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A revolução pecuarista
A pecuária tornou-se uma parte fundamental do sistema
alimentar atual, investindo num modelo industrial e intensivo
que tem sido chamado de “revolução pecuária” (Delgado et al.,
1999). Este sistema tem implicado um aumento exponencial da
produção e consumo de carnes e produtos derivados, seguindo o
mesmo padrão produtivista da “revolução verde” (uso intensivo
da terra, insumos químicos, “melhoria” genética etc.), ao mesmo
tempo que modifica nossa dieta. Um modelo que tem promovi-
do a concentração empresarial, deixando para um punhado de
empresas transnacionais a capacidade de decidir quais carnes e
derivados consumimos, o quanto, e como elas são processadas.
No entanto, se a “revolução verde” prometeu acabar com
a fome no mundo e falhou, o aumento da produção de carne
tampouco tem significado uma melhoria na dieta alimentar. Ao
contrário, o aumento desse consumo tem levado ao aumento
dos problemas de saúde, e sua lógica produtivista tem tido um
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Saúde ameaçada
Embora a revolução pecuária afirme “melhorar” as raças
de gado – isso sim, respondendo aos interesses do mercado,
promovendo aquelas mais produtivas, resistentes a doenças, de
fácil adaptação ao ambiente etc. –, nada disso significou um
enriquecimento do que comemos. Na verdade, a variedade de
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O trabalho precário
As condições de trabalho das pessoas nessas fazendas deixam
muito a desejar. De acordo com um relatório da Human Rights
Watch (2004), trabalhar na indústria da carne é o mais perigoso
emprego industrial nos Estados Unidos. O relatório destacou o
abuso sistemático de mão de obra imigrante indocumentada,
intimidação, falta de indenizações, retaliações e ameaças de
demissão contra aqueles que denunciavam abusos.
De fato, entre os animais que são sacrificados e os funcio-
nários que trabalham, há mais pontos em comum do que estes
últimos poderiam imaginar. Upton Sinclair (2012 [1906]), em
seu brilhante livro The Jungle [A Selva], que retratou a vida
precária dos trabalhadores dos matadouros de Chicago nos
primeiros anos do século passado, deixou isso claro: “Aqui se
sacrificavam homens igualmente como se sacrificava o gado:
cortavam seus corpos e almas em pedaços e os convertiam em
dólares e centavos”.
Hoje, nos Estados Unidos, muitos matadouros contratam,
em condições precárias, os imigrantes mexicanos – como retrata
Nação Fast Food, o excelente filme de Richard Linklater – ou
nos países centrais da União Europeia, imigrantes da Europa
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O leite* da má-fé
Os agricultores e produtores de leite estão em pé de guerra.
O setor está passando, como temos visto nos últimos anos, por
uma profunda crise, provocada pela queda acentuada do preço do
leite, o que é especialmente prejudicial para pequenos e médios
pecuaristas, que estão gradualmente abandonando suas fazendas.
Não é apenas uma “crise de preços”; estamos diante de uma
“crise do modelo agrícola”. Resultado de políticas governamen-
tais que promovem uma agricultura e uma produção intensiva e
insustentável. Apesar desta situação difícil, o Conselho Agrícola
da União Europeia, em setembro de 2009, manteve-se impassível,
permitindo uma alta produção enquanto a demanda diminuía,
com a consequente queda acentuada nos preços de leite e empo-
brecimento dos pequenos produtores.
Por essas razões, desde a Plataforma Rural e a Coordenação
Europeia da Via Campesina, insiste-se, em primeiro lugar, em
uma regulação do mercado, adaptando a oferta à procura. Não
como agora, que se promove um aumento da cota de produção,
independentemente da quantidade de demanda, uma política
que visa basicamente beneficiar a indústria de laticínios e os
* No original, “de mala leche”. Significando literalmente “mau leite”, é uma ex-
pressão normalmente traduzida como “má índole”, “má-fé”, e tem sua origem
na ideia de que o caráter das pessoas se vincularia estreitamente às heranças
familiares; como se a mãe, pelo amamentamento, pudesse transferir elementos
negativos para a formação da criança. O jogo de palavras foi aqui adaptado, em
livre tradução. (N. T.)
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Em poucas mãos
Umas poucas empresas repartem o suculento bolo da pesca
industrial. São elas grandes companhias que compram e ab-
sorvem outras ainda pequenas, com o objetivo de exercer um
maior controle da indústria, integrando criação, processamento
e comercialização. Atualmente, para dar um exemplo, quatro
empresas controlam mais de 80% da produção mundial de sal-
mão. A noruego-holandesa Nutreco é a número um, seguida das
também norueguesas Cermaq, Fjord Seafood e Domstein que,
após uma fusão em 2002, ocupam a segunda posição.
Outras grandes empresas, como a Pescanova, de origem
galega, optam pela compra de cotas, investindo na produção de
salmão no Chile, da tilápia no Brasil, do pregado em Portugal,
do camarão na Nicarágua. No entanto, essas empresas vão do
sucesso à falência. Atualmente, a Pescanova está na corda bamba,
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OS BA STIDOR E S DO AGRONEGÓCIO
“Coca-Cola é assim”
“Obrigado por compartilhar felicidade”, diz um recente
anúncio da Coca-Cola. Mas, olhando de perto, parece que a
Coca-Cola, de felicidade, reparte muito pouco. Perguntem aos
trabalhadores das fábricas que a transnacional começou a fechar
em 2014 em Fuenlabrada (Madrid), Mallorca, Alicante e Astúrias.
Ou perguntem aos sindicalistas perseguidos – alguns até mesmo
sequestrados e torturados na Colômbia, Turquia, Paquistão, Rús-
sia, Nicarágua – ou às comunidades na Índia, que ficaram sem
água após a passagem da empresa. E isso para não falar da péssima
qualidade de seus ingredientes e o impacto sobre a nossa saúde.
A cada segundo se consomem 18.500 latas ou garrafas de
Coca-Cola em todo o mundo, de acordo com a empresa. O im-
pério Coca-Cola vende suas 500 marcas em mais de 200 países.
Quem poderia ter dito isso a John S. Pemberton, quando criou,
em 1886, a tão bem-sucedida bebida em uma pequena farmácia
em Atlanta! Hoje, a transnacional já não vende apenas uma be-
bida, mas muito mais. Abusando do dinheiro e de campanhas de
marketing de milhões de dólares, a Coca-Cola nos vende algo tão
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Um rastro de abusos
Por fim, chegou a vez do Estado espanhol. A empresa anun-
ciou, em janeiro de 2014, um Expediente de Regulamentação de
Emprego que envolvia o fechamento de 4 de suas 11 fábricas, a
demissão de 1.250 trabalhadores e a realocação de outros 500.
Uma medida que foi tomada, de acordo com a transnacional, “por
razões organizativas e produtivas” (Bravo, 2014). Uma declaração
da Confederação Sindical de Comissões Obreras (CCOO), no
entanto, observou que a empresa detinha enormes lucros, de cerca
de 900 milhões de euros, e um faturamento de mais de 3 bilhões
(Europa Press, 2014).
As más práticas da empresa são tão globais quanto a sua
marca. Na Colômbia, desde 1990, 8 trabalhadores da Coca-
-Cola foram mortos por paramilitares e 65 receberam ameaças
de morte. O sindicato colombiano Sinaltrainal denunciou que,
por trás destas ações, se encontra a companhia. Em 2001, o Sinal-
trainal, através do Fundo dos Direitos de Trabalho Internacional
e do Sindicato dos Trabalhadores United Steel, conseguiu abrir
nos Estados Unidos um processo contra a empresa para estes
casos. Em 2003, o tribunal indeferiu o pedido alegando que os
assassinatos ocorreram fora dos Estados Unidos. A campanha de
Sinaltrainal, no entanto, já havia conseguido numerosos apoios
(Zacune, 2006).
A trilha de abusos da Coca-Cola é encontrada em pratica-
mente todos os cantos do mundo. No Paquistão, em 2001, vários
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onde ela está instalada; acaba com a água corrente para consu-
mo humano, higiene pessoal e agricultura, e para o sustento de
muitas famílias. Em Kerala, em 2004, a fábrica de Coca-Cola de
Plachimada foi forçada a fechar depois que o conselho negou a
renovação da licença, acusando a empresa de esgotar e poluir suas
águas. Meses antes, a Suprema Corte de Kerala sentenciou que
a extração massiva de água pela Coca-Cola era ilegal (Adhyayan
Vikas Kendra, 2003). Seu fechamento foi uma grande vitória
para a comunidade.
Casos semelhantes ocorreram em El Salvador e Chiapas, entre
outros. Em El Salvador, a instalação de fábricas de engarrafa-
mento de Coca-Cola esgotou os recursos hídricos, após décadas
de extração. Poluiu os aquíferos pela eliminação de água não
tratada, procedente de tais fábricas. A empresa sempre se recu-
sou a assumir o impacto de suas práticas. No México, a empresa
privatizou numerosos aquíferos, deixando as comunidades locais
sem acesso a eles, graças ao apoio incondicional do governo de
Vicente Fox (2000-2006), ex-presidente da Coca-Cola México
(Zacune, 2006).
A fórmula secreta
O impacto de sua fórmula secreta sobre a nossa saúde também
é amplamente documentado. Suas altas doses de açúcar não nos
beneficiam e nos tornam “viciados” em sua mistura. O asparta-
me – um adoçante não calórico, substituto do açúcar usado na
Coca-Cola Zero –, se consumido em doses elevadas pode causar
câncer, como assinala a jornalista Marie-Monique Robin, em seu
documentário “Nosso veneno diário”.
Em 2004, a Coca-Cola na Grã-Bretanha foi forçada a reco-
lher, após seu lançamento, a água engarrafada Dasani, depois que
foram descobertos níveis ilegais de bromuro, uma substância que
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De Panrico a “panpobre”
Até recentemente, os anúncios de Donuts nos diziam: “Co-
mece o dia com um sorriso”. No entanto, nas fábricas Panrico
já não se espalham sorrisos. De algum tempo para cá, a vida da
força de trabalho tornou-se uma roleta russa. Agora nas mãos
de uns, depois nas mãos de outros. A usura, que não conhece
limites, tem sido a sentença de morte da empresa, e o corte nos
direitos de seus trabalhadores, como nos repetem, é o “sacrifício
necessário”.
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A chave do sucesso
Qual é o segredo do sucesso? Embora Telepizza nos venda
que “o segredo está na massa”, e seu fundador Leopoldo Fernán-
dez Pujals se apresente como um homem que fez a si mesmo, na
verdade a chave para o triunfo reside no domínio completo da
cadeia (desde a produção até a entrega), nas precárias condições
de trabalho, na baixa qualidade de seus alimentos e em uma
publicidade agressiva de ofertas e promoções.
A corrida para ganhar dinheiro – e quanto mais, melhor –
levou a empresa a cortar cada vez mais direitos de seus trabalha-
dores. Se, em 1994, a sua equipe estava incluída no Convênio de
Hotelaria, a partir de 2017, e com o beneplácito dos sindicatos
majoritários, se criou um novo Convênio de Delivery (entrega), o
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O PODER DOS SUPER MERC A DOS
Operação Supermercado
Na Espanha, a abertura do primeiro supermercado foi realiza-
da em 1957 e teve lugar em Madrid. Tratava-se de um self-service
de natureza pública, promovido pelo regime de Franco no âmbito
do programa “Operação Supermercado”, que importou o modelo
de distribuição comercial dos Estados Unidos, sob a influência do
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A cadeia de exploração
Os supermercados impõem um modelo de agricultura e ali-
mentação no qual o campesinato não tem lugar. O seu objetivo é
controlar toda a cadeia alimentar, desde a fonte até a boca, reduzir
custos de produção e aumentar o preço final dos alimentos, para
obter o máximo benefício econômico (lucro). Ao agricultor é pago
o menor preço possível para a sua produção, condenando-o à mi-
séria e, muitas vezes, ao fechamento de seu sítio. Uma dinâmica
que permite à grande distribuição a sujeição do agricultor, e que
é extensível a outros fornecedores, numa cadeia de exploração
do maior ao menor.
Nos shoppings, segue-se a mesma política. O quadro de pessoal
está sujeito a uma estrita organização taylorista, caracterizada por
um ritmo de trabalho intenso, tarefas repetitivas e de rotina, e
com pouca autonomia de decisão. Uma situação que envolve o
aparecimento de esgotamento, estresse e enfermidades laborais
próprias da indústria, como dor crônica nas costas e dores cer-
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“Passando um pano”
Confrontada com os impactos negativos que lhe são atribuí-
dos, a grande distribuidora desenha uma estratégia de limpar sua
imagem com um revestimento verde e solidário. Desse modo, nos
últimos anos têm proliferado nas prateleiras de seus estabeleci-
mentos produtos ecológicos e de comércio justo. Uma estratégia
que tem atraído críticas do movimento por um consumo ecológico
e do comércio justo.
Na Espanha, cadeias como Carrefour, Alcampo e Eroski sãos
algumas das que mais esforço têm dedicado para adquirir uma
imagem “justa e responsável” a partir da comercialização de tais
artigos. No entanto, apesar da introdução de produtos rotulados
como “justos” e “verdes” em suas linhas, as práticas comerciais
destas cadeias não mudaram e deixam muito a desejar. O comér-
cio justo e ecológico é usado como um instrumento de limpeza
de imagem, atrás da qual se escondem graves impactos sobre o
meio ambiente, a comunidade, os direitos dos trabalhadores e o
comércio local (Vivas, 2007b).
A maioria das grandes redes de varejo tem as suas próprias
fundações, ou se integra a outras, com o objetivo de promover
uma imagem “socialmente responsável”. O grande gigante do
varejo, Wal-Mart, tem a Fundação Wal-Mart, que financia
principalmente atividades em âmbito local. Coincidentemente,
é nesse âmbito que sua imagem está se deteriorando, devido a
suas práticas antissindicais e desleais na fixação dos preços dos
produtos, que acabam matando o pequeno comércio e precari-
zando a mão de obra.
Na mesma linha, podemos citar o exemplo de outras grandes
cadeias como Carrefour (com a Fundação Solidariedade Carre-
four), Eroski (com a Fundação Eroski) e Alcampo – que não tem
uma fundação própria, mas faz parte da Fundação Empresa e
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leira, 20% de nós compramos antes a marca que está no nível dos
olhos do que qualquer outra, apenas por conveniência, mesmo
que as outras sejam mais baratas. Sem saber, somos cobaias em
um grande laboratório chamado “super”.
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quase tudo sobre nossas vidas privadas: quem somos, qual a nossa
idade, estado civil, preferências, hobbies. À margem do que diz a
ficha que preenchemos, as compras regulares que fazemos ficam
gravadas para sempre em nosso arquivo: se nós gostamos ou não
de chocolate, se preferimos carne ou peixe, qual café, que massas,
doces, bebidas, conservas, verduras que usamos. Eles sabem tudo.
As empresas armazenam esses dados e os utilizam através do
marketing para melhorar suas vendas. Assim, eles sabem quem
consome o quê e quando, podendo realizar perfis detalhados de
seus compradores. A partir desse momento, nos oferecem, através
de publicidade variada, tudo aquilo que “necessitamos” – e com-
pramos, encantados. Nossa vida privada nas mãos de empresas
torna-se uma nova fonte de negócios, sem que possamos nos dar
conta.
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“Modelo alemão”
Mercadona sempre se gabou de seus contratos estáveis, de
oferecer salários acima da média do setor e formação, além de
apostar na conciliação entre trabalho e vida familiar. O próprio
The Wall Street Journal elogiou o “modelo alemão” da empresa,
considerando-o a chave para o seu sucesso: condições de traba-
lho flexíveis e salários vinculados à produtividade (Ball e Brat,
2012) – o que não parece o mais adequado a conciliar a vida
pessoal com o trabalho, nem o melhor para um salário estável.
Na verdade, o mesmo Juan Roig, como presidente do Instituto
da Empresa Familiar, que reúne centenas de empresas líderes em
seu setor, tem repetidamente exigido a “necessária” flexibilidade
do mercado de trabalho, a redução do custo de demissão, a ele-
vação da idade de aposentadoria para 67 anos, a transferência de
feriados de terça a sexta para a segunda-feira para evitar “pontes”,
e a desvinculação do aumento salarial ao aumento do IPC (Índice
de Preços ao Consumidor) (Lafont, 2006). Tudo, claro, pensando
nos trabalhadores...
As denúncias feitas contra Mercadona por abusos laborais são
muitas e vêm de longe. As demissões improcedentes, a política
antissindical, a extrema pressão sobre a força de trabalho, as
dificuldades para conceder a aposentadoria, o assédio aos traba-
lhadores (Llopis, 2014). Em 2006, começou um longo conflito no
Centro Logístico de Sant Sadurní d’Anoia – encarregado do abas-
tecimento dos supermercados da Catalunha, Aragão e Castelló.
Vários vendedores começaram um processo de auto-organização
contra os abusos da empresa, com o apoio do sindicato CNT. A
resposta de Mercadona foi rápida: três funcionários para a rua! Isso
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Adeus, quitandas!
O desaparecimento do pequeno comércio local é outro dos
“danos colaterais” da proliferação de supermercados, a despeito
de Mercadona dizer que várias lojas se desenvolvem no entorno
de seus estabelecimentos. No entanto, eu diria que se instalam
“apesar” da empresa. E não se trata de qualquer tipo de loja, mas
quitandas que se aproveitam do insípido e embalado produto que
Mercadona vende para oferecer uma alternativa fresca aos clientes
da cadeia. O próprio Juan Roig deixou isso claro ao afirmar que
em torno de cada Mercadona “não há supermercados, mas há
oito quitandas”. E acrescentou: “Sem ir a Harvard, mas a ‘Har-
vacete’, os vendedores de frutas e verduras são mais espertos do
que nós” (Zafra, 2013a). Qual é a sua meta agora? Eliminar lojas
de conveniência e quitandas nas proximidades de Mercadona.
A empresa lançou, no final de 2013, uma nova estratégia para
vender diretamente produtos frescos.
Agricultores, pecuaristas e fornecedores tampouco estão satis-
feitos com Mercadona. Sindicatos agrários como o Coordinadora
de Organizaciones de Agricultores y Ganaderos [Coordenação
das Organizações de Agricultores e Pecuaristas] (Coag) (2009)
denunciaram várias vezes como o processo de concentração dos
supermercados só favorece o enriquecimento deles mesmos, à
custa da redução da renda dos agricultores. Em junho de 2013,
camponeses das Canárias, concentrados no portão de um Merca-
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Alimentos “viajantes”
De onde vêm os alimentos até a rede Mercadona? Um
relatório de Amigos de la Tierra afirma que, se os alimentos
que compramos tivessem um velocímetro, a média antes de
alcançar nosso prato seria de 5 mil quilômetros (Gonzalez,
2012). Mercadona, a maior cadeia de supermercados, não é
uma exceção a isso. A Coag denunciou, em março de 2009, o
contrato entre Mercadona e a empresa portuguesa Sovena, cujo
principal acionista é um dos genros de Juan Roig, para plantar
oliveiras e produzir azeite em Portugal e no Norte do Magrebe,
deslocalizando a produção.
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SIM, E X ISTEM A LTER NATI VA S!
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você não pode pagá-la, em vez de lhes dar para comer, jogam no
lixo. Da mesma forma, os cereais não são produzidos apenas para
alimentar as pessoas, mas também para alimentar carros (como
os biocombustíveis) e animais – cuja criação exige muito mais
energia e recursos naturais do que se gastaria, com tais cereais,
para alimentar pessoas diretamente. Produz-se comida, mas uma
grande quantidade dela não acaba em nosso estômago. O sistema
de produção, distribuição e consumo de alimentos é projetado
para dar dinheiro às empresas do agronegócio, que monopolizam,
do início ao fim, a cadeia alimentar. Eis, aqui, a causa da fome.
Portanto, por que alguns ainda insistem que temos de produ-
zir mais? Por que nos dizem que precisamos de uma agricultura
industrial, intensiva e geneticamente modificada que nos permita
alimentar toda a população?
Querem nos fazer crer que as próprias causas da fome serão
a solução. Mas isso é falso. Mais agricultura industrial, mais
agricultura transgênica, como já foi demonstrado, significa mais
fome. Há muita coisa em jogo quando falamos de alimentos. As
grandes empresas do setor sabem disso muito bem. Daí vem o
discurso hegemônico dominante nos dizer que elas têm a solução
para a fome no mundo, quando na verdade são elas que, com
suas políticas, a causam.
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Produtos de época
Estamos acostumados a comprar, se quisermos, tangerinas,
uvas, morangos, melão etc., durante todo o ano. Já não sabemos
se os tomates ou as laranjas são cultivos da época ou não. Desa-
prendemos os ritmos de produção da terra, e nos distanciamos do
trabalho no campo. Comprar produtos que não são da temporada
faz com que acabemos pagando mais pelo que comemos, obtendo
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Eficiência e preço
“A agricultura ecológica é pouco eficiente e cara”, dizem seus
detratores. Aqueles que fazem essa afirmação se esquecem de que
é precisamente o atual modelo de agricultura industrial que des-
perdiça anualmente um terço dos alimentos que são produzidos
para consumo humano – à escala mundial, cerca de um bilhão e
300 milhões de toneladas de comida, segundo os dados da FAO
(2012b). Trata-se de uma agricultura de “usar e jogar fora”. Em
consequência, o que é aqui o ineficiente? Para além dessas cifras,
é óbvio que o atual modelo de agricultura industrial, intensiva e
transgênica não satisfaz às necessidades alimentares das pessoas.
A fome, num mundo onde se produz mais comida do que nunca,
é o melhor exemplo.
Por sua parte, a agricultura ecológica e de proximidade tem
demonstrado que garante melhor a segurança alimentar do que
a agricultura industrial. E permite uma maior produção de co-
mida, especialmente nos ambientes desfavoráveis, nas palavras
de Olivier de Schutter (2010), apoiando-se em seu relatório “A
agroecologia e o direito à alimentação”. A partir dos dados ex-
postos neste trabalho, a reconversão de terras em países do Sul
ao cultivo ecológico aumentou sua produtividade em até 79%, e,
particularmente na África, a reconversão permitiu um aumento
de 116% nas colheitas. Os números falam por si só.
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O QUE ENTENDEMOS POR
COMÉRCIO JUSTO?
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Do local e do global
A maior parte das organizações que podemos demarcar no
polo “tradicional e dominante” tem uma visão unidirecional
do comércio justo Sul-Norte. Trabalhar a favor da justiça nas
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Aprendizagens mútuas
A partir do que já assinalamos, podemos concluir que só um
discurso e uma prática de comércio justo que rompam com as
injustas políticas agrárias e comerciais, tanto no Norte quanto
no Sul, nos permitirão avançar em direção a um modelo social
e ecológico mais justo.
A soberania alimentar propõe um paradigma global al-
ternativo ao atual sistema agroalimentar, desde a produção,
passando pela distribuição, até o consumo: ao mesmo tempo
que o comércio justo incide em uma parte – a comercialização
e distribuição –, tem-se em conta, desde a perspectiva “global
e alternativa”, o conjunto da cadeia. É aqui onde a soberania
alimentar e o comércio justo se encontram. E a primeira dá uma
perspectiva ao segundo.
Um comércio justo é impossível fora do marco político da
soberania alimentar. Se os camponeses não têm acesso aos bens
naturais (água, terra, sementes); se os consumidores não podem
decidir, por exemplo, sobre o consumo de alimentos livres de
transgênicos; se os países não são soberanos para estabelecer suas
políticas agrícolas e alimentares; não pode existir um comércio
justo, porque as transações comerciais seguirão em mãos de em-
presas transnacionais, apoiadas por elites políticas, que buscam
fazer negócio com a agricultura e com a alimentação.
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Algumas considerações
Para dar respostas às perguntas formuladas, gostaria de fazer
três considerações.
Em primeiro lugar: comércio justo não significa somente ven-
der. O comércio justo tem por objetivo mudar as regras injustas
do comércio internacional, e submeter o comércio às necessidades
dos povos. Vender não deveria ser um fim em si mesmo, mas
um meio para sensibilizar as pessoas sobre esses temas e apoiar
solidariamente os produtores do Sul. Vender através dos grandes
centros comerciais nunca nos permitirá modificar tais regras
injustas do comércio, já que estes são os primeiros interessados
em manter um modelo comercial injusto, que lhes rende lucros
e importantes benefícios econômicos.
Em segundo lugar: o comércio justo não é uma lista de cri-
térios, nem uma mera transferência monetária Norte-Sul. Não
podemos limitá-lo a uma série de normas, aplicadas unicamente
à produção na origem. Trata-se de algo muito mais complexo
do que um produto elaborado com base em princípios de justiça
social e ambiental. O comércio justo é um processo que vai desde
o produtor até o consumidor, e do qual participam muitos outros
atores. Não podemos submeter o produtor no Sul ao cumprimento
de uma série de requisitos na produção (pagamento de um salário
digno, organização democrática, políticas de gênero, respeito ao
meio ambiente) e não aplicar ao resto da cadeia estes mesmos
critérios. Se impuséssemos os princípios do comércio justo aos
supermercados que vendem alimentos com a etiqueta de “justo”,
nenhum deles os cumpriria. Dessa forma, temos que transcender
o olhar assistencial sobre os produtores no Sul e avançar a uma
prática de solidariedade internacionalista.
Em terceiro lugar: o comércio justo não é apenas Norte-Sul.
A justiça nas práticas comerciais não deve se limitar ao comércio
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Justificar o injustificável
O comércio justo é utilizado pelas grandes superfícies como
um instrumento de marketing empresarial e limpeza de imagem.
Vendendo uma ínfima parte de seus produtos de comércio justo,
pretendem justificar uma prática comercial totalmente injustifi-
cável: precarização da mão de obra, submissão do pequeno agri-
cultor, exploração do meio ambiente, promoção de um modelo de
consumo insustentável, competição desleal com o comércio local.
Frente à pergunta “existem supermercados bons e maus?” é
importante destacar que o modelo de produção e comercialização
de todos eles parte de uma lógica de mercado, que antepõe a ma-
ximização de seus benefícios econômicos, ao respeito aos direitos
sociais e ambientais. Em consequência, a lógica de funcionamento
de todos eles é a mesma, ainda que existam alguns que tenham
uma estratégia melhor de limpar sua imagem que outros.
Diante desse cenário, temos que advogar por um comércio
justo que rechace ser um instrumento de “maquiagem” a serviço
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Somar-se ao cortejo
Tesco, o maior supermercado da Grã-Bretanha, tampouco
deixou escapar a oportunidade de aderir ao cortejo. Não é em vão
que a Grã-Bretanha, juntamente com a Suíça, é um dos merca-
dos mais importantes de produtos de comércio justo na Europa.
Tesco afirma contar com “a maior oferta de produtos de comércio
justo”, desde frutas, bolachas, musli, chá, aperitivos, sucos etc.,
chegando a totalizar mais de 90 produtos, alguns dos quais com
marca própria. Uma cifra irrisória – 0,2% do total da oferta – se
comparada com os mais de 40 mil produtos que a companhia
comercializa (Amigos de la Tierra, 2005b).
Na gama de comércio justo da Tesco, as rosas vermelhas
constituem um dos produtos carro-chefe. A companhia fez um
lançamento publicitário sem precedentes, afirmando que se trata-
va das primeiras flores de comércio justo comercializadas na Grã-
-Bretanha, e que garantiam “um melhor intercâmbio econômico
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Limpando a imagem
Na Espanha, várias cadeias de supermercados vendem alimen-
tos etiquetados como justos. Deve-se ter em conta que a comer-
cialização destes produtos não tem parado de crescer há vários
anos. Se, em 2000, suas vendas chegavam apenas aos 7 milhões de
euros, em 2012, somaram mais de 28 milhões, multiplicando-se
por quatro, e com um crescimento interanual de 11,4% (Donaire,
2013). Carrefour, Alcampo e Eroski são algumas das que mais
propagandeiam estes alimentos.
O comércio justo passou a fazer parte da estratégia de Respon-
sabilidade Social Corporativa (RSC) da indústria agroalimentar
e da grande distribuição. As transnacionais buscam associar sua
marca a conceitos como ecologia, solidariedade, justiça – com
o objetivo de adotar uma imagem responsável e comprometida,
que lhes permita aumentar os lucros de seus negócios. O relatório
“O Comércio Justo e a Grande Distribuição na Catalunha” não
poderia deixar isso mais claro:
O componente social é um atributo importante para a marca, e aporta
valor e prestígio às entidades que são mais sensíveis. Incorporar produ-
tos de comércio justo e solidário aos catálogos das grandes cadeias de
distribuição mostra essa sensibilidade e atitude de cumplicidade (...). É
nesses detalhes que a empresa incrementa um valor intangível, até o do-
bro do valor de mercado, e contábil (Grup de Recerca em Comunicació
Empresarial, Institucional i Societat, 2006).
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