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ultraesfomeados
Elaine de Azevedo
Todos que comem esses produtos adoecem, mas quem mais sofre?
Quem mais sofre as repercussões desse sistema, são os pequenos
agricultores familiares e as comunidades tradicionais remanescentes do
mundo rural obrigadas a migrar para as franjas das grandes cidades para
serem explorados, junto com os grupos sociais mais vulneráveis socialmente
– negros e, especialmente, mulheres negras - que não foram contemplados
com terra, herança ou acesso a educação e saúde. E no campo, nas
florestas e nas cidades passam fome. Ou só comem alimentos de alta
densidade energética, envenenados, de baixo custo e qualidade que
promovem saciedade, insegurança alimentar e diversas enfermidades
supracitadas. Os mesmos alimentos ultraprocessados. Que, por incrível que
pareça, também seduzem muitos que poderiam comer comida orgânica, de
origem familiar, local, variada e fresca. A comida de verdade.
Aglomeração de (ir)responáveis
A metade do povo brasileiro fez um casamento desastroso com esse atual
governo em 2018. Uma relação bem honesta na verdade porque durante o
turbulento contrato de núpcias, o atual presidente nunca escondeu que
priorizaria seus amantes corresponsáveis pela agravação da insegurança
alimentar dos brasileiros e pela destruição ambiental.
Os amantes? Muitos. O observatório do agronegócio no Brasil, ‘De olho nos
ruralistas’ 2 destaca quase duas dezenas de Associações e Sindicatos 3 do
2
Hiperlinbk https://deolhonosruralistas.com.br/
3
A Associação Brasileira dos Produtores de Sementes de Soja, a Associação dos
Produtores de Soja, o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa
agronegócio ligadas a produção de soja, algodão, cana de açúcar, leite, fumo
e pecuária, além do poderoso e discreto Instituto Pensar Agropecuária que
banca, silenciosamente, a Frente Parlamentar Mista da Agropecuária
(apelidada de bancada ruralista).
De variados modos, os amantes verde e amarelos são mantidos
financeiramente pelos cafetões do agronegócio que subsidiam essa onerosa
paixão entre o Estado e o agronegócio: empresas nacionais e multinacionais
como a Bayer, Basf, DuPont, Syngenta, Autora, Seara, 3M, JBS, Nestle,
Frimesa, Danone, Suzano, Klabin, Aurora, Bunge, Seara, BRF, além da
Souza Cruz e Phillip Morros e entidades financeiras como o Banco do Brasil,
o Santander, o Itaú Itau BBA, o Sicredi, a B3 (ex-Bovespa) e o banco
holandês Rabobank. E seus acionistas, consciente ou inconscientemente.
Como se vê, são muitos atores que atuam no palco desse sistema
agroalimentar. O agronegócio, a mídia, a publicidade, a ciência, os
supermercados, o Estado. Todos dançam a música orquestrada pelas
grandes corporações que produzem insumos, tecnologia, maquinário, ultra
processados, concentração de renda, desemprego rural, destruição
ambiental, doenças, insegurança alimentar e fome nos países em
desenvolvimento. E a frente, o maestro, nosso conhecido neoliberalismo.
Da parte do Estado, o presidente do Brasil tem assumido as cláusulas do seu
acordo nesse sistema. Desde 2019, o governo Bolsonaro vem
desestruturando as políticas de segurança alimentar e de bem estar social
que beneficiaram durante alguns anos quem produz comida no país, como o
Bolsa Família, o Pronaf, o Programa de Aquisição de Alimentos (que já
chegou a beneficiar 129, 8 mil agricultores familiares em 2012). No primeiro
dia que assumiu o governo, o atual presidente destituiu o Conselho de
Segurança Alimentar e Nutricional e enfraqueceu a Política Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional. Extingui o Ministério de Desenvolvimento
Vegetal, Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais, o Sindicato
Nacional da Indústria de Produtos para Saúde Animal, a Associação Brasileira da
Indústria do Fumo, a Associação Brasileira do Agronegócio, a Associação Brasileira
de Produtores de Algodão, a Associação Brasileira de Proteína Animal, o Sindicato
Nacional das Indústrias de Alimentação Animal, a União da Indústria da Cana de
Açúcar, a Indústria Brasileira de Árvores, a Associação Nacional de Defesa Vegetal,
a Viva Lácteos, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, o Conselho das
Entidades do Setor Agropecuário, entre outras.
Agrário que apoiava o Agricultura Familiar e congelou diversas modalidades
de financiamento para essa modalidade. Enquanto desmonta o sistema que
produz comida, o governo fortalece o Ministério da Agricultura que agora
destina 85% da verba da agricultura para o agronegócio de exportação de
commodities e de produção de ração e agrocombustíveis. Também vem
desqualificando a Companhia Nacional de Abastecimento e sua política
pública de criar estoques regulares para manter o preço baixo de alimentos
básicos para a população, como arroz e feijão. Pressionado pelos interesses
das grandes empresas alimentares, a ministra da agricultura atacou
recentemente o Guia Alimentar da População Brasileira que desaconselha o
consumo de ultraprocessados. Desde que foi eleito, o Messias já liberou
cerca de 1.000 novos agrotóxicos para agradar amantes e cafetões. Também
ignora a violência no campo e a morte de ambientalistas e agricultores e
criminaliza movimentos que lutam pela reforma agrária, um direito garantido
na Constituição Brasileira. E, mais recentemente, já com cerca de 15 milhões
de desempregados, 19 milhões de brasileiros esfomeados, 9% da população
em situação de insegurança alimentar grave, mais de 50% de famílias
obrigadas a cortar o consumo de itens essenciais e com o país batendo
novamente na degradante porta do Mapa da Fome, como mostra o recente
Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da
Covid-19 no Brasil4, o governo está interferindo na mais antiga e eficiente
politica pública de alimentação: o Programa Nacional de Alimentação
Escolar, o PNAE. Exige a inserção de alimentos ultraprocessados na
alimentação escolar e o aumento de carnes e derivados, bem como a saída
de nutricionistas que zelam pela qualidade nutricional e alimentar dos
cardápios escolares das crianças brasileiras.
E esse show de horrores acontece sob o aumento das taxas de serviços
básicos (água, eletricidade e gás), a desestruturação do Sistema Único de
Saúde, o corte do auxílio emergencial e no meio da maior pandemia e crise
sanitária mundial que já matou cerca de 370 mil brasileiros.
4
Dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da
Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em
Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN). Disponível em:
http://olheparaafome.com.br/
A quem responsabilizar?
A multiplicidade de atores e a complexa rede de poderes acabam por
possibilitar o esquive da responsabilidade das incontáveis repercussões
econômicas, sociais, ambientais e éticas e sobre a soberania, a segurança
alimentar a saúde coletiva, resultantes desse perverso sistema, E como não
é possível colocar a culpa em um ator, todos acabam isentados.
E, ironicamente, a responsabilidade para mudar o sistema, acaba caindo
sobre o consumidor que com seu poder de compra poderia mudar o quadro.
Nós comedores, temos nosso papel nesse sistema, mas que esse clamor
não desvie a responsabilidade e acabe por culpabilizar a própria vítima. Que
não é o comedor privilegiado que pode optar por alimentos de verdade, mas
aqueles que vivem em desertos alimentares, sem emprego, sem políticas de
bem estar social, recebendo ocasionalmente uma cesta básica repleta de
alimentos de baixa qualidade ou a filantropia de alguns cidadãos caridosos e
instituições organizadas. Porque nem filantropia esses cafetões tem se
dignado a oferecer para minimizar os efeitos desse sistema.
Diante dessa denúncia que nos deixa desiludidos e impotentes é bom
lembrar que existem outros sistemas. E para matar, não minimizar, a fome
dos brasileiros e garantir sua saúde, só com um Estado que apoie um
sistema agroalimentar responsável. E essa possibilidade a gente define nas
urnas.