais empregos durante o dia. Eu viveria de escrever,
ponto. Comecei a desenvolver ensaios, matérias curtas, para
revistas americanas. Não escrevi nada sobre a África do Sul,
embora tivesse uma pilha de cadernos. Queria ir para casa —
onde quer que isso pudesse ser exatamente. Agarrei-me a uma
frase de uma das cartas de Bryan. Ele tinha se mudado de volta
para Missoula e escreveu que havia uma vaga no time de softball
para mim. Uma vaga no time de softball.
Sharon e eu enfim terminamos definitivamente. A mãe dela
tinha morrido, e Sharon conseguira um emprego no Zimbábue
dirigindo uma escola para ex-guerrilheiros deficientes. A longa
guerra de libertação nacional do Zimbábue tinha terminado havia
pouco tempo, e a “construção do socialismo” começara. A
decisão do nosso término foi toda de Sharon. Fiquei mais
aborrecido do que tinha direito. O fim do relacionamento deveria
ter acontecido muito antes.
Meu irmão Kevin apareceu na Cidade do Cabo. Eu o
incentivara a ir. Ainda assim, fiquei paranoico com a ideia de que
nossos pais o haviam mandado para me buscar. Se esse fosse o
caso, o momento era bom. Eu finalmente estava pronto para
partir. Talvez Kevin e eu fôssemos da Cidade do Cabo até o
Cairo. Minha odisseia de surfe tinha acabado. Tentei enviar
minha prancha azul de rabeta pin para os Estados Unidos — eu
gostava muito daquela prancha. Mas enviá-la custava dinheiro, e
eu precisava de cada centavo. Portanto, em vez disso, eu a
vendi. Minha perua velha estava dando problema. Nós a
trocamos por um Rover igualmente velho, porém um tanto mais
robusto.
Depois de me despedir das pessoas na Cidade do Cabo, liguei
para Mandy. A mãe dela atendeu e, quando pedi para falar com
Mandy, ela irrompeu em lágrimas. A Special Branch a havia
detido. A mãe não sabia onde ela estava sendo mantida. Mandy
continuava presa quando deixamos a África do Sul.
Kevin e eu seguimos para o norte, acampando, através da
Namíbia, de Botsuana e do Zimbábue. Vimos muitos animais
grandes. Kevin pareceu entusiasmado, envolvido, e não como se
estivesse em uma tarefa pesada, o que era um alívio. Ele parecia
saber muito sobre praticamente tudo: história da África, política.
Quando aquilo tinha acontecido? Ele estudara história na
faculdade e conseguira um diploma em arte. Trabalhava com
produção de cinema. E podia beber muito mais que eu.
Deixamos o carro no Zimbábue com Sharon — uma cena triste
para mim, pois ela já estava com outro: um jovem ex-guerrilhero
ndebele, agora oficial do Exército.
Continuamos avançando rumo ao norte, atravessando o lago
Malawi em um barco velho e lotado, o MV Mtendere, parando em
aldeias isoladas e dormindo no convés. Zâmbia, Tanzânia,
Zanzibar. Chegamos à terra dos masai de ônibus local e
acampamos à beira da cratera Ngorongoro. Depois, ao pé do
monte Kilimanjaro, perdi meu passaporte para um batedor de
carteiras em uma rodoviária, e não pudemos atravessar para o
Quênia. Voltamos para Dar Es Salaam. Sentia-me bem cansado.
Anunciei que estava pronto para o Ocidente. Então Kevin
pareceu aliviado — ele tinha uma vida para tocar na Califórnia.
Abandonamos a viagem da Cidade do Cabo ao Cairo e pegamos
o voo mais barato para o norte: um da Aeroflot para
Copenhagen, via Moscou.
Atravessei a Europa Ocidental sozinho. Dormia no sofá de
amigos, grato a cada pequeno conforto pessoal. Em Londres,
peguei um avião para Nova York. A alegria de tudo o que era
americano. A essa altura, o outono chegava ao fim. Meu irmão
Michael estava na Universidade de Nova York. Dormi no chão de
seu quarto no alojamento. Michael estudava literatura francesa e
tocava piano, com notável elegância, em bares. Quando aquilo
tinha acontecido? Peguei carona até Missoula — uma viagem
longa, fria e magnífica. Um caminhão me deixou na interestadual
e entrei a pé na cidade. Se valia alguma coisa, eu estava
chegando do leste, como prometido.
Noriega Street, Ocean Beach, São Francisco, 1985
OITO
CONTRA A VAGABUNDAGEM
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A nova edição da Surfer estava no balcão da Wise.
Normalmente, eu a pegaria e começaria a folheá-la. Mas a capa
trazia uma esquerda azul familiar quebrando ao fundo enquanto
um surfista saltava com sua prancha de um barco no primeiro
plano. “FIJI FANTÁSTICA!”, dizia a manchete. Uma faixa no canto
superior esquerdo gritava: “DESCOBERTA!” Era, é claro, Tavarua.
Tive vontade de vomitar. E ainda não sabia nem metade da
história.
Acabou que a reportagem da Surfer não era sobre a
descoberta de uma grande onda nova, mas sobre a abertura de
um resort. Pelo jeito, dois surfistas da Califórnia tinham comprado
ou alugado a ilha e construído um hotel, que agora estava aberto
e em funcionamento. Ofereciam acesso exclusivo àquela que
talvez fosse a melhor onda do mundo a um máximo de seis
convidados pagantes. Este era um novo conceito: pagar para
surfar ondas sem crowd. Reportagens sobre a descoberta de um
novo pico incrível eram uma tradição das capas de revistas de
surfe, mas as regras implícitas sobre não revelar sua localização
eram. Talvez o continente fosse divulgado, mas em geral o país,
às vezes até mesmo o oceano, permanecia secreto. As pessoas
podiam adivinhar, mas apenas algumas, e precisariam se
esforçar para isso, depois iriam querer guardar o segredo para si.
Na matéria em questão, todas essas regras tinham sido
ignoradas. Crowds em Tavarua seriam impedidos pelo resort e
pelo acordo feito com as autoridades locais. Seria uma onda
particular. Reserve já! Aceitamos todos os principais cartões de
crédito. Havia até um anúncio do resort na mesma edição da
revista.
Bryan, por acaso, estava a caminho de São Francisco naquela
semana, vindo de Tóquio. Ele vinha trabalhando como repórter
freelancer para revistas de viagem; tinha ido fazer uma pauta em
Hokkaido. Fui esperá-lo no aeroporto. No carro, a caminho de
casa, botei a Surfer no colo dele. Bryan começou a xingar em voz
baixa. Aos poucos, passou a falar mais alto. Especular sobre
quem tinha dado com a língua nos dentes era inútil. Nossa
fantasia compartilhada estivera errada. No fim das contas,
Tavarua não ficara esperando castamente por seis anos, com
ondas transcendentais rugindo recife abaixo sem serem
surfadas.
Bryan encarou a situação pior do que eu; ou, pelo menos, de
maneira menos passiva — escreveu uma carta mordaz para a
Surfer. Ele me disse que, ao nos sentirmos prejudicados,
estávamos, sim, agindo de maneira egoísta, reclamando de
terem usado algo que nem estávamos usando. Ainda assim,
detestou tudo aquilo, e eu também. Tudo o que é livre neste
mundo acaba explorado, sujo e estragado, constatou ele. Sua
carta à Surfer fazia as perguntas certas sobre acordos
financeiros entre a revista e o resort, chamando os editores de
cafetões ou, no melhor dos casos, de imbecis.
Foi estranho ver Bryan em carne e osso. Ainda éramos
correspondentes fiéis e escrevíamos um para o outro com grande
frequência, de tal modo que, às vezes, eu me sentia como se
estivesse vivendo uma segunda vida, mais alegre, em Montana
— esquiando muito, bebendo muito e convivendo com escritores
malcomportados e talentosos que sempre pareciam se reunir ali.
Bryan vinha publicando muita coisa, reportagens e resenhas, e
estava trabalhando em outro romance. Morava com uma “mulher
magrinha e malvada”, como ele dizia, uma escritora chamada
Deirdre McNamer, que não tinha nada de malvada e que
acabaria fazendo o grande favor de se casar com ele. As
reportagens de viagem o levavam a toda parte — Tasmânia,
Cingapura, Bangcoc. Deirdre o acompanhou a Bangcoc, onde
Bryan lhe mostrou o Station Hotel, nossa velha morada. Até ele
ficou chocado com a pobreza. “Como uma cidade é diferente
com dinheiro”, escreveu na página quinze de uma carta
endereçada a mim do sudeste asiático. “Ela se torna refrigerada,
administrável, fluente.” As cartas de Bryan tinham um quê de
Whitman; eram vulcânicas, engraçadas — mesmo as assoladas
por autopunição, que eram angustiantemente frequentes. Certa
vez, ele escreveu que acabara de se dar conta de que a
hospitalidade que recebemos em 1978 de Sina Savaiinaea e sua
família em Samoa lhes custara muito em relação aos recursos
que eles tinham, e que nós havíamos retribuído com
quinquilharias em vez do dinheiro de que eles precisavam e
esperavam desesperadamente, mas que foram educados demais
para mencionar. Bryan ficou tão horrorizado que não conseguiu
dormir. Não sei bem se ele estava errado.
Fazia algum tempo que Bryan não surfava. Houve um
pequeno swell em outubro. Mark emprestou a ele uma prancha e
uma roupa de neoprene. O traje era pequeno demais, e Bryan se
esforçou muito para vesti-lo, contorcendo-se na penumbra da
garagem de Mark enquanto o dono da casa e os amigos
observavam a cena e se divertiam muito. Ajudei Bryan a fechar o
zíper do traje. Na água, ele teve problemas outra vez. A espuma
de Ocean Beach mostrava-se, como sempre, impiedosa, e ele
estava fora de forma. Eu furava as ondas ao lado dele, fazendo
pequenas sugestões indesejadas. Surfamos duas vezes durante
sua estadia, e Bryan afirmou estar eufórico por voltar ao oceano.
Esperei por uma observação desdenhosa de algum membro
mais novo do Esquadrão do Doc, louco para repreender qualquer
um que falasse alguma coisa, mas ninguém disse nada. Bryan
avaliou Mark e vice-versa. As pessoas de que Bryan menos
gostava eram as arrogantes.
Enquanto isso, Bryan e Caroline estavam falando a mesma
língua. Percebi que ele anotava observações descartáveis dela
— quando ela me chamou de “hiena” por fugir pela cozinha ou
quando perguntou indignada por que um viciado em malhação
local achava que alguém se interessaria pelo “corpo nojento”
dele. Bryan nos trouxe adesivos turísticos do Japão escritos em
inglês — FIZEMOS UM BELO TOUR e TIRAMOS FOTO DE TUDO —, que
colamos na geladeira.
Cerca de um ano depois dessa visita, ele escreveu um texto
curto sobre seu time de softball, o Montana Review of Books, e
me enviou o manuscrito. Será que eu achava que a New Yorker
poderia se interessar? Respondi que o texto era bom, mas não
se encaixaria na seção Talk of the Town. Romanceado demais,
confessional demais. Eu era um especialista, é claro, depois de
vender um único texto para a revista. No entanto, Bryan não
esperou que minha carta com os conselhos chegasse. Enviou o
artigo. William Shawn, editor da revista, leu o texto e telefonou
para ele, cheio de elogios. Shawn pagou para que Bryan fosse
até Nova York, instalou-o no Algonquin Hotel e perguntou-lhe o
que mais ele gostaria de escrever. O editor publicou o texto sobre
softball imediatamente e pautou Bryan para escrever uma
reportagem em duas partes sobre a história da dinamite — ideia
do próprio Bryan. Quando Deirdre me contou que meu amigo
estava em Nova York e a razão, pedi humildemente que ele não
abrisse minha carta, que, naquele momento, esperava em
Missoula pela volta dele.
***
***
Decidi tentar escrever sobre Mark. Ele topou. Mandei uma pauta
para a New Yorker: um perfil desse maravilhoso surfista urbano
de ondas grandes que também é médico. Shawn gostou da ideia.
A matéria foi encomendada.
Depois disso, as coisas mudaram entre mim e Mark. Parei de
ficar mortificado com a possibilidade de as pessoas me
confundirem com um de seus acólitos. Eu era o Boswell dele,
entende? Entrevistei-o sobre sua infância — o pai dele era
psiquiatra em Beverly Hills. Cataloguei o conteúdo da van.
Acompanhei-o no trabalho e observei enquanto examinava
pacientes. Ele tinha sido uma espécie de prodígio quando
estávamos na faculdade. Depois que o pai desenvolveu um
tumor, Mark, então no curso preparatório para a escola de
medicina, começou a estudar o câncer com uma intensidade que
convenceu muitos de seus amigos de que o objetivo dele era
encontrar uma cura a tempo de salvar o pai. No fim das contas, o
pai nem tinha câncer. Mas Mark seguiu em frente com os estudos
sobre a doença. Seu interesse não era na verdade a oncologia —
descobrir a cura —, mas a educação e a prevenção do câncer.
Quando entrou na escola de medicina, Mark já tinha criado uma
série de cursos universitários sobre a doença com outro aluno e
sido coautor de The Biology of Cancer Sourcebook, obra didática
de um curso que acabou sendo oferecido a dezenas de milhares
de estudantes. Foi coautor de um segundo livro, Understanding
Cancer, que se tornou um best-seller universitário, e seguiu
ministrando palestras pelos Estados Unidos sobre pesquisa,
educação e prevenção do câncer.
“O engraçado é que, na verdade, eu não me interesso pela
doença”, contou-me Mark. “Eu me interesso pela reação das
pessoas a ela. Muitos pacientes e sobreviventes de câncer
contam que nunca tinham vivido até o diagnóstico, que a doença
os forçou a encarar as coisas, a experimentar a vida de maneira
mais intensa. O que você vê na prática da medicina familiar é
que os familiares simplesmente não podem mais se dar ao luxo
de serem superficiais uns com os outros quando alguém tem
câncer. Por mais sentimental que isso possa parecer, o que me
interessa de fato é a coragem humana, como as pessoas reagem
ao estresse e à adversidade. Sou fascinado pela forma como
eles lutam, como continuam se esforçando para voltar à tona.”
Mark deu braçadas no ar. Imitava o esforço para chegar à
superfície através da turbulência de uma onda grande.
Pedi a Geoff Booth, um jornalista, surfista e médico
australiano, sua opinião profissional. “Sem dúvida, Mark tem
dentro de si um desejo de morte”, opinou Booth. “É uma força
motivadora extrema, que acho que pouca gente no mundo
conseguiria entender. Só conheci outra pessoa que tinha isso:
Jose Angel.” Jose Angel era um grande surfista havaiano de
ondas grandes que desapareceu quando mergulhava perto de
Maui, em 1976.
A teoria de Edwin era que Mark se sentia atraído pelo surfe de
ondas grandes por causa da raiva e da insignificância que sentia
quando os pacientes morriam. Mark disse que isso era ridículo. A
outra hipótese de Edwin era freudiana. (Ele era da Argentina,
lembre-se, país onde a psicanálise é uma religião da classe
média.) “É obviamente erótico”, disse ele. “Aquela prancha
grande é o pau dele.” Essa parte eu nem contei para Mark.
***
***
***
***
Havia outra foto na parede da loja de Wise quando me mudei
para São Francisco. Manchada, enrolando nas pontas, sem
legenda e incrivelmente bela. Mostrava um surfista — Peewee,
segundo Wise — surfando em trajetória elevada uma esquerda
de três metros que parecia infinita, iluminada por trás. A onda era
verde-clara e esculpida pelo vento, e a foto parecia ter sido tirada
em algum lugar em Bali, mas Wise disse que era no outside em
VFW’s. A onda tinha proporções tão estranhas que fazia com que
a gun de quase três metros que Peewee usava parecesse uma
pranchinha. E a trajetória que ele percorria parecia saída de um
sonho — alta, bonita e inspirada demais para que fosse real.
Durante meu segundo ou terceiro inverno na cidade, mais
fotos começaram a aparecer na parede da loja. Eram todas
imagens grandes em molduras de madeira de Mark surfando
Ocean Beach gigante, com legendas datilografadas
especificando a data e o local onde foram tiradas e identificando
o surfista.
Mark e Peewee representavam polos opostos do surfe de São
Francisco: a tese exageradamente enaltecida e a antítese
subestimada. Eles eram como duas teorias opostas de formação
de caráter. No caso de Peewee, a experiência parecia se basear
na remoção de elementos supérfluos; no caso de Mark, tudo se
resumia a acumulação. Mais pranchas, mais recordes, mais
picos conquistados. Praticamente tudo nele envolvia o surfe, da
infância à idade madura. Ao recordar sua juventude em Los
Angeles, ele me disse: “Entre meus amigos, havia uma forte
crença no caminho do surfista. A maioria das pessoas desviava
dele, mais cedo ou mais tarde.” Seus exemplos de como
envelhecer bem vinham de outros surfistas, que ele chamava de
“anciões”. Doc Ball, um dentista aposentado do norte da
Califórnia que passara a vida inteira surfando e que, na época,
estava na casa dos oitenta anos, era um de seus favoritos. “Ele
ainda tem alegria”, disse Mark. “Ainda anda de skate!”
Peewee concordava que Mark tinha uma personalidade
sobrenaturalmente jovem. “Ele é como alguém de vinte ou vinte e
dois anos, com muita alegria para surfar, muito entusiasmo”,
confessou-me em uma rara conversa. Mas Peewee discordava
dos benefícios de longo prazo de uma vida no surfe: “Os
melhores surfistas locais podem ser os maiores vagabundos.”
Estávamos sentados em um restaurante chinês perto da casa
dele. Peewee me observava, desconfiado, enquanto eu tomava
notas. “É um esporte tão bom que corrompe as pessoas”, disse
ele. “É como o vício em drogas. Você simplesmente não quer
fazer mais nada. Não quer ir trabalhar. Se vai, acaba escutando
‘Você perdeu!’ no fim do expediente.”
Peewee contou que, como carpinteiro, tinha alguma
flexibilidade e tentava tirar um mês de férias todos os anos para
surfar em algum lugar, como o Havaí ou a Indonésia. Mas não
havia como continuar surfando com tanta avidez quanto na
juventude — não sem arriscar cair na vagabundagem.
Ele aprendeu a surfar com pranchas emprestadas em Pedro
Point, um pico de principiantes alguns quilômetros ao sul de São
Francisco. Precisou de cinco anos para chegar a Ocean Beach.
Era um garoto do Sunset District, assombrado pelos grandes de
sua era. Com o tempo, ele mesmo se transformou em um cara
grande, com mais de um metro e oitenta, ombros largos,
expressão indecifrável, louro e com a boa aparência de um
pistoleiro de filme antigo. Mas nunca conseguiu se livrar do
apelido. Também parecia nunca ter perdido a humildade de um
novato. Fazê-lo falar, bebendo chá morno em um restaurante
vazio, foi o equivalente jornalístico a cair na água em Sloat em
um dia perigoso. Meu pedido para uma entrevista sem dúvida o
assustou. Peewee me conhecia como um rosto na água, um
frequentador assíduo recente de Ocean Beach, alguém do grupo
de Mark. Agora, de repente, eu era um repórter. Isso não
significava que eu fosse imparcial. Como fazia vários invernos
que eu lutava contra a alegação de Mark de que perder um swell
era um pecado muito maior que perder um prazo, a simples
descrição do conflito inevitável entre o surfe e o trabalho me
reconfortou mais do que Peewee poderia imaginar. Claro, essa
era uma discussão tão antiga quanto Hiram Bingham — o
missionário que enxergou o surfe como algo bárbaro e quase o
estrangulou em seu berço no Havaí.
Peewee tinha uma modéstia tão persistente que era fácil
considerá-lo uma pessoa distante. Porém, após um tempo, até
eu consegui enxergar que seu exterior contido escondia uma
timidez aguda, que por sua vez ocultava uma sensibilidade
antiquada. Ele tinha sido um estudante que só tirava nota
máxima na escola — eu soube disso não por ele, mas por outras
pessoas — e era formado em inglês pela San Francisco State
University. Também fez vários cursos de ciências na faculdade,
entre eles uma aula de oceanografia na qual o instrutor certa vez
afirmou que os grandes swells de inverno que atingiam a costa
do norte da Califórnia vinham tipicamente do sul. Essa afirmação
é, sem dúvida nenhuma, falsa. O instrutor se recusou a ser
corrigido, e Peewee deixou passar.
No entanto, quando deixar para lá algum comportamento tolo
se tornava impossível, ele era capaz de marcar posição de forma
memorável. Certa vez, em um dia crowdeado em VFW’s, durante
meu primeiro inverno em São Francisco, um surfista local estava
se comportando mal — roubando ondas, furando a fila e
ameaçando qualquer um que reclamasse. Peewee alertou-o uma
vez, discretamente. Quando o cara continuou a fazer aquilo e,
em seguida, quase decapitou outro surfista em uma saída
desajeitada no fim da onda, Peewee o convidou a sair da água.
O sacana resmungou. Peewee o derrubou da prancha, virou-a e,
com golpes curtos e precisos, quebrou todas as três quilhas. O
cara remou para a praia. Anos mais tarde, frequentadores
habituais de Ocean Beach que não tinham visto esse incidente
ainda pediam àqueles que o haviam presenciado que contassem
a história.
Peewee sabia tudo sobre a cidade. Era o tipo de cara que,
surfando em Fort Point, embaixo da Golden Gate Bridge, era
capaz de olhar para o alto e dizer quantos operários tinham sido
enterrados nos pilares, qual era o tamanho das filas de homens
esperando para trabalhar na construção da ponte na época da
Grande Depressão e o salário deles. Também sabia quanto os
funcionários de manutenção de hoje em dia, alguns dos quais
seus amigos ou parentes, ganhavam. Peewee era carpinteiro
sindicalizado e costumava servir como representante sindical em
canteiros de obra. Quando lhe perguntei sobre isso, ele disse
apenas: “Acredito nos sindicatos da construção civil.” Era
igualmente reservado em relação a ondas grandes. Falou que as
preferia às pequenas, porque não eram crowdeadas. “Os crowds
podem ficar tensos”, explicou ele. “Em ondas grandes, é só você
e o oceano.” Peewee era conhecido na área de Ocean Beach por
seus nervos de aço quando o mar estava grande, mas confessou
que precisou de vários anos para evoluir até encarar as ondas
enormes. “Cada novo caldo faz você perceber que, na verdade,
está mais seguro do que pensava. É só água. É só prender a
respiração. A onda vai passar.” Ele nunca entrava em pânico?
“Claro, mas tudo o que você precisa fazer, de verdade, é relaxar.
Você sempre vai voltar à superfície.” Em retrospecto, confessou,
toda vez que achou que estivesse se afogando, sua situação não
era tão desesperadora.
“O Doc está meio que construindo uma reputação aqui”,
admitiu Peewee, dez anos depois de Mark começar a surfar
Ocean Beach. E o próprio Peewee? “Eu meio que mantenho uma
reputação aqui”, assumiu. Ainda assim, só surfava ondas
grandes quando estavam limpas. Qual era a maior onda que ele
tinha surfado em Ocean Beach? “A maior que tentei dropar por
lá, eu não consegui”, respondeu. “A onda era perfeita, minha
prancha é que era pequena demais. Tinha dois metros e meio.
Só cheguei até três quartos do caminho na parede. Caí, fui
sugado para cima e para a frente. Foi o momento mais
assustador que já vivi. Achei que a queda livre não teria fim
nunca. Mas não foi tão ruim.” Qual era o tamanho? “Uns três
metros e meio”, disse Peewee. “Talvez quatro e meio.” Deu de
ombros. “Raramente tento medir ondas em metros hoje em dia.”
Isso fazia sentido, pensei, porque vários surfistas na cidade
acreditavam ter visto Peewee surfar ondas com mais de quatro
metros e meio.
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Perto do fim de nosso terceiro inverno em São Francisco, depois
de uma série de tempestades, o banco de areia externo em
VFW’s começou a quebrar com regularidade pela primeira vez
desde nossa chegada. Entendi por que a onda era uma lenda
local. O banco era estranhamente longo e reto para Ocean
Beach, com um canal profundo na extremidade norte. Swells de
noroeste produziam ondas limpas ali, mas proporcionavam
apenas surfadas curtas. As ondas atingiam direto o banco de
areia; era preciso dropar muito perto do canal para surfá-las. Por
outro lado, swells mais de oeste atingiam o banco de areia em
um ângulo mais fechado, produzindo esquerdas longas e rápidas
de qualidade excepcional. Como o banco de areia só começava
a quebrar quando o swell chegava a dois metros, o outside de
VFW’s nunca ficava crowdeado. Eu o vira quebrar várias vezes,
inclusive em dias assustadores nos quais apenas Mark, Peewee,
Tim Bodkin e alguns surfistas de ondas grandes experientes
caíam na água. Na verdade, eu mesmo o surfara algumas vezes
em dias menores, quando ele não estava quebrando com muita
autoridade. Então, no início de 1986, houve um dia muito grande
e razoavelmente limpo. Eu não tinha uma prancha para tais
ondas. Mas Mark tinha. “Você pode usar a minha de dois metros
e setenta”, dizia ele sem parar, indicando a gun amarela na van
enquanto vestia a roupa de neoprene. “Vou usar a de dois e
sessenta.”
Ocorreu-me que Mark talvez estivesse tentando oferecer
minha vida para os deuses impiedosos de Ocean Beach uma
última vez. Ele poderia já saber que eu estava reunindo coragem
para lhe contar que decidira me mudar de volta para Nova York.
A ideia de deixar São Francisco me provocava um misto de
sentimentos, mas um dos mais fortes era alívio. A cada inverno
em Ocean Beach eu levava pelo menos um susto sério —
alguma situação sinistra em ondas grandes que perturbava meu
sono por muitas noites. Bob Wise entendia. “Surfistas nunca se
afogam aqui”, contou-me uma vez. “São turistas, motociclistas e
marinheiros bêbados que se afogam. Mas até os surfistas mais
experientes pelo menos uma vez por inverno se convencem de
que estão prestes a se afogar. É isso que torna Ocean Beach tão
esquisita.” Mark, que se superava na esquisitice, não entenderia,
supus. Mas eu estava feliz por escapar sem me afogar. Também
estava feliz por sair da mira do olhar evangelizador de Mark.
Estava cansado de ser acompanhante. Certa vez, no sudeste
asiático, Bryan se sentira impelido a se safar de mim. Mas aquilo
tinha sido diferente. Éramos parceiros. Eu não sabia como contar
a Mark que estava de partida. Não queria ouvir um discurso
sobre como isso significava me desviar do caminho de surfista.
Dez ou quinze caras estavam de bobeira no quebra-mar.
VFW’s — o VFW’s do inside — era o pico mais popular em
Ocean Beach, e os caras que estavam por ali naquele dia, sem
fazer qualquer menção de cair na água, o surfavam com
regularidade. Entre eles havia um pintor de paredes musculoso
chamado Rich, um dos surfistas dominantes naquela
extremidade da praia. Rich me olhou de cara feia quando passei
por ele com a prancha amarela de dois metros e setenta embaixo
do braço. Percebi que nunca o vira na água em dias de ondas de
dois metros. Hoje elas alcançavam alturas entre dois e três, pelo
menos. O swell estava enorme e razoavelmente de oeste. Não
estava imaculado — havia um pouco de vento lateral e uma
contracorrente furiosa —, mas várias esquerdas incríveis
passavam rugindo, sem serem surfadas, enquanto nos
preparávamos para cair na água. Bodkin e Peewee já estavam
lá, e cada um deles pegara algumas ondas enormes, mas os dois
vinham surfando de maneira conservadora, deixando que as
séries mais em pé passassem.
Remar a prancha de Mark me dava a sensação de estar
remando um petroleiro em miniatura. Eu tinha uma velha
monoquilha de dois metros e trinta para dias grandes, mas tinha
usado uma triquilha de dois metros e dez durante a maior parte
do inverno. De bordas grossas e bico pronunciado, a gun de dois
e setenta me fazia flutuar alto fora d’água, e não tive dificuldade
para acompanhar Mark quando entramos pelo canal. A água
estava verde-amarronzada e muito fria; apesar de correr limpo
das ondas que quebravam perto da praia na direção do mar, sem
bancos de areia no inside para atravessar, o canal estava mexido
e assustador, com ondulações enormes vindo dos dois lados,
formando ondas triangulares grossas e desagradáveis que
quebravam parcialmente antes de desaparecer. Havia um banco
de areia raso no outside ao norte, onde ondas enormes se
erguiam e quebravam com um rugido terrível. Ao sul, a última
seção da esquerda longa e mexida no outside de VFW’s não
estava muito mais convidativa. Ela também parecia rasa e muito
pesada. Mark e eu demos uma parada para observar uma
parede lisa quebrar com força em cima da última parte do banco
de areia, a apenas vinte metros de onde estávamos. Na direção
do interior do grande tubo que ela formou, Mark berrou: “Morte!”
A ideia parecia agradá-lo.
Continuei a seguir para o outside quando Mark virou à
esquerda e ultrapassou a extremidade do banco de areia.
Peewee e Bodkin estavam a uns duzentos metros ao sul, e Mark
foi direto até eles. Eu fiz um círculo maior por fora, preferindo
parecer um covarde a arriscar ser pego por uma série grande.
Uma série pequena passou, longe demais no inside para que
qualquer um de nós a pegasse, mas até mesmo ela fez um
estrondo assustador ao enfim quebrar. Achei a escala das coisas
ali muito amedrontadora. Não estava ansioso para ver uma série
grande. Verifiquei minha posição em relação à praia e segui
devagar para o sul. Pichações com letras enormes no quebra-
mar — MARIA, KIMO e PTAH — marcavam meu progresso. A praia
parecia, como costumava acontecer em dias grandes,
bizarramente pacífica e normal. Uma linha escura de ciprestes se
erguia além do quebra-mar — um quebra-vento para a
extremidade oceânica do Golden Gate Park —, e dois moinhos
de vento despontavam acima das árvores. Logo ao norte, os
penhascos estavam pintados de flores cor-de-rosa e marcado por
um belvedere de pedra pertencente às ruínas da velha mansão
Sutro. Tudo parecia muito estável. Eu não parava de olhar de um
lado para outro, esticando o pescoço a fim de ver onde estava e,
em seguida, para checar se algo saído de um pesadelo já se
agigantava no mar.
Estar na água com ondas grandes é como um sonho. Terror e
êxtase retrocedem e fluem nas beiradas de tudo, ameaçando
subjugar o sonhador. Uma beleza sobrenatural satura uma arena
enorme de água em movimento, violência latente, explosões
reais demais e céu. As cenas parecem míticas, mesmo enquanto
se desenrolam. Sempre senti uma ambivalência feroz: não quero
estar em nenhum outro lugar; quero estar em qualquer outro
lugar. Quero ser levado pela corrente e observar, absorver tudo,
no entanto a vigilância máxima, um estado de alerta extremo
àquilo que o oceano está fazendo, não pode ser afrouxada.
Ondas grandes (o termo é relativo, claro — um surfista pode
achar totalmente administrável aquilo que considero uma ameaça
à minha vida) são um campo de força que diminui a pessoa, e só
é possível sobreviver ao tempo que se passa ali ao se ler essas
forças com cuidado e bem. Contudo, o êxtase de surfar ondas
grandes exige que você se coloque ao lado do medo de ser
enterrado por elas: o filamento que separa os dois estados se
torna diáfano. A sorte muda excessiva e dolorosamente. E,
quando as coisas correm mal, o que inevitavelmente acontece —
quando você é pego no inside por uma onda muito grande ou
não consegue completar uma —, sua habilidade, sua força e seu
raciocínio não significam nada. Ninguém mantém a dignidade
enquanto leva um caldo de uma onda grande. A única coisa que
se pode ter esperança de controlar a essa altura é o pânico.
Segui devagar para o sul, na direção de Mark e dos outros,
respirando profunda e regularmente em um esforço para
desacelerar o coração, que batia forte de um jeito desagradável
desde o momento em que considerei de fato cair na água. Mark
dropou uma onda quando eu me aproximava do line-up. Ele
gritou ao se lançar em direção a uma parede do tamanho de um
mamute e desapareceu por trás de uma muralha marrom
tempestuosa. Percebi que o pico ficava exatamente em frente a
uma pichação grande e vermelha: PTAH VIVE. Bodkin, que ainda
estava sentado com Peewee, gritou meu nome com um sorriso
largo. O sorriso me pareceu metade diversão perversa com
minha rota que priorizava a segurança até o pico e metade
parabenização pelo simples fato de eu ter chegado até ali.
Peewee só balançou a cabeça para dizer oi. A brandura de
Peewee na água costumava ser uma bênção. Sua expressão
indecifrável deixava espaço psicológico para outros surfistas, o
que eu acreditava ser algo que muitos deles prezavam. Porém,
às vezes — nesse dia, talvez —, eu achava que Peewee levava
a indiferença no surfe um pouco longe demais. Claro, era
provável que ele não considerasse o outside de VFW’s com
aquele tamanho um lugar tão assustador, e talvez não
percebesse que, para mim, estar ali exigia um grande esforço.
Por acaso, a sorte — e a prancha certa — estava comigo
naquela tarde. Peguei várias ondas grandes e boas nas horas
seguintes. Não as surfei tão bem — fiz apenas o possível para
manter a prancha de dois metros e setenta apontada mais ou
menos na direção certa —, mas as surfadas foram longas e
velozes e, depois de cada uma delas, consegui voltar para o
outside ileso. A prancha de Mark era maravilhosamente estável e
me permitiu entrar nas ondas bem no início delas. Até peguei o
que Mark disse mais tarde ter sido a “onda do dia”. Em outra
tarde, com uma prancha diferente, eu provavelmente a teria
deixado passar, mas me encontrava sozinho no centro do pico,
bem no outside, quando uma onda extensa chegou. A parede se
estendia para o norte por quadras, parecendo impossível de ser
surfada, no entanto, àquela altura, eu senti muita fé no banco de
areia e no canal. Entrei cedo na onda, dando uma pequena
adiantada na parede — aquilo que surfistas de ondas grandes
chamam de passada — para me lançar por cima do lip. Precisei
desviar de uma pequena pontada de acrofobia quando fiquei de
pé. A base da onda parecia estar a quilômetros de mim. Mais ou
menos na metade da parede, inclinei-me em uma virada forte,
esforçando-me para me manter em cima da prancha, avançando
cada vez mais rápido na água que corria pela parede. Minha
coragem vacilou uma segunda vez quando olhei por cima do
ombro para a parede à frente. Ela era muito maior do que eu
esperava: mais alta, mais íngreme e mais ameaçadora. Virei-me
e me concentrei, como se estivesse usando antolhos, nos poucos
metros de água que corriam logo à minha frente, dando grandes
viradas graduais e cavadas em alta velocidade. A onda se
manteve lindamente, e eu a completei com facilidade, embora a
seção final, do tamanho de uma casa, ao lado do canal, tenha
me jogado para fora tão rápido que precisei abandonar qualquer
fantasia de controle e qualquer estilo para simplesmente
permanecer ali, de pé, com os joelhos dobrados — um
passageiro satisfeito.
Peewee estava no canal e passou remando por mim quando
saí da onda. Acenou com a cabeça. Começamos a remar juntos
para o pico. Meu corpo inteiro tremia. Depois de um minuto, não
consegui me segurar. “Qual foi o tamanho daquela onda?”,
perguntei. Peewee riu. “Meio metro”, respondeu.
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BAIXO PROFUNDO
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Peter Spacek e Alex em Montauk com um robalo-riscado pego com o caiaque, 1998
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Peter e eu continuamos fazendo nossas peregrinações à ilha da
Madeira. Porém, comecei a suspeitar da devoção dele. Peter
sempre sugeria que tentássemos algum lugar novo. Por que ele
dizia isso, afinal? Isso me lembrava da nossa primeira viagem à
ilha da Madeira, quando ele e Alison quase voltaram para a parte
continental de Portugal. Eles agora faziam grandes viagens de
pesca — a Christmas Island, no Pacífico Central; às Bahamas
em busca de peixe-rato — quando tinham tempo e dinheiro. “É
bom experimentar coisas novas”, dizia Peter. E me via
respondendo: “Não, eu quero continuar fazendo a mesma coisa:
ir para a ilha da Madeira.” Quando eu tinha me transformado
nesse escravo da rotina tão rabugento?
Na verdade, havia bons argumentos para voltar sempre para
lá. Um era a qualidade fenomenal das ondas e a sua sedução
assustadora, singular, bem diferente de qualquer outro lugar que
já tivéssemos surfado. E não era que o mar fosse fácil — uma
série de desafios que agora dominávamos. Nem perto disso. A
ilha da Madeira, além do mais, estava se tornando famosa no
mundo do surfe. Ficava mais crowdeada a cada ano. Logo
estaria arruinada, lotada, como Bali e dezenas de outras mecas
do surfe por todo o planeta. Já havia conversas sobre uma
grande competição de ondas grandes a ser realizada em Jardim,
com empresas patrocinadoras e um enorme prêmio em dinheiro.
Eu observava esses sinais, ouvia esses rumores, com um medo
cada vez maior. Precisávamos surfá-la agora, antes que virasse
um inferno e acabasse.
Quem mais estimulava o surfe na ilha da Madeira eram os
portugueses do continente. A ilha se transformou depressa em
seu Havaí, seu North Shore. Profissionais do continente voavam
para lá a cada swell. Um cara novo, Tiago Pires, era nitidamente
um talento raro e muito corajoso — ele construiria uma carreira
respeitável no circuito mundial profissional, o primeiro (e ainda o
único) surfista português classificado para o torneio. As revistas
portuguesas de surfe não se cansavam da ilha da Madeira.
Estampavam o nome nas capas, faziam reportagens enormes
com discrição zero. Parecia ser uma questão de tamanho. O
primeiro pôster da Madeira que vi, que vinha dobrado e
encartado em uma revista, exibia um profissional do continente
surfando uma enorme parede verde em Jardim, com uma
legenda que a chamava de “a maior onda já surfada no território
nacional português”. O pôster era intitulado “Heróis do mar”.
Peter compreendia a urgência de surfar a ilha da Madeira
antes que ela virasse, como nós diríamos, um zoológico. Mas
também entendia, diferentemente de mim, que o mais provável
era que pouquíssimos surfistas cairiam na água em um bom dia
em Jardim ou Paul do Mar. Ele mostrara aquela primeira
reportagem na Surfer para vários caras em Montauk, achando
que pudessem se interessar. Mas não se interessaram. A
aparência era pesada demais. Só eu fui fisgado, por mais que
tivesse achado que as fotos a faziam parecer idílica. Agora eu as
achava enganadoras. Sem as rochas e as falésias, sem o fator
medo, não era possível entender nada sobre aqueles picos. Mas
eu me sentia acorrentado a eles agora, apesar do medo. Peter
tinha uma relação mais distante e menos obsessiva. E sentia
menos medo.
Ele era o que os surfistas costumavam chamar (alguns ainda
chamam) de um cara cascudo. Sempre houve caras, em geral
surfistas de ondas grandes, que, discretamente, faziam coisas
difíceis de acreditar. Lembro-me de ouvir, na usina de boatos do
Havaí, que Mike Doyle e Joey Cabell, dois heróis do surfe da
minha juventude, tinham saído a nado pela costa de Na Pali, em
Kauai. A costa de Na Pali tem vinte e sete quilômetros de região
selvagem inacessível, de frente para o nordeste, para a área de
maior produção de tempestades do Pacífico. Eles levaram três
dias no percurso, usando apenas short e óculos de natação.
Tudo o que carregaram foi um canivete para tirar mariscos das
pedras. Fizeram por diversão, para descobrir o que veriam. Os
dois eram cascudos, razão pela qual fizeram isso e pela qual
sobreviveram.
Peter era feito desse mesmo material. Ele saía em seu
caiaque para Amagansett, vinte e quatro quilômetros a oeste de
Ditch Plains, pescando com uma vara apoiada no ombro para ver
o que conseguia pegar, ou ingressava em um barco de pesca de
bacalhau no inverno para ir pescar nos naufrágios de Block
Island. Certa vez enfiou um grande anzol triplo na mão e dirigiu
assim até o hospital em Southampton, a quarenta quilômetros de
distância. Surfou os maiores dias já vistos em Montauk,
geralmente sozinho, e as histórias que contava sobre essas
sessões, se o pressionassem por detalhes, eram sempre
engraçadas, vivas e autoirônicas. Ele transformava episódios
aterrorizantes em desenhos cômicos. Em uma tarde grande em
Jardim, Peter levou uma vaca feia num drop atrasado e quase
acabou engolido por duas ondas. Ficou embaixo d’água por tanto
tempo que se viu dando adeus a seus entes queridos, contou ele
depois de finalmente conseguir voltar à terra. Em um desenho
que vi mais tarde, lá estava o anti-herói familiar, confuso,
narigudo e cabeludo embaixo de uma onda monstruosa,
produzindo com escárnio balõezinhos de pensamento
preenchidos por Alison e um poodle toy de aparência alarmada.
Quando morei em São Francisco, Mark Renneker e Peewee
Bergerson eram os caras mais cascudos. Por conta disso os
outros ficaram obcecados pelos dois. Era uma aventura de
garotos — bobeira, na maior parte das vezes. Mas surfar ondas
que exigem verdadeira coragem e habilidade sem fazer alarde de
si mesmo é um sério teste de caráter. No surfe profissional, há
um nicho crescente de caras cascudos com assessores de
imprensa. Essa de fato não é a ideia.
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Por incrível que pareça, o túnel para Paul do Mar ficou pronto
antes do inverno seguinte. Vagabundos de Paul não invadiram a
praça de Jardim. Na verdade, o túnel mal parecia ser utilizado.
Era longo, escuro e bolorento. Ninguém caminhava por ele. Mas
era muitíssimo conveniente para surfistas. As ondas de Paul
agora estavam a cinco minutos de carro. Logo tudo na ilha da
Madeira ia ficando mais perto. Funchal, que ficava a três horas
de carro de Jardim quando começamos a frequentá-la, agora
estava a menos de uma hora. Os madeirenses ficaram contentes
com a conveniência, é claro, mas eu temia, de forma avarenta,
que o acesso mais fácil pudesse significar mais surfistas. Uma
segunda competição havia sido realizada em Jardim. O vencedor
fora um taitiano conhecido por seu surfe baseado na força
chamado Poto — uma celebridade do surfe internacional. Isso
não era nada bom.
A enorme transferência de capital da União Europeia para a
ilha da Madeira que estava em andamento — centenas de
milhões de euros — era, para mim, um pouco irônica. Eu apoiava
o negócio, na teoria. Ele se alinhava com a minha visão do lado
benigno (talvez a única coisa benigna) da globalização
econômica: países mais ricos ajudando diretamente os mais
pobres. De forma abstrata, a infraestrutura era boa. Mas, na
realidade, fiquei horrorizado com a maioria dos projetos. Além de
serem horrendos e um desperdício, muitos pareciam
completamente inúteis, exceto como fonte temporária de
empregos e de grana para os figurões embolsarem.
Naquele ano — início de 2001 —, comecei a ouvir rumores
sobre um “passeio” que o governo queria construir em torno da
costa de Jardim. Isso não fazia sentido. Na maré alta, o oceano
quebrava nos penhascos. Conversei com um empreiteiro na
cidade sobre os boatos. Ele disse que apoiava o projeto, mas foi
vago sobre qual poderia ser o legado da obra. Também afirmou
que, se fosse mesmo adiante, o projeto seria algo modesto —
apenas uma passagem calçada. Falei que seria impossível
construí-la. E quem iria usá-la? José Nunes disse para eu não
me preocupar. Era provável que fosse apenas conversa.
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Meu pai velejou com seu barco até a Flórida para o inverno. Não
era necessário — no nordeste do país, a maioria dos
proprietários de barco apenas os despacha de caminhão —, mas
agora ele estava basicamente aposentado, então tinha tempo.
Na primavera, juntei-me a ele para uma perna rumo ao norte,
começando em Norfolk, Virgínia. Navegamos por toda a
Chesapeake Bay, depois descemos o rio Delaware, fizemos a
volta em Cape May e subimos a costa de Nova Jersey. Ao rodear
Cape May, saindo da baía de Delaware, tivemos o nosso
tradicional quase desastre. Uma grande frota de pequenos
barcos pesqueiros de casco branco parecia estar trabalhando
nos baixios em frente ao cabo. Era uma manhã fria e clara. Nós
nos perguntamos o que podia estar acontecendo para atrair
tantos barcos. Os “barcos”, na verdade, eram ondas quebrando.
Não estávamos perto de nenhum ponto da costa, mas o sonar de
profundidade começou a ler seis metros, quatro metros, três e de
repente as ondas estavam quebrando por toda parte ao nosso
redor. Eu estava no leme, desviando delas, tentando
freneticamente encontrar águas profundas. O calado do barco
era de um metro e oitenta, e vi o sonar cair para um metro e
meio, um metro e vinte, um metro. A essa altura, eu estava com
o veleiro muito adernado, avançando pelos canais apenas para
manter a quilha longe da areia. As ondas não eram grandes, mas
não estavam apenas encapeladas — quebravam em uma água
com profundidade na altura do peito. Dava para ver o fundo. Era
pálido. Teria sido um lugar muito ruim para encalhar: água a
quatro graus, a quilômetros da costa. De algum modo,
conseguimos sair do baixio. Seguimos a motor na direção do mar
e revisamos nossas cartas náuticas. Sim, ali estavam eles.
Perigos horrendos. O canal navegável abraçava a margem do
Delaware. Depois de uma semana de navegação cuidadosa
através de baías rasas e canais estreitos, tínhamos visto o mar
aberto e ingenuamente relaxado. Ficamos abalados demais para
rir. Navegamos devagar na direção de Atlantic City, amarramos o
veleiro e pegamos um ônibus para Nova York.
Tinha sido uma semana boa. Ao acompanhar a costa de
Chesapeake, entramos em enseadas que seriam impossíveis de
encontrar de carro. Comemos caranguejos duros, caranguejos
moles, caranguejos azuis, caranguejos fêmeas. Jogamos
conversa fora com garçonetes e proprietários de lojas de
equipamento. Meu pai e eu sempre tivemos uma afeição que
beira a compulsão por verificar lugares obscuros. Nossas
esposas brincavam com os desvios sem sentido que fazíamos
nas viagens em família. Ao fazer produções cinematográficas e
televisivas, a parte favorita do meu pai era a busca por locações.
E aquilo de que mais gosto em meu trabalho é seguir minha
curiosidade além da curva, depois do cume, no interior do
mercado ao ar livre, à procura de fatos, fazendo perguntas, indo
aonde a história pode parecer rica. Certa noite, com o barco
atracado a uma poita embaixo de um penhasco coberto de
carvalhos, bebendo a vodca tônica que se permitia, meu pai me
perguntou sobre a Somália. Tinha lido minha matéria sobre o
país, mas queria saber como era o lugar e como eu me sentira lá,
como as pessoas comuns sobreviviam, o que comiam, como eu
transitava por lá. Contei tudo, e ele ouviu com muita atenção, às
sombras que se aprofundavam naquela enseada pacífica,
minhas descrições da Mogadício bombardeada, dos xales
compridos usados pelas mulheres, dos pistoleiros adolescentes
que precisei contratar como guarda-costas, dos carros de
combate conhecidos como “técnicos” que esses garotos dirigiam
por lá e que eram usados para a batalha e como abrigo para
dormir. Ele absorveu a tragédia e cada detalhe daquele mundo
distante com um assombro tão autêntico que me senti honrado
de lhe contar as notícias. Era um lugar que meu pai sabia que
nunca visitaria, mas eu tinha estado lá, e ele queria saber como
era. Se sentia alguma preocupação em relação a minha
segurança, ele guardou para si. Nós sempre tivemos sorte —
éramos burros, mas sortudos, como ele gostava de dizer.
Tínhamos essa curiosidade insaciável em comum.
O lugar mais estranho que encontramos naquela semana se
chamava Delaware City. Era uma cidadezinha na extremidade de
um canal do rio Delaware que corria até Chesapeake —
conectando a Filadélfia e outros pontos do norte a Baltimore e
Washington — antes de ser suplantado por um canal maior e
mais profundo construído em outra rota. A sossegada rua
principal de Delaware City era um monumento a seu apogeu:
uma fileira impressionante de grandes prédios de tijolos do
século XIX. Jantamos em um hotel grandioso construído em
1828. Éramos os únicos clientes.
***
Tavarua foi uma onda dos sonhos por muito tempo. Era famosa
— pelo menos no mundo do surfe — por ser quase perfeita, mas
também pela exclusividade, já que era particular. Era a única
grande onda do planeta que não sucumbira à tragédia dos
lugares públicos. Ela não se tornara terrivelmente crowdeada, o
que a teria estragado para todo mundo. O resort dos americanos
havia prosperado. Para os surfistas contrários a ter uma onda
reservada para clientes pagantes, essa situação uma aberração.
A princípio, fiquei do lado deles. Eu escrevera sobre privatização
em diferentes contextos, inclusive sobre a água municipal na
Bolívia e a manutenção do metrô em Londres; e em geral eu era
contra iniciativas desse tipo. Também tinha minhas opiniões em
relação ao resort, enraizadas naqueles velhos dias na ilha com
Bryan.
Entretanto, como surfista, eu era tão suscetível quanto
qualquer outro à fantasia de ondas espetaculares sem crowd.
Todos vivemos em um mundo decadente, pensava. Eu ansiava
surfar aquela onda outra vez. Mas o governo de Fiji, na época
uma ditadura militar, matou a fantasia de Tavarua em 2010,
quando cancelou do nada o acordo de “gerenciamento do recife”
com o resort. As ondas foram abertas ao público, o que significou
na prática que foram abertas a operadoras turísticas
especializadas em surfe. Barcos repletos de surfistas logo
passaram a chegar a Tavarua, partindo de hotéis e marinas nas
proximidades a qualquer indício de swell e transformando o pico
no típico frenesi malthusiano.
Mas, antes que isso acontecesse, virei hóspede frequente do
hotel. Começou em 2002. O resort funcionava assim: grupos de
cerca de trinta pessoas alugavam o local inteiro por uma semana,
e a maioria deles voltava todo ano; naquele ano, um grupo com
base na Califórnia me convidou a preencher uma vaga. Não
pensei duas vezes. Eu ia fazer cinquenta anos, e Tavarua estava
bem distante de minhas convicções sobre as privatizações.
Queria surfá-la outra vez enquanto ainda podia.
O resort era simples. Dezesseis bangalôs, refeições
comunitárias. Parecia que os donos tinham feito algumas
explosões no recife para abrir o canal para barcos, mas a onda
não mudara. A mesma esquerda rodando boa demais para ser
verdade disparando pelo recife à velocidade máxima. Surfá-la era
como uma torrente de sensações e lembranças. O swell azul
quebrava longe no recife, com desenhos intricados na parede, o
coral impiedoso. O momento crítico que parecia durar para
sempre, a sensação irreal de abundância. Eu tinha ficado um
pouco mais lento nos vinte e quatro anos desde que a surfara
pela última vez, e a onda, em especial o drop, continuava rápida
como sempre. Mas, com minha longa experiência, eu era sagaz,
ainda conseguia completá-la, ainda conseguia surfá-la de
maneira respeitável. O pico não estava mais vazio, é claro. Era
preciso dividi-lo com outros hóspedes. Mas isso era simples. O
pico do drop, que tínhamos descoberto antes usando dois
coqueiros altíssimos, agora era determinado pelo reflexo de um
espelho no bar do restaurante do hotel.
Na ilha, eu gravitava em torno de nosso velho ponto de
acampamento. A estrutura para secagem de peixe na qual eu
dormia havia desaparecido, mas, fora isso, o local estava
inalterado. A vista para a onda, as ilhas em frente. A areia
áspera, a brisa suave. As cobras mortíferas, as dadakulachi,
agora eram raridade. Senti-me transportado para um mundo
novo cheio de mimos. Havia cerveja gelada. Havia cadeiras.
Havia um heliporto no local onde antes os pescadores
empilhavam lenha para fazer as fogueiras de sinalização.
Perguntei-me o que o pequeno Atiljan, que dormira em um ninho
de folhas verdes, fazia agora. Será que era pescador e tinha os
próprios filhos? Muitos funcionários do hotel eram aldeões de
Nabila, mas apenas um ou dois tinham etnia indiana. A
democracia fora destroçada por uma série de golpes militares
tramados por nacionalistas étnicos do lado fijiano. Pessoas de
etnia indiana haviam sido transformadas em cidadãos de
segunda classe. O resort de Tavarua tentara agradar o regime
militar ao receber uma competição profissional de surfe em uma
época em que as ligações esportivas de Fiji com o mundo tinham
sido em grande parte eliminadas pelas sanções internacionais.
Quando perguntei a uma jovem e delicada bartender de Nabila o
que ela achava dos atos do governo contra a democracia e a
etnia indiana, ela respondeu timidamente que apoiava o governo.
“Eles são a favor dos fijianos”, opinou.
Depois de eu perguntar — em vão — sobre Bob e Peter,
nossos antigos barqueiros, alguns caras mais velhos de Nabila
que agora trabalhavam em Tavarua descobriram quem eu era.
Eles me trataram como um primo que não viam havia bastante
tempo e riram muito à minha custa. Eu era o americano que não
conseguira abrir um hotel. Toda semana o resort organizava uma
coisa chamada “Noite de Fiji”, com tambores, kava e discursos
em fijiano feitos por anciãos da aldeia para os hóspedes. Eu me
vi entremeado aos discursos, tendo participado da história da ilha
e da chegada do surfe. Nenhum de meus colegas hóspedes
percebeu, mas todos os fijianos no show balançaram a cabeça,
conscientes, rindo. Depois, me davam tapinhas simpáticos no
ombro quando nos encontrávamos nas trilhas da ilha. Imaginei
que eles soubessem só de olhar que, na verdade, eu não tinha o
necessário para abrir e administrar um negócio em Fiji.
Aparentemente, um dos surfistas americanos fundadores
fornecera o capital. Havia muito ele tinha se retirado, vendendo o
negócio para outros investidores. O outro fundador era o cara
durão responsável pela construção daquele pequeno império na
selva tropical. Agora, ele morava na Califórnia e só fazia visitas
ocasionais. Tinha uma casa grande encravada na floresta no
lado sul da ilha.
Eu tinha medo de escrever a Bryan sobre minha visita. Ele
estava à espera de um relatório. E, na realidade, não se opôs,
como achei que fosse fazer, ao fato de eu me beneficiar das
ondas privatizadas, transformadas em caras commodities do
resort. (Alojamento e alimentação custavam cerca de 400 dólares
por noite.) Bryan nem mesmo pareceu enojado com minha
descrição da Noite de Fiji. Estranhamente, o que o deixou mais
revoltado foi a imagem de uma partida de vôlei entre os
funcionários e os hóspedes. “Imaginei ‘sorriso no rosto’ e puro
veneno por dentro”, escreveu ele. No entanto, a reação dele a
meu relatório foi complexa e reflexiva, cheia de raiva, piadas,
inveja, assombro e, como sempre, autocrítica. Ele jurou fazer
viagens mais frequentes à costa do Oregon, onde ia surfar de
vez em quando.
Os donos do resort haviam descoberto uma segunda onda,
também uma esquerda longa, em um recife em mar aberto cerca
de três quilômetros ao sul de Tavarua. Batizaram o pico de
Cloudbreak, e, na verdade, era ele que tornava o resort viável. A
onda da ilha, embora mundialmente famosa pela perfeição, era
inconstante demais para sustentar um negócio de luxo com
rotatividade semanal. Era comum que passasse uma semana
sem quebrar direito. (Os donos a apelidaram, de forma
imperdoável, de “Restaurants”.) Cloudbreak, que pegava todo
swell que passava, era muito mais constante. Barcos iam até lá o
dia inteiro e ancoravam no canal enquanto os hóspedes
surfavam. Cloudbreak era maior, mais sinuosa e mais aguçada
que a onda da ilha, com muito mais imperfeições. Ela possuía
diversos picos de drop e muitas ondas insurfáveis. Mas tinha a
própria magnificência. Comecei a acordar ainda no escuro, pegar
o primeiro barco e surfar Cloudbreak ao amanhecer, aprendendo
aos poucos as referências dos picos. Se você fizesse algumas
triangulações básicas, as montanhas de Viti Levu, oito
quilômetros a leste, serviam de ponto de referência para sua
localização no longo recife liso e brilhante.
Cloudbreak, Fiji, 2005
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F de Falcão
Helen Macdonald