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28/04/2023, 15:19 Folha de S.

Paulo - Gilberto Vasconcelos: Réquiem a Oswald - 01/11/98

São Paulo, domingo, 1 de novembro de 1998

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ANTROPOFAGIA
O autor do Manifesto de 1928 percebeu o racionalismo
antierótico da "sociologia da esmola'
Réquiem a Oswald
GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Os comentaristas e estudiosos de Oswald de Andrade têm


sublinhado a aderência maternal em sua personalidade
artística e filosófica. "Sob as Ordens de Mamãe". Longe de
ser uma diatribe sarcástico-humorística, esse título da
memória oswaldiana modernista é um componente básico
em sua concepção de que a história da colonização é a
história da guerra contra a floresta tropical. O retrato
patriarcal e mercantil dessa guerra remontará às capitanias
hereditárias, cujos reflexos se manifestam atualmente nos
projetos predatórios da Fordlândia, Ludwig-Jari e Carajás.
Fruto do encontro da mãe originária da Amazônia com o pai
de Minas Gerais, nasceu Oswald de Andrade em São Paulo,
dez anos antes de findar o século 19.
A indispensável biografia de Maria Eugênia Boaventura, "O
Salão e a Selva", remete à equação antropofágica entre
civilização e floresta. Esse livro foi publicado em 1995, um
ano depois de o sociólogo antioswaldiano FHC chegar ao
poder em Brasília, coincidindo com o momento melancólico
em que parece ter acabado o convívio tanto do salão quanto
da selva. Desde o "Manifesto da Poesia Pau-Brasil", nos
deparamos com a ênfase na "selva selvagem" e na floresta.
Assim, é mister interpretar seu "primitivismo" e suas alusões
ao período "cabralino" para além da influência literária
recebida dos vanguardismos europeus, e sim como
abordagem eminentemente antiimperialista e anticolonialista
da natureza brasileira.
Antropofagia é "energeia", ou seja, energia.
Em vez de antítese "ecologique" entre civilização e floresta,
o barato antropofágico é o uso, a um só tempo órfico e
econômico, da floresta (papel essencial na ecosfera) para
impedir sua devastação e seu equilíbrio termodinâmico.
Símbolo controlado pelo homem, a floresta tropical é úmida,
com incidência fantástica de sol e água, tal qual o estilo
cosmólogo dos manifestos "da Poesia Pau-Brasil" a
"Antropófago", concebidos ambos antes da consagração do
petróleo na década de 30. Esses manifestos literários,
trazendo a riqueza solar dos trópicos, são no entanto
entusiastas do homem dormindo, ao contrário da psicanálise
"made in USA" de Benjamim Franklin, para quem o homem
não ganhava dinheiro quando dormia.
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A matriz da oralidade oswaldiana, tantas vezes refratária à


grafoesfera da gramática, deriva desse condicionamento
energético da floresta.
"Filhos do Sol, mãe dos viventes".
A chamada "Revolução Caraíba" -"maior que a Revolução
Francesa"- consiste em criar não uma civilização nos
trópicos -mas uma civilização dos trópicos. O primeiro
projeto é a armadilha dos sucessivos colonialismos
patriarcais; o segundo projeto é a descolonização sob o signo
do matriarcado. Outra mãe, diferente da "mãe dos Gracos".
"Gravou-se o açúcar". Intuição profética do manifesto
antropofágico: da cana-de-açúcar resultaria o álcool,
primeiro e até aqui o único combustível alternativo extensivo
ao moribundo petróleo, que deu riqueza aos EUA, assim
como o carvão mineral forrou a Inglaterra, conforme Oswald
de Andrade testemunhou a Edgar Cavalheiro em 1944.
Antes de tornar-se marxista na década de 30, Oswald de
Andrade foi profundamente anticolonialista em seu
manifesto antropofágico, atacando o padre Antônio Vieira,
autor do nosso primeiro empréstimo, portanto o padrinho da
nossa dívida externa: lábia e grana. Depois o padre Vieira
será elogiado pela expulsão dos holandeses do Brasil.
Descolonizador e atento ao Sol como doador máximo de
energia, o antropófago Oswald de Andrade foi preterido, no
meio da patota universitária, pela linha plúmbea dos "Tristes
Tropiques" de Lévi-Strauss, um dos precursores
cosmopolitas do ideário tucano da década de 90, porque não
foi além das fronteiras do patriarcado.
Oswald de Andrade queria dar aula de filosofia na USP. Foi
impedido por uma razão cordial e iluminista, alienada em
relação à potência da floresta e do Sol nos trópicos. Energia
versus dinheiro, "that's the question: tupy or not tupy".
Natureza, floresta, matriarcado, educação das crianças. Esta
antropofagia contracena com o que de fato triunfou na
realidade: a ideologia fálica cadastrada do "utilitarismo
mercenário e mecânico do Norte". A palavra de ordem
política -"a posse contra a propriedade"- revela-nos o que
seria atualmente um Oswald de Andrade sem-terra.
"Tristes funcionários da sociologia", assim ele batizou o
pensamento universitário de São Paulo, de cujos
departamentos sairia, decênios mais tarde, o príncipe da
moeda. Oswald de Andrade percebeu o racionalismo
antierótico e a filiação burocrático-institucional dessa
sociologia avessa aos "facies" geográficos dos trópicos:
"sociologia da esmola", que recusa a clorofila e entrega o
minério às potências imperialistas, enfim, um pensamento
colonizado pelas multinacionais, "fonâmbulos da pesquisa" e
"trapezistas dos documentos", enclausurados na glória dos
escritórios e institutos doutorais privados, cacificados pela
CIA e pelo petróleo das indústrias automobilísticas.
No episódio da USP, Oswald foi vitima do moralismo
patriarcal burocrático, sendo punido por ter vivido com
muitas mulheres, inquieto, intelectualmente assistemático,
anárquico, frasista. Fato é que a antropologia está
indiscutivelmente vinculada à mulherofilia. À semelhança do
sociólogo Roger Bastide, Oswald de Andrade parece ter
deixado menos discípulos-homens do que discípulos-
mulheres. O escritor modernista denunciou insistentemente a
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presença do machismo patriarcal na sociedade brasileira:


cultura só para homens. Curiosamente, os literatos
brasileiros, com honrosas exceções, não são chegados numa
mulherofilia; ao contrário, eles são uns eunucóides
carregados de bonequice e vaidade.
Filho único, mimado por sua mãe amazonense, afetiva e
economicamente generosa com ele, dando-lhe a maior força
para que se tornasse escritor, Oswald de Andrade quando
adulto retribuiu em dobro às mulheres com quem viveu de
modo romântico. É enganosa, pois, a aparência de ter sido
um lírico machão, comedor voraz, por causa do lema "bom
estômago e pau duro". Na verdade, desde Pau-Brasil,
Oswald de Andrade projetou o útero como metáfora em sua
utopia do Estado-mãe e da "polis" matriarcal.
Em Oswald de Andrade a "antropofagia carnal" significa a
cópula polimórfica do Sol com a água. É essa fartura
energética que é geradora do ócio, "a metafísica do
aposentado", conforme informará em "A Crise da Filosofia
Messiânica", livro de reflexão primorosa sobre o "Manifesto
Antropófago" de 1928: a devoração do inimigo ideológico
colonizador, não por causa da fome, da gula ou da vingança,
mas por imperativo religioso e cerimonial: a incorporação
das virtudes do inimigo. Ora, dos melhores inimigos não se
quer apropriar do potencial vitamínico da carne, segundo o
folclore de Luís da Câmara Cascudo sobre a instituição
religiosa da antropofagia, desde o relato do "quase-vítima"
Hans Staden.
Para Oswald de Andrade, por meio daquilo que batiza de
"sentimento órfico", a função alimentar pesa menos do que a
instituição religiosa, o fenômeno sagrado da antropofagia, a
expressão do "ateísmo com Deus".
O Brasil formado de "raças matriarcais". Absolutamente não
importa se não houve em períodos pré-cabralinos a
experiência do matriarcado. Esse argumento etnológico
carece de relevância, pois a antropofagia não é senão uma
estratégia de descolonização cultural e, simultaneamente,
afirmação do Novo Mundo: a "esperança de uma vida
melhor neste mundo".
Oswald de Andrade avalia a literatura ocidental sob o ângulo
do século 16 em diante. A marcha das utopias. Conectando a
"nudez da Descoberta" do Brasil à "geografia do riso"
delineado pelos grandes humanistas Rabelais, Cervantes e
Erasmo. Nem mesmo a leitura do "romancista" Karl Marx ou
o internacionalismo do "Manifesto Comunista" consegue
fazê-lo abandonar a visão socio-mística da antropofagia
elaborada durante a década de 20, a qual será mais tarde
retomada, em alto nível artístico, pelo filme terceiro-
mundista "A Idade da Terra", de Glauber Rocha.
De resto, o cineasta considerava Oswald de Andrade o maior
filósofo brasileiro. Glauber Rocha denunciou a trindade
machista: pai, filho, Espírito Santo. "Porra, três machos!"
Oswald de Andrade inventa o conceito de "Terceiro Mundo"
antes do Estado Novo getuliano de 1937. Para o educador
Darcy Ribeiro, a formação do povo brasileiro é plasmada
menos pelo "membrum virile" do homem branco do que pelo
útero ameraba. A cunhã foi nossa primeira cozinheira. Assim
atesta o material etnológico da antropofagia: quem mata não
participa do banquete. Assassinato ritual, mas sem
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clandestinidade.
Oswald de Andrade, marido de Pagu e companheiro de Luís
Carlos Prestes, rejeita o patriarcalismo, mas não embarca no
obreirismo economista e burguês do dinheiro.
Destarte, a sociologia uspiana manteve-se cega ou reticente
ao antropofágico "homem do povo", que nasceu rico e, como
diz o candomblé, cavalo de uma fortuna que será detonada
por incapacidade neurótica de lidar com as coordenadas da
economia de mercado.

Édipo milionário
Excetuando o professor Cruz Costa, desconheço outro
filósofo na USP com problemas sérios diante da competição
de mercado, que é o replay do patriarcalismo de "Casa
Grande e Senzala". Glauber Rocha viu no romance da fase
marxista, pós-30, de Oswald de Andrade, a representação
épica do "pistoleiro Vargas".
Marxista, Oswald de Andrade desaprovou a implantação do
Estado Novo em 1937, ano em que foi publicada a sua peça
de teatro "O Rei da Vela", o libelo anticapitalista da moderna
literatura brasileira, que antecipa a trágica carta-testamento
de Getúlio Vargas de 1954. Cumpre no entanto assinalar que,
não obstante o retrato do "risonho paternalismo de Vargas",
Oswald de Andrade percebeu que o Estado Novo de 1937
havia colocado o Brasil na marcha da história
contemporânea.
A partir de 1947, quando havia se desligado do PC, elogia o
trabalhismo de Getúlio Vargas, nisso destoando do marxismo
dos intelectuais brasileiros, que insistiam em considerar o
ex-ditador um inimigo do proletariado. Depois de ter
percorrido o país sem filosofia nacional com a revolucionária
Coluna Prestes, o Cavaleiro da Esperança é seduzido pelo
marxismo stalinizado da União Soviética.
Embora permanecendo filiado ao PC até 1945, a atitude
antiimperialista e anticolonialista de Oswald de Andrade não
foi consequência de seu ingresso no PC em 1930, mas sim o
resultado do conhecimento da literatura brasileira, que o fez
se tornar um antropófago nacionalista, em cuja obra
encontra-se a denúncia do imperialismo inglês na República
Velha e do imperialismo americano a partir de 1930. "Todas
as nossas reformas, todas as nossas reações costumam ser
feitas dentro do bonde da civilização importada. Precisamos
saltar do bonde, precisamos queimar o bonde."
Na "era de Wall Street e Cristo", Oswald de Andrade
denuncia os moços de recado do capital estrangeiro,
repudiando o anglicanismo do tecido e do carvão, assim
como o imperialismo norte-americano será a teologia do
petróleo e do automóvel.
Por coincidência do destino, Getúlio Vargas e Oswald de
Andrade morreram no mesmo ano de 1954. Quase meio
século depois, o Palácio do Planalto confina
equivocadamente o nacionalismo a um quixotismo
antropofágico da década de 50, assim como hoje em dia o
príncipe da moeda é o Rei da Vela no poder.

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Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da


Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da
Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.

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