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210 ensaios • mostra contemporânea brasileira

Virou Brasil
sobre filme de Pakea, Hajkaramykya, Arakurania,
Petua, Arawtyta’ia, Sabiá e Paranya

Renata Otto Diniz1

Virou Brasil resulta de uma oficina, realizada pelo pessoal do Vídeo nas Aldeias, entre
os Awá-Guajá, da aldeia Tiracambu, na TI Caru, situada no Maranhão, no ano de 2017.
Certamente vocês conhecem o Vídeo nas Aldeias. Do contrário, podem imediatamente
consultar as informações disponíveis no site do projeto.2 Talvez seja bom apenas ressaltar
o caráter pioneiro do VNA em promover o domínio dos equipamentos audiovisuais pelos
indígenas no Brasil. Ressaltar ainda que o efeito mais original dessa atitude tem sido
o surgimento de filmes nos quais tanto o enquadramento (o quadro, o foco, o recorte
etc.), quanto o campo enquadrado (a matéria, os fluxos, talvez possamos dizer, a vida
em continuidade) são definidos nos termos do mundo indígena. Mesmo que o “índio”
mire os “brancos”, ou os cachorros, ou o invisível..., o mundo que ele mira é sempre o
indígena, porque nada está fora do mundo de alguém que está em posição de sujeito.
Virou Brasil é um exemplo extraordinário do sucesso desse mecanismo de composição,
ou melhor, de tradução entre mundos, acionado por meio audiovisual. Não pela ênfase
no polimento ou no esmero perfeccionista – ainda é um filme debutante. Mas justamente
pela sua pungência, pelo frescor com que os protagonistas – os Awá-Guajá, estando por
trás e na frente das câmeras – manobram sua auto mise-en-scène.
Provavelmente vocês não conhecem os Awá-Guajá. Eles são um dos cerca de “225
povos indígenas” que vivem atualmente no Brasil.3 Eles são talvez menos conhecidos
que os demais por terem sido apenas recentemente “contatados”. O primeiro contato do
órgão indigenista com os Awá, aquele que conta no censo, deu-se em 1973, em plena
“década da destruição da Amazônia”.4 Na verdade, foram dois contatos naquele mesmo
ano. Ambos frutos de expedições indigenistas, seguindo notícias sobre “bandos” de

1. Mestre em antropologia social pelo Museu Nacional/UFRJ e doutoranda pelo PPGAS da Universidade de
Brasília. Foi técnica em antropologia da FUNAI entre 2009 e 2014, onde atuou nas coordenações de delimitação
e demarcação de terras; e proteção aos índios isolados e recém contatados. Co-dirigiu, com Isael Maxakali e
Sueli Maxakali, o filme Quando os Yãmiy Vêm Dançar Conosco (2012). Integra o coletivo da Filmes de Quintal.
2.Cf.: Vídeo nas Aldeias: <http://videonasaldeias.org.br/2009/>.
3. Consultar: <https://pib.socioambiental.org/pt/Quadro_Geral_dos_Povos>.
4. O cineasta Adrian Cowell tem uma série de filmes sob esta alcunha. Consultar o acervo disponível na pagina
da Fundação Oswaldo Cruz, acessível em <http://basearch.coc.fiocruz.br/index.php/decada-da-destruicao>.
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uma gente “nômade” que estava sendo alvo de toda sorte de violência: aprisionamento,
deslocamento forçado, afugentamento com tiro e cachorros, mortandade por doenças
etc. A primeira expedição, feita nas regiões do vale do rio Turiaçu (atualmente no interior
da TI Alto Turiaçu), onde habitam os índios Ka’apor, encontrou 15 pessoas awá, entre
crianças, homens e mulheres adultos, velho nenhum, habitando 4 casas de acampamento –
tapiris. A segunda deu-se no vale do Rio Pindaré, nas cabeceiras do rio Caru, região
atualmente demarcada no interior da TI Caru, onde também habitam os Guajajara. Esta
segunda expedição encontrou apenas dois “sobreviventes”, dois garotos doentes, cujos
pais e irmãos foram encontrados mortos no antigo abrigo. Segue-se, durante as décadas
1980 e 90, quase uma dezena de contatos ou avistamentos com o objetivo daquilo
que os sertanistas chamam de “resgate”. Por isso, o que se deu com os Awá não foi um
“contato”. O contato oficial com os Awá-Guajá consiste numa série interminável, cujo
episódio mais recente se deu em 2015.5 Além disso, atualmente res(x)istem famílias
em grupos que rejeitam o contato e vivem no interior da TI Araribóia, também habi-
tada pelos Guajajara no estado do Maranhão. Se os Awá estampam o noticiário é mais
por conta dessa porção de sua população que mantêm-se em “isolamento voluntário”.
Mas, provavelmente, vocês já viram os Awá em filme. Foram eles que encenaram, com
Andrea Tonacci, o incrível Serras da Desordem (2006). Inclusive, os Awá protagonistas
do Serras e do Virou Brasil são quase os mesmos, pessoal da mesma aldeia, Tiracambu.
Só que no filme de Tonacci, o protagonismo awá ainda se restringia à mise-en-scène
em frente à câmera. Tratava-se lá, de contar a saga de Karapiru,6 justamente como um
exemplo daquilo que se passou reiteradamente na história dos Awá, no momento da
invasão dos karaí sobre seu território, seus harakwá, sua T/-terra, sua “terra-planeta”,
como diz Davi Kopenawa.
Karapiru é um homem awá que sobrevivera à emboscada de capangas de fazendeiros
invasores em 1978. Os pistoleiros incendiaram o mato e as casas e abriram tiroteio
contra crianças, mulheres e homens. Karapiru escapara das balas e do fogo jogando-se
ao igarapé, levando consigo seu bebê de colo. Sem poder olhar para trás, e saber se
haveria outros parentes vivos, Karapiru segue sua fuga frenética. Seu filho não suporta
e falece. Karapiru continua andando e alcança um lugarejo ocupado por sertanejos no
interior da Bahia. Lá ele é recebido por uma família que lhe abriga temporariamente.
Quase uma década depois em 1987, é “resgatado” por Sidney Possuelo, então coorde-
nador do departamento de Índios Isolados da FUNAI, e seu companheiro, Wellington
Figueiredo. Eles o levam de carro para Brasília. Ao tentar identificar sua língua e sua etnia,
o pessoal de Possuelo convoca Benvindo Xiramuku Guajá, jovem adulto que residia nas
imediações do Posto de Atração do interior da TI Alto Turiaçu, local do primeiro contato
awá-guajá. Tendo sido criado no convívio com os indigenistas, Xiramuku trabalhava
eventualmente para eles e falava português. Poussuelo quis testar a mútua compreensão
linguística entre os homens e tentar desvendar a história de Karapiru. Ao se encontrarem

5. Sobre esse contato, consultar meu próprio artigo: “Outra vez, me deixa em paz, crônicas do (des)encontro tupi
no Maranhão”. na Revista de Antropologia da UFSCAR, 2017 acessível em: <http://www.rau.ufscar.br/wp-content/
uploads/2017/10/4_Renata_Otto_Diniz.pdf>.
6. Conforme Luis Carlos Forlini na Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 11, volume 18(2): 293-302 (2007).
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em Brasília, Karapiru e Xiramuku percebem que não apenas falavam a mesma língua
(guajá), mas que se reconheciam pessoalmente. Eram pai e filho. Tinham sido sepa-
rados no momento da chacina que colocou Karapiru em fuga para um lado e Xiramuku
para outro. Grande história! Grande narrativa! Grande filme! Serras é um exemplo dos
extermínios awá-guajá, uma história do sertão do Maranhão, com seus coronéis. Mas
também uma história de gente da terra - dos índios antes dos brancos, e dos sertanejos
desvirados índios... Como no sonho de Karapiru, que inicia o filme, Serras conta como
antes a história dos Awá era harmoniosa, tranquila, confortável, idílica até. E como uma
violenta e extravagante passagem os transportou para o tempo de depois: o tempo da
estrada de ferro aberrante, do trem da Vale, este animal monstruoso dos brancos que
chafurdou e cortou o território awá e separou os parentes, muitos em definitivo.
Virou Brasil já se inicia no tempo de depois. Ele parte daí para então voltar atrás, ou
melhor, pelo avesso, para dar a ver a versão awá sobre a sua relação com estes agentes
da morte. Mas também apresentar, amistosamente, as coisas fundamentais de sua
socialidade. Nesse sentido, podemos enumerar várias lindas passagens:

As pegadas de Maxikoa

Maxikoa apanha mangas caídas dos pés nos arredores do posto. Já disseram certa vez
que as aldeias Awá ficam no posto e não o contrário. Mas Maxikoa anda seu andar antigo
mesmo ali. Ela tem o caminhar típico das mulheres e homens awá que viveram muito
tempo habitando na mata, a pisada torce o metatarso para dentro do calcanhar. Assim,
os pés escapam das ramas que poderiam embaraçar a caminhada. São detalhes do
corpo, detalhes do filme que revelam a T/terra-saber. Maxikoa anda como se estivesse
caminhado o seu harakwá, o que significa literalmente meu saber. Para o andar na mata,
se diz wata ka’a pe. Watá se traduz por caçar e andar. Ka’a pe significa lugar da floresta.
Donde se conclui que não se anda por andar na floresta. Mas se anda-caça. Assim como
se constrói o território. Harakwá é uma terra-saber. O saber andar na floresta entre os Awá
constrói sua atenção, seu corpo, sua “(r)ex(s)istência”. As pegadas de Maxikoa o revelam.

O testemunho de uma velha mulher sobre o bem viver

Amy Paranawãj seca fibra de tucum e conta sua própria trajetória. “A gente só comia
capelão e jabuti. A gente não encontrava nem inhame do mato. Quando chegamos ao
cocal, deixamos nossa bagagem lá. A gente foi morando lá. Nosso marido pegando guariba.
A gente assava porque não sabia cozinhar. Uma vez a gente estava comendo, quando
chegou a turma do Xiami. Eles chegaram de surpresa, falando igual karaí. Nosso marido
perguntou: tudo bem, karaí? A gente não conhecia eles, a gente achava que eram mesmo
karaí. Todo mundo ficou curioso querendo saber quem eram. Xiami respondeu: Eu sou
awá também. Mataram meu pai e minha mãe. Depois, eles foram embora e voltavam
para nos visitar. A gente foi se acostumando. Mas eu fiquei gripada, como sempre estou
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desde então. Nosso marido dava guariba ao Xiami. Nosso marido falava: eu sou índio
do mato mesmo, estou morando aqui, comendo babaçu, só porque no mato acabaram
os frutos. Era bom quando era apenas a nossa família!”.

Uma ausência significativa

Majakaty, que era um garoto pequeno na época em que o Serras foi rodado (início da
década de 2000), hoje, jovem adulto, casado, pai de filhos, talvez dentre todos da aldeia
Tiracambu aquele que mais perfeitamente fala português, não gosta de ser famoso entre
os brancos, por ter sido filmado curumim, garoto nu, se divertindo no acampamento com
seu bicho, o porco, maty. Quando, na aldeia, algum karaí amigo propicia uma sessão do
Serras, Majakaty dá um jeito de sumir. Majakaty também não apareceu no Virou Brasil
(a não ser muito brevemente nas primeiras tomadas, em planos gerais coletivos). Talvez
nos próximos filmes, ele deixe de se ressentir com o enquadramento branco dos Awá
e tome parte no enquadramento awá dos brancos... Todavia, ressalto que o sentimen-
to-atitude de raiva-vergonha de Majakaty não prevalece para a maioria dos Awá. Ao
contrário. Mihaxa’á, por exemplo, que no Serras representou Karapiru jovem, em Virou
Brasil, se compraz em representar a si. Aliás, é ele quem explica a chegada desastrosa
dos karaí sobre seus territórios, e emboca a expressão título, “virou brasil”. Para ele, ou
para seu irmão, Majhuxa’á, e suas respectivas esposas Pakawãj, Ameri, para a mãe deles,
Amy Paranawãj, para a jovem mulher Pinowá e seu sábio marido, Akamaty, para o velho cantor
Kamairu, o grande mestre de cerimônias, renomado em todas as aldeias awá, para todos
eles, o filme desvela um desejo de expressarem-se, de afirmarem e refletirem suas ações.

Presenças míticas

Os irmãos Mihaxa’á e Majhuxa’á estão na frente do “olho da câmera” durante várias cenas.
Eles encabeçam a saída de caça. No caminho, matam uma cobra. Acham uma colmeia no
tronco de uma árvore. Cortam a árvore. Retiram e tomam o mel. Perseguem os macacos
guaribas. Abatem os animais. Alimentam a flecha no sangue da presa. Tomam café. Se
revoltam contra os tratores. Mostram como os trilhos da estrada de ferro cortaram
seus caminhos antigos... Não resisto em comparar essas passagens protagonizadas por
eles, com os episódios em que, os irmãos míticos, Maíra e Mukura, filhos do primeiro
demiurgo, Maíra-pai, vão dando forma ao mundo atual, na medida de suas aventuras no
patamar terrestre, desde que este se descolou do céu. Os dois pares de irmãos (gêmeos),
demiurgos e atuais, contam como o mundo foi estabelecido ou transformado a partir do
que já estava.7 O filme como a vida awá, às vezes, confundem os tempos.

7. Lembro ainda que o nome Majhuxa’á é derivado do nome majhu, que designa uma cobra do tipo jiboia. Esta,
para os Awá, conforme uma versão mítica contada por eles, foi a forma adotada por Maíra pai, para enganar
o urubu-gavião-coruja, Urutá, que era o dono original do fogo. Na forma de Majhu, Maíra fingiu-se de morto e
começou a feder. Assim, atraiu Urutá, para sua carcaça. Urutá ainda hesitou um pouco porque o olho do bicho
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O mel, primeiro avatar da coleta:

Os caçadores, dentre os quais Mihaxa’á e Majhuxa’á, encontram uma árvore com uma
colmeia. Cortam o tronco com o machado para retirar dela o mel. Ao fazerem isso,
comentam: “Os brancos vão pensar: tudo isso só para pegar mel? Mas nós somos Awá
mesmo!” (aliás, awá é o termo que várias línguas da família Tupi-Guarani empregam para
se referir às pessoas humanas, algo como a gente, mais ou menos como um pronome
inclusivo para a categoria de humanos. Pode ser que ainda adjetivem awá-té, nós, gente
de verdade). “Nós não ficamos parados não! Quando vemos o mel, cortamos logo para
tomar”. O mel é um alimento ambíguo: líquido, que, todavia não serve para matar a sede,
ao contrário, a provoca. Alimento líquido, encontrado preferencialmente durante a seca.
Alimento líquido, todavia, conceitual e empiricamente seco. Alimento, enfim, que não
mata propriamente nem a fome, mas serve, melhor, como uma sobremesa. O mel é um
alimento cozinhado por natureza, apanhado pronto. O mel é um requinte, um suplemento.
O Mel é uma delícia! Um alimento lascivo, como, aliás, os irmãos não deixam de comentar
às risadas: “Você está enfiando a mão no buraco melado! É gostoso!”. “Nossa, eles vão
pensar que você é sujo!” – como quem diz também, ambiguamente, “promíscuo”. Ao que
uma mulher, Ameri, responde: “Não, eles irão pensar: esta é a comida deles! Os brancos
apenas irão pensar: eles comem a comida deles, assim como nós comemos a nossa”.
Sim, ao tomar o mel, eles estão num banquete cerimonial! Os dois casais encenam num
quadro perfeitamente composto, simetricamente espelhados, os dois homens no centro,
ladeados pelas esposas, com os mesmos gestos, os braços coreografados, apanhando e
sugando o mel com ajuda de ramas. O quadro baixo, imóvel, compõe um retrato falado,
uma crônica exemplar da vida awá. Sim, o mel é um alimento fundamental na “dieta”,
e na vida awá em geral. Pois se as “saídas para a mata”, que consistem na prática que
alicerça a economia trivial, podem ter, e frequentemente têm, a extração do mel por
propósito, não há saída para a mata em que não se procure o mel. Assim, o mel pode
ser tomado como avatar da “caminhada”, do andar na mata, “watá ka’a pe”. Enfim, o mel
é o avatar da própria “coleta”.

O guariba, primeiro avatar da caça

Existem outros sujeitos que podem revezar este lugar-avatar da caminhada. A captura
dos macacos guariba, waria, é, melhor, o avatar do watá ka’a pe, quando o motivo é mais
propriamente a caça (do que a coleta). A cena em que os mesmos irmãos perseguem os
guaribas, junto a um grupo maior, ostentando suas coleções de flechas, há um quadro
anterior “vazio” em que se escutam os guaribas cantando alto. Os machos cantam muito!
Por isso são chamados capelões. Os caçadores escalam o alto das árvores, ao modo de
suas presas potenciais. As mulheres falam com eles: “Nossos maridos vão matar vocês,

ainda brilhava e acusava a vida no corpo. Mas não se conteve, pousou sobre ele, no que este lhe desferiu o bote
e lhe tomou a chama original em favor dos humanos. Pois bem, Majhuxa’á, dei-me conta enquanto escrevo, tem
o próprio olho cicatrizado por um ferimento antigo.
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porque estamos com fome”. Kamairu, o velho, o mestre cantor, fala na língua deles:
“wam wam wam”. Os bichos são abatidos. As flechas que lhes atingiram são alimentadas
pelo sangue da presa. Se tornarão doravante melhores, mais eficientes, estarão melhor
criadas, como flechas. A caça foi um sucesso, pois o guariba foi caçado!

Por quê cantam os Awá?

O velho Kamairu também se mostra para o filme cantando muito. Os outros homens
também o fazem, mas Kamairu, especialmente, faz questão de anunciar e comentar o
que está ou estão fazendo em cena, por meio do seu cantar. Ele volta da caçada ao waria
cantando: “eles não queriam que a espingarda se mostrasse, mas eu a mostro. Agora não
há mais munição” etc. Noutra cena, Kamairu aparece construindo flechas. Está sentado
no chão apontado a taquara. Ele canta contando isto. Segue cantando, e por meio do
seu canto, conta como foi que aprendeu cantar e porque: Quando ele era bem garoto,
sua mãe perguntou por que ele não subia ao céu? Então, ele foi saber com os homens
adultos. Ele experimentou cantar e uma vez subiu ao céu. Ele viu o céu. Ele canta desde
então. O canto é a chave para a subida ao lugar celeste! Kamairu não se arrisca a perdê-la!
O canto também tem seu momento espetacular no contexto ritual, quando os homens
se paramentam para a grande subida. Aí, o canto é coletivo. Vários homens cantam, as
mulheres respondem cantando também. É noite, a jornada terrestre está terminando,
inicia-se a jornada celeste, aquela que faz colar os patamares de volta. Assim como
tinha sido antes, nos velhos tempos, quando cantam, os homens awá caminham o céu.

••••

Enfim, Virou Brasil coleciona cenas da vida, privada ou pública, que sintetizam a forma
particular da socialidade awá. Mas talvez ainda sua maior riqueza seja tornar evidente
o orgulho com que o fazem. Sua alegria e altivez em demonstrarem-se. Têm certeza
de que o filme é uma oportunidade de ensinar os brancos. Requintam em elaborar a
forma de existir dos brancos. Antes, os brancos não existiam. Chegaram bem depois,
só recentemente. Antes, o mundo já era mundo. Só depois é que, desfortunadamente,
“virou brasil”.

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