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Contracapa

Orelhas
“Esta célula pertence a um cérebro e este é o meu cérebro, de mim que
escrevo, e a célula em questão, e nela o átomo em questão, se dedica à minha
escrita, num gigantesco e minúsculo jogo que ninguém jamais descreveu...”

Nitrogênio, carbono, hidrogênio, ouro, arsênico... São 21 os elementos


químicos que dão título aos relatos deste livro, e 21 os títulos de uma
autobiografia que por afinidade e aproximação percorre o fio de uma história
pessoal e coletiva, aprofundando as raízes na obscura qualidade da matéria,
contando as histórias de um ofício “que é um caso particular, uma versão
obstinada do ofício de viver”. É este o gigantesco e minúsculo jogo que une
observação, memória e escrita reconstituindo a vivência de uma formação
amadurecida entre os anos de fascismo, num dramático episódio de guerra: de
quem, partindo da concretude do trabalho, aprende a entender as coisas e os
homens, a tomar posição, a medir-se com ironia e autoironia.

PRIMO LEVI escreveu dezenas de livros, dos quais foram publicados no Brasil É
isto um homem? e Afogados e sobreviventes.
Índice
Argônio
Hidrogênio
Zinco
Ferro
Potássio
Níquel
Chumbo
Mercúrio
Fósforo
Ouro
Cério
Cromo
Enxofre
Titânio
Arsênio
Nitrogênio
Estanho
Urânio
Prata
Vanádio
Carbono
Apêndice
PHILIP ROTH ENTREVISTA PRIMO LEVI
Cronologia da vida e das obras de Primo Levi
Ibergekumene tsores iz gut tsu dertseyln
(É bom contar as dores passadas)
Argônio
Existem, no ar que respiramos, os chamados gases inertes. Trazem curiosos
nomes gregos de origem duvidosa, que significam “o Novo”, “o Oculto”, “o
Inativo”, “o Estrangeiro”. E de fato são de tal modo inertes, tão satisfeitos em
sua condição, que não interferem em nenhuma reação química, não se combinam
com nenhum outro elemento e justamente por este motivo ficaram sem ser
observados durante séculos: só em 1962 um químico de boa vontade, depois de
longos e engenhosos esforços, conseguiu forçar o Estrangeiro (o xênon) a
combinar-se fugazmente com o flúor ávido e vivaz, e a façanha pareceu tão
extraordinária que lhe foi conferido o Prêmio Nobel. Chamam-se ainda gases
nobres, e aqui se poderia discutir se verdadeiramente todos os nobres são
inertes e todos os inertes são nobres; chamam-se também, enfim, gases raros,
ainda que um deles, o Argônio, o Inativo, esteja presente no ar na respeitável
proporção de um por cento: vale dizer, vinte ou trinta vezes mais
abundantemente que o anidrido carbônico, sem o qual não haveria traço de vida
neste planeta.
O pouco que sei de meus antepassados os aproxima destes gases. Nem todos
eram materialmente inertes, porque isso não lhes era concedido: eram antes, ou
tinham de ser, bastante ativos, para ganharem a vida e por uma certa moralidade
dominante pela qual “quem não trabalha não come”; mas inertes eram, sem
dúvida, no íntimo, inclinados à especulação desinteressada, ao discurso arguto, à
discussão elegante, sofística e gratuita. Não deve ser casual que as vicissitudes a
eles atribuídas, ainda que bastante variadas, têm algo de estático, uma atitude
de abstenção digna, de voluntária (ou aceita) posição à margem do grande rio da
vida. Nobres, inertes e raros: sua história é bastante pobre em relação àquela de
outras ilustres comunidades judias da Itália e da Europa. Parece que chegaram
ao Piemonte por volta de 1500, vindos da Espanha através da Provença, como
aparentemente demonstram alguns sobrenomes toponímicos característicos,
como Bedarida-Bédarrides, Momigliano-Montmélian, Segre (é um afluente do
Ebro, que banha Lérida, no nordeste da Espanha), Foà-Foix, Cavaglion-Cavaillon,
Migliau-Millau; o nome da cidadezinha de Lunel, junto à foz do Ródano, entre
Montpellier e Nîmes, foi traduzido no hebraico Jaréakh (= lua), e daí derivou o
sobrenome judaico-piemontês Jarach.
Rejeitados ou mal aceitos em Turim, haviam se estabelecido em várias
localidades agrícolas do Piemonte meridional, aí introduzindo a tecnologia da
seda, sem nunca superar, mesmo nos períodos mais prósperos, a condição de
uma minoria extremamente exígua. Não foram jamais nem muito amados nem
muito odiados; não chegaram notícias de perseguições notáveis contra eles; no
entanto, um muro de suspeita, de hostilidade indefinida, de derrisão, deve tê-los
mantido substancialmente separados do resto da população até muitas décadas
depois da emancipação de 1848 e a consequente ida para as cidades, se é
verdade o que meu pai me contava de sua infância em Bene Vagienna: a saber,
que seus contemporâneos, na saída da escola, costumavam zombar dele
(benevolamente), saudando-o com a ponta do casaco segura na mão fechada
como uma orelha de burro, e cantando: Ôrije 'd crin, ôrije d'asô, a ji ebreô ai
piasô: “Orelhas de porco, orelhas de burro, disto gostam os judeus”. A alusão às
orelhas é arbitrária, e o gesto era originalmente a paródia sacrílega da saudação
que os judeus piedosos se dirigem na sinagoga, quando são chamados à leitura
da Bíblia, mostrando-se uns aos outros a ponta do manto de oração, cujas
dobras, minuciosamente prescritas pelo ritual quanto a número, tamanho e
forma, são carregadas de significado místico e religioso: mas aqueles garotos
ignoravam a raiz de seu gesto. Lembro aqui, de passagem, que o desrespeito ao
manto de oração é tão antigo quanto o antissemitismo: com estes mantos,
sequestrados aos deportados, as SS mandavam confeccionar roupas de baixo,
que depois eram distribuídas aos judeus prisioneiros nos Lager.
Como sempre ocorre, a rejeição era recíproca: por parte da minoria, uma
barreira simétrica havia sido erguida contra toda a cristandade (góis, ñarelím: os
“gentios”, os “não-circuncidados), reproduzindo, em escala provinciana e num
contexto pacificamente bucólico, a situação épica e bíblica do povo eleito. Dessa
discrepância fundamental se alimentava a argúcia bonachona dos nossos tios
(barbe) e de nossas tias (magne): sábios patriarcas com cheiro de tabaco e
rainhas domésticas das casas, que também se autodefiniam orgulhosamente “o
povo de Israel”.
Quanto a este termo “tio”, é bom anunciar logo que ele deve ser
compreendido em sentido bastante amplo. Entre nós, é costume chamar de tio
qualquer parente velho, mesmo que muito distante: e como todas ou quase todas
as pessoas velhas da comunidade, ao fim e ao cabo, são nossos parentes, segue-
se que o número de nossos tios é grande. E no caso de os tios alcançarem uma
idade avançada (acontecimento frequente: somos gente longeva desde Noé), o
atributo de barba ou, respetivamente, de magna tende a fundir-se lentamente
com o nome e, com a ajuda de diminutivos engenhosos bem como de uma
insuspeita analogia fonética entre o hebraico e o piemontês, se cristaliza em
nomes complexos de som estranho, que se transmitem sem variações de geração
em geração, juntamente com as vicissitudes, as memórias e os ditos de quem os
levou por tanto tempo. Nasceram assim os Barbaiòtô (tio Elias), Barbasachín (tio
Isaac), Magnaiéta (tia Maria), Barbamôisín (tio Moisés, de quem se diz ter
mandado o prático esburacar os dois incisivos inferiores para poder segurar mais
comodamente o cachimbo), Barbasmelín (tio Samuel), Magnavigàia (tia Abigail,
que no dia do casamento entrara em Saluzzo no lombo de uma mula branca,
subindo o Pó congelado desde Carmagnola), Magnafôriña (tia Zéfora, do
hebraico Tzipporà, que significa “pássara”: esplêndido nome). A uma época
ainda mais remota devia pertencer Nònô Sacòb, que estivera na Inglaterra para
comprar tecidos e por isso usava “uma roupa axadrezada”; seu irmão,
Barbapartín (tio Bonaparte: nome ainda hoje comum entre os judeus, como
lembrança da primeira e efêmera emancipação concedida por Napoleão), havia
decaído de sua condição de tio porque o Senhor, bendito seja Ele, lhe dera uma
mulher tão insuportável que ele se batizara, se tornara frade e partira para a
China como missionário, para estar o mais possível longe dela.
Nona Bimba era belíssima, usava um boá de penas de avestruz e era
baronesa. A ela e a todos os de sua família os tornara barões Napoleão, porque
eles l’aviô prestaie 'd mañòd, lhe haviam emprestado dinheiro.
Barbarônín era alto, forte e de ideias radicais: fugira de Fossano para Turim e
tivera muitos ofícios. Contrataram-no no Teatro Carignano como figurante para o
Dom Carlos, e ele havia escrito aos seus para virem assistir à estreia. Vieram o
Tio Natan e a tia Allegra, na galeria; quando a cortina se levantou e a tia viu o
filho todo armado como um filisteu, gritou a plenos pulmões: Rônín, co 't fai!
Posa côl sàber!: “Aarão, o que estás fazendo? Larga esta espada!”.
Barbamiclín era um simplório; em Acqui era respeitado e protegido, porque os
simples são filhos de Deus e não lhes direis raca. Mas o chamavam Piantabibini,
desde que um rasbán (um ímpio) se divertira com ele, fazendo-o acreditar que os
perus (bibini) se semeiam como os pessegueiros, plantando as penas nos sulcos,
e depois crescem nos ramos. De resto, o peru tinha um lugar curiosamente
importante neste mundo arguto, suave e prudente: fosse porque, sendo
presunçoso, desajeitado e colérico, exprime as qualidades opostas e se presta a
ser objeto de zombaria; ou talvez, mais simplesmente, porque à sua custa se
preparava na Páscoa uma célebre e semirritual quaiêtta 'd pitô (almôndega de
peru). Até o tio Pacífico, por exemplo, criava uma perua e lhe era afeiçoado. Em
frente, morava o senhor Lattes, que era músico. A perua cacarejava e perturbava
o senhor Lattes; este pediu ao tio Pacífico que mandasse calar a perua. O tio
respondeu: Sarà fàita la sôa cômissiôn. Sôra pita, c'a staga ciútô: “Será
encaminhado seu pedido. Senhora perua, fique calada”.
O tio Gabriel era rabino e, por isso, era conhecido como Barba Morénô, “tio
Nosso Mestre”. Velho e quase cego, fazia a pé o caminho entre Verzuolo e
Saluzzo sob o sol escaldante. Viu passar um coche, parou-o e pediu para subir;
mas em seguida, falando com o condutor, pouco a pouco se deu conta de que se
tratava de um carro fúnebre, que levava uma morta cristã ao cemitério: coisa
abominável, porque, como está escrito em Ezequiel 44:25, um sacerdote que
toque um morto, ou mesmo que só entre no recinto em que jaz um morto, está
contaminado e impuro por sete dias. Pôs-se em pé e gritou: I eu viagià côn ’na
pegartà! Viturin fermé!: "Viajei com uma morta! Cocheiro, pare!”
O Gnôr Grassiadiô e o Gnôr Côlômbô eram dois amigos-inimigos que, segundo
a lenda, moraram por tempo imemorável face a face, em cada um dos lados de
um estreito beco da cidade de Moncalvo. O Gnôr Grassiadiô era maçom e
riquíssimo: envergonhava-se um pouco de ser judeu e havia esposado uma gói,
isto é, uma cristã, de cabelos louros e longos até o chão, que lhe punha chifres.
Esta gói, apesar de gói, chamava-se Magna Ausilia, o que indica um certo grau
de aceitação por parte dos descendentes; era filha de capitão do mar, que havia
presenteado o Gnôr Grassiadiô com um grande papagaio colorido vindo das
Guianas, que dizia em latim: “Conhece-te a ti mesmo”. O Gnôr Côlômbô era
pobre e mazziniano: quando chegou o papagaio, comprou outra ave toda
depenada e lhe ensinou a falar. Quando um papagaio dizia: Nosce te ipsum, o
outro respondia: Fate furb, “fique esperto”.
Mas a propósito da pegartà do tio Gabriel, da gói do Gnôr Grassiadiô, do
mañòd (dinheiro) da Nona Bimba e da havertà de que falaremos em seguida,
torna-se necessária uma explicação. Havertà é termo hebraico estropiado, tanto
na forma quanto no significado, e rico de significados. Propriamente, é uma
forma feminina arbitrária de Havér = companheiro, e significa “doméstica”, mas
contém a ideia secundária de mulher de baixa extração, a quem se é obrigado a
dar guarida sob o teto; a havertà é tendencialmente pouco limpa e viciosa, e por
definição malevolamente curiosa sobre usos e costumes dos donos da casa, a
ponto de obrigar estes a servirem-se em sua presença de um jargão particular,
do qual evidentemente faz parte o próprio termo havertà, além dos outros
citados. Esse dialeto hoje está quase desaparecido; há um par de gerações, era
ainda rico de algumas centenas de vocábulos e de locuções, consistentes em
geral de raízes hebraicas com desinências e flexões piemontesas. Um exame
mesmo sumário denuncia sua função dissimuladora e subterrânea, de linguagem
astuta destinada a ser empregada falando de góis na presença de góis; ou
também para responder imprudentemente, com injúrias e maldições
incompreensíveis, ao regime de clausura e de opressão por eles instaurado.
Seu interesse histórico é exíguo, porque não foi jamais falado por mais do que
alguns milhares de pessoas: mas é grande seu interesse humano, como o é
aquele de todas as linguagens de limite e de transição. Ele contém, de fato, uma
admirável força cômica, que deriva do contraste entre a trama do discurso, que é
o dialeto piemontês áspero, sóbrio e lacônico, jamais escrito senão por
obrigação, e o enxerto hebraico, extraído da remota língua dos ancestrais, sacra
e solene, geológica, polida pelos milênios como o sulco das massas de gelo das
montanhas. Mas esse contraste espelha outro, o contraste essencial do
hebraísmo da Diáspora, disperso entre os “gentios” (os góis, exatamente), em
tensão entre a vocação divina e a miséria quotidiana do exílio; e um outro ainda,
bem mais geral, aquele inerente à condição humana, porque o homem é
centauro, emaranhado de carne e de espírito, de hálito divino e de pó. O povo
judeu, após a dispersão, viveu longa e dolorosamente esse conflito, e daí extraiu,
ao lado de sua sabedoria, o seu riso, que de fato falta à Bíblia e aos Profetas.
Dele está permeado o iídiche, e em seu modesto limite também o discurso
bizarro de nossos pais desta terra, que quero lembrar aqui antes que
desapareça: discurso cético e bonachão, que só num exame distraído poderia
parecer blasfemo, pois que é rico de afetuosa e digna confidência com Deus,
Nôssgnôr, Adonai Eloénô, Cadòss Barôkhú.
Sua raiz mortificada é evidente: para exemplificar, nele faltam, por inúteis,
palavras para “sol”, “homem”, “dia”, “cidade”, ao passo que estão representados
os termos para “noite”, “esconder”, “dinheiro”, “prisão”, “sonho” (mas usado
quase exclusivamente na expressão bahalòm, “em sonho”, a ser acrescentada
burlescamente a uma afirmação para que seja entendida pelo interlocutor, e só
por ele, como o seu contrário), “roubar”, “enforcar” e assemelhados; existe, além
disso, um bom número de depreciativos, usados às vezes para julgar pessoas,
mas empregados mais tipicamente, por exemplo, entre marido e mulher parados
diante do balcão do comerciante cristão e em dúvida quanto à compra. Citemos:
’n saròd, plural majestático, não mais compreendido como tal, do hebraico tzarà
= desventura, e usado para descrever uma mercadoria ou uma pessoa de pouco
valor; existe ainda seu gracioso diminutivo sarôdín, e não queria que fosse
esquecida a feroz expressão saròd e senssa mañòd, usada pelo agente
matrimonial a propósito de moças feias e sem dote; hasirúd, coletivo abstrato
derivado de hasír = porco, e portanto equivalente a “porcaria, imundície”.
Observe-se que o som “u” (francês) não existe no hebraico; existe, porém, a
desinência “út” (com “u” italiano), que serve para cunhar termos abstratos (por
exemplo, malkhút, reino, a partir de mélekh, rei), mas ela não tem a conotação
fortemente depreciativa que possuía no uso dialetal. Outro emprego típico e
óbvio destes e outros termos semelhantes era no comércio, entre o dono e os
empregados, contra os fregueses: no Piemonte do século passado, o comércio de
panos estava frequentemente em mãos de judeus, e daí nasceu um subdialeto
especializado que, transmitido pelos empregados transformados por seu turno
em patrões, e não necessariamente judeus, se difundiu para muitos
estabelecimentos do ramo e ainda vive, falado por gente que fica bastante
surpresa quando vem casualmente a saber que usa palavras hebraicas. Alguns,
por exemplo, empregam ainda a expressão 'na vesta a kiním, para indicar “um
vestido de poá”: ora, os kiním são os piolhos, a terceira entre as dez pragas do
Egito, enumeradas e cantadas no ritual da Páscoa hebraica.
Há também uma discreta variedade de vocábulos pouco decentes, a serem
empregados não só em sentido próprio diante das crianças, mas ainda no lugar
de impropérios: nesse caso, em cotejo com os termos italianos ou piemonteses
correspondentes, eles também apresentam, além da mencionada vantagem de
não serem compreendidos, a de aliviarem o coração sem lacerar a boca.
Certamente, mais interessantes para o estudioso dos costumes são alguns
poucos termos que aludem a coisas pertinentes à fé católica. Neste caso, a forma
originalmente hebraica está corrompida muito mais profundamente, e isso por
duas razões: em primeiro lugar, o segredo era aqui estritamente necessário,
porque sua compreensão por parte dos gentios poderia implicar o perigo de uma
incriminação por sacrilégio; em segundo lugar, a deformação adquire nesse caso
o objetivo preciso de negar, de obliterar o conteúdo mágico-sacral da palavra e,
portanto, de subtrair-lhe qualquer virtude sobrenatural: pelo mesmo motivo, em
todas as línguas o Diabo é designado com muitíssimos nomes de caráter alusivo
e eufemístico, que permitem indicá-lo sem proferir seu nome. A Igreja (católica)
era dita tônevà, vocábulo cuja origem não fui capaz de reconstruir e que
provavelmente de hebraico só tem o som; enquanto a sinagoga, com modéstia
orgulhosa, era chamada simplesmente scòla, o lugar onde se aprende e se é
educado, e paralelamente o rabino não era designado com o termo próprio rabbi
ou rabbénu (nosso rabino), mas como Morénô (nosso mestre) ou Khakhàm (o
Sábio). Na sinagoga, com efeito, não se é ferido pelo odioso Khaltrúm dos
idólatras: Khaltrúm ou Khantrúm é o rito e a beatice dos católicos, intolerável
porque politeísta e, sobretudo, porque coalhada de imagens (“Não terás outros
deuses além de mim; não farás para ti escultura nem imagem... e não a
adorarás”, Êxodo 20:3) e, portanto, idólatra. Também a origem deste termo,
pleno de execração, é obscura, quase certamente não hebraica: mas em outros
subdialetos judaico-italianos existe o adjetivo khalto, exatamente no sentido de
“carola”, usado principalmente para descrever o cristão adorador de imagens.
A-issà é a Virgem Maria (significa simplesmente "a mulher”); inteiramente
críptico e indecifrável, e era de prever, é o termo Odò, com o qual, quando não se
podia evitar, se aludia ao Cristo, abaixando a voz e olhando em volta com
circunspecção: de Cristo é bom falar o menos possível, porque o mito do Povo
Deicida é duro de morrer.
Inúmeros outros termos eram retirados tais e quais do ritual e dos livros
sagrados, que os judeus nascidos no século passado liam mais ou menos
expeditamente no original hebraico e muitas vezes compreendiam em boa parte:
mas, no uso dialetal, tendiam a deformar ou ampliar arbitrariamente sua área
semântica. Da raiz shafòkh, que significa "expandir” e surge no Salmo 79
(“Expande Tua ira sobre os que não Te reconhecem e sobre os reinos que não
invocam Teu Nome”), nossas antigas mães haviam construído a expressão
doméstica fé sefòkh, fazer sefòkh, com a qual se descrevia delicadamente o
vômito infantil. De rúakh, plural rukhòd, que significa “sopro”, ilustre vocábulo
que se lê no tenebroso e admirável segundo versículo do Gênesis (“O Espírito do
Senhor soprava sobre a face das águas”), se havia derivado tiré 'n ruàkh, “soprar
um vento”, em seus diversos significados fisiológicos: de onde se vê a
familiaridade bíblica do Povo Eleito com seu Criador. Como exemplo de aplicação
prática, transmite-se a frase de tia Regina, sentada com tio Davi no Café Fiorio,
na via Pó: Davidín, bat la cana, c'as sent ô nèn le rôkhòd! (“Davi, bata com a
bengala para que não ouçam teus peidos!”), que atesta uma relação conjugal de
afetuosa intimidade. Quanto à bengala, naquele tempo era um símbolo de
condição social, como poderia ser hoje viajar na primeira classe do trem: meu
pai, por exemplo, tinha duas, uma de bambu para os dias de semana, outra de
madeira da Índia com o cabo folheado a prata para o domingo. A bengala não lhe
servia para apoiar-se (não precisava disto), mas sim para girar jovialmente no ar
e afastar de seu caminho os cachorros por demais insolentes; como um cetro, em
resumo, para distinguir-se do vulgo.
Berakhà é a bênção: um judeu piedoso deve pronunciá-la centenas de vezes
ao dia, e o faz com alegria profunda, porque mantêm assim o diálogo milenar
com o Eterno, a quem em cada Berakhà se louva e agradece por Suas graças.
Nonô Leônín era meu bisavô, morava em Casale Monferrato e tinha os pés
chatos; o beco diante de sua casa era calcetado com pedras irregulares, e ele
sofria ao andar por ali. Uma manhã saiu de casa, encontrou o beco calcetado
com paralelepípedos e exclamou do fundo do coração: 'N abrakhà a côi gôjím c'a
l'an fàit i lòsi!: uma bênção àqueles infiéis que puseram os paralelepípedos.
Como maldição, porém, era usada a curiosa expressão medà meshônà,
literalmente “morte estranha”, calcada com efeito no piemontês assidènt. Ao
mesmo Nonô Leônín se atribui a imprecação inexplicável: c'ai takèissa ’na medà
meshônà fàita a paraqua, que lhe desabasse um acidente feito a guarda-chuvas.

E não poderia esquecer Barbaricô, mais próximo no tempo e no espaço, tanto


que faltou pouco (uma só geração) para que fosse meu tio na acepção restrita do
termo. Dele conservo uma recordação pessoal e, portanto, articulada e complexa,
não figeé dans un'attitude, como aquela dos personagens míticos que até agora
lembrei. A Barbaricô cai como uma luva a comparação com os gases inertes com
a qual estas páginas começam.
Havia estudado medicina e se tornado um bom médico, mas o mundo não lhe
agradava. Quer dizer, lhe agradavam os homens, e particularmente as mulheres,
os campos, o céu: mas não a labuta, o barulho dos coches, as manobras para
seguir carreira, a luta pelo pão quotidiano, os compromissos, os horários e os
títulos vencidos; nada, em suma, daquilo que caraterizava a vida diligente da
cidade de Casale Monferrato em 1890. Gostaria de fugir, mas era por demais
preguiçoso para tal. Os amigos e uma mulher, que o amava e que ele suportava
com distraída benevolência, convenceram-no a tentar o posto de médico a bordo
de um transatlântico de linha; ganhou facilmente o concurso, fez só uma viagem
de Gênova até Nova York, e na volta a Gênova entregou a função, porque na
América a j'era trop bôrdél, havia barulho demais.
A partir de então, estabeleceu-se em Turim. Teve diversas mulheres, que,
todas, queriam redimi-lo e desposá-lo, mas ele considerava demasiadamente
árduos seja o matrimônio, seja um consultório aparelhado e o exercício regular
da profissão. Por volta de 1930, era um velhinho tímido, encolhido e desleixado,
tremendamente míope; vivia com uma gôià gorda e vulgar, de quem eventual e
fracamente tentava se libertar, e que ele definia de vez em quando como 'na
sôtià, 'na hamortà, 'na gran beemà (uma maluca, uma burra, uma grande besta),
mas sem acrimônia e até com uma ponta de ternura inexplicável. Esta gói a vôría
fina félô samdé, queria até fazê-lo se batizar (literalmente: destruir); coisa que
ele sempre recusara, não por convicção religiosa, mas por falta de iniciativa e
por indiferença.
Barbaricô tinha nada menos que doze irmãos e irmãs, que designavam sua
companheira com o nome irônico e cruel de Magna Môrfina: irônico, porque a
pobre mulher, como gói e mulher sem filhos, não podia ser uma magna senão em
sentido extremamente limitado, a ser entendido inclusive como o seu contrário,
como não-magna, excluída e separada da família; cruel, porque continha uma
alusão provavelmente falsa, e de todo modo impiedosa, a supostas incursões suas
na farmacopeia de Barbaricô.
Os dois viviam numas águas-furtadas de Borgo Vanchiglia, sujas e caóticas. O
tio era um ótimo médico, cheio de sabedoria humana e dotado de bom olho
clínico, mas passava o dia inteiro esparramado em sua cama ordinária lendo
livros e jornais velhos: era um leitor atento, de boa memória, eclético e
incansável, embora a miopia o obrigasse a manter o texto a três dedos dos
óculos, espessos como fundos de garrafa. Só se levantava quando um cliente o
mandava chamar, o que ocorria frequentemente, porque ele quase não cobrava;
seus doentes eram a gente pobre da redondeza, de quem aceitava como
pagamento meia dúzia de ovos, legumes e verduras ou, talvez, um par de sapatos
gastos. Ia a pé até a casa dos clientes, porque não tinha o dinheiro do ônibus;
quando via na rua uma moça no meio da névoa da miopia, dela se aproximava e,
para sua grande surpresa, examinava-a cuidadosamente, girando em torno dela a
um palmo de distância. Não comia quase nada e, em geral, não tinha desejos;
morreu com mais de noventa anos, com discrição e dignidade.
Semelhante a Barbaricô em sua rejeição do mundo era Nona Fina, uma de
quatro irmãs que se chamavam todas Fina: esta singularidade de registro se
devia ao fato de que as quatro crianças tinham sido mandadas sucessivamente a
Bra para a mesma ama de leite, que se chamava Delfina e que assim chamava a
todos os que amamentava. Nona Fina morava em Carmagnola, num aposento do
primeiro andar, e fazia esplêndidos trabalhos de croché. Aos sessenta e oito anos
teve uma leve indisposição, uma caôdaña, como então costumavam ter as
senhoras e hoje misteriosamente não têm mais: desde então, por vinte anos, ou
seja, até sua morte, não saiu mais de seu quarto; no sábado, da pequena sacada
cheia de gerânios, frágil e exangue saudava com a mão as pessoas que saíam da
scòla. Mas devia ter sido bem diferente em sua juventude, se é verdade aquilo
que dela se conta: que, tendo-lhe o marido levado em casa como hóspede o
rabino de Moncalvo, homem douto e ilustre, ela o fizera comer, sem que ele
soubesse, 'na côtlêtta 'd hasír, uma costeleta de porco, porque não havia outra
coisa na despensa. Seu irmão, Barbaraflín (Rafael), que antes da promoção a
Barba era conhecido como 'l fieul 'd Môisé 'd Celín (o filho do Moisés de Celín),
já em idade madura e riquíssimo graças ao mañòd arrecadado com provisões
militares, se havia enamorado de uma certa Dolce Valabrega de Gàssino, uma
belíssima mulher; não ousava declarar-se, escrevia-lhe cartas de amor que não
expedia e escrevia a si mesmo respostas apaixonadas.
Também Marchín, ex-barba, teve uma história de amor infeliz. Havia se
apaixonado por Susana (em hebraico, “lírio”), mulher ativa e piedosa, depositária
de uma receita secular para a feitura de enchido de ganso: este enchido utilizava
como envoltório o próprio pescoço da ave, e daí que no Lassòn Acòdesh (na
“língua santa”, isto é, no dialeto de que nos estamos ocupando) hajam
sobrevivido pelo menos três sinônimos para “pescoço”. O primeiro, mahané, é
neutro e de uso técnico e genérico; o segundo, savàr, usa-se apenas em
metáforas, como a rôta 'd savàr, desastradamente; o terceiro, khanèc,
extremamente rico de alusões, alude ao pescoço como percurso vital, que pode
ser obstruído, fechado ou cortado, e usa-se em imprecações como c'at resta ant 'l
khanèc, tomara que entale na goela; khanichésse significa “enforcar-se”. Pois
bem, Marchín era empregado e ajudante de Susana, seja na misteriosa cozinha-
oficina, seja na loja, em cujas prateleiras se alinhavam promiscuamente salames,
ornamentos sagrados, amuletos e livros de oração. Susana rejeitou-o, e Marchín
vingou-se abominavelmente vendendo a um gói a receita do enchido de ganso. É
o caso de pensar que este gói não lhe tenha estimado o valor, uma vez que depois
da morte de Susana (acontecida em época já remota) não mais foi possível
encontrar no comércio enchido de ganso digno do nome e da tradição. Por essa
sua abjeta atitude o tio Marchín perdeu o direito de ser chamado tio.
O mais remoto de todos, portentosamente inerte, envolvido num espesso
sudário de lenda e inverossimilhança, fossilizado fibra por fibra em sua qualidade
de tio, era Barbabramín de Chieri, tio de minha avó materna. Ainda jovem, era já
muito rico, tendo adquirido dos nobres da região inúmeras granjas desde Chieri
até Astigiano; contando com a herança, seus parentes dissiparam todos os
haveres em banquetes, bailes e viagens a Paris. Mas aconteceu que sua mãe, a
tia Milca (Rainha), ficou doente e, depois de muita discussão com o marido,
aceitou contratar uma havertà, ou seja, uma doméstica, coisa que recusara
secamente até aquele tempo: de fato, com pressentimentos, não queria mulheres
pela casa. Barbabramín, exatamente, se tomou de amores por esta havertà,
provavelmente a primeira mulher um pouco menos do que santa de quem lhe
fora dado aproximar-se.
Dela não se transmitiu o nome, mas sim alguns atributos. Exuberante e
bonita, possuía esplêndidos khalaviòd (“seios”: o termo é desconhecido no
hebraico clássico, em que, no entanto, khalàv significa “leite”). Naturalmente,
era uma gói, era insolente e não sabia ler nem escrever; apesar de tudo, uma
habilíssima cozinheira. Camponesa, ña pôñaltà, andava descalça pela casa.
Justamente de tudo isso é que o tio se enamorou: de seus tornozelos, de sua
liberdade de linguagem, das comidas que cozinhava. Não disse nada à moça, mas
declarou ao pai e à mãe que pretendia desposá-la; os pais tomaram-se de todas
as fúrias, e o tio caiu de cama. Aí ficou durante vinte e dois anos.
A respeito do que fez Barbabramín durante esses anos as versões divergem.
Não há dúvida de que em boa parte os dormiu e os dissipou: sabe-se com certeza
que se arruinou economicamente, porque “não destacava os cupons” dos bônus
do Tesouro e porque havia confiado a administração das propriedades a um
mamsér (bastardo) , que terminou por vendê-las a um testa de ferro em troca de
migalhas; segundo os presságios da tia Milca, o tio arrastou assim em sua ruína
toda a parentela, e ainda hoje se lamentam as consequências.
Dizem também que leu e estudou, e que, considerado por fim sábio e justo,
passou a receber no seu leito delegações dos notáveis de Chieri e dirimir
controvérsias; dizem também que o caminho deste mesmo leito não fosse
ignorado por aquela mesma havertà e que, pelo menos nos primeiros anos, a
clausura voluntária do tio fosse interrompida por incursões noturnas para jogar
bilhar no café embaixo. Mas, em suma, no leito ficou durante quase um quarto de
século, e quando a tia Milca e o tio Salomão morreram desposou a havertà e
levou-a de vez para o leito, porque já estava de tal modo enfraquecido que não se
aguentava mais sobre as pernas. Morreu pobre, mas rico em anos e fama, e em
paz de espírito, em 1883.
A Susana do enchido de ganso era prima de Nona Màlia, minha avó paterna,
que sobrevive sob a imagem de mulher sedutora, minúscula e elegante, em
algumas fotos de estúdio tiradas por volta de 1870, e como uma velhinha
enrugada, irascível, desleixada e estupidamente surda em minhas mais remotas
lembranças de infância. Ainda hoje, inexplicavelmente, as prateleiras mais altas
dos armários restituem suas relíquias preciosas: xailes de renda negra
pespontados com ornatos irisados, belos bordados de seda, um agasalho para as
mãos, de pele de marta, estraçalhado por quatro gerações de traças, talheres de
prata maciça marcados com suas iniciais: como se, depois de quase cinquenta
anos, seu espírito inquieto ainda visitasse nossa casa.
Em seus dias de esplendor era conhecida como la Strassacoeur, a destruidora
de corações: ficou viúva muito cedo, e correu o boato de que meu avô se matara
por suas infidelidades. Criou espartanamente três filhos e os fez estudar: mas em
idade avançada deixou-se desposar por um velho médico cristão, solene, barbudo
e taciturno, e a partir de então foi-se inclinando para a avareza e a bizarria, por
mais que na juventude tivesse sido soberanamente pródiga, como soem ser as
mulheres belas e muito amadas. Com o correr dos anos se afastou totalmente
dos afetos familiares (que, de resto, não devia jamais ter sentido com
profundidade). Morava com o Doutor na via Pó, num lugar escuro e tenebroso,
aquecido no inverno só por uma pequena estufa Franklin, e nunca jogava nada
fora porque tudo podia vir a servir: nem as cascas do queijo, nem o papel
laminado dos chocolates, com os quais fabricava bolas de prata para mandar às
Missões e “salvar um pretinho”. Talvez por medo de errar na escolha definitiva,
frequentava em dias alternados a Scòla da via Pio V e a paróquia de Santo
Otávio, e parece que costumava até mesmo, sacrilegamente, confessar-se.
Morreu com mais de oitenta anos em 1928, assistida por um coro de vizinhas
desgrenhadas, vestidas de negro e meio loucas como ela, conduzidas por uma
megera que chamava-se Madame Scilimberg: entre os tormentos do bloqueio dos
rins, a avó vigiou esta Scilimberg até o último suspiro, por medo de que ela
encontrasse o maftèkh (a chave) escondido debaixo do colchão e lhe roubasse o
mañòd e os hafassím (as joias, que aliás vieram a revelar-se todas falsas).
Depois da sua morte, filhos e noras dedicaram-se durante semanas, com
apreensão e repugnância, a revirar a montanha de relíquias domésticas que
atulhavam a moradia: Nona Màlia havia conservado, indiscriminadamente, coisas
refinadas e lixo repugnante. Dos severos armários de nogueira entalhada saíram
exércitos de percevejos deslumbrados pela luz, e lençóis de linho nunca usados,
e outros remendados e lisos, roçados até o limite da transparência; cortinas e
colchas de damasco double face; uma coleção de colibris empalhados, que se
tornaram pó assim que tocados; na adega jaziam centenas de preciosas garrafas
de vinho transformado em vinagre. Encontraram-se oito agasalhos do Doutor,
novos em folha e recheados de naftalina, bem como o único que ela lhe concedia
usar, todo remendado e cerzido, com a gola luzidia de gordura e um pequeno
escudo da maçonaria no bolso.
Não lembro quase nada dela, a quem meu pai chamava Maman (mesmo em
terceira pessoa) e amava descrever com seu gosto ávido do bizarro, mal
dissimulado por um véu de piedade filial. Meu pai, todas manhãs de domingo, me
levava a pé em visita a Nona Màlia: percorríamos lentamente a via Pó, e ele
detinha-se para acariciar todos os gatos, cheirar todas as trufas e folhear todos
os livros usados. Meu pai era l'ngegné(o Engenheiro), com os bolsos sempre
atulhados de livros, conhecido de todos os salsicheiros porque verificava com a
tábua de logaritmos a conta do fiambre. Não que comprasse este último sem
remorsos: mais supersticioso do que religioso, sentia mal-estar ao quebrar as
regras do Kasherút, mas gostava tanto do presunto que cedia todas as vezes
diante da tentação das vitrines, suspirando, maldizendo baixinho e me olhando
de soslaio, como se temesse um juízo meu ou esperasse cumplicidade.
Quando chegávamos à entrada tenebrosa da casa da via Pó, meu pai tocava à
campainha e a avó que vinha abrir gritava-lhe numa orelha: A l'è 'l prim 'd la
scòla!, é o primeiro da classe. A avó deixava-nos entrar com visível relutância e
guiava-nos através de uma fileira de recintos poeirentos e desabitados, um dos
quais, coalhado de instrumentos sinistros, era o consultório semiabandonado do
Doutor. O Doutor quase nunca se via, nem eu, por certo, desejava vê-lo, desde o
dia em que surpreendera meu pai narrando a minha mãe que, quando lhe
levavam para consulta crianças com dificuldade de fala, ele lhes cortava com
tesouras a membrana sob a língua. Chegados à sala de visitas, minha avó tirava
de um esconderijo a caixa de bombons, sempre a mesma, e me oferecia um. O
bombom vinha estragado, e eu o metia no bolso cheio de vergonha.

Nota sobre a grafia


Como o dialeto descrito é híbrido, híbrida também é a grafia a que tive
de recorrer. Leia-se:

eu, oeu: como no francês peu


ê: “e” indistinto ou semimudo
h: levemente aspirado, como no inglês home
kh: fortemente aspirado, como no alemão flach
ñ: “n” nasal, como em fango [lodo, lama] e no piemontês smaña
ô: como o “u” italiano
u: como o “u” francês, por exemplo em plume.

As outras letras, como no italiano.


Hidrogênio
Era janeiro. Enrico veio me chamar logo depois do jantar: seu irmão fora à
montanha e lhe deixara as chaves do laboratório. Me vesti num segundo e fui me
encontrar com ele na rua.
No caminho, soube que seu irmão não lhe tinha propriamente deixado as
chaves: era esta uma fórmula resumida, um eufemismo, como aqueles que se
dizem a quem é bom entendedor. O irmão, contrariando os hábitos, não
escondera as chaves nem as levara; além disso, havia-se esquecido de renovar a
Enrico a proibição de apropriar-se das chaves bem como as ameaças para o caso
de Enrico desobedecer. Ao fim e ao cabo: as chaves ali estavam, depois de meses
de espera; Enrico e eu estávamos bem decididos a não perder a ocasião.
Tínhamos dezesseis anos, e eu era fascinado por Enrico. Não era muito ativo e
o seu rendimento escolar era sofrível, mas possuía virtudes que o diferenciavam
de todos os outros da classe, e fazia coisas que ninguém mais fazia. Tinha uma
coragem tranquila e obstinada, uma precoce capacidade de sentir o próprio
futuro e de lhe dar peso e figura. Recusava (mas sem zombaria) nossas
intermináveis discussões, ora platônicas, ora darwinianas, mais tarde
bergsonianas; não era vulgar, não se gabava de suas capacidades esportivas e
viris, jamais mentia. Tinha consciência dos seus limites, mas nunca o ouvíamos
dizer (como todos nos dizíamos uns aos outros, com o fito de nos consolarmos ou
desafogar uma crise de mau humor): “Olha, acho que sou mesmo um idiota”.
A sua fantasia era pedestre e lenta: vivia de sonhos como todos nós, mas os
seus sonhos eram sensatos, eram opacos, possíveis, contíguos à realidade, não
românticos, não cósmicos. Não conhecia a minha oscilação atormentada entre o
céu (de um sucesso escolar ou esportivo, de uma nova amizade, de um amor
rudimentar e fugaz) e o inferno (de uma reprovação, de um remorso, de uma
brutal revelação de inferioridade que a cada vez parecia eterna, definitiva). Suas
metas eram sempre viáveis. Sonhava com a aprovação e estudava com paciência
coisas que não lhe interessavam. Queria um microscópio, e vendeu a bicicleta de
corrida para tê-lo. Queria saltar com vara, e frequentou o ginásio de esportes
durante um ano, todas as tardes, sem se dar ares de importância nem deslocar
as articulações, até chegar aos três metros e cinquenta que se propusera, e
depois parou. Mais tarde quis uma certa mulher, e a teve; quis o dinheiro para
viver tranquilo, e o obteve depois de dez anos de trabalho aborrecido e prosaico.
Não tínhamos dúvidas: seríamos químicos, mas as nossas expetativas e
esperanças eram diferentes. Enrico pedia da química, razoavelmente, os
instrumentos do ganho e de uma vida segura. Eu pedia outra coisa: para mim a
química representava uma nuvem indefinida de possibilidades futuras, que
envolvia meu porvir em negras volutas laceradas por resplendores de fogo, como
aquela nuvem que ocultava o Monte Sinai. Como Moisés, daquela nuvem
esperava minha lei, a ordem em mim, em torno de mim e no mundo. Estava
saciado de livros, que no entanto continuava a engolir com voracidade indiscreta,
e buscava uma outra chave para as verdades supremas: uma chave devia existir,
e estava certo de que, por alguma conspiração monstruosa em meu prejuízo e no
do mundo, não a obteria da escola. Na escola ministravam toneladas de noções
que digeria com diligência, mas que não me arrebatavam. Via se incharem os
brotos na primavera, luzir a mica no granito, via minhas próprias mãos, e dizia
para dentro de mim: “Compreenderei também isto, compreenderei tudo, mas não
como eles querem. Encontrarei um atalho, farei uma gazua, forçarei as portas”.
Era enervante, nauseabundo, escutar discursos sobre o problema do ser e do
conhecer, quando tudo em torno de nós era mistério que lutava por desvelar-se:
a vetusta madeira dos bancos, a esfera solar acima das vidraças e dos telhados, o
voo inútil das lanugens de sementes no ar de junho. Pois é: todos os filósofos e
todos os exércitos do mundo seriam capazes de construir esse mosquito? Não, e
nem mesmo compreendê-lo: isso era uma vergonha e uma abominação, era
preciso encontrar um outro caminho.
Havíamos de ser químicos, Enrico e eu. Exploraríamos o ventre do mistério
com as nossas forças, com nosso engenho; agarraríamos Proteu pela garganta,
interromperíamos suas metamorfoses inconsistentes, de Platão a Agostinho, de
Agostinho a Tomás de Aquino, de Tomás de Aquino a Hegel, de Hegel a Croce.
Nós o obrigaríamos a falar.
Sendo esse o nosso programa, não nos podíamos permitir o luxo de perder
oportunidades. O irmão de Enrico, misterioso e colérico personagem do qual
Enrico não falava de boa vontade, estudava química e havia instalado um
laboratório no fundo de um pátio, num curioso beco estreito que parte da praça
da Crocetta e se destaca na obsessiva geometria turinense como um órgão
rudimentar enxertado na estrutura evoluída de um mamífero. O laboratório
também era rudimentar: não no sentido de resíduo atávico, mas sim no de
extrema pobreza. Havia uma bancada revestida de pastilhas, uns poucos
recipientes de vidro, uns vinte frascos com reativos, muito pó, muita teia de
aranha, pouca luz e um grande frio. Por todo o caminho discutíramos sobre o que
fazer, agora que íamos “entrar no laboratório”, mas tínhamos ideias confusas.
Parecia-nos embarras de richesse, mas era uma outra dificuldade, mais
profunda e essencial: uma dificuldade ligada a uma antiga atrofia, nossa, de
nossas famílias, de nossa casta. O que sabíamos fazer com as nossas mãos?
Nada, ou quase. As mulheres, sim: nossas mães e avós tinham mãos vivas e
ágeis, sabiam coser e cozinhar, algumas até tocar piano, fazer aguarelas, bordar,
entrelaçar os cabelos. Mas e nós, e nossos pais?
Nossas mãos eram ao mesmo tempo grosseiras e fracas, decadentes,
insensíveis: a parte menos educada dos nossos corpos. Realizadas as primeiras e
fundamentais experiências do jogo, aprenderam a escrever e nada mais.
Conheciam o abraço convulso em torno dos ramos das árvores, nas quais
gostávamos de subir por instinto natural e ao mesmo tempo (Enrico e eu) por
confusa homenagem e retorno à origem da espécie; mas ignoravam o peso
solene e equilibrado do martelo, a força concentrada das lâminas, proibidas por
excesso de prudência, a textura sábia da madeira, a maleabilidade similar e
diferente do ferro, do chumbo e do cobre. Se o homem é o artífice, não éramos
homens: nós o sabíamos e sofríamos por isso.
Os vidros do laboratório encantavam-nos e intimidavam-nos. O vidro, para
nós, era aquilo que não se deve tocar porque se rompe e, no entanto, num
contato mais íntimo revelava-se uma matéria diferente de todas, particular, cheia
de mistério e de capricho. Nisso é semelhante à água, que também não tem
congêneres: mas a água está ligada ao homem, ou mais precisamente à vida, por
um hábito de sempre, por uma relação de necessidade múltipla, de modo que sua
singularidade se oculta sob a roupagem do costume. O vidro, porém, é obra do
homem e tem história mais recente. Foi a nossa primeira vítima, ou melhor, o
nosso primeiro adversário. No laboratório da praça Crocetta havia tubos de vidro
para modelar, de diferentes diâmetros, em formatos compridos e curtos, todos
cobertos de pó: acendemos um bico de Bunsen e pusemo-nos ao trabalho.
Trabalhar o tubo era fácil. Bastava submeter uma parte ao fogo: depois de um
certo tempo a chama tornava-se amarela e, simultaneamente, o vidro se fazia
fracamente luminoso. Nesse ponto o tubo podia ser dobrado: a curva que se
obtinha estava bem longe da perfeição, mas substancialmente alguma coisa
ocorria, podia criar-se uma forma nova, arbitrária; uma potência se tornava ato
— não era isso que Aristóteles queria?
Ora, também um tubo de cobre ou de chumbo se pode plasmar, mas logo nos
demos conta de que o tubo de vidro sob a chama possuía uma virtude única:
quando se tornava maleável, era possível, afastando rapidamente os dois
extremos frios, estirá-lo em filamentos muito finos ou, antes, finos além de todo
limite, passíveis de serem arrastados para cima pela corrente de ar quente que
vinha da chama. Finos e flexíveis como a seda. Mas, então, onde desaparecera a
rigidez obstinada do vidro maciço? Nesse caso, também a seda, também o
algodão, se fosse possível obtê-los em forma maciça, seriam inflexíveis como o
vidro? Enrico me contou que na aldeia do seu avô os pescadores costumam
capturar os bichos-da-seda quando já estão grandes e, desejosos de fabricar o
casulo, se esforçam desajeitadamente e às cegas por trepar nos ramos;
capturam-nos, partem-nos em dois com os dedos e, estirando os pedaços, obtêm
um fio de seda grande e tosco, extremamente resistente, que depois usam como
linha da cana de pescar. O fato, em que acreditei sem hesitar, me parecia
simultaneamente abominável e fascinante; abominável, pelo modo cruel daquela
morte e pelo uso fútil de um portento natural; fascinante, pelo ato de engenho
despreocupado e audaz que pressupunha da parte do seu mítico inventor.
O tubo de vidro se podia também soprar; isso, no entanto, era muito menos
fácil. Fechava-se a extremidade de um pequeno tubo: soprando com força a
partir da outra extremidade, formava-se uma bolha, muito bonita de ver e quase
perfeitamente esférica, mas de superfície absurdamente fina. Por menos que se
excedesse no sopro, a superfície assumia a iridescência das bolas de sabão, e
isso era um sinal seguro de morte: a bolha explodia com um estouro pequeno e
seco, e os fragmentos se esparramavam por terra com um tênue rumor de cascas
de ovo. De qualquer modo, era uma punição justa; vidro é vidro, não deveria
simular o comportamento da água com sabão. Forçando um pouco os termos,
podia entrever-se no acontecido um apólogo esopiano.
Depois de uma hora lutando com o vidro, estávamos cansados e humilhados.
Ambos tínhamos os olhos irritados e secos por lixar em demasia o vidro
abraseado, os pés gelados e os dedos cheios de queimaduras. Por outro lado,
trabalhar o vidro não é química: nós estávamos no laboratório com um outro
objetivo. Nosso objetivo era ver com nossos olhos, provocar com nossas mãos
pelo menos um dos fenômenos que se encontravam descritos com tanta
desenvoltura no nosso livro de química. Podia-se, por exemplo, preparar o óxido
de nitrogênio, que no Sestini e Funaro era ainda descrito com o termo pouco
apropriado e pouco sério de gás hilariante. Faria mesmo rir?
O óxido de nitrogênio prepara-se aquecendo cuidadosamente o nitrato de
amônio. Este último, no laboratório, não havia: havia, porém, amoníaco e ácido
nítrico. Misturamo-los, incapazes de fazer cálculos prévios, até conseguir uma
reação neutra ao tornassol, de sorte que a mistura se aqueceu fortemente e
emitiu abundante fumaça branca; logo decidimos fervê-la para eliminar a água.
O laboratório foi tomado rapidamente por uma névoa irrespirável, que não tinha
nada de hilariante; interrompemos a tentativa, por fortuna nossa, porque não
sabíamos o que pode acontecer se se aquece este sal explosivo sem o devido
cuidado.
Não era simples nem excessivamente divertido. Olhei ao redor e vi num canto
uma pilha seca comum. Eis o que faríamos: a eletrólise da água. Era uma
experiência de êxito seguro, que já fizera várias vezes em casa. Enrico não se iria
desiludir.
Pus água num bécher, dissolvi na água um pouco de sal, emborquei no bécher
dois vidros vazios de conserva, encontrei dois fios de cobre encapados, liguei-os
aos polos da pilha e introduzi as pontas nos vidros de conserva. Da ponta dos fios
subia uma minúscula procissão de pequenas bolhas: observando bem, aliás, via-
se que do cátodo escapava aproximadamente o dobro de gás que do anodo.
Escrevi na lousa a equação bem conhecida e expliquei a Enrico que acontecia
justamente aquilo que estava escrito ali. Enrico não parecia muito convencido,
mas já estava escuro, e nós meio entorpecidos de frio; lavamos as mãos,
compramos uns pedaços de bolo de castanhas e fomos para casa, deixando que a
eletrólise continuasse por sua conta.
No dia seguinte também encontramos o caminho livre. Em doce obediência à
teoria, o vidro do cátodo estava quase cheio de gás, o do anodo, cheio pela
metade: fiz a observação para Enrico, dando-me a maior importância possível e
buscando despertar nele a suspeita de que, não digo a eletrólise, mas a sua
aplicação como confirmação da lei das proporções definidas fosse uma invenção
minha, fruto de experimentações pacientes conduzidas no segredo do meu
quarto. Mas Enrico estava de mau humor e punha tudo em dúvida.
“Quem te disse que é realmente hidrogênio e oxigênio?” — retorquiu de maus
modos. “E se for cloro? Você não pôs sal aí?”
Aquela objeção me atingiu como um insulto: como Enrico se permitia duvidar
de uma afirmação minha? Eu era o teórico, só eu: ele, mesmo que titular (em
certa medida, e ainda assim só por transferência) do laboratório ou, antes,
justamente porque não podia ostentar outros títulos, deveria se abster de
críticas.
“Vamos ver agora” — disse. Ergui com cuidado o vidro do cátodo e, mantendo-
o emborcado, acendi um fósforo e aproximei-o. Deu-se uma explosão, pequena
mas seca e irada, o vidro se estilhaçou (por sorte, tinha-o à altura do peito, não
mais acima) e me restou na mão, como um símbolo sarcástico, o círculo do
fundo.
Fomos embora, comentando o acontecido. A mim tremiam-me um pouco as
pernas; sentia medo retrospetivo e, ao mesmo tempo, um orgulho tolo por haver
confirmado uma hipótese e por haver desencadeado uma força da natureza.
Então, era mesmo hidrogênio: o mesmo que queima no sol e nas estrelas e de
cuja condensação, em eterno silêncio, se formam os universos.
Zinco
Havíamos assistido durante cinco meses, reverentes e apertados como
sardinha em lata, às aulas de Química Geral e Inorgânica do Professor P., daí
extraindo sensações diversificadas, mas todas excitantes e novas. Não, a química
de P. não era o motor do Universo nem a chave da Verdade: P. era um velho
cético e irônico, inimigo de todas as retóricas (por isso, e só por isso, era também
antifascista), inteligente, obstinado e arguto, mas de uma argúcia triste.
Dele se contavam episódios de exames conduzidos com fria ferocidade e
declarado preconceito: suas vítimas prediletas eram as mulheres em geral, logo
a seguir as freiras, os padres e todos aqueles que se lhe apresentavam “vestidos
de soldado". A seu respeito se murmuravam histórias bastante suspeitas de
mesquinharia maníaca na condução do Instituto Químico e de seu laboratório
pessoal: que conservava no sótão caixas e caixas de fósforos usados, que proibia
aos bedéis jogarem-nas fora; que os misteriosos minaretes do próprio Instituto,
que ainda hoje conferem àquele trecho da avenida Massimo d'Azeglio um
disparatado aspecto de falso exotismo, foram mandados construir por ele em sua
remota juventude, para aí celebrar todo ano uma imunda e secreta orgia de
resgate, em que se queimavam todos os trapos velhos e os papéis de filtro do ano
escolar, e as cinzas ele as analisava pessoalmente, com miserável paciência, para
extrair todos os elementos de valor (e talvez também os de pouco valor) numa
espécie de metamorfose ritual a que somente Caselli, seu técnico-bedel
fidelíssimo, estava autorizado a assistir. Dele se contava, além disso, que havia
gasto toda a sua carreira acadêmica para demolir uma certa teoria de
estereoquímica, não com experimentos, mas com publicações. Os experimentos,
fazia-os um outro, o seu grande rival, não se sabe em qual parte do mundo:
publicava-os pouco a pouco nos Anais Helvéticos de Química, e ele rasgava-os
em pedaços um a um.
Não poderia jurar pela autenticidade destas histórias: mas verdadeiramente,
quando entrava no laboratório de Preparação, nenhum bico de Bunsen estava
com a chama suficientemente baixa, e por isso era prudente apagá-lo;
verdadeiramente, fazia os estudantes prepararem o nitrato de prata a partir de
moedas de cinco liras, aquelas com figura de águia, tiradas dos bolsos deles, e o
cloreto de níquel a partir dos vinte centavos com figura de mulher nua voando; e
verdadeiramente, a única vez que fui admitido no seu gabinete, vi escrito em boa
letra no quadro-negro: “Não quero funerais nem vivo nem morto”.
Para mim, P. era simpático. Gostava do rigor sóbrio de suas aulas; divertia-me
a desdenhosa ostentação com que exibia nos exames, em lugar da camisa
fascista prescrita, um cômico babador negro de um palmo, que a cada um de
seus movimentos bruscos lhe saía da lapela do casaco. Apreciava os seus dois
livros de texto, claros até o limite da obsessão, enxutos, cheios do seu desprezo
severo pela humanidade em geral e pelos estudantes preguiçosos e estúpidos em
particular: porque todos os estudantes, por definição, eram preguiçosos e
estúpidos; quem, por suprema ventura, conseguisse demonstrar-lhe não o ser,
tornava-se seu par e era honrado com uma lacônica e preciosa frase de elogio.
Agora, os cinco meses de espera inquieta haviam passado: entre os oitenta
matriculados foram escolhidos os vinte menos preguiçosos e menos estúpidos,
quatorze rapazes e seis moças, e para nós se abriu o laboratório de Preparação.
Do que se tratava, exatamente, nenhum de nós tinha uma ideia precisa: me
parece que fosse uma invenção sua, uma versão moderna e técnica dos rituais
selvagens de iniciação, em que cada súbdito seu era bruscamente arrancado ao
livro e à carteira de aula e transplantado para o meio de emanações que
queimam os olhos, ácidos que queimam as mãos e eventos práticos que não se
enquadram nas teorias. Por certo não quero contestar a utilidade e até a
necessidade desta iniciação: mas na brutalidade com que se realizava era fácil
perceber a intenção ofensiva de P, sua vocação para as distâncias hierárquicas e
para o menosprezo dos que constituíamos o seu séquito. Em suma: nenhuma
palavra, pronunciada ou escrita, foi por ele empregada como consolo, para
encorajar-nos no caminho que escolhêramos, para indicar os perigos e as
insídias, para transmitir-nos as malícias. Muitas vezes pensei que P. fosse no
fundo um selvagem, um caçador; quem vai à caça só tem que pegar a
espingarda, ou melhor, a zagaia e o arco, e enfiar-se na mata: o sucesso e o
insucesso só dependem dele. Pegue e parta, quando o momento chega os
vaticinadores e os augures não têm lugar, a teoria é fútil e se aprende no
caminho, as experiências dos outros não servem, o essencial é medir por um
metro próprio. Quem tem valor vence, quem tem olhos ou braços ou fôlego
curtos volta e muda de ofício: dos oitenta de que falei, trinta mudaram de ramo
no segundo ano e outros vinte mais tarde.
Aquele laboratório era ordenado e limpo. Passávamos ali cinco horas por dia,
das 14 às 19: na entrada, um assistente entregava a cada um de nós uma
preparação, depois cada qual dirigia-se ao posto”, onde o hirsuto Caselli
entregava a matéria-prima, exótica ou doméstica: um pedaço de mármore para
este, dez gramas de bromo para aquele, um pouco de ácido bórico para aquele
outro, um punhado de argila para aquele outro mais. Essas relíquias, Caselli nos
entregava com um ar de suspeição não dissimulado: era o pão da ciência, pão de
P., e além disso era também coisa sua, coisa que ele administrava; e não se podia
adivinhar que uso impróprio daquilo faríamos nós, profanos e inexperientes.
Caselli amava P. com um amor áspero e polêmico. Parece que lhe tivera sido
fiel durante quarenta anos; era a sua sombra, sua encarnação terrena, e, como
todos aqueles que exercem funções vicárias, constituía um exemplar humano
interessante: quero dizer, como aqueles que representam a Autoridade sem
possuí-la em si mesmos, como, por exemplo, os sacristãos, os guias de museu, os
bedéis, os enfermeiros, os “assistentes” dos advogados e dos tabeliães, os
representantes comerciais. Todos eles, em maior ou menor medida, tendem a
transfundir a substância humana do seu Principal na própria figura, como ocorre
com os cristais pseudomorfos: às vezes sofrem com isso, frequentemente se
regozijam, e possuem dois esquemas distintos de comportamento, segundo ajam
por si mesmos ou “no exercício de suas funções”. Acontece muitas vezes que a
personalidade do Principal os invade tão fundamente que perturba os seus
contatos humanos normais e, por isso, eles ficam celibatários: o celibato, com
efeito, é prescrito e aceito na condição monástica, que comporta justamente a
proximidade e a submissão à maior de todas as autoridades. Caselli era um
homem modesto, taciturno, em cujo olhar triste, e no entanto orgulhoso, se podia
ler:
— ele é um grande cientista e, como seu fâmulo, também eu sou um pouco
grande;
— eu, apesar de humilde, sei coisas que ele não sabe;
— conheço-o melhor do que ele próprio se conhece; prevejo seus atos;
— tenho poder sobre ele, defendo-o e protejo-o;
— posso falar mal dele, porque o amo: a vocês isso não é permitido;
— seus princípios são justos, mas ele aplica-os com negligência e, aliás, “antes
não era assim”. Se não fosse eu...
E, de fato, Caselli dirigia o Instituto com parcimônia e misoneísmo até
maiores que os do próprio P.
A mim, no primeiro dia, coube a preparação do sulfato de zinco: não devia ser
difícil demais, tratava-se de fazer um cálculo estequiométrico elementar e de
misturar as partículas de zinco com ácido sulfúrico previamente diluído;
concentrar, cristalizar, secar com a bomba, lavar e recristalizar. Zinco, zinc,
Zinck: com ele se fazem os baldes de roupa, não é um elemento que puxe muito
pela imaginação, é cinzento e seus sais são incolores, não é tóxico, não dá
reações cromáticas vistosas; em suma, é um metal aborrecido. É conhecido da
humanidade há dois ou três séculos, logo não é um veterano carregado de
glórias como o cobre nem tampouco um daqueles elementos novidadeiros que
ainda trazem consigo o clamor da sua descoberta.
Caselli me entregou o zinco, voltei ao meu lugar e me entreguei ao trabalho:
eu me sentia curioso, incomodado e vagamente enfastiado, como quando se tem
treze anos e se deve ir ao templo para recitar em hebraico a oração do Bar-
Mitzvà diante do rabino, o momento, desejado e um pouco temido, havia
chegado. Soara a hora do encontro com a Matéria, a grande antagonista do
Espírito: a Hyle, que curiosamente se encontra embalsamada nas desinências
dos radicais alquílicos: metil (metile), butil (butile) etc.
A outra matéria-prima, o partner do zinco, isto é, o ácido sulfúrico, não era
preciso que Caselli me desse: havia em abundância por todo o lado.
Concentrado, naturalmente: e deve-se diluí-lo em água; mas atenção, está escrito
em todos os tratados, é preciso operar às avessas, quer dizer, verter o ácido na
água e não o contrário, senão aquele líquido oleoso de aspecto tão inócuo está
sujeito a iras furibundas: sabem-no até os meninos do ginásio. Em seguida põe-se
o zinco no ácido diluído.
Nas anotações estava escrito um pormenor que à primeira vista me escapara,
ou seja, que o zinco, tão terno, delicado e dócil diante dos ácidos, que o corroem
imediatamente, comporta-se porém de modo muito diferente quando é muito
puro: então resiste obstinadamente ao ataque. Daí se podiam extrair duas
consequências filosóficas contrastantes: o elogio da pureza, que protege contra o
mal como uma couraça; o elogio da impureza, que propicia as mudanças, isto é, a
vida. Descartei a primeira, desagradavelmente moralista, e me detive na
consideração da segunda, que me era mais afim. Para que a roda gire, para que a
vida viva, são necessárias as impurezas, e as impurezas das impurezas: mesmo
com a terra, como se sabe, se se quiser que seja fértil. É preciso o dissenso, o
diverso, o grão de sal e de mostarda: o fascismo não os quer, os proíbe, e por isso
não és fascista; quer todos iguais e não és igual. Mas tampouco a virtude
imaculada existe ou, se existe, é detestável. Pega, pois, a solução de sulfato de
cobre que está na caixa de reagentes, acrescenta uma gota ao teu ácido
sulfúrico, e vê que a reação se inicia: o zinco desperta, recobre-se de uma
película branca de pequenas bolhas de hidrogênio, aí está, o encantamento
ocorreu, podes abandoná-lo ao seu destino e rodar um pouco pelo laboratório
para ver o que há de novo e o que fazem os outros.
Os outros faziam variadas coisas: alguns trabalhavam absortos, talvez
assobiando para se darem um ar de desenvoltura, cada qual por trás da sua
partícula de Hyle, outros davam voltas ou olhavam pelas janelas o Valentino, já
todo verde, outros mais fumavam e conversavam nos cantos.
Num canto havia uma capela, e diante da capela sentava-se Rita. Aproximei-
me e dei conta, com prazer fugaz, que estava preparando a minha mesma
fórmula: com prazer, porque havia algum tempo que rodeava Rita, ordenava
mentalmente brilhantes discursos de abordagem e depois, no momento decisivo,
não ousava enunciá-los e adiava para o dia seguinte. Não ousava em razão de
uma enraizada timidez e desconfiança, e também porque Rita desencorajava
aproximações, não se compreendia por quê. Era muito magra, pálida, triste e
segura de si: passava nos exames com boas notas mas sem o genuíno apetite,
que eu sentia, pelas coisas que lhe cabia estudar. Não era amiga de ninguém,
ninguém sabia nada dela, falava pouco, e por todos esses motivos me atraía,
buscava me sentar perto dela nas aulas, e ela não me acolhia em sua confiança, e
eu me sentia frustrado e desafiado. Ou me sentia desesperado, certamente não
pela primeira vez: com efeito, naquele tempo me acreditava condenado a uma
perpétua solidão masculina, privado para sempre do sorriso de uma mulher, de
que, no entanto, necessitava como de ar.
Estava bem claro que naquele dia apresentava-se uma oportunidade que não
podia ser desperdiçada: entre Rita e mim existia naquele momento uma ponte,
uma pequena ponte de zinco, frágil mas viável; adiante, dá o primeiro passo!
Girando em torno de Rita, dei-me conta de uma segunda circunstância
afortunada: da bolsa da moça deixava-se ver uma capa bem conhecida,
amarelada com bordas vermelhas, e no frontispício um corvo com um livro no
bico. O título? Lia-se somente ‘ANHA’ e ‘GICA’, mas não precisava mais: era meu
conforto daqueles meses, a história intemporal de Hans Castorp durante o seu
exílio encantado na Montanha mágica. Perguntei a Kita sobre o livro, cheio de
ansiedade por seu juízo, como se tivesse sido escrito por mim: e logo tive de me
convencer de que ela estava lendo aquele romance de um modo inteiramente
diferente. Como um romance, precisamente: interessava-lhe muito saber até que
ponto Hans iria com a senhora Chauchat, e saltava sem misericórdia as
fascinantes (para mim) discussões políticas, teológicas e metafísicas do
humanista Settembrini com o jesuíta-judeu Naphtha.
Não importa: ao contrário, há um terreno de debate. Poderia até tornar-se
uma discussão essencial e fundamental, porque judeu eu sou também, e ela não:
sou a impureza que faz reagir o zinco, sou o grão de sal e de mostarda. A
impureza, certamente: porque justamente naqueles meses se iniciava a
publicação de A Defesa da Raça, de pureza se falava muito, e eu começava a
ficar orgulhoso de ser impuro. Na verdade, até então não me importara muito ser
judeu: dentro de mim e nos contatos com os meus amigos cristãos, tinha sempre
considerado minha origem como um fato quase negligenciável mas curioso, uma
pequena e divertida anomalia, como quem tem sardas ou o nariz torto; um judeu
é alguém que no Natal não arma a árvore, que não deve comer fiambre mas
come do mesmo jeito, que aprendeu um pouco de hebraico aos treze anos e
depois esqueceu-o. Segundo a revista supracitada, um judeu é avaro e astuto:
mas eu não era particularmente avaro ou astuto, nem tampouco meu pai o fora.
Havia, portanto, muito a discutir com Rita, mas a conversa que me propunha
não desencadeava. Dei conta logo de que Rita era diferente de mim, não era um
grão de mostarda. Era filha de um negociante pobre e doente. A universidade,
para ela, não era absolutamente o templo do Saber: era uma trilho espinhosa e
cansativa que levava ao diploma, ao trabalho e à subsistência. Ela própria tinha
trabalhado, desde criança: ajudara o pai, fora empregada numa loja de aldeia, e
mesmo então rodava de bicicleta por Turim para entregar pedidos e cobrar
dividas. Tudo isso não me distanciava dela; ao contrário, achava admirável, como
tudo que lhe dizia respeito: suas mãos pouco cuidadas, as roupas modestas, seu
olhar firme, sua tristeza concreta, a reserva com que aceitava minha conversa.
Foi assim que o meu sulfato de zinco acabou por concentrar-se de modo
errado e reduziu-se a uma poeirinha branca que exalou em nuvens sufocantes
todo ou quase todo o seu ácido sulfúrico. Larguei-o a seu destino e propus a Rita
acompanhá-la até em casa. Estava escuro, a casa não era perto. O propósito a
que me dispunha era objetivamente modesto, mas me parecia de uma audácia
sem par: na metade do caminho hesitei, sentindo-me sobre brasa viva, e me
embriaguei a mim e a ela com discursos ofegantes e desconexos. Afinal,
tremendo de emoção, enfiei o meu braço sob o dela. Rita não se afastou nem
correspondeu à minha pressão, mas regulei meu passo com o dela, e me sentia
jovial e vitorioso. Parecia-me ter vencido uma batalha, pequena mas decisiva,
contra a escuridão, o vazio e os anos hostis que viriam.
Ferro
Além dos muros do Instituto Químico era noite, a noite da Europa:
Chamberlain regressara enganado de Munique, Hitler entrara em Praga sem
disparar um tiro, Franco tomara Barcelona e dominava Madrid. A Itália fascista,
pirata menor, ocupara a Albânia, e a premonição da catástrofe iminente
condensava-se como um orvalho viscoso nas casas e nas ruas, nos discursos
cautelosos e nas consciências adormecidas.
Mas naqueles muros espessos a noite não penetrava; a própria censura
fascista, obra-prima do regime, mantinha-nos separados do mundo, num branco
limbo de anestesia. Uns trinta entre nós tinham superado a severa barreira dos
primeiros exames e sido admitidos no laboratório de Análise Qualitativa do
segundo ano.
Havíamos entrado na vasta sala enfumaçada e escura como quem, entrando
na Casa de Deus, reflete a cada um dos seus passos. O laboratório anterior,
aquele do zinco, agora parecia-nos um exercício infantil, como quando, em
criança, se brinca de cozinhar: alguma coisa, de um modo ou de outro, sempre se
fazia, talvez pobre de rendimento, talvez de pouca pureza: era preciso mesmo
ser um borra-botas ou um sujeito todo errado para não conseguir derivar o
sulfato de magnésio da magnesita ou o brometo de potássio do bromo.
Aqui, não: aqui a coisa ficava séria, o confronto com a Matéria-Mãe, com a
mãe inimiga, era mais duro e mais próximo. Às duas da tarde, o Professor D., de
ar ascético e distraído, distribuía a cada um de nós um grama exato de um certo
pó muito fino: para o dia seguinte era preciso completar a análise qualitativa,
isto é, relatar que metais e não-metais aí se continham. Relatar por escrito, na
forma dissertativa, de sim e de não, porque não se admitiam dúvidas nem
hesitações: de cada vez era uma escolha, uma deliberação; uma ação madura e
responsável, para a qual o fascismo não nos havia preparado, e que exalava um
bom odor, seco e limpo.
Havia elementos fáceis e francos, incapazes de se esconderem, como o ferro e
o cobre; outros, insidiosos e fugidios, como o bismuto e o cádmio. Havia um
método, um esquema refletido e antigo de pesquisa sistemática, uma espécie de
pente e de rolo compressor a que nada (em teoria) podia escapar, mas eu
preferia inventar de cada vez o meu caminho, com rápidas e extemporâneas
incursões de guerra de movimento em lugar da rotina extenuante da guerra de
posição: sublimar o mercúrio em pequenas gotas, transformar o sódio em cloreto
e reconhecê-lo em fragmentos cristalizados sob o microscópio. De um modo ou
de outro, aqui a relação com a Matéria mudava, tornava-se dialéctica: tratava-se
de uma luta de esgrima, uma luta a dois. Dois adversários desiguais: por uma
parte, a interrogar, o químico implume, inerme, com o livro de texto de
Autenrieth como único aliado (porque D., frequentemente chamado em socorro
nos casos difíceis, mantinha uma escrupulosa neutralidade, ou seja, se recusava
a pronunciar-se: sábia atitude, porque quem se pronuncia pode errar, e um
professor não deve errar); por outra, a responder por enigmas, a Matéria, com
sua passividade dissimulada, velha como o Todo e portentosamente rica de
enganos, solene e sutil como a Esfinge. Começava então a soletrar o alemão, e
me encantava o termo Urstoff (que significa “Elemento”: literalmente, substância
primigênia”), assim como o prefixo Ur que aí aparece e que expressa justamente
origem antiga, distância remota no espaço e no tempo.
Nem mesmo aqui ninguém havia despendido muitas palavras para ensinar-nos
a nos defender dos ácidos, dos cáusticos, dos incêndios e das explosões: parecia
que, segundo a rude moral do Instituto, se contava com a obra da seleção natural
para eleger entre nós os mais adaptados à sobrevivência física e profissional.
Os escapes de ventilação eram poucos; cada qual, segundo as prescrições do
texto, no curso da análise sistemática fazia evaporar escrupulosamente no ar
uma boa dose de ácido clorídrico e de amoníaco, de sorte que no laboratório
ficava permanentemente estagnada uma densa névoa esbranquiçada de cloreto
de amônia, que se depositava nas vidraças das janelas em miúdos cristais
cintilantes. Na câmara do ácido sulfídrico, de atmosfera mortífera, retiravam-se
casais desejosos de intimidade e algum solitário para merendar.
Através da neblina, e no silêncio azafamado, ouviu-se uma voz piemontesa que
dizia: “Nuntio vobis gaudium magnum. Habemus ferrum”. Era março de 1939, e
poucos dias antes, com solene anúncio quase idêntico (“Habemus Papam”),
terminara o conclave que havia alçado ao Sólio de Pedro o cardeal Eugênio
Pacelli, em quem muitos tinham esperanças, porque em alguma coisa ou em
alguém é preciso afinal ter esperanças. Quem havia pronunciado o sacrilégio era
Sandro, o taciturno.
Entre nós, Sandro era um solitário. Rapaz de estatura média, magro mas
musculoso, nem mesmo nos dias mais frios usava casaco. Vinha para a aula com
calças surradas de falso veludo, meias de lã tosca e, às vezes, um pequeno
capote negro que me recordava Renato Fucini.1 Tinha grandes mãos calosas, um
perfil ossudo e áspero, a face curtida de sol, a testa baixa sob a linha dos
cabelos, que usava muito curtos e cortados à escovinha: caminhava com o passo
longo e lento do camponês.
Poucos meses antes tinham sido proclamadas as leis raciais, e eu também
estava me tornando um solitário. Os companheiros cristãos eram gente educada,
nenhum deles, nem entre os professores, me havia dirigido uma palavra ou um
gesto inimigo, mas sentia-os afastarem-se e, seguindo um comportamento antigo,
também eu me afastava: cada olhar trocado entre mim e eles se fazia
acompanhar de um relâmpago minúsculo, mas perceptível, de desconfiança e
suspeita. O que pensas de mim? O que sou para ti? O mesmo de seis meses atrás,
um teu semelhante que não vai à missa, ou o judeu que “não haverá de rir de
nós, entre nós”?
Tinha observado, com espanto e alegria, que entre Sandro e mim algo estava
nascendo. Não era em absoluto a amizade entre dois seres afins: ao contrário, a
diversidade das origens nos tornava ricos de “mercadorias” para trocar, como
dois comerciantes que se encontrem chegando de lugares remotos e
mutuamente desconhecidos. Tampouco era a confiança normal, admirável, dos
vinte anos: a esta, com Sandro, jamais cheguei. Logo me dei conta de que era
generoso, sutil, tenaz e corajoso, até com uma ponta de insolência, mas possuía
uma qualidade reservada e selvagem, de modo que, embora estivéssemos na
idade em que temos a necessidade, o instinto e o impudor de nos infligirmos
reciprocamente tudo o que formiga na cabeça e em outras partes (e é uma idade
que inclusive pode durar muito tempo, mas termina com o primeiro
compromisso), nada se deixava vislumbrar fora de seu invólucro de
comedimento, nada do seu mundo interior — que no entanto se adivinhava denso
e fértil — senão algumas raras alusões dramaticamente truncadas. Era feito da
matéria dos gatos, com os quais se convive por décadas sem que jamais se
deixem penetrar dentro da sua pele sagrada.
Tínhamos muito a trocar um com o outro. Disse-lhe que éramos como um
cation e um ânion, mas Sandro pareceu não receber bem a comparação. Nascera
na Serra de Ivrea, terra bela e sóbria: era filho de um pedreiro e passava o verão
nas funções de pastor. Não pastor de almas: pastor de ovelhas, e não por retórica
arcádica nem extravagância, mas por felicidade, amor à terra e ao mato, e por
plenitude de coração. Tinha um curioso talento mímico e, quando falava de
vacas, de galinhas, de ovelhas e de cães, se transfigurava, imitava-lhes os
olhares, os movimentos e as vozes, tornava-se alegre e parecia animalizar-se
como por encanto. Ensinava-me sobre plantas e animais, mas da sua família
falava pouco. O pai morrera quando ele era criança, tratava-se de gente simples
e pobre, e como o rapaz era ativo tinham decidido mandá-lo estudar a fim de
trazer algum dinheiro para casa: ele havia aceitado com seriedade piemontesa,
mas sem entusiasmo. Percorrera o longo itinerário do ensino elementar e
secundário buscando o máximo resultado com o mínimo de esforço: não lhe
importavam Catulo e Descartes, importava-lhe a aprovação e o domingo nos
esquis ou subindo montanhas. Escolhera Química porque lhe parecera melhor
que outro curso: era um ofício que tratava de coisas que se veem e se tocam, um
ganha-pão menos cansativo que ser marceneiro ou camponês.
Começamos a estudar física juntos, e Sandro ficou espantado quando busquei
explicar-lhe algumas das ideias que confusamente cultivava naquele tempo. Que
a nobreza do Homem, adquirida em cem séculos de tentativas e erros, consistia
em se tornar senhor da matéria, e que eu me matriculara em Química porque
queria me manter fiel a esta nobreza. Que vencer a matéria é compreendê-la e
compreender a matéria é necessário para compreender o universo e a nós
mesmos: e que, portanto, a Tabela Periódica de Mendeleiev, que justamente
naquelas semanas aprendíamos laboriosamente a desenredar, era uma poesia,
maior e mais solene do que todas as poesias digeridas no ginásio: pensando bem,
tinha até rima! Que, se buscava a ponte, o elo perdido, entre o mundo dos papéis
e o mundo das coisas, não precisava ir longe: estava ali, no Autenrieth, naqueles
nossos laboratórios enfumaçados e no nosso futuro ofício.
E por fim, e fundamentalmente: ele, rapaz honesto e aberto, não sentia o mau
cheiro das verdades fascistas que empestava o céu, não considerava uma
ignomínia que a um ser pensante se exigisse crer sem pensar? Não sentia
desprezo por todos os dogmas, todas as afirmações não demonstradas, por todos
os imperativos? Sentia: e então, como podia deixar de perceber no nosso estudo
uma dignidade e uma majestade novas, como podia ignorar que a química e a
física de que nos nutríamos, além de alimentos vitais por si mesmos, eram o
antídoto ao fascismo que ele e eu buscávamos, porque eram claras e distintas, a
cada passo verificáveis, e não tecidas de mentiras e vaidades, como o rádio e os
jornais?
Sandro me escutava com atenção irônica, sempre pronto a me desarmar com
uma ou outra palavra seca e educada quando eu descambava para a retórica:
mas algo amadurecia nele (certamente, não só por mérito meu: eram meses
repletos de acontecimentos fatais), algo que o perturbava por ser ao mesmo
tempo novo e antigo. Ele, que até então só lera Salgari, London e Kipling, tornou-
se subitamente um leitor furioso: digeria e recordava tudo, e tudo nele se
ordenava espontaneamente num sistema de vida; ao mesmo tempo, começou a
estudar, e sua média subiu de regular a muito bom. Simultaneamente, por
gratidão inconsciente e talvez também por desejo de desforra, pôs-se por sua vez
a ocupar-se da minha educação e me fez entender que tinha lacunas. Eu podia
até ter razão: podia a Matéria ser nossa mestra e talvez inclusive, na falta de
coisa melhor, nossa escola política; mas ele tinha uma outra matéria a que me
conduzir, uma outra educadora: não os pozinhos da Análise Qualitativa, mas
aquela verdadeira, a autêntica Urstoff intemporal, a pedra e o gelo das
montanhas vizinhas. Demonstrou-me sem esforço que eu não possuía os títulos
adequados para falar de matéria. Que comércio, que intimidade tinha tido eu, até
então, com os quatro elementos de Empédocles? Sabia acender uma estufa?
Atravessar a vau uma torrente? Conhecia a tempestade em cima da montanha? A
germinação das sementes? Não, e assim ele também tinha algo vital a me
ensinar.
Nasceu uma fraternidade, e para mim começou uma época frenética. Sandro
parecia feito de ferro e era ligado ao ferro por um antigo parentesco: os pais dos
seus pais, contou, tinham sido caldeireiros (magnín) e ferreiros (fré) dos vales
canaveses, fabricavam pregos na forja a carvão, cintavam as rodas dos carros
com aros incandescentes, batiam a chapa de ferro até o ponto da surdez: e ele
mesmo, quando descobria na rocha o veio vermelho do ferro, parecia-lhe
reencontrar um amigo. Quando o inverno acometia, amarrava os esquis na
bicicleta enferrujada, partia cedo e pedalava até a neve, sem dinheiro, com uma
alcachofra numa algibeira e a outra cheia de verduras: voltava de noite ou
mesmo no dia seguinte, dormindo no feno dos abrigos, e quanto mais tormenta e
fome sofria mais contente e melhor de saúde ficava.
No verão, quando saía só, muitas vezes levava consigo o cão para lhe fazer
companhia. Era um vira-lata amarelo de aspecto encolhido: de fato, como Sandro
me narrara, remedando à sua maneira o episódio animal, tinha sofrido um
infortúnio com uma gata quando era um cãozinho. Aproximara-se
demasiadamente da ninhada de gatinhos recém-nascidos, a gata irritara-se,
começara a resfolegar e a eriçar-se toda: mas o cãozinho ainda não havia
aprendido o significado desses sinais, e ali ficou como um tolo. A gata atacou-o,
perseguiu, alcançou e arranhou-lhe o focinho: isso acarretou para o cão um
trauma permanente. Sentia-se desonrado, e então Sandro fez uma pequena bola
de trapos, explicou-lhe que era um gato e toda manhã a apresentava a ele para
que se vingasse na bola da afronta e restaurasse a sua honra canina. Pelo mesmo
motivo terapêutico Sandro levava-o à montanha para espairecer: atava-o a uma
ponta da corda, atava a si próprio a outra ponta, deixava o cão bem aninhado
numa saliência da rocha, e escalava; quando a corda terminava, puxava-o
gentilmente e o cão havia aprendido, caminhava com o focinho para cima com as
quatro patas contra a parede quase vertical, ganindo baixinho como se sonhasse.
Sandro subia a montanha mais com o instinto do que com a técnica, confiando
na força das mãos e saudando ironicamente, nas reentrâncias a que se agarrava,
o silício, o cálcio e o magnésio que aprendera a reconhecer no curso de
mineralogia. Parecia-lhe ter perdido o dia se não esgotava de algum modo suas
reservas de energia, e então era até mais vivo o seu olhar: e me explicou que,
quando se leva vida sedentária, forma-se um depósito de gordura por trás dos
olhos, que não é sadio; cansando-se, a gordura se consome, os olhos recuam até
o fundo das órbitas e se tornam mais penetrantes.
De suas ações falava com extrema parcimônia. Não pertencia à raça dos que
fazem as coisas para poder contá-las (como eu): não apreciava as grandes
palavras, ou melhor, as palavras.
Parecia que ninguém lhe houvesse ensinado nem a falar nem a escalar; falava
como ninguém fala, dizia só o núcleo das coisas.
Se fosse o caso, levava trinta quilos de mochila, mas em geral ia sem nada:
bastavam-lhe as algibeiras cheias de verdura, como disse, um pedaço de pão,
uma pequena faca, algumas vezes um guia de alpinismo, todo manuseado, e
sempre um rolo de arame para os reparos de emergência. O guia, aliás, não o
levava porque nele acreditasse: antes, pela razão oposta. Recusava-o por senti-lo
como um vínculo; não só, mas como uma criatura bastarda, um detestável
híbrido de neve e rocha com papel. Levava-o à montanha para vilipendiá-lo, feliz
quando podia apontar-lhe um erro, mesmo que à própria custa ou à custa dos
companheiros de subida. Podia caminhar dois dias sem comer ou comer logo três
refeições e depois partir. Para ele, todas as estações eram boas. O inverno, para
esquiar, mas não nos pontos luxuosos e mundanos, de que fugia com lacônico
desprezo: pobres demais para comprarmos as peles de foca para as subidas,
Sandro havia me mostrado como se cosem telas de cânhamo tosco, materiais
espartanos que absorvem a água e depois congelam como bacalhaus, e nas
descidas é preciso atá-los à cintura. Arrastava-me em extenuantes caminhadas
na neve fresca, distantes de qualquer vestígio humano, seguindo itinerários que
parecia intuir como um selvagem. O verão, de refúgio em refúgio, era a época de
nos embriagarmos de sol, de cansaço e de vento, e de rasparmos a pele da polpa
dos dedos contra rochas jamais tocadas por mãos humanas: mas não contra
rochas famosas, nem à busca da façanha memorável; isto não lhe importava
verdadeiramente nada. Importava-lhe conhecer os seus limites, medir-se e
melhorar a si mesmo; mais obscuramente, sentia a necessidade de se preparar (e
de me preparar) para um futuro de ferro, a cada mês mais próximo.
Ver Sandro na montanha reconciliava com o mundo e fazia esquecer o
pesadelo que oprimia a Europa. Era seu lugar, aquele para o qual fora feito,
como as marmotas cuja expressão e silvo imitava: na montanha tornava-se feliz,
de uma felicidade silenciosa e contagiosa como uma luz que se acende. Suscitava
em mim uma comunhão nova com a terra e o céu, em que confluíam minha
exigência de liberdade, a plenitude das forças e a fome de compreender as coisas
que me haviam levado à química. Saíamos com a aurora, esfregando os olhos,
pelo portão do acampamento Martinotti, e eis a nosso redor, mal tocadas pelo
sol, as montanhas cândidas e escuras, novas como se criadas na noite recém-
finda e, ao mesmo tempo, incalculavelmente antigas. Constituíam uma ilha, um
mais além.
De resto, nem sempre era preciso ir muito alto e muito longe. Na meia
estação o reino de Sandro eram os locais de exercícios nas montanhas. Existem
diversos pontos a duas ou três horas de bicicleta de Turim, e até fico curioso por
saber se ainda são frequentados: os Picchi del Pagliaio, com o Torreão
Wolkmann, os Denti de Cumiana, Roca Patanüa (significa Rocha Nua), o Plô, o
Sbarüa e outros, com nomes caseiros e modestos. Este último, o Sbarüa, me
parece ter sido descoberto pelo próprio Sandro ou por um mítico irmão seu, a
quem Sandro jamais me apresentou, mas que, pelas raras alusões, devia
relacionar-se com ele como ele se relacionava com os mortais em geral. Sbarüa é
uma forma derivada de Sbarüé, que significa “atemorizar”; o Sbarüa é um
prisma de granito que se lança por uns cem metros a partir de uma modesta
colina eriçada de sarças e de matas produtoras de lenha: como o Velho de Creta,
está rachado desde a base até o cume por uma fenda que, à medida que sobe, se
torna cada vez mais estreita, até obrigar o montanhista a sair à face externa da
rocha, onde, precisamente, se assusta e onde existia então um único grampo, ali
deixado caridosamente pelo irmão de Sandro.
Tratava-se de lugares curiosos, frequentados por poucas dezenas de
aficionados à nossa maneira, que Sandro conhecia de nome ou de vista: subia-se,
não sem problemas técnicos, no meio de um zumbido enjoado de moscas atraídas
por nosso suor, escalando superfícies de pedra firme interrompidas por
patamares cobertos de vegetação onde cresciam fetos-machos-verdadeiros e
morangos, e no outono amoras; não poucas vezes, usavam-se como pontos de
apoio os troncos de alguma arvorezinha combalida, enraizada nas gretas: e
chegava-se depois de algumas horas ao cume, que não era absolutamente um
cume, mas em geral uma plácida pastagem em que as vacas nos observavam com
olhos indiferentes. Depois descia-se precipitadamente, em poucos minutos, por
trilhos salpicadas de esterco vacum antigo e recente, para buscar as bicicletas.
Outras vezes eram aventuras mais difíceis: nunca fugas tranquilas, porque
Sandro dizia que, para ver panoramas, teríamos tempo aos quarenta anos.
“Dôma, neh?” — me disse num dia de fevereiro: no seu dialeto, queria dizer que,
fazendo bom tempo, podíamos partir naquela tarde para a escalada invernal do
Dente de M., que estava programada há algumas semanas. Dormimos numa
pousada e partimos no dia seguinte, não cedo demais, numa hora imprecisa
(Sandro não gostava de relógios: percebia a tácita e contínua advertência dos
relógios como uma intrusão arbitrária); entramos ousadamente na névoa e dela
saímos por volta da uma hora da tarde, com um sol esplêndido, sobre um cume
que não era o bom.
Então eu disse que podíamos baixar uns cem metros, atravessar a metade do
declive e tornar a subir pela encosta seguinte: ou melhor ainda, já que ali
estávamos, continuar a subir e contentarmo-nos com o cume errado, que era só,
afinal, quarenta metros mais baixo do que o outro; mas Sandro, com esplêndida
má fé, disse em poucas e densas palavras que não lhe parecia ruim a minha
última proposta, mas que logo, “pela fácil crista noroeste” (era esta uma
sarcástica citação do já mencionado guia de alpinismo), iríamos alcançar
igualmente, em meia hora, o Dente de M.; e que não valia a pena ter vinte anos
se não nos permitíssemos o luxo de errar o caminho.
A fácil crista talvez fosse bem fácil e até elementar no verão, mas nós a
encontramos em condições ruins. A rocha estava molhada no lado que dava para
o sol e coberta por uma suja camada de gelo naquele sob sombra; entre uma
saliência e outra da rocha havia montes de neve suja em que se afundava até a
cintura. Chegamos ao cimo às cinco, eu cambaleando de causar dó, Sandro
tomado de uma hilaridade sinistra que eu achava irritante.
— E para descer?
— Para descer, veremos — respondeu; e acrescentou misteriosamente: — O
pior que pode nos acontecer é ter de experimentar carne de urso.
Pois bem, nós a provamos, a carne de urso, no decurso daquela noite que
pareceu interminável. Descemos em duas horas, precariamente ajudados pela
corda que estava congelada: convertera-se num emaranhado maligno e retesado
que se prendia em todas as saliências e soava contra a rocha como um cabo de
teleférico. Às sete encontrávamo-nos nas margens de um pequeno lago
congelado, e estava escuro. Comemos o pouco que sobrara, construímos uma
pequena e irrisória proteção contra a parte do vento e pusemo-nos a dormir no
chão, apertados um ao outro. Era como se também o tempo tivesse congelado;
levantávamo-nos de vez em quando para reativar a circulação e era sempre à
mesma hora: o vento soprava sempre, havia sempre um espetro de lua, sempre
no mesmo ponto do céu, e diante da lua uma cavalgada fantástica de nuvens
esfarrapadas, sempre igual. Havíamos tirado os sapatos, como descrito nos livros
de Lammer tão caros a Sandro, e mantínhamos os pés nos sacos; à primeira e
lúgubre luz, que parecia vir da neve e não do céu, levantamo-nos com os
membros entorpecidos e os olhos fora de órbita pela vigília, a fome e a dureza do
leito: e encontramos os sapatos de tal modo congelados que faziam um ruído de
badalo de sino e, para colocá-los, tivemos de chocá-los como fazem as galinhas.
Mas voltamos ao vale com os nossos meios e para o dono da pousada, que nos
perguntava zombando como havíamos passado, e antes de tudo olhava
obliquamente os nossos rostos transtornados, respondemos descaradamente que
tínhamos feito uma excursão ótima, pagamos a conta e fomos embora com a
cabeça erguida. Era essa a carne do urso: e hoje, quando se passaram tantos
anos, lamento tê-la comido pouco porque, de tudo que a vida me deu de bom,
nada teve nem de longe o sabor daquela carne, que é o sabor de ser forte e livre,
livre inclusive para errar, e dono do próprio destino. Por isso, sou grato a Sandro
por me haver conscientemente posto em apuros naquela e em outras ações
insensatas só na aparência, e sei com certeza que elas me serviram mais tarde.
Não lhe serviram a ele, ou não por muito tempo. Sandro era Sandro
Delmastro, o primeiro combatente morto do Comando Militar Piemontês do
Partido da Ação. Depois de poucos meses de tensão extrema, em abril de 1944
foi capturado pelos fascistas, não cedeu e tentou a fuga da Casa Littoria de
Cuneo. Foi morto com uma rajada de metralhadora na nuca por um monstruoso
menino-carniceiro, um daqueles desgraçados esbirros de quinze anos que a
República de Salò recrutara nos reformatórios. O seu corpo ficou muito tempo
abandonado no meio da rua porque os fascistas proibiram a população de lhe dar
sepultura.
Hoje, sei que é uma ação sem esperança revestir um homem de palavras,
fazê-lo reviver numa página escrita: especialmente um homem como Sandro.
Não era homem para ser objeto de narrativas ou de monumentos, ele que dos
monumentos se ria: estava todo nas ações e, uma vez terminadas estas, nada
resta dele; nada senão palavras, precisamente.

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1 Poeta toscano, nascido em Monterotondo em 1843 e morto em 1921.
Potássio
Em janeiro de 1941, a sorte da Europa e do mundo parecia selada. Só alguns
ingênuos podiam ainda pensar que a Alemanha não venceria; os ingleses,
insensatos, "não se haviam dado conta de terem perdido a partida” e resistiam
obstinadamente aos bombardeios, mas estavam sós e sofriam reveses sangrentos
em todas as frentes. Só um cego e surdo voluntário podia duvidar do destino
reservado aos judeus numa Europa alemã: tínhamos lido Os Irmãos Oppenheim,
de Feuchtwanger, importado às escondidas de França, e um Livro branco inglês,
vindo da Palestina, em que se descreviam as "atrocidades nazistas”;
acreditávamos em metade do que diziam, mas era o suficiente. Muitos refugiados
da Polônia e da França haviam chegado à Itália, e tínhamos conversado com eles:
não conheciam as particularidades do massacre que se desenvolvia sob um véu
de silêncio monstruoso, mas cada um deles era um mensageiro como aqueles
que acorrem a Jó para dizer-lhe: "eu só fiquei vivo para contar”.
No entanto, se se queria viver, se se queria de algum modo tirar proveito da
juventude que nos corria pelas veias, não restava outro recurso senão a cegueira
voluntária: como os ingleses, “não nos dávamos conta”, rechaçávamos todas as
ameaças para o limbo das coisas não percebidas ou logo esquecidas. Também se
podia, em abstrato, jogar tudo para o alto e fugir, transplantar-se para algum
país distante, mítico, escolhido entre os poucos que mantinham fronteiras
abertas: Madagáscar, Honduras Britânica; mas, para fazer isso, era preciso
muito dinheiro e uma extraordinária capacidade de iniciativa, e eu, minha família
e meus amigos não possuíamos nem uma coisa nem outra. Por outro lado, vistas
de perto e em particular, as coisas não pareciam tão desastrosas: a Itália à nossa
volta, ou melhor (numa época em que se viajava pouco), o Piemonte e Turim não
nos eram hostis. O Piemonte era a nossa verdadeira pátria, aquela em que nos
reconhecíamos; as montanhas em torno de Turim, visíveis nos dias claros e ao
alcance da bicicleta, eram nossas, insubstituíveis, e nos haviam ensinado o
cansaço, a paciência e uma certa sabedoria. No Piemonte e em Turim estavam
em suma as nossas raízes, não poderosas mas profundas, extensas e
fantasticamente entrelaçadas.
Nem em nós nem em nossa geração, num plano mais geral, fôssemos
"arianos” ou judeus, despontara a ideia de que se devia e podia resistir ao
fascismo. Nossa resistência de então era passiva, limitava-se à rejeição, ao
isolamento, à recusa da contaminação. A semente da luta ativa não tinha
sobrevivido até nós, fora sufocada alguns anos antes com o último golpe de foice
que relegara à prisão, ao confinamento, ao exílio ou ao silêncio, os últimos
protagonistas e testemunhas turinenses, Einaudi, Ginzburg, Monti, Vittorio Foa,
Zini, Carlo Levi. Estes nomes não nos diziam nada, não sabíamos quase nada
deles, o fascismo em torno de nós não tinha antagonistas. Era preciso recomeçar
do nada, “inventar” um antifascismo nosso, criá-lo desde a semente, as raízes, as
nossas raízes. Buscávamos ao nosso redor e tomávamos caminhos que não iam
longe. A Bíblia, Croce, a geometria, a física nos pareciam fontes de certeza.
Reuníamo-nos no salão do “Talmud Thorà”, da Escola da Lei, como
orgulhosamente se chamava a vetusta escola elementar hebraica, e nos
ensinávamos uns aos outros a achar na Bíblia a justiça e a injustiça, bem como a
força que abate a injustiça: a reconhecer em Assuero e em Nabucodonosor os
novos opressores. Mas onde estava Kadosh Barukhú, “o Santo, Bendito seja”,
aquele que rompe as cadeias dos escravos e faz submergir os carros dos
egípcios? Aquele que havia ditado a Lei a Moisés e inspirado os libertadores Ezra
e Neemias, não inspirava mais ninguém, o céu sobre nós estava silencioso e
vazio: deixava serem exterminados os guetos polacos, e lentamente,
confusamente, abria caminho em nós a ideia de que estávamos sozinhos, não
tínhamos aliados com quem contar nem na terra nem no céu, a força de resistir
devíamos encontrá-la em nós mesmos. Portanto, não era inteiramente absurdo o
impulso que nos levava então a conhecer os nossos limites: a percorrer centenas
de quilômetros na bicicleta, a escalar com fúria e paciência rochas que
conhecíamos mal, a submetermo-nos voluntariamente à fome, ao frio e ao
cansaço, a treinarmo-nos para suportar e decidir. Um prego se fixa ou não; a
corda resiste ou não: também isso eram fontes de certeza.
A química, para mim, deixara de sê-lo. Conduzia ao coração da Matéria, e a
Matéria nos era aliada justamente porque o Espírito, caro ao fascismo, nos era
hostil; mas, chegado ao quarto anode Química Pura, não podia mais ignorar que
a própria Química, ou pelo menos a que nos era ministrada, não respondia às
minhas perguntas. Preparar o bromobenzeno ou a violeta de metila segundo o
Gattermann era divertido e até hilariante, mas não muito diferente de seguir as
fórmulas no Artusi. Por que daquele modo e não de outro? Depois de ter engolido
no curso secundário as verdades reveladas pela Doutrina do Fascismo, todas as
verdades reveladas, não demonstradas, tinham o dom de me aborrecer ou de
cair sob suspeição. Existiam teoremas de química? Não. Por isso, era preciso ir
mais além, não contentar-se com o dado de fato, remontar às origens, à
matemática e à Física. As origens da química eram desprezíveis ou pelo menos
equívocas: os antros dos alquimistas, sua abominável confusão de ideias e de
linguagem, seu interesse confessado pelo ouro, suas intrigas levantinas de
charlatães ou de magos; na origem da Física, porém, estava a denodada clareza
do Ocidente, Arquimedes e Euclides. Me tornaria um físico, ruat coelum:
possivelmente sem diploma, porque Hitler e Mussolini me proibiam.
Fazia parte do programa do quarto ano de Química um breve curso de
exercícios de física: simples medidas de viscosidade, tensão superficial,
capacidade giratória e coisas desse tipo. O curso era dado por um jovem
assistente, magro, alto, um pouco encurvado, gentil e extraordinariamente
tímido, que se comportava de um modo a que não estávamos habituados. Os
nossos outros professores, quase sem exceção, mostravam-se convencidos da
importância e excelência da matéria que ensinavam; alguns faziam-no de boa fé,
para outros tratava-se evidentemente de uma questão de supremacia pessoal, de
terreno de caça. Aquele assistente, no entanto, tinha quase o ar de quem se
desculpava diante de nós, de quem se punha do nosso lado: no seu sorriso um
tanto tímido e ironicamente senhoril parecia poder ler-se: “Também sei que com
estes aparelhos antiquados e surrados vocês não vão fazer nada de útil e que,
além disso, trata-se de futilidades marginais, a sabedoria mora noutra parte; mas
é um ofício que terão de exercer, assim como eu, e por isso, por favor, tentem
não causar problemas demais e aprendam o que puderem”. Logo, todas as moças
do curso se apaixonaram por ele.
Durante aqueles meses havia feito tentativas desesperadas de ser aceito como
auxiliar por esse ou aquele professor. Alguns, afetadamente compungidos ou
mesmo com arrogância, me haviam respondido que as leis raciais o proibiam;
outros recorreram a pretextos nebulosos e inconsistentes. Assimilada
convenientemente a quarta ou quinta recusa, voltava para casa uma noite, de
bicicleta, sob uma capa quase tangível de desalento e amargura. Subia sem
vontade a via Valperga Caluso, enquanto do Valentino chegavam e por mim
passavam ondas de névoa gélida; já era noite, e a luz dos lampiões, disfarçados
de violeta pela escuridão, não conseguia vencer a neblina e as trevas. Os
passantes eram raros e apressavam-se: e eis que um deles me atraiu a atenção.
Ia na minha mesma direção com passo longo e lento, trajava um casacão
comprido e negro, a cabeça descoberta, caminhava um pouco curvado e
assemelhava-se ao Assistente, era o Assistente. Passei por ele, incerto quanto ao
que fazer; logo tomei coragem, voltei e mais uma vez não ousei interpelá-lo. O
que sabia dele?
Nada: podia ser um indiferente, um hipócrita ou mesmo um inimigo. Em
seguida pensei que não arriscava nada além de uma nova recusa e, sem rodeios,
perguntei-lhe se seria possível me admitir para um trabalho experimental no seu
instituto. O Assistente me olhou surpreso; em vez do longo discurso que seria de
esperar, me respondeu com a frase sucinta do Evangelho: “Segue-me”.

O interior do Instituto de Física Experimental estava cheio de poeira e de


fantasmas seculares. Havia filas de armários envidraçados, repletos de papéis
amarelados e comidos de ratos e traças: eram observações de eclipses, registros
de terremotos, boletins meteorológicos que datavam do século passado. Ao longo
da parede de um corredor, encontrei uma extraordinária trompa, com mais de
dez metros de comprimento, cuja origem, objetivo e uso ninguém conhecia:
talvez anunciar o dia do Juízo, no qual tulo o que se esconde aparecerá. Havia
também uma eolípila em estilo Secessão, uma fonte de Eros, e toda uma fauna
obsoleta e prolixa de quinquilharias destinada há gerações às demonstrações
práticas: uma forma patética e ingênua de física menor, em que conta mais a
coreografia do que o conceito. Não é ilusionismo nem prestidigitação, mas fica
perto.
O Assistente me recebeu no cubículo do térreo em que ele mesmo morava e
que estava atulhado de aparelhos bem diferentes, excitantes e desconhecidos.
Algumas moléculas são portadoras de dois polos elétricos e, em resumo,
comportam-se num campo elétrico como minúsculas agulhas de bússola, se
orientam, algumas mais preguiçosamente, outras menos. De acordo com as
condições, obedecem a certas leis com maior ou menor respeito: pois bem,
aqueles aparelhos serviam para esclarecer estas condições e este respeito tão
volúvel. Esperavam quem os usasse: o Assistente estava ocupado por outras
questões (de astrofísica, me explicou, e a informação me desceu até a medula:
então, tinha diante de mim um astrofísico em carne e osso!) e, além disso, não
estava treinado em certas manipulações que considerava necessárias para
depurar os produtos a serem submetidos às medidas; para tanto era preciso um
químico, e o químico bem-vindo era eu. Cedia-me de bom grado o campo e os
instrumentos. O campo consistia em dois metros quadrados de mesa e
escrivaninha; os instrumentos compunham uma pequena família, mas os mais
importantes eram a balança de Westphal e o heteródino. A primeira, já a
conhecia; com o segundo logo fiz amizade. Era em substância um aparelho
rádiorreceptor, construído de modo a acusar diferenças mínimas de frequência:
e, com efeito, saía brutalmente de sintonia, ladrava como um cão de guarda,
assim que o operador se mexesse na cadeira, deslocasse uma mão ou mesmo
entrasse alguém no recinto. Em certas horas do dia, além disso, revelava todo
um intrincado universo de mensagens misteriosas, toques em Morse, silvos
modulados e vozes humanas deformadas e mutiladas, que pronunciavam frases
em línguas incompreensíveis ou outras em italiano, mas eram frases insensatas,
em código. Tratava-se da babel radiofônica da guerra, mensagens de morte
transmitidas de navios ou aviões, de sabe-se lá quem, para além dos montes e do
mar.
Além dos montes e do mar, explicou-me o Assistente, existia um sábio de
nome Onsager, de quem ele não sabia nada senão que havia elaborado uma
equação que pretendia descrever o comportamento das moléculas polares em
todas as condições, desde que se encontrassem no estado líquido. A equação
funcionava bem para as soluções diluídas; não se sabia de alguém que se tivesse
ocupado em verificá-la para soluções concentradas, para líquidos polares puros e
para misturas destes dois últimos. Era esse o trabalho que o Assistente me
propunha e que aceitei com entusiasmo sem limites: preparar uma série de
líquidos complexos e observar se obedeciam à equação de Onsager. Como
primeiro passo, deveria fazer aquilo que ele não sabia fazer: naquele tempo não
era fácil encontrar produtos puros para análise, e eu tinha de me dedicar por
algumas semanas a depurar benzeno, clorobenzeno, clorofenol, aminofenol,
toluidina e outros.
Bastaram poucas horas de contato para que a figura do Assistente se
definisse. Tinha trinta anos, casara-se há pouco, vinha de Trieste mas era de
origem grega, conhecia quatro línguas, amava música, Huxley, Ibsen, Conrad e o
Thomas Mann que me era tão caro. Também amava a física, mas suspeitava de
toda atividade que tendesse a um objetivo prático: por isso, era nobremente
preguiçoso e detestava o fascismo, naturalmente.
Sua relação com a física me fez perplexo. Não hesitou em trespassar o meu
último hipogrifo, confirmando com palavras explícitas aquela mensagem sobre as
“futilidades marginais que havíamos lido nos seus olhos no laboratório. Não
somente aqueles nossos modestos exercícios, mas toda a física era marginal, por
natureza, por vocação, à medida que se propunha dar norma ao universo das
aparências, enquanto a verdade, a realidade, a essência íntima das coisas e do
homem estão em outra parte, ocultas sob um véu ou sob sete véus (não me
lembro com exatidão). Ele era um físico, mais precisamente um astrofísico,
diligente e voluntarioso, mas destituído de ilusões: a verdade estava mais além,
inacessível aos nossos telescópios, acessível aos iniciados; aquela era uma longa
estrada que ele percorria com esforço, fascinação e alegria profunda. A física era
prosa: ginástica elegante da mente, espelho da Criação, chave para o domínio do
homem sobre o planeta; mas qual é o estatuto da Criação, do homem e do
planeta? Seu caminho era longo, ele mal o iniciara, mas eu era seu discípulo:
queria segui-lo?
Tratava-se de uma exigência terrível. Ser discípulo do Assistente era para
mim um gozo a cada minuto, uma ligação jamais experimentada antes, destituída
de sombras, intensificada pela certeza de que aquela relação era mútua: eu,
judeu, marginalizado e tornado cético pelas últimas transformações, inimigo da
violência mas ainda não engolido pela necessidade da violência oposta, devia ser
para ele o interlocutor ideal, uma página em branco na qual qualquer mensagem
podia ser inscrita.
Não cavalguei o novo e gigantesco hipogrifo que o Assistente me oferecia.
Naqueles meses os alemães destruíam Belgrado, esmagavam a resistência grega,
invadiam Creta pelo ar: esta era a Verdade, esta era a Realidade. Não havia
escapatória, não para mim. Melhor permanecer na Terra, brincar com os
conjuntos de dois polos à falta de coisa melhor, depurar o benzeno e se preparar
para um futuro desconhecido, mas iminente e certamente trágico. Depurar o
benzeno, aliás, nas condições a que a guerra e os bombardeios haviam reduzido
o Instituto, não era tarefa simples: o Assistente me explicou que eu tinha sinal
verde, podia revistar por toda parte, do porão ao sótão, me apoderar de qualquer
instrumento ou produto, mas não comprar nada: nem mesmo ele podia, era um
regime de autarquia absoluta.
Encontrei no porão um garrafão de benzeno técnico, com 95 por cento de
pureza: melhor do que nada, mas os manuais recomendavam retificá-lo e em
seguida submetê-lo a uma última destilação em presença do sódio, para livrá-lo
dos últimos vestígios de umidade. Retificar significa destilar fracionadamente,
descartando as frações que fervem abaixo ou acima do prescrito e recolhendo o
"núcleo”, que deve ferver a temperatura constante: encontrei no inesgotável
porão os tubos necessários, inclusive uma daquelas pequenas colunas de
Vigreux, graciosas como uma renda, obra da paciência e da habilidade sobre-
humanas dos sopradores de vidro, mas (diga-se entre nós) de eficiência
discutível; o recipiente para banho-maria, preparei-o com uma pequena panela
de alumínio.
Destilar é bonito. Antes de tudo, porque é um ofício lento, filosófico e
silencioso, que te mantêm ocupado mas deixa tempo para pensar em outras
coisas, um pouco como andar de bicicleta. Mais ainda, porque comporta uma
metamorfose: de líquido a vapor (invisível), e deste novamente a líquido; mas
neste caminho duplo, para cima e para baixo, atinge-se a pureza, condição
ambígua e fascinante, que parte da química e vai muito longe. E finalmente,
quando te propões destilar, adquires a consciência de repetir um rito já
consagrado pelos séculos, quase um ato religioso em que a partir de uma
matéria imperfeita obténs a essência, o usía, o espírito e, em primeiro lugar, o
álcool, que alegra o ânimo e aquece o coração. Levei dois dias inteiros para obter
uma fração de pureza satisfatória: para esta operação, dado que devia trabalhar
continuamente com chama, me fechei voluntariamente num pequeno aposento
do primeiro andar, deserto e vazio, distante de toda presença humana.
Agora tratava-se de destilar pela segunda vez, em presença do sódio. O sódio
é um metal degenerado: antes, é um metal apenas no significado químico da
palavra, não certamente no da linguagem quotidiana. Não é nem rígido nem
elástico, mas sim mole como a cera; não é brilhante, ou melhor, só o é quando
conservado com atenções maníacas, já que, de outro modo, reage em poucos
instantes com o ar, recobrindo-se de uma camada feia e áspera: com rapidez até
maior reage com a água, sobre a qual flutua (um metal que flutua!) dançando
freneticamente e soltando hidrogênio. Revirei inutilmente os desvãos do
Instituto: encontrei dúzias de ampolas etiquetadas, centenas de compostos
abstrusos, outros vagos sedimentos anônimos aparentemente não tocados há
gerações, mas sódio, nada. Encontrei, porém, um pequeno frasco de potássio: o
potássio é irmão gêmeo do sódio, por isso... eu me apropriei dele e voltei à minha
ermida.
Pus no pequeno balão do benzeno um grão de potássio "do tamanho de meia
ervilha” (assim rezava o manual) e destilei diligentemente o material: no fim da
operação, apaguei a chama como se deve, desmontei o aparelho, esperei que o
pouco líquido restante no balão esfriasse um pouco e em seguida, com uma
vareta de ferro longa e pontiaguda, espetei a “meia ervilha” de potássio e retirei-
a.
O potássio, como disse, é gêmeo do sódio, mas reage com o ar e a água até
com maior energia: é sabido de todos (eu também sabia) que em contato com a
água não só libera hidrogênio mas também se inflama. Por isso, tratei a minha
metade de ervilha como uma relíquia sagrada; depositei-a num pedaço enxuto de
papel de filtro, fiz um pequeno embrulho, desci para o pátio do Instituto, escavei
uma minúscula sepultura e nela enterrei o pequeno cadáver endemoninhado.
Pisei bem a terra e tornei a subir até o trabalho.
Peguei o balão já vazio, botei-o sob a torneira e deixei correr a água. Ouviu-se
um rápido estampido, do gargalo do balão saiu uma labareda direto para a janela
que ficava perto da pia e as cortinas pegaram fogo. Enquanto me atrapalhava em
busca de algum meio de extinção, mesmo primitivo, começaram a se chamuscar
as folhas da janela e o local já estava cheio de fumaça. Consegui encostar uma
cadeira e arrancar as cortinas: joguei-as por terra e pisei-as com raiva, enquanto
a fumaça já quase me cegava e o sangue me batia violentamente nas têmporas.
Tudo terminado, quando todos os farrapos incandescentes se apagaram,
fiquei em pé por alguns minutos, apático e como que aparvalhado, sem firmeza
nos joelhos, contemplando os restos do desastre mas sem vê-los. Assim que
recuperei o fôlego, fui ao andar de baixo e narrei o episódio ao Assistente. Se é
verdade que não há dor maior que, na miséria, recordar o tempo feliz, é
igualmente verdade que evocar uma angústia com o ânimo tranquilo, sentado
serenamente na escrivaninha, é fonte de profunda satisfação.
O Assistente escutou a minha história com educada atenção, mas com ar de
curiosidade: quem me obrigara a embarcar naquela aventura e a destilar o
benzeno com aqueles cuidados todos? No fundo, estava bem para mim: são
coisas que acontecem aos profanos, àqueles que se retardam brincando diante
das portas do templo, sem nele entrar. Mas não disse nada; adotou na ocasião
(de má vontade como sempre) a distância hierárquica e me fez notar que um
balão vazio não se incendeia: vazio não devia estar. Devia conter, pelo menos, o
vapor do benzeno, além naturalmente do ar que penetrara pelo gargalo. Mas
nunca ninguém soube que o vapor de benzeno, a frio, se incendiasse por si
mesmo: só o potássio podia ter posto fogo à mistura, e o potássio eu o havia
retirado. Todo?
Todo, respondi: mas me ocorreu uma dúvida, tornei a subir até o local do
incidente e ainda achei pelo chão os fragmentos do balão; num deles, vendo bem,
se percebia com dificuldade uma manchinha branca. Testei-a com fenolftaleína:
era uma base, era hidróxido de potássio. O culpado fora encontrado: aderente ao
vidro do balão devia ter restado um minúsculo fragmento de potássio, o bastante
para reagir com a água que eu havia jogado e incendiar os vapores de benzeno.
O Assistente me olhava com olho divertido e vagamente irônico: melhor não
fazer do que fazer, melhor meditar do que agir, melhor sua astrofísica, limiar do
Incognoscível, do que minha química cheia de odores, estouros e pequenos
mistérios fúteis. Eu pensava numa outra moral, mais terrena e concreta, e creio
que todo químico militante poderá confirmá-la: que é preciso desconfiar do
quase-igual (o sódio é quase igual ao potássio: mas com o sódio não teria
acontecido nada), do praticamente idêntico, do mais ou menos, do “ou seja”, de
todos os sucedâneos e de todos os remendos. As diferenças podem ser pequenas
e levar a consequências radicalmente divergentes, como as agulhas das linhas de
ferro; em boa medida, o ofício do químico consiste em se defender dessas
diferenças, conhecê-las de perto, prever seus efeitos. Não só o ofício do químico.
Níquel
Tinha numa gaveta um diploma finamente ornado, no qual estava escrito em
caracteres elegantes que a Primo Levi, de raça judia, se conferia a licenciatura
em Química com nota máxima e louvor: era, pois, um documento ambíguo, uma
metade glória, a outra escárnio, uma metade absolvição, a outra condenação.
Estava naquela gaveta desde julho de 1941 e em novembro havia terminado; o
mundo se precipitava na catástrofe e em torno de mim não acontecia nada. Os
alemães se espalhavam por Polônia, Noruega, Holanda, França, Iugoslávia, e
penetravam nas planícies russas como uma faca na manteiga; os Estados Unidos
não se mexiam em socorro dos ingleses, que tinham ficado sós. Eu não achava
trabalho e me cansava na busca de uma ocupação remunerada qualquer; no
quarto ao lado, o meu pai, prostrado por um cancro, vivia os seus últimos meses.
Tocou a campainha: era um jovem alto e magro, com uniforme de tenente do
Exército Real, e eu não demorei a ver nele a figura do mensageiro, do Mercúrio
que guia as almas ou, se quiserem, do anjo anunciador: aquele, em suma, que
cada qual espera, sabendo-o ou não, e que traz a mensagem celeste que te faz
mudar a vida, para o bem ou para o mal, ainda não o sabes, enquanto ele não
tiver aberto a boca.
Abriu a boca, e tinha um forte sotaque toscano, e perguntou pelo Doutor Levi,
que incrivelmente era eu (ainda não me habituara ao título); apresentou-se
educadamente e me propôs um trabalho. Quem o mandava até mim? Um outro
Mercúrio, Caselli, o guardião inflexível da fama alheia: o “louvor" do meu
diploma para alguma coisa servira.
O Tenente mostrava saber que eu era judeu (de resto, meu sobrenome não
deixa margem a muita dúvida), mas parecia que isto não lhe importava. Até
parecia algo mais: que o assunto de algum modo não o desagradava, que
experimentava um gosto mordaz e sutil em desobedecer às leis da separação,
que, em suma, era secretamente um aliado e buscava em mim um aliado.
O trabalho que me propôs era misterioso e cheio de fascínio. “Em algum
lugar” havia uma mina, da qual se extraíam 2 por cento de alguma coisa de útil
(não me disse que coisa) e 98 por cento de escoria, que se descarregava num
vale próximo. Nesta escória havia níquel: pouquíssimo, mas o seu preço era de
tal forma alto que a recuperação podia ser levada em conta. Ele tinha uma ideia,
ou melhor, um punhado de ideias, mas estava no serviço militar e tinha pouco
tempo livre: eu devia substituí-lo, experimentar no laboratório suas ideias e
depois, se possível, realizá-las industrialmente junto com ele. Estava claro que se
tornava necessária a minha transferência para o tal lugar, que me foi
sumariamente descrito: esta transferência aconteceria sob um duplo carácter de
segredo. Em primeiro lugar, para minha proteção, ninguém deveria conhecer o
meu nome nem a minha abominável origem, porque o tal lugar estava sob
controle de autoridade militar; em segundo, para proteção da sua ideia, eu
deveria empenhar a palavra de honra no sentido de não dizer nada a ninguém.
De resto, estava claro que um segredo reforçaria o outro e que, portanto, numa
certa medida, minha condição de marginalizado lhe vinha a calhar.
Qual era a sua ideia e onde ficava o tal lugar? O Tenente desculpou-se:
enquanto eu não aceitasse em definitivo, não podia me dizer muito, era evidente;
de todo modo, a ideia consistia em tratar a escória em fase gasosa e o tal lugar
estava a poucas horas de viagem de Turim. Aconselhei-me rapidamente junto aos
meus.
Estavam de acordo: com a doença do meu pai, necessitava-se em casa de
dinheiro com urgência. Quanto a mim, não tinha a menor duvida: estava
demasiadamente desgastado pela inércia, seguro da minha química e desejoso
de pô-la à prova. E além do mais o tenente me intrigava e me agradava.
Via-se bem que portava a divisa com desprezo: sua escolha em relação a mim
não devia ter sido ditada somente por considerações utilitárias. Falava do
fascismo e da guerra com reticências e com uma jovialidade sinistra, que não me
custou muito interpretar. Era a jovialidade irônica de toda uma geração de
italianos, bastante inteligentes e honestos para rejeitar o fascismo, céticos a
ponto de a ele não se oporem ativamente, jovens demais para aceitarem
passivamente a tragédia que se delineava e para se desesperarem do futuro;
uma geração à qual eu mesmo pertenceria, não tivessem intervindo as
providenciais leis raciais para me amadurecerem precocemente e me guiarem na
escolha.
O Tenente tomou ciência do meu assentimento e, sem perder tempo, marcou
encontro na estação para o dia seguinte. Preparativos? Não se precisava de
muita coisa: documentação, com certeza, não (começaria a trabalhar incógnito,
sem nome ou com um nome falso, mais adiante se veria); algumas roupas
pesadas, as de montanha serviam bem, um casaco, livros, se quisesse: quanto ao
resto, nenhuma dificuldade, encontraria um quarto com aquecimento, um
laboratório, refeições regulares numa família de operários e bons colegas, com
os quais, por outro lado, o Tenente me recomendava não entrar em excessivas
relações de confiança, pelas razões sabidas.
Partimos, descemos do trem e chegamos à mina depois de cinco quilômetros
de subida no meio de um bosque esplendidamente tomado de geada branca. O
Tenente, que era um tipo desembaraçado, apresentou-me sumariamente ao
Diretor, um jovem engenheiro alto e vigoroso que era até mais desembaraçado e
que, evidentemente, já fora informado de minha situação. Fui levado ao
laboratório, onde me esperava uma criatura singular: uma mocinha dos seus
dezoito anos, com cabelos de fogo e olhos verdes, oblíquos, maliciosos e
curiosos. Informaram-me que seria minha ajudante.
Durante o jantar, que excepcionalmente me foi oferecido no local dos
escritórios, a radio difundiu a notícia do ataque japonês a Pearl Harbor e da
declaração de guerra do Japão aos Estados Unidos. Os comensais (alguns
empregados, além do Tenente) receberam o anúncio de maneira variada: alguns,
e entre estes o próprio Tenente, com reservas e olhadas cautelosas para o lugar
que eu ocupava; outros, com comentários preocupados; outros ainda,
sustentando belicosamente a invencibilidade já comprovada dos exércitos
japoneses e alemães.
O tal lugar, assim, se havia materializado no espaço, mas sem perder nada da
sua magia. Todas as minas são mágicas desde sempre. As vísceras da terra
formigam de gnomos, coboldi (cobalto!), niccoli (níquel!)1, que podem ser
generosos e te fazerem encontrar o tesouro sob a ponta da picareta, ou te
enganarem, te cegarem, fazendo reluzir como ouro a modesta pirite, disfarçando
o zinco sob a aparência do estanho: e, de fato, são muitos os minerais cujos
nomes contêm raízes que significam "engano, fraude, deslumbramento”.
Também aquela mina tinha uma magia, um encanto selvagem próprio. Numa
colina rude e deserta, toda de rochas quebradiças e ramos secos e espinhosos,
abria-se um ciclópico abismo de forma cônica, uma cratera artificial com
quatrocentos metros de diâmetro: era em tudo semelhante às representações do
Inferno, nas ilustrações sinópticas da Divina Comédia. Ao longo das paredes da
cratera, dia após dia, faziam-se detonar os explosivos: a inclinação das paredes
do cone era a mínima indispensável para que o material removido rolasse até o
fundo, mas sem adquirir demasiado ímpeto. No fundo, em lugar de Lúcifer,
estava um escoadouro dotado de comporta de regulação; sob esta comporta
havia um pequeno poço vertical que dava numa longa galeria horizontal; esta,
por seu turno, desembocava ao ar livre no flanco da colina, acima do edifício
principal. Na galeria ia e vinha um trem blindado: uma locomotiva pequena mas
possante punha os vagões, um a um, sob a comporta para se encherem e depois
os arrastava para voltarem a ver as estrelas.
O edifício era construído em declive, ao longo da inclinação da colina e sob a
abertura da galeria: nele o mineral era fragmentado num triturador monstruoso,
que o Diretor me mostrou e explicou com entusiasmo quase infantil: era um sino
invertido ou, se quisermos, uma corola de lírio, com quatro metros de diâmetro e
de aço maciço: no centro, suspenso por cima e guiado por baixo, oscilava um
badalo gigantesco. A oscilação era mínima, mal se deixava ver, mas bastava para
despedaçar num abrir e fechar de olhos as pedras que choviam do trem:
quebravam-se, acomodavam-se mais abaixo, quebravam-se novamente e saíam
do fundo como fragmentos do tamanho da cabeça de um homem. A operação
ocorria no meio de um barulho de apocalipse, numa nuvem de poeira que se via
desde a planície. Em seguida, o material era ainda mais triturado até virar
lascas, dessecado, selecionado: e não é preciso muito para esclarecer que o
objetivo último daquele trabalho ciclópico consistia em arrancar da rocha
miseráveis dois por cento de amianto que nela se escondiam. O resto, milhares
de toneladas por dia, descarregava-se desordenadamente no vale.
Ano após ano, o vale ia-se enchendo de uma lenta avalanche de pó e pedra. O
amianto que ainda aí ficava tornava a massa ligeiramente escorregadia,
preguiçosamente pastosa, como uma geleia: a enorme língua cinzenta,
pontilhada de pedras enegrecidas, deslizava para baixo laboriosamente,
esforçadamente, à razão de algumas dezenas de metros por ano; exercia nas
paredes do vale uma tal pressão que provocava profundas fendas transversais na
rocha deslocava vários centímetros, anualmente, alguns edifícios construídos
excessivamente abaixo. Num destes, chamado de “o submarino” justamente pelo
seu silencioso desvio, eu morava.
Havia amianto por toda a parte, como uma neve acinzentada: se deixava um
livro numa mesa durante algumas horas e depois se recolhia, encontrava-se o
perfil dele em negativo; os telhados estavam cobertos por uma camada espessa
de pó muito fino, que nos dias de chuva se encharcava como uma esponja e,
subitamente, desabava violentamente sobre o chão. O capataz, que se chamava
Anteo, e era um gigante obeso de barba negra e cerrada que parecia extrair
precisamente da mãe terra o seu vigor, contou que havia alguns anos uma chuva
insistente carregara na enxurrada muitas toneladas de amianto das próprias
paredes da mina; o amianto acumulara-se no fundo do cone, sobre a válvula
aberta, comprimindo-se secretamente num tampão. Ninguém dera importância
ao fato; mas tinha continuado a chover, o cone tinha funcionado como funil,
sobre o tampão se formara um lago com vinte mil metros cúbicos de água, e
mesmo assim ninguém dera importância ao fato. Ele, Anteo, via a coisa feia, e
tinha insistido com o diretor de então para que tomasse alguma providência:
como bom capataz, ele inclinava-se por uma poderosa carga submersa que
explodisse sem perda de tempo no fundo do lago; mas conversa vai, conversa
vem, podia ser perigoso, podia danificar-se a válvula, era preciso ouvir o
conselho de administração, ninguém queria decidir, e quem decidiu foi a própria
mina, com seu gênio maligno.
Enquanto os sábios deliberavam, ouviu-se um ribombo surdo: o tampão
cedera, a água precipitara-se no poço e na galeria, arrastara o trem com todos os
seus vagões e devastara o prédio principal. Anteo me mostrou as marcas do
aluvião, dois bons metros acima do plano inclinado.
Os operários e os mineiros (que no jargão local se chamavam minori) vinham
das aldeias vizinhas, às vezes caminhando duas horas pelos trilhos das
montanhas: os empregados moravam no local. A planície ficava a cinco
quilômetros apenas, mas a mina para todos os efeitos era uma pequena república
autônoma. Naquele tempo de racionamento e de mercado negro, não havia ali
em cima problemas de abastecimento: não se sabia como, mas todos tinham de
tudo. Muitos empregados faziam hortas em torno da vila quadrada em que
estavam os escritórios; alguns tinham até um galinheiro. Acontecia várias vezes
que as galinhas de um invadissem a horta do outro, danificando-a, e daí surgiam
controvérsias e vinganças aborrecidas, que mal correspondiam à serenidade do
lugar e à índole expedita do Diretor. Este resolveu a questão à sua maneira:
mandou comprar uma espingarda Flobert e dependurou-a no seu escritório.
Quem visse pela janela uma galinha alienígena revolver na sua própria horta,
tinha o direito de pegar na espingarda e disparar duas vezes: mas era preciso o
flagrante. Se a galinha morria no local, o cadáver pertencia ao atirador: esta era
a lei. Nos primeiros dias depois da providência, assistiu-se a muitas e rápidas
corridas à espingarda bem como a disparos, enquanto todos os não interessados
faziam apostas, mas logo deixou de haver invasões.
Outras histórias estupendas me foram narradas, como aquela do cão do
senhor Pistamiglio. Este senhor Pistamiglio, morrera havia anos, mas sempre
viva era a sua memória, a qual, como acontece, se ia recobrindo de uma pátina
dourada de lenda. O senhor Pistamiglio, pois, era um ótimo chefe de seção, não
muito jovem, solteiro, cheio de bom senso, estimado por todos, dono de um
belíssimo cão policial, igualmente probo e estimado.
Num certo Natal desapareceram quatro dos perus mais gordos no povoado
mais embaixo, no vale. Paciência: pensou-se em ladrões, em raposas, depois não
se pensou em mais nada. Mas veio um outro inverno, e desta vez foram sete os
perus sumidos entre novembro e dezembro. Fez-se a denúncia aos carabineiros,
mas ninguém teria jamais esclarecido o mistério não fora uma palavra a mais
que o próprio senhor Pistamiglio deixou escapar, numa noite em que estava um
pouco bêbado. Os ladrões de perus eram os dois, ele e o cachorro. No domingo
ele levava o cachorro à aldeia, rodava pelas casas e mostrava-lhe os perus mais
bonitos e menos vigiados; explicava-lhe caso por caso a melhor estratégia; depois
voltavam à mina e ele, de noite, soltava o cachorro, e o cachorro chegava
invisível, deslizando pelos muros como um verdadeiro lobo, saltava a cerca do
galinheiro ou então cavava uma passagem subterrânea, matava silenciosamente
o peru e levava-o até o seu cúmplice. Não parece que o senhor Pistamiglio vende-
se os perus: segundo a versão mais digna de crédito, presenteava-os às amantes,
que eram inúmeras, feias, velhas, e estavam espalhadas por todo o Piemonte pré-
alpino.
Contaram-me muitíssimas histórias: ao que parece, todos os cinquenta
moradores da mina haviam reagido entre si, dois a dois, como no cálculo
combinatório; quero dizer, cada qual com todos os outros e, especialmente, cada
homem com todas as mulheres, solteiras ou casadas, e cada mulher com todos os
homens. Bastava escolher dois nomes ao acaso, melhor se de sexos diferentes, e
perguntar a um terceiro: “O que aconteceu entre eles?” — e eis que me era
desenrolada uma esplêndida história, já que cada um conhecia a história de
todos. Não está claro por que essas vicissitudes, muitas vezes intrincadas e
sempre íntimas, contassem-nas com tanta facilidade justamente para mim, que,
ao contrário, não podia contar nada a ninguém, nem mesmo o meu nome
verdadeiro; mas pelo visto esta é a minha sina (da qual não me lamento, em
absoluto): sou alguém a quem muitas coisas se narram.
Recolhi em diversas variantes uma saga remota, que datava de uma época
muito anterior ainda ao próprio senhor Pistamiglio: houve um tempo em que nos
escritórios da mina prevalecera um regime de Gomorra. Naquele período
lendário, todas as tardes, quando tocava a sirene das cinco e meia, nenhum dos
empregados ia para casa. Àquele sinal, das escrivaninhas saíam licores e
colchões, e se desencadeava uma orgia que envolvia tudo e todos, jovens
datilógrafas inexperientes e contadores meio calvos, desde o diretor de então até
os porteiros, inválidos civis: o triste rondó das papeladas da mina cedia lugar, de
repente, a uma interminável fornicação interclassista, pública e diferentemente
entrelaçada. Nenhum sobrevivente chegara até nosso tempo para dar um
testemunho direto; uma sequência de balanços desastrosos havia obrigado a
Administração milanesa a uma intervenção drástica e purificadora. Ninguém,
salvo a senhora Bortolasso, que, me asseguraram, sabia tudo, tinha visto tudo,
mas não falava em razão da sua pudicícia extrema.
A senhora Bortolasso, de resto, não falava nunca com ninguém, a não ser por
estrita necessidade de trabalho. Antes de se chamar assim, chamava-se Gina
delle Benne: com dezenove anos, já datilógrafa nos escritórios, enamorara-se de
um jovem mineiro mirrado e ruivo, que, sem propriamente corresponder a esse
amor, demonstrava todavia aceitá-lo; mas a família dela fora irredutível. Haviam
gasto para garantir os seus estudos, e ela devia mostrar gratidão, fazer um bom
matrimônio, e não arranjar-se com o primeiro que aparecia; aliás, como a moça
não entendia muito dessas coisas, eles cuidariam do assunto; que abandonasse o
seu pele vermelha, ou então fora de casa e fora da mina.
Gina estava disposta a esperar os vinte e um anos (só lhe faltavam dois): mas
o ruivo não a esperou. Deixou-se ver no domingo com uma outra mulher, depois
com uma terceira, e terminou por casar-se com uma quarta. Gina tomou então
uma decisão cruel: se não pudera unir-se ao homem que lhe importava, o único,
pois bem, não seria de nenhum outro. Freira, não, tinha ideias modernas: mas se
proibiria para sempre o matrimônio de um modo refinado e sem piedade, isto é,
casando-se. Já era uma funcionária conceituada, necessária à Administração,
dotada de uma memória de ferro e de uma capacidade proverbial: e fez saber a
todos, aos genitores e aos superiores, que pretendia casar-se com Bortolasso, o
idiota da mina.
Este Bortolasso era um trabalhador não qualificado de meia idade, forte como
uma mula e sujo como um porco. Não devia ser um completo idiota: é mais
provável que pertencesse àquele tipo humano do qual se diz no Piemonte que se
faz de louco para não pagar contas: abrigado na imunidade que se concede aos
de cabeça fraca, Bortolasso exercia com negligência extrema a função de
jardineiro. Uma negligência tal que chegava a ser astúcia rudimentar: tudo bem,
o mundo declarara-o irresponsável e agora devia suportá-lo como tal ou, antes,
devia mantê-lo e dele cuidar.
O amianto molhado pela chuva é de difícil extração, por isso o pluviômetro, na
mina, era muito importante: ficava no meio de um canteiro, e o próprio Diretor
buscava suas indicações. Bortolasso, que todas as manhãs regava os canteiros,
adquiriu o hábito de regar também o pluviômetro, adulterando severamente os
dados dos custos de extração; o Diretor (não imediatamente) deu conta desse
hábito e lhe impôs que o deixasse. “Então o senhor gosta que fique enxuto”,
raciocinou Bortolasso: e depois de cada chuva ia abrir a válvula no fundo do
instrumento.
Na época da minha chegada a situação estabilizara-se há tempos. Gina, já
senhora Bortolasso, andava pelos trinta e cinco anos: a modesta beleza do seu
rosto se enrijecera e fixara numa máscara tensa e alerta, trazendo abertamente o
estigma de virgindade prorrogada. Porque virgem permanecera: todos o sabiam,
Bortolasso contava a todos. Este tinha sido o compromisso no tempo do
matrimônio; ele aceitara-o, mesmo que depois, quase todas as noites, buscasse
violar o leito da mulher. Mas ela se defendera furiosamente, e ainda se defendia:
nunca, nunca mesmo, um homem, ainda por cima aquele, poderia tocá-la.
Estas batalhas noturnas entre os tristes cônjuges se tornaram o assunto da
mina, uma de suas poucas atrações. Numa das primeiras noites cálidas, um
grupo de aficionados2 me convidou a ir com eles para ouvir o que se passava.
Recusei, e eles voltaram desiludidos pouco depois: ouvia-se só um trombone que
tocava Faccetta Nera. Explicaram-me que algumas vezes acontecia; ele era um
idiota musical e desafogava assim.
Pelo meu trabalho me apaixonei desde o primeiro dia, embora naquela fase
não fosse nada mais que análises quantitativas em amostragens de rocha:
tratadas com ácido fluorídrico, dão ferro com amoníaco, dão níquel (em
quantidade mínima! um pequeno sedimento rosa) com dimetilglioxima, dão
magnésio com fosfato, sempre igual, todo o santo dia: em si não era muito
estimulante. Mas estimulante e nova era uma outra sensação: a amostragem
para analisar não era mais um anônimo pozinho manufaturado, um exame
materializado; era um pedaço de rocha, víscera da terra, arrancada à terra por
força de explosivos: e a partir dos dados das análises quotidianas nascia pouco a
pouco um mapa, um retrato dos veios subterrâneos. Pela primeira vez depois de
dezessete anos de carreira escolar, de confrontos e de guerras do Peloponeso, as
coisas aprendidas começavam assim a me servir. A análise quantitativa, tão
avara de emoções, pesada como o granito, tornava-se viva, verdadeira, útil,
inserida numa obra séria e concreta. Servia: enquadrava-se num plano, peça de
um mosaico. O método analítico que seguia não mais era um dogma livresco,
ratificava-se todo o dia, podia ser refinado, adaptado aos nossos objetivos com
um jogo sutil de razão, de ensaios e de erros. Errar não mais era um infortúnio
vagamente cômico, que te arruína um exame ou te baixa a nota; errar era como
quando se escala uma montanha, uma confrontação, uma percepção, um passo
acima que te torna mais valente e mais eficaz.
A moça do laboratório chamava-se Alida. Assistia aos meus entusiasmos de
neófito sem compartilhá-los; ficava, antes, surpresa com eles e um pouco
chocada. Sua presença não era desagradável. Vinha da escola preparatória,
citava Píndaro e Safo, era filha de um cacique local de todo inócuo, era astuta e
preguiçosa, e não lhe importava nada de nada, menos ainda análise de rocha,
que com o Tenente aprendera mecanicamente a realizar. Também ela, como
todos lá em cima, interagira com várias pessoas, do que não fazia nenhum
mistério comigo graças àquela minha curiosa virtude de confessor que mencionei
antes. Brigara com muitas mulheres por vagas rivalidades, apaixonara-se um
pouco por muitos, muito por um, e estava noiva de outro ainda, um bom homem
melancólico e despretensioso, empregado no Escritório Técnico, conterrâneo,
que os seus haviam escolhido para ela; também isto não lhe importava nada. O
que fazer? Rebelar-se? Ir embora? Não, era uma moça de boa família, o futuro
seriam os filhos e o fogão, Safo e Píndaro coisas do passado, o níquel uma
superfluidade ininteligível. Trabalhava de má vontade no laboratório, à espera
daquelas núpcias pouco desejadas, lavava com negligência os precipitados,
pesava o níquel-dimetilglioxima, e me custou muito esforço convencê-la de que
não era oportuno alterar para mais o resultado das análises: coisa que tendia a
fazer, antes me confessou ter feito muitas vezes, porque, dizia, não custava nada
a ninguém e alegrava ao Diretor, ao Tenente e a mim.
Em que consistia, ao fim e ao cabo, aquela química sobre a qual o Tenente e
eu nos atormentávamos? Água e fogo, nada mais, como na cozinha. Uma cozinha
menos apetitosa, por certo: com odores penetrantes ou desagradáveis em lugar
dos domésticos; quanto ao resto, o mesmo avental, fazer misturas, queimar as
mãos, arrumar tudo no fim do dia. Nenhuma escapatória para Alida. Escutava
com devoção compungida, e ao mesmo tempo com ceticismo italiano, os meus
relatos da vida turinense: relatos bastante censurados porque tanto ela quanto
eu devíamo-nos ater ao jogo de meu anonimato, embora alguma coisa não
pudesse deixar de emergir: pelo menos, a partir das minhas próprias reticências.
Depois de algumas semanas dei conta de que não era mais alguém sem nome:
era um tal Doutor Levi, que não devia ser chamado Levi nem em segunda nem
em terceira pessoa, por boa educação, para evitar confusões. Na atmosfera
mexeriqueira e tolerante da mina, a discrepância entre a minha condição
indeterminada de marginalizado e a minha visível suavidade de costumes saltava
aos olhos, e, me confessou Alida, era amplamente comentada e variadamente
interpretada: desde o agente da Ovra3 até o protegido de alto nível.
Descer ao vale era incômodo e também, para mim, pouco prudente; como não
podia frequentar ninguém, as minhas noites na mina eram intermináveis.
Algumas vezes me fechava no laboratório depois do toque da sirene, ou
regressava a ele após o jantar para estudar ou pensar no problema do níquel;
outras vezes me fechava para ler a história de Jó no meu pequeno quarto
monástico do Submarino. Nas noites de lua, muitas vezes fazia longas
caminhadas solitárias através da região selvagem à volta da mina, subindo até a
borda da cratera, ou à meia costa na área cinzenta e quebrada da descarga,
percorrida por misteriosos tremores e crepitações como se verdadeiramente aí
se aninhassem gnomos atarefados: a escuridão era marcada por latidos
longínquos de cães no fundo invisível do vale.
Estas distrações me concediam uma trégua à consciência funesta do meu pai
moribundo em Turim, dos americanos derrotados em Bataan, dos alemães
vencedores na Crimeia e, em resumo, da armadilha que estava por disparar:
faziam nascer em mim uma ligação nova, mais sincera do que a retórica da
natureza aprendida na escola, com aquelas silvas e aquelas pedras que eram a
minha ilha e a minha liberdade, uma liberdade que talvez logo fosse perder. Por
aquela montanha sem paz experimentava um afeto frágil e precário: com ela
contraíra uma dupla ligação, primeiro nas excursões com Sandro, depois aqui,
experimentando-a como químico para arrancar-lhe o tesouro. Deste amor das
pedras e destas solidões de amianto, em outras daquelas longas noites nasceram
duas narrativas de ilhas e liberdade, as primeiras que tive vontade de escrever
depois do tormento das redações escolares: uma fantasiava a propósito de um
remoto precursor meu, caçador de chumbo, não de níquel; a outra, ambígua e
mercurial, havia derivado de uma alusão à ilha de Tristão da Cunha em que
pusera os olhos naquele período.
O Tenente, que prestava serviço militar em Turim, subia à mina somente um
dia por semana. Controlava o meu trabalho, dava indicações e conselhos para a
semana seguinte, revelando-se um ótimo químico e um pesquisador tenaz e
arguto. Depois de um curto período de orientação, ao lado da rotina das análises
quotidianas veio a delinear-se um trabalho de alcance mais amplo.
Na rocha da mina, pois, havia níquel: muito pouco, eis que das nossas análises
resultava um conteúdo médio de 0,2 por cento. Risível, em comparação com os
minerais explorados pelos meus colegas-rivais antípodas no Canadá e na Nova
Caledônia. Mas será que a ganga podia ser enriquecida? Sob a direção do
Tenente, experimentei tudo que era possível: separações magnéticas, por
flutuação, por levigação, por peneiração, com líquidos pesados, por trepidação.
Não cheguei a lugar algum: não se concentrava nada, em todas as frações
obtidas a percentagem de níquel permanecia obstinadamente a original. A
natureza não nos ajudava: concluímos que o níquel acompanhava o ferro
bivalente, substituía-o vicariamente, seguia-o como uma sombra evanescente, um
irmão muito pequeno: 0,2 por cento de níquel, 8 por cento de ferro. Todos os
reativos imagináveis para tratar o níquel deviam ser empregados em doses
quarenta vezes superiores, mesmo sem contar com o magnésio. Um
empreendimento economicamente desesperado. Nos momentos de cansaço,
percebia as rochas que me circundavam, as rochas verdes da região pré-alpina,
em toda a sua dureza sideral, hostil, estranha: em comparação, as árvores do
vale, então vestidas de primavera, eram como nós, gente também elas, que não
falam mas sentem o calor e o frio, gozam e sofrem, nascem e morrem, espalham
pólen ao vento, seguem obscuramente o sol no seu giro. A pedra, não: não
recolhe energia em si, está apagada desde os primórdios, pura passividade
hostil; uma fortaleza maciça que eu devia desmantelar bastião por bastião, para
capturar o duende escondido, o caprichoso níquel-Niccolao, que pula ora aqui
ora acolá, fugidio e maligno, com as longas orelhas espetadas, sempre atento
para escapar dos golpes do instrumento investigador, sempre pronto a iludir.
Mas não é mais o tempo de duendes, de niccoli e de coboldi. Somos químicos,
isto é, caçadores: nossas são “as duas experiências da vida adulta” de que falava
Pavese, o sucesso e o insucesso, matar a baleia branca ou destroçar o navio; não
nos devemos render à matéria incompreensível nem a ela nos acomodarmos.
Estamos aqui para isso, para errar e nos corrigirmos, para receber golpes e
desferi-los. Não nos devemos nunca sentir desarmados: a natureza é imensa e
complexa, mas não é impermeável à inteligência; é preciso rodeá-la, acossar,
sondar, buscar o ponto de passagem ou construí-lo. Minhas conversas semanais
com o Tenente pareciam planos de guerra.
Entre as muitas tentativas que tínhamos feito, contava-se também a de
reduzir a rocha com hidrogênio. Pusemos o mineral, finamente triturado, numa
barqueta de porcelana, esta num tubo de quartzo, e pelo tubo, aquecido por fora,
fizemos passar uma corrente de hidrogênio, na esperança de que este último
arrancasse o oxigênio ligado ao níquel e o deixasse reduzido ao estado metálico,
isto e, puro. Como o ferro, o níquel metálico é magnético, e assim, nesta
hipótese, seria fácil separá-lo do resto, só ou com o ferro, simplesmente por meio
de um ímã. Mas depois do tratamento pusemos em vão um poderoso ímã na
solução aquosa de nosso pó: daí não extraímos nada além de resíduos de ferro.
Claro e triste: o hidrogênio não reduzia nada naquelas condições; o níquel, junto
com o ferro, devia estar alojado estavelmente na estrutura da rocha, bem ligado
à sílica e à água, contente (por assim dizer) do seu estado e pouco disposto a
assumir algum outro.
E se experimentássemos desmontar aquela estrutura? A ideia me ocorreu
como uma lâmpada que se acende, um dia em que me caiu casualmente nas
mãos um velho diagrama todo empoeirado, obra de algum desconhecido
predecessor meu; observava a perda de peso do amianto da mina em função da
temperatura. O amianto perdia um pouco de água a 150° C, depois permanecia
aparentemente inalterado até aproximadamente 800° C; aqui notava-se uma
descida brusca, com uma perda de peso de 12 por cento, e o autor havia escrito:
“torna-se frágil”. Ora, a rocha de silicato é a mãe do amianto: se o amianto se
decompõe a 800° C, também a rocha deveria fazê-lo; e como um químico não
pensa, ou melhor, não vive sem modelos, detinha-me a representar, desenhando-
as no papel, as longas cadeias de silício, oxigênio, ferro e magnésio, com o pouco
níquel preso entre suas malhas, e depois as mesmas cadeias depois do abalo,
reduzidas a fragmentos, com o níquel desalojado do seu refúgio e exposto ao
ataque; e não me sentia muito diferente do remoto caçador de Altamira, que
pintava o antílope sobre as paredes de pedra a fim de que a caça do dia seguinte
fosse afortunada.
As cerimônias propiciatórias não duraram muito: o Tenente não estava mas
podia chegar de uma hora para a outra, e eu temia que não aceitasse, ou não
aceitasse de bom grado, aquela minha hipótese de trabalho tão pouco ortodoxa.
Sentia-a como uma comichão por toda a pele: o que está feito está feito, melhor
me atirar logo ao trabalho.
Não há nada mais estimulante que uma hipótese. Sob o olhar divertido e
cético de Alida, que, por já ser final de tarde, consultava descaradamente o
relógio de pulso, pus-me a trabalhar como um louco. Num instante o aparelho foi
montado, o termostato graduado a 800° C, o redutor de pressão do tubo
regulado, o fluxímetro arrumado. Aqueci o material durante meia hora, em
seguida reduzi a temperatura e fiz passar o hidrogênio durante uma outra hora:
já então escurecera, a moça fora embora, tudo era silêncio sob o melancólico
zumbido de fundo da Seção de Seleção, que trabalhava também de noite. Sentia-
me um pouco conspirador e um pouco alquimista.
No tempo aprazado tirei a barqueta do tubo de quartzo, deixei que esfriasse
no vácuo, depois dissolvi na água o pó muito fino, que de esverdeado se tornou
amarelento: coisa que me pareceu de bom agouro. Peguei o ímã e me pus ao
trabalho. Cada vez que retirava o ímã da água, vinha agarrado a ele uma
pequena quantidade de pó marrom: recolhia-o delicadamente com papel de filtro
e punha-o à parte, talvez um miligrama de cada vez; para que a análise
merecesse crédito, era preciso pelo menos meio grama de material, vale dizer,
muitas horas de trabalho. Decidi parar pela meia-noite: isto é, decidi interromper
a separação, porque por preço algum iria adiar o início da análise. Para esta
última, tratando-se de uma fração magnética (e, portanto, presumivelmente
pobre em silicatos) e considerando a minha pressa, imaginei ali mesmo uma
variante simplificada. Às três da manhã o resultado estava pronto: não mais a
costumeira nuvenzinha rosa de níquel-dimetilglioxima, mas um precipitado
visivelmente abundante. Filtrar, lavar, secar, pesar. O dado final me apareceu
escrito em cifras de fogo na régua calculadora: 6 por cento de níquel, o resto
ferro. Uma vitória: mesmo sem uma nova separação, uma liga para se mandar tal
e qual ao forno elétrico. Voltei ao “Submarino” já quase madrugada, com uma
vontade aguda de ir logo despertar o Diretor, telefonar ao Tenente e me revirar
pelos prados escuros, úmidos de orvalho. Pensava em muitas coisas insensatas e
não pensava em algumas coisas tristemente sensatas.
Pensava ter aberto uma porta com uma chave e possuir a chave de muitas
portas, talvez de todas. Pensava ter pensado numa coisa em que ninguém mais
havia ainda pensado, nem no Canadá nem na Nova Caledônia, e me sentia
invencível e intocável, inclusive diante dos inimigos próximos, a cada mês mais
próximos. Pensava, enfim, ter ganhado uma revanche não ignóbil contra quem
me declarara biologicamente inferior.
Não pensava que, mesmo se o método de extração que entrevira pudesse
encontrar aplicação industrial, o níquel produzido terminaria inteiramente nas
blindagens e nos projéteis da Itália fascista e da Alemanha de Hitler. Não
pensava que, naqueles mesmos meses, haviam sido descobertas na Albânia
jazidas de um mineral de níquel diante das quais a nossa não valia nada, bem
como nada valia qualquer projeto meu, do Diretor ou do Tenente. Não previa que
a minha interpretação da separabilidade magnética do níquel estava
substancialmente equivocada, como me demonstrou o Tenente poucos dias
depois, assim que lhe comuniquei os meus resultados. Nem previa que o Diretor,
depois de ter compartilhado durante alguns dias de meu entusiasmo, esfriou este
mesmo meu e seu entusiasmo quando se deu conta de que não existia no
mercado nenhum seletor magnético capaz de separar um material em forma de
pó fino, e que sobre o pó mais grosso o meu método não podia funcionar.
Mas esta história não acaba aqui. Apesar dos muitos anos decorridos, da
liberalização das trocas comerciais e da queda do preço internacional do níquel,
a notícia da enorme riqueza que jaz naquele vale sob forma de rejeitos acessíveis
a todos ainda incendeia fantasias. Não longe da mina, em tabernas e estábulos,
no limite entre a química e a magia branca, ainda há gente que de noite vai aos
despejos, daí regressa com sacos cheios de ganga cinzenta, tritura-a, aquece-a,
trata-a com reativos sempre novos. O fascínio da riqueza sepultada, dos dois
quilos de nobre metal argênteo amalgamados com milhares de quilos de pedra
estéril que se joga fora, ainda não se extinguiu.
E não desapareceram os dois contos minerais que então havia escrito.
Tiveram um destino quase tão atribulado quanto o meu: passaram por
bombardeios e fugas, eu os dera como perdidos, mas os reencontrei
recentemente ao arrumar papéis esquecidos há décadas. Não os quis abandonar:
o leitor os terá aqui em seguida, inseridos, como o sonho de evasão de um
prisioneiro, entre estas histórias de química militante.

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1 O autor utiliza aqui termos da mitologia germânica dificilmente traduzíveis,
designativos de duendes das minas. Os coboldi (do alemão Kobold) substituíam a
prata pelo cobalto, então considerado sem valor. Já os niccoli (do alemão Nicket)
são espíritos associados a um mineral que do cobre tem somente a cor.
2 Em castelhano, no original.
3 Polícia secreta do fascismo.
Chumbo
Meu nome é Rodmund e venho de muito longe. Meu pais chama-se Thiuda;
pelo menos, nós o chamamos assim, mas os nossos vizinhos, ou seja, os nossos
inimigos, nos chamam com nomes diversos, Saksa, Nemet, Alaman. Meu país é
diferente deste: tem grandes florestas e rios, invernos longos, pântanos, névoas e
chuvas. Os meus, quero dizer, aqueles que falam a minha língua, são pastores,
caçadores e guerreiros: não gostam de cultivar a terra, até desprezam quem a
cultiva, incitam os rebanhos contra seus campos, saqueiam suas aldeias e
escravizam suas mulheres. Eu não sou nem pastor nem guerreiro; não sou nem
mesmo um caçador, embora meu ofício, afinal, não seja muito diferente da caça.
Liga-me à terra, mas sou livre: não sou um camponês.
Meu pai e todos nós Rodmund em linha paterna exercemos desde sempre este
ofício, que consiste em reconhecer uma certa e pesada pedra, encontrá-la em
países distantes, aquecê-la num certo modo que nós conhecemos e dela extrair o
chumbo negro. Perto da minha aldeia havia uma jazida grande: dizem que fora
descoberta por um meu antepassado, que chamavam Rodmund Dentes Azuis. É
uma aldeia de operários do chumbo: todos o sabem fundir e trabalhar, mas
somente nós Rodmund sabemos encontrar a pedra e garantir que é a verdadeira
pedra de chumbo, não uma das tantas pedras pesadas que os Deuses semearam
pelas montanhas para enganar o homem. São os Deuses que fazem crescer sob a
terra os veios dos metais, mas os mantêm secretos, ocultos; quem os encontra é
quase igual a eles e, por isso, os Deuses não o amam e tentam confundi-lo. Não
nos amam a nós, Rodmund: mas não nos preocupamos com isso.
Ora, em cinco ou seis gerações a jazida esgotou-se: houve quem propusesse
segui-la sob a terra, escavando galerias, e até experimentou fazê-lo com grande
dano para si mesmo; por fim, a opinião dos mais prudentes prevaleceu. Todos os
homens retomaram os velhos misteres, mas eu não: assim como o chumbo, sem
nós, não vê a luz, nós sem o chumbo não podemos viver. Nossa arte faz
enriquecer, mas faz morrer na juventude. Alguns dizem que isto ocorre porque o
metal entra no sangue e o debilita pouco a pouco; outros pensam ser uma
vingança dos Deuses, mas de todo modo a nós Rodmund importa pouco que
nossa vida seja curta, porque somos ricos, respeitados e corremos o mundo. De
fato, o caso daquele meu antepassado dos dentes azuis é excepcional, porque era
excepcionalmente rica a jazida que ele descobrira: em geral, nós buscadores do
chumbo também somos viajantes. Ele mesmo, disseram, vinha de muito longe, de
um país onde o sol é frio e não se põe jamais, as pessoas moram em palácios de
gelo e no mar nadam monstros marinhos de mil passos de comprimento.
Assim, depois de seis gerações de descanso, recomecei a viajar em busca de
pedras para fundir ou para outras pessoas fundirem, ensinando-lhes a arte em
troca de ouro; aí está, nós Rodmund somos nigromantes: mudamos o chumbo em
ouro.
Parti só, para o Sul, quando ainda era jovem. Viajei quatro anos, de região em
região, evitando planícies, subindo vales, batendo com o martelo, encontrando
pouco ou nada: no verão, trabalhava nos campos, no inverno, trançava cestos ou
gastava o ouro que trazia comigo. Sozinho, eu disse: para nós as mulheres
servem para dar-nos um filho homem, para que a raça não se extinga, mas não as
trazemos conosco. Para que serviriam? A pedra, não aprendem a encontrá-la, e
aliás se nela tocam quando estão menstruadas a pedra dissolve-se em areia
morta ou em cinzas. São preferíveis as jovens que se encontram no caminho,
boas para uma noite ou para um mês, com as quais se fazem orgias sem pensar
no amanhã, como pensam, ao contrário, as esposas. O nosso amanhã, é melhor
vivê-lo a sós: quando a carne começa a tornar-se flácida, o ventre a doer, os
cabelos e os dentes a cair, as gengivas a fazerem-se cinzentas, então é melhor
estar a sós.
Cheguei a um lugar a partir do qual, nos dias serenos, se via ao sul uma
cadeia de montanhas. Na primavera voltei a me pôr a caminho, decidido a
alcançá-las: estava cansado daquela terra pegajosa e mole que para nada servia,
servia apenas para fazer ocarinas de terracota, uma terra destituída de virtudes
e segredos. Na montanha é diferente, as rochas, que são os ossos da terra, veem-
se a descoberto, ressoam sob as botas, e é fácil distinguir as diversas qualidades:
as planícies não foram feitas para nós. Eu perguntava por todas as partes onde
ficava o passo da montanha mais acessível; perguntava também se tinham
chumbo, onde o compravam, quanto pagavam por ele: quanto mais caro por ele
pagassem, mais buscava nas vizinhanças. Algumas vezes não sabiam nem mesmo
do que se tratava: quando lhes fazia ver o fragmento de lâmina que trago sempre
no alforje, riam ao percebê-lo tão maleável e zombeteiramente me perguntavam
se no meu país também se fazem de chumbo as relhas dos arados e as espadas.
Na maior parte das vezes, porém, não conseguia nem compreendê-los nem me
fazer compreender: pão, leite, uma enxerga, uma mulher, a direção a seguir no
dia seguinte, e nada mais.
Atravessei um amplo passo de montanha em pleno verão, com o sol que ao
meio-dia vinha quase a pino sobre a minha cabeça, embora ainda houvesse
manchas de neve sobre os prados. Pouco mais abaixo havia rebanhos, pastores e
trilhos: via-se o fundo do vale, tão embaixo que parecia ainda imerso na noite.
Desci, encontrando aldeias, uma aliás bem grande, perto de um curso d'água,
onde a gente da montanha descia para trocar reses, cavalos, queijos, peles e uma
bebida vermelha que chamavam de vinho. Quase ria ao ouvi-los falar: sua
linguagem era um balbuciar tosco e indistinto, um blablablá animalesco, a tal
ponto que era surpreendente vê-los portarem armas e apetrechos semelhantes
aos nossos, alguns até mais engenhosos e elaborados. As mulheres fiavam como
entre nós; construíam casas de pedra, não tão belas quanto sólidas: algumas,
porém, eram de madeira, suspensas alguns palmos acima do solo porque se
apoiavam em quatro ou seis troncos arrematados por pedras circulares e lisas;
acredito que estas últimas servissem para impedir a entrada de ratos, e isto me
pareceu uma invenção inteligente. Os telhados não eram de palha, mas de
pedras amplas e planas; a cerveja, não a conheciam.
Logo vi que no alto, ao longo das paredes do vale, havia buracos na rocha e
massas de detritos: indício de que também por aqueles lados havia alguém que
buscava. Mas não fiz perguntas, para não levantar suspeitas; um forasteiro como
eu já levantava suspeitas demais. Desci à torrente de água, que era bastante
impetuosa (lembro-me de que tinha a água turva e esbranquiçada, como se
misturada com leite, coisa que na minha terra jamais se vira), e pus-me
pacientemente a examinar as pedras: esta é uma das nossas malícias, as pedras
dessas torrentes vêm de longe e falam claro a quem sabe compreender. Havia
um pouco de tudo: pedras de fogo, pedras-verdes, pedras de cal, granitos,
pedras-ferro, até um pouco daquela que chamamos galmeida, tudo coisa que não
me interessava; no entanto, tinha como que a ideia fixa de que num vale como
aquele, com certas estrias brancas na rocha vermelha, com tanto ferro por ali, as
pedras de chumbo não podiam faltar.
Ia descendo ao longo da torrente, um pouco sobre os penedos, um pouco
vadeando onde era possível, como um cão de caça, com os olhos grudados na
terra, e não é que, pouco depois da confluência de uma outra torrente menor, vi
uma pedra no meio de milhões de outras pedras; uma pedra quase igual a todas
as outras, uma pedra esbranquiçada com pequenos pontos negros, que me fez
parar, tenso e imóvel, como um perdigueiro que olha fixamente. Recolhi-a, era
pesada, ao lado havia outra semelhante mas menor. Nós, é difícil que erremos:
mas para maior segurança quebrei-a, peguei um fragmento do tamanho de uma
noz e levei-o comigo para submetê-lo a um teste. Um bom buscador, sério, que
não queira dizer mentiras nem aos outros nem a si mesmo, não deve confiar nas
aparências, porque a pedra, que parece morta, está repleta de enganos: algumas
vezes muda de natureza enquanto se escava, como certas serpentes que mudam
de cor para não se deixarem perceber. Um bom buscador, portanto, leva tudo
consigo: o cadinho de argila, o pó de carvão, a isca, o fuzil e um outro
instrumento ainda, que é segredo e não posso nomear, e que serve justamente
para compreender se uma pedra é boa ou não.
De noite encontrei um lugar afastado, fiz fogo, pus no fogo o cadinho bem
estratificado, aqueci-o durante meia hora e deixei-o esfriar. Quebrei-o, e ei-lo, o
pequeno disco brilhante e pesado, que se risca com a unha, o disco que alarga o
coração e faz sumir das pernas a fadiga do caminho, e que nós chamamos “o
pequeno rei”.
Nessa altura não é que as coisas se tenham arrumado: antes, o trabalho maior
ainda está por fazer. É preciso subir de novo o curso d'água e a cada bifurcação
verificar se a pedra boa continua à direita ou à esquerda. Subi um bom tempo a
torrente maior e a pedra havia sempre, mas sempre muito rara; em seguida, o
vale se estreitava numa garganta tão funda e escarpada que era inimaginável
continuar. Perguntei aos pastores das redondezas e me fizeram entender, com
gestos e grunhidos, que não havia mesmo modo de contornar aquele
despenhadeiro, mas que, voltando a descer até o vale grande, se encontrava uma
pequena estrada, desta largurinha, que dava numa passagem a que eles
chamavam por um nome como Tringo e que levava ao outro lado da garganta,
num lugar onde havia animais "chifrudos que mugiam e também, como imaginei,
pastos, pastores, pão e leite. Pus-me a caminho, achei facilmente a estradinha e
o Tringo, e daí desci até um lugar belíssimo.
Precisamente diante de mim, que descia, via-se logo um vale verde de lariços
e, ao fundo, montanhas todas brancas de neve em pleno verão: o vale terminava
aos meus pés numa vasta pradaria salpicada de cabanas e rebanhos.
Estava cansado, desci e parei junto aos pastores. Eram desconfiados mas
conheciam (bem até demais) o valor do ouro, e me hospedaram por alguns dias
sem maiores exigências. Aproveitei-me disso para aprender algumas palavras da
sua língua: chamam de “pen” as montanhas, “tza” aos prados, “roisa” a neve do
verão, “fea” as ovelhas, “bait" às suas casas, que são de pedra na parte de baixo,
onde mantêm os animais, e de madeira em cima, com sustentação de pedra como
já falei, onde vivem e guardam o feno e as provisões. Eram gente esquiva, de
poucas palavras, mas não tinham armas e não me trataram mal.
Depois que descansei, retomei a busca sempre com o sistema da torrente e
terminei por me meter num vale paralelo àquele dos lariços, longo, estreito e
deserto, sem pastos nem florestas. A torrente que o cortava era rica de pedra
boa: pressentia estar perto daquilo que buscava. Passei três dias dormindo ao
relento: antes, sem dormir nada, a tal ponto estava impaciente, passava as noites
perscrutando o céu, para que nascesse a alvorada.
A jazida estava muito distante, numa torrente escarpada: a pedra branca
aflorava entre a relva rala, ao alcance da mão, e bastava escavar dois ou três
palmos para encontrar a pedra negra, a mais rica de todas, que eu já mais vira
mas o meu pai me descrevera. Pedra compacta, sem escória, para dar trabalho a
cem homens durante cem anos. O que era estranho é que alguém já devia ter
estado por ali: via-se, meio escondida atrás de uma rocha (certamente posta ali
de propósito), a entrada de uma galeria, que devia ser muito antiga, porque da
abóbada pendiam estalactites do comprimento dos meus dedos. No chão havia
pedaços de madeira apodrecidos e fragmentos de ossos, poucos e desgastados; o
resto deviam ter levado embora as raposas. Com efeito, havia vestígios de
raposas e talvez de lobos: mas um crânio pela metade que despontava do lodo
era certamente humano. Isso é uma coisa difícil de explicar, mas já ocorreu mais
de uma vez: que alguém, quem sabe quando, vindo não se sabe de onde, num
tempo remoto e anterior talvez ao dilúvio, acha um veio, não diz nada a ninguém,
tenta explorar sozinho a pedra e aí deixa os ossos, e depois passam os séculos.
Meu pai me dizia que, em toda a galeria que se escave, encontram-se os ossos
dos mortos.
Em suma, a jazida existia: fiz as minhas experiências, construí do melhor
modo um forno ao ar livre, desci e retornei com a lenha, fundi o chumbo que
pudesse levar às costas e voltei ao vale. Nada disse à gente dos pastos: retomei o
Tringo e desci à grande aldeia da outra parte, que se chamava Sales.
Era dia de mercado, expus-me com o chumbo na mão. Alguns começaram a se
deter, a sopesá-lo e a fazer perguntas que compreendia pela metade: estava claro
que queriam saber para que servia, quanto custava, de onde vinha. Logo se
adiantou um, com ar desembaraçado e um gorro de lã trançada, e nos
entendemos muito bem. Fiz ver a ele que aquela coisa se bate com o martelo:
aliás, imediatamente encontrei um martelo e uma coluna de pedra, e fiz ver
como é fácil reduzir a substância a lâminas e folhas; depois expliquei-lhe que
com as folhas, soldando-as de um lado com um ferro em brasa, podem fazer-se
canos; disse-lhe que os escoamentos de madeira, por exemplo os que se usavam
naquela aldeia de Sales, arruínam-se e apodrecem, expliquei-lhe que os canos de
bronze são difíceis de fazer e que, quando se usam para água de beber, causam
dor de barriga; ao contrário, os canos de chumbo duram para sempre e soldam-
se uns nos outros com facilidade. Um pouco aventurosamente, e fazendo uma
cara solene, me veio à cabeça lhe explicar que com uma folha de chumbo
também se podem revestir as caixões dos mortos, de modo que estes não criem
vermes mas se tornem secos e finos, e assim a alma também não se dispersa, o
que é uma bela vantagem; e sempre com o chumbo se podem fundir imagens
fúnebres, não brilhantes como o bronze, mas justamente um pouco foscas, um
pouco veladas, como convém aos objetos de luto. Porque vi que estas questões
lhe interessavam muito, expliquei-lhe que, se se vai além das aparências, o
chumbo é precisamente o metal da morte: uma vez que faz morrer, uma vez que
o seu peso é um desejo de cair, e cair é próprio dos cadáveres, uma vez que a sua
própria cor é esqualidamente morta, uma vez que é o metal do planeta Tuisto,
que é o mais lento dos planetas, isto é, o planeta dos mortos. Também lhe disse
que, para mim, o chumbo é uma matéria diferente de todas as outras matérias,
um metal que podemos sentir cansado, talvez cansado de transformar-se e que
não quer transformar-se mais: as cinzas de quem sabe quais outros elementos
cheios de vida, que há milhares de anos se queimaram no seu próprio fogo.
Trata-se de coisas que verdadeiramente penso, não que as tenha inventado para
fechar negócio. Aquele homem, que se chamava Borvio, ouvia boquiaberto, e
depois me disse que devia ser mesmo como eu dizia e que aquele tal planeta está
consagrado a um deus no seu país chamado de Saturno e representado com uma
foice.
Era o momento de tratar do essencial, e enquanto ele ainda estava remoendo
a minha tagarelice pedi-lhe trinta libras de ouro pela cessão da jazida, a
tecnologia da fusão e instruções precisas sobre os usos principais do metal. Ele
me contrapropôs moedas de bronze com um javali, cunhadas sabe-se lá onde,
mas eu fiz que cuspia nelas: ouro, nada de de histórias. Por outro lado, trinta
libras é uma demasia para alguém que viaja a pé, todos o sabem, e eu sabia que
Borvio o sabia: assim fechamos o negócio por vinte libras. Fez-me acompanhá-lo
até a jazida, o que era justo. Ao voltarmos ao vale, me entregou o ouro: eu
verifiquei todos os vinte lingotes, considerei-os genuínos e de bom peso, e
fizemos uma bela farra regada a vinho para darmos solenidade ao contrato.
Era também uma farra de adeus. Não que aquele país não me agradasse, mas
muitos motivos me levavam a retomar caminho. Primeiro: queria ver os países
quentes, onde se diz que crescem oliveiras e limoeiros. Segundo: queria ver o
mar, não aquele tempestuoso de onde vinha o meu avô dos dentes azuis, mas o
mar tépido de onde vem o sal. Terceiro: de serve o ouro e carregá-lo às costas,
com o terror contínuo de que o roubem à noite ou durante uma bebedeira.
Quarto e definitivo: queria gastar o ouro numa viagem pelo mar, para conhecer o
mar e os marinheiros, porque os marinheiros precisam do chumbo mesmo que
não o saibam.
Assim parti: caminhei durante dois meses, descendo por um grande vale triste
até que este desembocou na planície. Havia prados e campos de trigo, e um odor
áspero de tojo queimado que me trouxe nostalgia do meu país: o outono, em
todos os países do mundo, tem o mesmo cheiro de folhas mortas, de terra que
repousa, de lenha miúda que queima, de coisas, em suma, que acabam, e tu
pensas: "para sempre”.
Encontrei uma cidade fortificada, de um tamanho que entre nós não existe, na
confluência de dois rios; havia um mercado de escravos, carne, vinho, mulheres
sujas, sólidas e desgrenhadas, uma pousada com um bom fogo, e aí passei o
inverno: caía neve miúda, como entre nós. Segui viagem em março e depois de
um mês de caminhada encontrei o mar, que não era azul mas cinzento, mugia
como um bisão e se arrojava sobre a terra como se a quisesse devorar: ao pensar
que ele jamais tinha repouso, jamais o tivera desde quando existe o mundo, senti
me faltar coragem. Mas retomei igualmente o caminho para o levante, ao longo
da praia, porque o mar me fascinava e não podia me afastar dele.
Encontrei outra cidade e nela me detive, até porque o meu ouro chegava ao
fim. Eram pescadores e gente estranha, que vinha por navio de diferentes países
muito distantes: compravam e vendiam, de noite brigavam pelas mulheres e se
esfaqueavam nos becos; então, também eu comprei uma faca de bronze, forte,
com a bainha de couro, para carregar na cintura debaixo da roupa. Conheciam o
vidro mas não os espelhos: ou melhor, tinham somente pequenos espelhos de
bronze polido, de quatro tostões, daqueles que logo se trincam e falseiam as
cores. Quando se tem o chumbo, não é nada difícil fazer um espelho de vidro,
mas eu lhes insinuei o segredo muito por alto, contei-lhes que é uma arte que só
nós, Rodmund, conhecemos, arte que nos foi ensinada por uma deusa chamada
Frigga, além de outras tolices que eles engoliam como água.
Eu precisava de dinheiro: procurei em volta, encontrei perto do porto um
vidraceiro que tinha um ar bastante inteligente, e entrei em acordo com ele.
Dele aprendi diversas coisas, em primeiro lugar que se pode soprar o vidro:
me agradava tanto, aquele sistema, que até pedi me fosse ensinado e qualquer
dia desses também tentarei soprar o chumbo ou o bronze fundido (mas são
líquidos demais, é difícil conseguir). Em troca, ensinei-lhe que sobre uma lâmina
de vidro ainda quente se pode verter o chumbo fundido, e se obtêm espelhos não
tão grandes, mas luminosos, sem defeitos, e que se conservam durante muitos
anos. Além disso, ele era bastante capaz, tinha um segredo para os vidros
coloridos e conseguia lâminas matizadas de belíssimo aspecto. Eu estava
entusiasmado com a colaboração e me veio à cabeça fazer espelhos até com as
calotas do vidro soprado, vertendo-lhes o chumbo por dentro ou espargindo-o por
fora: olhando-nos nesses espelhos, vemo-nos muito grandes ou muito pequenos,
ou ainda inteiramente deformados; esses espelhos não agradam às mulheres mas
todas as crianças querem comprá-los. Por todo o verão e o outono vendemos
espelhos aos mercadores, que nos pagavam bem por eles: mas, ao mesmo tempo,
eu falava com esses mercadores e tentava obter o máximo possível de notícias
sobre uma terra que muitos deles conheciam.
Era espantoso observar como aquela gente, apesar de viver no mar metade da
sua vida, tinha ideias tão confusas acerca dos pontos cardeais e das distâncias;
mas, afinal, num ponto estavam todos de acordo, a saber, navegando para o sul,
e havia quem dissesse mil milhas e quem dissesse dez vezes ainda mais distante,
se achava uma terra que o sol queimara até converter em pó, rica de árvores e
animais nunca vistos, habitada por homens ferozes de pele negra. Mas muitos
davam como certo que pela metade do caminho se encontrava uma grande ilha
chamada Icnusa, que era a ilha dos metais: desta ilha se narravam as histórias
mais estranhas, que era habitada por gigantes, mas que os cavalos, os bois, até
os coelhos e as galinhas eram minúsculos; que as mulheres mandavam e faziam a
guerra, enquanto os homens cuidavam dos animais e fiavam a lã; que tais
gigantes devoravam homens, particularmente estrangeiros; que se tratava de
uma terra de putaria, onde os maridos trocavam entre si as mulheres e mesmo
os animais se acasalavam em desordem, os lobos com as gatas, os ursos com as
vacas; que a gravidez das mulheres só durava três dias, depois dos quais as
mulheres pariam e em seguida diziam às crianças: “Anda logo, me traz a tesoura
e ilumina, que eu te corto o cordão”. Outros ainda diziam que ao longo de suas
costas existem fortalezas de pedra do tamanho das montanhas; que tudo naquela
ilha é feito de pedra, as pontas das lanças, as rodas carros, até os pentes das
mulheres e as agulhas de coser; e mesmo as panelas de cozinhar, para não falar
que possuem pedras que queimam, acesas sob tais panelas; que ao longo dos
caminhos, vigiando as encruzilhadas, existem monstros petrificados, tremendos
de se verem. Estas coisas eu as escutava compungidamente, mas dentro de mim
ria a mais não poder, porque já rodei bastante pelo mundo e sei que todo o
mundo é como a própria aldeia: de resto, eu também, quando volto e descrevo os
países em que andei, me divirto inventando esquisitices; e por aqui se narram
fantasias sobre a minha terra, por exemplo, que os búfalos entre nós não têm os
joelhos e que, para abatê-los, basta serrar na base as árvores em que se apoiam
de noite para descansar: sob o peso deles a árvore se quebra, eles caem
distendidos e não mais podem levantar-se.
Sobre a questão dos metais, no entanto, todos se punham de acordo; muitos
mercadores e capitães do mar haviam trazido da ilha para terra carregamentos
de metal bruto ou trabalhado, mas eram gente rude e de suas falas era difícil
compreender de que metal se tratava: mesmo porque não falavam todos a
mesma língua, e nenhum falava a minha, e dava-se uma grande confusão de
termos. Diziam, por exemplo, “kalibe", e não havia modo de entender se queriam
dizer ferro, prata ou bronze. Outros chamavam de “sider” seja o ferro, seja o gelo
das montanhas, e eram ignorantes a ponto de sustentar que o gelo das
montanhas, com o passar dos séculos e sob o peso da rocha, endurece e se torna
primeiro cristal de rocha, depois pedra de ferro.
Em resumo, eu estava farto de ofícios de mulher e queria partir para esta
Icnusa. Vendi ao vidraceiro a minha parte na empresa e, com aquele dinheiro
mais o que ganhara com os espelhos, consegui lugar a bordo de um navio de
carga: mas no inverno não se parte, sopra a tramontana, ou o mistral, ou o noto,
ou o euro, parece mesmo que nenhum vento é bom e que até abril a coisa melhor
consiste em ficar em terra, embriagar-se, apostar até a roupa nos dados e
engravidar as mulheres do porto.
Partimos em abril. A embarcação estava carregada de ânforas de vinho; além
do dono, havia um chefe de tripulação, quatro marinheiros e vinte remadores
acorrentados aos bancos. O chefe de tripulação vinha de Kriti e era um grande
mentiroso: descrevia um país em que vivem homens chamados de Orelhões, que
têm orelhas tão desmedidas que nelas se enrolam para dormir no inverno, bem
como animais com o rabo para a frente, que se chamam Alfil e compreendem a
linguagem dos homens.
Devo confessar que me custou acostumar-me a viver no navio: ele dança sob
teus pés, balança um pouco à direita e um pouco a esquerda, é difícil comer e
dormir, pisam nos teus pés por falta de espaço; ademais, os remadores
acorrentados te olham com olhos tão ferozes que fazem pensar que, não
estivessem justamente acorrentados, te despedaçariam num segundo: e o dono
me disse que acontece, às vezes. Por outra parte, quando o vento é propício, a
vela se enfuna e os remadores levantam os remos, e parece até que se voa num
silêncio encantado; veem-se os golfinhos pularem fora d'água, e os marinheiros
afirmam adivinhar pela expressão dos seus focinhos o tempo que fará amanhã.
Aquela embarcação estava bem vedada com pez, mas via-se todo o casco
esburacado: trabalho dos moluscos, me explicaram. Mesmo no porto tinha visto
que todos os barcos ancorados estavam carcomidos: não há nada a fazer, disse-
me o dono, que era também o capitão. Quando uma embarcação envelhece, é
desmanchada e queimada; mas eu tinha ideias próprias a respeito, como também
para a âncora. É estupidez fazê-la de ferro: a ferrugem come-a toda, não dura
dois anos. E as redes de pescar? Aqueles marinheiros, quando o vento estava
bom, arremessavam uma rede que tinha flutuadores de madeira e pedras como
lastro. Pedras! Se fossem de chumbo, poderiam ser quatro vezes menos
incômodas. Claro que não abri a boca com ninguém, mas, como todos podem
compreender, já pensava no chumbo que tiraria das entranhas da Icnusa e
vendia a pele do urso antes de tê-lo matado.
Avistamos a ilha depois de onze dias de mar. Entramos num pequeno porto à
força de remos: havia em torno escarpas de granito e escravos que esculpiam
colunas. Não eram gigantes nem dormiam nas próprias orelhas; eram feitos
como nós e com os marinheiros se entendiam bastante bem, mas os seus feitores
não os deixavam falar. Aquela era uma terra de rocha e de vento, que logo me
agradou: o ar estava cheio de odores de ervas, amargos e selvagens, e as pessoas
pareciam fortes e simples.
A região dos metais ficava a dois dias de caminhada: aluguei um burro com o
seu guia, e isto é mesmo verdade, são burros pequenos (não como gatos, como se
dizia no continente), mas robustos e resistentes; afinal, nos boatos algo de
verdade pode haver, quem sabe uma verdade escondida sob véus de palavras,
como uma adivinhação. Por exemplo, vi que também fazia sentido a história das
fortalezas de pedra: não são propriamente grandes como montanhas, mas
sólidas, de forma regular, com pedras precisamente ajustadas: e o curioso é que
todos dizem que "sempre existiram", e ninguém sabe por quem, como, por quê e
quando foram construídas. No entanto, é uma grande mentira que os ilhéus
devorem estrangeiros: de etapa em etapa me conduziram até as minas, sem
contar histórias nem mistérios, como se a terra deles fosse de todos.
A região dos metais é de deixar tonto: como quando um cão de caça entra
num bosque cheio de presas, fareja rasto atrás de rasto, estremece todo e fica
como que perdido. Está junto ao mar, uma fileira de colinas que no alto se
tornam despenhadeiros, e se veem de perto e de longe, até o horizonte, as
colunas de fumaça das fundições, com gente ao redor entregue aos afazeres, os
libertos como os escravos: e também a história da pedra que queima é
verdadeira, não acreditava nos meus olhos. Demora um pouco a acender, mas
logo dá muito calor e dura muito. Traziam-na de não sei onde, em cestos nos
lombos de burro: é negra, pegajosa, frágil, não muito pesada.
Dizia, pois, que existem pedras maravilhosas, certamente portadoras de
metais nunca vistos, que afloram em veios brancos, roxos, azuis: sob aquela terra
deve existir um emaranhado fabuloso de filões. Me perderia de bom grado, a
bater, escavar e fazer provas: mas sou um Rodmund, e a minha pedra é o
chumbo. Logo me pus ao trabalho.
Encontrei uma jazida na margem ocidental da região, onde, penso, ninguém
jamais procurara: de fato, não existiam poços, galerias ou áreas de rejeitos, nem
tampouco sinais aparentes na superfície; as pedras que afloravam eram como
todas as outras pedras. Mas pouco abaixo havia chumbo: e isto é uma coisa em
que muitas vezes pensei, que nós buscadores acreditamos encontrar o metal com
os olhos, a experiência e o engenho, mas na realidade o que nos conduz é algo
mais profundo, uma força como aquela que orienta os salmões a subir pelos
nossos rios ou as andorinhas a voltar para o ninho. Talvez aconteça conosco o
mesmo que com os guias perspicazes, que não sabem o que os leva até a água,
mas alguma coisa os leva e rege a batuta entre os seus dedos.
Não sei dizer como, mas justamente ali estava o chumbo, sentia-o sob os meus
pés, turvo, venenoso e pesado, numa extensão de duas milhas ao longo de um
riacho num bosque em que, nos troncos atingidos pelos raios, se aninhavam as
abelhas selvagens. Em pouco tempo comprei escravos que cavassem por mim, e,
assim que juntei um pouco de dinheiro, também comprei uma mulher. Não para
nos entregarmos à diversão os dois: escolhi-a com cuidado, sem considerar tanto
a beleza, mas que fosse sadia, larga de bacia, jovem e alegre. Escolhi-a assim
para que me desse um Rodmund, que a nossa arte não pereça; e não perdi
tempo, porque as minhas mãos e os joelhos começam a tremer, os meus dentes
folgam nas gengivas e tornaram-se azuis como os do meu avô que vinha do mar.
Este Rodmund nascerá no fim do próximo inverno, nesta terra onde crescem as
palmeiras e se condensa o sal, e de noite se ouvem os cães selvagens ladrar na
pista do urso; nesta aldeia que fundei junto ao riacho das abelhas selvagens e à
qual queria dar um nome da minha língua que estou esquecendo, Bak der
Binnen, que significa precisamente "Rio das Abelhas”: mas a gente daqui aceitou
o nome só em parte, e entre eles, na sua linguagem que já é a minha, chamam-na
“Bacu Abis”.
Mercúrio
Com a minha mulher Maggie, eu, o cabo Abrahams, que abaixo aponho a
assinatura, moro nesta ilha há quatorze anos. Aqui me mandaram para a
guarnição: parece que numa ilha vizinha (quero dizer, “a mais vizinha”: está a
nordeste desta, a não menos de 1.200 milhas, e chama-se Santa Helena) tinham
exilado uma pessoa importante e perigosa, e temiam que os seus adeptos a
ajudassem a fugir e a refugiar-se por aqui. É história em que jamais acreditei: a
minha ilha chama-se “Desolação", e nunca nome de ilha foi mais bem posto; de
modo que jamais compreendi o que uma pessoa importante como aquela poderia
fazer por aqui.
Correu o boato de que fosse um renegado, adúltero, papista, agitador do povo
e fanfarrão. Enquanto foi vivo, conosco havia outros doze soldados, gente jovem
e alegre de Gales e do Surrey; eram também bons camponeses e davam-nos uma
ajuda no trabalho. Depois o agitador do povo morreu, e então veio uma
canhoneira levar todos para casa: mas Maggie e eu pensamos em certas dívidas
antigas e preferimos ficar aqui, ocupando-nos dos nossos porcos. A nossa ilha
tem a forma que se vê representada a seguir.
É a ilha mais solitária que existe no mundo. Foi descoberta mais de uma vez,
pelos portugueses, pelos holandeses, e antes ainda por gente selvagem que
esculpiu sinais e ídolos nas rochas do monte Snowdon; mas ninguém aqui jamais
se estabeleceu, porque chove metade do ano e a terra só presta para o sorgo e as
batatas. Todavia, quem pouco exige por certo não morre de fome, porque a costa
norte enche-se de focas cinco meses por ano e as duas pequenas ilhas ao sul são
repletas de ninhos de gaivotas: só é preciso pegar um barquinho e buscar
quantos ovos se queira. Sabem a peixe, mas são nutritivos e matam a fome; de
resto, tudo aqui sabe a peixe, mesmo as batatas e os porcos que as comem.

Na vertente leste do Snowdon crescem azinheiras e outras plantas cujo nome


não conheço: no outono dão flores azuis, carnosas, com cheiro de gente suja; no
inverno, bagos duros, ácidos, imprestáveis para comer. São plantas estranhas,
absorvem água da terra profunda e a expulsam como chuva pelas ramagens;
mesmo nos dias secos, o terreno sob essa floresta fica úmido. A água que chove
dos ramos é boa para beber e até faz bem para os defluxos, embora tenha gosto
de musgo: nós a recolhemos com um sistema de canos e tinas. Essa floresta, que
aliás é a única da ilha, chamamos de “Floresta que Chora".
Em Aberdare é que moramos. Não é uma cidade, são apenas quatro casebres
de madeira, dois dos quais arruinados; mas um dos galeses, que era justamente
de Aberdare, insistiu em chamá-los assim. O Duckbill é o extremo norte da ilha: o
soldado Cochrane, que sofria de nostalgia, ia lá muitas vezes e passava os dias
no meio da névoa áspera e ao vento, porque parecia-lhe estar mais perto de
Inglaterra. Até construiu aí um farol, que ninguém jamais se preocupou em
acender. Chama-se Duckbill porque, visto de leste, tem mesmo a forna de um
bico de pato.
A Ilha das Focas é plana e arenosa: aí vêm no inverno as focas chocar os ovos.
A gruta Holywell, isto é, Poço Santo, chamou-a assim a minha mulher; que não
sei o que nela encontrava. Em certos períodos, quando estávamos sós, ia até aí
quase todas as tardes com uma tocha, e eram quase duas milhas desde
Aberdare. Sentava-se lá a fiar ou a tricotar, esperando não se sabe o quê.
Perguntei-lhe a respeito disso mais de uma vez: disse-me coisas confusas, que
ouvia vozes e via sombras, e que lá embaixo, onde nem mesmo chega o barulho
do mar, se sentia menos só e mais protegida. Mas eu receava que Maggie
descambasse para a idolatria. Naquela gruta havia pedras que se assemelhavam
a figuras de homens e de animais: uma, justamente no fundo, era um crânio com
chifres. Com certeza, aquelas formas não vinham de mãos humanas: e então de
quem? Eu, por minha conta, preferia ficar distante; até porque na gruta se
ouviam às vezes murmúrios surdos, como cólicas nas entranhas da terra, o chão
esquentava sob os pés, e por certas gretas, no fundo, saíam correntes de ar com
odor de enxofre. Em suma, àquela gruta eu teria dado um nome completamente
diferente: mas Maggie dizia que aquela voz supostamente ouvida por ela
pronunciaria um dia o nosso destino, o destino da ilha, o destino de toda a
humanidade.

Maggie e eu ficamos sós durante vários anos: todo ano, na Páscoa, passava a
baleeira de Burton trazendo notícias do mundo e provisões, levando o pouco
toucinho defumado que produzimos; mas depois tudo mudou. Há três anos
Burton desembarcou aqui dois holandeses: Willem ainda era quase um menino,
tímido, louro, rosado; tinha na testa uma chaga prateada que parecia lepra, e
nenhuma embarcação o queria a bordo. Hendrik era mais velho, magro, e tinha
os cabelos cinza e a testa rugosa: contou uma história pouco clara, de uma briga
na qual teria rachado a cabeça de seu contramestre, de modo que na Holanda
esperava-o a forca; mas não falava como um marinheiro e tinha mãos de senhor,
não de alguém que parte cabeças.
Poucos meses depois, uma manhã vimos subir fumaça de uma das Ilhas dos
Ovos. Peguei o barco e fui ver: topei com dois náufragos italianos, Gaetano di
Amalfi e Andrea di Noli. Seu navio se despedaçara nos recifes de Erpice, e eles
se salvaram a nado; não sabiam que a ilha maior fosse habitada; tinham acendido
uma fogueira de ramos secos e guano para se enxugarem. Disse-lhes que daí a
poucos meses voltaria a passar Burton e poderia levá-los à Europa, mas
rejeitaram a ideia com terror: depois do que tinham visto naquela noite, jamais
poriam os pés de novo num navio; e foi preciso muito esforço para convencê-los a
entrar no meu pequeno barco e atravessar as cem braças de mar que nos
separavam da Desolação. Se dependesse deles, permaneceriam naquele rochedo
miserável comendo ovos de gaivota até morrerem de morte natural.
Não que na Desolação falte espaço. Arrumei os quatro num dos casebres
abandonados pelos galeses, onde ficavam bem à vontade até porque suas
bagagens eram modestas. Só Hendrik tinha um baú de madeira, trancado com
um ferrolho. A chaga de Willem, afinal, não era mesmo lepra: Maggie a curou em
poucas semanas com emplastros de uma erva que ela conhece; não é bem
agrião, é uma erva oleosa que cresce nas margens da floresta e serve para
comer, ainda que depois cause sonhos estranhos: de todo modo, nós a chamamos
de agrião. Na verdade, não o curou só com emplastros: fechava-se com ele no
aposento e lhe cantava como que cantigas de ninar, com pausas que me
pareceram excessivamente longas. Fiquei contente e mais tranquilo quando
Willem sarou, mas logo depois começou uma outra história aborrecida com
Hendrik. Ele e Maggie faziam juntos longas caminhadas, e os ouvia falarem das
sete chaves, de Hermes Trimegisto, da união dos contrários e de outras coisas
pouco claras. Hendrik construiu para si uma cabana sólida, sem janelas, levou
para ela o baú, e nela passava dias inteiros, algumas vezes com Maggie: via-se
sair fumaça pela chaminé. Também iam até a gruta, de onde voltavam com
pedras coloridas que Hendrik chamava de “cinabres”.
Os dois italianos me davam menos preocupações. Eles também olhavam
Maggie com olhos brilhantes, mas não sabiam inglês e não podiam lhe falar:
ainda por cima, se rivalizavam mutuamente e passavam o dia vigiando um ao
outro. Andrea era devoto e logo encheu a ilha de santos de madeira e de barro
cozido: até deu de presente uma virgem de terracota a Maggie, que no entanto
não sabia o que fazer com ele e a meteu num canto da cozinha. Em suma, estava
claro para qualquer um que para aqueles quatro homens eram necessárias
quatro mulheres; um dia reuni-os e sem maiores delongas lhes disse que, se um
deles tocasse em Maggie, terminaria no inferno porque não se deve desejar a
mulher dos outros: mas que ao inferno o despacharia eu mesmo, ainda que lá
terminasse também. Quando Burton passou de novo, com os porões atulhados de
óleo de baleia, todos o encarregamos solenemente de encontrar para nós as
quatro mulheres, mas ele riu na nossa cara: o que tínhamos na cabeça? Era fácil
achar mulheres dispostas a se estabelecerem no meio de focas, nesta ilha
esquecida, para se casarem com quatro pobres diabos? Talvez se lhe
pagássemos, mas com quê? Decerto não com as nossas linguiças, metade carne
de porco, metade carne de foca, que fediam mais a peixe do que a sua baleeira.
Foi embora e logo alçou as velas.
Naquela mesma tarde, pouco antes de anoitecer, ouviu-se um grande
estrondo, como se a própria ilha tremesse em suas raízes. O céu escureceu em
poucos minutos, e a nuvem negra que o cobria se iluminava de baixo como que
por um fogo. Do cume do Snowdon fizeram-se ver, primeiro, rápidos relâmpagos
avermelhados que subiam até o céu, depois um jorro amplo e lento de lava acesa:
não descia na nossa direção, mas à esquerda, para o sul, escorrendo de penhasco
em penhasco com silvos e crepitações. Depois de uma hora tinha chegado ao
mar, onde se apagava em meio a estrondos e a uma coluna de vapor. Nenhum de
nós jamais pensara que o Snowdon pudesse ser um vulcão: no entanto, a forma
do seu cume, uma concha arredondada com pelo menos duzentos pés de
profundidade, podia fazê-lo supor.
O espetáculo durou toda a noite, acalmando-se às vezes, em seguida dando
vigor com uma nova série de explosões: parecia que não ia mais terminar. No
entanto, pela madrugada veio um vento quente do leste, o céu tornou a limpar e
o rumor se fez cada vez menos intenso até se reduzir a um murmúrio, depois ao
silêncio. O manto de lava, de amarelo e deslumbrante, se fez avermelhado como
a brasa e durante o dia se apagou.
Minha preocupação eram os porcos. Disse a Maggie que fosse dormir e, aos
quatro, que viessem comigo: queria ver o que havia mudado na ilha.
Aos porcos nada acontecera, mas correram ao nosso encontro como se corre
para irmãos (eu não suporto quem fala mal dos porcos: são animais capazes de
cognição, e me dá pena quando tenho de estripá-los). Abriram-se várias fendas
tão grandes que não se vê o fundo, na vertente noroeste.
A borda sudoeste da Floresta que Chora foi sepultada, e a faixa do lado, por
uma extensão de duzentos pés, secou e pegou fogo; a terra devia estar mais
quente do que o céu porque o fogo perseguiu os troncos até as raízes, abrindo
covas onde estas ficavam. O manto de lava está todo marcado de bolhas em
explosão, de margens cortantes como estilhaços de vidro, e parece um
gigantesco ralador de queijo: ressalta da margem sul da cratera, que
desmoronou, enquanto a margem norte, que constitui o cume do monte, é agora
uma cristã arredondada que parece muito mais alta do que antes.
Quando deparamos com a gruta do Poço Santo, ficamos paralisados de
espanto. Era uma outra gruta, inteiramente diferente, como quando se
embaralham as cartas: estreita onde antes era larga, alta onde era baixa. Num
ponto a abóbada havia cedido, e as estalactites, antes apontadas para baixo,
estavam para os lados como bicos de cegonha. No fundo, onde antes ficava o
Crânio do Diabo, havia agora um recinto enorme como a cúpula de uma igreja,
cheio ainda de fumaça e estalidos, a tal ponto que Andrea e Gaetano queriam a
todo o custo recuar. Mandei que fossem chamar Maggie, que ela também viesse
ver sua caverna, e, como previa, Maggie chegou arquejando pela corrida e a
emoção e os dois se detiveram fora, presumivelmente a invocar seus santos e a
desfiar suas orações. Dentro da gruta Maggie corria para frente e para trás como
os cães de caça, como se a chamassem aquelas vozes que ela dizia ouvir: de
repente soltou um grito que nos fez arrepiar todos os pelos. Havia no teto da
cúpula uma fenda, da qual caíam gotas mas não de água: gotas brilhantes e
pesadas, que desabavam no chão de rocha e explodiam em mil pequenas gotas
que rolavam distante. Um pouco mais abaixo formara-se uma poça, e então
compreendemos que aquilo era mercúrio: Hendrik tocou nele, depois eu
também; era uma matéria fria e viva que se movia em pequenas ondas como que
irritadas e frenéticas.
Hendrik parecia transfigurado. Trocava com Maggie olhares vivos cujo
significado eu não entendia, e dizia coisas obscuras e confusas que ela, contudo,
fazia ar de entender: que era tempo de iniciar a Grande Obra: que, como o céu,
também a terra tem o seu orvalho; que a caverna estava repleta do spiritus
mundi; depois se virou abertamente para Maggie e disse: “Venha aqui esta noite,
faremos a besta dos dois espinhaços. Tirou do pescoço uma correntinha com uma
cruz de bronze e nos mostrou: da cruz pendia uma serpente, e ele lançou a cruz
no mercúrio da poça, e a cruz flutuou.
Olhando bem ao redor, o mercúrio gotejava de todas as gretas da nova gruta,
como a cerveja de barris novos. Espichando o ouvido, ouvia-se como um
murmúrio sonoro feito pelas mil gotas metálicas que se desprendiam da abóbada
para se esborracharem no solo, bem como pelo rumor dos riachinhos que
corriam vibrando como prata fundida e sumiam pelas fendas do chão.
Para dizer a verdade, nunca simpatizara com Hendrik: dos quatro, era o que
me agradava menos; mas naqueles momentos me causava também medo, raiva e
desprezo. Tinha nos olhos uma luz oblíqua e móvel, como a do próprio mercúrio;
parecia ter-se feito mercúrio, que lhe corresse nas veias e ressumasse nos olhos.
Andava pela caverna como um furão, arrastando Maggie pelo pulso, metia as
mãos nas poças de mercúrio, salpicava-o no corpo e lançava-o na cabeça, como
um morto de sede faria com a água: faltava pouco para bebê-lo. Maggie seguia-o
como encantada. Me contive um pouco, depois puxei a faca, agarrei-o pelo peito
e lancei-o contra a parede da rocha: sou muito mais forte do que ele, que arriou
como as velas quando o vento para. Queria saber quem era, o que queria de nós
e da ilha, bem como aquela história da besta com dois espinhaços.
Parecia alguém que desperta de um sonho e não se fez rogado. Confessou que
a conversa do contramestre assassinado era uma mentira, mas não a da forca
que o esperava na Holanda: propusera aos Estados Gerais transformar em ouro a
areia das dunas, obtivera uma dotação de cem mil florins, dos quais gastara uns
poucos em experimentos e o resto em farras; em seguida, fora convidado a
executar diante dos pró-homens aquilo que ele chama de experimentum crucis;
mas de mil libras de areia não conseguira extrair mais do que duas pepitas de
ouro, e então saltara pela janela, e escondera-se em casa da sua amante e depois
partira furtivamente na primeira embarcação para o Cabo: tinha no baú todo o
equipamento de alquimista. Quanto à besta, me disse não ser coisa que se
explicasse em duas palavras. O mercúrio, para a sua obra, seria indispensável
porque é espírito fixo volátil, ou seja, princípio feminino, e combinado com o
enxofre, que é terra ardente masculina, permite obter o Ovo Filosófico que é
exatamente a Besta com dois Dorsos, porque nela estão unidos e entrelaçados o
homem e a mulher. Um belo discurso, não é mesmo? Uma argumentação límpida
e direta, verdadeiramente de alquimista, da qual nenhuma palavra me
convenceu. Eles dois eram a besta de dois espinhaços, ele e Maggie: ele grisalho
e peludo, ela branca e macia, dentro da caverna ou sabe-se lá onde, talvez no
nosso próprio leito, enquanto eu cuidava dos porcos; preparavam-se para fazê-lo,
embriagados de mercúrio como estavam, se é que já não o tinham feito.
Talvez o mercúrio já circulasse até nas minhas veias, porque naquele
momento só via verdadeiramente em vermelho. Depois de vinte anos de
matrimônio, Maggie não me importa muito, mas naquele momento ardia de
desejo por ela e teria feito uma carnificina. Todavia me controlei; ou melhor,
ainda apertava Hendrik contra a parede quando me veio à cabeça uma ideia e
lhe perguntei quanto valia o mercúrio: ele, no seu ofício, devia também saber.
— Doze esterlinas a libra — respondeu com um fio de voz.
— Jura!
— Juro! — respondeu, levantando os dois polegares e cuspindo no chão entre
eles; talvez fosse o juramento destes transformadores de metais: mas tinha a
minha faca tão perto da garganta que certamente dizia a verdade. Deixei-o
escapar e ele, ainda todo apavorado, explicou-me que o mercúrio em estado
bruto, como o nosso, não vale muito, mas que se pode purificá-lo com a
destilação, como o uísque, em retortas de ferro fundido ou de terracota: depois
quebra-se a retorta e no resíduo se encontra chumbo, frequentemente prata e
algumas vezes ouro; que isto era um segredo de alquimistas; mas que o faria por
mim se lhe garantisse a vida.
Eu não prometi verdadeiramente nada, mas disse-lhe que com o mercúrio
pretendia pagar as quatro mulheres. Fabricar retortas e utensílios de barro
cozido devia ser mais fácil do que mudar em ouro a areia de Holanda: que se
apressasse, aproximava-se a Páscoa e a visita de Burton, e para a Páscoa queria
prontos quarenta vasos de uma pinta de mercúrio purificado, todos iguais, com
suas devidas tampas, lisos e redondos, porque a aparência das coisas também
conta. Que o ajudassem os outros três, e também eu daria uma mão. Para cozer
retortas e vasos, não se preocupasse: já havia o forno onde Andrea preparava os
seus santos.
Logo aprendi a destilar, e em dez dias os vasos estavam prontos: eram de uma
pinta apenas, mas cada pinta de mercúrio significava com folga dezessete libras,
a tal ponto que custava levantá-los pelo braço e, ao movimentá-los, parecia que
dentro se debatia um animal vivo. Quanto a encontrar o mercúrio em estado
bruto, não nos custava nada: na caverna, chapinhávamos no mercúrio, que nos
gotejava na cabeça e nas costas, e ao voltarmos para casa tínhamos mercúrio nos
bolsos, nas botas e até nas camas: subia-nos à cabeça um pouco a todos nós,
tanto que começava a parecer-nos natural trocá-lo pelas mulheres. É
verdadeiramente uma substância esquisita: é frio e fugidio, sempre inquieto, mas
quando para é possível nele espelhar-se melhor do que num espelho. Se o
fazemos girar num recipiente, continua a girar durante quase meia hora. Nele
não somente flutua o crucifixo sacrílego de Hendrik, mas também as pedras e até
o chumbo. O ouro, não: Maggie fez a experiência como seu anel, mas ele logo
submergiu e quando o repescamos, se fizera de estanho. Em suma, é uma
matéria que não me agrada, e eu tinha pressa de concluir o assunto e me livrar
dele.
Na Páscoa chegou Burton, recolheu os quarenta vasos bem vedados com
argila, e partiu sem fazer promessas. Uma tarde, pelo fim do outono, vimos a sua
vela delinear-se contra a chuva, aumentar de tamanho e depois desaparecer no
ar fosco e na escuridão. Pensamos que esperasse a luz para entrar no pequeno
porto, como fazia costumeiramente, mas pela manhã não havia mais vestígio de
Burton nem da sua baleeira. No entanto, havia ao pé da praia, ensopadas e
entorpecidas de frio, as quatro mulheres e mais duas crianças, apertadas entre si
num grupo indistinto em razão do frio e da timidez; uma delas me entregou em
silêncio uma carta de Burton. Eram poucas linhas: que, para encontrar quatro
mulheres para quatro desconhecidos numa ilha desolada, teve de ceder todo o
mercúrio, não lhe sobrando nada pela intermediação; que faria a cobrança em
mercúrio ou em toucinho, medida de 10 por cento, na sua próxima visita; que
não se tratava de mulheres de um tipo especial, mas não encontrara nada
melhor; que preferira desembarcá-las a toda pressa e voltar às suas baleias para
não assistir a brigas repugnantes e por não ser alcoviteiro ou rufião, muito
menos padre para celebrar núpcias; que, porém, nos recomendava celebrá-las
nós mesmos, o melhor que pudéssemos, pela salvação das nossas almas, a qual
considerava, de todo modo, já um pouco comprometida.
Convoquei os quatro com a intenção de propor-lhes um sorteio, mas
imediatamente vi que não era preciso. Havia uma mulata de meia idade, um
pouquinho gorda, com uma cicatriz na testa, que olhava Willem com insistência,
e Willem a olhava com curiosidade: a mulher poderia ser sua mãe. Disse a
Willem: “Você a quer? Pegue-a!”. Ele pegou-a, e eu os casei assim da melhor
forma possível; quer dizer, perguntei a ela se o queria e a ele se a queria, mas a
parte “na prosperidade e na miséria, na saúde e na doença” não a lembrava com
precisão e, assim, inventei-a na hora, terminando com “até que a morte os
separe”, que me parecia cair bem. Estava justamente acabando com estes dois
quando dei conta de que Gaetano havia escolhido uma mocinha estrábica, ou
quem sabe o havia escolhido ela, e iam embora correndo à chuva de mãos dadas,
tanto que tive de segui-los e casá-los correndo eu também. Das duas que
restavam, Andrea ficou com uma negra dos seus trinta anos, graciosa e até
elegante, com um chapéu de plumas e um boá de penas de avestruz inteiramente
molhado, mas com um ar bastante equívoco; e eu casei-os também a eles,
embora tivesse ainda a respiração ofegante da corrida que antes fizera.
Sobrava Hendrik e uma moça pequena e magra, que era justamente a mãe
das duas crianças: tinha os olhos acinzentados e olhava em torno como se a cena
não lhe dissesse respeito mas a divertisse. Não olhava para Hendrik, mas para
mim; Hendrik olhava para Maggie, que acabara de sair do casebre e ainda nem
tirara os rolos do cabelo, e Maggie olhava para Hendrik. Então me veio à cabeça
que as duas crianças poderiam me ajudar a cuidar dos porcos; que Maggie
certamente não me daria filhos; que Hendrik e Maggie estariam muitíssimo bem
juntos, fazendo suas bestas de dois espinhaços e suas destilações; e que a moça
dos olhos cinza não me desagradava, ainda que fosse muito mais jovem do que
eu: antes, me dava uma impressão alegre e leve como cócega e fazia vir à cabeça
a ideia de pilhá-la em pleno voo, como uma borboleta. Assim perguntei como se
chamava e, em seguida, perguntei em voz alta, na presença de testemunhas:
“Queres tu, cabo Daniel K. Abrahams, tomar como esposa Rebecca Johnson, aqui
presente?”; respondi a mim mesmo que sim e, como a moça estava de acordo,
nos casamos.
Fósforo
Em junho de 1942 falei abertamente com o Tenente e o Diretor: percebia,
assim como eles, que meu trabalho estava se tornando inútil; me aconselharam a
buscar um novo trabalho num dos poucos nichos que a lei ainda me permitia.
Estava tentando em vão quando uma manhã, coisa raríssima, fui chamado ao
telefone da mina: na outra ponta da linha uma voz milanesa que me pareceu
grosseira e enérgica, e que dizia pertencer a um certo Doutor Martini, me
convocava para o domingo seguinte no Hotel Suisse de Turim, sem me conceder
o luxo de nenhuma explicação. Mas dissera justamente “Hotel Suisse”, e não
“Albergue Suisse”, como deveria fazer um cidadão escrupuloso: naquele tempo,
que era o tempo de Starace,1 ficava-se muito atento a semelhantes tolices e os
ouvidos estavam exercitados para captar certas nuances.
No hall (perdão: no vestíbulo) do Hotel Suisse, oásis anacrônico de veludos,
penumbras e cortinados, esperava-me o Doutor Martini, que era acima de tudo
Comendador, como ouvira pouco antes do porteiro. Era um homem vigoroso para
os seus sessenta anos, de estatura média, bronzeado, quase calvo: seu rosto
tinha traços pesados, mas os olhos eram pequenos e astutos, e a boca, um pouco
retorcida à esquerda como num esgar de desprezo, era delgada feito um corte.
Também este Comendador revelou-se desde as primeiras frases um tipo
desembaraçado: e compreendi então que esta curiosa pressa de muitos italianos
“arianos” em relação aos judeus não era casual. Fosse intuição ou cálculo,
correspondia a um objetivo: com um judeu, em tempo de Defesa da Raça, podia-
se ser cortês, podia-se talvez ajudá-lo e até se vangloriar (cautelosamente) de tê-
lo ajudado, mas era aconselhável não manter com ele relações humanas, não se
comprometer a fundo, de modo a não ser depois obrigado a demonstrar
compreensão ou compaixão.
O Comendador me fez poucas perguntas, respondeu evasivamente às muitas
perguntas minhas, e se mostrou um homem apegado ao concreto em dois pontos
fundamentais. O salário inicial que me propunha se elevava a uma cifra que eu
jamais ousaria pedir e que me deixou atônito; sua indústria era suíça, antes, ele
mesmo era suíço (palavra que pronunciava peculiarmente), logo, para minha
eventual admissão não havia dificuldade. Achei estranha, ou melhor,
francamente cômica, sua proveniência helvética expressa com tão virulento
sotaque milanês; no entanto, considerei justificáveis suas muitas reticências.
A fábrica de que era proprietário e diretor de localizava nos arredores de
Milão, e para Milão deveria me transferir. Produzia extratos hormonais: eu,
porém, deveria me ocupar de um problema bem preciso, a saber, a pesquisa de
um remédio contra a diabete que fosse eficaz por via oral. Sabia alguma coisa de
diabete? Pouco, respondi, mas meu avô materno havia morrido diabético, e
mesmo da parte paterna diversos tios, lendários adeptos do talharim, na velhice
haviam demonstrado sintomas do mal. Ao ouvir isso, o Comendador se fez mais
atento, os seus olhos se apertaram: mais tarde compreendi que, sendo
hereditária a tendência para a diabete, não lhe desagradaria ter à disposição um
diabético autêntico, de raça substancialmente humana, com o qual testar certas
ideias e preparados seus. Disse-me que o salário oferecido estava sujeito a
rápidos aumentos; que o laboratório era moderno, equipado, espaçoso; que
existia na fábrica uma biblioteca com mais de dez mil volumes; e, enfim, à
maneira do ilusionista que extrai um coelho da cartola, acrescentou que, talvez
eu não o soubesse (e de fato não sabia), mas já trabalhava no seu laboratório, e
no mesmo problema, uma pessoa que conhecia bem, uma companheira minha de
estudos, uma amiga minha, que aliás lhe falara de mim: Giulia Vineis. Que
decidisse com calma: poderia encontrá-lo no Hotel Suisse daí a dois domingos.
No dia seguinte mesmo me despedi da mina e me transferi para Milão com as
poucas coisas que julgava indispensáveis: a bicicleta, Rabelais, as Macaroneae, o
Moby Dick na tradução de Pavese e outros poucos livros, a picareta, a corda de
montanhista, a tábua de logaritmos e uma flauta doce.
O laboratório do Comendador não ficava aquém da descrição: um palácio,
comparado com o da mina. Já preparados à minha chegada, encontrei uma
bancada, uma capela, uma escrivaninha, um armário repleto de recipientes de
vidro, bem como um silêncio e uma ordem desumanos. “Meus” recipientes
estavam marcados com um pontinho de esmalte azul, para que não os
confundisse com os de outros armários e porque “aqui entre nós se paga o que
se quebra”. Esta, de resto, fora tão-somente uma das muitas prescrições que o
Comendador me transmitira por ocasião de meu ingresso: ele, com a face severa,
fizera-as passar por "precisão suíça”, alma do laboratório e de toda a fábrica,
mas a mim pareciam um amontoado de estorvos insulsos, no limite da mania de
perseguição.
O Comendador explicou que a atividade da fábrica, especialmente o problema
que pretendia me confiar, deviam ser cuidadosamente protegidos de possíveis
espiões industriais. Estes espiões podiam ser estranhos, mas também
empregados e operários da própria fábrica, a despeito das cautelas com que
efetivava as admissões. Por isso não devia falar com ninguém do tema que me
fora proposto nem dos seus eventuais desdobramentos: sequer com os meus
colegas, aliás, com eles menos ainda do que com os outros. Por esta razão, cada
empregado tinha o seu horário particular, que coincidia com viagens definidas do
ônibus que vinha da cidade: A devia entrar às oito horas, B às oito e quatro, C às
oito e oito e assim por diante, e analogamente para a saída, de modo que jamais
dois colegas pudessem viajar no mesmo ônibus. Em caso de atrasos na entrada
ou de saídas antecipadas havia multas pesadas.
A última hora da jornada de trabalho, mesmo que o mundo viesse abaixo,
devia ser dedicada a desmontar, lavar e guardar os recipientes, de modo que
ninguém, entrando fora de horário, pudesse reconstruir o trabalho feito durante
o dia. Toda a tarde, devia ser redigido um relatório do dia, a ser entregue num
envelope fechado ao Comendador, pessoalmente, ou à senhora Loredana, que era
sua secretaria.
Podia almoçar onde quisesse: não era sua intenção manter os empregados
como reféns na fábrica durante o intervalo do meio-dia. No entanto, disse-me (e
aqui sua boca se torceu mais do que o habitual e até se fez mais fina), bons
restaurantes nos arredores não existiam, e seu conselho era me ajeitar para
almoçar no laboratório: que eu trouxesse de casa os ingredientes, uma
empregada se encarregaria de cozinhar para mim.
Quanto à biblioteca, as normas a serem respeitadas eram singularmente
severas. Por motivo algum se admitia levar livros para fora da fábrica: podia-se
consultá-los apenas com o assentimento da bibliotecária, a senhorita Paglietta.
Sublinhar uma palavra ou mesmo tão-somente fazer um sinal de caneta ou lápis
constituíam uma transgressão muito grave: a senhorita Paglietta tinha de
verificar cada volume devolvido página por página e, se encontrava alguma
marca, o volume devia ser destruído e substituído à custa do culpado. Era
proibido até mesmo deixar um marcador de livros entre as páginas ou dobrar o
canto de uma página qualquer: “alguém” daí poderia extrair indícios sobre os
interesses e as atividades da fábrica, violar, em suma, os seus segredos. Nesse
sistema, é lógico que as chaves fossem fundamentais: de noite, tudo devia ser
trancado à chave, inclusive a balança analítica, e as chaves entregues ao
porteiro. O Comendador tinha uma chave que abria todas as fechaduras.
Esse rol de preceitos e proibições me teria tornado permanentemente infeliz
se, ao entrar no laboratório, não tivesse encontrado Giulia Vineis, toda tranquila,
sentada junto à sua bancada.
Não estava trabalhando, mas sim remendando umas meias, e parecia me
esperar. Acolheu-me com afetuosa familiaridade e com um sorriso irônico cheio
de alusões.
Fôramos colegas de universidade durante quatro anos e frequentamos juntos
todos os cursos de laboratório, admiravelmente dispostos à relação entre os
sexos, sem jamais estabelecermos uma amizade específica. Giulia era uma moça
morena, miúda e desembaraçada; tinha elegantes supercílios em arco, um rosto
suave e intenso, movimentos vivos mas precisos. Era mais aberta à prática do
que à teoria, cheia de calor humano, católica sem rigidez, generosa e
despreocupada; falava com voz velada e desatenta, como se estivesse
definitivamente cansada de viver, o que não ocorria em absoluto. Estava ali há
quase um ano; sim, fora ela a indicar meu nome para o Comendador: sabia
vagamente da minha situação precária na mina, pensava que eu me adequasse
àquele trabalho de pesquisa, e afinal, por que não admitir, estava farta de ficar
sozinha. Mas que não me iludisse: estava noiva, noivíssima, um assunto
complicado e tumultuoso que depois me explicaria. E eu? Não? Nada de
mulheres? Pois ia mal: ela cuidaria de me dar uma ajuda, com ou sem leis
raciais; tudo histórias, que importância podiam ter?
Recomendou não transformar em tragédia as manias do Comendador. Giulia
era uma daquelas pessoas que, aparentemente sem fazer perguntas e sem
importunar, logo sabem tudo de todos, coisa que não me acontece, quem sabe
por quê; por isso, foi para mim uma guia turística e uma intérprete excelente.
Numa só sessão me ensinou o essencial, as engrenagens existentes nos
bastidores da fábrica e os papéis dos principais personagens. O Comendador era
o patrão, embora submetido a outros e obscuros patrões de Basileia: mas quem
mandava era a Loredana (a quem indicou pela janela, no pátio: alta, morena,
bonita, um pouco vulgar e já sem o viço da juventude), que era sua secretária e
sua amante. Tinham um chalé próximo do lago, e ele, “velho mas libidinoso”,
levava-a num barco à vela: havia retratos na Diretoria, não os vira? Também o
senhor Grasso, do Departamento de Pessoal, rodeava a Loredana, mas por ora
ela, Giulia, ainda não pudera concluir se tinham ido ou não para a cama: me
manteria a par do assunto. Viver naquela fábrica não era difícil: difícil era lá
trabalhar, em razão de todos aqueles aborrecimentos. A solução era simples,
bastava não trabalhar: ela dera imediatamente conta disto e num ano, modéstia
à parte, não fizera quase nada, tão-somente montava os aparelhos de manhã,
nem que fosse só para fazer vista, e desmontava-os de tarde segundo as
prescrições; os relatórios diários, inventava-os. À parte isto, preparava o enxoval,
dormia abundantemente, escrevia cartas torrenciais ao noivo e, contra as
normas, entabulava conversa com todos aqueles que lhe apareciam pela frente.
Com o Ambrogio, meio estouvado, que cuidava dos coelhos para as experiências;
com a Michela, que tomava conta de todas as chaves e provavelmente era uma
informante do Fascio; com a Varisco, a empregadinha que, segundo o
Comendador, devia me preparar a comida; com o Maiocchi, legionário de
Espanha, engomado e mulherengo; e, imparcialmente, com o Moioli, pálido e
gelatinoso, que tinha nove filhos, pertencera ao Partido Popular, e a quem os
fascistas haviam quebrado as costelas com pancadas.
A Varisco, explicou, era uma criatura sua: era-lhe afeiçoada e fiel, fazia tudo
aquilo que ela, Giulia, mandava, inclusive certas incursões nos departamentos de
produção dos opoterápicos (proibidos a estranhos), de onde voltava com fígados,
cérebros, cápsulas suprarrenais e outras vísceras apreciadas. Também a Varisco
estava noiva, e entre as duas dava-se uma profunda solidariedade e uma troca
intensa de confidências íntimas. Através da Varisco, que, pertencendo ao serviço
de limpeza, tinha acesso a todos os departamentos, soubera que mesmo a
produção estava envolta numa densa malha antiespionagem: todas as tubulações
de água, vapor, gás, nafta, do sistema de vácuo, etc., corriam por túneis ou
estavam protegidas por cimento, e só as válvulas eram acessíveis; as máquinas
estavam protegidas com caracteres complicados e fechados à chave. Os
mostradores dos termômetros e manômetros não eram graduados: só traziam
sinais coloridos convencionais.
Naturalmente, se eu tinha vontade de trabalhar e se a pesquisa sobre a
diabete me interessava, que a fizesse, estávamos entendidos do mesmo jeito;
mas que não contasse com a sua colaboração, porque ela tinha mais em que
pensar. Mas podia contar com ela e com a Varisco no tocante à cozinha. Todas as
duas deviam treinar com vista do casamento e me preparariam comidas que me
fariam esquecer os cupons de racionamento. A mim não parecia nada comum
que se fizessem comidas sofisticadas num laboratório, mas Giulia me disse que
naquele laboratório — além de um misterioso conselheiro de Basileia que parecia
embalsamado, vinha uma vez por mês (de resto, abundantemente preanunciado),
olhava em torno de si como se estivesse num museu e ia embora sem abrir a
boca — nunca entrava alma viva, e se podia fazer tudo que se quisesse desde que
não sobrassem vestígios. Tanto quanto era humanamente possível lembrar, o
Comendador jamais pusera os pés ali.
Poucos dias após a minha admissão, o Comendador me chamou à Diretoria, e
naquela ocasião observei que as fotografias com o barco o à vela, de resto
bastante envelhecidas, realmente existiam. Disse-me ser tempo de entrar no
assunto. A primeira coisa que deveria fazer era ir à biblioteca e pedir à senhorita
Paglietta o Kerrn, um tratado sobre a diabete: eu conhecia o alemão, não era
mesmo? Bem, assim podia lê-lo no texto original, e não numa péssima tradução
francesa que o pessoal de Basileia havia providenciado. Ele, confessava-o, lera
apenas esta última, sem dela muito entender, mas obtendo a convicção não só de
que o Doktor Kerrn era alguém que sabia demais, como também de que seria
muito bom sermos os primeiros a pôr em prática suas ideias: por certo, escrevia
de um modo um tanto intrincado, mas o pessoal de Basileia, em especial o
conselheiro embalsamado, tinha grande interesse neste assunto do antidiabético
ministrável por via oral. Que pegasse, portanto, o Kerrn e o lesse com atenção,
depois pois voltaríamos a falar disto. Mas antes de mais nada, para não perder
tempo, eu podia começar a trabalhar. Suas muitas ocupações não lhe permitiram
dedicar ao texto a atenção que merecia, mas apesar de tudo dele extraíra duas
ideias fundamentais que seria possível tentar verificar na prática.
A primeira ideia dizia respeito aos antocianos. Os antocianos, como o senhor
sabe muito bem”, são os pigmentos das flores vermelhas e azuis: trata-se de
substâncias fáceis de oxidar e desoxidar, como também a glicose, e a diabete é
uma anomalia na oxidação da glicose; “portanto”, com os antocianos podia-se
tentar restabelecer uma oxidação normal da glicose. As pétalas da flor-de-lis são
muito ricas de antocianos; em vista do problema, ele mandara semear todo um
campo de flores-de-lis, recolher as pétalas e dessecá-las ao sol: que eu buscasse
fazer extratos a partir delas, ministrando-os aos coelhos e controlando-lhes a
glicemia.
A segunda ideia era igualmente vaga, simultaneamente simplória e confusa.
Sempre segundo o Doktor Kerrn, na interpretação lombarda do Comendador, o
ácido fosfórico tinha importância fundamental na renovação dos carboidratos, e
até aqui não havia muito a objetar; menos convincente era a hipótese, elaborada
pelo próprio Comendador com base nos vagos fundamentos de Kerrn, de que
bastava ministrar ao diabético um pouco de fósforo de origem vegetal para
corrigir o seu metabolismo alterado. Naquele tempo, ainda era jovem a ponto de
pensar fosse possível mudar a ideia de um superior; por isso, formulei duas ou
três objeções mas imediatamente vi que, golpeado por elas, o Comendador
endurecia como uma lâmina de cobre sob o martelo. Objetou secamente e, com
um certo tom peremptório seu que transformava propostas em ordens,
aconselhou-me a analisar um bom número de plantas, escolher as mais ricas em
fósforo orgânico, fazer daí os extratos costumeiros e aplicá-los nos coelhos de
sempre. Bom trabalho e boa tarde.
Quando contei a Giulia o resultado dessa conversa, o seu juízo foi imediato e
contundente: o velho está louco. Mas eu é que o provocara, descendo ao terreno
dele e demonstrando desde o princípio levá-lo a sério: bem feito para mim, agora
que me virasse sozinho com as flores-de-lis, o fósforo e os coelhos. Segundo ela,
toda aquela minha sofreguidão de trabalhar, que chegava ao ponto de me fazer
prostituir diante das fantasias senis do Comendador, vinha do fato de que eu não
tinha uma namorada: se a tivesse, pensaria nela antes que nos antocianos. Na
verdade, era pena que ela, Giulia, não estivesse disponível, porque se dava conta
do tipo que eu era, um daqueles que não tomam iniciativas, antes se esquivam, e
devem ser levados pela mão a desatarem pouco a pouco os próprios nós. Pois
bem, morava em Milão uma sua prima, um pouco tímida ela também; cuidaria de
que nos encontrássemos. Mas eu também, que diabo, devia fazer a minha parte:
doía-lhe na alma ver alguém, como eu, a jogar fora em coelhos os melhores anos
da juventude. Esta Giulia era um pouco feiticeira, lia mãos, frequentava
adivinhos e tinha sonhos premonitórios, e algumas vezes me aventurei a pensar
que esta sua ânsia de me livrar de uma velha angústia e de me arranjar logo uma
modesta porção de alegria se originava de uma sua obscura intuição do que o
destino estava me preparando, e visava inconscientemente a afastá-lo.
Fomos juntos ver Porto das névoas, que consideramos um filme maravilhoso, e
confessamos reciprocamente termo-nos identificado com os protagonistas:
Giulia, magra e morena, com a etérea Michèle Morgan de olhos de gelo; eu,
pacato e solitário, com Jean Gabin, desertor, fascinante, valentão e afinal
assassinado: um absurdo, e além disso aqueles dois se amavam e nós não, não
era verdade?
Quando o filme estava por terminar, Giulia me informou que eu a
acompanharia até em casa. Tinha de ir ao dentista, mas Giulia disse: "Se você
não me acompanhar, vou gritar: 'Tire as mãos de cima de mim, seu indecente!’”.
Tentei uma objeção, mas Giulia tomou fôlego e no escuro da sala começou: “Tire
as...”: então telefonei ao dentista e a acompanhei até em casa.
Giulia era uma mulher valente, capaz de viajar dez horas em pé num trem de
refugiados dos bombardeios para passar duas ao lado do seu homem, feliz e
radiante podia-se arrumar um violento duelo verbal com o Comendador ou com a
Loredana, mas tinha medo de bichos e de trovão. Ela me chamava para tirar uma
aranhazinha da sua bancada de trabalho (não devia, porém, matá-la, e sim
colocá-la num pesa-filtro e levá-la para fora no canteiro), e isto me fazia sentir
virtuoso e forte como Hércules diante da Hidra de Lerna, e ao mesmo tempo
tentado, porque percebia a intensa carga feminina do pedido. Sobreveio um
temporal furioso, Giulia resistiu a dois relâmpagos, no terceiro buscou refúgio
junto a mim. Sentia o calor do seu corpo contra o meu, vertiginoso e novo,
conhecido em sonhos, mas não devolvi o abraço; se o tivesse devolvido, talvez o
seu destino e o meu houvessem saído fragorosamente do rumo, no sentido de um
futuro comum totalmente imprevisível.
A bibliotecária, que jamais vira antes, guardava a biblioteca como o teria feito
um vira-latas, um daqueles pobres cães que são deliberadamente pervertidos à
força de corrente e de fome; ou melhor, como a velha cobra sem dentes, pálida
em razão de séculos de trevas, vigia o tesouro do rei no Livro da selva. A pobre
senhorita Paglietta pouco menos era do que um lusus naturae: era pequena, sem
seios e sem ancas, cor de cera, triste e monstruosamente míope; usava óculos de
tal modo espessos e côncavos que, observando-a de frente, seus olhos, de um
celeste esbranquiçado, pareciam longínquos, grudados no fundo do crânio. Dava
a impressão de jamais ter sido jovem, ainda que certamente não tivesse mais do
que trinta anos, e de ter nascido ali, na sombra, naquele vago bolor de mofo e
abafamento. Ninguém sabia nada a seu respeito, o próprio Comendador dela
falava com impaciência e irritação, e Giulia admitia odiá-la por instinto, sem
saber por quê, sem piedade, como a raposa odeia o cão. Dizia que a Paglietta
fedia a naftalina e tinha uma cara de obstrução intestinal. A bibliotecária me
perguntou por que eu pretendia justamente o Kerrn, quis ver meu cartão de
identidade, perscrutou-o com ar malévolo, fez-me assinar um registro e me
abandonou o volume com relutância.
Era um livro estranho: dificilmente poderia ter sido escrito e impresso noutra
parte senão no Terceiro Reich. O autor não devia ser um incompetente, mas de
cada página transparecia a arrogância de quem sabe que suas afirmações não
lhe serão contestadas. Escrevia, ou melhor, discursava, como um profeta
exaltado, como se o metabolismo da glicose, no diabético e no sadio, lhe tivesse
sido revelado por Jeová no Sinai ou, antes, por Wotan no Walhalla. Talvez
erradamente, logo demonstrei pelas teorias de Kerrn uma desconfiança hostil;
mas não me parece que os trinta anos que se passaram desde então tenham
conduzido a uma avaliação delas.
A aventura dos antocianos terminou depressa. Começara por uma pitoresca
invasão de flores-de-lis, sacos e mais sacos de delicadas pétalas azuis, secas e
frágeis como minúsculas batatas fritas. Davam extratos de cores inconstantes,
também eles pitorescos, mas extremamente instáveis: depois de poucos dias de "
inativas, ainda antes de recorrer aos coelhos, obtive do Comendador a
autorização para arquivar o assunto. Continuava a achar estranho que o homem,
suíço e com os pés na terra, se tivesse deixado convencer por aquele visionário
fanático, e na oportunidade devida, cautelosamente, insinuei o meu juízo mas ele
respondeu brutalmente que não cabia a mim criticar os professores. Deu-me a
entender que não era pago para não fazer nada, convidando-me a não perder
tempo e a começar logo com o fósforo: ele estava convencido de que o fósforo
certamente nos conduziria a uma solução brilhante. Adiante com o fósforo.
Lancei-me ao trabalho com quase nenhuma convicção, ou com a convicção de
que o Comendador e talvez o próprio Kerrn haviam sucumbido ao fascínio barato
dos nomes e dos lugares-comuns; com efeito, o fósforo tem um nome muito
bonito (significa “portador de luz”), é fosforescente, existe no cérebro, existe
também nos peixes, e por isso comer peixe dá inteligência; sem fósforo as
plantas não crescem; tônico Falières, glicerofosfatos para crianças anêmicas de
há cem anos; existe ainda na ponta dos palitos de fósforo, e as moças
desesperadas de amor o comiam para se suicidarem; existe nos fogos-fátuos,
chamas pútridas diante dos caminhantes. Não, não é um elemento emotivamente
neutro: compreensível que um certo professor Kerrn, meio bioquímico e meio
bruxo, no ambiente impregnado de magia negra da Corte nazista, o designasse
como medicamentum.
De noite, mãos anônimas me deixavam na bancada uma planta atrás da outra,
uma espécie por dia; eram todas plantas singularmente domésticas, selecionadas
não sei como: cebola, alho, cenoura, bardana, murta, mil-folhas, salgueiro, salva,
rosmaninho, rosa-de-cão, genebra. Dia após dia, eu determinava em todas o
fósforo, inorgânico e total, e me sentia como um burro de carga. Na mesma
medida em que me entusiasmara a análise do níquel na rocha na minha
encarnação anterior, agora me humilhava a dosagem quotidiana de fósforo,
porque fazer um trabalho em que não se crê é uma grande aflição; só me
alegrava um pouco, quase nada, a presença de Giulia no recinto vizinho, a cantar
com voz velada que “é primavera; moças, despertem”, e a fazer aquecimentos
com o termômetro nos bécheres de vidro Pyrex. De vez em quando vinha
contemplar meu trabalho, provocativa e zombeteira.
Giulia e eu nos déramos conta de que as mesmas mãos desconhecidas
deixavam no laboratório, na nossa ausência, traços quase imperceptíveis. Um
armário, fechado à chave de noite, estava aberto de manhã. Um suporte mudava
de lugar. A capela, deixada com a portinhola aberta, encontrava-se fechada. Uma
manhã chuvosa, como Robinson, vimos no chão a pegada de uma sola de
borracha. “Vem à noite fazer amor com a Loredana”, decifrou Giulia: mas eu
pensava que aquele laboratório, obsessivamente ordenado, devia servir para
alguma outra impalpável e secreta atividade suíça. Colocamos sistematicamente
pauzinhos pela parte de dentro nas portas, sempre fechadas à chave, que
ligavam a Produção ao laboratório: de manhã, os pauzinhos estavam sempre
caídos.
Depois de dois meses, dispunha de umas quarenta análises: as plantas com
mais alto conteúdo de fósforo eram a salva, a quelidônia e a salsa. Eu pensava
que, neste ponto, seria oportuno determinar de que forma estava o fósforo na
liga bem como tentar isolar o componente fosfórico, mas o Comendador
telefonou a Basileia e depois me declarou não haver tempo para tais
preciosismos: adiante com os extratos, feitos assim de qualquer maneira, com
água quente e com o tórculo, e em seguida concentrados no vácuo: depois, enfiá-
los esófago abaixo aos coelhos e medir a sua glicemia.
Os coelhos não são animais simpáticos. Figuram entre os mamíferos mais
distantes do homem, talvez porque suas qualidades são as da humanidade
humilhada e excluída: são tímidos, silenciosos e fugidios, e conhecem tão-
somente a comida e o sexo. Com exceção de algum gato na infância mais remota,
no campo, eu não tocara nunca um animal, e diante dos coelhos sentia repulsa; o
mesmo ocorria com Giulia. Mas, por sorte, a Varisco tinha grande familiaridade
seja com os animais seja com o Ambrogio, que deles cuidava. Mostrou-nos que
havia numa gaveta uma pequena variedade de instrumentos adequados; havia
uma caixinha estreita e alta, sem tampa: explicou-nos que os coelhos gostam de
se encovar; se alguém os pega pelas orelhas (que são sua alça natural) e os enfia
numa caixa, sentem-se mais seguros e não se mexem mais. Havia uma sonda de
borracha e um pequeno fuso de madeira com um furo transversal: é preciso
colocá-lo à força entre os dentes do animal e depois, através do furo, enfiar a
sonda pela garganta sem maiores considerações, empurrando-a para baixo até
sentirmos que atinge o fundo do estômago; se não se põe a madeira, o coelho
corta a sonda com os dentes, engole-a e morre. Através da sonda é fácil mandar
os extratos ao estômago com uma seringa comum.
De seguida, é preciso medir a glicemia. O que para os ratos é o rabo, para os
coelhos são as orelhas, mesmo neste caso: têm veias grossas e salientes, que se
congestionam imediatamente com uma esfregadura na orelha. Destas veias,
perfuradas com uma agulha, se extrai uma gota de sangue, e sem perguntar o
porquê das várias manipulações procede-se em seguida de acordo com
Crecelius-Seifert. Os coelhos são estoicos ou então pouco sensíveis à dor:
nenhum destes abusos parecia fazê-los sofrer. Assim que deixados em liberdade
e postos de novo em sua prisão, começavam de novo a roer o feno, e na vez
seguinte não demonstravam nenhum medo. Um mês depois, podia fazer
glicemias de olhos fechados, mas não parecia que o nosso fósforo desse algum
efeito; só um dos coelhos reagia ao extrato de quelidônia com uma baixa da
glicemia, mas depois de algumas semanas lhe apareceu um grande tumor na
garganta. O Comendador me disse que o operasse, e eu o operei com amargo
sentimento de culpa e nojo veemente. O coelho morreu.
Por ordem do Comendador, aqueles coelhos viviam em estrito celibato, cada
qual na sua gaiola, tanto os machos quanto as fêmeas. Mas aconteceu um
bombardeio noturno que, sem causar muitos outros danos, abriu todas as
gaiolas, e de manhã encontramos os coelhos absorvidos numa meticulosa e
generalizada campanha fornicadora: as bombas não os apavoraram de modo
algum. Assim que se libertaram, logo cavaram nos canteiros as covas de onde
lhes vem o nome,2 e ao menor alarme abandonavam pela metade as núpcias e lá
se refugiavam. Custou ao Ambrogio recuperá-los e encerrá-los em novas prisões;
o trabalho das glicemias teve de ser interrompido, porque só as gaiolas eram
marcadas e não os animais, e depois da dispersão não mais foi possível
identificá-los.
Entre um e outro coelho Giulia apareceu e me disse à queima-roupa que
precisava de mim. Viera até a fábrica de bicicleta, não era? Pois bem, naquela
mesma tarde ela devia ir urgentemente até a Porta Gênova, era preciso apanhar
três ônibus, ela estava apressada, tratava-se de um assunto muito importante:
por favor, que eu a levasse na barra da bicicleta, tudo bem? Eu, que segundo o
maníaco horário intervalado do Comendador saía doze minutos antes dela,
esperei-a depois da esquina, coloquei-a na barra da bicicleta, e partimos.
Circular por Milão de bicicleta não tinha então nada de temerário, e levar um
passageiro na barra, em tempo de bombas e de retiradas, era pouco menos que
normal: algumas vezes, especialmente à noite, acontecia que estranhos
requisitassem este serviço e que, por uma corrida de um ponto a outro da
cidade, recompensassem com quatro ou cinco liras. Mas Giulia, já habitualmente
bastante irrequieta, aquela tarde comprometia a estabilidade da bicicleta:
apertava convulsamente o guidom, dificultando o comando, mudava subitamente
de posição, ilustrava a argumentação com bruscos gestos de mão e de cabeça
que deslocavam de modo imprevisível o nosso centro de gravidade comum. O seu
tema era em princípio um tanto genérico, mas Giulia não fazia o tipo que guarda
os segredos no corpo, envenenando-o; metade da via Imbonati já saía das
generalidades e na Porta Volta falava em termos explícitos: estava furiosa porque
os pais dele tinham dito não, e partia rapidamente para o contra-ataque. Por que
se opunham?
— Para eles, não sou assim tão bonita, entende? — resmungou, sacudindo o
guidom raivosamente.
— Que gente estúpida! Para mim, você é bastante bonita — repliquei com
seriedade.
— Não seja bobo! Você parece que não percebe.
— Só queria agradar; mas é mesmo o que penso.
— Não é hora disso. Se quer flertar comigo agora, jogo você no chão.
— Eu não ia cair sozinho.
— Você é um bobo. Vamos, pedale que está ficando tarde.
No Largo Cairoli já sabia tudo: ou melhor possuía todos os elementos de fato,
mas de tal sorte confusos e deslocados na sua sequência temporal que não me
era fácil daí obter um sentido.
Principalmente, não conseguia compreender como não bastava a vontade dele
para desatar o nó: era inconcebível, escandaloso. Havia o tal homem, que Giulia
me descrevera de outras vezes generoso, firme, apaixonado, sério; tinha aquela
moça despenteada e esplêndida na sua raiva, a debater-se entre os meus braços
empenhados na direção; e, em vez de vir à toda até Milão e fazer valer suas
razões, escondia-se em não sei qual caserna da fronteira, a defender a pátria.
Porque, sendo um gói, prestava o serviço militar, naturalmente: e enquanto assim
pensava, e enquanto Giulia continuava a discutir comigo como se fosse eu o seu
dom Rodrigo, me via tomado por um ódio surdo pelo rival jamais conhecido. Um
gói, e ela uma gói, segundo a terminologia atávica: e podiam casar-se. Sentia
crescer em mim, talvez pela primeira vez, uma repugnante sensação de vazio:
portanto, isso é o que significava ser outro; esse, o preço de ser o sal da terra.
Carregar na bicicleta uma moça que se deseja e estar distante ao ponto de nem
sequer ser possível se enamorar dela: levá-la no quadro até Viale Gorizia para
ajudá-la a ser de outro e a desaparecer da minha vida.
Diante do número 40 de Viale Gorizia havia um banco: Giulia me disse que
esperasse e entrou pelo portão como um vendaval. Sentei-me e fiquei esperando,
abrindo o caminho para o curso dos meus pensamentos, desastrado e ferido.
Pensava que devia ser menos cavalheiro, antes, menos inibido e bobo, e que por
toda a vida ia lamentar não ter havido entre mim e ela nada além de uma
lembrança estudantil e profissional; e que talvez não fosse tarde demais, quem
sabe o não daqueles pais de opereta se revelasse irremovível, que Giulia voltasse
em lágrimas e eu pudesse consolá-la; e que se tratava de esperanças infames,
um aproveitamento canalha das desventuras alheias. E finalmente, como um
náufrago que está cansado de debater-se e se deixa afundar, recaía no que era o
meu pensamento dominante naqueles anos: que o noivo real e as leis de
separação constituíam apenas álibis insossos, e que a minha incapacidade de me
aproximar de uma mulher era uma condenação inapelável a me acompanhar até
a morte, restringindo-me a uma vida estéril e sem objetivo, envenenada pela
inveja e pelos desejos abstratos.
Giulia saiu depois de duas horas, ou melhor, irrompeu pelo portão como o
projétil de um obus. Nem precisava fazer perguntas para saber como se houvera:
— Botei os dois lá embaixo — disse-me, com a cara toda vermelha e ainda
arquejante.
Fiz o meu melhor esforço para congratular-me com ela de um modo digno de
crédito, mas a Giulia não se pode fazer acreditar em coisas que não se pensam
nem esconder coisas que se pensam. Agora que se livrara de seu peso e estava
alegre pela vitória, fitou-me direto nos olhos, aí descobriu uma nuvem e
perguntou:
— Você pensava em quê?
— No fósforo — respondi.

Giulia se casou poucos meses depois e se despediu de mim sufocando as


lágrimas e deixando minuciosas instruções à Varisco sobre provisões
alimentares. Enfrentou muitas adversidades, teve muitos filhos; continuamos
amigos, nos vemos de vez em quando em Milão e falamos de química e de coisas
sensatas. Não estamos insatisfeitos com nossas escolhas e com o que a vida nos
deu, mas, quando nos encontramos, ambos experimentamos a impressão curiosa
e não desagradável (e que muitas vezes descrevemos um ao outro) de que um
véu, um sopro, um lance de dados nos desviaram por dois caminhos divergentes
que não eram os nossos.

________________
1 Starace, secretário durante vários anos do partido fascista, era conhecido
pela sua obsessão de proibir, por decadente, o uso de palavras e costumes
estrangeiros.
2 Em italiano, coniglio (coelho) e cunicolo (a cova subterrânea de certos
animais) derivam do latim cuniculum.
Ouro
É mais que sabido que os turinenses transplantados para Milão aí não se
enraízam ou se enraízam mal. No outono de 1942, estávamos em Milão sete
amigos de Turim, rapazes e moças, chegados por motivos diferentes à grande
cidade que a guerra tornava inóspita; os nossos pais, os que estavam vivos,
refugiaram-se no campo para escapar dos bombardeios, e nós tínhamos vida
amplamente comum. Euge era arquiteto, pretendia reconstruir Milão e dizia que
o melhor urbanista fora Frederico Barba Roxa. Silvio era doutor em leis, mas
escrevia um tratado de filosofia em folhas minúsculas de papel velino e era
empregado numa empresa de transportes e remessas. Ettore era engenheiro na
Olivetti. Lina ia para a cama com Euge e ocupava-se vagamente de galerias de
arte. Vanda, química como eu, não achava trabalho e ficava permanentemente
irritada diante deste fato, por ser feminista.
Ada, minha prima, trabalhava na editora Corbaccio: Sílvio chamava-a de
bidoutora porque tinha dois diplomas, e Euge chamava-a de prima-de-Primo,
coisa da qual Ada se ressentia um pouco. Eu, depois do casamento de Giulia,
ficara só com os meus coelhos: sentia-me viúvo e órfão e tinha fantasias de
escrever a saga de um átomo de carbono, para explicar aos povos a poesia
solene, conhecida apenas dos químicos, da fotossíntese clorofiliana. E de fato
escrevi-a, mas muitos anos mais tarde, e é a história com que este livro termina.
Se não me engano, todos escrevíamos poesias, salvo Ettore, que dizia não ser
coisa digna de um engenheiro. Escrever poesias tristes e crepusculares, e não
tão belas assim, enquanto o mundo ardia em chamas, não nos parecia nem
estranho nem vergonhoso proclamávamo-nos inimigos do fascismo, mas na
realidade o fascismo atuara em nós, como em quase todos os italianos,
alienando-nos e tornando-nos superficiais, passivos e cínicos.
Suportávamos com alegria maligna o racionamento e o frio nas casas sem
carvão, e aceitávamos com inconsciência os bombardeios noturnos dos ingleses;
não nos visavam, eram um sinal bruto de força dos nossos longínquos aliados:
que continuassem a fazê-los. Pensávamos aquilo que todos os italianos
humilhados então pensavam: que os alemães e os japoneses eram invencíveis,
mas os americanos também, e que a guerra iria adiante assim durante mais vinte
ou trinta anos, um impasse sangrento e interminável, mas remoto, conhecido
apenas através dos boletins de guerra adulterados e, às vezes, em certas famílias
de contemporâneos meus, através das comunicações fúnebres e burocráticas em
que se dizia “heroicamente, no cumprimento de seu dever...”. A dança macabra,
para cima e para baixo na costa líbia, para a frente e para trás nas estepes da
Ucrânia, não ia terminar nunca.
Cada um de nós fazia o seu trabalho dia após dia, sem entusiasmo, sem nele
acreditar, como acontece a quem sabe não agir pelo próprio futuro. Íamos aos
teatros e aos concertos, que algumas vezes se interrompiam a meio porque
tocavam as sirenes do alarme aéreo, e isto nos parecia um incidente ridículo e
gratificante; os Aliados eram donos dos céus, quem sabe no final vencessem e o
fascismo acabasse: mas tratava-se de assunto deles, eles que eram ricos e
poderosos, tinham os porta-aviões e os Liberators. Nós não, tínhamos nos
declarado “alheios”, alheios ficaríamos; tomávamos partido, mas nos
mantínhamos fora dos jogos estúpidos e cruéis dos arianos, a discutir os dramas
de O'Neill ou de Thornton Wilder, a escalar as Grigne, a apaixonarmo-nos um
pouco uns pelos outros, a inventar jogos intelectuais, e a cantar belíssimas
canções que Sílvio aprendera de certos amigos valdenses. Daquilo que nesses
mesmos meses ocorria em toda a Europa ocupada pelos alemães, na casa de
Anne Frank em Amsterdã, na fossa de Babi Yar perto de Kiev, no gueto de
Varsóvia, em Salônica, em Paris, em Lídice: desta pestilência que estava prestes
a nos engolfar não chegara até nós nenhuma notícia precisa, apenas alusões
vagas e sinistras trazidas pelos militares que regressavam da Grécia ou da
retaguarda da frente russa, e que tendíamos a recalcar. A nossa ignorância nos
permitia viver, como quando estás na montanha, e tua corda se gastou e está a
romper-se, mas não sabes e continuas tranquilo.
Sobreveio, porém, em novembro o desembarque aliado no norte da África, em
dezembro a resistência e, depois, a vitória russa em Stalingrado, e
compreendemos que a guerra se aproximava e a história retomava o seu
caminho. Ao cabo de poucas semanas cada um de nós amadureceu mais que em
todos os vinte anos anteriores. Saíram da sombra homens que o fascismo não
tinha dobrado, advogados, professores e operários, e neles reconhecemos os
nossos mestres, aqueles cuja doutrina havíamos inutilmente buscado até então
na Bíblia, na química, na montanha. O fascismo reduzira-os ao silêncio durante
vinte anos, e nos explicaram que o fascismo não era somente um desgoverno
burlesco e improvisado, mas o negador da justiça; não apenas arrastara a Itália
para uma guerra injusta e infausta, mas surgira e se consolidara como guardião
de uma legalidade e de uma ordem detestáveis, fundadas na coerção de quem
trabalha, no lucro incontrolado de quem explora o trabalho dos outros, no
silêncio imposto a quem pensa e não quer ser escravo, na mentira sistemática e
calculada.
Disseram-nos que a nossa sofreguidão zombeteira não bastava; devia tornar-
se cólera, e a cólera ser canalizada numa revolta orgânica e tempestiva: mas não
nos ensinaram como se fabrica uma bomba nem como se dispara um fuzil.
Falavam-nos de desconhecidos: Gramsci, Salvemini, Gobetti, Rosselli; quem
eram eles? Existia, então, uma segunda história, uma história paralela àquela
que o colégio nos ministrara por alto? Naqueles poucos meses convulsionados,
tentamos em vão reconstruir, repovoar o vazio histórico do último vintênio, mas
aqueles novos personagens permaneciam “heróis”, como Garibaldi e Nazario
Sauro, não possuíam nem densidade nem substância humana. O tempo de
consolidar a nossa preparação não nos foi concedido: aconteceram em março as
greves de Turim, indicando que a crise estava próxima; vieram com o 25 de julho
o colapso interno do fascismo, as praças cheias de multidão irmanada, a alegria
extemporânea e precária de um país ao qual a liberdade fora presenteada por
uma intriga palaciana; e sobreveio o 8 de setembro, a serpente verde-cinza das
divisões nazistas pelas ruas de Milão e de Turim, o despertar brutal: a comédia
acabara, a Itália era um país ocupado, como a Polônia, como a Iugoslávia, como a
Noruega.
Deste modo, depois da longa embriaguez de palavras, certos da justeza da
nossa escolha, extremamente inseguros dos nossos meios, com mais desespero
que esperança no coração, e no quadro de um país arruinado e dividido, saímos a
campo para medir nossas forças. Nos separamos para seguir nosso destino, cada
qual por um vale diferente.

Tínhamos frio e fome, éramos os guerrilheiros mais desarmados do Piemonte


e também, provavelmente, os mais despreparados. Acreditávamo-nos a salvo,
porque ainda não saíramos do nosso refúgio, escondido por um metro de neve:
mas alguém nos traiu e, na madrugada de 13 de dezembro de 1943, acordamos
cercados pela república; eles eram trezentos, e nós onze, com uma metralhadora
sem munição e alguns revólveres. Oito conseguiram fugir e dispersaram-se pela
montanha: nós não conseguimos. Os soldados capturaram-nos aos três, Aldo,
Guido e a mim, todos ainda cheios de sono. Enquanto eles entravam, tive tempo
de esconder nas cinzas da estufa o revólver que estava sob o travesseiro e que,
de resto, eu não estava seguro de saber usar: era minúsculo, todo incrustado de
madrepérolas, como aqueles que usam nos filmes as senhoras desesperadas para
se matarem. Aldo, que era médico, levantou-se, acendeu estoicamente um
cigarro e disse: "Lamento pelos meus cromossomas”.
Bateram-nos um pouco, advertiram-nos que não “agíssemos com
independência”, prometeram interrogar-nos de um certo modo convincente e
fuzilar-nos imediatamente depois, dispuseram-se com grande pompa em torno de
nós, e pusemo-nos a caminho em direção ao passo da montanha. Durante a
marcha, que se arrastou por várias horas, consegui fazer duas coisas que me
importavam muito: engoli pedaço a pedaço a identidade escandalosamente falsa
que trazia na carteira (a fotografia era particularmente ruim) e, fingindo
tropeçar, enterrei na neve a agenda cheia de endereços que trazia no bolso. Os
soldados cantavam agressivas canções de guerra, disparavam suas
metralhadoras contra as lebres, jogavam bombas na torrente para matar trutas.
Embaixo, no vale, esperavam-nos vários ônibus. Fizeram-nos subir, sentar
separados, e eu fiquei rodeado de soldados, sentados e em pé, que não
reparavam em nós e continuavam a cantar. Um deles, justamente diante de mim,
dava-me as costas, e da cintura lhe pendia uma bomba de mão daquelas alemãs,
com cabo de madeira, que explodem na hora: podia muito bem tirar o pino de
segurança, puxar a cordinha e levar comigo alguns deles, mas não tive coragem
para tanto. Levaram-nos ao quartel, que ficava na periferia de Aosta. O
comandante se chamava Fossa, e é estranho, absurdo e sinistramente cômico,
dada a situação de então, que ele esteja enterrado há decênios em algum
perdido cemitério de guerra e eu esteja aqui, vivo e substancialmente ileso, a
escrever esta história. Fossa, um legalista, esforçou-se por organizar
rapidamente em nosso favor um regime carcerário conforme com os
regulamentos; assim colocou-nos no porão do quartel, um por cela, com catre e
tina d'água, rancho às onze, banho de sol e proibição de nos comunicarmos.
Proibição dolorosa, porque entre nós, na mente de cada um de nós, pesava um
segredo terrível: o mesmo segredo que nos expusera à captura, apagando em
nós, poucos dias antes, toda a vontade de resistir ou, antes, de viver. Fôramos
forçados por nossa consciência a cumprir uma condenação, e a tínhamos
cumprido, mas dela saíramos destruídos, destituídos, desejosos de que tudo
acabasse e que acabássemos nós mesmos; mas desejosos também de nos vermos,
de nos falarmos, de nos ajudarmos uns aos outros e exorcizarmos aquela
memória ainda tão recente. Agora, estávamos liquidados, e o sabíamos: caíramos
na armadilha, cada qual na sua armadilha, não havia saída senão para baixo. Não
demorei a me convencer disso examinando a minha cela palmo a palmo, porque
os romances de que me nutrira há alguns anos abundavam em fugas
maravilhosas: mas ali as paredes tinham meio metro de espessura, a porta era
maciça e vigiada por fora, e a pequena janela guarnecida de barras. Tinha uma
lima de unhas, podia serrar uma grade, talvez até todas: era de tal modo magro
que talvez pudesse sair: mas quase pegado à janela descobri que havia um
robusto bloco de cimento contra estilhaços dos bombardeios aéreos.
De vez em quando vinham chamar-nos para os interrogatórios. Quando era
Fossa a interrogar-nos, ia tudo bem: Fossa representava um exemplar de homem
que jamais encontrara, um fascista de manual, estúpido e corajoso, que o ofício
das armas (havia combatido na África e na Espanha, coisa da qual se vangloriava
conosco) cercara de sólida ignorância e estupidez, mas não corrompido nem
desumanizado. Acreditara e obedecera durante toda a sua vida, e estava
candidamente convencido de que os culpados da catástrofe fossem apenas dois,
o rei e Galeazzo Ciano, que justamente naqueles dias fora fuzilado em Verona:
Badoglio não, era também um soldado, prestara juramento ao rei e devia manter-
se fiel ao juramento. Se não fossem o rei e Ciano, que sabotaram a guerra
fascista desde o início, tudo teria dado certo e a Itália venceria. Considerava-me
um desmiolado, posto a perder pelas más companhias; no fundo da sua alma
classista, estava convencido de que um diplomado não podia ser
verdadeiramente um “subversivo”. Interrogava-me por tédio, para me doutrinar
e se dar ares de importância, sem nenhuma séria intenção inquisitorial: ele era
um soldado, não um esbirro. Jamais me fez perguntas embaraçosas, nem mesmo
me perguntou se era judeu.
Os interrogatórios de Cagni, ao contrário, eram temíveis. Cagni era o espião
que nos fizera capturar: delator integral, em cada centímetro da sua carne,
delator por natureza e por inclinação mais que por convicção fascista ou por
interesse: delator para lesar, por sadismo esportivo, assim como se abate o
animal livre quem vai à caça. Tratava-se de um homem hábil: com boas
credenciais, infiltrara-se numa organização guerrilheira próxima da nossa,
passara por depositário de importantes segredos militares alemães e os revelara;
tais segredos depois mostraram-se artificiosamente falsos e construídos pela
Gestapo. Organizou as posições defensivas da formação guerrilheira, dirigiu
minuciosos exercícios de tiro (nos quais agiu de modo que se consumisse boa
parte da munição), depois fugiu para o vale e reapareceu à frente das centúrias
fascistas designadas para o rastreamento. Tinha, nos seus trinta anos, uma
carnadura pálida e frouxa: começava o interrogatório, depositando a Luger bem
à vista sobre a mesa, e insistia durante horas sem descanso; queria saber tudo.
Ameaça continuamente com a tortura e o fuzilamento, mas para minha sorte eu
não sabia quase nada e os poucos nomes que conhecia não os dei. Alternava
momentos de simulada cordialidade com explosões de cólera igualmente
simuladas; disse-me (provavelmente blefando) saber que eu era judeu, mas que
para mim estava bem: ou era judeu ou era guerrilheiro; se guerrilheiro, me
entregaria ao pelotão de fuzilamento; se judeu, bom, havia um campo de
concentração em Carpi, eles não eram sanguinários, ali ficaria até a vitória final.
Admiti ser judeu: em parte por cansaço, em parte também por uma orgulhosa
obstinação irracional, mas não acreditava de modo algum em suas palavras. Ele
mesmo não dissera que a direção daquele mesmo quartel passaria para as SS
dentro de poucos dias?

Em minha cela havia uma só lâmpada fraca, que permanecia acesa mesmo de
noite; mal dava para ler mas mesmo assim lia muito, porque pensava que o
tempo que me restava era pouco. No quarto dia, durante o banho de sol, escondi
no bolso uma pedra grande porque queria tentar alguma comunicação com
Guido e Aldo, que estavam nas duas celas contíguas. Consegui, mas era
extenuante: era preciso uma hora para transmitir uma frase, dando pancadas em
código na parede divisória, como os mineiros de Germinal sepultados na mina.
Aplicando o ouvido à parede para obter a resposta, escutavam-se, porém, os
cantos, festivos e animados dos soldados sentados à mesa de refeições sobre as
nossas cabeças: “a visão de Alighieri”, ou “mas não largo a metralhadora”, ou
ainda a mais sentimental de todas as canções, “venha, há um caminho no
bosque”.
Em minha cela havia também um rato. Fazia-me companhia, mas de noite roía
meu pão. Havia dois catres: desmanchei um deles, fiz uma estaca comprida e
afiada; de noite enfiava o pão na extremidade da estaca, colocada verticalmente,
mas deixava umas poucas migalhas para o rato no chão. Sentia-me mais rato que
ele: pensava nos caminhos dos bosques, na neve lá fora, nas montanhas
indiferentes, nas cem coisas esplêndidas que poderia fazer se voltasse a ser livre,
e um nó me fechava a garganta.
Fazia muito frio. Bati na porta até vir o soldado que fazia as vezes de
carcereiro e pedi que me pusesse em contato com Fossa; o carcereiro era
justamente o que me dera pancada no momento da captura, mas, quando soube
que eu era um “doutor”, pediu desculpas: a Itália é um país estranho. Não fez o
contato com Fossa, mas obteve para mim e os outros uma coberta, bem como a
permissão para nos aquecer durante meia hora, toda noite, junto à caldeira do
termossifão.
O novo regime teve início naquela mesma noite. O soldado veio me buscar e
não estava só: com ele vinha um outro prisioneiro cuja existência não conhecia.
Uma pena: fosse Guido ou Aldo, seria muito melhor; de todo modo, era um ser
humano com quem trocar uma palavra. Fomos conduzidos ao recinto de
calefação, que estava fosco de fuligem e parecia como que esmagado pelo teto
baixo, tomado quase por inteiro pela caldeira, mas era quente: um alívio. O
soldado nos mandou sentar num banco e se acomodou ele mesmo numa cadeira,
no vão da porta, obstruindo o caminho: mantinha a metralhadora em posição
vertical, entre os joelhos, mas poucos minutos depois já cochilava e se
desinteressava de nós.
O prisioneiro me olhava com curiosidade:
— Você é um dos rebeldes? — me perguntou.
Tinha talvez trinta e cinco anos, era magro e um tanto recurvado, mostrava os
cabelos crespos em desalinho, a barba mal feita, um grande nariz adunco, a boca
sem lábios e os olhos esquivos. Suas mãos eram desproporcionalmente grandes,
nodosas, como curtidas de sol e de vento, e nunca ficavam paradas: ora se
coçava, ora as esfregava uma na outra como se as lavasse, ora tamborilava no
banco ou numa perna; observei que tremiam levemente. Seu hálito cheirava a
vinho, e daí deduzi que fora aprisionado há pouco; tinha o sotaque da gente do
vale, mas não parecia um camponês. Respondi-lhe de um modo genérico, mas
não desanimou:
— Olhe que aquele ali está dormindo: pode falar, se quiser. Eu posso levar
notícias para fora; e talvez não demore a sair daqui.
Não me parecia um tipo digno de muita confiança.
— Por que está aqui? — perguntei.
— Contrabando: não quis repartir com eles, só isso. Vamos acabar entrando
num acordo, mas primeiro me prendem aqui dentro: coisa ruim para a minha
profissão.
— Ruim para todas as profissões!
— Mas eu tenho uma profissão especial. Também faço contrabando, mas só no
inverno, quando o Dora congela; enfim, faço muitos trabalhos, mas sempre sem
patrão. Nós somos gente livre: era assim também meu pai, meu avô e todos os
bisavós, desde que o mundo é mundo, desde quando vieram os romanos.
Não tinha compreendido a alusão ao Dora congelado, e pedi explicações: era
talvez um pescador?
— Sabe por que se chama Dora? — me respondeu: — Porque é de ouro. Não
todo, claro, mas carrega ouro, e quando congela não se pode mais tirá-lo.
— Tem ouro no fundo?
— Sim, na areia: não por toda a parte, mas em muitos trechos. É água que
arrasta o ouro da montanha para baixo e o acumula ao acaso, numa volta do rio
sim, noutra não. Nosso trecho, que passamos de pai para filho, é o mais rico de
todos: é bem escondido, muito fora de mão, mas mesmo assim é melhor ir lá de
noite para não aparecer ninguém espiando. Por isso, quando congela para valer,
como por exemplo no ano passado, não se pode trabalhar, porque mal você
perfura uma camada de gelo e se forma uma outra, e depois as mãos também
não resistem. Se eu estivesse na sua situação e você na minha, palavra de
homem que lhe explicava onde fica o nosso ponto.
Me senti ferido por aquela sua frase. Sabia bem em que pé estava a minha
situação, mas não me agradava ouvi-lo de um estranho. O outro, que se dera
conta da gafe, tentou remediá-la desajeitadamente:
— Queria dizer, afinal, que são coisas reservadas, que não se dizem nem
mesmo aos amigos. Eu vivo disso, não tenho outra coisa no mundo, mas não
trocava de lugar com um banqueiro. Olhe, não que tenha ouro demais: existe até
muito pouco, lava-se areia a noite inteira e consegue-se um grama ou dois: mas
não acaba nunca. A gente volta quando quer, na noite seguinte ou um mês
depois, quando tem vontade, e o ouro aumentou; e é assim desde sempre e para
sempre, como a relva no prado. E por isso não há gente mais livre do que nós: eis
por que eu fico louco estando aqui dentro. Além do mais, você deve compreender
que nem todos são capazes de lavar areia, e isso traz satisfação. Quem me
ensinou foi o meu pai: só a mim, porque era o mais vivo, os outros irmãos
trabalham na fábrica. E só para mim deixou bateia.
Com a enorme mão direita levemente curvada em forma de concha, aludiu ao
movimento rotativo profissional.
— Nem todos os dias são bons: funciona melhor quando o céu está sem
nuvens e é quarto minguante. Não saberia dizer por quê mas é mesmo assim, se
algum dia você quiser tentar.
Em silêncio apreciei a ideia. Por certo, iria experimentar: e o que é que não
experimentaria? Naqueles dias, em que esperava bastante corajosamente a
morte, abrigava uma vontade lancinante de tudo, de todas as experiências
humanas imagináveis, mal dizia a minha vida precedente, que me parecia ter
desfrutado pouco e mal, e sentia o tempo fugir entre os dedos, escapar do corpo
minuto a minuto, como uma hemorragia não mais estancável. Decerto, buscaria
o ouro: não para enriquecer, mas para experimentar uma arte nova, para
revisitar a terra, o ar e a água, de que me separava um abismo cada dia mais
amplo; e para reencontrar o meu ofício químico na sua forma essencial e
primordial, a Sheidekunst, ou, precisamente, a arte de separar o metal da ganga.
— Mas não vendo tudo — continuava o outro. — Sou-lhe muito apegado.
Guardo um pouco à parte, fundindo-o duas vezes por ano, e então trabalho-o: não
sou um artista mas gosto de tê-lo na mão, sondá-lo com o martelo, cortá-lo,
arranhá-lo. Não me interessa ficar rico: me importa viver livre, não ter coleira
como os cães, trabalhar assim, quando quero, sem ninguém para me dizer:
“vamos, adiante!”. Por isso, sofro preso aqui dentro; e, além do mais, perco dias
de trabalho.
O soldado teve um sobressalto no sono e a metralhadora, que estava entre os
joelhos, caiu no chão ruidosamente. O desconhecido e eu trocamos um rápido
olhar, nos compreendemos num relance, levantamos do banco de um só golpe:
mas mal tivemos tempo de dar um passo e já o soldado recolhia a arma.
Recompôs-se, viu a hora, xingou em vêneto e nos disse asperamente que era
tempo de tornar à cela.
No corredor encontramos Guido e Aldo, que, escoltados por outro vigia, se
preparavam para tomar nosso lugar no ambiente sufocante e poeirento da
caldeira: saudaram-me com um aceno de cabeça.
Na cela voltaram a me acolher a solidão, o sopro gelado e puro das
montanhas que penetrava pela pequena janela e a angústia do amanhã.
Esticando o ouvido, no silêncio do toque de recolher ouvia-se o murmúrio do
Dora, amigo perdido, e todos os amigos estavam perdidos, assim como a
juventude, a alegria, talvez a vida: o Dora corria perto mas indiferente,
arrastando o ouro no seu regaço de gelo fundido. Sentia-me confrangido por uma
inveja dolorida do meu ambíguo companheiro, que logo voltaria a sua vida
precária mas monstruosamente livre, ao seu inexaurível remanso de ouro, a uma
sequência de dias sem fim.
Cério
O fato de que eu, químico, aqui ocupado em escrever sobre os meus temas de
químico, tenha vivido experiências diferentes, já foi narrado em outra parte.
À distância de trinta anos, é-me difícil reconstruir o tipo de exemplar humano
que em novembro de 1944 correspondia ao meu nome, ou melhor, ao meu
número 174517. Devia ter superado a crise mais dura, aquela da inserção na
ordem do Lager e devia ter desenvolvido uma estranha couraça, uma vez que
então conseguia não só sobreviver mas também pensar, registrar o mundo ao
meu redor e até realizar um trabalho bastante delicado, num ambiente
infeccionado pela presença quotidiana da morte e, simultaneamente, agitado
freneticamente pela aproximação dos libertadores russos, já chegados a oitenta
quilômetros de nós. O desespero e a esperança se alternavam num ritmo que
numa hora quebraria qualquer indivíduo normal.
Nós não éramos normais porque passávamos fome. Nossa fome de então nada
tinha em comum com a bem conhecida (e não de todo desagradável) sensação de
quem perdeu uma refeição e está seguro de que não lhe há de faltar a refeição
seguinte: era uma exigência, uma falta, um yearning, que nos acompanhava já há
um ano, lançara em nós raízes profundas e permanentes, habitava em todas as
nossas células e condicionava o nosso comportamento. Comer, procurar o que
comer, constituía o estímulo número um, depois do qual, longe, vinham todos os
problemas de sobrevivência e, mais longe ainda, as lembranças de casa e o
próprio medo da morte.
Era químico num estabelecimento químico, num laboratório químico (também
isto já foi narrado), e roubava para comer. Se não se começa desde criança,
aprender a roubar não é fácil; foram necessários vários meses para reprimir os
mandamentos morais e adquirir as técnicas necessárias, e num certo momento
me dei conta (com uma ponta de riso e uma pitada de ambição satisfeita) de
estar revivendo, eu, um honesto doutorzinho em química, a involução-evolução
de um famoso e não menos honesto cão, um cão vitoriano e darwiniano que é
deportado e se torna ladrão para viver no seu Lager do Klondike, o grande Buck
de O chamado da selva. Roubava como ele e como as raposas: em toda a ocasião
favorável, mas com astúcia dissimulada e sem me expor. Roubava tudo, menos o
pão de meus companheiros.
Sob o aspecto, precisamente, das substâncias que se podiam roubar
proveitosamente, aquele laboratório era terreno virgem, todo por explorar. Havia
benzina e álcool, presas banais e incômodas: muitos os roubavam em vários
pontos das oficinas, a oferta era alta e alto também o risco, porque para os
líquidos é preciso recipiente. É o grande problema da embalagem, que todo
químico experiente conhece: bem conhecido até pelo Padre Eterno, que o
resolveu brilhantemente, por sua parte, com as membranas celulares, a casca
dos ovos, a casca múltipla das laranjas e a nossa pele, porque, afinal, líquidos
também somos nós. Ora, naquele tempo não existia o polietileno, que me viria a
calhar porque é flexível, leve e esplendidamente impermeável: mas é também
incorruptível demais, e não por acaso o próprio Padre Eterno, mesmo sendo
mestre em polimerização, se absteve de patenteá-lo: a Ele não agradam as coisas
incorruptíveis.
À falta de embalagens e pacotes adequados, a matéria ideal de roubo devia
ser sólida, não perecível, fácil de manejar e sobretudo nova. Devia ser de alto
valor unitário, isto é, não volumosa, porque muitas vezes éramos revistados na
entrada do campo, depois do trabalho; e devia, enfim, ser útil ou desejada por ao
menos uma das categorias sociais que compunham o complicado universo do
Lager.
Havia feito várias tentativas no laboratório. Roubara algumas centenas de
gramas de ácidos graxos, trabalhosamente obtidos por oxidação da parafina por
algum colega meu do outro lado da barricada: comera a metade deles, e
verdadeiramente saciavam a fome, mas tinham um sabor tão desagradável que
renunciei a vender o resto. Tentara fazer fritura com algodão hidrófilo, que
apertava contra a chapa de um pequeno forno elétrico; possuíam um vago sabor
de açúcar queimado, mas se apresentavam tão mal que não as considerei
comerciáveis: quanto a vender diretamente o algodão na enfermaria do Lager,
tentei uma vez, mas era difícil de carregar e pouco cotado. Também me esforcei
por ingerir e digerir a glicerina, baseando-me no raciocínio simplista de que,
sendo esta um produto da cisão dos graxos, deve ser metabolizada e fornecer
calorias de algum modo; e talvez fornecesse, mas à custa de desagradáveis
efeitos secundários.
Havia um vidro misterioso numa estante. Continha pequenos cilindros
cinzentos, duros, incolores, insípidos, e não trazia etiqueta. Isso era muito
estranho, porque se tratava de um laboratório alemão. Sim, certamente, os
russos estavam a poucos quilômetros, a catástrofe pairava no ar, quase visível;
havia bombardeios todos os dias; todos sabiam que a guerra estava por terminar:
mas, afinal, algumas constantes também devem subsistir, e entre elas contavam-
se a nossa fome, o fato de aquele laboratório ser alemão e o de os alemães jamais
esquecerem etiquetas. Com efeito, todos os outros vidros e garrafas do
laboratório tinham etiquetas nítidas, escritas à máquina ou à mão, em belos
caracteres góticos: só aquele não tinha nenhuma.
Naquela situação, não dispunha naturalmente do equipamento e da
tranquilidade necessária para identificar a natureza dos pequenos cilindros. De
todo modo, meti três deles no bolso e carreguei-os comigo à tarde para o campo.
Tinham o comprimento de mais ou menos vinte e cinco milímetros, e o diâmetro
de quatro ou cinco.
Mostrei-os ao meu amigo Alberto. Alberto tirou do bolso um canivete e tentou
cortar um deles: era duro, resistia à lâmina. Tentou raspá-lo: ouviu-se uma
pequena crepitação e saiu um feixe de centelhas amarelas. Neste ponto o
diagnóstico ficou fácil: era ferro-cério, a liga de que se fazem as pedras comuns
dos isqueiros. Por que eram tão grandes? Alberto, que durante algumas semanas
tinha trabalhado como operário com uma equipe de soldadores, explicou que se
põem na ponta de tubos de oxiacetileno, para acender a chama. Neste ponto era
cético sobre as possibilidades comerciais de meu roubo: talvez pudesse servir
para acender o fogo, mas no Lager os fósforos (ilegais) decerto não escasseavam.
Alberto me recriminou. Para ele, a renúncia, o pessimismo, o abatimento eram
abomináveis e culpáveis: não aceitava o universo concentracionário, recusava-o
com o instinto e com a razão, não se deixava contaminar por ele. Era um homem
de vontade boa e forte, e ficara milagrosamente livre, assim como livres
restaram suas palavras e seus atos: não baixara a cabeça, não curvara a espinha.
Um gesto, uma palavra, um riso seu tinham virtude liberatória, faziam um
buraco no tecido rígido do Lager, e todos aqueles que dele se aproximavam o
percebiam, mesmo aqueles que não compreendiam a sua língua. Acredito que
ninguém, naquele lugar, tenha sido tão amado quanto ele.
Me recriminou: é preciso não desanimar nunca, porque é danoso e, portanto,
imoral, quase indecente. Eu tinha roubado o cério: bem, agora tratava-se de
colocá-lo, de lançá-lo. Ele é que cuidaria disso, iria fazer do cério uma novidade,
um artigo de alto valor comercial. Prometeu fora estúpido em ofertar o fogo aos
homens, em vez de vendê-lo: teria ganhado dinheiro, aplacado Júpiter e evitado o
dissabor do abutre.
Tínhamos de ser mais astutos. Este argumento acerca da necessidade de
sermos astutos não era novo entre nós: Alberto desenvolvera-o para mim muitas
vezes, e antes dele outros no mundo da liberdade; e, depois, muitíssimos outros
me repetiram ainda o discurso infinitas vezes até hoje, com modesto resultado;
antes, com o resultado paradoxal de desenvolver em mim uma perigosa
tendência à simbiose com um autêntico astuto, o qual extrai (ou julga extrair) da
minha convivência vantagens temporais ou espirituais. Alberto era um simbionte
ideal, porque se abstinha de exercitar sua astúcia em meu prejuízo.
Eu não sabia, mas ele sim (sabia sempre tudo de todos, mesmo sem conhecer
o alemão nem o polaco, só um pouco de francês), que nas oficinas existia uma
indústria clandestina de isqueiros: artífices desconhecidos, nas sobras de tempo,
fabricavam-nos para as pessoas importantes e para os operários civis. Ora, para
os isqueiros se necessita de pedras, e pedras de um determinado tamanho: era
preciso, pois, reduzir aquelas que tinha em meu poder. Mas reduzi-las em que
proporção? E como?
— Não invente dificuldades — disse-me. — Disso eu cuido. Você trata de
roubar o resto.
No dia seguinte não tive dificuldade em seguir o conselho de Alberto. Por
volta das dez da manhã irromperam as sirenes do Fliegeralarm, do alarme aéreo.
Não era mais uma novidade, mas toda a vez que isso acontecia nos sentíamos,
nós e todos, tomados de angústia até a medula. Não parecia um som terreno, não
era uma sirene como aquelas das fábricas, era um som de um volume enorme
que, simultaneamente em toda a zona e ritmicamente, subia até um agudo
espasmódico e tornava a descer num rumor de trovão. Não devia ser um achado
casual, porque nada na Alemanha era casual e, de resto, conformava-se até
demais ao objetivo e ao contexto: muitas vezes pensei que tivesse sido elaborado
por um músico maligno, que aí encerrasse furor e pranto, o uivo do lobo para a
lua e o sopro do tufão: devia soar assim a trombeta de Astolfo. Provocava pânico
não só por anunciar as bombas, mas também pelo seu horror intrínseco, quase o
lamento de uma besta ferida que ocupasse todo o horizonte.
Os alemães tinham mais medo do que nós diante dos ataques aéreos: nós,
irracionalmente, não os temíamos porque os sabíamos dirigidos não contra nós,
mas contra os nossos inimigos. Ao cabo de poucos segundos vi-me sozinho no
laboratório, embolsei todo o cério e saí para me reunir a meu Kommando: o céu
já se enchia do ruído dos aviões, dos quais desciam em ondas suaves panfletos
amarelos que traziam palavras atrozes de deboche:
A nós não se permitia acesso aos abrigos antiaéreos: recolhíamo-nos nas
amplas áreas ainda não construídas, nos arredores das oficinas. Enquanto as
bombas começavam a cair, estirado na lama gelada e na vegetação raquítica,
apalpava os pequenos cilindros no bolso e meditava na estranheza do meu
destino, dos nossos destinos de folhas na ramagem e dos destinos humanos em
geral. Segundo Alberto, uma pedra de isqueiro valia uma ração de pão, isto é,
um dia de vida; eu roubara pelo menos quarenta pequenos cilindros, de cada um
dos quais se podiam fazer três pedras de isqueiro prontas para a troca. No total,
cento e vinte pedras, dois meses de vida para mim e dois para Alberto, e em dois
meses os russos chegariam e nos libertariam; e nos libertaria, enfim, o cério,
elemento do qual nada sabia senão aquela única aplicação prática e a filiação à
equívoca e herética família das Terras-raras, bem como ao fato do seu nome nada
ter a ver com cera nem recordar o descobridor; recorda, sim (grande modéstia
dos químicos de outrora!), o pequeno planeta Ceres, tendo sido o metal e o astro
descobertos no mesmo ano de 1801; e talvez se tratasse de uma homenagem
irônico-afetuosa às aproximações alquimistas: assim como o Sol era o ouro e
Marte o ferro, Ceres devia ser o cério.
De noite levei para o campo os cilindros, e Alberto uma chapa com um furo
redondo: era o tamanho prescrito a que devíamos reduzir os cilindros para
transformá-los em pedras e, portanto, em pães.
O que se seguiu deve ser julgado com cautela. Alberto disse que os cilindros,
para se reduzirem, deviam ser limados com uma faca, às escondidas, para que
nenhum concorrente nos roubasse o segredo. Quando? De noite. Onde? No
barracão de madeira, sob a coberta e sobre o colchão cheio de retalhos, vale
dizer, correndo o risco de provocar um incêndio e, mais realisticamente, o de
parar na forca: porque a esta pena eram condenados, entre outros, todos aqueles
que acendiam um fósforo no barracão.
Hesita-se sempre em julgar as ações temerárias, as próprias e as alheias,
depois que estas chegaram a bom termo: quem sabe não eram assim tão
temerárias? Ou não será verdade, talvez, existir um Deus que protege as
crianças, os tolos e os bêbados? Ou quem sabe, ainda, tais ações tenham mais
peso e mais calor do que as outras, inumeráveis, sem desfecho favorável, e por
isso são contadas com mais prazer? Mas nós não nos propúnhamos então tais
perguntas: o Lager nos dera uma familiaridade alucinada com o perigo e com a
morte, e arriscar a forca para comer mais parecia-nos uma escolha lógica ou,
antes, óbvia.
Enquanto os companheiros dormiam, trabalhamos com a faca noite após
noite. O cenário era tétrico de arrancar o choro: uma única lâmpada elétrica
iluminava fracamente a grande construção de madeira, e se percebiam na
penumbra, como numa vasta caverna, os rostos dos companheiros contorcidos de
sono e de sonhos: cobertos de morte, mexiam as mandíbulas, sonhando que
comiam. Fora do catre, a muitos pendia um braço ou uma perna nus e
esqueléticos: outros gemiam ou falavam no sono.
Mas nós dois estávamos vivos e não cedíamos ao sono. Mantínhamos
levantada a coberta com os joelhos e, sob aquela tenda improvisada, íamos
raspando os cilindros às cegas e às apalpadelas: a cada golpe ouvia-se uma
crepitação sutil e se via nascer um feixe de estrelinhas amarelas. De vez em
quando verificávamos se o pequeno cilindro passava no furo-padrão: se não,
continuávamos a raspar; se sim, quebrávamos a parte reduzida e a colocávamos
cuidadosamente de lado.
Trabalhamos três noites: não aconteceu nada, ninguém percebeu a nossa
agitação, nem as cobertas nem os colchões pegaram fogo, e deste modo
conquistamos o pão que nos manteve vivos até a chegada dos russos bem como
nos confortamos na confiança e na amizade que nos unia. O que aconteceu a
mim está escrito noutra parte. Alberto partiu a pé com a maioria quando a frente
estava próxima: os alemães fizeram-nos caminhar dias e noites na neve e no
gelo, matando todos aqueles que não podiam prosseguir; depois puseram-nos em
vagões descobertos, que levaram os poucos sobreviventes até um novo capítulo
de escravidão, em Buchenwald e em Mauthausen. Não mais que um quarto dos
que partiram sobreviveram à marcha.
Alberto não voltou, e dele não resta vestígio algum: um seu conterrâneo, meio
visionário e meio impostor, viveu durante alguns anos, depois do fim da guerra,
impingindo à mãe de Alberto falsas notícias consolatórias mediante pagamento.
Cromo
Havia peixe como prato principal, mas o vinho era tinto. Versino, chefete de
abastecimento, disse que era tudo conversa fiada, desde que o vinho e o peixe
fossem bons: ele estava certo de que a maior parte dos defensores da ortodoxia
não distinguiria, de olhos fechados, um copo de vinho branco de um copo de
tinto. Bruni, da Seção de Nitro, perguntou se alguém sabia por que o peixe
combina com o vinho branco: ouviram-se várias observações engraçadas, mas
ninguém soube responder de modo exaustivo. O velho Cometto acrescentou que
a vida está repleta de costumes cuja raiz não se pode rastrear: a cor do papel do
açúcar, a abotoadura diferente para homens e mulheres, a forma da proa das
gôndolas e as inúmeras compatibilidades e incompatibilidades alimentares, entre
as quais, justamente, aquela em questão era um caso particular: mas, de resto,
por que obrigatoriamente pé de porco com lentilhas e queijo ralado com
macarrão?
Fiz uma rápida recapitulação mental para me assegurar de que nenhum dos
presentes já a tivesse ouvido, e em seguida me preparei para contar a história da
cebola no óleo de linhaça fervido. Com efeito, aquela era uma roda de técnicos
em verniz, e se sabe que o óleo de linhaça fervido (ölidlinköit) constituiu durante
muitos séculos a matéria-prima fundamental da nossa arte. Esta é uma arte
antiga e, por isso, nobre: seu testemunho mais remoto está no Gênesis 6:14,
onde se narra que, em conformidade com uma especificação precisa do
Altíssimo, Noé reveste (verossimilmente a pincel) com betume a parte interna e a
externa da Arca. Mas é também uma arte refinadamente fraudulenta, como tudo
o que visa ocultar o substrato, conferindo-lhe a cor e a aparência daquilo que não
é: nesse aspecto ela aparenta-se ao tratamento cosmético e ao adornamento, que
são artes igualmente ambíguas e quase tão antigas (Isaías 3:16 s.). Portanto,
dadas as origens multimilenares, não é tão estranho assim que o ofício de fazer
vernizes retenha em seus desvãos (a despeito dos inúmeros estímulos que
modernamente recebe de outras técnicas afins) rudimentos de costumes e
procedimentos já abandonados há muito.
Para regressar, pois, ao óleo de linhaça, fervido, contei aos comensais que
num receituário impresso por volta de 1942 tinha encontrado o conselho de pôr
no óleo, no final da fervura, duas rodelas de cebola, sem nenhum comentário
sobre o objetivo deste curioso acréscimo. Falei disto em 1949 ao senhor
Giacomasso Olindo, meu antecessor e mestre, que então passava dos setenta
anos e fazia vernizes há cinquenta; e ele, sorrindo benevolamente sob os
espessos bigodes brancos, explicou-me que, com efeito, quando era jovem e
fervia o óleo pessoalmente, os termômetros ainda não se usavam
generalizadamente; estimava-se a temperatura do cozimento observando a
fumaça, cuspindo lá dentro ou, mais racionalmente, imergindo no óleo uma
rodela de cebola metida na ponta de um espeto; quando a cebola começava a
avermelhar, o cozimento estava no ponto. Evidentemente, com o passar dos anos,
o que tinha sido uma grosseira operação de medida perdera o significado e se
transformara numa prática misteriosa e mágica.
O velho Cometto narrou um episódio análogo. Não sem nostalgia, evocou sua
boa época, a época das resinas copais: narrou como antigamente o ölidlinköit se
combinava com estas lendárias resinas para a obtenção de vernizes
fabulosamente resistentes e lustrosos; a sua fama e o seu nome sobrevivem
somente na expressão “sapatos de copal”, que alude justamente a um verniz para
couro outrora muito difundido e em desuso há pelo menos meio século: a própria
expressão, hoje, está quase extinta. As resinas copais eram importadas pelos
ingleses dos mais longínquos e selvagens países, cujo nome traziam para,
exatamente, distinguir uma variedade da outra: a copal Madagáscar, a Serra
Leoa, a Kauri (cujas fontes, diga-se de passagem, se exauriram por volta de
1967), a conhecidíssima e nobre copal Congo. Trata-se de resinas fósseis de
origem vegetal com ponto de fusão bastante alto, e no estado em que se
encontram e comercializam são insolúveis nos óleos: para torná-las solúveis e
compatíveis, eram submetidas a uma violenta cocção semidestrutiva, no curso da
qual sua acidez diminuía (se descarboxilavam) e também se reduzia o ponto de
fusão. A operação era conduzida artesanalmente em modestas caldeiras de dois
ou três quintais, que se aqueciam ao fogo direto e se moviam sobre rodas;
durante a cocção pesavam-se a intervalos, e, quando a resina perdesse 16 por
cento do seu peso em fumaça, vapor d'água e anidrido carbônico, a solubilidade
no óleo considerava-se alcançada. Por volta de 1940 as arcaicas resinas copais,
custosas e de difícil fornecimento durante a guerra, foram substituídas por
resinas fenólicas e maleicas oportunamente modificadas, que, além de custar
menos, eram diretamente compatíveis com os óleos; pois bem, Cometto contou-
nos que até 1953, numa fábrica cujo nome omito, uma resina fenólica que
substituía a copal Congo numa fórmula era tratada exatamente como a própria
copal, isto é, consumiam-lhe 16 por cento no fogo no meio das exalações
fenólicas pestilenciais, até que se alcançasse aquela solubilidade no óleo que a
resina já possuía.
Nessa altura observei que todas as línguas estão repletas de imagens e
metáforas cuja origem progressivamente se perde, junto com a arte de que
derivaram: rebaixada a equitação ao nível de esporte para ricos, já são
ininteligíveis e soam extravagantes expressões como ventre a terra e mordere il
freno;1 desaparecidos os moinhos de pedras superpostas, também chamados de
palmenti, nos quais durante séculos se trituraram os grãos (e os vernizes),
perdeu qualquer referência a frase macinare ou mangiare a quattro palmenti,2
que, no entanto, ainda é repetida mecanicamente. Do mesmo modo, porque
também a natureza é conservadora, trazemos no cóccix o que sobrou de um rabo
desaparecido.
Bruni contou-nos um fato em que ele próprio estivera implicado e, à medida
que contava, eu me sentia invadido por sensações doces e tênues que depois
buscarei esclarecer: devo dizer antes que Bruni trabalhou entre 1955 e 1965
numa grande fábrica nas margens de um lago, a mesma em que aprendi os
rudimentos do ofício de vernizes nos anos 1946-47. Contou, pois, que, quando
era ali o responsável pela Seção de Vernizes Sintéticos, lhe chegou às mãos a
fórmula de uma substância contra a ferrugem, à base de cromatos, que continha
um componente absurdo: nem mais nem menos que o cloreto de amônio, o velho
e alquímico Sal Amoníaco do templo de Amon, mais propenso a corroer o ferro
do que a preservá-lo da ferrugem. Inquiriu os seus superiores e os mais antigos
da seção: surpresos e um tanto escandalizados, responderam-lhe que naquela
fórmula, que correspondia a pelo menos vinte ou trinta toneladas de produto por
mês e existia no mínimo há dez anos, aquele sal “sempre estivera”, e que tinha
graça ele, tão novo na vida e no emprego, vir criticar a experiência da fábrica e
buscar encrenca, perguntando o como e o porquê. Se o cloreto de amônio estava
na fórmula, era sinal de que para alguma coisa servia; para o quê, exatamente,
ninguém sabia mais, mas nem pensar em eliminá-lo, porque “nunca se sabe”.
Bruni é um racionalista, e aquilo decepcionou-o; mas é também um homem
prudente e, por isso, aceitou o conselho, de modo que naquela fórmula e naquela
fábrica nas margens do lago, salvo desenvolvimentos posteriores, o cloreto de
amônio ainda é empregado; no entanto, ele é hoje totalmente inútil, como posso
afirmar com pleno conhecimento de causa uma vez que quem o enfiou na
fórmula fui eu.
O episódio citado por Bruni, o produto antiferrugem à base de cromatos e o
cloreto de amônio me fizeram recuar no tempo até o duro janeiro de 1946,
quando a carne e o carvão ainda estavam racionados, ninguém possuía
automóvel e jamais, na Itália, se havia respirado tanta esperança e tanta
liberdade.
Mas eu regressara do cativeiro há três meses, e vivia mal. As coisas vistas e
sofridas me queimavam por dentro; sentia-me mais perto dos mortos que dos
vivos, culpado de ser homem porque os homens edificaram Auschwitz, e
Auschwitz engolira milhões de seres humanos assim como muitos amigos meus e
uma mulher que levava no coração. Parecia que, para me purificar, só através da
narração, e me sentia como o Velho Marinheiro, de Coleridge, que segura pelo
caminho os convidados que vão à festa para lhes infligir sua história de
malefícios. Escrevia poemas concisos e sangrentos, narrava vertiginosamente,
tanto por escrito como oralmente, tanto que pouco a pouco nasceu daí um livro:
escrevendo, encontrava um pouco de paz e me sentia de novo um homem, igual a
todos, nem mártir nem infame e muito menos santo, um daqueles que criam
família e olham para o futuro antes que para o passado.
Como de poesias e narrativas não se vive, procurava trabalho
incansavelmente, e encontrei-o na grande fábrica nas margens do lago, ainda
arruinada pela guerra, rodeada naqueles meses de lama e gelo. Ninguém fazia
muito caso de mim: colegas, diretor e operários tinham mais em que pensar, o
filho que não voltava da Rússia, a estufa sem lenha, o sapato sem sola, o
armazém sem mantimentos, a janela sem vidraças, o gelo que rompia os canos, a
inflação, a carestia, as virulentas vinganças locais. Tinham me concedido
benignamente uma escrivaninha claudicante no laboratório, num canto apertado
cheio de ruídos, correntes de ar e pessoas que iam e vinham com trapos e latas
nas mãos, e não me fora atribuída nenhuma tarefa definida; eu, desocupado
como químico e num estado de total alienação (mas então não se falava assim),
escrevia desordenadamente páginas e mais páginas de recordações que me
envenenavam, e os colegas me olhavam furtivamente como a um desequilibrado
inofensivo. O livro me saía de entre as mãos quase espontaneamente, sem plano
nem sistema, intrincado e repleto como um formigueiro. De vez em quando,
levado pela consciência profissional, entrava em contato com o diretor e pedia
uma função, mas ele estava tão atarefado que não podia se ocupar dos meus
escrúpulos: que eu lesse, que estudasse: em termos de vernizes, ainda era, com o
perdão da palavra, um analfabeto. Não tinha um trabalho? Pois bem, Deus fosse
louvado e eu me metesse na biblioteca: se tinha mesmo o capricho de me tornar
útil, aí está, havia artigos para traduzir do alemão.
Um dia ele mandou me chamar e, com uma luz oblíqua nos olhos, anunciou
que tinha um pequeno trabalho para mim. Levou-me até uma esquina do largo,
perto do muro que cercava a fábrica: amontoados em desordem, os mais baixos
esmagados pelos mais altos, havia milhares de blocos quadrados, de uma viva
cor laranja. Fez-me tocar neles: eram gelatinosos e moles, tinham uma
consistência desagradável de vísceras esquartejadas. Disse ao diretor que, à
parte a cor, me pareciam fígados, e ele elogiou o comentário: justamente isto é o
que estava escrito nos manuais de produção de vernizes! Explicou que o
fenômeno que os gerara chamava-se em inglês justamente assim, livering, isto é,
“enfigadamento”, e em italiano impolmonimento, “empulmonamento”; em
determinadas condições, certos vernizes passam de líquidos a sólidos, com a
consistência, exatamente, do fígado ou do pulmão, e devem ser jogados fora.
Aqueles corpos em forma de paralelepípedos tinham sido latas de verniz: o
verniz se “empulmonara”, as latas foram cortadas e o conteúdo lançado ao lixo.
Aquele verniz, disse, fora produzido durante a guerra e imediatamente depois;
continha um cromato básico e uma resina alquídica. Talvez o cromato fosse
excessivamente básico ou a resina excessivamente ácida: são estas, justamente,
as condições em que pode ocorrer um “empulmonamento”. Pois bem, me dava de
presente aquele monte de antigos pecados; que eu quebrasse a cabeça, fizesse
experiências e exames, e lhe dissesse com precisão por que sucedera o desastre,
o que fazer para que não se repetisse e se era possível recuperar o produto
avariado.
Assim formulado, metade caso de química, metade caso de polícia, o problema
me seduzia: pensava nele aquela tarde (era uma tarde de sábado), enquanto um
dos trens de carga de então, gelado e cheio de fuligem, me carregava até Turim.
Ora, sucedeu que no dia seguinte o destino me reservasse uma bênção diferente
e singular: o encontro com uma mulher, jovem e de carne e osso, cálida a meu
lado através dos agasalhos, alegre no meio da névoa úmida das avenidas,
paciente, sábia e segura, enquanto caminhávamos pelas ruas ainda ladeadas de
destroços. Em poucas horas soubemos que nos pertencíamos, não para um
encontro mas para a vida, como de fato se deu. Em poucas horas passei a me
sentir novo e cheio de novas forças, limpo e curado do longo mal, pronto
finalmente a entrar na vida com alegria e vigor; igualmente curado estava, de um
só golpe, o mundo ao meu redor, assim como exorcizado o nome e o rosto da
mulher que descera aos infernos comigo e de lá não voltara. O próprio ato de
escrever se tornou uma aventura diferente, não mais o itinerário doloroso de um
convalescente, não mais a mendicância de compaixão e faces amigas, mas uma
construção lúcida, já não mais solitária: uma obra de químico que pesa e divide,
mede e julga a partir de testes controlados, e se esforça por responder aos
porquês. Junto ao alívio que liberta, próprio do sobrevivente que narra,
experimentava agora, ao escrever, um prazer complexo, intenso e novo,
semelhante àquele vivido como estudante ao penetrar na ordem solene do
cálculo diferencial. Era arrebatador buscar e encontrar, ou criar, a palavra justa,
isto é, proporcionada, exata e forte; extrair as coisas da memória e descrevê-las
com o máximo rigor e o mínimo embaraço. Paradoxalmente, minha bagagem de
memórias atrozes se tornava uma riqueza, uma semente; ao escrever, eu parecia
crescer como uma planta.
No trem de carga da segunda-feira seguinte, espremido entre a multidão
sonolenta e embrulhada em cachecóis, sentia-me jovial e desperto como nunca
até então estivera nem jamais voltaria a estar. Estava pronto para desafiar tudo e
todos, do mesmo modo como desafiara e derrotara Auschwitz e a solidão:
disposto, em especial, a dar um alegre combate à estúpida pirâmide de fígados
alaranjados que me esperavam às margens do lago.
É o espírito que domina a matéria, não é verdade? Não era isso que me
haviam inculcado no colégio fascista e gentiliano? Lancei-me ao trabalho com o
mesmo ânimo com o qual, num tempo não muito distante, escalávamos uma
rocha; e o adversário era sempre e ainda o mesmo, o não-eu, o Grande Curvo,3 a
Hyle: a matéria estúpida, inertemente inimiga, assim como inimiga é a estupidez
humana, e tão poderosa quanto esta última na sua obtusidade passiva. Nosso
ofício é conduzir e vencer essa batalha interminável: é muito mais rebelde, mais
refratário à tua vontade um verniz “empulmonado” que um leão em seu ímpeto
insano; mas, não exageremos, é também menos perigoso.
A primeira escaramuça se desenrolou no arquivo. Os dois associados, os dois
fornicadores de cujo abraço saíram os monstros alaranjados, eram o cromato e a
resina. A resina se fabricava ali mesmo: encontrei os registros de nascimento de
todos os lotes, e não apresentavam nada suspeito; a acidez variava, mas sempre
abaixo de seis, como prescrito. Um lote com acidez 6,2 fora devidamente
descartado por um controlador de assinatura floreada. À primeira vista, a resina
estava fora de questão.
O cromato fora adquirido de diversos fornecedores, e também ele
devidamente controlado lote a lote. Segundo a prescrição de aquisição PDA
480/0, devia conter não menos que 28 por cento de óxido de cromo total; pois
bem, tinha sob os olhos a relação interminável de controles desde janeiro de
1942 até aquele momento (uma das leituras menos apaixonantes que se possa
imaginar), e todos os valores satisfaziam a prescrição, antes, eram iguais entre
si: 29,5 por cento, nada mais, nada menos. Senti as minhas fibras de químico se
retorcerem diante daquela abominação: com efeito, cabe reconhecer que as
naturais oscilações no método de preparação de um cromato como aquele,
somadas aos inevitáveis erros analíticos, tornam extremamente improvável que
muitos valores relativos a lotes e a dias diferentes coincidam assim tão
exatamente. Será que ninguém suspeitara de nada? Mas, óbvio, naquele tempo
ainda não conhecia o espantoso poder anestésico dos papéis da burocracia
empresarial, sua capacidade de embaraçar, apagar, embotar qualquer indício de
intuição e qualquer centelha de engenho. De resto, sabem os doutos que todas as
secreções são nocivas ou tóxicas: ora, em condições patológicas, não é raro que o
papel, secreção burocrático-empresarial, seja reabsorvido em medida excessiva e
faça adormecer, paralise ou mesmo mate o organismo do qual procede por
exsudação.
A história do que acontecera começava a se delinear: por um motivo qualquer,
algum analista se vira traído por um método defeituoso, um reagente impuro ou
um hábito incorreto; havia diligentemente preenchido as colunas com aqueles
resultados tão evidentemente suspeitos, mas formalmente irrepreensíveis; havia
minuciosamente assinado cada análise, e a sua assinatura, dando origem a uma
avalanche, fora consolidada por aquelas do chefe do laboratório, do diretor
técnico e do diretor-geral. Podia imaginar o infeliz no pano de fundo daqueles
anos difíceis: não mais jovem, porque os jovens eram militares; talvez perseguido
pelos fascistas, ou quem sabe também fascista procurado pelos homens da
Resistência; certamente frustrado, porque fazer análises é ofício de jovens;
encastelado no laboratório e na fortaleza de sua minúscula sabedoria, porque o
analista é infalível por definição; ridicularizado e malvisto fora do laboratório
justamente por suas virtudes de guardião incorruptível, um pequeno ditador de
regras pedante e sem fantasia, um empecilho entre as engrenagens da produção.
A julgar pela caligrafia anônima e correta, seu ofício o devia ter corroído e ao
mesmo tempo conduzido a uma perfeição primitiva, como um seixo de torrente
que rola até a foz do rio. Não surpreendia que, com o tempo, houvesse
desenvolvido uma certa insensibilidade pelo significado real das operações que
executava e das anotações que escrevia. Quis indagar a seu respeito, mas
ninguém sabia mais nada dele: minhas perguntas suscitavam respostas
descorteses ou distraídas. De resto, começava a sentir em torno de mim e do
meu trabalho uma curiosidade zombeteira e malévola: quem era este recém-
chegado, este principiante de sete mil liras ao mês, este escrevinhador maníaco
que perturbava as noites do pessoal escrevendo à máquina sabe-se lá o que,
quem era ele para se intrometer nos erros passados e lavar as roupas sujas de
uma geração? Até suspeitei de que a tarefa a mim atribuída tinha o objetivo
secreto de me levar a tropeçar em alguma coisa ou alguém: mas já então o
assunto do “empulmonamento” me absorvera de corpo e alma, tripes et boyaux,
e, para resumir, por ele me apaixonara quase como pela moça que mencionei, a
qual, de fato, se enciumava um pouco disso.
Não me foi difícil encontrar também, além das PDAs, as não menos invioláveis
PDCs, prescrições de controle: numa gaveta do laboratório havia um pacote de
fichas ensebadas, escritas à máquina e várias vezes corrigidas à mão, cada uma
das quais continha o modo de executar o controle de uma determinada matéria-
prima. A ficha do azul-da-prússia estava manchada de azul, a da glicerina era
pegajosa, e a do óleo de peixe fedia a enchovas. Retirei a ficha do cromato, que
devido ao uso prolongado se tornara cor da aurora, e a li com atenção. Tudo era
muito sensato e conforme às não distantes noções escolares: só um ponto me
pareceu estranho. Feita a desagregação do pigmento, se prescrevia acrescentar
23 gotas de um certo reagente: ora, uma gota não é uma unidade assim tão
definida que suporta um coeficiente numérico definido; e ademais, feitas as
contas, a dose prescrita era absurdamente elevada: teria falseado a análise,
conduzindo em todo caso a um resultado conforme à especificação. Vi o outro
lado da papeleta: trazia a data da última revisão, 4 de janeiro de 1944; o registro
de nascimento do primeiro lote “empulmonado” datava do dia 22 de fevereiro
seguinte.
Neste ponto se começava a ver a luz. Num arquivo empoeirado encontrei a
coleção das PDCs em desuso, e lá estava: a edição anterior da ficha do cromato
trazia a indicação de acrescentar “2 ou 3” gotas, e não 23: o “ou” fundamental
estava meio apagado e, na transcrição subsequente, fora perdido. Os eventos se
concatenavam bem: a revisão da papeleta comportara um erro de transcrição, e
o erro havia falseado todas as análises sucessivas, nivelando os resultados em
torno de um valor fictício devido ao enorme excesso de reagente, e provocando
assim a aceitação de lotes de pigmentos que deviam ter sido descartados; estes,
sendo excessivamente básicos, desencadearam o “empulmonamento”.
Mas ai de quem cede à tentação de confundir uma hipótese elegante com uma
certeza: até os leitores de romances policiais sabem disso. Assenhoreei-me do
sonolento encarregado do depósito, obtive dele as contraprovas de todas as
partidas de cromato a partir de janeiro de 1944, e me entrincheirei atrás da
bancada de trabalho durante três dias para analisá-las segundo o método
equivocado e segundo o correto. À medida que os resultados se alinhavam em
colunas no registro, o tédio do trabalho repetitivo se transformava na alegria
nervosa de quando, em criança, se brinca de esconde-esconde e se percebe o
adversário inabilmente agachado atrás da cerca. Com o método errado,
encontrava-se constantemente o fatídico 29,5 por cento; com o método justo, os
resultados discrepavam amplamente, e uma boa quarta parte, sendo inferior ao
mínimo prescrito, correspondia a lotes que deviam ter sido recusados. O
diagnóstico estava confirmado e a patogênese descoberta: tratava-se agora de
definir a terapia.
Esta foi encontrada bem rapidamente com o recurso à boa química
inorgânica, longínqua ilha cartesiana, paraíso perdido para nós, embusteiros
orgânicos e macromoleculistas: era preciso neutralizar de algum modo, no corpo
doente daquele verniz, o excesso de base devido ao óxido de chumbo livre. Os
ácidos se demonstraram nocivos por diferentes razões: pensei no cloreto de
amônio, capaz de se combinar estavelmente com o óxido de chumbo, dando um
cloreto insolúvel e inerte e liberando amoníaco. Os testes em pequena escala
deram resultados promissores: tratava-se de encontrar depressa o cloreto
(designado como "cloreto demônio” no registro), entrar em acordo com o chefe
da Seção de Moagem, enfiar num pequeno moinho dois daqueles ligados
desagradáveis de ver e tocar, acrescentar uma quantidade determinada do
suposto remédio, e fazer o moinho funcionar sob os olhares céticos dos
circundantes. O moinho, habitualmente barulhento, pôs-se em movimento quase
de má vontade, num silêncio de maus presságios, travado pela massa gelatinosa
que grudava no seu mecanismo. Só me restava voltar para Turim e aguardar a
segunda-feira, contando torrencialmente à paciente moça as hipóteses feitas, as
coisas acontecidas nas margens do lago, à espera espasmódica da sentença que
os fatos iam pronunciar.
Na segunda-feira o moinho havia recuperado sua voz: até crepitava
alegremente com um som pleno e contínuo, sem aquela intermitência rítmica
que num moinho deste tipo denuncia manutenção ou estado ruim. Desliguei-o e
afrouxei com cuidado os parafusos da peça da abertura: saiu, silvando, uma
rajada amoniacal, como devia. Mandei retirar a peça da abertura. Bendita seja
toda a corte celestial! O verniz estava fluido e corrente, inteiramente normal,
renascido das cinzas como Fênix. Escrevi um relatório em bom jargão
burocrático-empresarial, e a Direção me aumentou o salário. Além disso, a título
de reconhecimento, entregaram-me duas côrasse (dois pneus) de bicicleta.
Como o depósito continha muitos lotes de cromato perigosamente saturados
de base, que também deviam ser utilizados porque foram aceitos por ocasião do
controle e não mais podiam ser devolvidos ao fornecedor, o cloreto foi
oficialmente introduzido como preventivo “antiempulmonamento” na fórmula
daquele verniz. Depois, pedi demissão, passaram-se décadas, terminou o pós-
guerra, os deletérios cromatos demasiadamente saturados de base
desapareceram do mercado, e o meu relatório teve o fim de tudo que é carne:
mas as fórmulas são sagradas como as orações, os decretos-leis e as línguas
mortas, e nenhuma vírgula pode ser mudada. Por isso, meu Cloreto Demônio,
gêmeo de um amor feliz e de um livro libertador, já agora totalmente inútil e
provavelmente um pouco nocivo, às margens daquele lago é ainda
religiosamente misturado no produto antiferrugem baseado em cromatos, e
ninguém mais sabe por quê.

________________
1 Difícil traduzir as locuções italianas. Ventre a terra (como o francês ventre à
terre) vale, em geral, por “muito rapidamente”, “em grande velocidade”, mas
denota especificamente a corrida veloz do cavalo; já mordere il freno, cujo
sentido denotativo é evidente, conota “suportar com raiva”, “obedecer sob
coação, com manifesta impaciência”.
2 Macinare (literalmente, “moer, reduzir a pó por meio do moinho”) ou
mangiare a quattro palmenti equivale a “comer muito”, “comer avidamente”.
3 Referência a um personagem de Peer Gynt, de Ibsen. Trata-se,
precisamente, de Boigen (o curvo, o torcido), um duende com aparência de
serpente, capaz de opor uma resistência encoberta e escorregadia.
Enxofre
Lanza prendeu a bicicleta pelo quadro, marcou o cartão, entrou no recinto da
caldeira, pôs em marcha o misturador e acendeu o fogo. O jato de nafta
pulverizada acendeu-se com um rumor violento e uma pérfida labareda para trás
(mas Lanza, conhecendo aquela fornalha, se afastara a tempo); em seguida
continuou a queimar com razoável barulho, tenso e pleno como um trovão
continuado, que encobria o pequeno zumbido dos motores e das correias de
transmissão. Lanza ainda estava cheio de sono e de frio, próprios de quem
desperta inesperadamente; permaneceu recolhido diante da fornalha, cuja
chama vermelha, numa sucessão de rápidos resplendores, fazia bailar a sua
sombra enorme e inquieta na parede de trás, como num cinematógrafo primitivo.
Depois de uma meia hora, o termômetro começou a se mexer, como tinha de
ser: a agulha de aço polido, deslizando como uma lesma no mostrador
amarelado, foi parar nos 95 graus. Isso também estava certo, porque o
termômetro errava por cinco graus: Lanza ficou satisfeito, obscuramente em paz
com a caldeira, com o termômetro e, afinal, com o mundo e consigo mesmo,
porque todas as coisas que deviam acontecer aconteciam e porque na fábrica só
ele sabia que aquele termômetro marcava errado: um outro, possivelmente,
avivaria o fogo ou ficaria por ali estudando sabe Deus o que para fazer com que
chegasse até 100 graus, como estava escrito no manual de operação.
O termômetro, pois, permaneceu parado por um bom tempo em 95 graus e
depois voltou a mexer-se. Lanza estava próximo do fogo, e como, em razão da
temperatura cálida, o sono recomeçasse a pesar, permitiu-lhe invadir docemente
um dos desvãos da sua consciência. Não, porém, a parte que estava sob os olhos
e vigiava o termômetro: esta devia restar desperta.
Com um composto de enxofre nunca se sabe, mas no momento tudo seguia
normalmente. Lanza saboreava o suave repouso e se abandonava à dança de
pensamentos e de imagens que precedem o sono, embora não se deixasse tomar
por ela. Fazia calor, e Lanza via a sua aldeia: a mulher, o filho, seu campo, a
taberna. O sopro quente da taberna, o sopro quente do estábulo. No estábulo
infiltrava-se água em todo o temporal, uma água que vinha de cima, do palheiro:
talvez de uma greta na parede, porque as telhas (na Páscoa ele mesmo as tinha
vistoriado) estavam todas inteiras. O lugar para uma outra vaca existia, mas... (e
aqui tudo se ofuscou numa névoa de cifras e de cálculos esboçados e não
concluídos). Cada minuto de trabalho, dez liras que lhe iam parar no bolso: agora
parecia-lhe que o fogo crepitava por ele, e que o misturador girava por ele, como
uma máquina de fazer dinheiro.
De pé, Lanza: chegamos a 180 graus, é preciso desatarraxar a tampa e jogar
dentro o B 41; aliás, é mesmo uma grande palhaçada continuar a chamá-lo de B
41, quando toda a fábrica sabe que é enxofre, e em tempo de guerra, quando
tudo faltava, muitos levavam-no para casa e o vendiam no mercado negro para os
camponeses, que o espargiam nas vinhas. Mas, afinal de contas, o doutor é o
doutor, é preciso deixá-lo satisfeito.
Apagou o fogo, diminuiu a velocidade do misturador, desaparafusou a tampa e
pôs a máscara de proteção, em razão da qual se sentiu meio toupeira, meio
javali. O B 41, em três caixas de papelão, já estava pesado: introduziu-o com
cuidado e, apesar da máscara, que talvez se deslocara um pouco, sentiu
imediatamente o odor sujo e triste que emanava da cocção, e pensou que até
podia ter razão o padre quando dizia que no inferno o cheiro é de enxofre: de
resto, nem os cães gostam deste cheiro, todos sabem disso. Ao terminar, fechou
de novo a abertura e voltou a pôr tudo em movimento.
Às três da manhã o termômetro estava a 200 graus: era preciso fazer o vácuo.
Accionou a chave negra, e o estrépito alto e áspero da bomba centrífuga se
sobrepôs ao trovejar profundo do queimador. A agulha do vacuômetro, que
estava em posição vertical no zero, começou a inclinar-se, deslizando para a
esquerda. Vinte graus, quarenta graus: bom. Nesse ponto dá para acender um
cigarro e ficar tranquilo por mais de uma hora.
Havia quem tinha o destino de se tornar milionário e quem estava fadado a
morrer num acidente. Ele, Lanza, o seu destino (e bocejou rumorosamente para
fazer um pouco de companhia a si mesmo) era fazer da noite o dia. Como se
soubessem disto, em tempo de guerra logo o deslocaram para aquela importante
missão de passar a noite sobre os telhados, a abater aviões.
Ficou em pé subitamente, as orelhas espichadas e todos os nervos em estado
de alarme. De repente, o rumor da bomba se fizera mais lento e mais difícil, ela
como que se esforçava: e com efeito a agulha do vacuômetro, como um dedo
ameaçador, voltava a subir até o zero e, aí estava, um grau atrás do outro,
começava a pender para a direita. Pouca coisa a fazer, a pressão da caldeira
estava subindo.
“Apaga e foge”. “Apaga tudo e foge”. Mas não fugiu: pegou numa chave
inglesa, e golpeava a câmara de vácuo em toda a sua extensão: devia estar
obstruída, não havia outra explicação possível. Bate que bate, e nada: a bomba
continuava a trabalhar no vazio e a agulha girava em torno de um terço de
atmosfera.
Lanza sentia todos os pelos em pé, como o rabo de um gato enfurecido: e
enfurecido estava, com uma raiva sanguinária e desatinada contra a caldeira,
contra aquela espécie de animal rebelde sentado no fogo, que mugia feito um
touro: incandescente, como um enorme porco-espinho todo eriçado, e não se
sabe por onde tocá-lo e pegá-lo, dando vontade de voar-lhe em cima aos
pontapés. Com os punhos cerrados e a cabeça quente, Lanza imaginava em
desatino destapar a abertura para desafogar a pressão; começou a afrouxar os
parafusos, e eis que saltava pelas frestas, ainda quente, uma baba amarelada
acompanhada de fumaça pestilenta: a caldeira devia estar cheia de espuma.
Lanza voltou a fechá-la precipitadamente, com uma tremenda vontade no corpo
de agarrar o telefone e chamar o doutor, chamar os bombeiros, chamar o espírito
santo, para que surgissem da noite e lhe dessem uma ajuda ou um conselho.
A caldeira não fora feita para aquela pressão e podia estourar de um momento
para o outro: pelo menos, assim pensava Lanza. Se fosse dia ou não estivesse só,
talvez não o tivesse pensado. Mas o medo se resolvera em cólera, e, quando a
cólera passou, deixou lhe a cabeça fria e desanuviada. E então pensou na coisa
mais óbvia: abriu a válvula do ventilador de aspiração, pôs esta em movimento,
fechou o interruptor de vácuo e parou a bomba. Com alívio e com orgulho,
porque havia acertado na muche, viu a agulha voltar a subir até zero, como uma
ovelha desgarrada que retorna ao rebanho, e inclinar-se de novo, docilmente, em
direção à parte do vácuo.
Olhou ao redor, com uma grande necessidade de rir e de contar, bem como
um sentimento de leveza em todos os membros. Viu no chão o cigarro reduzido a
um pequeno e comprido cilindro de cinzas: fumara a si mesmo. Eram cinco e
vinte, despontava a aurora por trás dos galpões de barris vazios, o termômetro
marcava 210 graus. Retirou uma amostra da caldeira, deixou-a esfriar e testou-a
com o reagente: a proveta ficou transparente por alguns segundos e depois
tornou-se branca como o leite. Lanza apagou o fogo, desligou o misturador e o
ventilador, e abriu o interruptor de vácuo: ouviu-se um longo silvo raivoso, que
pouco a pouco se atenuou em um murmúrio, um sussurro, e depois se calou.
Atarraxou o tubo de extração, accionou o compressor, e gloriosamente, no meio
de uma fumaceira branca e o áspero cheiro de costume, o jato denso da resina
foi sossegar na bacia coletora, na forma de um negro espelho brilhante.
Lanza dirigiu-se ao portão e encontrou Carmine, que ia entrar. Disse-lhe que
estava tudo bem, passou-lhe as orientações do trabalho e pôs-se a encher os
pneus da bicicleta.
Titânio

A Felice Fantino

Na cozinha havia um homem muito alto, vestido de um modo que Maria


jamais vira antes. Levava na cabeça um chapéu em forma de barco, feito de
jornal, fumava cachimbo e pintava o armário de branco.
Era incompreensível como todo aquele branco pudesse estar numa latinha
assim tão pequena, e Maria morria de vontade de ver lá dentro. De vez em
quando, o homem punha o cachimbo sobre o próprio armário e assobiava; depois
parava de assobiar e começava a cantar; às vezes dava dois passos atrás e
fechava um olho, às vezes também cuspia na lata de lixo, para, em seguida,
esfregar a boca com o dorso da mão. Fazia, afinal, tantas coisas assim estranhas
e novas que era interessantíssimo estar a olhá-lo: e quando o armário ficou
branco, recolheu a lata e o monte de jornal que estava pelo chão, levou tudo até
perto do aparador e começou a pintar também este.
O armário estava tão reluzente, limpo e branco que era quase indispensável
tocá-lo. Maria aproximou-se do armário, mas o homem percebeu:
— Não toque. Você não deve tocar.
Maria deteve-se sob o peso da proibição:
— Por quê?
Ao que o homem respondeu:
— Porque não pode.
Maria pensou na resposta e tornou em seguida:
— Por que ficou assim tão branco?
Também o homem pensou um pouco, como se a pergunta lhe parecesse difícil,
e só então disse com voz profunda:
— Porque é titânio.
Maria se sentiu tomada por um delicioso calafrio de medo, como quando nas
fábulas chega o monstro; olhou com atenção e constatou que o homem não trazia
faca, nem nas mãos nem em lugar nenhum: mas podia ter alguma escondida.
Então perguntou:
— Me corta o quê?1
Nesta altura, o homem devia ter respondido: “Te corto a língua”. No entanto,
disse apenas:
— Não “te corto”: titânio.
Em conclusão, devia ser um homem muito poderoso: todavia, não parecia
encolerizado, e sim bastante bom e gentil. Maria perguntou-lhe:
— O senhor como se chama?
— Me chamo Felice.
Respondeu sem tirar o cachimbo da boca; e, quando falava, o cachimbo
bailava para cima e para baixo mas não caía. Maria esteve algum tempo em
silêncio, observando alternadamente o homem e o armário. Não ficara nada
satisfeita com aquela resposta e queria perguntar por que se chamava Felice,
mas não teve coragem por se recordar de que as crianças jamais devem
perguntar o porquê. Sua amiga Alice chamava-se Alice e era uma criança, mas
verdadeiramente esquisito é que se chamasse Felice um homem grande como
aquele. Mas pouco a pouco começou a parecer-lhe natural que aquele homem se
chamasse Felice, e lhe pareceu até que não podia chamar-se de nenhum outro
modo.
O armário pintado estava tão branco que em comparação todo o resto da
cozinha parecia amarelado e sujo. Maria achou que não havia nada de mal se
fosse vê-lo de perto: só ver, sem tocar. Mas, enquanto se aproximava na ponta
dos pés, ocorreu um fato imprevisto e terrível: o homem voltou-se e com dois
passos se acercou dela; tirou do bolso um pedaço de giz branco e desenhou no
chão um círculo em volta de Maria. E em seguida:
— Você não pode sair daí de dentro.
Então riscou um fósforo, acendeu o cachimbo, fazendo com a boca muitas
caretas esquisitas, e recomeçou o trabalho no aparador.
Maria sentou-se nos calcanhares e considerou o círculo por algum tempo e
com atenção: mas acabou convencendo-se de que não havia nenhuma saída.
Tentou esfregá-lo num ponto com o dedo e constatou que realmente o traço de
giz desaparecia; mas percebia muito bem que o homem não aceitaria como
válido aquele sistema.
O círculo era evidentemente mágico. Maria sentou-se no chão, calada e
tranquila; uma vez por outra tentava esticar-se até quase perder o equilíbrio,
mas logo viu que ainda faltava um bom palmo para alcançar o armário ou a
parede com os dedos. Então, pôs-se a contemplar como pouco a pouco também o
aparador, as cadeiras e a mesa se tornavam bonitos e brancos.
Muito tempo depois o homem largou o pincel e a lata, tirou o chapéu de jornal
da cabeça, e então viu-se que tinha os cabelos como todos os outros homens. Aí
saiu pelo terraço, e Maria ouviu-o remexer e caminhar para cima e para baixo no
recinto vizinho. Maria começou a chamá-lo — “Senhor!” —, primeiro em voz
baixa, em seguida mais forte, mas não muito, porque no fundo tinha medo de que
o homem a escutasse.
Finalmente o homem voltou à cozinha. Maria perguntou:
— Senhor, agora posso sair?
O homem olhou para baixo, na direção de Maria e do círculo, riu forte e disse
muitas coisas que não se entendiam, mas não parecia com raiva. E por fim:
— Sim, claro, agora pode sair.
Maria olhava para ele perplexa e não se mexia; então o homem pegou um
trapo e apagou o círculo com cuidado para desfazer o encanto. Quando o círculo
desapareceu, Maria levantou-se e foi embora saltitante, sentindo-se muito
contente e satisfeita.

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1 Impossível traduzir o jogo de palavras do original. No diálogo, ao ouvir
pronunciar “titânio”, Maria entende “ti taglio”, isto é, “te corto”, “te faço em
pedacinhos”.
Arsênio
Como cliente, tinha um aspecto incomum. No nosso laboratório humilde e
audacioso, para requisitar análises das mais disparatadas mercadorias, vinha
gente variada, homens e mulheres, velhos e moços, mas todos inseridos
visivelmente na grande rede ambígua e astuta do comércio. Aquele que, por
ofício, compra ou vende reconhece-se com facilidade: tem o olho alerta e o rosto
em tensão, teme a fraude ou articula-a, e mantêm-se em guarda como um gato
ao anoitecer. É um ofício que tende a destruir a alma imortal; houve filósofos
cortesãos, filósofos que poliam lentes, houve até filósofos engenheiros e
estrategas, mas nenhum filósofo, que eu saiba, foi comerciante, atacadista ou
retalhista.
Eu o recebi porque Emílio não estava. Poderia ser um filósofo camponês: era
um velhinho robusto e rubicundo, de mãos pesadas, deformadas pelo trabalho e
a artrite; os olhos revelavam-se claros, vivos e juvenis, não obstante as grandes e
delicadas bolsas que pendiam vazias sob as órbitas. Usava um colete de cujo
bolso caía a corrente do relógio. Falava piemontês, coisa que me pôs
imediatamente numa situação de desconforto: não é educado responder em
italiano a quem te fala em dialeto e te situa logo do outro lado de uma barreira,
da parte dos aristocratas, da gente respeitável, dos luigini, como os chamou um
ilustre homônimo:1 mas o meu piemontês, correto de formas e de sons, é de tal
sorte polido e desvigorado, educado e lânguido, que se mostra pouco autêntico.
Antes que um genuíno atavismo, parece o fruto de um aplicado estudo de
gabinete, à luz de uma lâmpada e em torno da gramática e do léxico.
Assim foi que em ótimo piemontês, com sutis tonalidades dialetais da região
de Asti, ele me disse que tinha açúcar para análise: queria saber se era açúcar
ou não, ou se havia alguma sujeira de mistura. Que sujeira? Expliquei que, se
indicar suas suspeitas, me facilitaria a tarefa: mas respondeu que não queria me
influenciar, que fizesse a análise da melhor forma possível, suas suspeitas seriam
comunicadas depois. Entregou-me um embrulho com um bom meio quilo de
açúcar, disse que voltaria no dia seguinte, fez os cumprimentos e foi embora: não
tomou o elevador, desceu tranquilo e a pé os quatro lances de escada. Devia ser
um homem sem angústias e sem pressa.
Vinham muito poucos clientes até nós, fazíamos poucas análises e
ganhávamos pouco dinheiro: assim não podíamos comprar instrumentos
modernos e rápidos, nossos resultados demoravam, nossas análises duravam
muito mais que o normal; nem mesmo tínhamos uma placa na rua, de modo que
o círculo se fechava e os clientes se tornavam ainda mais escassos. As amostras
que nos deixavam para análises constituíam uma contribuição não desprezível
para nosso sustento: Emílio e eu nos abstínhamos de informar que em geral
bastam poucos gramas e aceitávamos de bom grado o litro de vinho ou de leite, o
quilo de macarrão ou de sabão, o pacote de raviólis.
Contudo, dada a anamnese, ou seja, as suspeitas do velhinho, seria
imprudente consumir aquele açúcar assim às cegas, e mesmo apenas prová-lo.
Dissolvi um pouco em água destilada: a solução ficou turva, certamente alguma
coisa não estava bem. Pesei um grama de açúcar no cadinho de platina (nossa
menina dos olhos) para incinerá-lo: subiu no ar poluído do laboratório o cheiro
doméstico e infantil do açúcar queimado, mas logo depois a chama se fez lívida e
se percebeu um odor bem diferente, metálico, aliáceo, inorgânico, ou antes
contraorgânico: pobre do químico que não tivesse nariz. Nessa altura é difícil
errar: filtrar a solução, acidificá-la, pegar o Kipp, fazer passar o ácido sulfídrico.
Eis o precipitado amarelo do sulfureto: é o anidrido arsenioso, o arsênio, em
resumo, o Masculino, o de Mitridates e de Madame Bovary.
Passei o resto do dia destilando ácido pirúvico e especulando sobre o açúcar
do velho. Não sei como o ácido pirúvico se prepara modernamente; nós, então,
fundíamos ácido sulfúrico e soda numa caçarola esmaltada, obtendo o bissulfato
que deitávamos simplesmente ao chão para se solidificar, e moíamos depois num
moedor de café. Aí aquecíamos a 250°C uma mistura do dito bissulfato e ácido
tartárico, de modo que este último se desidrata em ácido pirúvico e destila.
Tentamos essa operação primeiramente em recipientes de vidro, quebrando uma
quantidade proibitiva deles; então compramos no ferro-velho dez vasilhas
metálicas, como aquelas usadas para gasolina antes do advento do polietileno,
vasilhas que provinham dos restos do exército aliado e se demonstravam
adequadas ao objetivo; como o cliente ficou satisfeito com a qualidade e
prometia novas encomendas, demos um salto e mandamos o serralheiro do
bairro construir um primitivo reator cilíndrico de chapa negra, munido de um
misturador manual. Encaixamo-lo num nicho de tijolos maciços, que tinha no
fundo e nas paredes quatro resistências de 1.000 watts conetadas ilegalmente à
rede elétrica. Colega que me lês, não te espantes tanto com esta química pré-
colombiana e de segunda mão: naqueles anos não éramos os únicos, nem os
únicos químicos, a viver assim, e em todo o mundo seis anos de guerra e
destruição fizeram regredir muitos costumes civilizados, bem como debilitar
muitas exigências, primeira entre todas a exigência de decoro.
Da extremidade do refrigerador em serpentina o ácido caía no coletor em
densas gotas douradas, refrangentes como pedras preciosas: numa palavra,
“destilava” gota a gota, cada dez gotas valendo uma lira: enquanto isso, pensava
no arsênio e no velho, que não me parecia do tipo capaz de tramar
envenenamentos nem tampouco de sofrê-los, e não conseguia entender o caso.
O homem voltou no dia seguinte. Insistiu em pagar o serviço antes ainda de
conhecer o resultado da análise. Quando lhe comuniquei o resultado, seu rosto
se iluminou com um sorriso complicado e rugoso:
— Fico alegre mesmo. Eu sempre disse que ia terminar assim.
Evidentemente, não esperava nada além de um empurrão mínimo de minha
parte para me contar uma história; não lhe faltou o empurrão, e a história é esta,
um pouco empobrecida por efeito da tradução do piemontês, linguagem
essencialmente falada, para o italiano marmóreo, adequado às lápides.
— Meu ofício é o de sapateiro. Se começamos jovens, não é uma profissão
ruim: ficamos sentados, não cansamos muito e encontramos pessoas para trocar
uma palavra. Claro, ninguém faz fortuna, e a gente passa o dia todo com o sapato
dos outros nas mãos: mas nos acostumamos a isso, e também ao cheiro do couro
velho. Minha oficina fica na via Gioberti, esquina de via Pastrengo: lá trabalho
faz trinta anos, o sapateiro... (mas ele dizia 'l caglié, de caligarius: venerando
vocábulo, que está desaparecendo)...o sapateiro de San Secondo sou eu; conheço
todos os pés difíceis, e para fazer o meu trabalho me bastam o martelo e a linha.
Bem, apareceu um rapazinho, que nem sequer é daqui: alto, bonito e cheio de
ambição; montou uma oficina à distância de um tiro de mosquete e encheu-a de
máquinas. Para espichar, para alargar, para costurar, para pôr sola: nem sei
dizer, jamais fui lá ver, apenas me contaram. Enfiou cartõezinhos com seu
endereço e o telefone em todas as caixas de correio da vizinhança: sim, o
telefone também, até parecia uma parteira.
“O senhor talvez ache que os negócios logo lhe correram bem. Os primeiros
meses, sim; um pouco por curiosidade, um pouco para nos fazer concorrer,
alguns foram à sua oficina, até porque no início manteve os preços baixos: mas
depois teve de aumentá-los, quando viu que perdia dinheiro. Veja bem que eu lhe
digo todas essas coisas sem querer mal nenhum ao rapaz: vi tanta gente como
ele, sapateiros e outros que nem sapateiros eram, partindo a galope e depois
quebrando a cara. Mas ele, pelo que me contaram, não gostava de mim: me
contam tudo, e sabe quem? As velhinhas, essas que têm dores nos pés e não
sentem nenhum prazer em andar, e têm só um par de sapatos: essas aparecem
na minha oficina, esperam sentadas que eu faça o conserto, e nesse meio tempo
me põem a par de tudo, contam mundos e fundos.
“Ele me detestava e vivia dizendo um monte de mentiras. Que ponho solas de
papelão. Que me embriago todas as noites. Que levei minha mulher à morte por
causa do seguro. Que apareceu um prego no sapato de um cliente meu e ele
morreu de tétano. E então, com as coisas neste ponto, o senhor compreende que
nem me espantei muito quando numa manhã, no meio dos sapatos, encontrei
este pacote. Entendi logo a coisa, mas queria estar certo: assim dei um pouco ao
gato, que depois de duas horas foi para um canto e vomitou. Então pus mais um
pouco no açucareiro, ontem minha filha e eu usamos este açúcar no café, e duas
horas depois vomitamos nós dois. Mas agora tenho a sua confirmação e estou
satisfeito.”
— O senhor quer fazer alguma denúncia? Precisa de uma declaração?
— Não, não. Já lhe disse, é só um pobre diabo, não quero arruiná-lo. Também
para o nosso ofício o mundo é grande e tem lugar para todos: ele não sabe, mas
eu sim.
— E então?
— Então, amanhã vou mandar o embrulho de volta para ele por uma de
minhas velhinhas, junto com um bilhete. Ou melhor, não: eu é que vou levar,
assim vejo a cara que faz e lhe explico duas ou três coisas.
O velho olhou ao redor, como alguém que estivesse num museu, e
acrescentou:
— Bonita profissão também, esta do senhor: é preciso ter olho e paciência.
Quem não tiver os dois, é melhor procurar outra.
Cumprimentou-me, pegou de novo o embrulho e desceu sem tomar o elevador,
com a tranquila dignidade que lhe era própria.

________________
1 Provável referência a Carlo Levi, romancista de origem também judia e
cáustico em relação aos bem-pensantes.
Nitrogênio
…E apareceu por fim o cliente sonhado, aquele que queria de nós uma
consulta. A consulta é o trabalho ideal, do qual se extrai prestígio e dinheiro sem
sujar as mãos, sem curvar as costas, sem correr o risco de acabar queimado ou
intoxicado: só é preciso tirar o jaleco, enfiar a gravata, escutar a questão em
atencioso silêncio e se sentir como o oráculo de Delfos. Deve-se depois ponderar
bem a resposta e formulá-la em linguagem pomposa e matizada, a fim de que o
cliente nos considere um oráculo digno de sua confiança e da tabela estabelecida
pela Ordem dos Químicos.
O cliente sonhado andava pelos quarenta anos, era pequeno, compacto,
obeso; usava bigodes à Clark Gable e tinha tufos de pelo negro um pouco por
toda a parte, dentro das orelhas, do nariz, no dorso das mãos e nas falanges,
quase até as unhas. Perfumado e engomado, tinha um aspecto vulgar: parecia
um souteneur, ou melhor, um mau ator no papel de um souteneur, ou então, um
valentão de galinheiro. Explicou-me que era o proprietário de uma fábrica de
cosméticos e tinha problemas com um certo tipo de batom. Bem, que nos
trouxesse uma amostra: mas não, disse, era um problema particular, a ser
examinado no local; melhor que um de nós dois o visitasse, assim poderíamos
perceber o inconveniente. Amanhã às dez? Amanhã.
Seria mais interessante ir de carro, mas, ora, se fosses um químico
motorizado, e não um pobre sobrevivente, escritor nas horas vagas e ainda por
cima recém-casado, não estarias aqui exsudando ácido pirúvico e correndo atrás
de ambíguos fabricantes de batons. Vesti a mais arrumada das minhas (duas)
roupas e pensei fosse melhor deixar a bicicleta em algum lugar por perto,
fingindo ter chegado de táxi; mas, quando entrei na fábrica, dei-me conta de que
não era o caso de ter escrúpulos ou de afetar prestígio. A fábrica era um
barracão imundo e bagunçado, cheio de correntes de ar, pelo qual rodava uma
dúzia de moças petulantes, indolentes, sujas e exageradamente pintadas. O
proprietário me deu explicações, mostrando orgulho e se dando ares chamava de
rouge o batom, de anelina a anilina e de adelaide o aldeído benzoico. A operação
era simples: uma moça fundia certas ceras e substâncias gordurosas numa única
vasilha esmaltada, acrescentava um pouco de perfume e um pouco de corante,
depois deitava a mistura em moldes minúsculos. Uma outra moça resfriava os
moldes sob água corrente e tirava de cada vinte pequenos cilindros vermelhos,
os batons; outras mais se encarregavam do acabamento e da embalagem. O
proprietário agarrou grosseiramente uma das moças, meteu-lhe uma das mãos
na nuca para aproximar sua boca dos meus olhos, e me convidou a observar bem
o contorno dos lábios: aí está, veja, algumas horas depois da aplicação,
especialmente quando faz calor, o rouge anda, mete-se por estas pequenas rugas
que mesmo as mulheres jovens têm em torno dos lábios, e assim se forma uma
horrível teia de aranha de fios vermelhos, que apaga o contorno e arruína todo o
efeito.
Observei, não sem embaraço: os fiozinhos vermelhos existiam mesmo, mas só
na metade direita da boca da moça, que se submetia impassível à inspeção
mascando chiclete. Claro, explicou-me o proprietário: a metade esquerda da
boca daquela e de todas as outras estava maquiada com um ótimo produto
francês, justamente o que ele tentava imitar inutilmente. Um batom ser pode
avaliado somente assim, com uma comparação prática: cada manhã, todas as
moças deviam pôr batom, à direita o seu, à esquerda o tal outro, e ele beijava
todas elas oito vezes ao dia para verificar se o produto resistia ao beijo.
Pedi ao descarado a fórmula de seu batom, bem como uma amostra dos dois
produtos. Lendo a fórmula, logo tive a suspeita de onde vinha o problema, mas
pareceu me mais oportuno me certificar, fazer vir o veredicto um pouco mais de
cima e pedi dois dias “para as análises”. Voltei até a bicicleta, e pedalando
pensava que, se aquele negócio caminhasse bem, talvez pudesse trocá-la por um
Velosolex e parar de pedalar.
Chegado ao laboratório, peguei um pedaço de papel de filtro, nele fiz dois
pontinhos vermelhos com as duas amostras e o pus na estufa a 80 graus. Quinze
minutos depois via-se que o pontinho relativo ao batom da esquerda
permanecera como tal, ainda que circundado por um halo gorduroso; ao
contrário, o ponto relativo ao batom da direita estava desbotado e dilatado,
tornara-se uma auréola cor-de-rosa do tamanho de uma moeda. Na fórmula do
meu fabricante figurava um corante solúvel: estava claro que, quando o calor da
pele das senhoras (ou de minha estufa) fundia o componente de gordura, o
corante o seguia na sua difusão. O outro batom devia conter, ao contrário, um
pigmento vermelho, bem distribuído mas insolúvel e, por isso, não migrante:
assegurei-me disso facilmente, diluindo em benzeno e fazendo a centrifugação;
ei-lo depositado no fundo da proveta. Graças à experiência que acumulara na
fábrica às margens do lago, também consegui identificá-lo: era um pigmento
caro e difícil de tratar, e de resto o sujeitinho não tinha nenhuma aparelhagem
capaz de distribuir finamente um pigmento; bem, aí já era problema dele, ele que
se virasse, ele com seu harém de mulheres-cobaia e com os seus revoltantes
beijos-medida. Eu tinha feito o meu dever profissional: escrevi um relatório,
anexei a fatura com os selos devidos e a pitoresca amostra do papel de filtro,
voltei à fábrica, entreguei, recebi o pagamento e quis me despedir.
Mas o sujeito me reteve: estava satisfeito com o trabalho e queria me propor
um negócio. Poderia lhe conseguir alguns quilos de aloxana? Pagaria muito bem,
desde que me empenhasse por contrato a fornecê-la somente a ele. Tinha lido em
não sei qual revista que a aloxana, em contato com as mucosas, confere-lhes uma
cor vermelha extremamente duradoura, porque não é uma superposição, um
verniz como o batom, em resumo, mas uma verdadeira tintura, como as que se
aplicam à lã e ao algodão.
Engoli em seco e respondi, de todo modo, que se podia ver: a aloxana não é
um composto muito comum nem muito conhecido, não me parece que o meu
velho livro de texto lhe dedicasse mais que cinco linhas, e naquele momento só
vagamente recordava que era um derivado da ureia e tinha alguma coisa a ver
com o ácido úrico.
Logo que me foi possível, corri à biblioteca: refiro-me à venerável biblioteca
do Instituto Químico da Universidade de Turim, naquele tempo tão inacessível
quanto Meca para os infiéis, dificilmente acessível mesmo para os fiéis como eu.
É o caso de pensar que a Direção seguisse o sábio princípio segundo o qual é
bom desencorajar as ciências e as artes: só quem fosse arrebatado por uma
exigência absoluta ou por uma paixão avassaladora se submeteria com boa
disposição às provas de abnegação requeridas para consultar os volumes. O
horário era curto e irracional; a iluminação, escassa; os fichários, em desordem;
no inverno, nenhum aquecimento; nada de cadeiras, mas sim banquinhos de
metal incômodos e barulhentos; e, para completar, o bibliotecário era um tipo
grosseiro e incompetente, insolente e despudoradamente feio, posto diante da
porta para aterrorizar com seu aspecto e com seu latido os que pretendessem
entrar. Consegui entrar, superei as provas e, em primeiro lugar, apressei-me em
refrescar a memória com a composição e estrutura da aloxana.
Eis seu retrato:

onde O é o oxigênio, C o carbono, H o hidrogênio e N o nitrogênio. Uma


estrutura graciosa, não é mesmo? Faz pensar em algo sólido, estável, bem ligado.
Com efeito, sucede também na química, como na arquitetura, que os edifícios
“bonitos”, vale dizer, simétricos e simples, sejam ao mesmo tempo os mais
sólidos: numa palavra, isso vale tanto para as moléculas quanto para as cúpulas
das catedrais ou as arcadas das pontes. E até pode-se dar que a explicação não
seja remota nem metafísica: dizer “bonito” significa dizer “desejável”, e, desde
quando o homem constrói, deseja construir com mínima despesa e com vista à
máxima duração; o gozo estético que experimenta ao contemplar suas obras vem
depois. Por certo, nem sempre foi assim: houve séculos em que se identificava a
beleza com o adorno, o acúmulo, o ornato; mas é provável que tenham sido
épocas de exceção, e que a beleza verdadeira, aquela em que todo o século se
reconhece, seja a das pedras retas, das quilhas, da lâmina do machado, da asa do
avião.
Reconhecida e estimada a virtude estrutural da aloxana, é urgente que tu,
químico dialógico, tão amante das digressões, retornes ao bom caminho, que é o
de fornicar com a matéria a fim de prover a teu sustento: e hoje, não mais
apenas o teu. Abri com respeito as estantes do Zentralblatt e comecei a consultá-
lo ano por ano. Tire-se o chapéu diante do Chemisches Zentralblatt: é a Revista
das Revistas, aquela que, desde que existe a Química, estampa sob a forma de
resumo ferozmente conciso todos os artigos da área química que aparecem em
todas as revistas do mundo. As primeiras coleções anuais são volumezinhos finos
de 300 ou 400 páginas: hoje, todo ano nos despejam quatorze volumes de 1.300
páginas cada um. O Zentralblatt faz-se acompanhar de um majestoso índice por
autores, outro por temas, outro ainda por fórmulas, e nele se podem encontrar
fósseis venerandos, como as memórias lendárias em que nosso pai, Wöhler, narra
a primeira síntese orgânica, ou Sainte-Claire Deville descreve o primeiro
isolamento do alumínio metálico.
Do Zentralblatt pulei até o Beilstein, enciclopédia igualmente monumental e
continuamente atualizada em que, como num registro civil, se descreve
progressivamente cada novo composto, junto com seus métodos de preparação.
A aloxana era conhecida há quase setenta anos, mas como curiosidade de
laboratório: os métodos de preparação descritos tinham puro valor acadêmico e
procediam de matérias-primas custosas que (naqueles anos de imediato pós-
guerra) era inútil esperar que se encontrassem no mercado. A única preparação
acessível era também a mais antiga; não parecia tão difícil assim realizá-la, e
consistia numa demolição oxidante do ácido úrico. Justamente isso: do ácido
úrico, aquele dos que sofrem de gota, dos intemperantes e do mal de pedra. Uma
matéria-prima decididamente insólita, mas talvez não tão proibitiva quanto as
outras.
Com efeito, uma pesquisa subsequente nas prateleiras limpíssimas, cheirando
a naftalina, a cera e a seculares esforços químicos, ensinou-me que o ácido úrico,
escassíssimo nos excrementos do homem e dos mamíferos, constitui porém 50
por cento do excremento dos pássaros e 90 por cento do dos répteis. Muito bem.
Telefonei para o sujeito e disse que dava para fazer a coisa, que me desse apenas
o prazo de alguns dias: até o fim do mês lhe levaria a primeira amostra da
aloxana e ao mesmo tempo lhe daria uma ideia do preço e da quantidade mensal
que poderia produzir. O fato de que a aloxana, destinada a embelezar os lábios
das damas, derivasse de excrementos das galinhas ou das serpentes, não me
perturbava nem um pouco. O ofício de químico (reforçado, em meu caso, pela
experiência de Auschwitz) ensina a superar, antes a ignorar certas repugnâncias,
que nada têm de necessárias nem de congênitas: a matéria é a matéria, nem
nobre nem vil, infinitamente transformável, e não importa em absoluto qual seja
sua origem próxima. O nitrogênio é o nitrogênio, passa admiravelmente do ar
para as plantas, destas aos animais, e dos animais para nós; quando no nosso
corpo sua função se esgota, nós o eliminamos, mas sempre nitrogênio resta,
asséptico, inocente. Nós, isto é, nós mamíferos, que em geral não temos
problemas de provisão de água, aprendemos a encaixá-lo na molécula da ureia,
que é solúvel em água, e como ureia nos livramos dele; outros animais, para os
quais a água é preciosa (ou assim era para seus distantes progenitores), tiveram
a engenhosa ideia de empacotar seu nitrogênio sob forma de ácido úrico, que é
insolúvel em água, e de eliminá-lo no estado sólido, sem necessidade de recorrer
à água como veículo. De modo análogo, hoje se pensa em eliminar os detritos
urbanos comprimindo-os em blocos que se podem levar aos vazadouros ou
enterrar com pouca despesa.
Direi mais: longe de me escandalizar, a ideia de extrair cosmético de
excremento, ou seja, aurum de stercore, me divertia e me aquecia o coração
como um retorno às origens, quando os alquimistas extraíam o fósforo da urina.
Era uma aventura inédita e alegre, e além do mais nobre, porque enobrecia,
restaurava e restabelecia. Assim age a natureza: busca a graça das plantas na
podridão do subsolo dos bosques, e o pasto no esterco; em latim, laetamen não
significa justamente “contentamento”? Assim me ensinaram no colégio, assim
fora para Virgílio, e assim voltava a ser para mim. Cheguei à noite em casa,
expliquei a minha recentíssima esposa o caso da aloxana e do ácido úrico e
anunciei que no dia seguinte partiria numa viagem de negócios: isto é, pegaria a
bicicleta e rodaria pelas granjas dos arredores (naquele tempo ainda havia) em
busca de esterco de galinha. Não hesitou: o campo a agrada, e a mulher deve
seguir o marido — ela também iria. Era uma espécie de complementação da
nossa viagem de núpcias, que por razões de economia tinha sido frugal e
apressada. Mas me preveniu contra ilusões exageradas: encontrar esterco de
galinha em estado puro não devia ser assim tão fácil.
E realmente foi difícil. Em primeiro lugar, o esterco de galinha (pollina, como
o chamam: nós, gente da cidade, não o sabíamos, nem sabíamos que, sempre
devido ao nitrogênio, é valorizadíssimo como adubo para as hortas) não se dá, e
sim se vende caro. Em segundo lugar, quem o compra é que vai apanhá-lo,
agachando-se nos galinheiros e catando nos quintais. Em terceiro lugar, o que
efetivamente se recolhe pode ser diretamente usado como fertilizante, mas mal
se presta a novos tratamentos: é uma mistura de esterco, terra, pedras, restos de
comida, penas e perpôjín (são os piolhos das galinhas, que se escondem sob as
asas; não sei como se chamam em italiano). De qualquer modo, pagando não
pouco, cansando-nos e nos sujando muito, minha intrépida mulher e eu voltamos
de noite pelo Corso Francia com um suado quilo de pollina na cesta da bicicleta.
No dia seguinte examinei o material: a “ganga” era muita, mas talvez alguma
coisa se pudesse extrair. Contudo, ao mesmo tempo me veio uma ideia:
justamente naqueles dias, na galeria do metrô (que existe em Turim há quarenta
anos, enquanto o metrô ainda não existe), fora inaugurada uma exposição de
serpentes. Por que não ir ver? As serpentes são uma raça limpa, não têm penas
nem piolhos, não se espojam na poeira; além disso, uma cobra é bem maior que
uma galinha. Talvez seus excrementos, com 90 por cento de ácido úrico, se
pudessem obter em abundância, em pedaços não excessivamente miúdos e em
condições de razoável pureza. Dessa vez fui sozinho: minha mulher é filha de
Eva, e as serpentes não agradam.
O diretor e os empregados da exposição me receberam com desdém
permeado de surpresa. Quais eram minhas credenciais? De onde vinha? Quem
julgava que fosse para me apresentar a eles assim, sem mais nem menos,
pedindo esterco de cobra? Mas nem falar nisso, nem mesmo um grama; as
serpentes são sóbrias, comem e descomem duas vezes por mês: especialmente
quando fazem pouco exercício. Seu esterco escassíssimo se vende a peso de
ouro: de resto, eles e todos os expositores e donos de serpentes têm contratos
permanentes de exclusividade com as grandes indústrias farmacêuticas. Eu que
me afastasse e não lhes fizesse perder mais tempo.
Dediquei um dia selecionando grosseiramente a pollina e outros dois tentando
oxidar o ácido nela contido, transformando-o em aloxana. A virtude e a paciência
dos químicos antigos deviam ser sobre-humanas, ou então, talvez, era
simplesmente desmedida a minha inexperiência em preparações orgânicas. Só
obtive vapores imundos, aborrecimento, humilhação, além de um líquido negro e
turvo que entupia irremediavelmente os filtros e não mostrava tendência alguma
em cristalizar, como, segundo o texto, devia acontecer. O esterco permaneceu
esterco, e a aloxana, nome tão sonoro de nome sonoro, não passou. Não era este
o caminho para sair do lodo: e, então por qual caminho sairia, eu, autor
descrente de um livro que me parecia bom, mas que ninguém lia? Melhor voltar
aos esquemas descoloridos mas seguros da química inorgânica.
Estanho
“Nada pior que nascer pobre”, estava eu a remoer, enquanto mantinha na
chama de um bico de gás um lingote de estanho dos Estreitos. Pouco a pouco o
estanho fundia, e as gotas caíam, chiando, na água de uma vasilha: no fundo
desta formava-se um enredo metálico fascinante, de formas sempre novas.
Existem metais amigos e metais inimigos. O estanho era amigo: não só
porque, desde há alguns meses, Emílio e eu vivíamos dele, transformando-o em
cloreto de estanho para vender aos fabricantes de espelhos, mas também por
outras razões mais recônditas. Porque se casa com o ferro, transformando-o na
maleável folha-de-flandres e privando-o, portanto, da sua qualidade sanguinária
de nocens ferrum; porque o comerciavam os fenícios e porque ainda hoje é
extraído, refinado e embarcado em países lendários e longínquos (os Estreitos,
precisamente: é como se dissesse a Sonda Dormente, as Ilhas Felizes e os
Arquipélagos); porque se liga ao cobre para dar o bronze, matéria respeitável
por excelência, notoriamente perene e well established; porque funde a baixa
temperatura, quase como os compostos orgânicos, isto é, quase como nós; e,
finalmente, por duas propriedades singulares, de nomes pitorescos e pouco
verossímeis, jamais vistas nem ouvidas (que eu saiba) por olhos ou ouvidos
humanos, mas fielmente legadas, de geração em geração, por todos os textos
didáticos: a “peste” e o "pranto” do estanho.
Era preciso granular o estanho a fim de que ficasse mais fácil tratá-lo depois
com ácido clorídrico. Pois é o que te cabe. Estavas sob as asas daquela fábrica
nas margens do lago, uma ave de rapina, mas de asas amplas e robustas.
Quiseste fugir da tutela, voar com as tuas: é o que te cabe. Voa agora: querias
ser livre, és livre, querias ser químico, és químico. Vamos, remexe entre venenos,
batons e esterco de galinha; faz granular o estanho, verte-lhe ácido clorídrico,
concentra, transvasa e cristaliza, se não queres morrer de fome, uma fome que
conheces. Compra estanho e vende cloreto de estanho.
Emílio tinha arrumado um laboratório na casa dos seus pais, gente piedosa,
imprudente e generosa. Naturalmente, ao lhe cederem o quarto de dormir, não
previram todas as consequências, mas não dá para voltar atrás: agora, o
vestíbulo era um depósito de garrafas de ácido clorídrico concentrado, o fogão
de cozinha (fora da hora das refeições) servia para concentrar o cloreto de
estanho em bécheres e frascos de seis litros, e toda a casa vivia invadida pelos
nossos vapores.
O pai de Emílio era um velho majestoso e benigno, de grandes bigodes
brancos e voz retumbante. Na sua vida tivera muitos ofícios, todos aventurosos
ou pelo menos bizarros, e aos setenta anos conservava uma avidez preocupante
de experimentos. Naquela época detinha o monopólio do sangue de todo o gado
sacrificado no velho Matadouro Municipal de Corso Inghilterra: passava muitas
horas por dia num antro sórdido de paredes enegrecidas pelo sangue coagulado,
de chão encharcado pela deliquescência da matéria em decomposição,
frequentado por ratos do tamanho de coelhos; até as faturas e o livro
contabilístico ficavam ensanguentados. Com o sangue fabricava botões, colas,
chouriços, fritados, pinturas murais e graxas. Lia exclusivamente revistas e
jornais árabes que mandava vir do Cairo, onde vivera muitos anos, onde lhe
nasceram os três filhos, onde defendera a tiros de espingarda o Consulado
italiano contra uma multidão enraivecida, e onde o seu coração ficara. Ia de
bicicleta, todo o dia, até a Porta Palazzo para comprar ervas, farinha de sorgo,
pasta de amendoim e batatas doces: com tais ingredientes, mais o sangue dos
animais abatidos, preparava comidas experimentais, diferentes a cada dia;
gabava-se delas e fazia-nos provar. Certa feita levou um rato para casa, cortou-
lhe a cabeça e as patas, disse à sua mulher que se tratava de um porquinho da
índia, e mandou-o assar. Como a sua bicicleta não tinha protetor de correntes e
os rins limitavam-lhe os movimentos, prendia pela manhã a barra da calça com
prendedores que não tirava mais durante todo o dia. Ele e sua mulher, a doce e
imperturbável senhora Ester, nascida em Corfú de uma família vêneta, haviam
aceitado em casa o nosso laboratório como se ter ácidos na cozinha fosse a coisa
mais natural do mundo. Levávamos os frascos de ácido pelo elevador até o
quarto andar: o pai de Emílio tinha um aspecto tão respeitável e honrado que
nenhum condômino ousara levantar objeções.
Nosso laboratório parecia loja de quinquilharias e porão de baleeira. À parte
suas ramificações, que invadiam a cozinha, o vestíbulo e até a casa de banho,
constituía-se de um só quarto e a sacada. Na sacada esparramavam-se as partes
de uma moto DKW que Emílio comprara desmontada e que, dizia, remontaria num
dia qualquer: o tanque cor de escarlate estava em cima do parapeito, e o motor,
protegido numa tela de arame, enferrujava corroído pelas nossas exalações.
Havia ainda alguns frascos de amoníaco, resíduo de uma época anterior à minha
chegada em que Emílio sobrevivia dissolvendo amoníaco gasoso em garrafões de
água potável, vendendo estes e empestando a vizinhança. Por toda a parte, na
sacada e dentro do quarto, espalhava-se uma quantidade inimaginável de trastes,
tão vetustos e gastos que se mostravam quase irreconhecíveis: só com um exame
mais atento se podiam distinguir componentes profissionais e domésticos.
No meio do laboratório ficava uma grande capela de aspiração de madeira e
de vidro, nosso orgulho e nossa única proteção contra a morte por gás. Não é
que o ácido clorídrico seja propriamente tóxico: é um daqueles inimigos
declarados que te atacam gritando desde longe e dos quais, portanto, é fácil se
defender.
Tem um cheiro tão penetrante que quem pode não demora a se abrigar; e não
podes confundi-lo com nenhum outro, porque, depois de tê-lo respirado uma vez,
escapam-te do nariz dois curtos penachos de fumaça branca, como os cavalos
nos filmes de Eisenstein, e experimentas nos teus dentes um sabor acre, como
quando chupas um limão. A despeito da nossa capela tão zelosa, as emanações
do ácido invadiam todos os aposentos: os papéis de parede mudavam de cor, as
maçanetas e puxadores de metal tornavam-se opacos e ásperos ao tato, e de vez
em quando nos sobressaltava um baque sinistro: um prego havia acabado de se
corroer, e um quadro, num canto qualquer da casa, tinha vindo ao chão. Emílio
punha um prego novo e voltava a colocar o quadro em seu lugar.
Dissolvíamos, pois, o estanho no ácido clorídrico: em seguida era preciso
concentrar a solução até um determinado peso específico e deixar que
cristalizasse por resfriamento. O cloreto de estanho separava-se em pequenos
prismas graciosos, incolores e transparentes. Como a cristalização é lenta,
precisava-se de muitos recipientes, e como o ácido clorídrico ataca todos os
metais, estes recipientes deviam ser de vidro ou de cerâmica. Nos períodos em
que os pedidos eram muitos, fazia-se mister mobilizar recipientes
complementares, dos quais, aliás, a casa de Emílio era rica: uma sopeira, uma
panela Regina de ferro esmaltado, um lampadário estilo liberty e um urinol.
Na manhã seguinte recolhe-se o cloreto e deixa-se escorrer: e deves tomar
cuidado para não tocá-lo com as mãos, senão gruda-te um odor desagradável.
Por si só este sal é inodoro, mas reage de algum modo com a pele, talvez
reduzindo as pontes dissulfurosas da queratina, e daí libera um fedor metálico
persistente que te denuncia como químico durante vários dias. É agressivo mas
também delicado, como certos desagradáveis adversários esportivos que
choramingam quando perdem: não cabe forçá-lo, deves deixar que evapore no ar
a seu bel-prazer. Se procuras aquecê-lo mesmo no modo mais suave, por exemplo
com um secador de cabelo ou sobre o termossifão, perde a sua água de
cristalização, torna-se opaco, e os clientes tolos não o querem mais. Tolos,
porque lhes seria conveniente: com menos água há mais estanho e garante-se
assim um rendimento melhor; mas, o que fazer, o cliente sempre tem razão,
especialmente quando sabe pouco de química, como é exatamente o caso dos
fabricantes de espelhos.
Nada da afabilidade generosa do estanho, metal de Júpiter, sobrevive no seu
cloreto (de resto, os cloretos em geral são uma gentalha, quase sempre
subprodutos ignóbeis, higroscópicos e de pouca serventia: com a única exceção
do sal comum, mas aí é outra história). Este sal é um enérgico agente redutor,
vale dizer, deseja sofregamente se livrar de dois determinados elétrons seus, e o
faz ao menor pretexto, às vezes com resultados desastrosos: bastara uma só gota
da solução concentrada escorrendo pela calça para cortá-la afiadamente como
um golpe de cimitarra; e estávamos no pós-guerra, eu não tinha outra calça além
daquela de domingo, sem falar no pouco dinheiro de casa.
Jamais teria abandonado a fábrica nas margens do lago, e teria ficado
eternamente corrigindo as deformidades dos vernizes, não fosse a insistência de
Emílio, exaltando a aventura e a glória de uma profissão livre. Eu me demitira
com arrogância absurda, distribuindo a colegas e superiores uma despedida em
quadras cheia de jocosas insolências: estava bem consciente do risco que corria,
mas sabia que a concessão de errar se restringe com os anos e que, por isso,
quem pretende se valer dela não deve esperar demais. Por outro lado, nem é
preciso esperar muito para perceber que um erro é um erro: no fim de cada mês
fazíamos as contas, e ficava cada vez mais claro que só de cloreto de estanho o
homem não vive; ou pelo menos não vivia eu, que acabara de me casar e não
tinha nenhum respeitável patriarca nas costas.
Não nos entregamos logo; atormentamo-nos durante um bom mês no esforço
de obter a vanilina a partir do eugenol com um rendimento que nos permitisse
sobreviver, e não conseguimos; segregamos vários quintais de ácido pirúvico,
produzido com um equipamento de trogloditas e com um horário de forçados,
depois do que levantei a bandeira branca. Arranjaria um emprego, nem que fosse
voltando aos vernizes.
Emílio aceitou com pesar, mas corajosamente, a derrota completa.
Urânio
O responsável pelo SAC (Serviço de Atendimento ao Cliente) não pode ser o
primeiro que aparece. É um trabalho delicado e complexo, não muito diferente
daquele dos diplomatas: para executá-lo com sucesso é preciso transmitir
confiança aos clientes, e por isso é indispensável ter confiança em nós mesmos e
nos produtos que vendemos; é, portanto, um exercício salutar, que ajuda a nos
conhecermos e reforça o carácter. Talvez seja a mais higiênica das
especialidades que constituem o decatlo do químico de fábrica: aquela que
melhor o treina na eloquência e na improvisação, na rapidez dos reflexos e na
capacidade de compreender e de se fazer compreender; além disso, faz-te rodar
a Itália e o mundo, e te põe em contato com gente variada. Devo aludir ainda a
uma outra consequência curiosa e benéfica do SAC: ao dar mostras de estimar e
de achar simpáticos os nossos semelhantes, depois de alguns anos de ofício
termina-se por estimá-los verdadeiramente, do mesmo modo como muitas vezes
se torna louco quem por longo tempo simula a loucura.
Na maior parte dos casos, no primeiro contato é preciso adquirir ou
conquistar um nível superior àquele do teu interlocutor: mas conquistá-lo em
surdina, com bons modos, sem aterrorizar nem esmagar o outro. Deves sentir-te
superior, mas só um pouco: acessível, compreensível. Por exemplo, pobre de
quem fizer discursos químicos diante de um leigo: este é o abc do ofício. Mas é
muito mais grave o perigo oposto, que seja o cliente a mostrar-se superior: coisa
que pode muito bem acontecer, porque ele joga no próprio campo, ou seja, é ele
quem emprega praticamente os produtos que lhe vendes, e por isso conhece
suas virtudes e defeitos como uma mulher conhece os do marido; ao passo que
tu, costumeiramente, destes produtos tens apenas um conhecimento indolor e
desinteressado, muitas vezes otimista, adquirido no laboratório ou no curso da
preparação. A conjuntura mais favorável é aquela em que te podes apresentar,
de um modo ou de outro, como um benfeitor: convencendo-o de que o produto
satisfaz alguma velha necessidade ou desejo, possivelmente inadvertidos; que,
feitas todas as contas, no fim do ano o produto lhe irá custar menos que o da
concorrência, o qual, além de tudo, como se sabe, funciona no começo, mas, por
favor, não me faça falar muito.
Mas podes também ajudá-lo de maneiras diferentes (e aqui se revela a
fantasia do candidato ao SAC): resolvendo-lhe um problema técnico que tenha
pouco a ver com o caso, ou talvez nada; fornecendo-lhe um endereço;
convidando-o a jantar "num local típico”; fazendo-o visitar a tua cidade e
ajudando-o ou aconselhando-o na compra de souvenires para a mulher ou a
namorada; encontrando-lhe no último momento um ingresso para o derby (sim,
até isto se faz). O meu colega de Bolonha possui um reportório continuamente
atualizado de anedotas picantes, e as repassa diligentemente, junto com os
manuais técnicos, antes de encetar a sua rodada de visitas na cidade e na
província; como tem memória ruim, anota aquelas que contou a cada cliente,
porque impingir duas vezes a mesma piada à mesma pessoa seria uma falta
grave.
Todas estas coisas se aprendem com a experiência, mas existem técnicos
comerciais que parecem sê-lo de berço, parecem ter nascido prontos para o SAC,
assim como Minerva. Esse não é o meu caso, e tenho uma triste consciência
disso: quando me acontece exercer o SAC, na sede ou em viagem, faço-o de má
vontade, com hesitação, pesar e escasso calor humano. Pior: tendo a ser brusco e
impaciente com os clientes que são impacientes e bruscos, e a ser calmo e
flexível com os fornecedores, que, atuando por sua vez no SAC, se mostram
justamente calmos e flexíveis. Numa palavra, não sou um bom membro do SAC, e
temo ser agora tarde demais para me modificar.

Tabasso me havia dito:


— Vá até *** e pergunte pelo Bonino, que é o chefe de seção. É uma boa
pessoa, já conhece os nossos produtos. Tudo sempre correu bem, ele não é um
sujeito esperto. Não o visitamos faz três meses. Vai ver que não terá dificuldades
técnicas; se ele falar de preço, diga coisas gerais: diga que o informará, que não
é assunto seu.
Me fiz anunciar, me deram uma ficha para preencher e entregaram o crachá
que se pendura na camisa, caraterizando-te como estrangeiro e imunizando-te
contra as reações de rejeição por parte dos guardas. Puseram-me numa sala de
espera; não mais de cinco minutos depois apareceu Bonino e levou-me até o seu
escritório. Isto é um bom sinal, nem sempre acontece assim: tem gente que,
friamente, deixa um representante do SAC esperar durante trinta ou quarenta
minutos mesmo que exista hora marcada, com o objetivo deliberado de
menosprezá-lo e reduzi-lo a seu lugar; é o mesmo objetivo a que visam, com
técnicas mais engenhosas e mais obscenas, os macacos no zoológico. Mas a
analogia é mais geral: todas as estratégias e táticas do SAC podem ser descritas
em termos de aproximação sexual. Em ambos os casos dá-se uma relação a dois:
seria impensável uma corte amorosa ou um contrato a três. Nos dois casos nota-
se de início uma espécie de dança ou abertura ritualizada, em que o comprador
só aceita o vendedor se este se ativer rigidamente ao cerimonial tradicional; se
isso ocorrer, o comprador se une à dança, e se o prazer for recíproco chega-se ao
acasalamento, ou seja, à compra, com visível satisfação dos envolvidos. Os casos
de violência unilateral são raros; não por acaso, descrevem-se frequentemente
com termos importados da esfera sexual.
Bonino era um homenzinho rotundo, desleixado, com um vago aspecto canino,
a barba mal feita e o sorriso desdentado. Apresentei-me e iniciei a dança
propiciatória, mas ele me cortou imediatamente:
— Ah, sim, o senhor é quem escreveu um livro.
Devo confessar a minha fraqueza: este preâmbulo irregular não me
desagrada, por menos útil que seja à sociedade que represento; com efeito, neste
ponto o discurso tende a degenerar ou pelo menos a enveredar por
considerações anômalas, que fazem perder o objetivo da visita e o tempo
profissional.
— É mesmo um bom romance — continuou Bonino. — Li durante as férias e fiz
também minha mulher ler; meus filhos, não, porque talvez ficassem
impressionados.
Essas opiniões normalmente me irritam, mas quando se exercem funções do
SAC não se pode ser de todo incontentável: agradeci polidamente e tentei
reencaminhar a conversa para o âmbito devido, ou seja, para nossos vernizes.
Bonino opôs resistência.
— Aqui onde me vê também corri o risco de terminar como o senhor. Já
tinham nos prendido no pátio do quartel, em Corso Orbassano: mas num certo
ponto eu o vi entrar, o senhor sabe bem de quem falo, e então, quando ninguém
me via, subi pelo muro, pulei para o outro lado, e olhe que são uns bons cinco
metros, e escapuli. Depois fui até o Vale de Susa com os badoglianos.1
Ainda não me acontecera de ouvir um badogliano chamar os badoglianos de
badoglianos. Tranquei-me na defesa e até me surpreendi tomando fôlego
profundamente, como faz quem se prepara para um longo mergulho. Estava
claro que a narrativa de Bonino não seria tão curta: mas paciência, pensei em
quantas narrativas compridas havia infligido ao próximo, tanto a quem queria
quanto a quem não queria escutar; lembrei que está escrito: “Amareis o
estrangeiro, porque também vós fostes estrangeiros entre os egípcios”
(Deuteronômio 10:19), e dispus-me comodamente na cadeira.
Bonino não era um bom narrador: divagava, se repetia, fazia digressões, e
digressões dentro das digressões. Além disso, tinha o curioso vício de omitir o
sujeito de algumas proposições, substituindo-o pelo pronome pessoal, o que
tornava ainda mais nebuloso o discurso. Bonino falava, e eu examinava,
distraído, o local onde me recebera: evidentemente, seu escritório há muitos
anos, porque se mostrava desleixado e desalinhado como sua pessoa. A vidraça
da janela estava ofensivamente suja, as paredes enegrecidas de fuligem, e
pairava no ar um odor lúgubre de tabaco rançoso. Nas paredes viam-se fixados
pregos enferrujados: alguns aparentemente inúteis, outros segurando papéis
amarelecidos. Um deles, que se podia ler do meu posto de observação, começava
assim: “TEMA: Trapos. Com frequência cada vez maior...”; em outros cantos se
percebiam lâminas de barbear usadas, bilhetes de loteria esportiva, formulários
da Previdência, cartões postais.
—...então ele me disse que eu o seguisse, ou melhor, que fosse na frente: ele é
que vinha atrás com a pistola apontada. Depois chegou o outro, o colega, que
estava na esquina e o esperava; e me levaram entre eles até a via Asti, o senhor
sabe, onde estava Aloisio Smit. Me chamava de vez em quando e dizia: “Fala,
fala, que teus companheiros já abriram o jogo, é inútil bancar o herói...”
Na escrivaninha de Bonino havia uma horrível reprodução da Torre de Pisa
em liga ordinária. Havia ainda um cinzeiro feito a partir de uma concha, cheio de
beatas de cigarro e de caroços de cereja, e um porta-canetas de alabastro em
forma de Vesúvio. Uma escrivaninha miserável: não mais de 0,6 metro quadrado,
numa estimativa generosa. Não existe um só membro experimentado do SAC que
não conheça esta triste ciência das escrivaninhas: talvez não em nível
consciente, mas em forma de reflexo condicionado, uma escrivaninha medíocre
denuncia inexoravelmente um ocupante de pouco valor; e o funcionário que, oito
ou dez dias depois da admissão, não soube conquistar uma escrivaninha é um
homem perdido: não pode contar com mais que algumas semanas de
sobrevivência, como um paguro sem concha. Inversamente, conheci pessoas que
em fim de carreira dispunham de uma superfície de sete ou oito metros
quadrados recobertos com poliéster, de exuberância gritante mas capaz de
expressar em código a medida de seu poder. O tipo de objeto que repousa na
escrivaninha não é determinante para fins de avaliação: há quem expresse a
própria autoridade mantendo na superfície a maior desordem e a maior
acumulação de material de escritório; e há quem, mais sutilmente, impõe sua
preeminência através do vazio e da limpeza meticulosa: dizem que é o que fazia
Mussolini no Palazzo Venezia.
— ...mas eles todos não tinham percebido que, escondida no cinto, eu também
trazia uma pistola. Quando começaram a me torturar, saquei a arma, pus todos
eles com a cara contra a parede e caí fora. Mas ele...
Ele quem? Estava perplexo; a história se emaranhava cada vez mais, o relógio
não parava, e, se bem que o cliente tenha sempre razão, existe um limite
inclusive para a venda da própria alma e a fidelidade às instruções da empresa:
além deste limite nos tornamos ridículos.
— ...o mais distante que podia: meia hora, e já estava pelos lados de Rivoli.
Caminhava pela estrada, e eis que vejo aterrissar no campo ali perto um avião
alemão, uma cegonha, um desses que aterrissam em cinquenta metros. Descem
dois sujeitos, muito gentis, e me perguntam, por favor, por qual direção se vai
até a Suíça. Eu conheço bem aquela região e logo respondi: “Em linha reta até
Milão, depois virar à esquerda”. Danke, me respondem, e voltam a subir ao
aparelho; mas aí um deles para, remexe embaixo do assento, desce e vem até
mim trazendo na mão uma espécie de pedra; dá-me a pedra e diz: “Isso é pelo
incomodo: guarde com cuidado, é urânio”. Claro, era o fim da guerra, já se
sentiam perdidos, não tinham mais tempo para fazer a bomba atômica, e o
urânio não lhes servia mais. Só pensavam em salvar a pele e fugir para a Suíça.
O controle da fisionomia também tem um limite: Bonino devia ter suspeitado
em mim algum sinal de incredulidade, porque parou com um tom levemente
ofendido:
— Mas o senhor não acredita?
— Naturalmente que acredito — respondi heroicamente. — Mas era mesmo
urânio?
— Com certeza: qualquer um ia perceber. Tinha um peso incrível, era quente
ao tocar nele. Aliás, ainda está em casa: guardo-o no terraço, num esconderijo,
para que os meninos não ponham a mão; de vez em quando, mostro aos amigos;
permaneceu quente, mesmo agora está quente.
Hesitou um instante antes de acrescentar:
— Sabe o que vou fazer? Amanhã mando-lhe um pedaço: assim se convence e
quem sabe, o senhor que escreve, mais dia menos dia acrescenta às suas
histórias também esta.
Agradeci, representei meu papel conforme o figurino, fiz a demonstração de
um certo produto novo, anotei uma encomenda muito considerável,
cumprimentei e dei por encerrado o assunto. Mas no dia seguinte, na minha
escrivaninha de 1,2 metro quadrado, encontrei um pacote dirigido a minha
cortês atenção. Desembrulhei-o, não sem curiosidade: continha um pequeno
bloco de metal, do tamanho de metade de um maço de cigarros, efetivamente
bem pesado e com um ar exótico. A superfície era de um branco prateado, com
uma leve pátina amarelada: não parecia quente, mas não se confundia com
nenhum dos metais que um longo costume, inclusive extraquímico, tornou
familiares, como o cobre, o zinco, o alumínio. Talvez uma liga? Ou quem sabe
urânio mesmo? O urânio metálico, pelos nossos lados, ninguém jamais o viu, e
nos tratados é descrito como branco prateado; e não é que deva estar
permanentemente quente um pequeno fragmento como aquele: talvez apenas
uma massa tão grande quanto uma casa possa se manter aquecida, à custa da
energia de desintegração.
Assim que me foi dignamente possível, parti para o laboratório, o que para um
químico do SAC é uma iniciativa inusitada e vagamente imprópria. O laboratório é
lugar de jovens, e quando se regressa a ele sente-se regressar a juventude: a
mesma obsessão de aventura, de descoberta, de imprevisto que se tem aos
dezessete anos. Naturalmente, os dezessete anos estão distantes, e além disso a
longa carreira de atividades paraquímicas entorpece, atrofia, paralisa, tornando-
nos ignorantes quanto à manipulação dos reagentes e dos aparelhos, esquecidos
de tudo, salvo as reações fundamentais: mas justamente por esses motivos o
laboratório revisitado é fonte de alegria e irradia um fascínio intenso, que é o da
juventude, do futuro indeterminado e pleno de potencialidades, ou seja, da
liberdade.
Mas os anos de inatividade não te fazem esquecer alguns tiques profissionais,
alguns comportamentos estereotipados que te identificam como químico em
qualquer circunstância: experimentar a matéria incógnita com a unha, com o
canivete, farejá-la, sentir com os lábios se é "fria” ou “quente”, ver se risca ou
não o vidro da janela, observá-la sob luz reflexa, sopesá-la na palma da mão.
Avaliar sem balança o peso específico de um material não é coisa assim tão fácil,
mas, puxa, o urânio tem peso específico 19, muito mais que o chumbo, o dobro
do cobre: o presente feito a Bonino pelos aeronautas-astronautas nazistas não
podia ser urânio. Na narrativa paranoica do pobre homem, começava a entrever
o eco de uma lenda local tenaz e recorrente, a dos OVNIs do Vale de Susa, dos
discos voadores portadores de presságios como os cometas no medievo, erráticos
e destituídos de efeitos como os espíritos do espiritismo.
E se não era urânio, o que era então? Cortei com uma pequena serra um
fragmento do metal (cortava-se sem dificuldade) e submeti-o à chama do bico de
Bunsen: aconteceu uma coisa pouco comum, da chama levantou-se um fio de
fumaça marrom, que se encaracolava em volutas. Num átimo de voluptuosa
nostalgia, percebi se reacenderem em mim os reflexos do analista, ressequidos
de longa inércia: busquei uma cápsula de porcelana esmaltada, enchi-a de água,
coloquei-a em cima da chama fuliginosa e vi se formar no fundo um depósito
marrom, velho conhecido meu. Borrifei nesse depósito uma gotinha de solução
de nitrato de prata, e a cor negro-azulada que se desenvolveu me confirmou que
o metal era o cádmio, o distante filho de Cadmo, o semeador dos dentes do
dragão.
Não tinha muito interesse em saber onde Bonino achara o cádmio:
provavelmente na Seção de Cádmio de sua fábrica. Mais interessante, apesar de
indecifrável, era a origem de sua história: profundamente sua, porque, como
soube em seguida, narrava-a frequentemente e a todos, mas sem ratificá-la com
a apresentação da matéria, e com particularidades cada vez mais coloridas e
menos dignas de crédito no curso dos anos. Era claramente impossível
desenredar a questão, mas em Bonino invejei, eu, envolvido na rede do SAC, dos
deveres sociais e empresariais e da verossimilhança, a liberdade sem limites de
invenção, própria de quem rompeu a barreira e já se revela capaz de construir
para si o passado que mais lhe agrada, vestir as roupas do herói e voar como o
Super-Homem através dos séculos, dos meridianos e dos paralelos.

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1 Partidários do general Pietro Badoglio (1871-1956), presidente do Conselho
após a queda de Mussolini em setembro de 1943.
Prata
Uma circular mimeografada, geralmente, joga-se no cesto de lixo sem ler, mas
logo me dei conta de que aquela não merecia o destino comum: era o convite
para o jantar comemorativo dos vinte e cinco anos de formatura. A linguagem me
deu o que pensar: o destinatário era tratado por “você” e o autor lançava mão de
termos estudantis cediços, como se aqueles vinte e cinco anos não tivessem
passado. Com involuntária comicidade, o texto concluía dizendo: “...numa
atmosfera de renovada camaradagem, celebraremos nossas bodas de prata com
a Química, narrando uns aos outros os eventos químicos da nossa vida
quotidiana”. Quais eventos químicos? A precipitação do colesterol nas nossas
artérias cinquentonas? O equilíbrio da membrana das nossas membranas?
Quem podia ser o autor? Passei em revista mentalmente os vinte e cinco ou
trinta colegas sobreviventes: refiro-me não só àqueles ainda vivos, mas também
aos que não tinham desaparecido nas vicissitudes de outras atividades
profissionais. Antes de tudo, nem pensar nas colegas: todas mães de família,
todas inativas, mais nenhuma na posse de “eventos” a serem contados. Nem
pensar nos arrivistas, nos bem-postos, nos protegidos, nos ex-protegidos
transformados em protetores: esta é uma gente que não aprecia os confrontos.
Nem pensar nos frustrados, que também não gostam de confrontos: numa
reunião assim o náufrago talvez apareça, mas para pedir compaixão ou ajuda,
dificilmente toma a iniciativa de organizá-la. Do limitado círculo que se delineava
surgiu um nome provável: Cerrato, o honesto, inábil e solícito Cerrato, a quem a
vida dera tão pouco e que tão pouco dera à vida. Encontrara-o eventualmente e
fugazmente depois da guerra e era um inerte, não um náufrago: é náufrago
quem parte e afunda, quem se propõe uma meta, não a alcança e sofre com isso;
Cerrato não se propusera a nada, não se expusera a nada, permanecera bem
trancado em casa, e certamente devia estar preso nos “anos dourados” dos
estudos, porque todos os seus outros anos foram de chumbo.
Diante da perspetiva daquele jantar experimentava uma reação dúplice: não
era um acontecimento neutro, atraía-me e repelia-me ao mesmo tempo, como um
ímã trazido perto de uma bússola. Queria ir e não queria ir: mas, pensando bem,
as motivações para ambas as decisões não eram muito nobres. Queria ir porque
me lisonjeava a ideia de me comparar e me sentir mais disponível do que os
outros, menos ligado ao dinheiro e aos ídolos, menos logrado, menos dilacerado.
Não queria ir porque não queria ter a idade dos outros, isto é, a minha idade:
não queria ver rugas, cabelos brancos, memento mori. Não queria nos contar
nem contar os ausentes, e menos ainda fazer cálculos.
Contudo, Cerrato me atraía a curiosidade. Algumas vezes tínhamos estudado
juntos: sério e destituído de indulgência em relação a si mesmo, estudava sem
genialidade e sem alegria (parecia não conhecer a alegria), ultrapassando
sucessivamente os capítulos dos textos como um mineiro na galeria. Não se
comprometera com o fascismo e reagira bem ao reativo das leis raciais. Fora um
rapaz opaco mas seguro, em quem se podia confiar, e a experiência ensina que
justamente isso, a confiabilidade, é a virtude mais constante, aquela que não se
conquista nem se perde com os anos. Nasce-se digno de confiança, com o rosto
aberto e os olhos firmes, e assim se vai pela vida. Quem nasce torto e frouxo
permanece desse jeito: aquele que te mente aos seis anos te mente aos dezesseis
e aos sessenta. O fenômeno é notável e explica como certas amizades e
matrimônios sobrevivem por muitas décadas, a despeito do hábito, do tédio e do
desgaste dos discursos: interessava-me verificar isso a propósito de Cerrato.
Paguei a cota e comuniquei ao anônimo comitê que tomaria parte do jantar.

Sua figura não mudara muito: era alto, ossudo, oliváceo; os cabelos ainda
fartos, a barba bem-feita, a testa, o nariz e o queixo rudes e como que mal
delineados. Agora, como então, movia-se desajeitadamente, com aqueles gestos
bruscos e ao mesmo tempo incertos que no laboratório o tinham transformado
num proverbial destruidor dos instrumentos de vidro.
Como é de praxe, dedicamos a uma mútua troca de informações os primeiros
minutos de conversa. Soube que se casara e não tivera filhos, e simultaneamente
compreendi que este não era um tema agradável. Soube que trabalhara sempre
em química fotográfica: dez anos na Itália, quatro na Alemanha, depois
novamente na Itália. Era ele, decerto, o promotor do jantar e o autor do convite.
Não tinha vergonha de admitir: se lhe permitisse uma metáfora profissional, os
anos de estudo decorreram em technicolor, o resto em preto e branco. Quanto
aos “eventos” (evitei reparar-lhe o ridículo da expressão), realmente o
interessavam. Sua carreira fora rica de eventos, ainda que geralmente apenas
em preto e branco: e a minha, também? Por certo, confirmei: eventos químicos e
não químicos, mas nos últimos anos os químicos tinham prevalecido, por
frequência e intensidade. Te dão o senso do nicht dazu gewachsen, da
impotência, da insuficiência, não é verdade? Te dão a impressão de combater
uma guerra interminável contra um exército adversário obtuso e lerdo, mas
tremendo pelo número e o peso; de perder todas as batalhas, uma depois da
outra, um ano depois do outro; e deves te contentar, para aliviar o orgulho ferido,
com aquelas poucas ocasiões em que entrevês uma brecha nas fileiras do
inimigo, quando então ousas e desferes um golpe rápido e isolado.
Cerrato também conhecia esta guerrilha: ele também experimentara a
insuficiência da nossa preparação e a necessidade de superá-la com a fortuna, a
intuição, os estratagemas e uma torrente de paciência. Disse-lhe buscar eventos,
meus e de outros, que pretendia expor num livro para ver se conseguia sugerir
aos profanos o sabor forte e amargo do nosso ofício, que é afinal um caso
particular, uma versão mais denodada do ofício de viver. Disse-lhe não me
parecer justo que o mundo soubesse tudo sobre como vive o médico, a prostituta,
o marinheiro, o assassino, a condessa, o romano antigo, o conjurado e o
polinésio, e nada sobre como vivemos nós, os transformadores da matéria; mas
que nesse livro deixaria deliberadamente à parte a grande química, a química
triunfal das instalações colossais e das manipulações vertiginosas, porque esta é
obra coletiva e, portanto, anônima. Me interessavam mais as histórias da
química solitária, inerme e pedestre, feita à medida do homem, que com poucas
exceções fora a minha: mas também a química dos fundadores, que não
trabalhavam em equipe e sim sozinhos, no meio da indiferença de seu tempo, em
geral sem ganhos, e enfrentavam a matéria sem ajuda, com o cérebro e as mãos,
com a razão e a fantasia.
Quis saber se lhe agradaria contribuir para esse livro: em caso afirmativo, que
me contasse uma história, e, se me fosse permitido dar uma sugestão, devia ser
uma história como as nossas, em que nos enfiamos no escuro durante uma
semana ou um mês, parece que será escuro para sempre, e dá vontade de largar
tudo e trocar de profissão; depois se descobre um clarão, vai-se às apalpadelas
até esse ponto, a luz cresce, e enfim a ordem sucede ao caos. Cerrato me disse
seriamente que, com efeito, algumas vezes as coisas aconteciam assim e que
tentaria me satisfazer; mas que em geral se fazia sempre escuro, o clarão não se
via, esbarrava-se a cabeça mais e mais vezes no teto cada vez mais baixo, e se
terminava por sair do túnel de quatro e para trás, um pouco mais velho que
quando se entrara. Enquanto ele interrogava a memória, com o olhar virado para
o teto presunçosamente pintado do restaurante, lancei-lhe uma mirada rápida e
vi que envelhecera bem, sem se deformar, antes crescendo e amadurecendo:
permanecera sério como outrora, fechado ao frescor da malícia e do riso, mas
isso não mais ofendia, aceitava-se melhor num cinquentão que num rapaz de
vinte anos. Contou-me uma história de prata.

— Vou lhe contar o essencial: os enfeites você que os ponha, por exemplo
como vive um italiano na Alemanha; aliás, você também andou por lá. Eu estava
na chefia da seção onde se fabrica filme para radiografia. Sabe alguma coisa
sobre isto? Não importa: é um material pouco sensível, que não dá amolação
(amolação e sensibilidade são proporcionais); assim, também a seção era bem
tranquila. Mas observe que, se uma película funciona mal na mão de amadores,
nove vezes em dez o usuário pensa que a culpa é dele; quando não, no máximo
manda algum xingamento, que nem chega por insuficiência de endereço. Mas se
uma radiografia sai mal, talvez depois da ingestão de bário ou da injeção de
contraste através da bexiga, e logo sai mal uma segunda, e toda a série de
chapas... pois bem, então a coisa não fica nisso: o escândalo começa a brotar,
tomando corpo enquanto se eleva, e cai em cima da gente como uma desgraça.
Tudo isso meu antecessor tinha me explicado com o talento didático dos
alemães, para justificar aos meus olhos o ritual fantástico de limpeza que se deve
observar na seção do princípio ao fim dos trabalhos. Não sei se interessa a você:
basta pensar que...

Interrompi-o: a cautela minuciosa, a limpeza maníaca, a pureza extremada


são coisas que me fazem sofrer. Bem sei que em alguns casos se trata de
medidas necessárias, mas sei também que, mais frequentemente, a mania
prevalece sobre o bom-senso e que ao lado de cinco normas ou interdições
sensatas se acumulam dez insensatas, inúteis, que ninguém ousa cancelar
apenas por preguiça mental, por superstição ou por medo patológico de
complicações: quando não ocorre precisamente como no serviço militar, em que
o regulamento serve de biombo para uma disciplina repressiva. Cerrato me
serviu uma bebida: sua mão pesada se dirigiu hesitante até o gargalo da garrafa,
como se esta estivesse se mexendo na mesa para se esquivar dele; depois,
inclinou-a até meu copo, fazendo-a bater nele várias vezes. Confirmou-me que
frequentemente as coisas eram assim mesmo: por exemplo, às operárias da
seção de que me falava se proibia usar pó de arroz, mas certa vez caíra da bolsa
de uma delas o estojo, que se abriu e deixou pelo ar uma boa quantidade de pó; a
produção daquele dia foi controlada com rigor particular, mas tudo continuava
certo. Pois mesmo assim a proibição do pó de arroz permaneceu.
— ...mas um detalhe é preciso contar, senão não se compreende a história.
Existe a religião do cabelo (que é justificada, posso assegurar): a seção é
mantida sempre sob pressão levemente aumentada e o ar que se bombeia ali
dentro é cuidadosamente filtrado. Usa-se sobre a roupa um macacão especial, e
uma touca nos cabelos: todas as toucas devem ser lavadas todos os dias, para
eliminar os pelos eventualmente presentes. Sapatos e meias se tiram na entrada,
substituídos por calçados antipó.
Este, então, é o cenário. Devo acrescentar que em cinco ou seis anos não
tinha havido grandes incidentes: alguns protestos isolados de um ou outro
hospital em função de sensibilidade alterada, mas era quase sempre material já
fora do prazo de validade. Os problemas, como você sabe, não surgem a galope,
como os hunos, mas em silêncio, às escondidas, como as epidemias. Tudo
começou com uma carta registrada de um centro de diagnósticos em Viena;
vinha escrita em termos muito educados, mais no tom de observação que de
protesto, e em anexo estava a radiografia em questão: normal quanto à
granulosidade da emulsão e ao contraste, mas coalhada de pequenas manchas
brancas, alongadas, do tamanho de um grão de feijão. Respondemos com uma
carta pesarosa, na qual pedíamos desculpas pelo lamentável acontecimento etc.,
mas depois do primeiro soldado morto de peste é melhor não ter ilusões: peste é
peste, não adianta fazer como o avestruz. Na semana seguinte havia mais duas
cartas: uma vinha de Liège e mencionava danos a indenizar, e a outra da União
Soviética, não lembro mais (talvez por autocensura) a complicada sigla da
empresa que a expedira. Quando foi traduzida, todos ficamos de cabelo em pé. O
problema, naturalmente, era o mesmo, o das manchas em forma de feijão, e a
carta, pesadíssima: falava-se de três operações comerciais que tiveram de ser
adiadas, de oportunidades perdidas, de grandes quantidades de filme recusadas,
de uma perícia e de uma controvérsia internacional junto ao tribunal de não sei
onde; ordenava-se que mandássemos imediatamente um especialista.
Nesses casos busca-se ao menos botar uma tranca na porteira depois que uma
parte das vacas foi para o brejo, mas nem sempre se consegue. Claro que todo o
filme havia passado bem pelo controle de saída: era, pois, um defeito que se
manifestava mais tarde, durante o armazenamento no laboratório ou no cliente,
ou ainda durante o transporte. O Diretor me chamou para prestar contas;
discutiu o caso comigo muito polidamente durante duas horas, mas parecia me
escalpelar lentamente, metodicamente, tirando prazer disso.
Entramos em contato com o laboratório de controle e voltamos a inspecionar,
lote a lote, todo o filme armazenado. O mais recente, de dois meses para cá,
estava em ordem. No restante o defeito foi identificado, mas não
generalizadamente: havia centenas de lotes, e cerca de um sexto apresentava o
inconveniente dos feijões. Meu substituto imediato, um jovem químico nem tão
brilhante assim, fez uma observação curiosa: os lotes defeituosos se sucediam
com certa regularidade, cinco bons e um ruim. Pareceu-me uma pista, e tentei
segui-la: e era justamente assim, estava danificado quase exclusivamente o filme
fabricado às quartas-feiras.
Naturalmente, você sabe também que as bombas de efeito retardado são de
longe as piores. Enquanto se buscam as causas, é preciso apesar de tudo
continuar a produzir: mas como estar seguro de que a causa, ou as causas, não
permanecem em ação, e o material que se produz não prenuncia outros males?
Pode-se mantê-lo em quarentena por dois meses e aí voltar a inspecioná-lo: mas
o que dizer aos depósitos do mundo todo, que não veem chegar nada? E os juros
passivos? E o nome, o Bom Nome, a Unbestrittener Ruf? E depois tem aquela
outra complicação: cada mudança feita na composição ou na tecnologia precisa
de dois meses para se saber se serve ou não serve, se elimina o defeito ou o
acentua.
Eu me sentia inocente, claro; havia respeitado todas as regras, sem me
permitir nenhuma indulgência. Antes e depois de mim, todos os outros se
sentiam também inocentes: aqueles que aprovaram as matérias-primas, que
prepararam e controlaram a emulsão de brometo de prata, aqueles que
confeccionaram, embalaram e armazenaram os pacotes de filmes. Sentia-me
inocente, mas não era: era culpado por definição, porque um chefe de seção
responde pela seção e porque se há erro há pecado, e se há pecado há um
pecador. É justamente como o pecado original: você não fez nada, mas é culpado
e tem de pagar. Não com dinheiro, mas pior: você perde o sono, o apetite, ganha
uma úlcera ou um eczema, e dá um passo respeitável para a neurose empresarial
definitiva.
Enquanto continuavam a chegar cartas e telefonemas de protesto, eu me
perdia ruminando sobre aquele ponto das quartas-feiras: algum significado tinha
que ter. Na quarta-feira à noite, o vigilante de plantão não me agradava, tinha
uma cicatriz no queixo e cara de nazista. Não sabia se falava ou não sobre isso
com o Diretor: tentar descarregar a culpa nos outros é sempre má política. Então
mandei buscar a folha de pagamento e vi que o nazista só trabalhava conosco há
três meses, ao passo que o problema dos feijões começara a se manifestar no
filme fabricado dez meses antes. O que acontecera de extraordinário há dez
meses?
Há mais ou menos dez meses tinha sido aceito, depois de controles rigorosos,
um novo fornecedor do papel negro que se usa para proteger os filmes da luz:
mas o material defeituoso estava embalado promiscuamente em papel negro
proveniente tanto deste fornecedor quanto do antigo. Também há dez meses
(nove, para ser exato) fora admitido um grupo de operárias turcas; entrevistei-as
uma a uma, para grande espanto delas: queria verificar se às quartas-feiras, ou
às terças de noite, faziam alguma coisa fora do habitual. Tomavam banho? Ou,
então, não tomavam banho? Usavam algum cosmético especial? Iam dançar e
suavam mais que o normal? Não tive coragem de perguntar-lhes se na terça-feira
à noite faziam sexo: de qualquer forma, nem diretamente nem através do
intérprete consegui obter coisa alguma.
Como pode imaginar, nesse meio tempo o assunto se espalhara por toda a
fábrica, e me olhavam com ar estranho, até porque eu era o único chefe de seção
italiano e podia adivinhar muito bem os comentários que deviam trocar quando
virava as costas. A ajuda decisiva me veio de um dos porteiros, que falava um
pouco de italiano porque havia combatido na Itália: e até tinha caído prisioneiro
do pessoal da Resistência na região de Biella, e depois fora trocado por alguém.
Não guardava rancor, era loquaz e falava um pouco de tudo, ao deus-dará, sem
jamais concluir nada: mas, veja só, foi justamente esta sua conversa fiada que
serviu como o fio de Ariadne. Um dia me disse que era pescador, mas que há
quase um ano não se pescava um peixe no riacho ali perto: desde que, cinco ou
seis quilômetros mais acima, haviam montado um curtume. Depois disse que a
água se tornava marrom em certos dias. Naquele momento não dei atenção a
essas observações, mas me lembrei delas poucos dias depois, quando, da janela
do meu quarto no alojamento, vi a camionete que trazia os macacões da
lavanderia. Informei-me: o curtume havia começado a operar dez meses antes, e
a lavanderia lavava os macacões justamente na água do riacho em que o
pescador não conseguia mais pescar; mas filtravam a água e a faziam passar por
um depurador iônico. Lavavam os macacões durante o dia, enxugavam à noite
num secador e voltavam a entregá-los de manhã cedo, antes da sirene.
Fui ao curtume: queria saber quando, onde, com que ritmo, em que dias
esvaziavam os tanques. Receberam-me muito mal, mas voltei dois dias depois
com o médico do Departamento de Higiene; pois bem, o maior dos tanques era
esvaziado semanalmente, na noite entre a segunda e a terça-feira! Não quiseram
me dizer o que continha, mas, você bem sabe, as substâncias orgânicas usadas
para curtir são polifenóis, e não há resina iônica que os detenha. Mesmo sem ser
do ramo, você pode também imaginar o que é capaz de fazer um polifenol ao
brometo de prata. Obtive uma amostra da substância usada, fui ao laboratório
experimental e tentei atomizar uma solução de uma parte por dez mil na câmara
escura em que estava exposta uma amostra dos filmes para radiografia. O efeito
se viu poucos dias depois: a sensibilidade do filme literalmente desaparecera. O
diretor do laboratório não acreditava no que via: disse-me que jamais havia visto
um inibidor tão poderoso assim. Fizemos a prova com soluções progressivamente
mais diluídas, como fazem os homeopatas: com soluções em torno de uma parte
por milhão se obtinham as manchas em forma de feijão, mas que só apareciam
com dois meses de repouso. O efeito-feijão, o Bohneffekt, tinha sido plenamente
reproduzido: afinal de contas, viu-se que para provocar uma mancha bastavam
alguns milhares de moléculas de polifenol, absorvidos pelas fibras de um
macacão durante a lavagem e levadas em voo do macacão até o filme por um
pequeno pelo invisível.

Os outros comensais ao nosso redor conversavam barulhentamente de filhos,


férias e salários; terminamos por nos confinar no bar, onde pouco a pouco nos
tornamos sentimentais e prometemos um ao outro renovar uma amizade que,
com efeito, jamais existira entre nós. Ficaríamos em contato, cada qual
recolheria para o outro novas histórias como esta, em que a matéria estólida
manifesta uma astúcia voltada para o mal, para a obstrução, como que se
rebelando contra a ordem cara ao homem: à maneira dos párias temerários, mais
sequiosos da ruína alheia que do próprio triunfo, que nos romances surgem dos
confins da terra para liquidar a aventura dos heróis positivos.
Vanádio
Um verniz é uma substância instável por definição: com efeito, num certo
ponto da carreira deve se transformar de líquido em sólido. É necessário que isso
ocorra no momento e no lugar certo. O caso oposto pode ser desagradável ou
dramático: pode suceder que um verniz solidifique (nós dizemos brutalmente:
“vire farelo”) durante sua estada nas lojas, e então se joga a mercadoria fora; ou
que solidifique a resina de base durante a síntese, num reator de dez ou vinte
toneladas, o que pode acabar em tragédia; ou, antes, que o verniz não solidifique
de modo algum, nem mesmo depois da aplicação, e então riem nas nossas costas,
porque um verniz que não “seca” é como um fuzil que não dispara ou um touro
que não emprenha a vaca.
No processo de solidificação toma parte em muitos casos o oxigênio do ar.
Entre as diversas ações, vitais ou destrutivas, que o oxigênio sabe cumprir, a nós,
especialistas em verniz, interessa sobretudo a sua capacidade de reagir com
certas moléculas pequenas, como aquelas de determinados óleos, e de criar
pontes entre elas, transformando-as num retículo compacto e, portanto, sólido: é
assim que, por exemplo, “seca” ao ar o óleo de linhaça.
Havíamos importado uma quantidade de resina para vernizes, justamente
uma dessas resinas que solidificam em temperatura ordinária por simples
exposição ao ar livre, e estávamos preocupados. Controlada isoladamente, a
resina secava de modo normal, mas depois de ter sido moída com um certo
(insubstituível) tipo de negro de fumo, a capacidade de secar se atenuava até
desaparecer; já tínhamos posto à parte diversas toneladas de esmalte negro que,
a despeito de todas as retificações tentadas, depois de aplicado permanecia
pegajoso indefinidamente, como um desses lúgubres papéis para apanhar
mosquitos.
Em casos como este, antes de acusar é preciso ir com cautela. O fornecedor
era a W., grande e respeitável indústria alemã, uma das ramificações em que
após a guerra os Aliados desmembraram a onipotente IG-Farben: gente assim,
antes de se reconhecer culpada, joga no prato da balança todo o peso do próprio
prestígio e toda a capacidade de procrastinar. Mas não havia meio de evitar a
controvérsia; as outras quantidades de resina se comportavam bem com aquela
mesma remessa de negro de fumo, a resina era de um tipo especial que só a W.
produzia, estávamos vinculados por contrato e devíamos absolutamente
continuar a fornecer aquele esmalte negro, sem perder prazos.
Escrevi uma carta de protesto educada, expondo os termos da questão, e
poucos dias depois chegou a resposta: longa e pedante, aconselhava artifícios
óbvios que já usáramos sem resultado e continha uma exposição supérflua e
deliberadamente confusa sobre o mecanismo de oxidação da resina; ignorava a
nossa pressa e sobre o ponto essencial apenas dizia que estavam em curso os
controles adequados. Não restava nada a fazer senão encomendar logo uma nova
remessa, recomendando à W. que verificasse com particular cuidado o
comportamento da resina com aquele tipo de negro de fumo.
Junto com a confirmação desta última encomenda veio uma segunda carta,
quase do tamanho da primeira, assinada pelo mesmo Doktor L. Müller. Um pouco
mais pertinente que a primeira, reconhecia (com muitas cautelas e reservas) a
justeza da nossa queixa e continha um conselho menos óbvio que os
precedentes: ganz unerwarteterweise, isto é, de modo inteiramente inesperado,
os gnomos do seu laboratório descobriram que a remessa contestada voltava aos
eixos com a adição de 0,1 por cento de naftenato de vanádio — um aditivo do
qual, até aquele momento, jamais se ouvira falar no mundo dos vernizes. O
desconhecido doutor Müller nos convidava a verificar imediatamente a
descoberta; se o efeito se confirmasse, a observação poderia evitar a ambas as
partes os aborrecimentos e as incógnitas de uma controvérsia internacional e de
uma nova exportação.
Müller. Havia um Müller na minha encarnação anterior, mas Müller é um
nome comuníssimo na Alemanha, como Molinari na Itália, de que é o exato
equivalente. Por que continuar a pensar sobre isso? No entanto, relendo as duas
cartas com tortuosos períodos atulhados de tecnicismos, não conseguia calar a
dúvida, uma dessas que não se deixam pôr de lado e te roem por dentro como
caruncho. Mas tira isso da cabeça, os Müller na Alemanha serão duzentos mil,
deixa estar e pensa no verniz a ser retificado.
Subitamente, porém, passou-me pelos olhos uma particularidade da última
carta que me tinha escapado: não se tratava de um erro de datilografia, repetia-
se duas vezes, estava realmente escrito naptenat, não naphtenat, como deveria.
Ora, dos encontros tidos naquele mundo já agora remoto eu conservo
lembranças de uma precisão patológica: pois bem, também aquele outro Müller,
num laboratório não esquecido, cheio de gelo, de esperança e de medo, dizia
beta-Naptylamin em vez de beta-Naphthylamim.

Os russos estavam às portas, duas ou três vezes por dia apareciam os aviões
aliados para abalar a fábrica de Buna:1 não ficava inteiro nenhum recipiente de
vidro, faltava água, vapor, energia elétrica; mas a ordem era começar a produzir
a borracha Buna, e os alemães não discutem ordens.
Eu estava num laboratório com outros dois prisioneiros especialistas,
semelhantes aos escravos instruídos que os romanos ricos importavam da
Grécia. Trabalhar era não só impossível como também inútil: nosso tempo se
consumia quase inteiramente em desmontar os aparelhos a cada alarme aéreo e
montá-los ao fim do alarme. Mas, claro, ordens não se discutem, e de vez em
quando algum inspetor abria caminho até nós através das ruínas e da neve, para
verificar se o trabalho do laboratório seguia de acordo com as prescrições. Às
vezes aparecia um SS com cara de pedra, outras vezes algum velho das milícias
locais, amedrontado feito um rato, outras vezes ainda um civil. O civil que
aparecia mais frequentemente se chamava Doktor Müller.
Devia ser bem importante, porque todos o saudavam em primeiro lugar. Era
um homem alto e corpulento, dos seus quarenta anos, com aspecto antes
grosseiro que refinado; comigo havia falado apenas três vezes, e todas as três
com uma timidez rara naquele lugar, como se se envergonhasse de alguma coisa.
A primeira vez, só sobre questões de trabalho (a dosagem da Naptylamin,
precisamente); a segunda vez, perguntou-me por que tinha a barba tão crescida,
ao que respondi que nenhum de nós tinha navalha ou, antes, nem sequer um
lenço, e que a barba nos era cortada de ofício todas as segundas-feiras; a
terceira vez, deu-me um bilhete, escrito à máquina com toda clareza, que me
autorizava a ser barbeado também às quintas-feiras e a buscar no
Effektenmagazin um par de sapatos de couro; e me perguntou, tratando-me de
“senhor”: “Por que tem um ar tão inquieto?”. Eu, que naquele tempo pensava em
alemão, concluí para mim mesmo: Der Mann hat keine Abnung, este aí não tem
noção de nada.
Primeiro o dever. Apressei-me em buscar entre os nossos fornecedores
habituais uma amostra de naftenato de vanádio, e me dei conta de que não era
fácil: o produto não se fabricava normalmente, preparava-se em pequenas
quantidades e apenas sob encomenda; providenciei a encomenda.
O retorno daquele “pt” me precipitara numa excitação violenta. Ver-me a
ajustar contas com um dos “outros”, de homem para homem, tinha sido o meu
desejo mais vivo e permanente no pós-Lager. Satisfizera-me só em parte com as
cartas dos meus leitores alemães: não me bastavam aquelas honestas e
genéricas declarações de arrependimento e solidariedade da parte de pessoas
nunca vistas, cuja outra face não conhecia e que, provavelmente, só estavam
envolvidas sentimentalmente. O encontro que eu esperava, e com o qual tão
intensamente sonhava (em alemão) à noite, era um encontro com um daqueles
de lá, que dispuseram de nós, que não nos olharam nos olhos, como se nós não
tivéssemos olhos. Não por vingança; não sou um Conde de Montecristo. Só para
pôr as coisas na sua devida proporção, assim como para dizer: “E então?”. Se
este Müller era o meu Müller, não seria o antagonista perfeito, porque de algum
modo, quem sabe só por um momento, tivera piedade ou mesmo tão-somente um
rudimento de solidariedade profissional. Talvez menos ainda: talvez apenas
estranhasse o fato de que aquele estranho híbrido de colega e de instrumento,
que no entanto era também um químico, frequentasse um laboratório sem o
Anstand, o decoro, que o laboratório requer; mas os outros em torno dele não
sentiram nem mesmo isso. Não seria o antagonista perfeito: mas, como se sabe,
a perfeição pertence às coisas que se narram, não às que se vivem.
Entrei em contato com o representante da W., com quem tinha relações de
confiança, e pedi-lhe que investigasse com discrição o doutor Müller: que idade
tinha? Qual aspecto? Onde estivera durante a guerra? A resposta não demorou
muito: a idade e o aspecto coincidiam, o homem havia trabalhado primeiro em
Schkopau, para se adestrar na tecnologia da borracha, e depois na fábrica de
Buna, nas imediações de Auschwitz. Consegui seu endereço e mandei-lhe, em
caráter privado, um exemplar da edição alemã de É isto um homem?, com uma
carta de acompanhamento em que lhe perguntava se era verdadeiramente ele o
Müller de Auschwitz e se se recordava dos “três homens do laboratório”; enfim,
que perdoasse a brusca intromissão e o surgimento a partir do nada, mas eu era
um dos três, além de ser o cliente preocupado com a resina que não secava bem.
Fiquei na expetativa da resposta, enquanto no plano das empresas
continuava, como a oscilação de um grande pêndulo vagaroso, a troca de cartas
químico-burocráticas a propósito do vanádio italiano que não se saía tão bem
quanto o alemão: tenham, pois, a gentileza de nos mandar com urgência as
especificações do produto, e de nos enviar por via aérea 50 kg, cujo preço
queiram descontar etc. No plano técnico a questão parecia bem encaminhada,
mas não estava claro o destino do lote defeituoso da resina: mantê-lo conosco
com um desconto no preço, reexportá-lo à custa da W. ou pedir uma arbitragem;
nesse meio tempo, como é costume, ameaçávamo-nos reciprocamente com o
recurso às vias legais, gerichtlich vorzugeben.
A resposta “privada” continuava se fazendo esperar, o que era quase tão
irritante e enervante quanto a disputa empresarial. O que sabia do meu homem?
Nada: muito provavelmente havia cancelado tudo, deliberadamente ou não; a
minha carta e o meu livro constituíam para ele uma intrusão deseducada e
aborrecida, um convite inábil a remexer em sedimento já então consolidado, um
atentado ao Anstand. Não responderia nunca. Uma pena, não era um alemão
perfeito, mas existem alemães perfeitos? Ou judeus perfeitos? São abstrações: a
passagem do geral ao particular sempre reserva surpresas estimulantes, quando
o partner destituído de contornos, em estado larvar, se define na tua frente,
pouco a pouco ou de modo súbito, e se torna o Mitmensch, o co-homem, com
toda a sua espessura, os tiques, as anomalias e os anacolutos. Já se tinham
passado quase dois meses: a resposta não ia chegar nunca. Uma pena.
Chegou, com data de 2 de março de 1967, em elegante papel timbrado de
caracteres vagamente góticos. Era uma carta de abertura, breve e reservada.
Sim, o Müller de Buna era ele mesmo. Tinha lido meu livro, reconhecido com
emoção pessoas e lugares; alegrava-se por eu ter sobrevivido; pedia-me notícias
dos outros dois “homens do laboratório”, e até aqui não havia nada estranho,
porque o livro dava-lhes o nome: mas perguntava também por Goldbaum, que eu
não havia nomeado. Acrescentava ter lido, por ocasião da minha carta, suas
notas daquele período: de bom grado iria comentá-las comigo num desejável
encontro pessoal, “útil tanto para mim quanto para o senhor, e necessário com
vistas à superação daquele terrível passado” (im Sinne der Beivältigung der so
furchtbaren Vergangenheit). Declarava enfim que, entre todos os prisioneiros
que tinha encontrado em Auschwitz, eu era o que lhe fizera a impressão mais
forte e duradoura, mas isso bem podia ser uma lisonja: pelo tom da carta, e
especialmente por aquela frase a respeito da "superação”, parecia que o homem
esperava alguma coisa de mim.
Agora me cabia responder, e me sentia embaraçado. Eis que a tentativa fora
bem-sucedida, e o adversário, laçado; estava diante de mim, era quase um colega
na função dos vernizes, escrevia como eu em papel timbrado e até se lembrava
de Goldbaum. Ainda estava bem desfocado, mas claro que queria de mim algo
como uma absolvição, porque ele tinha um passado a superar, eu não: eu queria
dele apenas um desconto na fatura de uma resina com problemas. A situação era
interessante, mas atípica: coincidia só em parte com a do réu diante do juiz.
Em primeiro lugar: em que língua lhe responderia? Por certo, não em alemão;
ia cometer erros ridículos, que o meu papel não permitia. Melhor combater
sempre no próprio campo. Os dois do laboratório tinham morrido, não sabia onde
ou como; morrera também Goldbaum, de frio e de fome, durante a marcha de
retirada. De mim, o essencial ele conhecia através do livro e da correspondência
comercial relativa ao vanádio.
Eu tinha muitas perguntas a lhe propor: perguntas demais, e por demais
pesadas para ele e para mim. Por que Auschwitz? Por que Pannwitz? Por que as
crianças na câmara de gás? Mas pressentia que ainda não chegara o momento
de superar certos limites, e perguntei-lhe apenas se aceitava os juízos, implícitos
e explícitos, do meu livro; se considerava que a IG-Farben admitira
espontaneamente mão de obra escrava; se conhecia então as “instalações” de
Auschwitz, que engoliam dez mil vidas por dia a sete quilômetros das instalações
para a borracha Buna. E por fim, como ele citava suas “notas daquele período”,
poderia me mandar uma cópia delas?
Não falei do “desejável encontro” porque o temia. Inútil buscar eufemismos,
falar de pudor, desprezo, reserva. Medo era a palavra: como não me sentia um
Montecristo, também não me sentia um Horácio-Curiácio; não me julgava capaz
de representar os mortos de Auschwitz, assim como não me parecia sensato
identificar em Müller o representante dos carniceiros. Eu me conheço: não
possuo vivacidade polêmica, o adversário me distrai, interessa-me mais como
homem do que como adversário, fico a ouvi-lo e corro o risco de nele acreditar; o
desdém e o juízo correto me ocorrem depois, quando desço as escadas e já não
servem mais. Convinha-me continuar a troca de cartas.
Quanto à pendência comercial, Müller me escreveu que os cinquenta quilos
tinham sido expedidos, que a W. confiava num acerto amigável etc. Quase
simultaneamente chegou-me em casa a carta que esperava: mas não era como a
esperava. Não era uma carta modelo, paradigmática: neste ponto, se essa
história fosse inventada, poderia se referir somente a dois tipos de carta; uma
carta humilde, calorosa, cristã, de alemão redimido; ou então altiva, soberba,
glacial, de nazista impenitente. Ora, essa história não é inventada, e a realidade
é sempre mais complexa que a invenção: menos arrumada, mais áspera, menos
arredondada. Raramente está contida num só plano.
A carta se estendia por oito páginas e trazia uma fotografia que me fez
estremecer. O rosto era aquele rosto: envelhecido e ao mesmo tempo retocado
por algum fotógrafo experiente; voltava a ouvi-lo pronunciar, acima de mim,
aquelas palavras de compaixão distraída e momentânea: “Por que tem um ar tão
inquieto?”.
Era visivelmente obra de um redator sem experiência: retórica, sincera pela
metade, cheia de digressões e de elogios exagerados, comovedora, pedante e
acanhada: desafiava qualquer juízo sumário e global.
Atribuía os fatos de Auschwitz ao Homem, sem diferenciar; deplorava-os e
consolava-se pensando em outros homens citados no meu livro, como Alberto e
Lorenzo, “contra os quais se dissipam as armas da noite”: a frase era minha, mas
repetida por ele soava hipócrita e desafinada. Contava a sua história: “arrastado
inicialmente pelo entusiasmo geral em face do regime de Hitler”, inscrevera-se
numa liga estudantil nacionalista, pouco depois obrigatoriamente incorporada às
SA; conseguira ser dispensado, e comentava que "portanto, até isto era
possível”. Durante a guerra fora mobilizado numa companhia antiaérea, e
somente então, diante das ruínas das cidades, experimentara “vergonha e
desprezo” pela guerra. Em maio de 1944, pudera (como eu!) fazer valer a
qualidade de químico e fora designado para a fábrica de Schkopau da IG-Farben,
da qual a fábrica de Auschwitz era uma cópia ampliada: em Schkopau era
encarregado de treinar para os trabalhos de laboratório um grupo de moças
ucranianas, que de fato eu tinha encontrado em Auschwitz e cuja estranha
familiaridade com o doutor Müller não conseguia explicar. Fora transferido para
Auschwitz, com as moças, apenas em novembro de 1944: o nome de Auschwitz,
naquele tempo, não tinha nenhum significado nem para ele nem para as pessoas
de seu círculo; todavia, por ocasião de sua chegada, tivera um rápido encontro
de apresentação com o diretor técnico (presumivelmente o engenheiro Faust), e
este o advertira de que “aos judeus de Buna deviam se atribuir somente os
trabalhos mais desqualificados, e a compaixão não se tolerava”.
Fora designado para servir sob a direção imediata do Doktor Pannwitz, aquele
que me havia submetido a um curioso “exame de Estado” para comprovar minha
capacidade profissional: Müller revelava ter uma péssima opinião do superior e
me informava que ele tinha morrido em 1946 de um tumor no cérebro. Era ele,
Müller, o responsável pela organização do laboratório de Buna; afirmava não ter
sabido nada daquele exame e ter sido ele mesmo quem nos escolhera, os três
especialistas, e a mim em especial; segundo esta informação, improvável mas
não impossível, eu lhe devia minha sobrevivência. No tocante a mim, afirmava
ter tido uma relação quase de amizade entre iguais; ter conversado a propósito
de problemas científicos; e ter meditado, naquela circunstância, sobre “os
preciosos valores humanos destruídos por outros homens, por brutalidade pura”.
Não apenas eu não recordava nenhuma conversa do gênero (e minha memória
daquele período, como disse, é ótima), como também só o fato de supô-la,
naquele quadro de desintegração, de desconfiança recíproca e de cansaço
mortal, era inteiramente fora da realidade e só explicável com um wishful
thinking ingênuo e póstumo; talvez se tratasse de uma circunstância que narrava
a muitos, sem se dar conta de que a única pessoa no mundo que não podia lhe
dar crédito era justamente eu. Talvez, de boa fé, houvesse construído para si um
passado conveniente. Não se lembrava dos dois detalhes da barba e dos sapatos,
mas sim de outros equivalentes, e a meu ver plausíveis. Soubera de minha
escarlatina e se preocupara com minha sobrevivência, especialmente ao tomar
conhecimento de que os prisioneiros eram evacuados a pé. Em 26 de janeiro de
1945, fora indicado pelas SS para o Volkssturm, o grupamento militar que
amontoava reformados, velhos e crianças, e que devia dificultar o avanço dos
soviéticos: afortunadamente fora salvo pelo diretor técnico acima mencionado,
que o autorizara a passar para a retaguarda.
À minha pergunta sobre a IG-Farben respondia decididamente que sim, ela
admitira prisioneiros, mas só para protegê-los: e até defendia a (ensandecida)
opinião de que toda a fábrica de Buna-Monowitz, oito quilômetros quadrados de
instalações gigantescas, tivesse sido construída com o intento de "proteger os
judeus e contribuir para que sobrevivessem”, e que a ordem de não lhes ter
compaixão fosse eine Tarnung, um disfarce. Nihil de Principe, nenhuma acusação
à IG-Farben: o meu homem ainda era empregado da W., sucessora dela, e não se
cospe no prato em que se come. Durante a breve passagem por Auschwitz, ele
“não havia tomado consciência de nenhum elemento que parecesse voltado para
a matança dos judeus”. Comportamento paradoxal, ofensivo, mas que não se
devia excluir: naquele tempo, por parte da maioria silenciosa alemã era técnica
comum buscar saber o menos possível, e assim não fazer perguntas.
Evidentemente, ele também não pedira explicações a ninguém, nem mesmo a si
próprio, embora nos dias claros as chamas do forno crematório fossem visíveis
da fábrica de Buna.
Pouco antes do colapso final, fora capturado pelos americanos e encerrado
por alguns dias num campo para prisioneiros de guerra que ele, com sarcasmo
involuntário, definia como “primitivamente equipado”: assim, como no tempo do
encontro no laboratório, Müller continuava sem ter keine Abnung, noção alguma,
no momento em que escrevia. Voltara para a família em fins de junho de 1945. O
conteúdo de suas notas, que eu quisera conhecer, era substancialmente este.
Percebia no meu livro uma superação do judaísmo, um cumprimento do
preceito cristão de amar aos próprios inimigos e um testemunho de fé no
Homem, e concluía insistindo na necessidade de um encontro, fosse na
Alemanha ou na Itália; estava pronto a me encontrar quando e onde eu
escolhesse: de preferência na Riviera. Dois dias depois, pelos canais da empresa
chegou uma carta da W. que, certamente não por acaso, trazia a mesma data da
longa carta privada, além da mesma assinatura; era uma carta conciliadora,
reconheciam o erro e se declaravam abertos a qualquer proposta. Davam a
entender que há males que vêm para o bem: o incidente tinha trazido à luz a
virtude do naftenato de vanádio, que dali por diante seria diretamente
incorporado à resina, fosse qual fosse o cliente.
O que fazer? O personagem Müller havia entpuppt, havia saído da crisálida,
estava nítido, dentro do foco. Nem infame nem herói: postas de lado a retórica e
as mentiras de boa ou má fé, revelava-se um exemplar humano tipicamente
cinzento, um dos não poucos portadores de um só olho no reino dos cegos.
Prestava-me uma honra imerecida me atribuindo a virtude de amar os inimigos:
não, apesar dos distantes privilégios que me reservara, e embora não tivesse
sido um inimigo no rigor da expressão, não me sentia capaz de amá-lo. Não o
amava nem desejava vê-lo, mesmo que por ele experimentasse respeito em
alguma medida: não é fácil ter um olho só. Não era um covarde, um surdo ou um
cínico, não se acomodara, fazia as contas com o passado e as contas não
fechavam: buscava liquidá-las, quem sabe trapaceando um pouco. O que mais se
podia exigir de um ex-SA? O confronto, que tantas vezes tive oportunidade de
fazer, com outros honestos alemães encontrados na praia ou na fábrica,
favorecia-o inteiramente: condenava o nazismo de modo tímido e perifrástico,
mas não buscava justificativas. Tentava um diálogo: tinha uma consciência e se
esforçava por aquietá-la. Na sua primeira carta falara de “superação do
passado”, Bewältigung der Vergangenheit: soube depois que é um estereótipo da
Alemanha de hoje, onde é universalmente entendido como “redenção diante do
nazismo”; mas a raiz walt aí contida também surge em palavras que denotam
“domínio”, “violência” e “estupro", e acredito que, traduzindo a expressão como
“distorção do passado” ou "violência feita ao passado”, não ficaríamos longe do
seu sentido profundo. Melhor, no entanto, refugiar-se nos lugares-comuns que
adotar a próspera obtusidade dos outros alemães: seus esforços de superação
eram desajeitados, um pouco ridículos, irritantes e tristes, mas decentes. E não
fora ele quem me arranjara um par de sapatos?
No primeiro domingo livre, cheio de perplexidade, dispus-me a preparar uma
resposta o mais possível sincera, equilibrada e digna. Fiz o rascunho: agradecia-
lhe ter me proporcionado entrar no laboratório; declarava-me disposto a perdoar
os inimigos, quem sabe inclusive amá-los, mas só quando mostrem sinais certos
de arrependimento, isto é, quando deixem de ser inimigos. No caso contrário, no
caso do inimigo que permanece como tal, que persevera na sua vontade de criar
sofrimento, é certo que não se deve perdoar: pode-se tentar recuperá-lo, pode-se
(deve-se!) discutir com ele, mas é nosso dever julgá-lo, não perdoá-lo. Quanto ao
juízo específico sobre seu comportamento, que Müller implicitamente requeria,
citava discretamente dois casos que conhecia de colegas seus, alemães, que em
relação a nós tinham feito algo mais corajoso do que o reivindicado por ele.
Admitia que nem todos nascem heróis e que num mundo em que todos fossem
como ele, isto é, honestos e inocentes, isso seria tolerável, mas tal mundo é
irreal. No mundo real, os agressores existem, constroem Auschwitz, e os
honestos e inocentes desbastam seu caminho; por isso, por Auschwitz deve
responder todo alemão, antes, todo homem, e depois de Auschwitz não é mais
lícita a inocência. Nada escrevi sobre o encontro na Riviera.
Naquela mesma noite Müller me telefonou da Alemanha. A ligação estava
ruim, e de resto já não me é mais fácil compreender o alemão pelo telefone: sua
voz soava cansada e como que quebrada, o tom agitado. Anunciava-me que por
ocasião do Pentecostes, em seis semanas, viria a Finale Ligure: podíamos nos
encontrar?
Apanhado de surpresa, respondi que sim; pedi-lhe que informasse
oportunamente os detalhes de sua chegada, e pus de lado o rascunho já agora
supérfluo.
Oito dias depois recebi da senhora Müller o anúncio da morte inesperada do
Doutor Lothar Müller, aos sessenta anos de idade.

________________
1 Isto é, borracha artificial. A palavra Buna compõe-se das sílabas iniciais de
butadieno e natrium, sódio.
Carbono
Neste ponto, o leitor terá percebido há algum tempo que este não é um
tratado de química: minha presunção não chega a tanto, ma voix est faible, et
même un peu profane. Nem sequer é uma autobiografia, senão nos limites
parciais e simbólicos em que é uma autobiografia todo escrito, antes, toda obra
humana: mas de algum modo é história. É, ou pretende ser, uma micro-história, a
história de um ofício e de suas derrotas, vitórias e misérias, tal como cada um de
nós deseja contar quando sente prestes a se encerrar o arco da própria carreira,
e a arte deixa de ser longa. Chegado a este ponto da vida, qual químico, diante
da tabela periódica ou dos índices monumentais do Beilstein e do Landolt, neles
não distingue, espalhados, os tristes andrajos ou os troféus do próprio passado
profissional? Basta folhear um tratado qualquer, e as memórias brotam
abundantes: entre nós há quem tenha indelevelmente ligado seu destino ao
bromo, ao propileno, ao grupo —NCO ou ao ácido glutâmico; e diante de um
tratado cada estudante de química devia estar consciente de que numa daquelas
páginas, talvez numa só linha, fórmula ou palavra, está inscrito seu futuro em
caracteres indecifráveis, mas que se tornarão claros “depois”: depois do sucesso,
do erro ou da culpa, da vitória ou da derrota. Todo químico não mais jovem,
reabrindo a página verhängnisvoll1 daquele mesmo tratado, se vê percorrido por
um sentimento de amor ou de desgosto, se alegra ou se desespera.
Assim sucede que cada elemento diga alguma coisa a alguém (a cada qual
uma coisa diferente), como os vales ou as praias visitadas na juventude: talvez se
deva abrir uma exceção para o carbono, porque diz tudo a todos, ou seja, não é
especifico, assim como Adão não é específico como antepassado; a não ser que
se encontre hoje (por que não?) o químico-eremita que dedicou sua vida à grafite
ou ao diamante. Porém, precisamente em relação ao carbono tenho uma velha
dívida, contraída em dias para mim decisivos. Ao carbono, elemento da vida, se
dirigia meu primeiro sonho literário, insistentemente sonhado numa hora e num
lugar em que a minha vida não valia muito: aí está, queria contar a história de
um átomo de carbono.
Será lícito falar de “um certo” átomo de carbono? Para o químico existem
algumas dúvidas, porque não se conhecem até hoje (1970) técnicas que
permitam ver, ou de qualquer modo isolar, um átomo singular; nenhuma dúvida
existe para o narrador, o qual, portanto, se dispõe a narrar.
Nosso personagem, pois, jaz há centenas de milhões de anos ligado a três
átomos de oxigênio e a um de cálcio, sob a forma de rocha calcária: já possui
uma longuíssima história cósmica atrás de si, mas vamos ignorá-la. Para ele o
tempo não existe, ou só existe sob a forma de preguiçosas variações de
temperatura segundo os dias e as estações, se, por fortuna desta narrativa, sua
posição não estiver demasiadamente distante da superfície do solo. Sua
existência, em cuja monotonia não se pode pensar sem horror, é uma alternância
desapiedada de calores e de frios, ou seja, de oscilações (sempre de frequência
igual) um pouco mais estreitas ou um pouco mais amplas: para ele,
potencialmente vivo, um encarceramento digno do inferno católico. Até esse
momento, portanto, a ele convém o tempo presente, que é o da descrição, antes
que um dos tempos passados, que são os tempos de quem narra: está congelado
num eterno presente, mal arranhado pelos frêmitos moderados da agitação
térmica.
Mas, afortunadamente para quem narra, e que em outro caso deveria parar
de narrar, a rocha calcária de que o átomo faz parte jaz na superfície. Jaz ao
alcance do homem e de sua picareta (honra à picareta e aos seus equivalentes
mais modernos — eles ainda são os intermediários mais importantes no diálogo
milenar entre os elementos e o homem): num momento qualquer, que eu,
narrador, decido por puro arbítrio ser no ano de 1840, um golpe de picareta o
destacou e o encaminhou para o forno de cal, precipitando-o no mundo das
coisas que mudam. Foi aquecido a fim de se separar do cálcio, que permaneceu
com os pés no chão, por assim dizer, e se encaminhou a um destino menos
brilhante que não vamos narrar; ele, ainda firmemente agarrado a dois daqueles
três companheiros oxigênios de antes, saiu pela chaminé e tomou o caminho do
ar. Sua história, de imóvel, fez-se tumultuosa.
Foi colhido pelo vento, derrubado ao solo, levantado a dez quilômetros.
Respirado por um falcão, desceu aos seus pulmões impetuosos, mas não
penetrou no sangue opulento, e foi expulso. Dissolveu-se por três vezes na água
do mar, uma vez na água de uma torrente em cascata, e ainda foi expulso. Viajou
com o vento por oito anos: ora alto, ora baixo, sobre o mar e entre as nuvens,
sobre florestas, desertos e imensidões desmedidas de gelo; depois, viu-se
capturado na aventura orgânica.
De fato, o carbono é um elemento singular: é o único que sabe se ligar a si
mesmo em longas cadeias estáveis sem grande dispêndio de energia, e para a
vida na terra (a única que até agora conhecemos) necessita-se justamente de
longas cadeias. Por isso, o carbono é o elemento chave da substância viva: mas
sua promoção, seu ingresso no mundo vivo não é cômodo, e ele deve seguir um
caminho obrigatório, intrincado, clareado (e não ainda definitivamente) apenas
nestes últimos anos. Se a conversão orgânica do carbono não se desenrolasse
quotidianamente ao nosso redor, na escala de bilhões de toneladas por semana,
onde quer que aflore o verde de uma folha, caber-lhe-ia de pleno direito o nome
de milagre.
O átomo de que falamos, acompanhado dos seus dois satélites que o
mantinham em estado de gás, foi então conduzido pelo vento, no ano de 1848, ao
longo de uma fila de videiras. Teve a fortuna de roçar uma folha, nela penetrar e
ser fixado por um raio de sol. Se aqui a linguagem se faz imprecisa e alusiva, não
é só por ignorância minha: este acontecimento decisivo, este fulminante trabalho
a três — do anidrido carbônico, da luz e do verde vegetal — não foi até agora
descrito em termos definitivos, e talvez não o seja por muito tempo ainda, a tal
ponto é diferente daquela outra química “orgânica” que é obra difícil, lenta e
pesada do homem: contudo, esta química fina e elegante foi "inventada” há dois
ou três bilhões de anos pelas nossas irmãs silenciosas, as plantas, que não
experimentam e não discutem, e cuja temperatura é idêntica à do ambiente em
que vivem. Se compreender implica construir uma imagem, jamais faremos uma
imagem de um happening cuja escala é o milionésimo de milímetro, cujo ritmo é
o milionésimo de segundo e cujos atores são invisíveis na sua essência. Toda
descrição verbal há de malograr, e tanto vale uma quanto outra: valha, pois, a
que se segue.
Entra na folha, colidindo com outras inumeráveis (mas aqui inúteis) moléculas
de nitrogênio e oxigênio. Adere a uma grande e complicada molécula que o ativa,
e simultaneamente recebe a mensagem decisiva do céu sob a forma fulgurante
de um feixe de luz solar: num instante, como um inseto prisioneiro da aranha, é
separado do seu oxigênio, combinado com o hidrogênio e (acredita-se) o fósforo,
e por fim inserido numa cadeia; longa ou curta, não importa, é a cadeia da vida.
Tudo isso acontece rapidamente, em silêncio, sob a temperatura e a pressão da
atmosfera, e grátis: caros colegas, quando aprendermos a fazer o mesmo,
seremos sicut Deus, e também teremos resolvido o problema da fome no mundo.
Mas há mais e pior, para escárnio nosso e de nossa arte. O anidrido carbônico,
ou seja, a forma aérea do carbono do qual até agora falamos, este gás que
constitui a matéria-prima da vida, a reserva permanente à qual recorre tudo
aquilo que cresce, e destino último de toda carne, não é um dos componentes
principais do ar, mas sim um resíduo ridículo, uma “impureza", trinta vezes
menos abundante que o Argônio que ninguém percebe. O ar contém 0,03 por
cento do gás: se a Itália fosse o ar, os únicos italianos habilitados a edificar a vida
seriam, por exemplo, os 15 mil habitantes de Milazzo, na província de Messina.
Em escala humana, isto é uma acrobacia irônica, um lance de prestidigitador,
uma incompreensível ostentação de onipotência-prepotência, uma vez que desta
sempre renovada impureza do ar procedemos nós: nós, animais e plantas, e nós,
espécie humana, com os nossos quatro bilhões de opiniões discordantes, nossos
milênios de história, nossas guerras, vergonhas, nobreza e orgulho. De resto, a
nossa própria presença no planeta torna-se risível em termos geométricos: se
toda a humanidade, cerca de 250 milhões de toneladas, fosse repartida como um
revestimento de espessura homogênea sobre todas as terras emersas, a
“estatura do homem” não seria visível a olho nu; a espessura obtida seria
aproximadamente de dezesseis milésimos de milímetro.
Agora o nosso átomo está inserido: faz parte de uma estrutura, no sentido dos
arquitetos; solidarizou-se e uniu-se com cinco companheiros de tal sorte
idênticos a ele que só a ficção da narrativa me permite distinguir. É uma bela
estrutura aneliforme, um hexágono quase regular, que, no entanto, está sujeito a
trocas e equilíbrios complicados com a água em que está dissolvido; porque já
então está dissolvido em água, ou melhor, na linfa da videira, e isso de estar
dissolvido é obrigação e privilégio de todas as substâncias que estão fadadas a
(quase dizia: “desejosas de”) se transformarem. Mas se alguém quiser saber por
que exatamente um anel, por que hexagonal e por que solúvel na água, então se
tranquilize: essas perguntas figuram entre as não muitas que nossa doutrina
sabe responder com argumentação persuasiva, acessível a todos, mas fora de
lugar aqui.
Veio a fazer parte de uma molécula de glicose; para falar com clareza, um
destino mediano, nem carne nem peixe, que o prepara para um primeiro contato
com o mundo animal, mas não o autoriza à responsabilidade mais alta de tomar
parte de um edifício proteico. Viajou, pois, com o lento passo dos sucos vegetais,
da folha até o tronco através do pecíolo e do sarmento, e do tronco desceu até
um cacho quase maduro. O que se seguiu é da alçada dos vinhateiros: só nos
interessa indicar que escapou à fermentação alcoólica (com vantagem nossa,
porque não saberíamos traduzi-la em palavras) e chegou ao vinho sem mudar de
natureza.
É destino do vinho ser bebido, e é destino da glicose ser oxidada. Mas não foi
oxidada imediatamente: o bebedor a reteve no fígado por mais de uma semana,
bem enovelada e tranquila, como alimento de reserva para um esforço
imprevisto; esforço que foi obrigado a despender no domingo seguinte, indo
atrás de um cavalo que se havia espantado. Adeus à estrutura hexagonal; ao
cabo de poucos instantes, o novelo se desenredou e voltou a ser glicose, esta foi
arrastada pela corrente do sangue até a fibrila muscular de uma coxa, e aqui
brutalmente rompida em duas moléculas de ácido lático, o triste arauto da
fadiga: só mais tarde, alguns minutos depois, o movimento dos pulmões pôde
conseguir o oxigênio necessário para oxidar com calma este último. Assim uma
nova molécula de anidrido carbônico voltou à atmosfera, e uma parcela da
energia que o sol havia cedido ao sarmento passou do estado de energia química
ao de energia mecânica, e portanto se acomodou na apática condição de calor,
aquecendo imperceptivelmente o ar deslocado pela corrida e o sangue do
corredor. “Assim é a vida”, embora raramente ela seja assim descrita: uma
inserção de si, uma derivação em vantagem própria, uma parasitação do
caminho descendente da energia, desde sua nobre forma solar àquela degradada
de calor a baixa temperatura. Neste caminho para baixo, que conduz ao
equilíbrio, ou seja, à morte, a vida desenha um arco e nele se aninha.
Somos de novo anidrido carbônico, pelo que pedimos desculpas: esta também
é uma passagem obrigatória; pode-se imaginar ou inventar outras, mas na terra
é assim. De novo o vento, que desta vez sopra distante: atravessa os Apeninos e o
Adriático, a Grécia, o mar Egeu e Chipre: estamos sobre o Líbano e a dança se
repete. O átomo de que nos ocupamos agora está aprisionado numa estrutura
que promete durar muito tempo: o tronco venerável de um cedro, um dos
últimos; voltou a passar pelas etapas que já descrevemos, e a glicose de que faz
parte pertence, como a conta de um rosário, a uma longa cadeia de celulose. Não
se trata mais da fixidez alucinante e geológica da rocha, não se trata mais de
milhões de anos, mas podemos bem falar de séculos, porque o cedro é uma
árvore longeva. Depende do nosso arbítrio abandoná-lo por um ano ou por
quinhentos: diremos que ao cabo de vinte anos (estamos em 1868) dele se ocupa
um cupim. Escavou a sua galeria entre o tronco e o córtex com a voracidade
obstinada e cega de sua raça; cresceu perfurando, e o túnel se ampliou. E eis que
engoliu e engastou em si mesma o protagonista desta história; depois formou o
casulo e saiu na primavera sob a forma de uma feia mariposa cinza, que agora
está secando ao sol, transtornada e confusa pelo esplendor do dia: o nosso átomo
lá está, num dos mil olhos do inseto, e contribui para a visão sumária e grosseira
com a qual este se orienta no espaço. O inseto é fecundado, põe os ovos e morre:
o pequeno cadáver jaz no chão do bosque, esvazia-se dos seus líquidos, mas a
couraça de quitina resiste por muito tempo, quase indestrutível. A neve e o sol se
revezam sobre ela, sem afetá-la: sepultada pelas folhas mortas e o terriço,
tornou-se um despojo, uma “coisa”, mas a morte dos átomos jamais é
irrevogável, à diferença da nossa. Eis que entram em ação os onipresentes,
incansáveis e invisíveis coveiros do solo dos bosques, os micro-organismos do
húmus. A couraça, com seus olhos já cegos, desintegra-se lentamente, e o ex-
bebedor, o ex-cedro, o ex-cupim novamente alça voo.
Deixemos que voe três vezes ao redor do mundo, até 1960, e como
justificativa desse intervalo tão longo em relação à medida humana
observaremos que ele é, ao contrário, muito mais curto que a média: esta,
asseguram-nos, é de duzentos anos. A cada duzentos anos, todo átomo de
carbono que não esteja congelado em materiais já estáveis (como, exatamente, o
calcário, o carvão fóssil, o diamante ou certas matérias plásticas) entra ou volta a
entrar no ciclo da vida, através da porta estreita da fotossíntese. Existem outras
portas? Sim, algumas sínteses criadas pelo homem; constituem um título de
nobreza para o homo faber, mas até o momento a sua importância quantitativa é
desprezível. São portas ainda muito mais estreitas do que aquelas do verde
vegetal: conscientemente ou não, o homem até agora não tentou competir com a
natureza nesse terreno, ou seja, não se esforçou por extrair do anidrido
carbônico do ar o carbono que lhe é necessário para nutrir-se, vestir-se, aquecer-
se, e para as mil outras demandas mais sofisticadas da vida moderna. Não o fez
porque não teve necessidade: encontrou, e ainda encontra (mas por quantas
décadas mais?), reservas gigantescas de carbono já organicamente convertido,
ou pelo menos reduzido. Além do mundo vegetal e animal, estas reservas são
constituídas pelas jazidas de carvão fóssil e de petróleo: mas estes também são o
legado de atividades de fotossíntese realizadas em épocas remotas, de sorte que
bem se pode afirmar que a fotossíntese não é só o único caminho pelo qual o
carbono se faz substância viva, mas o único pelo qual a energia do sol se torna
utilizável quimicamente.

Pode-se demonstrar que essa história, mesmo inteiramente arbitrária, é


verdadeira. Poderia contar inúmeras histórias diferentes, e seriam todas
verdadeiras: todas literalmente verdadeiras, na natureza das passagens, na sua
ordem e nas suas datas. O número dos átomos é tão grande que sempre se
encontraria um cuja história coincidisse com uma história qualquer inventada ao
acaso. Poderia contar histórias a mais não poder: de átomos de carbono que se
fazem cor ou perfume nas flores; de outros que, de algas minúsculas a pequenos
crustáceos e a peixes gradativamente maiores, voltam a ser anidrido carbônico
nas águas do mar, num perpétuo e espantoso carrossel de vida e morte no qual
todo devorador é imediatamente devorado; de outros que, ao contrário,
alcançam uma decorosa semieternidade nas páginas amareladas de algum
documento de arquivo ou na tela de um pintor famoso; daqueles aos quais coube
o privilégio de fazer parte de um grão de pólen, e deixaram a sua marca fóssil
nas rochas para despertar a nossa curiosidade; de outros, ainda, que fluíram até
se integrar aos misteriosos mensageiros de forma do sêmen humano e
participaram do sutil processo de cisão, duplicação e fusão do qual cada um de
nós nasceu. No entanto, só contarei mais uma história, a mais secreta, e a
contarei com a humildade e a modéstia de quem sabe desde o começo que seu
tema é desesperado, os meios são frágeis, e o ofício de revestir os fatos com
palavras está fadado ao malogro na sua essência profunda.
Ele está de novo entre nós, num copo de leite. Está inserido numa longa
cadeia, muito complexa, mas de tal natureza que quase todos os seus elos são
aceitos pelo corpo humano. É engolido: e como toda estrutura viva guarda uma
desconfiança selvagem em face de qualquer contribuição de outro material de
origem viva, a cadeia é meticulosamente despedaçada, e os pedaços, um a um,
são aceitos ou rejeitados. Um deles, o que nos interessa, supera a barreira
intestinal e entra na corrente sanguínea: migra, bate à porta de uma célula
nervosa, entra e toma o lugar de um outro carbono que dela fazia parte. Esta
célula pertence a um cérebro, e este é o meu cérebro, de mim que escrevo, e a
célula em questão, e nela o átomo em questão, se dedica à minha escrita, num
gigantesco e minúsculo jogo que ninguém jamais descreveu. É aquela que neste
instante, a partir de um labiríntico entrelaçamento de sim e de não, faz com que
a minha mão percorra um certo traçado no papel e o marque com estas volutas
que são signos; um impulso duplo, para cima e para baixo, entre dois níveis de
energia, leva esta minha mão a imprimir no papel este ponto: este.

________________
1 Fatídica, funesta.
Apêndice
PHILIP ROTH ENTREVISTA PRIMO LEVI

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A entrevista aqui reproduzida foi publicada em 26 e 27 de novembro de 1986,
no La Stampa, ao qual agradecemos a gentileza da concessão.

Philip Roth — Em A tabela periódica,1 o livro sobre o “sabor amargo e forte”


da sua experiência de químico, você fala de uma colega, Giulia, que explica a sua
“obsessão de trabalhar” com o fato de que você, com pouco mais de vinte anos,
era tímido com as mulheres e não tinha namorada. Mas acredito que ela estava
errada. Sua efetiva mania de trabalhar tem uma origem mais profunda. O
trabalho parece um tema obsessivo para você, mesmo no livro sobre a detenção
em Auschwitz. Arbeit macht frei, o trabalho liberta: são as palavras inscritas
pelos nazistas na entrada de Auschwitz. Mas o trabalho em Auschwitz é uma
paródia horrenda do trabalho, sem objetivo e sem sentido; é fadiga como
punição, que leva a uma morte tormentosa. Pode considerar-se todo o seu
esforço literário como voltado para restituir sentido humano ao trabalho,
resgatando a palavra Arbeit do escárnio cínico com o qual os seus patrões de
Auschwitz a deturparam. Faussone diz-lhe: “Cada trabalho que começo é como
um primeiro amor”. Agrada a Faussone falar do trabalho quase tanto quanto
trabalhar. Ele é o Homem Trabalhador, realmente livre da fadiga.
Primo Levi — Não acho que Giulia estivesse errada ao atribuir a mania de
trabalhar à minha timidez de então com as mulheres. Esta timidez, ou inibição,
era um dado de fato, concreto, doloroso e árduo. Naquele tempo, era muito mais
importante para mim que a paixão pelo trabalho; de resto, o trabalho na fábrica
de Milão, que descrevi no capítulo “Fósforo” de A tabela periódica, era um falso
trabalho no qual eu não acreditava; a catástrofe do armistício italiano já pairava
no ar, e não teria muito sentido ignorá-la e mergulhar num trabalho fictício e
cientificamente insensato.
Nunca tentei seriamente analisar a minha timidez sexual de então, mas é
certo que ela em boa medida estava condicionada pelas leis raciais; outros
amigos meus, judeus, também sofriam por isso, alguns colegas “arianos” de
escola zombavam de nós, diziam que a circuncisão não passava substancialmente
de uma castração, coisa em que nós, pelo menos inconscientemente, tendíamos a
acreditar (nisso ajudados pelo puritanismo que dominava nossas famílias). Em
decorrência, creio que naquele tempo o trabalho fosse efetivamente para mim
um equivalente sexual, antes que uma paixão.
No entanto, no que me diz respeito, sou bem consciente de que depois do
Lager o trabalho, ou melhor, os meus dois trabalhos (a química e a escrita)
tiveram, e ainda têm, uma importância fundamental na minha vida. Estou
convencido de que o homem normal é biologicamente construído para uma
atividade voltada para um fim, e que o ócio, ou o trabalho sem finalidade (como o
Arbeit de Auschwitz), provocam sofrimento e atrofia. No meu caso, como naquele
do meu alter ego, Faussone, o trabalho identifica-se com o problem solving, a
resolução de problemas.
Mas em Auschwitz notei muitas vezes um fenômeno curioso: a necessidade do
“trabalho bem feito" é de tal modo enraizada que induz a fazer bem mesmo o
trabalho imposto, escravista. O pedreiro italiano que me salvou a vida, levando-
me comida às escondidas durante seis meses, detestava os alemães, a sua
comida, sua língua, sua guerra; mas quando o punham a levantar paredes, fazia-
as retas e sólidas, não por obediência mas por dignidade profissional.
Philip Roth — É isto um homem? termina com um capítulo intitulado “História
de dez dias”, no qual você descreve em forma de diário como resistiu, de 18 a 27
de janeiro de 1945, entre um pequeno grupo de doentes e moribundos na
enfermaria improvisada do campo, depois da fuga dos nazistas para o oeste com
cerca de vinte mil prisioneiros “sadios”. Esta narrativa soa-me como a história de
Robinson Crusoé no inferno, com você, Primo Levi, no papel de um Crusoé que
arranca o que lhe serve para viver dos restos viscosos de uma ilha terrivelmente
desapiedada. O que me surpreendeu naquele capítulo, como em todo o livro, é a
medida em que o pensamento contribuiu para você sobreviver, o pensamento de
uma mente prática, humana, científica. Sua sobrevivência não me parece
determinada por uma resistência biológica animalesca ou por uma fortuna
extraordinária, mas provavelmente esteve enraizada no seu ofício, no seu
trabalho, na sua condição profissional: no homem da precisão, no homem que
controla experiências e busca o princípio da ordem, posto diante da subversão
perversa de tudo o que para ele era um valor. Tratava-se, claro, de peça
numerada de uma máquina infernal, mas peça dotada de uma inteligência
metódica que deve sempre “compreender”. Em Auschwitz você diz para si
mesmo: para quem deve resistir, “penso excessivamente”, “sou civilizado
demais”. Mas, para mim, o homem civilizado que pensa demais é inseparável do
sobrevivente. O cientista e o sobrevivente são uma só coisa.
Primo Levi — Muito bem, você acertou em cheio. É mesmo verdade que
naqueles dez dias memoráveis de 1945 senti-me como Robinson Crusoé, mas
com uma importante diferença. Robinson atirara-se ao trabalho para a sua
sobrevivência individual; eu e os meus dois companheiros franceses estávamos
conscientes, e felizes, do fato de trabalhar finalmente por um objetivo justo e
humano, o de salvar as vidas dos nossos companheiros doentes.
Quanto à razão da sobrevivência, é uma questão que me propus muitas vezes
e que muitos me propuseram. Insisto: regras fundamentais não havia, salvo as
fundamentais de entrar no Lager com boa saúde e compreender o alemão. À
parte isto, vi sobreviverem pessoas astutas e estúpidas, corajosas e covardes,
“pensadores” e loucos (por exemplo, aquele Elias que descrevi em É isto um
homem?). No meu caso pessoal, a fortuna teve um papel essencial em pelo
menos duas oportunidades: ao encontrar o pedreiro italiano que mencionei antes
e ao adoecer só uma vez, mas no momento justo.
No entanto, o que você diz, ou seja, que para mim pensar, observar foi um
fator de sobrevivência, é verdade, mesmo que a meu ver tenha prevalecido a
casualidade cega. Lembro-me de ter vivido o meu ano de Auschwitz numa
condição de espirito excepcionalmente ativa. Não sei se isto decorreu da minha
formação profissional, de uma insuspeitada vitalidade ou de um instinto salutar:
de fato, jamais parei de registrar o mundo e os homens ao meu redor, a ponto de
ainda hoje guardar deles uma imagem incrivelmente minuciosa. Tinha um desejo
intenso de compreender, sentia-me constantemente invadido por uma
curiosidade que a alguns parecia inclusive cínica, a curiosidade do naturalista
que se vê transportado para um ambiente monstruoso mas novo,
monstruosamente novo.
Philip Roth — Em É isto um homem?, a descrição e a análise da sua atroz
lembrança da “gigantesca experiência biológica e social” feita pelos alemães são
controladas, com grande exatidão, por um interesse quantitativo pelas formas
com as quais um homem pode ser transformado ou desagregado, e pode perder
suas propriedades características, como uma substância que se decompõe
através de uma reação química. É isto um homem? equivale às memórias de um
teórico da bioquímica moral que tenha sido designado como organismo-amostra
a ser submetido à mais sinistra experimentação de laboratório. O prisioneiro no
laboratório do cientista ensandecido resume em si o cientista racional. Em La
chiave a stella — que podia muito bem chamar-se Isto é um homem —, você diz a
Faussone, seu Sherazade operário, que, “sendo aos olhos do mundo um químico
e sentindo (...) o sangue do escritor nas veias”, como resultado você tem “duas
almas no corpo, o que é demasiado”. Eu diria que existe uma só alma, ampla e
sem fissuras: não apenas são indivisíveis o sobrevivente e o cientista, mas
também o escritor e o cientista.
Primo Levi — Mais que uma pergunta, isto é um diagnóstico, que aceito e
agradeço. Vivi o Lager do modo mais racional que pude, e escrevi É isto um
homem? esforçando-me por explicar aos outros, e a mim mesmo, os fatos em que
fora envolvido, mas sem intenções literárias definidas. Meu modelo ou, se quiser,
meu estilo era o do weekly report, o do curto relatório semanal que se usa fazer
nas fábricas: deve ser conciso, preciso, escrito em linguagem acessível a todos os
níveis da hierarquia da empresa. Decerto, não em linguagem científica: de resto,
gostaria de ter-me tornado um cientista, mas a guerra e o Lager me impediram,
e tive de me contentar em ser um técnico durante toda a minha vida profissional.
Concordo com você sobre o fato de que tenho “uma única alma sem fissuras”,
e mais uma vez lhe agradeço. Minha afirmação de que ter duas almas é
excessivo, por um lado, é uma brincadeira, mas por outro alude a coisas muito
sérias. Vivi em fábricas durante quase trinta anos, e devo admitir que não há
contradição entre ser um químico e ser um escritor: ao contrário, há um
recíproco reforço. Mas estar numa fábrica ou, antes, dirigir uma fábrica significa
muitas outras coisas diferentes e distantes da química: contratar e demitir
pessoal; ter conflitos com o patrão, com clientes e fornecedores; contornar
incidentes e ser chamado ao telefone, possivelmente de noite ou durante um
jantar com amigos; resolver aborrecidas complicações burocráticas; e muitas
outras soul destroying tasks, tarefas que destroem a alma. Todas estas funções
são brutalmente incompatíveis com o ato de escrever, que exige uma certa
tranquilidade de espírito; por isso, senti verdadeiramente "ter nascido pela
segunda vez” quando atingi a idade da aposentadoria e pude afastar-me do
emprego, renunciando assim à alma número um.
Philip Roth — La tregua é a sequência de É isto um homem?. O tema é a
viagem de volta de Auschwitz até a Itália. Existe, de fato, uma dimensão mítica
nessa viagem atormentada, especialmente na história do seu longo período de
"gestação” na União Soviética, à espera de ser repatriado. O que surpreende em
La tregua — que poderia, e compreensivelmente, ter-se marcado de luto, de um
desespero inconsolável — é a exuberância. Sua reconciliação com a vida cumpre-
se num mundo que às vezes parecia semelhante ao caos primordial. Contudo,
você aí aparece extraordinariamente interessado em tudo, disposto a sacar de
tudo divertimento e cultura, a tal ponto que me perguntei se, apesar da fome, do
frio e da angústia, e até apesar das recordações, você alguma vez viveu meses
melhores que aqueles definidos como “parênteses de disponibilidade ilimitada,
um providencial mas irrepetível presente do destino”. Você parece uma pessoa
cuja exigência mais profunda, antes de mais nada, é ter raízes — na profissão, na
raça, no lugar, na língua; no entanto, quando se viu tão sozinho e desenraizado
quanto era possível ser, você considerou essa condição como um “presente”.
Primo Levi — Um amigo meu, ótimo médico (era irmão de Natalia Ginzburg:
conhece os livros dela? É Levi também, mas não parente minha), disse-me há
muito tempo: “Suas lembranças de antes e de depois são a preto e branco; as de
Auschwitz e da viagem de volta são em technicolor". Tinha razão. A família, a
casa e a fábrica são coisas boas em si, mas privaram-me de algo cuja falta ainda
hoje sinto, isto é, a aventura. Meu destino quis que eu encontrasse a aventura
justamente no meio da desordem da Europa devastada pela guerra.
Você é do ramo, sabe como são essas coisas. La tregua foi escrito quatorze
anos depois de É isto um homem?; é um livro mais consciente, mais literário e
muito mais profundamente elaborado, mesmo como linguagem. Narra coisas
verdadeiras, mas filtradas. Foi precedido por inúmeras versões orais: ou seja,
cada aventura foi por mim muitas vezes narrada a pessoas de cultura variada
(frequentemente, a rapazes do curso secundário), e ajustada pouco a pouco para
provocar as reações mais favoráveis. Quando É isto um homem? começou a fazer
sucesso e eu entrevi para mim um futuro como escritor, preparei-me para
escrever. Queria divertir-me escrevendo, e divertir os meus futuros leitores; por
isso, dei ênfase aos episódios mais estranhos, mais exóticos, mais alegres:
sobretudo, aos russos vistos de perto. Releguei para o início e o fim do livro os
aspectos, como você disse, de luto e desespero inconsolável.
A propósito do enraizamento, da rootedness: é verdade que tenho raízes
profundas e que tive a sorte de não haver sido privado delas: minha família foi
poupada em boa parte da carnificina, e hoje eu continuo a morar justamente na
casa onde nasci. A escrivaninha em que escrevo está exatamente no lugar em
que, segundo a lenda, vim ao mundo. Por isso, quando me vi “desenraizado tanto
quanto possível”, por certo sofri; mas isso foi compensado pelo fascínio da
aventura, pelos encontros humanos, pela doçura da “convalescença” da doença
de Auschwitz. Minha “trégua” russa, na sua realidade histórica, só começou a
parecer-me uma dádiva muitos anos depois, quando a depurei revivendo-a e
escrevendo-a.
Philip Roth — Se non ora, quando? é diferente de tudo que li de você. Mesmo
rigorosamente baseado em eventos históricos reais, o livro é apresentado como
uma pura narrativa picaresca das aventuras de um pequeno grupo de
guerrilheiros judeus de origem russa e polaca, que preparam emboscadas contra
os alemães atrás de suas linhas na frente oriental. Os outros livros têm, talvez,
enredos menos “fantasiosos”, mas me surpreenderam por uma fantasia maior no
plano técnico. O impulso criador subjacente a Se non ora, quando? dá a
impressão de ser mais limitado, mais parcial — e assim menos libertador para
quem escreve — que aquele que deu vida às obras autobiográficas. Me pergunto
se você está de acordo com isto: se, escrevendo sobre a audácia dos judeus que
se rebelaram, você sentiu-se como que fazendo algo que era preciso fazer,
sentiu-se responsável por uma reivindicação política e moral que não podia
surgir noutro lugar, mesmo quando o tema é o seu destino, inconfundivelmente
judeu.
Primo Levi — Se non ora, quando? é um livro que teve um destino imprevisto.
Os motivos que me levaram a escrevê-lo são vários: vou enumerá-los aqui por
ordem de importância.
Tinha feito uma espécie de aposta comigo mesmo: depois de tanta
autobiografia aberta ou dissimulada, você é ou não é um escritor com todos os
títulos, capaz de construir um romance, criar personagens, descrever ambientes
em que não esteve? Prove então!
Queria me divertir escrevendo um western ambientado em cenário pouco
comum; queria divertir meus leitores, contando-lhes uma história
substancialmente otimista, cheia de esperança, eventualmente alegre, mesmo no
contexto da matança.
Queria desmentir um lugar-comum ainda corrente na Itália: o judeu é um
moderado, um estudioso (religioso ou leigo), uma pessoa relutante, humilhada,
que sofreu séculos de perseguições sem nunca se revoltar. Parecia-me necessário
homenagear aqueles judeus que em condições desesperadas encontraram força e
inteligência para resistir aos nazistas.
Nutria também a ambição de ser o primeiro escritor italiano a descrever o
mundo iídiche; em resumo, queria “utilizar” a minha popularidade na Itália para
fazer chegar às mãos de muitos leitores um livro que tivesse como tema a
cultura, a língua, a mentalidade e a história do hebraísmo asquenazita,
virtualmente desconhecido na Itália.
Em medida variada, estes motivos foram reconhecidos como válidos nos
diferentes países em que se publicou o livro. Na Itália teve pleno sucesso, em
todos os aspectos. O mesmo se pode dizer para a Inglaterra e a Alemanha, pelo
menos segundo as primeiras reações do público e da crítica. Em França passou
substancialmente sem ser notado. Nos Estados Unidos, como sabe, teve um
sucesso moderado: sua Yiddishkeit foi considerada redundante; um tema tão
conhecido que dele não é preciso mais falar. Além disso, o leitor americano
percebeu um fato verdadeiro, isto é, trata-se de um livro yid escrito por um autor
que yid não é, mas que tentou sê-lo estudando textos e escutando histórias.
Pessoalmente fiquei satisfeito com o livro, sobretudo porque me diverti muito
ao projetá-lo e ao escrevê-lo. Pela primeira e única vez na minha carreira de
escritor, tive a impressão (quase uma alucinação) de que os meus personagens
fossem vivos, estivessem ao meu redor e me sugerissem em pessoa suas
aventuras e diálogos. O ano que usei para escrevê-lo foi um ano feliz; por isso,
independentemente do resultado, para mim esse livro teve um efeito libertador.
Philip Roth — Falemos agora da fábrica de vernizes. Hoje em dia muitos
escritores trabalharam como professores, outros como jornalistas, e a maior
parte dos escritores acima de 50 anos prestou serviço militar por este ou aquele
país. Há uma relação impressionante de escritores que exerceram a medicina e
ao mesmo tempo produziram livros, e outros que foram religiosos. T. S. Eliot era
editor, e, como se sabe, Wallace Stevens e Franz Kafka trabalhavam para
grandes companhias de seguros. Que eu saiba, só dois escritores de qualidade
foram dirigentes de uma fábrica de vernizes (você em Turim, na Itália, e
Sherwood Anderson em Elyrin, no Ohio). Anderson teve de abandonar a fábrica
de vernizes (e a família) para se tornar escritor; mas parece que você se tornou o
escritor que é hoje, permanecendo na fábrica e aí continuando a carreira. Queria
saber se você se considera mesmo mais afortunado — ou quem sabe mais
aguerrido para escrever — que todos aqueles que, entre nós, não têm atrás de si
uma fábrica de vernizes e tudo quanto esse tipo de contexto comporta.
Primo Levi — Cheguei à indústria dos vernizes por pura casualidade. Ocupei-
me muito pouco de vernizes propriamente ditos: nossa fábrica, desde os
primeiros anos, especializou-se na produção de esmaltes isolantes para
condutores elétricos de cobre. Naquele tempo eu era um dos trinta ou quarenta
especialistas do mundo nesse ramo: de fio esmaltado são feitos os animais que
você viu no meu escritório.
Honestamente, não conhecia S. Anderson. Li ontem uma rápida biografia
dele: não, nunca me viria à cabeça abandonar a família e a fábrica para ser
escritor em tempo integral, como ele fez; teria medo do salto no escuro e, além
do mais, perderia o direito à aposentadoria.
À breve lista de escritores envolvidos com vernizes devo acrescentar um
terceiro nome, o de ítalo Svevo (1861-1928), judeu triestino convertido ao
catolicismo: Svevo foi diretor comercial de uma fábrica de vernizes em Trieste, a
Società Veneziani, que pertencia ao sogro e só deixou de funcionar há poucos
anos. Até 1918 Trieste pertencia à Áustria, e esta Società era famosa por
fornecer à Marinha austríaca um excelente verniz antilodo para os cascos dos
navios de guerra; depois de 1918 Trieste tornou-se cidade italiana, e o verniz
passou a ser fornecido à Marinha italiana e à inglesa. Para tratar com a British
Admiralty, Svevo teve aulas de inglês com James Joyce, que naquele tempo
ensinava em Trieste; Joyce tornou-se amigo de Svevo e ajudou-o na publicação de
suas obras.
O verniz mencionado chamava-se Moravia. A coincidência com o pseudônimo
do conhecido escritor italiano não é casual: tanto o industrial triestino quanto o
escritor romano usaram o sobrenome de um parente comum, pelo lado materno.
Perdoe-me esta bisbilhotice, que talvez seja pouco pertinente.
Sim, como dizia antes, não tenho queixas. Não acredito ter desperdiçado o
meu tempo dirigindo uma fábrica (de vernizes ou de qualquer outra coisa):
obtive mais experiências preciosas que se juntaram e combinaram com as de
Auschwitz.

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1 Além de A tabela periódica (Sistema periodico, no original), dois outros
livros de Primo Levi estão disponíveis em português: É isto um homem? (Se
questo è un uomo) R. Janeiro, Rocco, 1989; e Os afogados e os sobreviventes (I
sommersi e I salvati), R. Janeiro, Paz e Terra, 1990. Nesta entrevista e na
cronologia que se segue, com exceção destes três títulos traduzidos, os demais
serão deixados na sua forma italiana.
Cronologia da vida e das obras de Primo Levi
1919 — Primo Levi nasce em Turim, em 31 de julho, na casa em que habitará
durante toda a vida. Seus antepassados são judeus piemonteses provenientes da
Espanha e da Provença. Levi descreveu seus hábitos, o estilo de vida e o dialeto
no capítulo inicial de A tabela periódica, mas sem conservar memória pessoal
deles, a não ser dos avós. O avô paterno era um engenheiro civil que morava em
Bene Vagienna, onde possuía uma casa e um pequeno sítio; morreu em 1885. O
avô materno era um comerciante de tecidos, e morreu em 1941. O pai, Cesare,
nascido em 1878, diplomou-se em engenharia eletrônica em 1901. Depois de
várias temporadas de trabalho no estrangeiro (Bélgica, França, Hungria), em
1917 casou-se com Ester Luzzati, nascida em 1895.
1921 — Nasce a irmã Anna Maria, a quem Primo permanecerá muito ligado
por toda a vida.
1925-30 — Frequenta a escola primária; tem saúde fraca. No fim da escola
primária, recebe aulas particulares durante um ano.
1934 — Matricula-se no Ginásio-Liceu D'Azeglio, uma instituição conhecida
por ter abrigado professores ilustres, opositores do fascismo (Augusto Monti,
Franco Antonicelli, Umberto Cosmo, Zino Zini, Norberto Bobbio e vários outros).
O ginásio já então “expurgado” mostra-se politicamente neutro. Levi é um
estudante tímido e aplicado, interessam-lhe a química e a biologia, bem menos a
história e a língua italiana. Não se distingue particularmente, mas não sofre
reprovação em nenhuma matéria. Logo no início do ginásio, teve Cesare Pavese,
durante alguns meses, como professor de italiano. Faz amizades que vão durar
toda a vida. Longos períodos de férias em Torre Pellice, Bardonecchia, Cogne:
começa o seu amor pelas montanhas.
1937 — Antes de concluir o curso secundário, deve fazer exame de segunda
época em italiano. Matricula-se no curso de química da Faculdade de Ciências da
Universidade de Turim.
1938 — O governo fascista impõe as primeiras leis raciais: Veta-se aos judeus
frequentar as escolas públicas, mas permite-se a quem já está inscrito na
Universidade prosseguir os estudos. Levi frequenta círculos de estudantes
antifascistas, judeus e não-judeus; faz amizade com os irmãos Artom. Lê Thomas
Mann, Aldous Huxley, Sterne, Werfel, Darwin, Tolstoi. “A liberdade universitária
coincidiu com o trauma de me ouvir dizendo: atenção, você não é como os outros
e até vale menos: você é avaro, estrangeiro, sujo, perigoso, pérfido. Reagi
inconscientemente, esforçando-me mais nos estudos”. "As leis raciais foram
providenciais para mim, mas também para os outros: constituíram a
demonstração por absurdo da estupidez do fascismo. Estava então esquecida a
face criminosa do fascismo (vale dizer, a do assassinato de Matteotti);
permanecia visível a face grotesca...
Na minha família aceitava-se o fascismo com alguma impaciência. Meu pai
filiara-se ao partido de má vontade, mas mesmo assim vestira a camisa negra. E
eu fui balilla e depois avanguardista.1 Poderia dizer que as leis raciais
restituíram o livre-arbítrio a mim e a outros”.
1941 — Em julho Levi diploma-se com distinção e louvor. Seu diploma traz a
menção: “de raça judia”. Levi busca desesperadamente um emprego, porque a
família não tem recursos e o pai está à morte, com um cancro. Encontra um
trabalho meio legal numa mina de amianto nas proximidades de Lanzo:
oficialmente não figura na folha de pagamento, mas trabalha num laboratório
químico. O problema que lhe é proposto e a que se dedica com entusiasmo é o de
isolar o níquel que se acha em pequena quantidade no material de refugo (veja-
se o capítulo “Níquel”, em A tabela periódica).
1942 — Encontra uma situação economicamente melhor em Milão, na
Wander, uma fábrica suíça de medicamentos, onde é encarregado de estudar
novos fármacos contra a diabete: esta experiência de trabalho é narrada no
capítulo “Fósforo”, de A tabela periódica. Em novembro, os aliados desembarcam
no norte da África. Em dezembro, os russos defendem vitoriosamente
Stalingrado. Levi e os seus amigos entram em contato com alguns expoentes do
antifascismo militante e vivem seu rápido amadurecimento político. Levi ingressa
no clandestino Partido da Ação.
1943 — Em julho cai o governo fascista e Mussolini é preso. Levi atua na rede
de contatos entre os partidos do futuro Comité de Libertação Nacional (CLN). Em
8 de setembro, o governo Badoglio anuncia o armistício, mas “a guerra
continua”. As forças armadas alemãs ocupam o norte e o centro de Itália. Levi
une-se a um grupo resistente que opera no Vale d'Aosta, mas na madrugada de
13 de dezembro é preso nas imediações de Brusson com outros dois
companheiros. Levi é encaminhado para o campo de concentração de Carpi-
Fòssoli.
1944 — Em fevereiro o campo de Fòssoli passa às mãos dos alemães, os quais
colocam Levi e outros prisioneiros, entre os quais velhos, mulheres e crianças,
num comboio ferroviário com destino a Auschwitz. Na chegada, os homens são
separados das mulheres e das crianças, e enviados ao alojamento n° 30. Levi
atribui a sobrevivência a uma série de circunstâncias afortunadas. Seu
conhecimento suficientemente amplo do alemão lhe permite compreender as
ordens dos esbirros. Além disso, a partir do final de 1943, após Stalingrado, a
carência de mão de obra na Alemanha é de tal monta que se torna indispensável
utilizar até os judeus, reservatório de mão de obra a custo zero. “O desconforto
material, a fadiga, a fome, o frio, a sede, atormentando nosso corpo,
paradoxalmente conseguiam nos distrair da infelicidade enorme do nosso
espírito. Não se podia ser perfeitamente infeliz. Prova-o o fato de que no Lager o
suicídio era um fato muito raro. O suicídio é um fato filosófico, é determinado por
uma faculdade de pensamento. As urgências quotidianas nos distraíam do
pensamento: podíamos desejar a morte, mas não podíamos pensar em nos dar a
morte. Eu estive perto do suicídio, da ideia do suicídio, antes e depois do Lager,
jamais dentro do Lager”. Durante toda a estada no Lager, Levi consegue ficar
sem adoecer, só contraindo escarlatina justamente quando, em janeiro de 1945,
os alemães evacuam o campo diante da aproximação das tropas russas e
abandonam os doentes a seu destino. Os outros prisioneiros são novamente
deportados até Buchenwald e Mauthausen, morrendo quase todos.
“Devo dizer que a experiência de Auschwitz, para mim, foi de tal ordem que
varreu qualquer resto de educação religiosa que também tive (...) Há Auschwitz,
logo não pode haver Deus. Não encontro uma solução para o dilema. Busco-a,
mas não a encontro”.
1945 — Levi vive durante alguns meses em Katowice, num campo soviético
de triagem: trabalha como enfermeiro. Em junho inicia a viagem de
repatriamento, que se prolongará absurdamente até outubro. Levi e seus
companheiros percorrem um itinerário labiríntico, que os conduz primeiramente
à Rússia Branca e depois, finalmente, à pátria (19 de outubro) através de
Ucrânia, Romênia, Hungria e Áustria. Esta é a experiência que Levi vai narrar
em La tregua.
1946 — Difícil reinserção na Itália devastada do pós-guerra. Levi encontra
trabalho na fábrica de vernizes Duco-Montecatini, em Avigliana, nas imediações
de Turim. Atormentado pelos infortúnios sofridos, escreve febrilmente É isto um
homem?. "Em É isto um homem? busquei escrever as coisas mais salientes, mais
pesadas e mais importantes. Parecia-me que o tema da indignação tivesse de
prevalecer: era um testemunho de perfil quase jurídico; na minha intenção devia
ser uma peça de acusação — não com o objetivo de provocar uma represália,
uma vingança, uma punição —, mas sempre um testemunho. Por isso, certos
argumentos me pareciam um pouco marginais, como que uma oitava mais
abaixo; e assim os escrevi muito tempo depois”.
1947 — Demite-se da Duco. Curta e malograda experiência de trabalho
autônomo com um amigo. Em setembro, casa-se com Lucia Morpurgo. Levi
apresenta o original do livro à editora Einaudi, que o recusa com uma
argumentação genérica. Por intervenção de Franco Antonicelli, o livro é
publicado pelo editor De Silva, numa tiragem de 2.500 exemplares. Boa
aceitação da crítica, mas escasso sucesso do público. Levi considera concluída a
sua missão de escritor-testemunha e dedica-se inteiramente à profissão de
químico. Dezembro. Levi aceita um posto de químico no laboratório da Siva,
pequena fábrica de vernizes entre Turim e Settimo Torinese. Em poucos anos
torna-se diretor.
1948 — Nasce a filha, Lisa Lorenza.
1956 — Uma mostra da deportação em Turim tem extraordinário sucesso.
Levi é procurado por jovens, que o interrogam sobre suas experiências de
deportado. Reencontra a confiança nos seus meios expressivos e volta a propor É
isto um homem? ao editor Einaudi, que desta vez decide publicá-lo na coleção
Saggi: desde então não deixará de ser reeditado e traduzido.
1957 — Nasce o filho Renzo.
1959 — Tradução americana e inglesa de É isto um homem?.
1961 — Traduções em francês e em alemão.
1962 — Encorajado pelo sucesso de É isto um homem?, inicia a redação de La
tregua, diário da aventurosa viagem de retorno do encarceramento no Lager. À
diferença do anterior, trata-se de um livro planeado. Levi compõe metodicamente
um capítulo por mês, escrevendo à noite, nos dias de folga, durante as férias; não
subtrai nem mesmo uma hora à sua atividade profissional. Sua vida está
claramente dividida em três setores: a família, a fábrica, o ofício de escrever. A
atividade de químico ocupa-o profundamente. Realiza repetidas viagens de
trabalho à Alemanha e à Inglaterra. "La tregua foi escrito quatorze anos depois
de É isto um homem?; é um livro mais consciente, mais literário e muito mais
profundamente elaborado, mesmo como linguagem. Narra coisas verdadeiras,
mas filtradas. Foi precedido por inúmeras versões orais: ou seja, cada aventura
foi por mim muitas vezes narrada a pessoas de cultura variada (frequentemente,
a rapazes do curso secundário), e ajustada pouco a pouco para provocar as
reações mais favoráveis”.
1963 — Abril. Einaudi publica La tregua, que obtém aceitação crítica muito
favorável. A “orelha” do livro foi redigida por Italo Calvino. Setembro. La tregua
vence em Veneza a primeira edição do Prêmio Campiello.
1964-67 — A partir de ideias sugeridas pelo trabalho no laboratório e na
fábrica, escreve várias narrativas de fundo tecnológico, publicadas em Il Giorno
e outros veículos.
1965 — Volta a Auschwitz para uma cerimônia comemorativa polonesa. “O
regresso foi menos dramático do que possa parecer. Muito alvoroço, pouco
recolhimento, tudo bem ordenado, fachadas limpas, muitos discursos oficiais”
(de uma entrevista de 1984).
1967 — Levi reúne os seus contos num volume intitulado Storie naturali e
adota o pseudônimo de Damiano Malabaila.
1971 — Levi reúne uma segunda série de contos, Vizio di forma, desta feita
publicada com o seu nome.
1972-73 — Repetidas viagens de trabalho à União Soviética (ver La chiave a
stella, Acciughe, I e Acciughe, II). “Estava em Togliattigrado e observava o afeto
com que os soviéticos tratavam os nossos operários especializados. Este fato me
despertou a curiosidade: aqueles homens se sentavam à mesa de refeições lado a
lado comigo; representavam um patrimônio técnico e humano enorme; mas
estavam fadados a ficar anônimos, porque ninguém jamais tinha escrito sobre
eles (...). La chiave a stella talvez tenha nascido justamente em Togliattigrado: lá,
de resto, é ambientada a narrativa, embora a cidade não seja nunca designada
expressamente”.
1975 — Levi decide se aposentar e deixa a direção da Siva, da qual
continuará consultor durante dois anos. Levi publica suas poesias num pequeno
volume denominado L'osteria di Brema, pela editora Scheiwiller.
1978 — Publica La chiave a stella, história de um operário montador do
Piemonte, que roda o mundo construindo treliças, pontes, sondas de petróleo, e
narra encontros, aventuras, dificuldades quotidianas do próprio ofício. “O livro
aponta para a revalorização do trabalho ‘criativo’ ou do trabalho tout court: de
resto, um trabalho pode ser criativo seja no plano dos mil Faussone existentes,
seja em outros ofícios e outros níveis sociais (...). Faussone não existe em carne e
osso, como dou a entender no livro, mas existe: é uma espécie de conglomerado
de pessoas reais que conheci (...)”. Em julho, La chiave a stella conquista o
Prêmio Strega.
1980 — Sai a edição francesa de La chiave a stella. Claude Lévi-Strauss
escreve: “Li o livro com extremo prazer porque não há nada que aprecie mais
que escutar relatos sobre trabalho. Nesse aspecto Primo Levi é uma espécie de
grande etnógrafo. Além disso, o livro é realmente divertido”.
1981 — Por sugestão de Giulio Bollati, prepara para a Einaudi uma antologia
pessoal, isto é, uma coletânea de autores que influenciaram particularmente a
sua formação cultural ou com quem, mais simplesmente, teve um sentimento de
afinidade. O volume sai com o título La ricerca delle radici. Novembro. Publica
Lilit e altri racconti, escrito entre 1975 e 1981. “Tentei agrupar as narrativas e,
forçando às vezes um pouco, formei um primeiro grupo que retoma os temas de
É isto um homem? e La tregua; um segundo, que prossegue Storie naturali e
Vizio di forma; e um terceiro, cujos personagens em certa medida são de carne e
osso”.
1982 — Abril. Sai Se non ora, quando?, com imediato sucesso. Em junho o
romance obtém o Prêmio Viareggio, em setembro o Campiello. Segunda visita a
Auschwitz. “Éramos poucos, dessa vez a emoção foi profunda. Vi pela primeira
vez o monumento de Birkenau, que era um dos trinta e nove campos de
Auschwitz, aquele das câmaras de gás. Foi conservada a ferrovia. Dois trilhos
enferrujados entram no campo e terminam à beira de uma espécie de vazio. Em
frente existe um trem simbólico, feito de blocos de granito. Cada bloco tem o
nome de uma nação. O monumento é isto: os trilhos e os blocos. Reencontrava
sensações. Por exemplo, o cheiro do lugar. Um cheiro inócuo. Acredito que seja o
do carvão”. Agosto-Setembro. Israel invade o Líbano. Massacre nos campos
palestinos de Sabra e Chatila. Levi toma posição, entre outras coisas, com uma
entrevista a Giampaolo Pansa publicada no jornal La Repubblica, em 24 de
setembro. “Os argumentos que nós, judeus da Diáspora, podemos opor a Begin
são dois, um moral e outro político. O moral é o seguinte: nem mesmo uma
guerra justifica a insolência sangrenta que Begin e os seus demonstraram. O
argumento político é igualmente claro: Israel está rapidamente se precipitando
num isolamento total (...). Devemos sufocar os impulsos de solidariedade emotiva
com Israel para raciocinar de cabeça fria sobre os erros da atual classe dirigente
israelense”. Tradução francesa de Se non ora, quando?. A convite de Giulio
Einaudi, faz a tradução de O processo, de Kafka, para a nova coleção Escritores
traduzidos por escritores.
1983 — Traduz La voie des masques, de Claude Lévi-Strauss. Abril. Sai a
tradução de O processo. Traduz Le regard éloigné, de Lévi-Strauss. Sobre os
problemas da tradução, veja-se também “Traduzir e ser traduzido”, em L'altrui
mestiere.
1984 — Junho. Encontra em Turim o físico Tullio Regge. A conversação,
gravada e transcrita, foi publicada em dezembro por Edizioni di Comunità com o
título Dialogo. Outubro. Publica pela editora Garzanti a coletânea de poesias Ad
ora incerta, que compreende os 27 poemas já publicados na edição Scheiwiller,
em 1975, e outros 34 aparecidos no jornal La Stampa, mais traduções de um
anônimo escocês, de Heine e de Kipling. Novembro. Sai a edição americana de A
tabela periódica (The Periodic Table). A recepção crítica é extremamente
favorável. Relevo particular assume o juízo de Saul Bellow: “Sempre estamos em
busca do livro necessário. Depois de poucas páginas mergulhei em A tabela
periódica com prazer e gratidão. Não há nada supérfluo, tudo neste livro é
essencial. É maravilhosamente puro e otimamente traduzido”. A opinião de
Bellow favorece uma longa série de traduções dos livros de Levi em vários
países. A ela se acrescentam as resenhas muito favoráveis de Neal Ascherson
(The New York Times Review of Books), de Alvin H. Rosenfeld (The New York
Times Book Review), de John Gross (The New York Times).
1985 — Janeiro. Reúne em volume, com o título de L'altrui mestiere, cerca de
cinquenta textos aparecidos principalmente em La stampa, que “correspondem à
sua veia de enciclopedista dotado de curiosidade ágil e minuciosa, e à de
moralista, cuja moral parte sempre da observação (...). Entre os objetos da
atenção enciclopédica de Levi, os mais presentes no volume são as palavras e os
animais. (Algumas vezes se diria que ele tende a fundir as duas paixões numa
glotologia zoológica ou numa etologia da linguagem.)
Em suas divagações linguísticas dominam as amenas reconstruções a
propósito de como as palavras se deformam com o uso, no atrito entre a dúbia
racionalidade etimológica e a desembaraçada racionalidade dos falantes”
(Calvino, 1985). Fevereiro. Escreve a introdução para a nova edição de bolso de
Comandante ad Auschwitz. Memoriale autobiográfico di Rudolf Höss. Abril.
Viagem aos Estados Unidos (Nova York, o Claremont College em Los Angeles,
Bloomington, Boston) para uma série de encontros e conferências em várias
instituições universitárias, e para o lançamento da tradução de Se non ora,
quando?, que traz uma introdução de Irving Howe.
1986 — Abril. Publica Os afogados e os sobreviventes, livro que representa a
suma de suas reflexões sugeridas pela experiência do Lager. Saem nos Estados
Unidos as traduções de La chiave a stella e uma seleção das narrativas de Lilit,
com o título Moments of Reprieve. Tradução alemã de Se non ora, quando?.
Abril. Levi vai a Londres (onde encontra Philip Roth) e a Estocolmo. Setembro.
Recebe em Turim a visita de Roth, com quem realiza uma longa entrevista para
publicação em The New York Review of Books.2
1987 — Março. Saem as edições francesa e alemã de A tabela periódica. Levi
sofre uma intervenção cirúrgica. 11 de abril. Morre na sua casa de Turim.

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1 Balilla era o menino de oito a quatorze anos inscrito nas organizações
paramilitares fascistas; já o avanguardista pertencia às organizações juvenis.
2 Ver o primeiro texto deste Apêndice.

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