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Animais

Como Nós
I

Um jogo de simulação narrativa de Ricardo Tavares


baseado no livro “Batalha” de David Soares

Animais
Como Nós
Primeira versão criada inteiramente durante o evento RPGénesis,
7 dias de escrita ao correr da pena entre 14 e 20 de Agosto de 2011.
Este texto não se encontra revisto, testado ou completado.

Esta versão está licenciada por Creative Commons:


Attribution, Non-Derivative, Non-Commercial,
ou seja, pode ser copiada e distribuída sem fins comerciais
desde que o seu conteúdo não seja alterado e a sua
autoria seja atribuída a Ricardo Tavares.

Animais Como Nós


II

Agradecimentos

Aqueles que comigo contribuíram


para que o RPGénesis 2011
fosse um sucesso:

Ana Cláudia Silva


Marcos Antônio Silva
João Mariano

E a todos os patrocinadores
e participantes neste evento

Obrigado.

Animais Como Nós


III

“Pedras no meu caminho?


Guardo todas.
Um dia vou construir um castelo.”

- Fernando Pessoa

Animais Como Nós


IV

Animais como nós


São como nós, homens e mulheres deste século. Falam,
pensam, amam, vivem cada dia sem saber como será o
próximo. Juntos fazemos parte do mesmo mundo. Podem não
andar como nós ou construir coisas como nós, mas teem
também os seus sonhos e as suas ansiedades, teem a sua
linguagem e conversam entre eles, questionam-se. Nascem,
crescem e morrem.

Animais como nós


São como nós, apesar de sermos gatos e eles ratos, porcos e
eles corvos, burros e eles mochos, cães e eles cobras. Todos
seguimos a nossa natureza. Podemos não falar a mesma
língua, podemos estar divididos entre presas e predadores,
mas todos tentamos sobreviver e ver o sol nascer para mais
um dia. Todos temos medo de alguma coisa.

Animais como nós


São como nós, atados uns aos outros, sentindo com o seu
coração frouxo ou apertado. Nós que são parte da mesma
corda, mas que são todos diferentes. Cada nó é uma só
criatura, mas todos partilham a mesma terra e o mesmo
tempo. Cada nó só sente o que está à sua volta, mas todos
procuram dar sentido ao que sentem. Quando o vento sopra
mais forte e a corda se rompe, são nós que se desfazem e
novos nós que se podem criar.

Animais Como Nós


V

Apresentação
Animais Como Nós é um jogo para três pessoas com uma
duração aproximada de trinta minutos por volta. Em cada
volta, há três vozes que rodam entre os três jogadores: o
Animal, o Coração e o Vento. O Animal quer viver, o Coração
quer sentido e o Vento quer mudança. Uma volta termina
quando todos os jogadores tiverem tido a sua vez como
Animal, Coração e Vento. Ao fim de cada volta, os jogadores
podem dar o jogo por terminado ou podem dar outra volta. Se
terminarem o jogo, podem continuar a jogar mais tarde a
partir das voltas que já deram ou podem simplesmente
começar um novo jogo.

O objetivo do jogo é criar histórias sobre três Animais


Como Nós a partir do conflito entre as várias vozes.
Quando um jogador é o Animal, o seu propósito é entrar dentro
dessa personagem dizendo o que ela diz e o que ela faz.
Quando é o Coração, o jogador fala pelas várias personagens
que convivem com o Animal de modo a descobrir um sentido
para a história da sua vida, seja ele qual for. Quando é o Vento,
o jogador é a voz que descreve o mundo onde o Animal se
move e quer que a história avance de modo a que algo de novo
aconteça.

Para jogar, é primeiro necessário ler este texto e o leitor


que seguir estas indicações para explicar o jogo ás duas
pessoas que vão jogar com ele é chamado de Guia. Esta
não é uma voz como as outras, mas sim um papel que é
desempenhado fora do jogo por uma pessoa que ajuda as
outras a aprender como é que Animais Como Nós funciona. O
Guia faz isto respondendo ás dúvidas dos outros jogadores e
colocando questões que ajudem a explicitar o que cada jogador
quer dizer. Se o tempo para jogar for limitado, cabe também
ao Guia controlar a duração de cada volta lembrando aos

Animais Como Nós


VI

jogadores que teem cerca de dez minutos à vez para


determinar como a história de cada Animal se desenrola.
Finalmente, o Guia também deve estar atento se houverem
certos assuntos ou temas sobre os quais um outro jogador se
sinta desconfortável ou que possam não ser adequados para a
sua idade. Como a história de cada Animal é criada em
conjunto e evolui de forma inesperada, o Guia deve identificar
antes do jogo começar se existem ou não certos conteúdos de
ficção com os quais os jogadores não se sintam à vontade. Se o
tempo para jogar for limitado, os jogadores deverão evitar
estes conteúdos na criação da sua história ou poderão só
referir-los indiretamente. Se o tempo para jogar puder
estender-se para lá da meia-hora por volta, o Guia poderá
conversar com os outros jogadores para juntos conseguirem
explorar todos os assuntos ou temas que, à partida, não
conseguiriam ver postos em causa numa história que estão a
criar, mas que, confiando uns nos outros, poderão mesmo
abordar ao nível da ficção que estão a jogar. Nestes casos,
será recomendável fazer um intervalo entre cada volta para
descontrair e debater estas questões.

O material necessário para jogar é:


➢ uma dúzia de pedrinhas, todas diferentes, todas iguais;
➢ pelo menos três cópias da ficha de azulejos;
➢ três lápis afiados, uma borracha;
➢ um espaço onde se possa conversar confortavelmente;
➢ um relógio para controlar o tempo.

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VII

Mundo
No início do século XV em Portugal, a vida nos matos,
trilhos, vilas e quintas desta terra cresce e floresce à
custa de muito sacrifício. Há sempre aqueles que sofrem e
aqueles que prosperam, mas ninguém sabe ao certo de que
lado estará amanhã. Dia e noite, cada animal à sua maneira
enfrenta os desafios que lhe cabem: encontrar comida,
acasalar, fazer um ninho, resguardar-se do frio, marcar
território, cuidar dos filhos, sobreviver a predadores, lamber
as feridas, evitar a crueldade dos homens e eventualmente
aprender a viver debaixo deles. Pequenos e grandes, do mato
ou das quintas, do céu ou da terra, todos os animais teem a
sua própria perspetiva sobre o mundo e, se alguns só
procuram a companhia daqueles que são da sua raça, outros
conseguem entender-se com vários animais apesar de falarem
línguas diferentes. Talvez até com os homens e com as pedras
seja possível falar.

Este mundo ficcional está algures entre o nosso mundo


real de há seiscentos anos atrás e o mundo das nossas
fábulas de criança. Aqui não há animais antropomorfizados
disfarçados de avozinha ou calçados com botas, não há bruxas
malvadas ou fadas mentirosas, mas há tempestades e
incêndios. Aqui os gatos andam em quatro patas e as ratazanas
cheiram mal, os animais matam-se uns aos outros e ninguém
vive feliz para sempre. A beleza deste mundo é brutal e quase
sempre invisível. Um animal convive todos os dias com a vida e
com a morte e é fácil ele se questionar se o seu único
propósito neste mundo é servir de comida para outros animais
ou, até pior, para ser triturado pela roda dentada da cega
crueldade humana.

Alguns animais são solitários, outros isolam-se com a


sua família, alguns dependem dos homens, outros

Animais Como Nós


VIII

organizam-se em grupos, alguns querem que o seu nome


perdure depois da sua morte, outros só querem morrer
em paz. Todos adaptam-se ás suas circunstâncias mas, por
vezes, procuram algo de permanente, algo que vá para além
da vã espiral dos dias e das noites. Cada animal tem a sua
própria visão do mundo formada não só pelas características
da sua espécie e pelas experiências que sofreu, mas também
pela sua inteligência e personalidade. Talvez, para um animal
que viva perto da terra, o céu à noite não pareça mais do que
um pálido reflexo da textura e do cheiro da vegetação e, para
um animal que viva quase sempre no céu, a mesma terra
pareça só conseguir existir graças ao sol e à lua. Tal como os
homens, os animais sentem não só com os cinco sentidos, mas
também com o coração, não seguem só os seus instintos. No
entanto, ao contrário dos homens, os animais não conhecem
ideologias, filosofias ou religiões, sentem empiricamente como
os homens sentiram o mundo pela primeira vez há milhares de
anos atrás, encontrando as mesmas angústias e procurando as
mesmas respostas. Para que é que estamos aqui? Que vida há
para além da morte? Que sentimento é este de compaixão que
sentimos uns pelos outros? Alguém criou este mundo?
Poderemos matar ou morrer em nome de um bem maior ou por
mera vingança? São as eternas perguntas em busca da
resposta absoluta que nunca satisfaz a todos mas, na história
de cada animal, poderemos talvez encontrar uma entre muitas
possíveis respostas.

Neste mundo, os jogadores dão voz a animais como


ratos, gatos, corvos, porcos, galos, cães, mulas, cobras,
mochos, esquilos, lobos, patos, lagartos, javalis, veados,
raposas, texugos, etc. Animais do mato ou da quinta,
criaturas que podem matar e serem mortas por outras
criaturas. Neste jogo, a voz do Animal nunca encarna seres
humanos, insetos ou animais aquáticos, cada história não terá
como protagonista um caçador, uma borboleta ou uma truta,
apesar de estes animais poderem ser muito importantes como

Animais Como Nós


IX

personagens secundárias criadas ou controladas pela voz do


Coração. Se os jogadores quiserem, podem encarnar animais
da praia e do mar como uma gaivota, um lobo-marinho ou um
caranguejo, mas, nesse caso, todos os três Animais necessitam
de pertencer a este ambiente. A hipótese de as suas histórias
se cruzarem e de eles interagirem uns com os outros tem de
existir sempre, bem como a possibilidade de matarem ou
serem mortos, nem que seja pelas mãos dos homens. A voz do
Coração pode encarnar mesmo qualquer animal que lhe
pareça apropriado, sejam estes aranhas, formigas, pescadores,
agricultores ou borboletas, e até pode excecionalmente
introduzir personagens como uma árvore ou uma rocha
antropomorfizada, desde que possa fazer sentido o Animal
poder ouvir e falar com estas criaturas. Qualquer animal pode
ser criado ou controlado também pela voz do Vento desde que
este seja um claro inimigo do Animal ou só faça parte da
paisagem, ou seja, se não houver nenhum diálogo possível com
esta criatura.

Todos os animais teem um nome que lhes é dado pelos


seus pais ou pelos seus donos, sendo que também podem
dar a si próprios um novo nome. Tal acontece porque é
habitual os nomes terem algum significado mais ou menos
inerente como por exemplo Jigajoga, Caganeta, Brancaflor,
Calcaterra, Fraca-Chicha, Batalha, Rifão, Pedranceiro ou
Verruco. Assim, um animal pode querer marcar algum
momento determinante da sua vida dando a si próprio um
nome apropriado. Durante este jogo, os nomes indicam
claramente que uma personagem é alguém com quem o
Animal pode conversar, ou seja, o Vento não dá nomes a
ninguém. Um nome contém sempre nele um potencial de
permanência que é contrária ao propósito do Vento. No
entanto, uma personagem introduzida com um nome pode
mais tarde se tornar em alguém com quem o Animal já não
consiga falar e aí já passa a ser controlada pelo Vento.

Animais Como Nós


X

Neste mundo, há homens que constroem igrejas e


animais que sonham todas as noites, mas não há
qualquer prova final da existência do divino. Tal como no
mundo real, há muitos extremos e meios termos, há tantas
ideias diferentes como flores num campo. Há quem não
acredite em nada que não possa sentir com os seus cinco
sentidos e há quem só acredite naquilo que possa sentir com o
coração. Há quem acredite em profecias e quem se aproveite
dos piores medos dos outros animais para os comandar. Há
quem procure se transformar num ser humano e quem julgue
saber tudo o que os homens nunca saberão.

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XI

Azulejos
Para o jogar começar, as pedrinhas são postas todas no
meio da mesa e cada jogador fica com uma ficha de
azulejos à sua frente. A voz do Animal será primeiro do
jogador mais jovem, seguindo-se a ele o menos jovem e, por
fim, o mais velho, pelo que os jogadores devem sentar-se nesta
ordem seguindo os ponteiros do relógio. O jogador à esquerda
do Animal será o seu Coração e o jogador à sua direita será o
seu Vento. Na ficha, os jogadores podem escrever o seu nome
em baixo, e verem representados nove azulejos dispostos em
grelha, nove quadrados com os símbolos que representam as
três vozes ordenados de acordo com a sequência de uma volta.

No azulejo do meio ao centro, vem representada a voz do


Animal do jogador que tem a ficha à sua frente. À
esquerda deste azulejo, está a voz do Coração e à direita a voz
do Vento. Nos três azulejos de baixo, o jogador tem a voz do
Vento com o Animal à sua esquerda e o Coração à sua direita.
Nos três azulejos acima, o jogador pode ver que quando a voz
do Animal está à sua direita, ele tem a voz do Coração e à sua
esquerda está a voz do Vento. As três linhas de azulejos
representam as três vezes de uma volta ordenadas de modo
descendente, as três vezes que cada voz tem com cada
jogador. Quando o jogo começa, todos podem conferir a sua

Animais Como Nós


XII

voz na sua ficha: o primeiro jogador olha para a sua linha de


azulejos do meio enquanto o jogador à sua esquerda olha para
a sua linha de cima e o jogador à sua direita olha para a sua
linha de baixo. A partir daqui, em cada volta, os jogadores
percorrem todas as suas três linhas de azulejos com a coluna
do meio a indicar sempre qual é a sua voz.

Cada vez tem uma duração aproximada de dez minutos e


nela os jogadores criam uma cena da história do Animal
protagonista, um capítulo que tem de cumprir com os
propósitos das três vozes. Em geral, o Vento descreve onde
o Animal está, o Coração indica quem está com ele e o Animal
fala em nome do seu protagonista dizendo o que ele faz. À
medida que a cena evolui, o Vento tenta mudar alguma coisa
apresentando um possível conflito com que o Animal poderá
ter que lidar, o Coração tenta que o Animal responda pelas
suas ações e pelas suas ideias interagindo com ele através de
outras criaturas e o Animal segue os seus instintos naturais de
sobrevivência procurando, comer, beber, acasalar, dormir em
segurança e chegar vivo ao próximo nascer do sol. Os
jogadores devem manter-se conscientes do tempo a passar
para que uma cena não se perca por entre muitos possíveis
caminhos sem acrescentar nada à história. É possível jogar
muito para lá dos dez minutos se os jogadores estiverem
perante um capítulo dramático da vida do Animal ou se
estiverem mesmo no meio de uma grande revelação para esta
personagem. A vez de um Animal também poderá se alongar
um pouco mais se algum assunto ou tema mais difícil de tratar
estiver em causa entre as personagens do Coração e o Animal.

A primeira volta do jogo é apenas uma de aquecimento


em que os jogadores ainda estão a aprender como devem
proceder e começam a conhecer os seus Animais. Nesta
volta, tem de se ficar a saber como cada Animal recebe o seu
primeiro nome. Dos seus pais, do seu dono, de si próprio? Qual
é este nome? Nesta primeira cena, nesta espécie de capítulo

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XIII

introdutório, a vida do Animal não está imediatamente em


risco, é um momento da sua infância em que o Vento tem a
oportunidade de montar o cenário onde a sua vida começa, o
Coração introduz as personagens que marcam o início da sua
história e o Animal pode descrever-se a si próprio e interagir
com o mundo à sua volta mostrando a sua identidade. Deste
modo, o Coração dá um nome ao Animal e orienta-o nos seus
primeiros tempos de vida a partir dos seus familiares,
companheiros ou donos. Assim que isto acontecer e todos os
jogadores ficarem com uma ideia inicial sobre este Animal, a
vez deve passar para outro jogador tomar a voz do seu Animal
enquanto o primeiro jogador assume agora a voz do Vento e o
outro a voz do Coração. Esta volta termina quando a vez passa
novamente para a esquerda e o último jogador assume a voz
do seu Animal, o primeiro é o Coração e outro é o Vento.
Assim, da mesma maneira que os Animais dão os seus
primeiros passos neste mundo, os jogadores também vão
aprendendo a sequência deste jogo.

Em cada vez, cada jogador pode escrever uma palavra em


cada um dos azulejos da linha em que ele se encontra,
ou seja, pode escrever até três palavras diferentes por
vez, cada palavra escrita dentro do azulejo do Animal, do
Coração ou do Vento. Estas palavras são escritas nos
azulejos que corresponderem ás vozes do jogadores que as
disserem. Cada jogador é que escolhe qual é a palavra que ele
considera poder ser mais interessante ou relevante para o
conjunto das três histórias destes três Animais. Em princípio,
estas deverão ser palavras que, por serem conceitos abstratos,
teem um significado em aberto que, ao contrário do que
acontece com a maior parte dos homens, está ainda a ser
descoberto, questionado ou explorado pelos animais. São
palavras como medo, amor, tamanho, força, esperança, morte,
viver, sonho, destino, obra, desejo, compaixão, idade, bravura,
beleza, desespero, salvação, ambição, deus, solidão, sabedoria,
etc. Certas palavras como lágrimas ou coração dizem respeito

Animais Como Nós


XIV

a conceitos concretos, mas também podem ter um significado


bastante mais lato. Naturalmente que, na primeira volta, o
nome do próprio Animal merece ser escrito quando dito pelo
Coração, mas não é obrigatório. Os jogadores não devem
interromper a conversa para informar os outros daquilo que
estão a escrever, nem se devem preocupar em espreitar aquilo
que os outros já escreveram. Podem sim estar atentos para
não repetirem uma palavra que já tenham escrito na sua ficha.
Devem também ser espontâneos e não se estenderem no
tempo para se lembrarem desta ou daquela palavra. É ao fim
de cada volta que os jogadores devem partilhar entre si aquilo
que escreveram.

Quando um jogador assumir uma voz e incorporar nela


uma palavra que tenha ficado escrita num azulejo de
outro jogador numa vez anterior, o jogador que disse
essa palavra recebe uma pedrinha e o outro jogador
marca um X em frente à palavra que escreveu. Se dois
jogadores tiverem escrito a palavra, os dois marcam um X em
frente dela e aquele jogador recebe duas pedrinhas. Uma
palavra que já tenha um X em frente dela não dá mais
nenhuma pedrinha, mas também não pode ser apagada. As
várias palavras marcadas ficam em cada ficha servindo como
memória do jogo. Após muitas voltas, se já for quase
impossível escrever nos azulejos porque estes estão cheios de
palavras, será a altura de fazer uma última volta para concluir
esta longa trama de histórias.

À medida que a vida dos três Animais for sendo contada


pelas três vozes, é possível eles serem postos dentro das
histórias uns dos outros. Tanto a voz do Coração como a voz
do Vento podem, de acordo com os seus propósitos, introduzir
na vez de um Animal uma personagem que seja o Animal de
outro jogador e que, nesta vez, é controlado pelo Coração ou
pelo Vento. O mesmo pode ser feito em relação a personagens
que tenham surgido como parte do Coração ou do Vento de um

Animais Como Nós


XV

outro Animal e que agora são introduzidas como personagens


relacionadas também com este Animal. Assim, nas primeiras
voltas, é fácil as vozes do Coração incorporarem palavras que
sejam os nomes destas personagens escritos na vez de outro
Animal. Além disto, as vozes do Vento devem sempre lembrar-
se que, como os três Animais vivem na mesma região, podem
eventualmente visitar os mesmos lugares e envolverem-se nos
mesmos acontecimentos.

Se um Animal morrer ou de alguma outra forma for


removido permanentemente da história, o seu jogador
continua a jogar assumindo a voz de um novo Animal tal
como na volta de aquecimento. O jogador continua a usar a
mesma ficha e tem que assumir a voz de um Animal
relacionado direta ou indiretamente com a história do anterior.
Esta pode ser uma personagem que anteriormente seria
assumida pelo Coração ou mesmo pelo Vento, desde que não
seja o Animal de outro jogador. Durante o jogo, a continuidade
na história não necessita de ser linear, ou seja, pode saltar
para trás no tempo para mostrar como era este novo Animal na
sua infância antes da sua vida se cruzar com a do Animal que
acaba de sair da história.

Animais Como Nós


XVI

Pedras
O monte de doze pedrinhas postas no meio da mesa
chama-se Mosteiro e dele, no início do jogo, cada
jogador retira um Espólio de três pedrinhas que coloca
ao lado da sua ficha. Durante o jogo, cada jogador poderá
dar ou receber pedrinhas do Mosteiro para o seu Espólio.
Estas pedrinhas representam a força que cada jogador tem
para suportar esta abóbada de histórias que é construída pelas
vozes dos três jogadores. Se o jogo parar para ser recomeçado
mais tarde, os jogadores podem manter o registo do número
de pedrinhas que o seu Espólio tem colocando um X por cada
pedrinha à frente do seu próprio nome.

Seguindo o seu propósito, cada voz tem as suas palavras


e as suas propostas. As suas palavras são suas e de mais
ninguém, são elas que descrevem os sons, as cores e os
cheiros do mundo no caso do Vento, a generalidade das
personagens no caso do Coração e a presença ou atitude do
protagonista no caso do Animal. As suas propostas são avanços
na história que partem do âmbito de cada voz mas que, ao
contrário das palavras, podem não receber concordância da
parte das outras vozes. Quando o Vento fala das folhas de
Outono que rodopiam numa dança de dourados e bronzes, isto
são palavras, mas quando um incêndio cresce como um
gigante que está a devorar a mata, isto é uma proposta.
Quando o Coração diz o que uma raposa está a dizer quando
conversa com um Animal, isto são palavras, mas quando a
mesma raposa engana este Animal para a ajudar a massacrar
um galinheiro, isto é uma proposta. Quando o Animal diz que
passa o seu fim-de-tarde a reunir material para o seu ninho,
isto são palavras, mas quando o animal diz que tem pronto um
ninho quentinho escondido num sítio que nenhum predador o
encontra, isto é uma proposta. Enquanto todas as palavras são
livres, cada proposta pode implicar dar uma pedrinha para o

Animais Como Nós


XVII

Mosteiro e, para isso, todos os jogadores devem estar atentos


ás palavras das várias vozes.

Quando uma voz ouve uma proposta vinda de outra voz,


o seu jogador pode escolher aceitar, pedir ou recusar.
Para aceitar, não necessita de fazer nada. Para pedir, pousa na
mesa a sua mão vazia voltada para cima junto ao Mosteiro,
sinalizando que a sua voz só aceita a proposta se o jogador
proponente der uma pedrinha do seu Espólio para o Mosteiro.
Para recusar, põe na mesa a sua mão fechada virada para cima
junto ao Mosteiro, sinalizando que a sua voz não pode aceitar
esta proposta. Quando as duas vozes que ouvem a proposta de
uma outra voz a aceitam, aquilo que foi proposto entra na
história. Quando uma delas pede uma pedrinha, a proposta
entra desde que o seu jogador entregue uma pedrinha do seu
Espólio, mesmo que a outra voz também peça, aceite ou
recuse. Quando uma delas se recusa, se a outra voz também
recusar, a proposta não entra, mas se a outra voz aceitar ou
pedir, a proposta entra desde que uma pedrinha seja dada.

Todas estas reações ás várias propostas devem ser


gesticuladas sem interromper a voz que está a falar. No
entanto, esta pode alterar a sua proposta ou mesmo propor
algo diferente para conseguir um maior consenso, desde que
estas adaptações não se arrastem no tempo só para não pagar
uma pedrinha. De qualquer modo, as propostas devem ser
declaradas sempre de forma positiva, sem fazer perguntas
nem indicar condições, ou seja, são frases que exprimem desde
logo o que é suposto acontecer na história e não o que a voz
acha que pode ou deve acontecer se as outras vozes
eventualmente não recusarem ou não pedirem uma pedrinha
para o Mosteiro. Apesar das concessões que tenha que fazer,
uma voz nunca desiste de assumir a sua devida presença em
todas as histórias. Há mesmo momentos em que todos os
jogadores vão considerar que uma proposta da parte do Vento,
do Coração ou do Animal tem que existir, é só uma questão de

Animais Como Nós


XVIII

determinar qual esta será. Durante a primeira volta do jogo,


pelo menos três propostas devem ser decididas pelas vozes e
cada vez mais devem fazer parte de cada volta à medida que
os jogadores se forem habituando a este processo e forem
recebendo pedrinhas pelas palavras escritas que as suas vozes
incorporarem.

Ao longo do jogo, cada Espólio vai recebendo uma


pedrinha por cada palavra incorporada pelo seu jogador
e por cada volta no final da qual o seu jogador esteja
entre aqueles com menos Espólio. Para valer uma
pedrinha, cada palavra necessita de estar escrita pelo menos
desde a vez anterior num azulejo de outro jogador, não estar já
marcada com um X e tem de ser expressa dentro de um novo
contexto apresentado como parte das palavras ou propostas
feitas por uma voz. A entrega de cada pedrinha é feita por
cada jogador que tenha escrito a palavra num dos seus
azulejos. Isto é feito pegando numa das pedrinhas que esteja
no Mosteiro, colocando-a no Espólio do jogador que a recebe e
escrevendo na ficha um X à frente da palavra dita. Se no
entanto o Mosteiro já estiver vazio, a pedrinha não é dada e,
por isso, a palavra não é marcada com um X. Deste modo, se o
Mosteiro tiver só uma pedrinha e um jogador disser uma
palavra que esteja escrita nas fichas dos outros dois, o
primeiro deles a reagir vai entregar uma pedrinha e marcar a
sua palavra com um X enquanto o segundo já não vai ter uma
pedrinha para entregar e não vai marcar a sua palavra. Todas
estas pedrinhas são entregues sem interromper quem estiver a
falar nem interferir com a entrada de uma proposta. No final
de cada volta, o Espólio ou os Espólios que tiverem menos
pedrinhas recebem uma pedrinha do Mosteiro. Se houverem
dois Espólios com o menor número de pedrinhas e só houver
uma pedrinha no Mosteiro, o jogador com o Espólio maior
escolhe qual deles recebe essa pedrinha. Se o Mosteiro estiver
vazio, todos os Espólios com pedrinhas teem que doar uma
para o Mosteiro. Entre cada volta, os jogadores devem

Animais Como Nós


XIX

partilhar entre si as palavras que teem escritas nos seus


azulejos, mostrando assim as ideias que gostariam de ver
incorporadas nestas histórias que todos estão a criar.

Em geral, as pedrinhas são a moeda que mede o


compromisso que for possível estabelecer no conflito
entre as três vozes e são a recompensa para os jogadores
que fazem mais propostas e que incorporam palavras
que os outros jogadores considerem interessantes. Assim,
o ciclo de dar e receber pedrinhas do Mosteiro está
equilibrado entre o conflito criador das três vozes e o convívio
entre os jogadores. Por um lado, o Animal, o Coração e o Vento
são partes essenciais e indispensáveis para a história, pelo que
o seu valor relativo merece ser avaliado para que os seus
propósitos acabem por se suportar mutuamente. Por outro, o
jogo só pode funcionar se cada jogador puser as suas ideias na
mesa apoiando-se nas ideias dos outros jogadores para que os
gostos e os interesses de cada um se combinem numa
conversa animada em que todos querem participar.

Animais Como Nós


XX

Vozes
A voz do Animal é a voz mais importante deste jogo. As
histórias nele criadas nunca seriam verosímeis se o instinto e a
natureza dos animais não determinasse o seu comportamento.
Qualquer Animal, acima de tudo, quer estar vivo amanhã, de
preferência com a barriga cheia e satisfeito por ter acasalado.
Por outro lado, se estiver a sofrer, só quer que a dor pare e, se
o seu sofrimento não tiver fim, talvez só queira morrer, mas,
acima de tudo, um animal é uma criatura simples. Quer beber
se tiver sede, quer calor se tiver frio, quer fugir se tiver medo,
quer seguir a sua natureza pois é ela que tem garantido a
sobrevivência da sua espécie durante gerações. Cada animal
tem também o seu modo de experimentar o mundo, a sua
maneira de nele brincar, os seus gostos e os seus pequenos
prazeres guiados pelos seus sentidos apurados e pelas suas
capacidades naturais. Com o pragmatismo que num piscar de
olhos o transporta através da lufa-lufa do seu dia-a-dia, um
animal não costuma parar para pensar.

A voz do Coração é a voz mais importante deste jogo. Se,


por um lado, os animais falam e linguagem é pensamento, por
outro, os seus cinco sentidos não são suficientes para explicar
os sentimentos que estas criaturas teem e que despertam
noutras criaturas. Há um sentido maior por trás da sua vida e
da sua morte que vale a pena descobrir e perseguir, mesmo
que, para alguns, este sentido possa parecer ridículo, louco,
inútil ou destinado ao fracasso. Trata-se de preencher um
vazio de significado que todos os seres vivos parecem sentir
mas que não conseguem explicar. Qual é o sentido da sua
vida? Todos os animais acabam por se questionar nas suas
conversas e nos seus pensamentos acerca daquilo em que
acreditam, do que sentem e da razão que está por trás das
suas ações. Faça o que fizer, qualquer animal acaba por sentir
a necessidade de justificar as suas escolhas nem que seja só

Animais Como Nós


XXI

perante si próprio. Até uma criatura que confie inteiramente


nos seus instintos quer ser mais do que uma mera partícula de
pó no grande ciclo da natureza.

A voz do Vento é a voz mais importante deste jogo. Mais


cedo ou mais tarde, tudo tem que mudar, todas as verdadeiras
convicções teem de ser postas à prova para serem mais do que
meras palavras e todos os hábitos enraizados durante gerações
necessitam de ser postos em causa para serem valorizados. O
mundo gira constantemente sobre si próprio e em volta de um
eixo de mudança, pois só se movendo é que consegue evoluir,
só graças a um mar caótico de inúmeras variações em que
certas possibilidades sobem à superfície enquanto outras se
afundam é que o mundo se pode adaptar e continuar a existir
livre e independente do passado. É por existir esta liberdade e
novidade que as escolhas dos animais são verdadeiras e não
meros pontos de passagem ou ecos do que já aconteceu. Todas
as histórias deste jogo necessitam desta imprevisibilidade para
agarrarem a atenção dos seus jogadores e se tornarem únicas.

Cada uma das três vozes tem o seu propósito e os três


propósitos são essenciais para este jogo. O Animal quer
vida, o Coração quer sentido e o Vento quer mudança. Sem o
Animal, o jogo tornar-se-ia numa mera parábola filosófica sem
protagonistas que dessem a cara pelas múltiplas ideias nele
engendradas. Sem o Coração, o jogo teria de fingir que o
porquê das coisas não é a questão mais importante escondida
no meio de todas as outras. Sem o Vento, o jogo seria um
momento parado no tempo, estático e fechado dentro dele
próprio, preso ás suas expetativas sem admitir surpresas.
Assim, as três vozes são três pilares nos quais assenta o teto
em que os jogadores pintam as suas histórias.

Se estiveres a assumir a voz do Animal, o teu propósito é


viver como o animal que és. Deves conhecer a espécie que
estás a encarnar e imaginar como é o mundo visto pelos teus

Animais Como Nós


XXII

olhos, como são as formas, os tamanhos, as cores, os cheiros,


os sons, as línguas dos outros animais e os comportamentos
estranhos que eles teem. Imagina quais são os teus instintos e
como é que eles guiam os teus movimentos. Pensa não só nas
tua necessidades, mas também naquilo que gostas de fazer
experimentando o mundo à tua volta e explorando as tuas
capacidades naturais ou os teus sentidos apurados. Procura
formas de tornar a tua vida ou a tua morte mais confortável e
prazenteira. Torna-te mais forte, mais ágil e mais esperto. Lida
com o teu Coração tendo em conta que sentimentos bonitos
não põem comida na tua barriga. Lida com o teu Vento com a
noção de que te livrares de sarilhos só te vai meter em ainda
mais sarilhos.

Se estiveres a assumir a voz do Coração, o teu propósito


é levar o Animal a procurar um sentido para a sua vida.
Para isso, deves fazer o mesmo com as personagens que tu
crias e controlas, usando-as para mostrares ao Animal
diferentes pontos de vista sobre o mundo e o questionares
sobre aquilo em que ele acredita, os seus sentimentos,
ambições e ideias. A resposta a estas questões não deve ficar
subentendida ou encerrada num suposto monólogo interior do
Animal. O sentido da sua vida tem de ser descoberto e
expresso pela interação com outros animais, discutindo,
conversando, amando e odiando, vivendo e até matando.
Lembra-te também que responder a estas questões acaba por
conduzir o Animal a ainda mais questões, ou seja, o teu
propósito é a busca de sentido e não simplesmente ficar
satisfeito com a primeira resposta. Lida com o Animal sabendo
que os desafios que ele diz ter de enfrentar todos os dias não
são assim tão inultrapassáveis comparados com as questões
que tu lhe apresentas. Lida com o Vento do Animal tendo em
consideração que as suas tempestades podem ser úteis para o
Animal tomar consciência daquilo que é mais importante para
si, mas demasiadas ventanias podem também interferir com os
momentos introspetivos que tu pretendes e um caos excessivo
vai mesmo contra o teu propósito.

Animais Como Nós


XXIII

Se estiveres a assumir a voz do Vento, o teu propósito é


fazer com que o Animal mude. Mantém-te atento ao status
quo que se esteja a criar para o poderes mandar abaixo da
forma mais eficaz e inesperada. Desafia não só a sobrevivência
do animal, mas também o seu território, as suas relações com
outras criaturas, os recursos de que ele necessita e as suas
convicções. Faz ouvir a tua voz intervindo nas interações que o
Animal tem se em algum momento o diálogo deixar de ser
possível. Monta um mundo cheio de possibilidades que puxe o
Animal a sair do seu ninho para contactar com coisas novas.
Lembra-te que a vida dos animais é suposto ser brutal, mas
evita também tornares-te repetitivo, ou seja, nem todas as tuas
propostas teem de ser desvantajosas para o Animal. O mais
importante não é constantemente empurrar-lo para baixo, mas
sim dar ritmo à história introduzindo novas circunstâncias.
Lida com o Animal afirmando que juntos vocês podem fazer
dele um verdadeiro herói. Lida com o Coração do Animal tendo
em conta que o mundo não tem que fazer sentido, ás vezes as
coisas são como são e não tem de haver uma razão por trás de
tudo o que o Animal encontra.

Animais Como Nós


XXIV

Palavras do autor
Talvez a história da criação deste jogo tenha começado quando
folheei as primeiras páginas do livro “Batalha” de David Soares:
http://www.saidadeemergencia.com

Talvez até tenha começado antes quando o Rogério Ribeiro


desafiou-me a criar um RPG baseado numa obra literária
portuguesa, na sequência de um podcast que gravei ao vivo no
evento Conversas Imaginárias:
http://conversas-imaginarias.blogspot.com/

Talvez tudo se tenha conjugado apenas graças ao evento


RPGénesis que teve na sua edição de 2011 uma adesão
surpreendente entre a comunidade portuguesa e brasileira:
http://www.abreojogo.com/node/9601

Seja como for, espero ter aqui uma primeira versão em bruto de
um jogo que venha a ser merecedor da inspiração que recebeu,
da confiança que me foi dada e do apoio da nossa espetacular
comunidade de RPGistas em língua portuguesa.

Gostaria muito que o jogassem e que me contassem como


correu. Enviem um e-mail para o jogadorsonhador arroba gmail
ponto com e falem-me da vossa experiência com o jogo. Podem
também seguir-me no twitter @jogadorsonhador e ouvirem o
meu podcast:
http://jogadorsonhador.podbean.com

Força AliançaRPG!

Animais Como Nós

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