Você está na página 1de 103

SOBR E A NIM A IS E PEI X E S

Podemos continuar comendo tanta carne?


A carne tornou-se indispensável em nossas refeições. Parece
que não podemos viver sem ela. Se até há alguns anos seu uso era
um privilégio, uma refeição para certas datas especiais, hoje se
tornou um ato diário. Talvez até demasiado comum. Precisamos,
realmente, comer tanta carne? Qual é o impacto disso sobre o
meio ambiente? Quais as consequências para o bem-estar animal?
Para os direitos dos trabalhadores? E para a nossa saúde?
O consumo de carne está associado ao progresso e à mo-
dernidade. Na Espanha, entre 1965 e 1991, o consumo qua-
druplicou, especialmente o da carne de porco (Mili, Mahlau e
Furitsch, 1998). Nos últimos anos, no entanto, o consumo tem
se estagnado ou mesmo diminuído nos países industrializados,
devido, entre outros fatores, aos escândalos alimentares (vaca
louca, gripe aviária, frangos com dioxina, carne de cavalo em
vez de carne de vaca etc.) – e aumentou a preocupação sobre
aquilo que comemos. De qualquer forma, lembremo-nos que,
num contexto de crise, grandes setores da população não podem
optar por alimentos frescos ou de qualidade, ou escolher entre
dietas com ou sem carne.
E st her Vi va s E stev e

A tendência nos países emergentes – como no Brasil, Rússia,


Índia, China e África do Sul, o chamado Brics – é a oposta, e
o consumo está aumentando. Estes países são responsáveis por
40% da população mundial; entre 2003 e 2012, o consumo de
carne aumentou em 6,3%, e se espera que entre 2013 e 2022
cresça 2,5%. O caso mais espetacular é o da China, que no
período entre 1963 e 2009 passou de 90 quilocalorias de carne
por pessoa/dia para 694 (Chemnitz Becheva, 2014). As razões?
O aumento da população, a urbanização e a imitação de um
estilo de vida ocidental por parte de uma ampla classe média.
Chegamos ao ponto em que definir-se como “não vegetariano”
na Índia, um país vegetariano por excelência, tornou-se, entre
alguns setores, um status social.

A revolução pecuarista
A pecuária tornou-se uma parte fundamental do sistema
alimentar atual, investindo num modelo industrial e intensivo
que tem sido chamado de “revolução pecuária” (Delgado et al.,
1999). Este sistema tem implicado um aumento exponencial da
produção e consumo de carnes e produtos derivados, seguindo o
mesmo padrão produtivista da “revolução verde” (uso intensivo
da terra, insumos químicos, “melhoria” genética etc.), ao mesmo
tempo que modifica nossa dieta. Um modelo que tem promovi-
do a concentração empresarial, deixando para um punhado de
empresas transnacionais a capacidade de decidir quais carnes e
derivados consumimos, o quanto, e como elas são processadas.
No entanto, se a “revolução verde” prometeu acabar com
a fome no mundo e falhou, o aumento da produção de carne
tampouco tem significado uma melhoria na dieta alimentar. Ao
contrário, o aumento desse consumo tem levado ao aumento
dos problemas de saúde, e sua lógica produtivista tem tido um

134
O negócio da comida

impacto muito negativo sobre o meio ambiente, o campesinato,


os direitos dos animais e as condições de trabalho. O aumento
da produção não implica um maior acesso ao que é produzido,
como bem demonstrou o fracasso da “revolução verde”, e, pos-
teriormente, da própria revolução pecuária.

Um consumo caro para o planeta


O aumento da ingestão de carne, além disso, não é gratui-
to; ao contrário, sai muito caro, tanto em termos ambientais
quanto sociais. Se, para atender à demanda mundial atual de
carne, ovos e produtos lácteos, são necessários anualmente mais
de 60 bilhões de animais de granjas ou de fazendas, engordá-
-los sai caríssimo. Na verdade, a criação de animais industriais
provoca a fome, uma vez que um terço das terras aráveis e 40%
da produção de cereais no mundo destinam-se a alimentá-los,
em vez de dar de comer diretamente às pessoas. E nem todos
podem permitir-se um pedaço de carne do agronegócio. Meta-
de dos habitantes do planeta, cerca de 3,5 bilhões de pessoas,
poderia alimentar-se com aquilo que consomem esses animais
(Grupo ETC, 2011).
A pecuária é a principal utilizadora das terras agrícolas, seja
por via direta, através do pastoreio, ou indireta, por seu con-
sumo de rações e forragens (Bruinsma, 2003). Ambos os usos
resultam, muitas vezes, do desmatamento das florestas virgens
e florestas tropicais, com a consequente degradação dos solos e
recursos hídricos. Milhares de camponeses, em função dessas
práticas, têm sido expulsos das suas terras, agora destinadas à
monocultura de cereais para alimentação animal. A pecuária
camponesa, diversificada, local e familiar, está sendo substituída
por um modelo intensivo, monopólico, corporativo e exporta-
dor, com o qual os camponeses não podem competir.

135
E st her Vi va s E stev e

E mais, neste modelo, vacas, porcos e galinhas são os prin-


cipais geradores de mudanças climáticas. Quem diria! Calcula-
-se que o gado e os seus subprodutos geram 51% das emissões
globais de gases de efeito estufa (Goodland e Anhang, 2009).
Mesmo uma vaca e seu bezerro em uma fazenda de pecuária
emitem mais CO2 do que um carro que rodou 13 mil quilôme-
tros (Steinfeld et al., 2006). Nós, ao comermos carne, somos
corresponsáveis.
A poluição da água é outra das consequências desta revolu-
ção pecuária, bem como sua utilização intensiva. Agricultura
e pecuária consomem entre 70% e 80% do total de água doce
disponível.* Segundo o filósofo e ecologista Jorge Riechmann
(2003), produzir um quilo de proteína animal na indústria
pecuária exige 40 vezes mais água do que a produção de um
quilo de proteína cereal; ou 200 vezes mais do que um quilo
de batatas. Como salientou: “Em um mundo finito, onde a
escassez de água doce tornou-se um fator limitante essencial,
é a mesma coisa consumir um e consumir 40?” O autor nos
lembra que não dá no mesmo plantar espinafres ou ração para
as vacas. A mesma quantidade de terra vai produzir 26 vezes
mais proteína para consumo humano se cultivarmos espinafre
em vez de ração para forragem.

Saúde ameaçada
Embora a revolução pecuária afirme “melhorar” as raças
de gado – isso sim, respondendo aos interesses do mercado,
promovendo aquelas mais produtivas, resistentes a doenças, de
fácil adaptação ao ambiente etc. –, nada disso significou um
enriquecimento do que comemos. Na verdade, a variedade de

* Segundo dados do 2º Fórum Mundial da Água (Haya, 2000).

136
O negócio da comida

raças de animais e espécies de plantas diminuiu drasticamente


nos últimos anos. Estima-se que 30% das raças de animais
domésticos estão em perigo de extinção, o que significa o de-
saparecimento de três espécies domésticas a cada duas semanas
(Veterinarios Sin Fronteras, 2007). Nossa dieta diária depende
de menos variedades animais e vegetais, o que implica uma
maior insegurança alimentar.
Outra consequência na saúde humana é o impacto dos re-
síduos animais, antibióticos, hormônios e produtos químicos
utilizados na pecuária industrial, que afetam plenamente as
comunidades. “Os gases emitidos por uma fazenda de porcos
em escala industrial são muito tóxicos. Há muitos gases voláteis
misturado com poeira, bactérias, antibióticos que formam uma
mescla complexa de mais de 300 ou 400 substâncias, a que
estão expostos os vizinhos, famílias e crianças”, disse David
Walllinga do Instituto para Agricultura e Política Comercial,
no documentário Pig Business [Negócio de Porco, 2009] de
Tracy Worcester. Esse quadro leva ao aumento de vários tipos
de doenças entre aqueles que vivem perto dessas instalações.
O fornecimento de medicina preventiva aos animais para que
eles possam sobreviver às péssimas condições dos estábulos e dos
abatedouros, e para obter uma engorda mais rápida e com me-
nor custo para a empresa, também leva ao desenvolvimento de
bactérias resistentes às drogas. Bactérias que podem facilmente
passar às pessoas através, entre outras formas, da cadeia alimen-
tar. Atualmente, de acordo com a OMS (2012), são fornecidos
mais antibióticos para animais saudáveis do que para pessoas
doentes. Na China, por exemplo, estima-se que mais de 100
mil toneladas de antibióticos por ano são dadas aos animais, a
maioria sem qualquer controle. E, nos Estados Unidos, 80% dos
antibióticos produzidos vão para o gado (Chemnitz Becheva,

137
E st her Vi va s E stev e

2014). E isso não é tudo. A própria FAO reconhece que, nos


últimos 15 anos, 75% das doenças humanas epidêmicas têm sua
origem em animais, como as gripes aviária ou suína, resultado
de um modelo pecuário insalubre.

Direitos dos animais


O maltrato é a face mais cruel desse modelo pecuarista,
no qual os animais deixaram de ser considerados seres vivos
para se tornarem matéria-prima industrial. As granjas, assim,
deixam de ser sítios para se tornarem fábricas de produção de
carne, ou modelos de “pecuária não ligada à terra”, como são
chamadas no setor. A mesma lógica capitalista e produtivista
governa outros sistemas vigentes nesse modelo de pecuária,
mas neste caso as mercadorias são animais. “São aplicados
sistemas industriais desenhados para fabricar carros e máqui-
nas à criação de animais. Isso é algo incrivelmente cruel, que
nenhuma sociedade civilizada deveria tolerar”, afirma Tom
Garrett, do Welfare Institute, no documentário Pig Business. A
prática produtivista converte os animais em doentes crônicos:
instalações que impedem seu movimento, a má alimentação,
a superlotação e o estresse são apenas alguns exemplos desses
abusos.
Um fragmento do documentário Samsara (2011), de Ron
Fricke e Mark Magidson, sem cenas explícitas de violência,
mostra a brutalidade oculta e extrema das granjas de produção
de carne e leite, onde os animais sobrevivem e trabalhadores
os desmembram, golpeiam e estripam como se fossem objetos.
Esse modelo de produção tem suas origens nos matadouros de
Chicago, no início do século XX, onde a produção em linha
permitia, em apenas 15 minutos, matar e recortar uma vaca.
Um método tão “eficiente” que Henry Ford o adotaria para

138
O negócio da comida

fabricação de automóveis. Para o capital, não há nenhuma


diferença entre um automóvel e um ser vivo. E para nós? A
distância entre o campo e o prato foi tão alargada nos últimos
anos que, como consumidores, não temos mais consciência de
que, muitas vezes, por trás de um embutido, uma lasanha ou
um espaguete à carbonara, havia vida.

Smithfield Foods, a maior produtora de carne


A revolução pecuária significou um crescente monopó-
lio e integração vertical no setor, em que algumas empresas
controlam todo o processo de produção de carne, desde a
criação, passando pelo matadouro e chegando à embalagem.
A transnacional americana Smithfield Foods é a maior pro-
dutora e processadora mundial de carne de porco, com receita
anual de 11 bilhões de dólares, 48 mil pessoas contratadas e
presença em 15 países (Smithfield Foods, 2010). Para evitar
regulamentações trabalhistas e ambientais estritas, a empresa
mudou parte importante de suas operações para outros países,
com leis mais frouxas.
Entre 1990 e 2005, seu crescimento foi de 1000%, aumen-
tando seu controle sobre cada elo da cadeia produtiva e crescendo
com novos mercados, à custa de acabar com pequenos criado-
res. Smithfield Foods é conhecida pelas inúmeras acusações e
denúncias que tem recebido pela poluição ambiental. A mais
importante foi em 2009, quando Granjas Carroll, uma de suas
empresas subsidiárias no México, foi acusada de ser o epicen-
tro do surto de gripe suína, que devastou o país e se espalhou
globalmente (Hernandez Navarro, 2010).
A violação dos direitos dos trabalhadores é outra das suas
práticas habituais. Elevado número de acidentes de trabalho,
demissões e abusos verbais são alguns dos casos recolhidos no

139
E st her Vi va s E stev e

relatório “Embalado com abuso”, preparado pelo sindicato


United Food and Commercial Workers Union (UFCW), que
analisava as condições de segurança laboral no matadouro e no
setor de embalagem da empresa em Tar Hell, Carolina do Norte,
a maior do mundo, com 5.500 funcionários. Matadouro onde
o UFCW tentou, por mais de uma década, organizar os seus
trabalhadores, com a oposição frontal da empresa. Finalmente,
no final de 2010, foram realizadas eleições sindicais (Research
Associates da América, 2007).

O trabalho precário
As condições de trabalho das pessoas nessas fazendas deixam
muito a desejar. De acordo com um relatório da Human Rights
Watch (2004), trabalhar na indústria da carne é o mais perigoso
emprego industrial nos Estados Unidos. O relatório destacou o
abuso sistemático de mão de obra imigrante indocumentada,
intimidação, falta de indenizações, retaliações e ameaças de
demissão contra aqueles que denunciavam abusos.
De fato, entre os animais que são sacrificados e os funcio-
nários que trabalham, há mais pontos em comum do que estes
últimos poderiam imaginar. Upton Sinclair (2012 [1906]), em
seu brilhante livro The Jungle [A Selva], que retratou a vida
precária dos trabalhadores dos matadouros de Chicago nos
primeiros anos do século passado, deixou isso claro: “Aqui se
sacrificavam homens igualmente como se sacrificava o gado:
cortavam seus corpos e almas em pedaços e os convertiam em
dólares e centavos”.
Hoje, nos Estados Unidos, muitos matadouros contratam,
em condições precárias, os imigrantes mexicanos – como retrata
Nação Fast Food, o excelente filme de Richard Linklater – ou
nos países centrais da União Europeia, imigrantes da Europa

140
O negócio da comida

Oriental. A obra de Sinclair continua, 100 anos depois, plena


de atualidade.
Quem ganha com este modelo? Obviamente que não so-
mos nós, ainda que queiram nos fazer acreditar no contrário.
Umas poucas transnacionais controlam o mercado: Smithfield
Foods­, JBS, Cargill, Tyson Foods, BRF, Vion. E obtêm benefí-
cios significativos com um sistema que polui o meio ambiente,
gera mudança climática, explora os trabalhadores, maltrata os
animais e nos adoece.
A questão que surge é: podemos continuar comendo tanta
carne?

Do Big Mac ao hambúrguer Frankenstein


Quando pensávamos que já tínhamos visto tudo no mundo
dos hambúrgueres, mais uma vez a realidade nos surpreende. Se,
tempos atrás, alguns meios de comunicação ecoaram o achado,
em perfeitas condições, de um hambúrguer do McDonald’s,
14 anos depois de ser servido, em agosto de 2013 se difundia
o lançamento do hambúrguer de laboratório, que também po-
deríamos chamar de “hambúrguer Frankenstein”, concebido,
como o “monstro” de Mary Shelley, entre provetas.
Um hambúrguer que tem tudo: sua produção não polui,
gasta pouca energia, quase não usa solo e, além disso, não
contém gorduras. Sua “carne” é o resultado da extração de
algumas células-tronco a partir de tecido muscular da parte
traseira de uma vaca. O que mais podemos pedir? Hambúrguer
light. Perfeito para o verão. Embora o preço, ainda, não seja
acessível a todos os bolsos: 248 mil euros é o seu custo. Incluí-lo
no McLanche Feliz, parece, vai levar algum tempo. Mas, eles
nos dizem, essa descoberta científica vai acabar com a fome no
mundo. As pessoas querem comer e querem comer carne, então

141
E st her Vi va s E stev e

vamos dar-lhes carne! – parece ser o raciocínio dos “pais” dessa


monstruosidade.
Duas perguntas me vêm à mente. Em primeiro lugar, pre-
cisamos comer tanta carne para nos alimentarmos? Antes de
produzir mais carne, independentemente da sua origem, não
seria melhor fomentar outro tipo de alimentação mais saudável,
mais sustentável e respeitosa aos direitos dos animais? Quem se
beneficia com esse tipo de comida viciada em carne bovina e suí­
na? Smithfield Foods, o maior produtor e processador de carne
de porco, é um dos ganhadores. Em seu currículo se destacam
as violações dos direitos trabalhistas, a poluição ambiental etc.
Na Espanha, Smithfield Foods opera através da Campofrío.
A segunda questão é: para acabar com a fome é necessário
um hambúrguer de laboratório? De acordo com a ONU, já é
produzido, atualmente, alimento suficiente para alimentar 12
bilhões de pessoas, num planeta onde vivem 7 bilhões. Mas,
apesar destes números, quase uma em cada sete pessoas passa
fome (Centro de Noticias ONU, 2007). Comida há, o que
está faltando é justiça na sua distribuição. Não necessitamos
aumentar a produção, ou engendrar hambúrgueres em labo-
ratórios, nem de mais agricultura transgênica, mas, simples
e diretamente, que exista democracia na hora de produzir e
distribuir os alimentos.
Não existem soluções “milagrosas” para a crise alimentar.
Problemas políticos, como a fome, nunca serão resolvidos com
atalhos técnico-científicos. Não é o caso de rejeitar a pesquisa
científica. Ao contrário, deve-se promover a ciência, mas a ser-
viço da maioria social, empenhada em melhorar as condições
de vida das pessoas, não sujeita a interesses comerciais ou eco-
nômicos. Da revolução verde até os organismos geneticamente
modificados, nos prometeram acabar com a fome. A crua reali-

142
O negócio da comida

dade, no entanto, assinala o fracasso dessas promessas. Embora,


muitas vezes, se esconda o seu “sucesso”: enormes lucros para
as indústrias de alimentos e de biotecnologia. O hambúrguer
Frankenstein não é nenhuma exceção.

O leite* da má-fé
Os agricultores e produtores de leite estão em pé de guerra.
O setor está passando, como temos visto nos últimos anos, por
uma profunda crise, provocada pela queda acentuada do preço do
leite, o que é especialmente prejudicial para pequenos e médios
pecuaristas, que estão gradualmente abandonando suas fazendas.
Não é apenas uma “crise de preços”; estamos diante de uma
“crise do modelo agrícola”. Resultado de políticas governamen-
tais que promovem uma agricultura e uma produção intensiva e
insustentável. Apesar desta situação difícil, o Conselho Agrícola
da União Europeia, em setembro de 2009, manteve-se impassível,
permitindo uma alta produção enquanto a demanda diminuía,
com a consequente queda acentuada nos preços de leite e empo-
brecimento dos pequenos produtores.
Por essas razões, desde a Plataforma Rural e a Coordenação
Europeia da Via Campesina, insiste-se, em primeiro lugar, em
uma regulação do mercado, adaptando a oferta à procura. Não
como agora, que se promove um aumento da cota de produção,
independentemente da quantidade de demanda, uma política
que visa basicamente beneficiar a indústria de laticínios e os

* No original, “de mala leche”. Significando literalmente “mau leite”, é uma ex-
pressão normalmente traduzida como “má índole”, “má-fé”, e tem sua origem
na ideia de que o caráter das pessoas se vincularia estreitamente às heranças
familiares; como se a mãe, pelo amamentamento, pudesse transferir elementos
negativos para a formação da criança. O jogo de palavras foi aqui adaptado, em
livre tradução. (N. T.)

143
E st her Vi va s E stev e

grandes varejistas, à custa de pagar preços cada vez mais baixos


aos produtores.
Em segundo lugar, reivindicam o apoio às pequenas e médias
explorações agropecuárias – as quais estão pagando a crise. E não
como agora, em que elas são incentivadas, desde a UE, a aban-
donarem a produção. O ideal seria cortar a produção em função
do tamanho das propriedades, reduzindo indústrias intensivas e
isentando as pequenas. É necessária uma distribuição equilibra-
da das explorações leiteiras no território, em busca de equilíbrio
agroclimático, e, outra vez, não como agora, que se promove sua
transferência para portos marítimos importadores de soja para
alimentação animal.
Em terceiro lugar, é urgente um equilíbrio entre métodos de
produção e respeito ao meio ambiente. A produção leiteira intensiva,
com base na soja importada, nos animais confinados, na contami-
nação dos solos, é uma das principais causas da mudança climática.
Portanto, se deve optar por uma produção leiteira diversificada e
sustentável para as pessoas, os animais e para o ambiente.
A crise leiteira afeta a todos nós, porque é necessário um
mundo rural vivo, alimentos de proximidade e de qualidade,
pagando-se um preço justo ao produtor. Existem motivos, e
muitos, para se estar “de mala leche”.

Comer peixe é saudável?


Asseguram-nos que comer peixe é o que há de melhor – nos
fornece ácidos graxos ômega 3, vitaminas do complexo B, cálcio,
iodo etc. No entanto, comer peixe é realmente tão saudável? Há
certeza de que é benéfico para nós e para o meio ambiente? Que
efeitos isso tem sobre as espécies e os fundos marinhos? E nas
comunidades locais? Quem ganha com essa crescente demanda?
Águas barrentas se movem atrás das cenas da indústria da pesca...

144
O negócio da comida

O consumo de peixe está crescendo. Sua produção mundial


estabeleceu um novo recorde em 2013, atingindo 160 milhões
de toneladas, somando a pesca de captura e a das explorações
piscícolas, em comparação com 157 milhões no ano anterior
(FAO, 2014). Uma tendência que se sustenta na forte demanda
nos mercados internacionais e no aumento da procura na Ásia
Oriental e Sudeste da Ásia, especialmente na China. Na Europa,
a Espanha é um dos maiores consumidores, com uma média de
26,8 kg de peixe por pessoa por ano, apesar do declínio que o
consumo tem sofrido nos últimos tempos em função da crise
(Martin, 2012).
Uma demanda crescente, que está sendo atendida pela ex-
pansão da aquicultura intensiva ou, o que seria o mesmo, pelas
“granjas ou fábricas de peixes”. Imitação do modelo de agrope-
cuária industrial, desta vez aplicada à pesca. Hoje, um em cada
dois peixes que comemos vem dessa produção. É um modelo
em expansão, estimando-se que, em 2030, irá fornecer quase
dois terços de todo o peixe consumido no mundo (World Bank,
2013). No entanto, o negativo impacto social e ambiental deste
modelo, desde sua instalação ao “cultivo” e processamento de
peixes, é o outro lado da moeda.

Peixes comendo peixes


A lógica do capital impacta em cheio a produção do pescado.
Espécies de alto valor econômico são produzidas, mas as mais
populares para o consumo são: na Noruega, o salmão; no Estado
espanhol, a dourada, o robalo, a truta, o atum. Na maioria, peixes
carnívoros, que, por sua vez, necessitam de outros peixes para sua
engorda. O jornalista Paul Greenberg (2012), em seu trabalho
Cuatro peces. El futuro de los últimos alimentos salvajes deixou isso
claro: para produzir 1 quilo de salmão são necessários 3 quilos de

145
E st her Vi va s E stev e

outras espécies de peixes; e para 1 quilo de atum, nada mais e nada


menos do que 20 quilos. O que gera uma maior superexploração
dos recursos pesqueiros. Recursos, muitas vezes, roubados das
costas dos países do Sul, diminuindo assim bens imprescindíveis
para sua alimentação. O resultado é um produto de luxo, à mercê
dos bolsos de quem pode pagar.
Os tratamentos usados em incubadoras para combater as
doenças infecciosas de peixes são outro fator de risco para a saúde
ambiental e o consumo humano (Artijo, 2005). Um exemplo são
os banhos de formaldeído, com uma função antiparasitária, e o
fornecimento preventivo e continuado de antibióticos, que se
acumulam nos órgãos internos do animal, facilitando o apareci-
mento de agentes patogênicos resistentes. As condições nas quais
os peixes se encontram não ajudam. O confinamento em piscinas
superlotadas e gaiolas está na ordem do dia, e facilmente permite
a propagação de doenças pelo atrito, estresse ou canibalismo.
Seu impacto sobre o território e as comunidades também é
importante. As próprias instalações, grandes áreas de piscinas,
competem com o uso dessas terras pela população local, seja para
cultivo ou pastoreio. As águas desses lugares, com altas doses de
produtos químicos e substâncias tóxicas, contaminam os solos e
o ambiente aquático, e a introdução de espécies exóticas e a fuga
de espécimes pode afetar as espécies nativas.

Da costa ao mar adentro


A pesca de captura em larga escala, desde a costa até águas
mais profundas, também tem consequências muito negativas,
tanto para os recursos pesqueiros quanto para o meio ambiente.
No Mediterrâneo, 92% dos cardumes de peixes são superexplo-
rados, e no Atlântico, 63% (Ecologistas em Acción, 2012). Várias
espécies marinhas estão ameaçadas e em perigo de extinção. A

146
O negócio da comida

sobrepesca tem sido a prática dominante, e sua consequência é o


declínio de peixes no mar.
Além disso, a poluição da água afeta esses animais. A pre-
sença de mercúrio nos peixes é a mais conhecida, e prejudica o
ecossistema e a nossa saúde, pois é uma substância tóxica que
atinge o cérebro e o sistema nervoso. Segundo a Ecologistas em
Ação (2014), o peixe contém cada vez mais mercúrio. Em 2013,
na União Europeia, foram notificados 96 casos de peixes conta-
minados, em comparação com 68 no ano anterior. A organização
ambientalista afirma que os limites de mercúrio autorizados pela
União Europeia não são suficientes, porque eles não levam em
conta nem o consumo médio nem as características corporais do
consumidor. Os máximos permitidos pela FAO e pela Organi-
zação Mundial de Saúde, no entanto, são mais restritivos. Nossa
saúde está em jogo.
O ambiente também é prejudicado por técnicas como a pes-
ca de arrasto, que, através da utilização de redes que varrem o
fundo do oceano, destrói o fundo marinho e acaba com habitats
naturais, como recifes de corais. Além disso, devemos levar em
conta os peixes indesejados e imaturos que são obtidos mediante
esta técnica de “caça” indiscriminada, e que acabam sendo des-
cartados e jogados de novo, mortos ou quase mortos, na água.
No arrasto de lagostim no mar do Norte, por exemplo, estima-se
que as capturas indesejadas e descartadas chegam a 98% do total
(Ecologistas em Acción, 2012). Uma prática que também ocorre
em outros modelos de pesca, em teoria, mais seletivos, como a
do espinhel, com milhares de anzóis pendurados em linhas que
podem medir metros ou quilômetros e também tem seus riscos.
No mar Adriático, o descarte desse modelo de pesca pode chegar
a 50% das capturas. A pesca industrial com navios maiores tam-
bém aumenta o risco de poluição proveniente de derramamentos

147
E st her Vi va s E stev e

de petróleo e combustível. A água, parece, engole tudo. Mas a


vida no mar se esgota.
Outro impacto da pesca industrial ocorre em terra firme,
nas comunidades. Tão magnífico como duro, o filme de Hubert
Sauper, O Pesadelo de Darwin, mostra cruamente o retrato da
vida de 25 milhões de pessoas em torno do lago Vitória. Mais da
metade em uma situação de má nutrição, pegando as migalhas da
flutuante indústria de transformação e comercialização da pesca
do Nilo, destinada ao mercado externo. Este é o lado escuro, e
mais dramático, do que aqui, na peixaria ou no supermercado,
encontramos como “filé de garoupa”, e que compramos a um
preço razoável. Todos os dias, cerca de 2 milhões de pessoas no
Ocidente consumem pesca do Nilo. O que equivale a atender às
necessidades de proteína de um terço da população subnutrida
em torno do lago Vitória (No te comas el mundo, 2005b).

Em poucas mãos
Umas poucas empresas repartem o suculento bolo da pesca
industrial. São elas grandes companhias que compram e ab-
sorvem outras ainda pequenas, com o objetivo de exercer um
maior controle da indústria, integrando criação, processamento
e comercialização. Atualmente, para dar um exemplo, quatro
empresas controlam mais de 80% da produção mundial de sal-
mão. A noruego-holandesa Nutreco é a número um, seguida das
também norueguesas Cermaq, Fjord Seafood e Domstein que,
após uma fusão em 2002, ocupam a segunda posição.
Outras grandes empresas, como a Pescanova, de origem
galega, optam pela compra de cotas, investindo na produção de
salmão no Chile, da tilápia no Brasil, do pregado em Portugal,
do camarão na Nicarágua. No entanto, essas empresas vão do
sucesso à falência. Atualmente, a Pescanova está na corda bamba,

148
O negócio da comida

assolada por dívidas e à mercê do sistema bancário (Recio, 2013).


Um modelo industrial que acaba com a pesca artesanal, que não
pode sobreviver em um sistema projetado para a pesca intensiva
e em grande escala.
Neste ponto, mais uma vez perguntamos: comer peixe é tão
saudável para nós e para o ambiente? Tirem suas conclusões.

149
OS BA STIDOR E S DO AGRONEGÓCIO

Política a serviço do agronegócio


No Ministério da Agricultura, Alimentação e Ambiente,
“mudanças” ocorrem sem mudanças de verdade. Miguel Arias
Cañete deixou o cargo em abril de 2014 e Isabel García Tejerina,
sua mão direita, o ocupou. A submissão do Ministério a interesses
empresariais continua, com a nova ministra que, como seu an-
tecessor, fez carreira no setor privado. Cañete veio da Petrolífera
Ducar, García Tejerina vem do Grupo Fertiberia. A dinâmica de
portas giratórias se repete mais uma vez.
Isabel García Tejerina é quase parte do mobiliário do depar-
tamento de agricultura sob o PP, há dez anos rondando por suas
dependências. De 1996 a 2000, foi assessora executiva do minis-
tério, e de 2000 a 2004, Secretária Geral, durante os governos
de José Maria Aznar. Então, com a vitória do Psoe, ela retornou
para o setor privado como diretora de planejamento estratégico
da empresa de fertilizantes, adubos agrícolas e produtos químicos
Fertiberia, onde permaneceu até 2012, quando voltou ao Minis-
tério da Agricultura, para reocupar sua secretaria geral.
Fertiberia é propriedade do Marquês de Villar Mir, acusa-
do no caso Barcenas por doações ilegais para o PP, e uma das
E st her Vi va s E stev e

firmas-chave para seu conglomerado empresarial Grupo Villar


Mir. A nova Lei Costeira, aprovada por Cañete, e à qual Tejerina
dá continuidade, beneficia empresas do Grupo Fertiberia e lhes
permite manter-se nas imediações do litoral, graças à reforma re-
gulatória. A quem vão servir as políticas agrícolas e ambientais da
nova ministra? Aos poucos, que sempre se beneficiam do público,
em detrimento da maioria e do ecossistema...
As portas giratórias não são exceção, mas, sim, a regra, como
temos visto no governo do PP e do Psoe, e em várias administra-
ções e ministérios. Este é um sinal claro do sequestro da política
e da democracia.

“Coca-Cola é assim”
“Obrigado por compartilhar felicidade”, diz um recente
anúncio da Coca-Cola. Mas, olhando de perto, parece que a
Coca-Cola, de felicidade, reparte muito pouco. Perguntem aos
trabalhadores das fábricas que a transnacional começou a fechar
em 2014 em Fuenlabrada (Madrid), Mallorca, Alicante e Astúrias.
Ou perguntem aos sindicalistas perseguidos – alguns até mesmo
sequestrados e torturados na Colômbia, Turquia, Paquistão, Rús-
sia, Nicarágua – ou às comunidades na Índia, que ficaram sem
água após a passagem da empresa. E isso para não falar da péssima
qualidade de seus ingredientes e o impacto sobre a nossa saúde.
A cada segundo se consomem 18.500 latas ou garrafas de
Coca-Cola em todo o mundo, de acordo com a empresa. O im-
pério Coca-Cola vende suas 500 marcas em mais de 200 países.
Quem poderia ter dito isso a John S. Pemberton, quando criou,
em 1886, a tão bem-sucedida bebida em uma pequena farmácia
em Atlanta! Hoje, a transnacional já não vende apenas uma be-
bida, mas muito mais. Abusando do dinheiro e de campanhas de
marketing de milhões de dólares, a Coca-Cola nos vende algo tão

152
O negócio da comida

precioso como “felicidade”, “centelha de vida” ou “um sorriso”.


No entanto, nem seu Instituto Coca-Cola de Felicidade é capaz
de esconder toda a dor causada pela empresa. Seu currículo de
abusos sociais e laborais percorre, como seus refrigerantes, todo
o planeta.

Um rastro de abusos
Por fim, chegou a vez do Estado espanhol. A empresa anun-
ciou, em janeiro de 2014, um Expediente de Regulamentação de
Emprego que envolvia o fechamento de 4 de suas 11 fábricas, a
demissão de 1.250 trabalhadores e a realocação de outros 500.
Uma medida que foi tomada, de acordo com a transnacional, “por
razões organizativas e produtivas” (Bravo, 2014). Uma declaração
da Confederação Sindical de Comissões Obreras (CCOO), no
entanto, observou que a empresa detinha enormes lucros, de cerca
de 900 milhões de euros, e um faturamento de mais de 3 bilhões
(Europa Press, 2014).
As más práticas da empresa são tão globais quanto a sua
marca. Na Colômbia, desde 1990, 8 trabalhadores da Coca-
-Cola foram mortos por paramilitares e 65 receberam ameaças
de morte. O sindicato colombiano Sinaltrainal denunciou que,
por trás destas ações, se encontra a companhia. Em 2001, o Sinal-
trainal, através do Fundo dos Direitos de Trabalho Internacional
e do Sindicato dos Trabalhadores United Steel, conseguiu abrir
nos Estados Unidos um processo contra a empresa para estes
casos. Em 2003, o tribunal indeferiu o pedido alegando que os
assassinatos ocorreram fora dos Estados Unidos. A campanha de
Sinaltrainal, no entanto, já havia conseguido numerosos apoios
(Zacune, 2006).
A trilha de abusos da Coca-Cola é encontrada em pratica-
mente todos os cantos do mundo. No Paquistão, em 2001, vários

153
E st her Vi va s E stev e

trabalhadores da fábrica do Punjab foram demitidos por protestar.


E os esforços de sindicalização de seus trabalhadores em Lahore,
Faisal e Gujranwala, colidiram com as barreiras da empresa e
da administração. Na Turquia, os empregados denunciaram a
Coca-Cola, em 2005, por intimidação e torturas, e por usar um
braço especial da polícia para tais fins. Na Nicarágua, no mesmo
ano, o Sindicato Único de Trabalhadores acusou a transnacional
de não permitir a organização sindical e ameaçar com demissões.
Existem casos semelhantes na Guatemala, Rússia, Peru, Chile,
México, Brasil e Panamá (Zacune, 2006). Uma das principais
tentativas de coordenar uma campanha de denúncia internacional
contra a Coca-Cola ocorreu em 2002. Sindicatos na Colômbia,
Venezuela, Zimbábue e Filipinas relataram, conjuntamente, a
repressão sofrida por seus sindicalistas na empresa e as ameaças
de sequestros e assassinatos recebidas.
A empresa, entretanto, não é conhecida unicamente por seus
abusos de trabalho, como também pelo impacto social e ecológico
de suas práticas. Como ela mesma reconhece: “Coca-Cola é uma
empresa de hidratação. Sem água, não há negócio” (Zacune,
2006). E aspira até a última gota d’água onde se instala. Para
produzir um litro de Coca-Cola, são necessários 3 litros de água,
não só para a bebida em si, como também para lavar garrafas,
máquinas etc, água que é descartada a posteriori como água
contaminada, com o consequente dano ambiental. Para saciar
sua sede – uma engarrafadora de Coca-Cola pode consumir até
um milhão de litros de água por dia –, a empresa toma unilate-
ralmente o controle dos aquíferos que abastecem comunidades
locais, deixando-os sem esse bem tão essencial que é a água.
Na Índia, vários Estados (Rajasthan, Uttar Pradesh, Kerala,
Maharastra) estão em pé de guerra contra a empresa. Vários do-
cumentos oficiais indicam a queda drástica dos recursos hídricos

154
O negócio da comida

onde ela está instalada; acaba com a água corrente para consu-
mo humano, higiene pessoal e agricultura, e para o sustento de
muitas famílias. Em Kerala, em 2004, a fábrica de Coca-Cola de
Plachimada foi forçada a fechar depois que o conselho negou a
renovação da licença, acusando a empresa de esgotar e poluir suas
águas. Meses antes, a Suprema Corte de Kerala sentenciou que
a extração massiva de água pela Coca-Cola era ilegal (Adhyayan
Vikas Kendra, 2003). Seu fechamento foi uma grande vitória
para a comunidade.
Casos semelhantes ocorreram em El Salvador e Chiapas, entre
outros. Em El Salvador, a instalação de fábricas de engarrafa-
mento de Coca-Cola esgotou os recursos hídricos, após décadas
de extração. Poluiu os aquíferos pela eliminação de água não
tratada, procedente de tais fábricas. A empresa sempre se recu-
sou a assumir o impacto de suas práticas. No México, a empresa
privatizou numerosos aquíferos, deixando as comunidades locais
sem acesso a eles, graças ao apoio incondicional do governo de
Vicente Fox (2000-2006), ex-presidente da Coca-Cola México
(Zacune, 2006).

A fórmula secreta
O impacto de sua fórmula secreta sobre a nossa saúde também
é amplamente documentado. Suas altas doses de açúcar não nos
beneficiam e nos tornam “viciados” em sua mistura. O asparta-
me – um adoçante não calórico, substituto do açúcar usado na
Coca-Cola Zero –, se consumido em doses elevadas pode causar
câncer, como assinala a jornalista Marie-Monique Robin, em seu
documentário “Nosso veneno diário”.
Em 2004, a Coca-Cola na Grã-Bretanha foi forçada a reco-
lher, após seu lançamento, a água engarrafada Dasani, depois que
foram descobertos níveis ilegais de bromuro, uma substância que

155
E st her Vi va s E stev e

aumenta o risco de câncer. A empresa teve que separar meio mi-


lhão de garrafas do produto, que havia sido anunciado como “uma
das águas mais puras do mercado”. Anteriormente, um artigo na
revista The Grocer tinha descoberto que sua origem não era água
de nascente, como rezava sua publicidade, mas simplesmente a
água tratada da torneira de Londres (Garrett, 2004).
Os tentáculos da Coca-Cola são tão alongados que, em 2012,
uma de suas diretoras, Ángela López de Sá Fernandez, chegou
à direção da Agência Espanhola de Segurança Alimentar. Que
posição terá essa Agência frente ao uso do aspartame, quando a
empresa (que até então estava pagando os salários de sua atual
diretora) o usa sistematicamente? Conflito de interesses? Já o
assinalamos antes, com o caso de Vicente Fox.
A marca que nos diz vender felicidade, de fato, distribui
pesadelos. “Coca-Cola é assim”, diz o anúncio. Assim é, e assim
lhes contamos.

McDonald’s: comida-lixo e trabalho-porcaria


No McDonald’s, a qualidade da sua comida é tão baixa
quanto os salários que paga. Alimentos de baixo custo para os
consumidores, com nutrientes mínimos. A mão de obra que ex-
plora, a quem paga um salário de miséria, é a mesma que, com
tão pouca renda, só pode comer os McMenus de 4,90 euros. Uma
legião de trabalhadores pobres, que saem muito baratos para a
empresa, com remuneração suficiente para pagar por um Big Mac
ou um cheeseburger. Negócio perfeito!

Menor renda, pior alimentação


O que nós comemos, embora possa não parecer, é condicio-
nado pela classe social. Quem tem mais recursos financeiros pode
optar por um alimento de melhor qualidade. Quem estuda e tem

156
O negócio da comida

mais formação tem mais critério ao julgar o que come. Quando


nos querem ignorantes e buscam fazer da educação um privilégio,
isto implica em condenar-nos à pobreza, a trabalhos precários
e a uma alimentação deficiente. Algumas empresas, como a
McDonald’s, estão dispostas a aumentar os seus lucros com isso.
Vários relatórios indicam que, quanto menor renda, pior a
comida (Varela, 2013; Ipsos, 2013). Não surpreendentemente,
nos Estados Unidos, quem sofre maiores problemas de obesidade
são as comunidades afroamericanas e latinas. As mesmas que
configuram o exército de trabalhadores precários e os das cadeias
de comida rápida. Como já afirmamos, na Espanha, as regiões
com os maiores índices de pobreza, tais como Andaluzia, Ilhas
Canárias, Castela-La Mancha e Extremadura, concentram as
cifras mais elevadas de população com excesso de peso (Institu-
to Geográfico Nacional, 2006; Ministério da Saúde e Agência
Espanhola de Segurança Alimentar, 2005).

Unidos contra a precariedade


McDonald’s não é a exceção, mas a regra. Burger King, Ken-
tucky Fried Chicken, Subway, Pizza Hut são outras transnacionais
que seguem esse padrão. Em 5 de dezembro de 2013, seus traba-
lhadores nos Estados Unidos reagiram. Mais de uma centena de
cidades, como Nova York, Chicago, Boston, Detroit, Houston,
Los Angeles, acolheram, nessa jornada, greves e protestos dos em-
pregados no setor de fast food. A demanda: um aumento salarial.
Passar dos 7,25 dólares por hora para 15 dólares. As condições
de trabalho nesses centros são tão ruins, das piores possíveis, que
muitos trabalhadores têm de recorrer a outros empregos. E ainda
dependem de assistência social para chegar ao fim do mês. No
verão de 2013, já tinha ocorrido uma primeira mobilização, e em
5 de dezembro se estendeu a mais cidades.

157
E st her Vi va s E stev e

As manifestações do setor são escassas devido às dificuldades


para os funcionários se organizarem no local de trabalho. Qual-
quer tentativa de coordenação sindical é fortemente reprimida.
No entanto, esses protestos apontam para um novo tipo de luta
que une diferentes atores: os trabalhadores precários, sindicalistas
e ativistas de bairro. Um grande exemplo.
Na Espanha, McDonald’s também tem sido foco de protestos.
Suas práticas laborais, assim como as “culinárias”, são internacio-
nais. Em 2007, no McDonald’s Estação de Granada, começou
uma grande luta sindical. Seus trabalhadores se organizaram para
exigir condições de trabalho decentes, e como resposta a empresa
realizou demissões, reduções no contrato, pressão psicológica,
impôs férias e elaborou uma “lista negra”. A luta continuou. E,
apesar da pressão da empresa e da discriminação sindical, eles
têm conseguido melhores condições de trabalho para todo o
conjunto de funcionários. Um protesto que tem recebido apoio
e jornadas de mobilização contra o McDonald’s no restante do
Estado espanhol.
Um trabalho decente envolve uma vida digna e uma comida
digna. McDonald’s significa exatamente o oposto. McMenus e
McSalários não, obrigado.

De Panrico a “panpobre”
Até recentemente, os anúncios de Donuts nos diziam: “Co-
mece o dia com um sorriso”. No entanto, nas fábricas Panrico
já não se espalham sorrisos. De algum tempo para cá, a vida da
força de trabalho tornou-se uma roleta russa. Agora nas mãos
de uns, depois nas mãos de outros. A usura, que não conhece
limites, tem sido a sentença de morte da empresa, e o corte nos
direitos de seus trabalhadores, como nos repetem, é o “sacrifício
necessário”.

158
O negócio da comida

O que era uma empresa familiar líder na produção de pas-


telaria industrial se tornou um negócio em falência. Panrico foi
fundada, em 1962, pelo empresário Andreu Costafreda e os Do-
nuts se destacaram logo como seu principal produto, seguidos, a
posteriori, pelos tão lembrado Bollycao. No final dos anos 1970,
a empresa consolidou sua expansão na Espanha. Em meados dos
anos 1980, abriu fábricas em Portugal. E, nos 1990, em Pequim.
Seu crescimento parecia ilimitado. Com a morte de seu fundador,
em 1998, se escreveu nos jornais: “Panrico Donuts tornou-se uma
das empresas de alimentos mais importantes da Espanha, com
um volume de negócios de 70 bilhões de pesetas, 22 fábricas de
produção e uma folha de pagamentos de 7 mil trabalhadores”
(Horcajo, 1998). Que tempos, aqueles!
As instituições financeiras não deixaram passar a oportuni-
dade. Em 2001, La Caixa e o Banco de Sabadell tornaram-se
acionistas, adquirindo 30% e 5%, respectivamente. Empréstimos
para que a empresa pudesse continuar a crescer foram garanti-
dos. Panrico, em pouco tempo, entrou no mercado dos produtos
congelados de pão e pastelaria. Abrangia, assim, novos mercados.

Nas mãos do capital de risco


Em 2005, a empresa mudou de mãos completamente. 100%
de suas ações foram adquiridas pela empresa de capital de risco
Apax Partners, uma companhia dedicada à compra e venda de
empresas em todo o mundo, lucrando com a reavaliação do
seu suprimento de ações. Apax Partners pagou muito alto pela
aquisição da Panrico: 900 milhões de euros, acima dos 600-700
milhões em que estava avaliada. O objetivo: fatiar a transnacional,
vender seus ativos, obter dinheiro rápido, recuperar o investimen-
to e posicionar a empresa no topo da sua cota de mercado, para
vendê-la novamente e obter mais benefícios. Voilà.

159
E st her Vi va s E stev e

Em 2011, a empresa foi novamente vendida. Desta vez, o


comprador foi o fundo-oportunista Oaktree, especializado em
“desencalhar” empresas falidas, e, no ínterim, fazer negócios com
elas. Em seu portfólio, já tem a participação de 24% das ações da
Campofrío. A roleta continua a girar. E a história é muito bem
conhecida. Mais dinheiro para uma minoria (o proprietário),
menos direitos para a maioria (os trabalhadores).
Na Panrico, o último fator que importava era sua equipe.
Chantagem atrás de chantagem, a situação tornou-se insustentá-
vel. Em outubro de 2014, Oaktree impôs 1.914 demissões, quase
metade de seu pessoal, e uma redução de salário entre 35% e
45%, que se somaram a cortes anteriores na linha de produção.
A fábrica de Santa Perpétua de Mogoda se levantou e manteve,
durante oito meses, uma das greves mais prolongadas desde a
democracia. Oaktree, entretanto, não cedeu em seu empenho.
Passamos, como dizem alguns, do Panrico ao “panpobre”.

Telepizza – o segredo está na massa?


Telepizza nos diz que “seu” segredo está na massa. No entanto,
a fórmula para o sucesso do Telepizza não se encontra na massa,
mas nas precárias condições de seus trabalhadores, na baixa qua-
lidade de seus produtos e numa agressiva publicidade de ofertas
e promoções – embora o “rei” da entrega de pizza cambaleie em
suas bases e, após uma trajetória ascendente de sucesso, acumule,
já há anos, saldo no vermelho. O drama da mudança de mãos de
propriedade da empresa, atualmente 100% detida pelo fundo de
capital de risco Permira, explica sua situação de ruína econômica.

Uma história de sucesso


As origens da Telepizza datam de 1987, quando Leopoldo
Fernandez Pujals decidiu, aos 40 anos, dar uma reviravolta em

160
O negócio da comida

sua carreira e abrir uma pizzaria, incorporando uma novidade im-


portante: as pizzas não só podiam ser consumidas no local, como
também encomendadas por telefone e entregues em domicílio,
sem custo adicional. Isto, hoje, nos parece muito normal, mas
nos meados dos anos 1980 foi uma grande novidade. Fernández
Pujals tinha “importado” a ideia dos Estados Unidos, onde este
sistema já funcionava há décadas.
Leopoldo Fernández Pujals viveu desde os 13 anos nos Esta-
dos Unidos, para onde sua família migrou desde Havana, após a
revolução. Em seu país de acolhimento, ele se juntou aos marines,
lutou na Guerra do Vietnã, cursou estudos de finanças, traba-
lhou na transnacional Procter & Gamble e depois na Johnson
& Johnson, que lhe enviou à Espanha em 1981, como diretor de
marketing. No começo, ele alternava o terno e gravata da manhã
na empresa estadunidense com o avental da cozinha pela tarde
e à noite na pizzaria. Seu objetivo: obter uma fatia do negócio
de fast food à base de pizzas. Assim nasceu Telepizza. No capital
inicial, ele era o sócio sênior, seguido por seu irmão Eduardo e
outros acionistas minoritários.
A empresa cresceu como capim. Se em 1990, se contabiliza-
vam 18 pizzarias, em 1995 já eram 245. No final dos anos 1990,
somavam 767, na Espanha e no exterior. A expansão de Telepizza
combinava a abertura de lojas próprias, 40%, e franquias, 60%,
o que permitiu um crescimento muito rápido. Em acréscimo,
o sistema de franquia permitiu a abertura de novas lojas, sem
investimento inicial pela empresa. Novas pizzarias foram inau-
guradas, primeiro em cidades maiores, como Zaragoza, Vigo,
Santander, Bilbao, Alicante, Valladolid, Málaga, e depois em
outras de tamanho médio.
Em menos de dez anos, Telepizza tornou-se a segunda empresa
de fast food no Estado espanhol, atrás de McDonald’s, e a primeira

161
E st her Vi va s E stev e

na entrega de pizza. Naquela época, em 1995, um “golpe interno”,


tramado por seu irmão e outros pequenos acionistas, destituiu
Leopoldo Fernández Pujals da presidência. O fundador do Tele-
pizza não se rendeu, e um ano mais tarde, depois de pactuar com
o BBVA, passaria a fazer parte do corpo de acionistas da empresa,
e recuperou novamente seu cargo de presidente.
Ao mesmo tempo, a empresa passou a cotizar com sucesso
na Bolsa, adquirindo redes concorrentes como a Pizza World. E
iniciou um processo de integração vertical, incorporando vários
dos seus fornecedores ao negócio, desde a empresa de transporte
aos produtores de queijo. Criou-se assim um grande holding em-
presarial, que controlava cada uma das fases do processo – desde
a coleta e processamento das matérias-primas, com fábricas onde
eram produzidas as massas das pizzas, e o queijo, passando pela
distribuição destes materiais aos estabelecimentos – até a elabo-
ração da comida e sua distribuição. Um controle total da cadeia,
o que lhe permitiu reduzir os custos e aumentar os lucros.

A chave do sucesso
Qual é o segredo do sucesso? Embora Telepizza nos venda
que “o segredo está na massa”, e seu fundador Leopoldo Fernán-
dez Pujals se apresente como um homem que fez a si mesmo, na
verdade a chave para o triunfo reside no domínio completo da
cadeia (desde a produção até a entrega), nas precárias condições
de trabalho, na baixa qualidade de seus alimentos e em uma
publicidade agressiva de ofertas e promoções.
A corrida para ganhar dinheiro – e quanto mais, melhor –
levou a empresa a cortar cada vez mais direitos de seus trabalha-
dores. Se, em 1994, a sua equipe estava incluída no Convênio de
Hotelaria, a partir de 2017, e com o beneplácito dos sindicatos
majoritários, se criou um novo Convênio de Delivery (entrega), o

162
O negócio da comida

que significou um retrocesso nos direitos consolidados. Perdeu-


-se uma parcela significativa do salário, do pagamento extra, do
bônus de Natal. Os acionistas da empresa passaram a ganhar
mais, e os trabalhadores, menos. E assim sucessivamente. Em
2000, se foram os adicionais de tempo de serviço e de trabalho
noturno, e, em 2001, o de transporte. Embora, em 2000, a Su-
prema Corte tenha decidido que os trabalhadores da Telepizza
deveriam ter as mesmas categorias e condições que os do setor
de hotelaria, nem as direções da CCOO nem da UGT (então
os únicos representantes da força de trabalho) exigiram que essa
sentença fosse aplicada (Seção Sindical Telepizza CGT, 2013).
A pressão laboral para atingir vendas superiores, trabalhar
mais horas, e a repressão à organização sindical são outra cons-
tante, como denunciaram seus trabalhadores (Kaos en la red,
2010). Em outubro de 2010, um funcionário da Telepizza, de
um estabelecimento de Zaragoza, foi demitido exatamente pela
tentativa de criar um comitê de empresa. Em janeiro de 2013, três
trabalhadores de uma loja em Sevilha também foram demitidos
por denunciar as más práticas da empresa. Isto levou à organização
de protestos em vários estabelecimentos de Telepizza, em distintas
partes do país. Em março de 2013, a empresa anunciou a demissão
de 145 trabalhadores, o encerramento de cinco estabelecimentos
em Málaga, Sevilha e Madrid, e a redução do adicional de entrega.
A crise lhe permitiu apertar ainda mais as rédeas.*
A companhia está também empenhada em impulsionar “sindi-
catos amarelos”, sob seu controle, enquanto divide sua equipe em
uma série de categorias profissionais, para combater a organização
sindical. Seus funcionários denunciavam salários mensais de 250

* Mais informações no endereço eletrônico da Seção sindical Telepizza CNT


Sevilla: <https://elsecretoestaenlarata.wordpress.com/>.

163
E st her Vi va s E stev e

a 350 euros, e agora os novos contratos são de apenas 24 horas por


mês e com um salário de 125 euros, 5 por hora (Sección Sindical
Telepizza CGT, 2010). O pessoal é composto, principalmente, por
menores de 25 anos, muitos estudantes. E, cada vez menos, pais
e mães de família, em dificuldades e com medo de perderem seus
empregos. Aqui vocês vêem a chave para o sucesso.
E na massa, haveria algum segredo? A baixa qualidade dos
seus ingredientes, na corrida para obter o máximo lucro com
o produto mais barato possível, e depois vendê-lo a um preço
competitivo, é a norma. O truque não está, em qualquer caso,
na fórmula da massa, mas no seu custo. A revista Interviú dei-
xou isso claro em um artigo analisando a qualidade das pizzas
de quatro grandes cadeias de fast food que servem em domicílio,
incluindo Telepizza. A análise concluiu: “Altos níveis de colesterol,
significativa presença de gorduras saturadas, as mais prejudiciais
para a saúde, ingestão calórica excessiva, poucos ingredientes, e
de muito má qualidade, e um monte de massa; e, o que é pior,
condições de higiene deficientes em todas as amostras analisadas”
(Salinas, 2008).
De acordo com o laboratório Quimicral, responsável pela
realização da análise, as pizzas de tais estabelecimentos podem ser
consideradas “bombas calóricas”, com aporte calórico excessivo,
derivado da gordura de ingredientes de má qualidade, muitas
vezes substitutos do que eles dizem ser, desde o bacon aos pre-
parados de queijo e carne. Nas pizzas analisadas, o ingrediente
principal era a massa, entre 50 e 66%, em detrimento de outros
mais caros, o que favorece um maior benefício econômico para
a companhia à custa do cliente (Salinas, 2008).
A publicidade agressiva de ofertas e promoções é outro dos
recursos mais utilizados: “Desfrute com o triplex Telepizza. Três
médias a 7 euros cada uma. Peça já!” ou “Duas por uma em do-

164
O negócio da comida

micílio”. Fazem-nos crer que compramos barato, no entanto, no


final das contas, e com todo o consumido, o total soma muito
mais do que se imaginava. A última ofensiva foi a pizza a 1 euro,
levada a cabo em dias muito específicos e que multiplicou por
seis o faturamento. Em 2013, esta promoção registrou mais de 2
milhões de pizzas vendidas.
Que modelo de alimentação se promove, além disso? Como
dizia a página de facebook da Telepizza: “Esta noite... pare de
cozinhar!”. Se trata de uma refeição fast food, onde o único que
parece importar é comer rápido e barato. Não entra na conta
a qualidade do que comemos, tampouco a informação sobre a
origem do produto, o processo de elaboração ou a valorização
da nossa alimentação. E em todos estes aspectos a “receita” de
Telepizza é a mesma da Pizza Hut, Domino’s Pizza, Pizza Mobile,
Voy Volando etc.

O declive: à mercê do capital especulativo


Voltando à história da Telepizza. Em 1999, seu fundador e
acionista majoritário, Leopoldo Fernández Pujals, optou por dei-
xar a empresa. Vender sua participação por 300 milhões de euros
e “dedicar-se, de corpo e alma, a espalhar os males do regime
castrista em Cuba”, à frente da Fundação Elena Mederos, que
ele mesmo havia criado. Anos mais tarde, em 2004, regressa à
primeira linha da cena empresarial, adquirindo 24,9% da Jazztel
e sua presidência. Ali aplicaria, uma vez mais, sua fórmula habi-
tual: máxima precariedade, máximos lucros. Leopoldo Fernández
Pujals (2005) assim o reconheceu em uma entrevista: “Eu sou
um grandessíssimo capitalista, mas tenho mentalidade social”.
Eu me pergunto: que mentalidade social?
Continuando com Telepizza. Leopoldo Fernández Pujals
vendeu sua participação a um grupo de acionistas liderado por

165
E st her Vi va s E stev e

Pedro e Fernando Ballvé, proprietários da transnacional de


carne Campofrío, e Aldo e José Carlos Olcese, proprietários,
juntamente com os Ballvé, de Telechef, uma cadeia de fast food
em domicílio de sanduíches, hambúrgueres etc., concorrente de
Telepizza. Curiosamente, foi a Lehman Brothers que facilitou as
gestões para os proprietários de Campofrío adquirirem Telepizza.
Pedro Ballvé passou, assim, a assumir a presidência da Telepizza.
Campofrío tornou-se o principal fornecedor de ingredientes para
as suas pizzas, e a marca Telechef foi integrada na cadeia, passando
a oferecer também aos seus clientes sanduíches, hambúrgueres,
cachorros-quentes e pratos combinados.
Em 2006, seu presidente, Pedro Ballvé recorreu ao fundo
de capital de risco britânico Permira, para recapitalizar a em-
presa, que, apesar de seu sucesso nos anos 1980 e início dos
anos 1990, converteu-se, depois de sua entrada na Bolsa, em
pasto de especulação com ações. Ambos lançaram uma oferta
pública de ações (OPA) sobre as ações e obrigações conversíveis
da Telepizza, tomando o controle total da empresa, tirando
a companhia do mercado acionário. Em 2012, Pedro Ballvé
vendeu sua participação à Permira, que agora controla 100%
da Telepizza.
O objetivo da Permira era ficar por cinco ou seis anos com
Telepizza e depois vendê-la ou trazê-la para o mercado de ações e
ganhar dinheiro. Um padrão seguido por outros fundos de capital
de risco e fundos oportunistas, como Apax Partners e Oaktree
fizeram com Panrico. Permira, aliás, também é proprietária de
eDreams e Cortefiel. As previsões não foram atendidas. Tenhamos
em conta que, quando a empresa de capital de risco adquiriu a
empresa, a endividou para realizar esta operação. E isso provo-
cou a difícil situação econômica atual. Agora, Permira procura
comprador para Telepizza, a fim de evitar a falência.

166
O negócio da comida

O problema da cadeia de distribuição de pizzas em domicílio


não é operacional, mas, sim, financeiro. Em 2012, por exemplo,
suas vendas cresceram 0,9%, chegando a 351 milhões de euros.
O ônus recai sobre a dívida que a empresa tem, gerada quando o
fundo de capital de risco Permira a comprou e transferiu a dívida
assumida pela sua compra. Uma operação de manual financeiro.
Agora, a estagnação do consumo dificulta muito mais do que o
esperado. Quem paga as consequências? Como visto anteriormen-
te, a força de trabalho, que vê cortados seus direitos.
Pelo visto, o segredo de Telepizza não é a massa.

167
O PODER DOS SUPER MERC A DOS

O que se esconde na grande distribuição


A grande distribuição varejista comercial (supermercados,
hipermercados, redes de desconto etc.) tem experimentado, nos
últimos anos, um forte processo de expansão, crescimento e
concentração empresarial. As principais empresas de varejo se
tornaram parte do ranking das maiores transnacionais no mundo
e se tornaram um dos atores mais importantes no processo de
globalização capitalista.
Seu surgimento e desenvolvimento mudaram radicalmente a
nossa forma de comer e de consumir, submetendo nossas necessi-
dades básicas a uma lógica comercial e aos interesses econômicos
das grandes empresas do setor. Produz-se, distribui-se e come-se
aquilo que é considerado mais rentável.

Operação Supermercado
Na Espanha, a abertura do primeiro supermercado foi realiza-
da em 1957 e teve lugar em Madrid. Tratava-se de um self-service
de natureza pública, promovido pelo regime de Franco no âmbito
do programa “Operação Supermercado”, que importou o modelo
de distribuição comercial dos Estados Unidos, sob a influência do
E st her Vi va s E stev e

Plano Marshall. Seu objetivo: modernizar o “comércio pátrio”.


A experiência foi um sucesso, dando lugar, em um tempo muito
curto, a uma rede de supermercados públicos em várias cidades,
como San Sebastian, Bilbao, Zaragoza, Gijon, Barcelona, La
Coruna etc. (Venteo, 2009).
O primeiro supermercado de capital privado foi aberto em
Barcelona em 1959, fundado pelas famílias Carbó, Prat e Botet,
proprietárias de comércios ultramarinhos. Foi batizado com o
nome de Caprabo, tomando a primeira sílaba de cada um dos seus
sobrenomes. Sua abertura significou uma verdadeira revolução
entre os consumidores, atraídos, principalmente, pela possibi-
lidade de escolher produtos diretamente nas prateleiras. Com
o tempo, os supermercados privados, incentivados pelo mesmo
governo franquista, se impuseram, criando uma extensa rede de
autosserviços em todo a Espanha, enquanto os de caráter público
foram desaparecendo.
Naquele mesmo momento, no restante da Europa, os su-
permercados eram uma realidade emergente. Em 1957, na Grã-
-Bretanha havia 3.750 estabelecimentos; na República Federal
da Alemanha, 3.183; na Noruega, 1.288 e na França, 663. A
Espanha* e a Itália ficavam no final da lista, com 3 e 4 supermer-
cados, respectivamente. Os supermercados eram considerados um
símbolo de modernidade e progresso. A partir daí, sua extensão
foi crescendo, e dez anos depois, em 1968, o número de super-
mercados na Espanha somava 3.678, e 20 anos depois, em 1978,
13.215 estabelecimentos. Seu modelo de distribuição e venda a
varejo se generalizou ao largo das décadas de 1980 e 1990, exer-
cendo, hoje, um domínio absoluto da distribuição de alimentos.

* Os dados da Espanha são de 1958, não se contando com as cifras de 1957.

170
O negócio da comida

A maior parte de nosso carrinho de compras – entre 68% e


80% – adquirimos em supermercados, hipermercados e cadeias de
desconto. De acordo com a revista Alimarket, com dados de 2012,
68,1% dos alimentos embalados e de farmacêuticos são adquiridos
nesses canais, principalmente em supermercados, em comparação
com 1,5% que adquirimos em lojas tradicionais, 25,1% em lojas
especializadas e 5,3% em outras lojas (Segura, 2012). De acordo
com o relatório Expo Retail de 2006, quase 82% das compras
de alimentos é realizada através da grande distribuição, 2,7%
em lojas tradicionais, 11,2%, em estabelecimentos especializados
e 4,2% é adquirido em outro lugar (Garcia e Rivera, 2007a).
Consequentemente, o consumidor tem cada vez menos portas de
acesso aos alimentos. E, o produtor, menos opções para chegar
ao consumidor. O poder de venda dos supermercados é total.

Muito poder em poucas mãos


É uma distribuição moderna, que concentra seu peso em um
número muito pequeno de empresas. A maior parte das compras
no supermercado é realizada em apenas seis cadeias, que contro-
lam 60% desse setor: Mercadona, com 23,8% de participação
de mercado; Carrefour, com 11,8%; Eroski (que inclui Caprabo),
com 9,1%; Dia, com 6%; Alcampo (que integra os supermercados
Sabeco), com 5,9%; e El Corte Inglés (com Supercor OpenCor),
com 4,3%. Eles são seguidos pelo Lidl, Consum, AhorraMás e
DinoSol, que, juntos, conformam as 10 maiores empresas do setor
(Segura, 2012). Nunca o mercado da distribuição de alimentos
esteve em tão poucas mãos.
Na Europa, a dinâmica é a mesma. Em todo o continente,
as 10 principais cadeias de supermercados controlavam, segundo
dados de 2000, mais de 40% da cota de mercado, o dobro do
que em 1987, e se previa que entre dez e quinze anos seguintes

171
E st her Vi va s E stev e

a concentração aumentaria até 75%. Na Suécia, apenas três


empresas de supermercados monopolizam em torno de 95% da
distribuição. E, em países como a Dinamarca, Bélgica, França,
Holanda e Grã-Bretanha, algumas poucas empresas dominam
entre 60% e 45% do total (Garcia e Rivera, 2007a).
Algumas das maiores fortunas na Europa estão ligadas à his-
tória da grande distribuição. Na Alemanha, a pessoa mais rica no
país era – até 16 de julho de 2014, data de seu falecimento – Karl
Albrecht, fundador e coproprietário dos supermercados Aldi.
Após sua morte, o número 1 passou a ser ocupado por Dieter
Schwarz, proprietário do grupo Schwarz, que inclui as redes de
supermercados Kaufland e Lidl (Comas, 2014). Na França, a
segunda fortuna do país está em mãos de Bernard Arnault, pro-
prietário do grupo de artigos de luxo LVMH e com uma grande
participação no Carrefour. E sem ir mais longe, na Espanha, no
quarto lugar no ranking das grandes fortunas encontra-se Juan
Roig, proprietário da Mercadona (EFE, 2014).
Uma concentração que é claramente visível na “teoria do
funil”: milhares de agricultores por um lado, milhões de con-
sumidores pelo outro. E apenas algumas poucas empresas da
grande distribuição controlam a maior parte da comercialização
dos alimentos. Tomemos o exemplo da Espanha. Na extremidade
superior do funil, temos cerca de 720 mil agricultores e pessoas
que trabalham no campo. Na extremidade inferior, cerca de 46
milhões de pessoas e consumidores.* No meio, 619 empresas e
grupos do setor de distribuição de alimentos (com Mercadona,
Carrefour, Eroski, Dia, Alcampo, El Corte Inglés, Lidl, Consum,
AhorraMás, Makro, Gadisa, El Árbol, Condis, Bon Preu, Aldi
e Alimerka à frente) determinando a relação entre ambos. E um

* Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (final de 2013).

172
O negócio da comida

fato a considerar: entre essas 619 empresas, apenas as 50 primei-


ras controlam 92% do total da cota de mercado (Segura, 2012).
O poder dos grandes varejistas é enorme e nossa alimentação
está sujeita a seus interesses econômicos. São essas empresas que
determinam o preço a pagar ao agricultor por seus produtos e
qual o custo a ser cobrado no “super”. Dando-se o paradoxo de
que o camponês cada vez recebe menos dinheiro pelo que vende,
e nós, como consumidores, pagamos cada vez mais. Fica claro
quem ganha. Trata-se de um oligopólio, em que poucas empresas
controlam o setor, que empobrece a atividade rural, homogeneiza
o que comemos, precariza as condições de trabalho, acaba com o
comércio local e promove um modelo de consumo insustentável
e irracional.

A cadeia de exploração
Os supermercados impõem um modelo de agricultura e ali-
mentação no qual o campesinato não tem lugar. O seu objetivo é
controlar toda a cadeia alimentar, desde a fonte até a boca, reduzir
custos de produção e aumentar o preço final dos alimentos, para
obter o máximo benefício econômico (lucro). Ao agricultor é pago
o menor preço possível para a sua produção, condenando-o à mi-
séria e, muitas vezes, ao fechamento de seu sítio. Uma dinâmica
que permite à grande distribuição a sujeição do agricultor, e que
é extensível a outros fornecedores, numa cadeia de exploração
do maior ao menor.
Nos shoppings, segue-se a mesma política. O quadro de pessoal
está sujeito a uma estrita organização taylorista, caracterizada por
um ritmo de trabalho intenso, tarefas repetitivas e de rotina, e
com pouca autonomia de decisão. Uma situação que envolve o
aparecimento de esgotamento, estresse e enfermidades laborais
próprias da indústria, como dor crônica nas costas e dores cer-

173
E st her Vi va s E stev e

vicais. Em acréscimo, nas condições contratuais, prevalecem


as baixas tabelas de salários e a “flexibilidade numérica”, que
permite à empresa ter um grupo de trabalhadores temporários,
com horários de trabalho flexíveis, que são usados para ajustar o
número de pessoal a cada momento da produção. Estas jornadas e
horários atípicos geram nos trabalhadores sérias dificuldades para
conciliar sua vida profissional com a pessoal e familiar, perdendo,
inclusive, o controle sobre seu tempo de “não trabalho”, por não
contarem com um horário estável (Barranco, 2007).
A política antissindical também é frequente, objetivando
evitar a criação de organizações de trabalhadores através de
práticas ilegais, impedindo o direito de reunião, pressionando
psicologicamente os trabalhadores que querem se organizar, dis-
criminando os sindicalistas, ou através da criação de sindicatos
“amarelos”, sob controle dos próprios empregadores. Uma das
cadeias de distribuição moderna que mais acumula abusos tra-
balhistas é a Wal-Mart. A gigante do setor, a maior empresa do
mundo, segundo a lista Fortune Global 500, e a transnacional
com maior número de trabalhadores em todo o mundo. Wal-Mart
tem uma política de gestão do trabalho com base em salários
extremamente baixos (20% inferior à média do setor, nos EUA).
E uma feroz estratégia antissindical, que conseguiu deter quase
todas as tentativas de sindicalização em suas lojas na América do
Norte (Antentas, 2007).
O impacto sobre as pequenas empresas também é devastador.
Se no ano de 1998 havia 95 mil lojas na Espanha, em 2004 este
número caiu para 25 mil (Garcia e Rivera, 2007b). O comércio
tradicional de alimentos sofreu uma erosão constante, em con-
traste com o crescimento dos supermercados e hipermercados.
Se tomarmos o caso do “todo-poderoso” Wal-Mart, estima-se,
de acordo com um estudo realizado na Universidade Estadual

174
O negócio da comida

de Iowa (Stone, 1997), nos Estados Unidos, que os pequenos


municípios podem perder até 47% do comércio local dez anos
após a abertura desses estabelecimentos. Isso foi precisamente o
que aconteceu com os 34 municípios de 5 mil a 40 mil pessoas
no Estado rural de Iowa analisados no estudo.
Outros estudos apontam para a mesma direção, mas com
nuances. De acordo com uma investigação conjunta, realizada por
professores da Universidade Estadual de Iowa e da Universidade
do Estado do Mississippi, a entrada de um novo supermercado
em uma comunidade pode ter consequências dramáticas para
as empresas existentes, já que as lojas que vendem os mesmos
produtos terão suas vendas reduzidas drasticamente, devido
à dificuldade de competir com as grandes redes. Entretanto,
aquelas que distribuíam produtos diferentes, ou mesmo outros
supermercados, podem se beneficiar desta abertura pelo aumento
do tráfego comercial (Stone, Artz e Myles, 2002).
Aqui estão alguns números apresentados pelo estudo sobre o
impacto causado pelo estabelecimento da Wal-Mart no Estado
do Mississippi. Ao analisar o impacto no negócio de mercearias
previamente existentes, se constatou a alta capacidade destes su-
permercados de “capturar” sua clientela. Especificamente, essas
lojas perderam 10% de suas vendas no primeiro ano de abertura
de um Wal-Mart e até 20% cinco anos depois. Os municípios
em que Wal-Mart não se instalou, por sua vez, mantiveram seus
lucros estáveis. As lojas de móveis, de decoração doméstica, de
presentes, esportes ou que vendem outros artigos diversos tam-
bém saíam perdendo com a redução de seus rendimentos. As
conclusões foram enfáticas: “Os resultados da pesquisa mostram
claramente como os benefícios de supermercados Wal-Mart são
equivalentes às perdas dos negócios previamente existentes nessas
áreas” (Stone, Artz e Myles, 2002).

175
E st her Vi va s E stev e

“Passando um pano”
Confrontada com os impactos negativos que lhe são atribuí-
dos, a grande distribuidora desenha uma estratégia de limpar sua
imagem com um revestimento verde e solidário. Desse modo, nos
últimos anos têm proliferado nas prateleiras de seus estabeleci-
mentos produtos ecológicos e de comércio justo. Uma estratégia
que tem atraído críticas do movimento por um consumo ecológico
e do comércio justo.
Na Espanha, cadeias como Carrefour, Alcampo e Eroski sãos
algumas das que mais esforço têm dedicado para adquirir uma
imagem “justa e responsável” a partir da comercialização de tais
artigos. No entanto, apesar da introdução de produtos rotulados
como “justos” e “verdes” em suas linhas, as práticas comerciais
destas cadeias não mudaram e deixam muito a desejar. O comér-
cio justo e ecológico é usado como um instrumento de limpeza
de imagem, atrás da qual se escondem graves impactos sobre o
meio ambiente, a comunidade, os direitos dos trabalhadores e o
comércio local (Vivas, 2007b).
A maioria das grandes redes de varejo tem as suas próprias
fundações, ou se integra a outras, com o objetivo de promover
uma imagem “socialmente responsável”. O grande gigante do
varejo, Wal-Mart, tem a Fundação Wal-Mart, que financia
principalmente atividades em âmbito local. Coincidentemente,
é nesse âmbito que sua imagem está se deteriorando, devido a
suas práticas antissindicais e desleais na fixação dos preços dos
produtos, que acabam matando o pequeno comércio e precari-
zando a mão de obra.
Na mesma linha, podemos citar o exemplo de outras grandes
cadeias como Carrefour (com a Fundação Solidariedade Carre-
four), Eroski (com a Fundação Eroski) e Alcampo – que não tem
uma fundação própria, mas faz parte da Fundação Empresa e

176
O negócio da comida

Sociedade, à qual pertencem outras transnacionais com registro


“solidário” como BBVA, Nike, Novartis, Telefonica-Movistar,
Iberdrola, Inditex, La Caixa, El Corte Inglés, Sol Meliá, Repsol
e Union Fenosa, para citar apenas algumas.
Atenção, pois, para que não nos vendam gato por lebre.

O Big Brother no supermercado


Associamos a compra no supermercado à modernidade, auto-
nomia, liberdade de escolha. No entanto, existem poucos lugares
no mundo, que fazem parte da nossa vida diária, tão controlados
e monitorados como tais estabelecimentos. Por trás de nossa
compra, embora não pareça, há muito em jogo. Daí que em um
supermercado nada é deixado ao acaso. Tudo foi concebido para
que compremos. E quanto mais, melhor.

Um laboratório chamado de “super”


Assim que chegamos ao “super”, alguns cartazes, geralmente
de cores vivas, nos acolhem, encorajando-nos a entrar, muitas
vezes acompanhados por ofertas e promoções que anunciam pre-
ços muito baratos. Pegamos o carrinho de compras – tão grande
que muito temos a preenchê-lo para que não pareça vazio – e
começamos a busca do que precisamos, por inúmeros corredores
com gôndolas transbordantes de produtos. O carrinho, mesmo
que o levemos em linha reta, sempre gira de volta às prateleiras
e acabamos tendo que ver, como quem não quer nada, um novo
artigo que não esperávamos, e que acabamos levando.
Precisamos de leite e iogurte, por exemplo, mas nos fazem
atravessar todo o centro comercial para consegui-los. Por que
colocam sempre o que é mais necessário no final do estabeleci-
mento? No caminho, um alto-falante animado soa ao fundo; mal
o escutamos, no entanto está ali, incentivando-nos a comprar.

177
E st her Vi va s E stev e

Olhamos os preços dos produtos e nunca entendemos porque os


valores nunca são redondos, mas sempre acabam com decimais,
tornando muito difícil comparar um com o outro. Acabamos
por escolher os terminados em 9, para assim economizarmos
um pouco. Embora talvez possa não haver muita diferença entre
pagar um centavo a mais ou menos, o produto parece mais barato.
Mas temos que parar, pois dois carrinhos com gente compran-
do estão no meio. E eu me pergunto, por que os corredores são
tão estreitos? Enfim, aproveito esta oportunidade para olhar uma
prateleira e outra. E ali está o saco de batatas fritas (que não me
convém) olhando-me de frente. E já que estou aqui... ao carrinho!
Avanço agora buscando o pacote de arroz que preciso, mas ele já
mudou novamente de lugar. Não entendo porque periodicamente
movem os produtos de lugar. Novamente me fazem dar mil voltas
antes de encontrar o que preciso. No novo caminho, descubro
novos produtos, os quais antes eu nem havia notado.
Só me resta pegar o detergente. Na seção de limpeza, e à al-
tura de meus olhos, vejo a marca que dizem pela TV que deixa
as roupas muito mais limpas. Eu pego o recipiente e, por acaso,
olho seu preço... que caro! Devolvo a unidade. Olho para cima e
para baixo na prateleira e consigo encontrar outra marca, menos
conhecida, mas mais barata. Tenho que me agachar para pegá-la.
Por que a colocam de uma forma mais difícil de pegar? Chega
a hora de passar no caixa. Na fila, aborrecida pela espera, vejo
aqueles chocolates, caramelos, doces... e só a um palmo. Impos-
sível dizer “não”: venha, um dia é só um dia, à cesta!
Analisando o meu tour, me coloco: quantas coisas eu com-
prei que não precisava? Adquiri os produtos que me interessam?
Estima-se que entre 25% e 55% de nossa compra de supermercado
é compulsiva, resultando de estímulos externos. Nós colocamos
no carrinho, embora não precisemos. E ao passar por uma prate-

178
O negócio da comida

leira, 20% de nós compramos antes a marca que está no nível dos
olhos do que qualquer outra, apenas por conveniência, mesmo
que as outras sejam mais baratas. Sem saber, somos cobaias em
um grande laboratório chamado “super”.

Sorria, você está sendo filmado


Nossos movimentos em um supermercado nunca passam
despercebidos. Uma câmera ou outra, colocada aqui ou ali, regis-
tra tudo. No entanto, o que é feito com essas imagens? Sabemos
quando estamos sendo gravados? Podemos acessar esses filmes?
O professor Andrew Clement, da Universidade de Toronto e
fundador do Instituto de Identidade, Privacidade e Segurança,
assinala como somos indefesos contra essas práticas. De acordo
com um estudo realizado por sua equipe no Canadá, nenhuma
das câmeras colocadas em grandes centros comerciais canaden-
ses atende aos requisitos de sinalização regulamentados por lei
(Brosnahan, 2012). Na Europa, a controvérsia é a mesma. Nós
não temos nenhuma ideia do que ou como ou quando gravam
ou o que eles fazem com as imagens.
A cadeia de supermercados Lidl, protagonizou um dos maiores
escândalos em 2008, quando se descobriu que espionava siste-
maticamente seus funcionários em vários estabelecimentos na
Alemanha, por minicâmeras colocadas em locais estratégicos.
Toda segunda-feira, de acordo com o semanário alemão Stern,
uma equipe de detetives instalava entre 5 e 10 câmeras, a pedido
da direção, a pretexto de evitar roubos. No entanto, estas câmeras
serviam para controlar os trabalhadores, registrar suas conversas
e elaborar perfis pessoais detalhados. Este não é um caso isolado.
A competidora Aldi foi acusada, em 2013, de espionar seus em-
pregados em vários supermercados na Alemanha e Suíça, através
de câmeras escondidas, segundo vazou a revista alemã Spiegel.

179
E st her Vi va s E stev e

A Agência Espanhola de Proteção de Dados abriu um processo


disciplinar contra Alcampo por espionar seus funcionários. No
final de 2007, a Alcampo instalou secretamente em um hiper-
mercado de Ferrol três câmeras escondidas em espaços reservados
ao pessoal. Semanas mais tarde, ela usou o conteúdo dessas fitas
para despedir um empregado e punir outros onze.
Os consumidores também são objeto de voyeurismo. O últi-
mo foi estrelado pela cadeia de supermercados Tesco, no final de
2013, na Grã-Bretanha. A empresa instalou câmeras pequenas
em 450 postos de gasolina para escanear os rostos de seus clien-
tes na fila do estabelecimento, a fim de detectar sua idade, sexo
e oferecer-lhes, através de uns monitores instalados no mesmo
local, a publicidade mais consistente com seus perfis. O filme
de ficção científica “Minority Report”, de Steven Spielberg, se
torna realidade, e os anúncios personalizados a partir da leitura
da retina, como aparecem no filme, parece que não terão que
esperar até 2054.

A nossa vida em um cartão


“Já tem o cartão de cliente?” se tornou um ritual que nos per-
guntam ao passar pelo caixa. E, se não tivermos, nos oferecem um
monte de vantagens, descontos e recompensas dentro do cartão.
Assim fisgados, corremos a preencher o formulário, apontando
todos nossos dados, sem nem mesmo ler o que assinamos, para
poder obter o quanto antes as tão fantásticas promoções. Entre-
tanto, o que sucede com a informação que damos? Quem a usa?
Para que fins? Isso é algo que não nos contam ao nos registrarem...
Os supermercados são os reis dos cartões de fidelidade. Ofere-
cem-nos brindes, descontos, pontos etc., a cada vez que passamos
pelo caixa. Além de contar com a nossa fidelidade, as empresas
do varejo buscam, através destes cartões de cliente, saber tudo ou

180
O negócio da comida

quase tudo sobre nossas vidas privadas: quem somos, qual a nossa
idade, estado civil, preferências, hobbies. À margem do que diz a
ficha que preenchemos, as compras regulares que fazemos ficam
gravadas para sempre em nosso arquivo: se nós gostamos ou não
de chocolate, se preferimos carne ou peixe, qual café, que massas,
doces, bebidas, conservas, verduras que usamos. Eles sabem tudo.
As empresas armazenam esses dados e os utilizam através do
marketing para melhorar suas vendas. Assim, eles sabem quem
consome o quê e quando, podendo realizar perfis detalhados de
seus compradores. A partir desse momento, nos oferecem, através
de publicidade variada, tudo aquilo que “necessitamos” – e com-
pramos, encantados. Nossa vida privada nas mãos de empresas
torna-se uma nova fonte de negócios, sem que possamos nos dar
conta.

O rastro do que compramos


Eles dizem que comprar no supermercado do futuro será mais
prático, confortável, ágil, rápido e não precisaremos fazer filas
nem passar pelo caixa. Tudo graças, entre outras, à tecnologia
de identificação por radiofrequência – as etiquetas RFID. Umas
etiquetas contendo um microchip que registra informações deta-
lhadas sobre a “vida” do produto. Elas são como um número de
série único que armazena e emite, através de uma antena, dados
específicos sobre esse produto.
Assim, no futuro não tão distante, poderemos entrar em
um supermercado, pegar um carrinho de compras “inteligente”,
carregar em seu banco de dados a lista do que queremos comprar,
deixar que ele nos guie ao encontro desses produtos, dar-nos
informações sobre eles e ir calculando o total que estamos gas-
tando. E, ao sair, nem vamos precisar fazer o check-out – já que
cada produto leva uma dessas etiquetas e uma antena receptora

181
E st her Vi va s E stev e

os identificará. O total nos será cobrado diretamente em nossa


conta, e sem entrar em filas. O que mais poderíamos pedir?
O problema reside – como denunciado nos Estados Unidos
por Consumidores Contra a Invasão de Privacidade dos Super-
mercados (Caspian) e pelo Centro de Informação sobre Priva-
cidade Eletroeletrônica (Epic) – no controle que esses sistemas
exercem sobre as pessoas. Ninguém impede, por exemplo, que
tais etiquetas possam continuar a acumular informações, uma
vez fora do supermercado, seguindo cada um dos passos dos
produtos e de nós mesmos, como consumidores.
Hoje já encontramos essas etiquetas RFID em alguns produ-
tos dos supermercados, coexistindo com os tradicionais códigos
de barras. Seu custo limita no momento, e em parte, uma maior
generalização, embora, de acordo com a Agencia Española de
Protección de Datos e Instituto Nacional de Tecnologías de la
Comunicación (2010), seja cada vez mais comum encontrá-las
na rotulagem de vestuário e calçado. Assim como em sistemas
de identificação de animais de estimação, cartões de transporte,
pagamento automático de pedágio, passaportes, entre outros,
colocando em risco a nossa privacidade.
Querem que acreditemos que os centros comerciais são sinô-
nimos de liberdade. Agora, Caprabo apela, em sua publicidade,
ao “livre-comprador” que levamos dentro de nós. “Damos tudo
para você ser livre para escolher o que você mais gosta”, diz.
No entanto, a liberdade de escolha não está no supermercado,
mas, sim, fora dele.

Os supermercados criam empregos?


A abertura de um grande centro comercial ou supermerca-
do está sempre associado à promessa de criação de empregos,
impulsionamento da economia local, preços acessíveis e, defi-

182
O negócio da comida

nitivamente, o progresso. A realidade é mesmo assim? A grande


distribuição comercial é baseada em uma série de mitos que,
muitas vezes, sua prática desmente.
A Associação Nacional de Grandes Empresas de Distribuição
(Anged), organização patronal do grande varejo – que agrupa
companhias como Alcampo, El Corte Inglés, FNAC, Carrefour,
Ikea, Eroski, Leroy Merlin, entre outras – impôs, no início de 2013,
um novo e duro convênio a seus 230 mil funcionários. Com sua
aplicação, trabalhar em um domingo é equivalente ao trabalho em
um dia de semana. E aqueles que até então estavam isentos, por
razões familiares, são agora obrigados a cumprir. De tal modo que
se dificulta, ainda mais, a conciliação entre a vida pessoal e a laboral,
num setor onde a maior parte do pessoal é composta por mulheres.

Trabalhar mais por menos


Com esse novo convênio, se aplica a regra de ouro de capital:
trabalhar mais por menos, estendendo as horas de trabalho e
baixando os salários. Além disso, se as vendas caírem abaixo
daquelas de 2010, os salários podem ser cortados em até 5%.
Uma prática cruel, num setor já extremamente precarizado. A
Anged, entretanto, afirma que “o convênio reflete os esforços
das empresas e dos trabalhadores para manter o emprego”.
Mas, que tipo de empregos fomentam supermercados,
cadeias de desconto e hipermercados? A resposta é fácil: horas
flexíveis de trabalho, contratos a tempo parcial, baixos salários e
tarefas rotineiras e repetitivas. E o que acontece se você decidir
se organizar em um sindicato e lutar por seus direitos? Acontece
que, se você tem um contrato precário, melhor se despedir de
seu trabalho. Wal-Mart, o “colosso” do varejo, é o exemplo por
excelência (Antentas, 2007). Seu slogan “Preços sempre baixos”
poderia ser substituído por “Salários sempre baixos”.

183
E st her Vi va s E stev e

No início de 2013, a Caprabo, de propriedade da Eroski,


anunciou sua intenção de despedir 400 trabalhadores, para não
aplicar o aumento salarial acordado e cortar até 20% dos salários
do seu pessoal. A culpa? Da “previsível” queda das vendas e a
crise. Um ano antes, curiosamente, a empresa havia afirmado
que os seus lucros aumentaram 12% em relação ao ano anterior.
A “Santa Crise” resgata de novo a empresa.

O fim do comércio local


Tendo visto o que vimos, supermercados e criação de em-
prego parecem, isso sim, um oxímoro.* Existem vários estudos
que apontam como a abertura destes estabelecimentos envolve
o encerramento de lojas e o declínio do comércio local. E, con-
sequentemente, a perda de postos de trabalho. Especificamente,
a investigação sobre o impacto do Wal-Mart no mercado de tra-
balho local concluiu que, para cada posto de trabalho criado por
ela, 1,4 empregos foram destruídos em negócios pré-existentes
(Neumark, Zhang e Ciccarella, 2005). Na Espanha, a partir
dos anos 1980, e “a medida que a distribuição moderna se con-
solidava, o comércio tradicional sofreu uma erosão constante e
invencível, tornando-se hoje quase residual. Se em 1998 havia
95 mil lojas, em 2004 este número caiu para 25 mil” (Garcia
e Rivera, 2007b).
Quando desaparece o pequeno comércio, diminui também
a renda da comunidade, já que a compra em uma loja de bairro,
ao contrário de compras em uma “grande superfície”,** repercute
em maior medida na economia local. De acordo com um estudo

* Figura em que se combinam palavras de sentido oposto que parecem excluir-se


mutuamente; paradoxo. (N. T.)
** “Grande superfície” refere-se aos grandes centros comerciais horizontais, como
os supermercados. (N. T.)

184
O negócio da comida

realizado por Amigos de la Tierra na Grã-Bretanha, 50% dos


lucros do comércio em pequena escala retorna ao município.
Geralmente através da compra de produtos locais, salários dos
trabalhadores e dinheiro gasto com outros negócios, enquanto
as grandes empresas de distribuição reinvestem escassos 5%
(Amigos de la Tierra, 2005a).
E não param por aí as consequências negativas que a grande
distribuição causa para os envolvidos na cadeia de produção,
distribuição e consumo. Desde os camponeses, que são os
maiores perdedores, obrigados a acatar termos comerciais in-
sustentáveis, que os condenam a desaparecer, passando pelos
consumidores, instados a comprar acima de suas necessidades,
produtos de má qualidade e não tão baratos quanto parecem,
até o tecido econômico local, que é fragmentado e decomposto.
Este é o paradigma de “desenvolvimento” que promovem os
supermercados.

A outra cara de uma cadeia de supermercados


Mercadona não é apenas uma cadeia de supermercados, é
muito mais. Mercadona significa poder. À frente, seu fundador
e presidente Juan Roig. Porém, por trás da imagem de empresa
familiar que cria empregos em tempos de crise e que se preo­
cupa com seu quadro de pessoal, seus bastidores escondem
uma realidade pouco conhecida, e muito menos divulgada.
Financiamento de partidos, exploração laboral, extinção do
pequeno comércio, sufocamento do campesinato, alimentos
quilométricos. Este é o outro lado da Mercadona.
Nem a crise tem sido um impedimento para que Juan Roig
– um self-made man, como ele gosta de se apresentar – tenha
consolidado uma das maiores fortunas da Espanha, ocupando o
número 4 no ranking dos mais ricos, segundo a revista Forbes,

185
E st her Vi va s E stev e

logo atrás dos proprietários dos impérios Inditex (Amancio


Ortega y Sandra Ortega, números 1 e 2, respectivamente) e
Mango (Isak Andic, em terceira posição). Uma herança que ele
atribui à “cultura do esforço”, à qual costuma apelar. Sua receita
para superar a crise é simples. É só uma questão de esforço: “A
crise vai levar mais ou menos anos, dependendo de mudarmos
nossa atitude, pensar mais sobre os nossos deveres e menos so-
bre nossos direitos” (Jimenez, 2012). Aceitar a reforma laboral,
imagino, deve ser parte deste esforço.
Mercadona sabe tirar partido – como nenhum outro su-
permercado – da crise. Desde 2008, seus lucros aumentaram
58%, consolidando-se como o número um da grande distri-
buição alimentar. Em 2011, sua cota de mercado foi de quase
24%, um total superior à soma de seus três principais rivais:
Carrefour, Eroski e Dia (Segura, 2012). A “receita mágica”?
De acordo com a empresa: preços baixos sempre, comércio
de proximidade etc. Mas há uma parte da “receita” que ela
costuma “esquecer”.
Juan Roig compareceu, em fevereiro de 2014, à Audiência
Nacional, pelos “papéis” de Barcenas, a “suposta” contabilidade
B do PP; “papéis” que mencionavam o magnata dos supermer-
cados e indicavam supostas doações de Mercadona para o PP
no valor de 240 mil euros. Juan Roig negou tudo ante o juiz
Pablo Ruz, apesar de ter admitido doações para a Fundação para
a Análise e Estudos Sociais (Faes), do ex-presidente José María
Aznar, num valor total de 100 mil euros em 2005 e 2012, e
outro semelhante à Fundação Mulheres pela África, da ex-vice-
-presidente do Governo, do Psoe, Maria Teresa Fernández de
la Vega. Assim, todos ficaram satisfeitos. Juan Roig declarou,
também, que tinha se encontrado “cinco ou seis vezes” com o
primeiro-ministro Mariano Rajoy, não surpreendentemente

186
O negócio da comida

o terceiro empresário mais influente, atrás de Emilio Botín e


Amancio Ortega (Ipsos, 2014).

“Modelo alemão”
Mercadona sempre se gabou de seus contratos estáveis, de
oferecer salários acima da média do setor e formação, além de
apostar na conciliação entre trabalho e vida familiar. O próprio
The Wall Street Journal elogiou o “modelo alemão” da empresa,
considerando-o a chave para o seu sucesso: condições de traba-
lho flexíveis e salários vinculados à produtividade (Ball e Brat,
2012) – o que não parece o mais adequado a conciliar a vida
pessoal com o trabalho, nem o melhor para um salário estável.
Na verdade, o mesmo Juan Roig, como presidente do Instituto
da Empresa Familiar, que reúne centenas de empresas líderes em
seu setor, tem repetidamente exigido a “necessária” flexibilidade
do mercado de trabalho, a redução do custo de demissão, a ele-
vação da idade de aposentadoria para 67 anos, a transferência de
feriados de terça a sexta para a segunda-feira para evitar “pontes”,
e a desvinculação do aumento salarial ao aumento do IPC (Índice
de Preços ao Consumidor) (Lafont, 2006). Tudo, claro, pensando
nos trabalhadores...
As denúncias feitas contra Mercadona por abusos laborais são
muitas e vêm de longe. As demissões improcedentes, a política
antissindical, a extrema pressão sobre a força de trabalho, as
dificuldades para conceder a aposentadoria, o assédio aos traba-
lhadores (Llopis, 2014). Em 2006, começou um longo conflito no
Centro Logístico de Sant Sadurní d’Anoia – encarregado do abas-
tecimento dos supermercados da Catalunha, Aragão e Castelló.
Vários vendedores começaram um processo de auto-organização
contra os abusos da empresa, com o apoio do sindicato CNT. A
resposta de Mercadona foi rápida: três funcionários para a rua! Isso

187
E st her Vi va s E stev e

desencadeou uma longa greve, de março a setembro de 2006 (An-


tentas e Vivas, 2007). Muitos são os outros casos que poderiam
ser compartilhados. Basta acrescentar mais um: o de Francisco
Enriquez, sete anos em um Mercadona em Málaga, demitido em
outubro de 2013, depois de ser eleito delegado sindical da CGT
(Llopis, 2014b). Muitas vezes, a realidade desmente o marketing.

Adeus, quitandas!
O desaparecimento do pequeno comércio local é outro dos
“danos colaterais” da proliferação de supermercados, a despeito
de Mercadona dizer que várias lojas se desenvolvem no entorno
de seus estabelecimentos. No entanto, eu diria que se instalam
“apesar” da empresa. E não se trata de qualquer tipo de loja, mas
quitandas que se aproveitam do insípido e embalado produto que
Mercadona vende para oferecer uma alternativa fresca aos clientes
da cadeia. O próprio Juan Roig deixou isso claro ao afirmar que
em torno de cada Mercadona “não há supermercados, mas há
oito quitandas”. E acrescentou: “Sem ir a Harvard, mas a ‘Har-
vacete’, os vendedores de frutas e verduras são mais espertos do
que nós” (Zafra, 2013a). Qual é a sua meta agora? Eliminar lojas
de conveniência e quitandas nas proximidades de Mercadona.
A empresa lançou, no final de 2013, uma nova estratégia para
vender diretamente produtos frescos.
Agricultores, pecuaristas e fornecedores tampouco estão satis-
feitos com Mercadona. Sindicatos agrários como o Coordinadora
de Organizaciones de Agricultores y Ganaderos [Coordenação
das Organizações de Agricultores e Pecuaristas] (Coag) (2009)
denunciaram várias vezes como o processo de concentração dos
supermercados só favorece o enriquecimento deles mesmos, à
custa da redução da renda dos agricultores. Em junho de 2013,
camponeses das Canárias, concentrados no portão de um Merca-

188
O negócio da comida

dona em Las Palmas, “presentearam” o povo com oito toneladas


de batatas, para denunciar os preços miseráveis que lhes pagavam
o supermercado, abaixo do custo de produção. Segundo a Coag
Canárias, as grandes redes de varejo realizam “guerras de preços”
para ganhar cotas de mercado, e quem paga a conta são os que
estão no início da cadeia” (Coag, 2013c).
Não se trata de um caso pontual. A Unións Agrarias e a As-
sociação Setorial de Criadores de Aves de Galícia informaram,
em agosto de 2013, perante o Conselho Galego da Competi-
tividade, como sete supermercados vendiam frango abaixo do
custo de produção e praticamente ao mesmo preço. A Unións
Agrarias acusava diretamente Mercadona de “liderar” esse pacto
de preços. “Se Mercadona varia dez centavos no preço, os demais
não tardarão em fazê-lo”. O que coloca as quase 800 granjas
existentes na Galícia em uma situação “muito difícil”, acrescen-
taram (Dominguez, 2013). Juan Roig disse que Mercadona quer
“dignificar o trabalho do agricultor, pescador e criador de nosso
país” e argumenta que “fazendeiros e agricultores têm de ganhar
dinheiro” (Zafra, 2013b). Palavras ao vento.

Alimentos “viajantes”
De onde vêm os alimentos até a rede Mercadona? Um
relatório de Amigos de la Tierra afirma que, se os alimentos
que compramos tivessem um velocímetro, a média antes de
alcançar nosso prato seria de 5 mil quilômetros (Gonzalez,
2012). Mercadona, a maior cadeia de supermercados, não é
uma exceção a isso. A Coag denunciou, em março de 2009, o
contrato entre Mercadona e a empresa portuguesa Sovena, cujo
principal acionista é um dos genros de Juan Roig, para plantar
oliveiras e produzir azeite em Portugal e no Norte do Magrebe,
deslocalizando a produção.

189
E st her Vi va s E stev e

E eis que a famosa orchata valenciana parece não ser mais


de Valência. A Unió de Llauradors (2013) revelou que a orchata
vendida em Mercadona não usa o rótulo “designação de origem”,
já que muito provavelmente provinha da África, com a conse-
guinte exploração do trabalho de seus produtores e o impacto
ambiental de tais alimentos “viajantes”. Mercadona negou. Mas
não passou a rotular os seus produtos com essa denominação,
como fazem outros supermercados. Portanto, a origem da chufa*
é desconhecida. Além disso, têm sido detectadas em Mercadona
laranjas etiquetadas como valencianas, ainda que com origem
na Argentina, abóboras do Panamá, peixe congelado africano
ou da América do Sul, bem como outros produtos com muitos
quilômetros rodados.
Mercadona investe milhares de euros em cuidar de sua ima-
gem. “Os supermercados de confiança”, anunciam. Será?

* “Orchata” é o nome dado a um tipo de bebida não alcoólica, típica da cultura


espanhola, que pode ser produzida a partir de diversas bases vegetais, como
cevada, amêndoas ou chufa. (N. T.).

190
SIM, E X ISTEM A LTER NATI VA S!

Soberania alimentar: poder decidir o que se


cultiva e o que se come
Comer significa mastigar e decompor o alimento na boca e
enviá-lo para o estômago, segundo definição da Real Academia
Espanhola. Comer, no entanto, é muito mais do que engolir ali-
mentos. Comer de forma consciente envolve perguntar-se de onde
vem o que consumimos, como foi elaborado, em que condições, e
por que pagamos por isso um determinado preço. Significa tomar-
mos o controle de nossos hábitos alimentares, e não simplesmente
delegar. Em outras palavras, ser soberano, poder decidir quanto à
nossa alimentação. Esta é a essência da soberania alimentar.
Uma proposta que surge diante da ineficácia e mau funcio-
namento do sistema agrícola e alimentar – do qual o melhor
exemplo é a fome, em um mundo onde há comida para todos.
Hoje, o modelo agroalimentar foi sequestrado pelos interesses de
um punhado de corporações do agronegócio e grandes varejistas,
que buscam apenas ganhar dinheiro com algo tão essencial como
é a comida. Confrontado com este absurdo, emerge a ideia da
soberania alimentar: o poder e a capacidade de decisão, também
relativo ao que se come, têm que estar nas mãos da maioria.
E st her Vi va s E stev e

Um direito dos povos


A soberania alimentar implica reivindicar o direito de cada
povo de definir suas políticas agrícolas e alimentares. De controlar
seu mercado interno e impedir a entrada de produtos subvencio-
nados ou excedentes da agroindústria vindos de outros países e
que competem de forma desleal com os alimentos locais. Trata-se
de optar por uma agricultura local, diversa, camponesa, susten-
tável, culturalmente adequada ao seu ambiente e que respeite o
território, entendendo o comércio internacional como apenas um
complemento à produção local. A soberania alimentar significa
devolver aos povos o controle dos recursos naturais, daquilo que
nos dá de comer, e lutar contra a privatização da vida.
O leitmotiv da soberania alimentar reside no “poder de deci-
dir”: que os agricultores possam decidir o que cultivar, que tenham
acesso à terra, à água, às sementes. E que nós consumidores te-
nhamos todas as informações sobre o que comemos, que saibamos
como foi produzido, se contêm ingredientes transgênicos ou não.
Tudo isso é impossível hoje. Especula-se com a terra, as sementes
são privatizadas, a água está se tornando cada dia mais cara, os
rótulos de um produto mal informam o que levamos à boca. E
a Espanha é uma das principais áreas de cultivo de transgênicos
na Europa. A lista poderia continuar.
Em 1996, a Via Campesina colocou, pela primeira vez sobre
a mesa, a demanda da soberania alimentar, que coincidiu com
a Cúpula Mundial sobre Alimentação da FAO, em Roma. A
Via definiu formalmente este conceito como “o direito de cada
nação de manter e desenvolver seus alimentos, tendo em conta a
diversidade cultural e produtiva” (Desmarais, 2008). Em suma,
o direito de ter plena soberania para decidir o que é cultivado e
o que é comido. As políticas alimentares e agrícolas atuais não
permitem isso. Em termos de produção, muitos países foram

192
O negócio da comida

forçados a abandonar sua diversidade agrícola em favor de mono-


culturas para exportação, que só beneficiam algumas empresas.
No âmbito comercial, sua soberania está sujeita aos ditames da
Organização Mundial do Comércio (OMC), entre outras insti-
tuições e tratados internacionais.

Para além da segurança alimentar


Desde os anos 1970, o debate sobre o direito à alimentação
girava em torno da demanda de segurança alimentar. Em 1974,
frente aos desequilíbrios e limites do sistema alimentar mundial, e
coincidindo com a crise alimentar daquele ano, a FAO cunhou o
conceito de “segurança alimentar”, com o objetivo de defender o
direito e o acesso à alimentação para toda a população do planeta.
Nas palavras da FAO (1996b), “existe segurança alimentar
quando todas as pessoas, em todos os momentos, têm acesso físico
e econômico a alimentos suficientes, inócuos e nutritivos, para
satisfazer suas necessidades dietéticas e suas preferências alimen-
tares, para levar uma vida ativa e saudável”. Uma proposta que
coloca ênfase na disponibilidade de alimentos, no acesso a eles,
na sua utilização e estabilidade no abastecimento, mas que não
questiona o lugar, nem quem os produz, assim como em mãos
de quem estão os recursos naturais (água, terra, sementes...) que
permitem o cultivo de alimentos. Em suma, é uma abordagem
que pode ser facilmente enquadrada em uma visão neoliberal
das políticas agrícolas e alimentares e nas políticas comerciais
promovidas pela OMC, para não questionar as causas estruturais
da pobreza e da fome.
Assim, o conceito de segurança alimentar tem sido muitas
vezes despojado de seu significado original e a indústria agroa-
limentar, bem como as instituições internacionais, o têm usado
para justificar a exportação de alimentos subsidiados, a partir dos

193
E st her Vi va s E stev e

Estados Unidos ou da União Europeia, para os países do Sul, com


o objetivo “teórico” de acabar com a fome. No entanto, como
vimos nos capítulos anteriores, essas práticas, longe de resolverem
os problemas agrícolas e alimentares no Sul, os agudizam.
Frente à constatação de que o conceito de segurança alimentar
não representa um paradigma alternativo ao agronegócio e às
políticas neoliberais, emergiu a proposta da soberania alimentar,
que inclui essa demanda e vai mais além. A soberania alimentar
visa atender à segurança alimentar das pessoas – que todo mundo
possa comer. Ao mesmo tempo, coloca em questionamento o
atual modelo de produção agrícola (intensiva, industrial, deslo-
calizada, insustentável, quilométrica), assim como as políticas
das instituições internacionais que o sustentam. A soberania
alimentar coloca os agricultores no centro, apoiando-os na sua
luta para produzir alimentos à margem das condições impostas
pelo mercado, dando prioridade aos circuitos locais e nacionais,
quebrando o mito de que somente os mercados e o comércio in-
ternacional poderão acabar com a fome no mundo. E colocando
a produção de alimentos, a distribuição e o consumo na base da
sustentabilidade social, econômica e ambiental.

Nem romantismos, nem localismos


Reivindicar a soberania alimentar não implica um retorno
romântico a um passado arcaico, mas, sim, recuperar o conhe-
cimento e as práticas tradicionais e combiná-las com as novas
tecnologias e os novos saberes (Desmarais, 2008). Não deve
consistir, tampouco, em uma abordagem localista ou de uma
“mistificação do pequeno”. Mas deve repensar o sistema alimen-
tar mundial para promover formas democráticas de produção
e de distribuição de alimentos. A proposta da Via Campesina
não procura um retorno ao “local”, ao contrário, seu objetivo

194
O negócio da comida

é repolitizar um sistema alimentar globalizado, a serviço das


comunidades e do coletivo, a partir de uma perspectiva inter-
nacionalista (McMichael, 2006).
Atualmente, a demanda por soberania alimentar já não se
limita, como em suas origens, somente ao mundo camponês,
atingindo amplos setores sociais, desde grupos de consumidores,
organizações de mulheres, ambientalistas, ONGs, coletivos em
defesa do mundo rural, entre muitos outros que a reclamam.
Alimentar-se, e poder decidir como o fazer, é coisa de todos.
E como levar essa soberania alimentar à prática? Muitas
são as iniciativas sociais que apontam nessa direção, a partir da
agroecologia, grupos e cooperativas de consumo, hortas urbanas,
cozinha comprometida e de quilometragem zero, compras dire-
tas e sem intermediários aos agricultores locais e orgânicos. São
iniciativas que ligam produtores e consumidores; estabelecem
relações de confiança e solidariedade entre o campo e a cidade.
Fortalecem o tecido social; promovem outra forma de produzir,
no marco da economia social e solidária, e demonstram que
existem alternativas.
O desafio é fazer chegar essa soberania alimentar a toda a po-
pulação. Para isso, são necessárias mudanças políticas. É urgente
que se proíba o cultivo de espécies transgênicas que contaminam
a agricultura convencional e ecológica. Construir um banco
público de terras que torne o solo acessível a quem quer viver e
trabalhar no campo; aprovar uma Lei do Artesanato, adequada
às necessidades dos pequenos artesãos. É essencial reconverter as
cantinas e restaurantes de centros públicos (escolas, residências,
universidades, hospitais...) em cozinhas e refeitórios ecológicos e
de proximidade, e introduzir o “saber comer” no currículo escolar,
entre outras propostas.
A soberania alimentar é possível. Se queremos, podemos.

195
E st her Vi va s E stev e

A agricultura camponesa ecológica


pode alimentar o mundo?
A população do mundo vai chegar aos 9 bilhões e 600 mi-
lhões de habitantes em 2050, de acordo com a Organização das
Nações Unidas (ONU, 2013). Isso significa mais 2 bilhões e 400
milhões de bocas para alimentar. Tendo em conta esses números,
veicula-se um discurso oficial que afirma que, para alimentar
tantas pessoas, é essencial produzir mais. No entanto, é necessário
perguntar: falta comida hoje? O cultivo atual é suficiente para
toda a humanidade?
Atualmente, no mundo, “se produzem alimentos suficientes
para dar de comer a 12 bilhões de pessoas, segundo dados da
FAO”, afirmava Jean Ziegler, relator especial sobre o direito à
alimentação da Organização das Nações Unidas entre 2000 e
2008 (Centro de Noticias ONU, 2007). E lembre-se que no
planeta habitam 7 bilhões. Além disso, todos os dias são colhidos
1,3 bilhão de toneladas de alimentos em todo o mundo, um terço
do total do que se produz (FAO, 2012b). Conforme esses dados,
de comida não há falta!
Os números indicam que o problema da fome não se deve à es-
cassez de alimentos, embora alguns insistam em dizer o contrário.
O próprio Jean Ziegler dizia: “As causas da fome são provocadas
pelo homem. É um problema de acesso, não de superpopulação
ou de subprodução” (Centro de Noticias ONU, 2007). Em suma,
é uma questão de falta de democracia nas políticas agrícolas e
alimentares. Na verdade, se estima que cerca de uma em cada oito
pessoas no mundo passem fome (FAO, 2013a). A aberração da
fome é que ela se dá em um planeta com abundância de alimentos.
Então, por que há fome? Porque muitas pessoas não podem
pagar o preço cada vez mais caro dos mantimentos, seja aqui,
seja nos países do Sul. A comida tornou-se uma mercadoria. E se

196
O negócio da comida

você não pode pagá-la, em vez de lhes dar para comer, jogam no
lixo. Da mesma forma, os cereais não são produzidos apenas para
alimentar as pessoas, mas também para alimentar carros (como
os biocombustíveis) e animais – cuja criação exige muito mais
energia e recursos naturais do que se gastaria, com tais cereais,
para alimentar pessoas diretamente. Produz-se comida, mas uma
grande quantidade dela não acaba em nosso estômago. O sistema
de produção, distribuição e consumo de alimentos é projetado
para dar dinheiro às empresas do agronegócio, que monopolizam,
do início ao fim, a cadeia alimentar. Eis, aqui, a causa da fome.
Portanto, por que alguns ainda insistem que temos de produ-
zir mais? Por que nos dizem que precisamos de uma agricultura
industrial, intensiva e geneticamente modificada que nos permita
alimentar toda a população?
Querem nos fazer crer que as próprias causas da fome serão
a solução. Mas isso é falso. Mais agricultura industrial, mais
agricultura transgênica, como já foi demonstrado, significa mais
fome. Há muita coisa em jogo quando falamos de alimentos. As
grandes empresas do setor sabem disso muito bem. Daí vem o
discurso hegemônico dominante nos dizer que elas têm a solução
para a fome no mundo, quando na verdade são elas que, com
suas políticas, a causam.

Outro paradigma agroalimentar


Visto isso, o que podemos fazer? Que alternativas existem?
Se tudo o que queremos é comer e comer bem, é necessário que
apostemos em outro modelo de alimentação e de agricultura.
Anteriormente, afirmamos que agora existe comida suficiente para
todo o mundo. Isto seria assim com uma dieta diferente, com
muito menos consumo de carne que a dieta ocidental atual. O
nosso “vício” de carne faz com que precisemos de maior quanti-

197
E st her Vi va s E stev e

dade de água, cereais e energia para produzir comida para cevar o


gado do que se nossa dieta fosse mais vegetariana. Estima-se que
um terço das terras agrícolas e 40% da produção de cereais no
mundo destinam-se a alimentar gado (Chemnitz Becheva, 2014).
Tornar compatível a vida humana com os limites e recursos finitos
do planeta Terra também envolve questionar o que comemos.
Além disso, outro problema surge: caso façamos a proposta de
dispensar a produção industrial, intensiva, transgênica de alimentos,
que alternativa temos? A agricultura camponesa e ecológica pode
alimentar o mundo? Cada vez são mais vozes que dizem SIM. Uma
das mais reconhecidas é a de Olivier de Schutter, relator especial
sobre o direito à alimentação da ONU entre 2008 e 2014, que
afirmou em seu relatório “A Agroecologia e o direito à alimenta-
ção” que “os pequenos agricultores poderiam dobrar a produção
de alimentos em uma década, se utilizassem métodos ecológicos de
produção”. Ele acrescenta que “é imperativo aplicar a agroecologia
para acabar com as crises alimentares e ajudar a enfrentar os desafios
ligados à pobreza e às alterações climáticas” (De Schutter, 2010).
De acordo com De Schutter, a agricultura camponesa e eco-
lógica é mais produtiva e eficiente, e garante melhor a segurança
alimentar das pessoas que a agricultura industrial: “A evidência
científica mostra que a agroecologia supera o uso de fertilizantes
químicos no aumento da produção de alimentos, especialmente
nos ambientes desfavoráveis onde vivem os mais pobres” (Centro
de Noticias ONU, 2011). O relatório citado, a partir da sistema-
tização de dados de vários estudos de campo, deixou isso claro:
“Em diferentes regiões se tem desenvolvido e testado, com exce-
lentes resultados, técnicas muito variadas baseadas na perspectiva
agroecológica (...). Tais técnicas, que conservam recursos e utili-
zam poucos insumos externos, têm demonstrado potencial para
melhorar significativamente os rendimentos” (De Schutter, 2010).

198
O negócio da comida

Um dos principais estudos sobre esta questão, liderado por


Jules Pretty (2006) e citado no referido relatório, analisou o
impacto da agricultura sustentável, ecológica e camponesa em
286 projetos de 57 países pobres, num total de 37 milhões de
hectares (3% da área cultivada em países em desenvolvimento).
Suas conclusões não deixaram dúvidas: a produtividade dessas
terras, através da agroecologia, aumentou 79%, e a produção
média de alimentos por família aumentou em 1,7 toneladas por
ano, em até 73%. Posteriormente, a Conferência das Nações
Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento e o Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente retornou a esses dados
para analisar o impacto da agricultura ecológica e camponesa
nos países africanos. Os resultados foram ainda melhores: o au-
mento médio das colheitas nos projetos da África foi de 116% e
na África Oriental, de 128%. Outros estudos científicos, citados
no relatório “A Agroecologia e o direito à alimentação”, chegaram
às mesmas conclusões.
Em suma, a agricultura ecológica e camponesa não é só alta-
mente produtiva – inclusive mais até do que a agricultura indus-
trial, especialmente nos países pobres. Mas, tal como reivindicado
pelos estudos citados, cuida dos ecossistemas, permite “conter e
inverter a tendência de perda de espécies e a erosão genética” e
aumenta a resiliência às mudanças climáticas. Ela também dá
maior autonomia para o campesinato: “ao melhorar a fertilidade
da produção agrícola, a agroecologia reduz a dependência dos
agricultores dos insumos externos e dos subsídios estatais” (De
Schutter, 2010).

A agroecologia arregimenta apoios


A Avaliação Internacional do Papel do Conhecimento, da
Ciência e da Tecnologia no Desenvolvimento Agrícola (IAASTD,

199
E st her Vi va s E stev e

na sigla em inglês) foi um dos principais processos intergoverna-


mentais que se levaram a cabo para avaliar a eficácia das políticas
agrícolas e também chegou a conclusões que apontam no mesmo
sentido. A iniciativa, no início, teve apoio do Banco Mundial e
da FAO, e o patrocínio de outras organizações internacionais,
como a Global Environment Facility (GEF), o Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o Programa das
Nações Unidas para o Ambiente (Pnuma), a Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco)
e a Organização Mundial da Saúde (OMS).
O objetivo foi avaliar o papel do conhecimento, da ciência
e da tecnologia agrícola na redução da fome e da pobreza no
mundo, na melhoria dos meios de subsistência nas zonas rurais
e na promoção do desenvolvimento ambiental, social e econô-
mico sustentável. A avaliação, realizada entre 2005 e 2007, teve
a participação de uma delegação composta por representantes de
governos, ONGs, grupos de produtores e consumidores, entidades
privadas e organizações internacionais, com um claro equilíbrio
geográfico. Foram escolhidos 400 especialistas mundiais para efe-
tuar o estudo, que incluiu uma avaliação global e cinco regionais.
Suas descobertas foram um marco importante, porque pela
primeira vez um processo intergovernamental dessas caracte-
rísticas, e patrocinado por essas instituições, manifestava um
compromisso claro e firme com a agricultura biológica e sinali-
zava sua alta produtividade. O relatório afirma que “o aumento
e fortalecimento dos conhecimentos e da tecnologia agrícola,
orientados às ciências agroecológicas, irão contribuir para lidar
com as questões ambientais, mantendo e aumentando, ao mesmo
tempo, a produtividade” (IAASTD, 2008).
A pesquisa também considerou que a agricultura ecológica
era uma alternativa real e viável à agricultura industrial; dava

200
O negócio da comida

melhores garantias à segurança alimentar das pessoas; e era capaz


de reverter o impacto ambiental negativo dessa última.
A pegada ecológica da agricultura industrial já é demasiadamente grande
para ser ignorada (...). As políticas que promovem a adoção mais rápida de
soluções eficazes (...) para a mitigação e adaptação à mudança climática
podem ajudar a retardar ou inverter esta tendência e, ao mesmo tempo,
manter a produção adequada de alimentos. As políticas que promovem
práticas agrícolas sustentáveis (...) estimulam uma maior inovação tec-
nológica, como a agroecologia e a agricultura orgânica, para aliviar a
pobreza e melhorar a segurança alimentar (IAASTD, 2008).

Os resultados da IAASTD consideravam, igualmente, a agri-


cultura industrial e intensiva como geradora de “desigualdades”,
acusando-a de “gestão insustentável da terra ou da água” e de
práticas baseadas na “exploração laboral”. A avaliação concluía
que “as variedades de cultivo de alto rendimento, os produtos
agroquímicos e a mecanização têm beneficiado principalmente os
grupos dotados de maiores recursos da sociedade e as corporações
transnacionais, e não os mais vulneráveis”. Afirmações inaudi-
tas até agora, na cena internacional, por parte de instituições e
governos.
Este relatório, com estas conclusões, foi aprovado em abril
de 2008 em Johanesburgo, pelas autoridades de 58 países, em
uma assembleia intergovernamental, que mostrou seu acordo e
aprovou seus resultados. Estados Unidos, Canadá e Austrália,
entretanto, recusaram-se a endossar a proposta e mostraram re-
servas e desconformidades em relação à totalidade da avaliação.
Os relatórios de Olivier de Schutter e o IAASTD indicam
de forma inequívoca a alta capacidade produtiva da agricultura
camponesa e ecológica – igual ou superior, dependendo do con-
texto, à agricultura industrial. Ao mesmo tempo, consideram
que aquela permite maior acesso aos alimentos pelas pessoas, ao
investir na produção e comercialização local e também, com suas

201
E st her Vi va s E stev e

práticas, respeita, preserva e mantém a natureza. O “mantra” de


que a agricultura industrial é mais produtiva e a única capaz de
alimentar a humanidade se demonstra, com base nesses estudos,
totalmente falso.
Na verdade, não só a agricultura camponesa e ecológica pode
alimentar o mundo, mas é a única capaz de fazê-lo. Não se trata
de um retorno romântico ao passado ou de uma ideia bucólica
do campo, mas de fazer confluir os métodos camponeses de
ontem com os saberes de amanhã, e democratizar radicalmente
o sistema agroalimentar.

A comida ecológica em tempos de crise


Muitas vezes associamos o “comer orgânico” com comer caro.
E, em tempos de cortes, pensamos que não podemos gastar tanto
dinheiro na alimentação. Na verdade, calcula-se que 41% das
famílias na Espanha tenham mudado seus hábitos de consumo
como um resultado da crise, com o objetivo de economizar (CIS,
2011). Mas os alimentos ecológicos e de qualidade não precisam
ser, necessariamente, mais caros. Há opções para comprar orgâ-
nicos a bom preço: alimentos sazonais, locais ou de proximidade,
a compra direta com os agricultores, os mercados locais, grupos e
cooperativas de consumo etc., são alternativas que nos permitem
comer bem e a preços acessíveis.

Produtos de época
Estamos acostumados a comprar, se quisermos, tangerinas,
uvas, morangos, melão etc., durante todo o ano. Já não sabemos
se os tomates ou as laranjas são cultivos da época ou não. Desa-
prendemos os ritmos de produção da terra, e nos distanciamos do
trabalho no campo. Comprar produtos que não são da temporada
faz com que acabemos pagando mais pelo que comemos, obtendo

202
O negócio da comida

produtos de pior qualidade. Temos que voltar a aprender a nos


alimentar com os frutos que a terra nos dá, em cada época do
ano. Que se explique nas escolas quando é o tempo das cerejas,
quando as árvores dão figos, quando encontramos vagens na
horta. Comprar alimentos ecológicos e da época nos permitirá
comer bem e a um preço que não será tão caro.
Camarões da Argentina e abacaxis da África do Sul, com
aspargos do Peru de entrada... Os alimentos viajam milhares
de quilômetros, do campo à nossa mesa. Muitas vezes, se trata
de uma estratégia para produzir barato, explorando direitos
trabalhistas e ambientais, para depois vender o produto tão caro
quanto as transnacionais da agroindústria considerem ser possível.
Alguns alimentos podem nos resultar mais econômicos, outros
nem tanto. Uma compra local e de proximidade não chega a ser
cara, e estaremos ainda reduzindo o impacto ecológico de um
modelo de alimentação quilométrico. Que sentido tem comer
aqui alimentos que vêm de outra parte do mundo, e que lá seus
mercados estejam “invadidos” por produtos subvencionados do
agronegócio, vendidos abaixo do preço de custo, competindo
deslealmente com os camponeses nativos?

Compra sem intermediários


A outra questão é de onde compramos. Pensamos que ir ao
supermercado sairá barato. Mas, frequentemente, acabamos com-
prando mais do que necessitamos. Ofertas de 3 por 2, descontos,
colocação estratégica para que enchamos nossa cesta sem pensar.
Alguns produtos são anunciados mais baratos, ainda que seja ape-
nas um atrativo para que, quando formos pegá-los, adquiramos
outros que já não o são tão baratos. Comprar diretamente do
agricultor, em mercados locais, via comércio eletrônico ou indo
ao seu próprio sítio são boas opções para saber de onde vem o que

203
E st her Vi va s E stev e

comemos, pagar o preço justo a quem o cultivou, e economizar


dinheiro. Os grupos e as cooperativas de consumo, que nos últi-
mos anos têm proliferado, são também uma escolha adequada.
Pessoas de um bairro ou de um município que se organizam para
comprar alimentos orgânicos do agricultor, sem intermediários,
e obter um produto de qualidade a um preço acessível.
Percebemos que o consumo de carne, nos últimos tempos, não
para de aumentar. Com uma dieta mais vegetariana, não apenas
reduziremos o impacto tão negativo da produção intensiva de
carne no meio ambiente – que gera gases de efeito estufa, entre
outros – e em nosso organismo, mas também conseguiremos
baixar o custo de nossa cesta básica. Mais consumo de frutas
e verduras orgânicas é uma boa alternativa, tão saudável como
econômica, a uma dieta excessivamente carnívora.
Desse modo, comer ecologicamente não tem porquê sair
caro, ao contrário. Trata-se apenas de saber comer e comprar. E
fazê-lo com critérios de justiça social e ecológica. Não só ganha-
rá nosso bolso, como também nossa saúde, nossa agricultura e
nosso planeta.

Quem tem medo da agricultura ecológica?


A agricultura ecológica deixa alguns muito nervosos. Assim
se constata, nos últimos tempos, pela multiplicação de artigos,
entrevistas, livros que têm por único objetivo desprestigiar esse
trabalho, desinformar acerca de sua prática e desacreditar seus
princípios. É um discurso carregado de falsidades, travestido de
uma suposta independência científica. E que, para se legitimar,
nos fala dos “malefícios” de um modelo de agricultura e alimen-
tação que, entretanto, agrega progressivamente mais apoios. Por
que tanto esforço em desautorizar tal prática? Quem tem medo
da agroecologia?

204
O negócio da comida

Quando uma alternativa “pega” socialmente, duas são as


estratégias para neutralizá-la: a cooptação e a estigmatização. A
agricultura ecológica, ou agroecologia, é torpedeada por ambas.
Por um lado, cada vez mais, grandes empresas e supermercados
estão produzindo e comercializando esses produtos, cobrindo
assim um florescente nicho de mercado – e, ao mesmo tempo,
“clareando” suas imagens – apesar de suas práticas não terem nada
a ver com o que defende esse modelo. O objetivo das empresas:
cooptar, comprar, submeter e integrar a alternativa agroecológica
ao modelo agroindustrial dominante, esvaziando-a de conteúdo.
Por outro lado, a estratégia do “medo”: estigmatizar, mentir e
desinformar acerca da proposta, confundir a opinião pública
para, assim, desautorizar o modelo alternativo.
E se levantamos a voz em sua defesa? Insultos e desqualifica-
ções. Se um cientista se posiciona contra a agricultura industrial
e transgênica, é tachado de “ideológico”. Como se defender este
tipo de agricultura mainstream, hegemônica, não respondesse a
uma determinada ideologia: a daqueles que se situam na órbita
das transnacionais agroalimentares e biotecnológicas, e que
frequentemente cobram delas por isso. Se um “não cientista”
faz uma crítica, então seu problema é que não sabe nada, que é
um ignorante. Segundo a ideologia dominante, parece que só
os cientistas – em particular aqueles que defendem os mesmos
postulados do agronegócio – podem ter uma posição válida
a respeito do assunto. Uma atitude muito “respeitosa” com a
diferença. Outra prática habitual é qualificar quem critica de
magufo,* sinônimo, segundo o jargão dessa “elite científica”,

* “Magufo” é uma designação cética, combinação de “mago” e “ufólogo”, usada


em relação a praticantes de supostas pseudociencias. Nesse caso, utilizada pelos
defensores do agronegócio para depreciar a agroecologia. (N. T.)

205
E st her Vi va s E stev e

de anticientífico. Vê-se que defender uma ciência a serviço


do público e do coletivo implica ser contrário à ciência. Uma
argumentação de loucos.
Vejamos, na continuação, algumas das afirmações mais repeti-
das para desqualificar e desinformar sobre a agricultura ecológica.
Porque existem os que creem que repetir mentiras serve para
construir uma “verdade”. Frente à calúnia, dados e informação.

O perigo dos agrotóxicos


“A agroecologia não é mais saudável nem melhor para o meio
ambiente”, dizem. Querem-nos fazer crer que uma agricultura
industrial, intensiva, que usa sistematicamente produtos químicos
sintéticos em sua produção é igual a uma agricultura ecológica
que prescinde deles. Como seria possível, se as práticas agroeco-
lógicas emergem precisamente como resposta a um modelo de
agricultura que contamina a terra e nossos corpos?
Há alguns anos, a retirada e proibição de fitossanitários –
agrotóxicos utilizados na agricultura convencional – tem sido
uma constante, depois que se demonstrou seu impacto negativo
na saúde do campesinato, dos consumidores e no meio ambiente.
Talvez o caso mais conhecido seja o do DDT, um inseticida utili-
zado para o controle de pragas, em uso desde os anos 1950, e que
devido à sua alta toxidade ambiental e humana, e sua escassa ou
nula biodegradabilidade, foi proibido em muitos países. No ano
de 1972, a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos
vetou seu uso, ao considerá-lo um “cancerígeno potencial para
as pessoas”. Outras agências internacionais, como o Programa
das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), a Agência
Internacional de Investigação em Câncer, entre outras, também
denunciaram tais efeitos. Ainda assim, aqueles que mantêm a
afirmação inicial, todavia, se mostram, surpreendentemente

206
O negócio da comida

partidários do DDT, e continuam defendendo-o, apesar de


todas as evidências.
Infelizmente, o DDT não é um caso isolado. A cada ano, pro-
dutos químicos sintéticos, utilizados na agricultura industrial, são
retirados do mercado pela Comissão Europeia. Sem ir mais longe,
em 2012 o Tribunal Superior de Lyon concluiu que a intoxicação
do agricultor Paul François, e as sequelas em sua saúde, foram
devidas ao uso e manipulação do herbicida Lasso, da Monsanto,
que não informava nem a correta utilização do produto, nem
seus riscos sanitários (Bellver, 2012). A própria FAO afirma que
o uso de pesticidas na agricultura tem efeitos negativos em vários
níveis: 1) nos sistemas aquáticos, já que sua alta toxicidade e a
persistência de químicos degradam as águas; 2) na saúde humana,
pois a inalação e a ingestão, assim como o contato desses produtos
químicos com a pele, incidem no número de casos de câncer,
deformidades congênitas, deficiências no sistema imunológico,
mortalidade pulmonar; 3) no meio ambiente, com a morte de
organismos, geração de cânceres, tumores e lesões em animais,
através da inibição reprodutiva e o rompimento endócrino, en-
tre outras (Ongley, 1996). Quais fitossanitários serão proibidos
amanhã? Impossível saber. Até quando seguiremos sendo cobaias?

Jogando com a saúde dos países do Sul


Capítulo à parte seria analisar o impacto dos agrotóxicos na
saúde das comunidades que ficam no entorno das plantações
onde são aplicados. Inumeráveis têm sido os casos reportados,
especialmente nos países do Hemisfério Sul, onde seu uso é mais
permissivo. Em Córdoba, na Argentina, temos o documentadís-
simo caso das Madres de Ituzaingó,* em pé de guerra contra as

* Mais informações: http://madresdeituzaingo.blogspot.com.es/.

207
E st her Vi va s E stev e

fumigações nas plantações de soja ao redor de sua comunidade,


responsáveis pelo alto número de casos de câncer, malformação
congênita em recém-nascidos, anemia hemolítica etc., que afe-
tam a população. Em vários países da América Central, o uso
sistemático do Dibromo Cloropropano (DBCP) em plantações
da Standard Fruit Company, da Dole Food Corporation Inc. e
da Chiquita Brands International foi responsável por provocar,
em seus trabalhadores, centenas de mortes, cânceres, deficiências
mentais, deformações genéticas, esterilidade e dores por todo o
corpo. Embora ainda em 1975 a Agência de Proteção Ambiental
dos Estados Unidos tenha considerado o DBCP um possível
agente cancerígeno, as transnacionais bananeiras continuam a
utilizá-lo (Boix, 2007). A lista poderia continuar com casos de
comunidades afetadas pelo uso de agrotóxicos na Índia, Tailân-
dia, Paraguai e muitos outros países (Adithya, 2009; Torres y
Capote, 2004; Arias et al., 2006). A agricultura industrial gera
enfermidade e morte, os dados assim o demonstram. Quem o
nega, mente.
Se falamos de alimentação e saúde, é necessário referirmo-nos
também ao negativo impacto de alguns aditivos alimentares (aro-
matizantes, colorantes, conservantes, antioxidantes, edulcorantes,
espessantes, potencializadores do sabor, emulsionantes etc.) em
nosso organismo. Está claro que, desde a origem da comida,
existem métodos para conservá-la, e é fundamental que assim
seja, senão o que comeríamos? No entanto, o desenvolvimento da
indústria alimentar tem generalizado o uso de aditivos químicos
sintéticos para adaptar a comida às características de um merca-
do quilométrico, consumista (potencializando a cor, o sabor e o
aroma do que comemos, para tornar a comida mais apetecível e
atrativa) e que adoça artificialmente os alimentos com produtos
que deixam muito a desejar.

208
O negócio da comida

O aspartame e o glutamato monossódico


Não se trata de colocar todos os aditivos no mesmo saco, mas,
sim, de assinalar o impacto que alguns deles podem ter em nosso
organismo, especialmente os aditivos sintéticos, em comparação
com os naturais. O livro Los aditivos alimentarios, de Corinne
Gouget (2008), assinala concretamente dois deles: o aspartame
(codificado na Europa com o número E951) e o glutamato mo-
nossódico (E621).
O aspartame é um edulcorante não calórico empregado em re-
frescos e comida light. Alguns estudos apontam as consequências
negativas que pode ter em nossa saúde. A Fundação Ramazzini
de Oncologia e Ciências Ambientais, com sede na Itália, publicou
em 2005, na revista Environmental Health Perspectives, os resul-
tados de um exaustivo trabalho, no qual, a partir de experiências
com ratos, assinala os possíveis efeitos cancerígenos do aspartame
para o consumo humano. O informe concluía que o aspartame
é um agente carcinogênico potencial, mesmo numa dose diária
de 20 miligramas por quilograma – muito abaixo das 40 mg/kg
de ingestão diária aceita pelas autoridades sanitárias europeias
(Soffritti, et al., 2006). A Fundação Ramazzini sentenciava que
era necessário revisar as diretrizes sobre utilização e consumo
do produto. Mesmo assim, a Agência Europeia de Segurança
Alimentar (EFSA, sigla em inglês) foi omissa em relação a essas
conclusões. E, seguindo sua pauta habitual com os informes
científicos críticos, desautorizou o trabalho. Não esqueçamos os
laços estreitos da EFSA com a indústria alimentar e biotecnoló-
gica, por exemplo, o fato da presidente da Agência Espanhola de
Segurança Alimentar, Ángela López de Sa Fernández, ter sido
diretora da Coca-Cola.
O glutamato monossódico, por sua vez, é um aditivo poten-
cializador do sabor, muito utilizado em fiambres, hambúrgueres,

209
E st her Vi va s E stev e

mesclas de especiarias, sopas de pacote, molhos, batatas fritas,


salgadinhos – estes últimos, muito consumidos pelas crianças.
Em 2005, o catedrático de fisiologia e endocrinologia experimen-
tal da Universidad Complutense de Madrid, Jesús Fernández-
-Tresguerres, um dos 35 membros da Real Academia Nacional
de Medicina, publicou nos Anales de la Real Academia Nacional
de Medicina os resultados de um grande trabalho, em que analisa
os efeitos da ingestão do glutamato monossódico no controle do
apetite. As conclusões foram demolidoras: tal ingestão aumentava
a fome e a voracidade em 40% e impedia o bom funcionamento
dos mecanismos inibidores do apetite, o que contribuía ao incre-
mento da obesidade. E, a partir de certas quantidades, poderia
ter efeitos tóxicos sobre o organismo (Fernández-Tresguerres,
2005). Informalmente, essa substância chegou a ser chamada de
“a nicotina dos alimentos”.
Para além do aspartame e do glutamato monossódico, outros
aditivos têm se mostrado prejudiciais para a saúde humana, e
acabaram sendo retirados do mercado. Em 2007, a Comissão
Europeia proibiu o uso do corante vermelho 2G (E128), utiliza-
do particularmente em salsichas e hambúrgueres, ao considerar,
depois de uma reavaliação da EFSA, que ele poderia ter “efeitos
genotóxicos e carcinogênicos” (Agencia Catalana de Seguridad
Alimentaria, 2008). A avaliação toxicológica anterior havia sido
realizada 25 anos atrás. Outros estudos têm sinalizado como a
mescla de alguns corantes, frequentemente utilizados em refres-
cos e guloseimas, combinados com a ingestão de outros aditivos
também presentes nesses produtos, provocariam hiperatividade
infantil. Assim concluía um estudo sobre os aditivos alimentares
publicado na revista The Lancet, em 2007: “As cores artificiais,
ou o conservante benzoato de sódio (ou ambos) na dieta pro-
vocam um aumento da hiperatividade em crianças de 3 anos,

210
O negócio da comida

e em crianças entre 8 e 9 anos” (McCann, D. et al., 2007). O


maravilhoso e chocante documentário francês “Nossos filhos
nos acusarão”, de Jean-Paul Jaud, nos recorda, como assinala seu
título, a responsabilidade que temos.
A agricultura ecológica, ao contrário, prescinde desses adi-
tivos químicos sintéticos, colocando no centro da produção de
alimentos a saúde das pessoas e a do planeta.

Eficiência e preço
“A agricultura ecológica é pouco eficiente e cara”, dizem seus
detratores. Aqueles que fazem essa afirmação se esquecem de que
é precisamente o atual modelo de agricultura industrial que des-
perdiça anualmente um terço dos alimentos que são produzidos
para consumo humano – à escala mundial, cerca de um bilhão e
300 milhões de toneladas de comida, segundo os dados da FAO
(2012b). Trata-se de uma agricultura de “usar e jogar fora”. Em
consequência, o que é aqui o ineficiente? Para além dessas cifras,
é óbvio que o atual modelo de agricultura industrial, intensiva e
transgênica não satisfaz às necessidades alimentares das pessoas.
A fome, num mundo onde se produz mais comida do que nunca,
é o melhor exemplo.
Por sua parte, a agricultura ecológica e de proximidade tem
demonstrado que garante melhor a segurança alimentar do que
a agricultura industrial. E permite uma maior produção de co-
mida, especialmente nos ambientes desfavoráveis, nas palavras
de Olivier de Schutter (2010), apoiando-se em seu relatório “A
agroecologia e o direito à alimentação”. A partir dos dados ex-
postos neste trabalho, a reconversão de terras em países do Sul
ao cultivo ecológico aumentou sua produtividade em até 79%, e,
particularmente na África, a reconversão permitiu um aumento
de 116% nas colheitas. Os números falam por si só.

211
E st her Vi va s E stev e

Se nos referirmos ao preço, sobretudo se o comparamos com


a qualidade, uma vez mais a agricultura ecológica sai em melhor
posição. Talvez não o pareça à primeira vista, porque há um dis-
curso único, que se repete e se repete e se repete, que nos diz que
o ecológico é sempre mais caro. Entretanto, não é assim. Com
frequência, depende de onde e do que compramos. Não é o mesmo
comprar em um supermercado ecológico, ou em uma loja gourmet,
do que comprar diretamente do agricultor, seja num mercado ou
através de um grupo ou cooperativa de consumo agroecológico.
Nos primeiros, os preços costumam ser mais caros do que nos
segundos, onde o custo pode ser igual, ou mesmo inferior, ao
do comércio tradicional, por um produto da mesma qualidade.
À parte, teríamos que nos perguntar como pode ser que de-
terminados produtos ou alimentos no supermercado sejam tão
baratos. Estamos pagando seu preço real? Qual é sua qualidade?
Em que condições foram elaborados? Quantos quilômetros per-
correram desde o campo? Com frequência, um preço muito baixo
esconde uma série de custos invisíveis: condições trabalhistas pre-
cárias na origem e no destino, má qualidade do produto, impacto
ambiental etc. Existe uma série de gastos ocultos que acabamos
socializando entre todos, porque se a comida percorre longas
distâncias, e se agudiza a mudança climática, com a emissão de
gases de efeito estufa, quem paga isso? Se comemos alimentos de
baixa qualidade, que têm um impacto negativo em nossa saúde,
quem o custeia? Definitivamente, como diz o refrão: “Pão para
hoje e fome para amanhã”.
E não somente isso. Quando entramos no “super”, o que
compramos? Calcula-se que entre 25% e 55% da compra no
supermercado é compulsiva, fruto de estímulos externos que nos
induzem a consumir à margem de qualquer raciocínio. Quantas
vezes já fomos ao supermercado para comprar quatro coisas, e

212
O negócio da comida

acabamos saindo com o carrinho cheio? O supermercado é uma


máquina de vender, não cabe a menor dúvida. Um dos espaços
mais estudados de nossa vida cotidiana para que nossa compra
nunca fique à própria sorte.
Outra afirmação, mil vezes repetida, é a que diz que “a agri-
cultura ecológica é só para os ricos”, ou, se quem fala busca o
insulto – algo frequente no setor “antiecológico” –, nos dirá que “a
agricultura ecológica é só para pretensiosos”. Seja num caso, seja
no outro, àqueles que afirmam isso certamente, nunca puseram
um pé num grupo ou cooperativa de consumo agroecológico,
porque seus membros, em geral, podem ser qualificados com
muitos adjetivos, mas de “ricos” e “pretensiosos” têm muito pouco.
Trata-se de pessoas que optam por outro modelo de agricultura
e alimentação, a partir da informação, de tomar consciência, de
buscar dados contrastados sobre os impactos daquilo que come-
mos em nossa saúde, no meio ambiente, no campesinato.
Em nossa vida, somos “instruídos” a pensar que “gastamos di-
nheiro em comida”, mas é de fato um gasto ou um investimento?
A educação é a chave. Portanto, é fundamental fazer chegar
os princípios e as verdades da agricultura ecológica ao conjunto
da população. Comer bem e ter direito a comer bem é assunto
de todos.

Uma “agricultura ecológica” a serviço do capital


“A agricultura ecológica não tem fins sociais e agudiza a pe-
gada de carbono”, afirmam seus críticos. A pergunta, então, é:
de que agricultura ecológica estamos falando? Uma das ameaças
à agroecologia é sua cooptação, a assimilação de sua prática por
parte da indústria agroalimentar. Cada vez mais, grandes em-
presas do agronegócio e os supermercados aderem a esse modelo
de agricultura livre de pesticidas e aditivos químicos sintéticos,

213
E st her Vi va s E stev e

esvaziando-a de qualquer pretensão de mudança social. Seu obje-


tivo é claro: neutralizar a proposta! Trata-se de uma “agricultura
ecológica” a serviço do capital, com alimentos quilométricos e
escassos direitos trabalhistas. Essa não é a alternativa na qual
apostamos por uma mudança no modelo agroalimentar. A
agricultura ecológica só tem sentido a partir de uma perspectiva
social, local e camponesa, como sempre tem defendido a maioria
de seus impulsionadores.
Por outro lado, me surpreende que os detratores da agricul-
tura ecológica se preocupem tanto com a pegada de carbono e o
impacto dos gases de efeito estufa no meio ambiente. Sua opção
por uma agricultura industrial é exatamente uma das principais
responsáveis pela poluição. Segundo a organização Grain (2011b),
entre 44% e 55% dos gases de efeito estufa são provocados pelo
conjunto do sistema agroalimentar, como consequência da soma
das emissões geradas pelas mudanças no uso do solo e o desflo-
restamento; a produção agrícola; o processamento, o transporte
e embalagem dos alimentos; e os desperdícios gerados. Se a
mudança climática inquieta tanto os críticos da agroecologia,
lhes sugeriria que optassem por uma agricultura ecológica, local
e camponesa.

Quem impõe o quê?


“Estão nos impondo a agricultura orgânica. Eu quero comer
transgênico, mas não me deixam”, dizem alguns, ainda que isso
pareça uma piada. Entretanto, quem impõe o quê? A agricultura
industrial, sim, foi resultado de uma imposição, a da “revolução
verde”. Promovida desde os anos 1940, e em décadas posteriores,
por governos como o dos Estados Unidos e fundações como a
Ford e a Rockefeller, significou a progressiva substituição de
um modelo de agricultura tradicional – no qual os camponeses

214
O negócio da comida

tinham a capacidade de decidir sobre o que e como produziam


– por uma agricultura industrial, “viciada” em petróleo e em
fitossanitários, que conduziu à privatização dos bens comuns,
em particular as sementes. Muitos camponeses não tiveram es-
colha. Hoje, vemos as consequências desse modelo agrário: fome,
descampenização, patentes sobre as sementes, monopolização de
terras etc.
As imposições agrárias principais têm sido, sem dúvida, a
do cultivo transgênico e a impossível coexistência entre agricul-
tura transgênica e a agricultura convencional ecológica, como
assim nos demonstra (Cipriano, Carrasco y Arbós, 2006). Os
cultivos transgênicos contaminam os outros através do ar e da
polinização, e desse modo funciona o que poderíamos chamar
de “ditadura transgênica”. Em Aragão e Catalunha, zonas onde
mais se cultivam transgênicos em toda a Europa, a produção de
milho orgânico praticamente desapareceu, devido aos múltiplos
casos de contaminações sofridas. As evidências são irrefutáveis.
A enumeração de frases com o único propósito de desautorizar
a agricultura ecológica poderia continuar. As falsidades vertidas
são incontáveis. Entretanto, quem pode considerar, em função
do que vimos, que a agricultura e a alimentação industrial, in-
tensiva e transgênica seja mais respeitosa com as pessoas e o meio
ambiente que a ecológica?
Vocês decidem.

215
O QUE ENTENDEMOS POR
COMÉRCIO JUSTO?

Olhando o comércio justo pela soberania alimentar


Olhar o comércio justo com as lentes da soberania alimentar.
Este é o desafio, se quisermos desenvolver relações comerciais
justas, tanto em escala internacional quanto local. Uma relação
na qual não se imponham os interesses de umas poucas trans-
nacionais, mas, sim, as necessidades das pessoas e o respeito aos
ecossistemas.
Não queremos mais comércio, mas, sim, mais justiça, social e
ecológica. Optar por um comércio justo – radicalmente transfor-
mador das relações de produção, distribuição e consumo – passa
por reinterpretá-lo. E levá-lo à prática a partir da demanda política
da soberania alimentar.

Quando o “ discurso único” se desmorona


Muitas águas já rolaram desde o início do movimento por
um comércio justo na Espanha, nos anos 1980, quando se levava
a cabo uma atividade comercial irregular e voluntarista. E não
existiam canais de distribuição estáveis para além dos pontos de
venda em feiras, em jornadas solidárias, concertos etc. Só em
meados da década de 1990 é que o movimento experimentou
E st her Vi va s E stev e

crescimento e consolidação importantes. As organizações vete-


ranas aumentaram, então, seu tamanho. E algumas ampliaram
suas atividades, assumindo tarefas de importação e distribuição
de produtos, enquanto o número de organizações se ampliava em
60%, com a incorporação de novas ONGs, lojas, importadoras
e distribuidoras. O volume de vendas, nesse mesmo período,
também cresceu consideravelmente, passando de 13 milhões de
pesetas em 1990 a 700 milhões em 1997 (EFTA, 1998).
O desenvolvimento e o crescimento do movimento por um
comércio justo não ficou isento de debates nem de polêmicas ao
longo desses anos, tanto “para dentro” quanto “para fora”. A ne-
cessidade de enfrentar novos desafios colocou em relevo diferenças
fundamentais entre as organizações acerca do que se entende
por comércio justo, qual é seu objetivo, através de que meios se
realiza, com que aliados etc. Deste modo, o “discurso único”
acerca do comércio justo, centrado nas desigualdades comerciais
Norte-Sul, que deu origem ao movimento, se desmoronou. Uma
situação que aconteceu não somente na Espanha, mas que teve
lugar em países como a França e a Itália, e posteriormente em
outros, como Portugal e Grécia.
O movimento por um comércio justo, ao longo desses anos,
não ficou imune aos acontecimentos que ocorreram em seus
arredores. A emergência do ciclo antiglobalização, nos finais dos
1990, e sua crítica às políticas da OMC, os debates acerca das
relações comerciais em escala global e as contribuições para outro
modelo de produção agrícola e alimentar impactaram a análise
e a prática de algumas de suas organizações.
A partir dos anos 2000, podemos considerar que, na Espanha,
foram se configurando dois polos de referência no movimento por
um comércio justo. Por um lado, uma visão que se restringe aos
princípios originais que deram lugar a este movimento (critérios

218
O negócio da comida

justos de produção na origem, apoio às organizações produtoras


na periferia, ênfase na comercialização e na sensibilização no
Norte); que investiu na colaboração com estratégias de respon-
sabilidade social corporativa com empresas e transnacionais; que
trabalha com a grande distribuição e que conta com uma presença
pública hegemônica (em âmbito social, institucional, mediático e
empresarial). A este, em consequência, denominaremos de polo
“tradicional e dominante”.
Por outro lado, há uma visão mais integral do que é o comércio
justo, que não se centra somente nas condições de produção justas
na origem, mas que considera toda a cadeia de comercialização
do produto, desde sua elaboração na origem, até sua distribuição
e venda final; que não defende unicamente relações de justiça
comercial em escala global, mas também no local; que rechaça
colaborar com transnacionais da indústria agroalimentar e su-
permercados, optando por estabelecer alianças com movimentos
sociais de base e que tem uma presença pública minoritária. Este
é o que chamamos polo “global e alternativo” (Vivas, 2006).
Temos que ter presente que o movimento por um comércio
justo não é algo estanque, ainda que encontremos organizações
estáveis e com papel de liderança em ambos os polos de referência.
Uma parte das organizações flutua entre um e outro, segundo o
tema e o modo como se veem afetadas pelas problemáticas com
que se deparam. Poderíamos, portanto, caracterizar a situação
como uma situação de “polarização dinâmica”.

A soberania alimentar como bússola


Estes dois grandes polos de referência, sensibilidades e inter-
pretações sobre o que é o comércio justo, foram se configurando,
como dissemos anteriormente, à medida que suas organizações
foram tendo que enfrentar novos debates e desafios: o prioritário

219
E st her Vi va s E stev e

é vender produtos de comércio justo? E neste caso, a que preço?


Com quais aliados? Como chegar a mais pessoas? Que equilíbrio
se necessita entre comercialização e sensibilização? Devemos
trabalhar com o comércio justo só em escala internacional, ou
também local? Tem sentido um sem o outro?
A emergência, em meados dos anos 1990, da proposta política
da soberania alimentar, advinda da Via Campesina, e o eco que
conseguiu, depois, com o ciclo antiglobalização, interpelaram
algumas das organizações do movimento por um comércio justo
– as que situamos no polo “global e alternativo” – e as orientaram,
atuando como guia e bússola, a se posicionarem nesses debates.
Ainda que o comércio justo enfatize a demanda de justiça
na comercialização internacional – pondo ênfase nos critérios de
produção na origem –, não podemos esquecer que estes repre-
sentam, exclusivamente, um ramo de uma cadeia de produção,
distribuição e consumo muito mais ampla. Nem que a justiça nas
práticas comerciais seja indissociável da justiça em cada um dos
ramos desta cadeia – desde a produção até a distribuição final –
seja no Sul, seja no Norte. A partir deste olhar sobre o todo que
a soberania alimentar orienta um comércio justo que não apenas
busque transformar um sistema comercial injusto, mas todo um
modelo produtivo e consumista irracional e insustentável (Vivas,
2010a).
A soberania alimentar dota de perspectiva política um setor
do movimento por um comércio justo, estabelecendo as linhas
de base de sua teoria e prática.

Do local e do global
A maior parte das organizações que podemos demarcar no
polo “tradicional e dominante” tem uma visão unidirecional
do comércio justo Sul-Norte. Trabalhar a favor da justiça nas

220
O negócio da comida

transações comerciais, desde meu ponto de vista, implica reivin-


dicar também essa justiça no comércio local, seja no Sul, seja no
Norte. Alguns grupos, ativistas e intelectuais latino-americanos
optam por esta visão, a especialista brasileira em comércio justo
Rosemary Gomes (2007) afirma que:
O comércio justo está baseado historicamente na exportação Sul-Norte,
e cremos que deve ultrapassar esse limite de origem. (...) Avançar pro-
movendo o desenvolvimento de mercados internos justos e solidários, e
relações comerciais regionais Sul-Sul.

Na mesma direção se posiciona o sociólogo uruguaio Pablo


Guerra (2007):
O comércio justo foi criado e desenvolvido com uma visão muito paterna-
lista, e apesar dos esforços contrários, também fortemente eurocentrista.
Em outros termos, diríamos que o comércio justo deve progredir de uma
concepção altruísta a uma concepção solidária.

Na perspectiva da soberania alimentar, o eixo de gravidade


se centra no local, enxergando o comércio internacional como
um complemento. De tal modo que a prioridade já não é “vender
mais” no Norte, mas, sim, que os produtores e consumidores nos
países do Sul possam produzir e alimentar-se de forma saudável. E
que tenham a capacidade de decidir sobre suas políticas agrícolas
e alimentares. Este marco é o melhor antídoto a um comércio
justo que, apesar de sua etiqueta, pode cair com facilidade nas
mesmas práticas do comércio internacional que diz combater.
Um produtor de comércio justo tem que ter assegurado, pri-
meiramente, sua segurança e soberania alimentar. Que sentido
teria investir na exportação de café, cacau, quinoa, através do
comércio justo, se aqueles que os produzem não têm o que comer?
Isso, que pode parecer óbvio, não é tanto quando analisamos
algumas práticas. Ao pôr ênfase na exportação, esta questão pode
ficar em segundo plano. Vender mais café via comércio justo não

221
E st her Vi va s E stev e

garante que seus produtores saiam da pobreza. Assim comprovou


uma investigação realizada pela organização internacional Rede
Agroecológica Comunitária, que, depois de entrevistar vários
produtores de café de comércio justo no México, Guatemala, El
Salvador e Nicarágua, concluiu que nem sua segurança alimentar,
nem sua capacidade para mandar suas filhas e filhos à escola eram
superiores à média. A melhora de sua assistência sanitária e edu-
cativa, afirmavam, respondia mais às redes locais de apoio mútuo
que ao preço maior que era pago por seu café (Holt-Giménez,
Bailey y Sampson, 2008).
Outro elemento a ter em conta é onde se comercializam os
produtos. Ao priorizar o comércio internacional, mesmo que “jus-
to”, vemos – como também sucede com o comércio convencional
de café – que onde menos se consume um café de qualidade é
precisamente nos países produtores. Investir numa produção
e numa distribuição locais garante seu consumo na origem, o
que implica não apenas em dar saída aos produtos em escala
nacional, mas também um maior benefício para a economia de
base e um menor impacto ambiental no que se refere ao trans-
porte de mercadorias. Experiências como as da União Nacional
de Organizações Regionais Camponesas Autônomas (Unorca),
no México, que promove no país a comercialização do café de
comércio justo, produzido por pequenos camponeses locais, são
exemplos a seguir (Montagut y Vivas, 2009).
Olhar com as lentes da soberania alimentar nos permite, igual-
mente, combater outra das práticas que se levam a cabo a partir
de uma visão “tradicional e dominante”: importar produtos que se
produzem aqui, como vinho, mel, azeite etc., com componentes
sociais e ecológicos equivalentes. Vender mais, com o consequente
benefício para as comunidades de origem, justifica essas práticas.
Mas do ponto de vista da soberania alimentar, e como defendem

222
O negócio da comida

as organizações situadas no polo “global e alternativo”, isso não


tem nenhum sentido, já que este benefício não compensa nem o
impacto ambiental de seu transporte, nem a competição com o
produtor ou com o artesão no Norte.

Tomar a parte pelo todo


Outra debilidade é tomar a parte pelo todo. Considerar que
“comércio justo” é um pacote de café, de cacau, de chá, quando em
realidade é muito mais. A partir de um ponto de vista “tradicional
e dominante”, ao pôr ênfase nos critérios de produção na origem
(salários dignos, igualdade de gênero, respeito ao meio ambiente
etc.), a visão de conjunto da cadeia de comercialização se perde.
Em consequência, se aplica uma série de critérios de justiça
social e ecológica na origem, mas não aos demais atores que
participam da cadeia, caindo em uma visão muito reducionista
do que são as relações comerciais. Dá-se, assim, o paradoxo de
se punir o produtor no Sul, se não cumpre tais critérios, e não
ao vendedor no Norte, mesmo que – como no caso dos grandes
centros comerciais ou das transnacionais da agroindústria – ele
não cumpra nenhuma dessas garantias.
Não se pode entender o comércio justo como uma prática iso-
lada em relação ao modelo de produção, distribuição e consumo.
Não se trata de uma “ilhota” à margem do sistema capitalista,
mas nele se insere. Estar conscientes disso, como nos coloca a
perspectiva política da soberania alimentar, é a melhor maneira
de lutar contra os “cantos de sereia” de um capitalismo pintado
de solidário e de verde.

Vender: quanto mais, melhor?


Querer “vender quanto mais, melhor”, ainda que possa
parecer contraditório, não é sempre a melhor opção. Vender

223
E st her Vi va s E stev e

mais produtos de comércio justo, a que preço? Através de que


canais de distribuição? Com que estratégias comerciais? São
perguntas-chave para não nos precipitarmos ao escolher “com-
panheiros de viagem”. Frequentemente, as organizações que
situamos no polo “tradicional e dominante”, justificam a venda
de produtos de comércio justo em supermercados, ou através
de transnacionais da indústria agroalimentar, com o fim teó-
rico de fazer chegá-los a mais gente, conseguir mais vendas, e,
portanto, mais renda para as organizações do Sul. Entretanto,
há uma questão fundamental a se ter em conta: trabalhando
com os mesmos que geram e se beneficiam das regras injustas
do comércio internacional, conseguiremos mudar tais políticas?
Creio que não.
As empresas da grande distribuição têm visto na comer-
cialização de produtos de comércio justo, como também dos
ecológicos, um novo nicho de mercado e uma opção para o
marketing empresarial. Carrefour, Eroski, El Corte Inglés,
Alcampo, entre outras – apesar de quererem se dotar de uma
imagem “equitativa e responsável” com a comercialização des-
ses produtos – não têm mudado suas práticas. E continuam
acumulando denúncias de políticas antissindicais, falta de
transparência na fixação do preço de seus produtos, competição
desleal com o comércio local etc.
Transnacionais como Nestlé, Kraft Foods, Procter&Gamble,
McDonald’s ou Starbuck’s têm promovido marcas próprias de
comércio justo, e distribuem em alguns de seus estabelecimentos
produtos certificados. O caso da Nestlé é um dos que tem gerado
maior polêmica. Como a empresa mais boicotada do mundo,
acusada de violar direitos ambientais e humanos, pode promover
o comércio justo? Em 2005, a Nestlé, na Grã-Bretanha, lançou
seu primeiro café de comércio justo: o Nescafé Partner’s Blend,

224
O negócio da comida

certificado pela Fairtrade Foundation (FLO Internacional*). O


diretor da certificadora, Harriet Lamb, demonstrou sua satis-
fação ao afirmar que a decisão tomada pela Nestlé resultava da
pressão exercida pela cidadania, e considerava a Nestlé como
uma “grande multinacional que escuta as pessoas e lhes dá o
que elas pedem” (Jacquiau, 2006).
A certificação de produtos de comércio justo é outra questão
controversa e polêmica. Para o setor “tradicional e dominante”,
a certificação permite alcançar mais gente, fazendo com que
“grandes superfícies” (centros comerciais) e transnacionais co-
mercializem estes produtos. Consideram como uma realização
do movimento. Para o “polo global e alternativo”, a certificação
responde somente a uma lógica comercial, e o selo FLO Interna-
cional acaba excluindo a loja de comércio justo como garantia
da equidade do produto. A partir dessa certificação, qualquer
supermercado ou grande superfície fica legitimado a vender um
produto de comércio justo com o selo correspondente. Ninguém
pode evitar que Wal-Mart, Carrefour, Eroski etc., tenham em
seus estabelecimentos produtos certificados de comércio justo,
nem que a Nestlé, Chiquita ou Dole promovam marcas próprias
de comércio justo e solidário.
Outra prática polêmica é a certificação de grandes planta-
ções privadas no Sul, com o objetivo de atender ao aumento
da demanda do mercado de comércio justo. A Coordenadora
Latino-Americana e do Caribe de Pequenas Produtoras de Co-

* O selo FLO Internacional (Fairtrade Labelling Organizations) foi criado em


1997, com o objetivo de homogeneizar critérios de certificação dos produtos de
comércio justo, e de integrar em uma única certificadora internacional iniciativas
surgidas anteriormente em outros países, como Max Havelaar na Suíça, Bélgica
e França; Transfair, na Alemanha, Itália, Estados Unidos, Áustria; Fairtrade, na
Grã-Bretanha e Irlanda, entre outros.

225
E st her Vi va s E stev e

mércio Justo (Clac) denuncia este fato ao considerar que essa


prática antepõe os interesses do mercado às necessidades dos
pequenos produtores (Setem, 2006). No que pesem as críticas,
as transnacionais da indústria bananeira, como Chiquita e Dole,
têm conseguido a certificação de suas plantações de banana. E
estas já podem ser encontradas nos supermercados britânicos
e estadunidenses.

Aprendizagens mútuas
A partir do que já assinalamos, podemos concluir que só um
discurso e uma prática de comércio justo que rompam com as
injustas políticas agrárias e comerciais, tanto no Norte quanto
no Sul, nos permitirão avançar em direção a um modelo social
e ecológico mais justo.
A soberania alimentar propõe um paradigma global al-
ternativo ao atual sistema agroalimentar, desde a produção,
passando pela distribuição, até o consumo: ao mesmo tempo
que o comércio justo incide em uma parte – a comercialização
e distribuição –, tem-se em conta, desde a perspectiva “global
e alternativa”, o conjunto da cadeia. É aqui onde a soberania
alimentar e o comércio justo se encontram. E a primeira dá uma
perspectiva ao segundo.
Um comércio justo é impossível fora do marco político da
soberania alimentar. Se os camponeses não têm acesso aos bens
naturais (água, terra, sementes); se os consumidores não podem
decidir, por exemplo, sobre o consumo de alimentos livres de
transgênicos; se os países não são soberanos para estabelecer suas
políticas agrícolas e alimentares; não pode existir um comércio
justo, porque as transações comerciais seguirão em mãos de em-
presas transnacionais, apoiadas por elites políticas, que buscam
fazer negócio com a agricultura e com a alimentação.

226
O negócio da comida

Na medida em que o comércio justo, como é o caso na visão


“tradicional e dominante”, não tem como demanda estratégica a
soberania alimentar, nem se situa nesta perspectiva política, suas
práticas comerciais, mais que avançar para um comércio com jus-
tiça, contribuem, no melhor dos casos, à venda de alguns produtos
de comércio justo em escala internacional – em percentagens
anedóticas, se as compararmos com o fluxo comercial global.
No pior dos casos, acabam limpando a imagem de determinadas
transnacionais; justificando suas injustas práticas comerciais,
sociais e trabalhistas, e contribuindo para uma percepção social
favorável a elas, escondendo, assim, as causas de fundo dos dese-
quilíbrios Norte-Sul. Desse modo, o comércio justo pode acabar
sendo uma alternativa muito limitada. Ou, então, uma correção
apenas parcial ao paradigma comercial dominante.
A soberania alimentar também deveria incorporar as deman-
das do comércio justo, desde uma perspectiva “global e alterna-
tiva”, pois elas permitem aprofundar alguns critérios de justiça
social e ecológica nos intercâmbios comerciais. Ao mesmo tempo,
a experiência e o saber acumulados pelo comércio justo Norte-
-Sul pode ser muito útil na hora de enfrentar novos desafios na
comercialização e distribuição alternativa. Se o comércio justo
Norte-Sul consegue aplicar alguns critérios de justiça, e uma alta
transparência e confiança nos intercâmbios comerciais de “longa
distância”, aplicar essas mesmas práticas nos circuitos curtos de
comercialização deveria ser muito mais fácil.
A complexidade do comércio justo em escala internacional,
com intercâmbios que vão além da relação direta entre agricultores
e consumidores, e que envolvem mais atores (distribuidores, trans-
formadores, transportadores etc.), pode nos dar instrumentos,
na medida em que é necessário complexificar os circuitos curtos
de comercialização, no quadro da economia social e solidária.

227
E st her Vi va s E stev e

Além disso, a soberania alimentar não nega o intercâmbio co-


mercial internacional, apesar de pôr ênfase na comercialização
local, dado que as práticas de comércio justo internacional para
aqueles produtos que não se produzam no Norte (café, cacau,
açúcar etc.) – tendo, portanto, que serem importados do Sul, e
vice-versa – continuarão sendo necessárias.
As lentes da soberania alimentar são imprescindíveis para do-
tar de perspectiva um comércio justo radicalmente transformador.
Por outro lado, a experiência, teórica e prática, acumulada pelo
movimento por um comércio justo, é uma boa bagagem a se ter
em conta por aquela abordagem.

Comércio justo no “super”?


Comércio justo no “super”? Frente a esta pergunta, poderíamos
pensar que a presença crescente de produtos de comércio justo nas
gôndolas dos supermercados é uma tendência positiva, que permite
um fácil acesso a estes alimentos e um número mais alto de vendas.
Mas o comércio justo se limita somente a uma questão comercial?
Que tipo de comércio justo pode levar a cabo empresas com du-
vidosas trajetórias de respeito aos direitos trabalhistas, ambientais
e sociais? Comércio justo no “super” é realmente comércio justo?
Frente ao crescente interesse pelo comércio justo por parte de
“grandes superfícies” como Carrefour, Alcampo, Eroski e outros,
deveríamos nos perguntar o que há por trás dessa estratégia e suas
declarações de boas intenções. Todos estamos de acordo que, para
mudar as injustas regras do mercado, é fundamental uma tarefa
de sensibilização e conscientização sobre quais são as causas e
consequências do atual modelo comercial e econômico. Contudo,
as empresas da grande distribuição são capazes de realizar esta
tarefa? Os mesmos que se beneficiam da globalização capitalista
estarão aptos para lutar contra ela?

228
O negócio da comida

Algumas considerações
Para dar respostas às perguntas formuladas, gostaria de fazer
três considerações.
Em primeiro lugar: comércio justo não significa somente ven-
der. O comércio justo tem por objetivo mudar as regras injustas
do comércio internacional, e submeter o comércio às necessidades
dos povos. Vender não deveria ser um fim em si mesmo, mas
um meio para sensibilizar as pessoas sobre esses temas e apoiar
solidariamente os produtores do Sul. Vender através dos grandes
centros comerciais nunca nos permitirá modificar tais regras
injustas do comércio, já que estes são os primeiros interessados
em manter um modelo comercial injusto, que lhes rende lucros
e importantes benefícios econômicos.
Em segundo lugar: o comércio justo não é uma lista de cri-
térios, nem uma mera transferência monetária Norte-Sul. Não
podemos limitá-lo a uma série de normas, aplicadas unicamente
à produção na origem. Trata-se de algo muito mais complexo
do que um produto elaborado com base em princípios de justiça
social e ambiental. O comércio justo é um processo que vai desde
o produtor até o consumidor, e do qual participam muitos outros
atores. Não podemos submeter o produtor no Sul ao cumprimento
de uma série de requisitos na produção (pagamento de um salário
digno, organização democrática, políticas de gênero, respeito ao
meio ambiente) e não aplicar ao resto da cadeia estes mesmos
critérios. Se impuséssemos os princípios do comércio justo aos
supermercados que vendem alimentos com a etiqueta de “justo”,
nenhum deles os cumpriria. Dessa forma, temos que transcender
o olhar assistencial sobre os produtores no Sul e avançar a uma
prática de solidariedade internacionalista.
Em terceiro lugar: o comércio justo não é apenas Norte-Sul.
A justiça nas práticas comerciais não deve se limitar ao comércio

229
E st her Vi va s E stev e

entre países do “centro” e da “periferia”. Devemos reclamar uma


justiça comercial tanto em âmbito internacional quanto na escala
nacional e local, e exigir um comércio justo Norte-Norte e Sul-
-Sul. O que implica também colocar ênfase na comercialização
de produtos locais, elaborados por atores da economia social e
solidária.
As grandes cadeias de distribuição promovem uma agricultura
e uma produção deslocalizadas, viciadas em petróleo, com alimen-
tos que percorrem milhares de quilômetros antes de “aterrissarem”
em nossas mesas. Os supermercados não defendem o pequeno e
médio agricultor, nem respeitam os direitos de seus trabalhadores,
nem o comércio local, nem favorecem um consumo responsável.
Então, que sentido tem eles venderem produtos de comércio justo?

Justificar o injustificável
O comércio justo é utilizado pelas grandes superfícies como
um instrumento de marketing empresarial e limpeza de imagem.
Vendendo uma ínfima parte de seus produtos de comércio justo,
pretendem justificar uma prática comercial totalmente injustifi-
cável: precarização da mão de obra, submissão do pequeno agri-
cultor, exploração do meio ambiente, promoção de um modelo de
consumo insustentável, competição desleal com o comércio local.
Frente à pergunta “existem supermercados bons e maus?” é
importante destacar que o modelo de produção e comercialização
de todos eles parte de uma lógica de mercado, que antepõe a ma-
ximização de seus benefícios econômicos, ao respeito aos direitos
sociais e ambientais. Em consequência, a lógica de funcionamento
de todos eles é a mesma, ainda que existam alguns que tenham
uma estratégia melhor de limpar sua imagem que outros.
Diante desse cenário, temos que advogar por um comércio
justo que rechace ser um instrumento de “maquiagem” a serviço

230
O negócio da comida

da agroindústria e da grande distribuição. É necessário um comér-


cio justo transformador, que tenha em conta todos os atores da
cadeia comercial, que trabalhe ligado a uma perspectiva global e
integral das relações comerciais e que defenda o direito dos povos
à soberania alimentar.

Quando o “justo” se limita a uma etiqueta


Apesar do oxímoro que significa “supermercado justo”, em
que o primeiro conceito anula o segundo e vice-versa, numerosos
são os casos de grandes cadeias de distribuição que contam, em
seus catálogos, com produtos certificados como justos e solidários.
Alguns dos maiores supermercados do mundo, como Wal-Mart e
Tesco, vendem alimentos de comércio justo e promovem marcas
próprias, dando-se uma imagem “responsável” e “equitativa”.
Empresas como Eroski, Alcampo, Carrefour e El Corte Inglés
fazem o mesmo na Espanha.

Preços mais baixos


O caso da Wal-Mart – a número 1 dos supermercados e a
maior empresa do mundo, segundo a lista da Fortune Global
500 – é um bom exemplo da referida incompatibilidade. A pe-
leja por oferecer os preços mais baixos, signo de identidade da
companhia, chegou aos produtos de comércio justo. Se há alguns
anos o carro-chefe das marcas de café de comércio justo era
Millstone Coffee, a batalha pelos preços a levou a buscar novos
fornecedores, que pudessem oferecer custos de produção mais
baratos. A estratégia da Wal-Mart para “economizar” – e assim
maximizar benefícios – consistia em controlar toda a cadeia de
comercialização, desde sua origem. Assim, ela entrou em contato
com uma pequena cooperativa do Norte de Minas Gerais, no
Brasil, que podia oferecer preços inferiores – enquanto a Trans-

231
E st her Vi va s E stev e

fair USA (FLO Internacional nos Estados Unidos) legitimava a


estratégia de Wal-Mart, certificando a produção.
Com essa nova manobra, o quilo de café de comércio justo,
comprado em um supermercado Sam’s Club (da Wal-Mart), saía
quase um terço mais barato do que outras marcas. Desse modo,
Sam’s Club se converteu numa das três principais distribuidoras
a varejo de comércio justo dos Estados Unidos, vendendo o café
de comércio justo mais barato do mercado, nos milhares de
estabelecimentos da companhia. Os executivos da Wal-Mart já
falam até de uma nova etapa, na qual os conceitos de “sustenta-
bilidade” e “comércio justo” se somam ao slogan da corporação:
“Preços cada vez mais baixos” (Mui, 2006). Mas o que sucederá
à pequena cooperativa de Minas Gerais no dia em que Wal-Mart
encontrar um provedor ainda mais barato?

Somar-se ao cortejo
Tesco, o maior supermercado da Grã-Bretanha, tampouco
deixou escapar a oportunidade de aderir ao cortejo. Não é em vão
que a Grã-Bretanha, juntamente com a Suíça, é um dos merca-
dos mais importantes de produtos de comércio justo na Europa.
Tesco afirma contar com “a maior oferta de produtos de comércio
justo”, desde frutas, bolachas, musli, chá, aperitivos, sucos etc.,
chegando a totalizar mais de 90 produtos, alguns dos quais com
marca própria. Uma cifra irrisória – 0,2% do total da oferta – se
comparada com os mais de 40 mil produtos que a companhia
comercializa (Amigos de la Tierra, 2005b).
Na gama de comércio justo da Tesco, as rosas vermelhas
constituem um dos produtos carro-chefe. A companhia fez um
lançamento publicitário sem precedentes, afirmando que se trata-
va das primeiras flores de comércio justo comercializadas na Grã-
-Bretanha, e que garantiam “um melhor intercâmbio econômico

232
O negócio da comida

para os pequenos produtores nos países em desenvolvimento”.


No entanto, a realidade dista muito dos slogans publicitários.
Segundo a jornalista Felicity Lawrence (2005), nenhuma das duas
companhias quenianas provedoras de rosas “justas” poderia ser
considerada “pequena produtora”. Ambas eram transnacionais,
com 4.500 e 2.500 trabalhadores respectivamente, a maior delas
de propriedade holandesa. E as comunidades beneficiadas não
eram cooperativas de produtores, como muitos consumidores
poderiam pensar, mas imigrantes que vivem em barracas de pro-
priedade das companhias. O caso das rosas vermelhas é somente
um exemplo do cenário que esconde a prática do comércio justo
por parte de grandes distribuidoras, como a Tesco.
Outras transnacionais, como McDonald’s, também têm
aderido à moda do “justo”. Na Suíça, a partir de 2003, os 144
restaurantes da gigante do fast food começaram a distribuir
café de comércio justo, com a certificação Max Havelaar (FLO
Internacional). Uma iniciativa destinada a melhorar a imagem
da transnacional, depois que, em 2002, a companhia passou a
ter números vermelhos nesse país (Jacquiau, 2006; Bezençon,
2007).
Em 2005, os estabelecimentos de McDonald’s nas regiões da
Nova Inglaterra e de Albany (Nova York), nos Estados Unidos,
seguiram o exemplo. Mais de 600 restaurantes do noroeste do
país incluíram, em seus McMenus, café certificado de comércio
justo. Organizações como Oxfam América e Transfair USA
felicitaram a companhia e a instaram a incorporar produtos de
comércio justo em todos os restaurantes McDonald’s dos Estados
Unidos. O presidente da Transfair USA, Paul Rice, declarou que a
entrada de McDonald’s no comércio justo “enviava uma poderosa
mensagem à indústria alimentar, indicando que comércio justo
é qualidade”, ao mesmo tempo que considerava que este passo

233
E st her Vi va s E stev e

aceleraria a incorporação de novas companhias ao mercado do


comércio justo (Chettero, 2005).

Limpando a imagem
Na Espanha, várias cadeias de supermercados vendem alimen-
tos etiquetados como justos. Deve-se ter em conta que a comer-
cialização destes produtos não tem parado de crescer há vários
anos. Se, em 2000, suas vendas chegavam apenas aos 7 milhões de
euros, em 2012, somaram mais de 28 milhões, multiplicando-se
por quatro, e com um crescimento interanual de 11,4% (Donaire,
2013). Carrefour, Alcampo e Eroski são algumas das que mais
propagandeiam estes alimentos.
O comércio justo passou a fazer parte da estratégia de Respon-
sabilidade Social Corporativa (RSC) da indústria agroalimentar
e da grande distribuição. As transnacionais buscam associar sua
marca a conceitos como ecologia, solidariedade, justiça – com
o objetivo de adotar uma imagem responsável e comprometida,
que lhes permita aumentar os lucros de seus negócios. O relatório
“O Comércio Justo e a Grande Distribuição na Catalunha” não
poderia deixar isso mais claro:
O componente social é um atributo importante para a marca, e aporta
valor e prestígio às entidades que são mais sensíveis. Incorporar produ-
tos de comércio justo e solidário aos catálogos das grandes cadeias de
distribuição mostra essa sensibilidade e atitude de cumplicidade (...). É
nesses detalhes que a empresa incrementa um valor intangível, até o do-
bro do valor de mercado, e contábil (Grup de Recerca em Comunicació
Empresarial, Institucional i Societat, 2006).

Não obstante, a introdução de alimentos de comércio justo em seus


catálogos não modifica o conjunto de sua prática comercial. O comér-
cio justo é utilizado como um instrumento de lavagem de imagem, por
trás do qual se escondem baixos salários, precariedade laboral, práticas

234
O negócio da comida

antissindicais, extorsão de agricultores e produtores, competição


desleal com o pequeno comércio e promoção de um consumismo
exacerbado.

235

Você também pode gostar