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n. 724, 11 de julho de 2023. Ano XVII.

o fogo
O fogo do teatro: tragédia. O fogo no Teatro Oficina (ditadura). O fogo consumindo a vida de Zé Celso
Martinez Corrêa (o apartamento no bairro do Paraíso). Muitos dizem o que ele era ou foi. Isso é o após
morte com as badaladas biografias e louvações. Mas ele não se deixou apanhar por nada e ninguém. Fez
teatro libertário, militante de esquerda, perturbador, teatro como ele, de existência. Descontrolou os relógios
que comandavam a duração de um espetáculo. Trouxe e escancarou a derrocada brasileira no teatro no que
se acordou chamar de estética tropicalista: antropófago. Reergueu do fogo o Teatro Oficina com parede
transparente aberta para a cidade, o teto de vidro aberto para o espaço sideral e foi capaz de alojar cada
humano nos seus tijolos e na pista carnavalizada do que, no passado, era o consagrado palco. Teatro e vida
para além da representação. Existência. Ele era a bruxa a ser devorada pelo incêndio dos inquisidores. Ele
foi vida repleta de invenções. "Come on baby light my fire/ Try to set the night on fire/ The time to hesitate is
through..."
nem choro, nem vela
Foi uma festa exuberante, uma festa que durou quase vinte horas. Começou no fim da tarde e entrou noite e
madrugada adentro com muitas danças, cantos, coros, comida, bebida, loucuras. No meio do teatro, um
corpo. Sobre o corpo uma bandeira da vai-vai. Assim, quase como o samba de Noel Rosa, "quando morrer
não quero choro/ nem vela", foi o gurufim do artista José Celso Martinez Correa, o inventor do Teatro
Oficina. Pela manhã, o sol entrava pelo teto do Teatro Oficina no qual, por décadas, recebeu peças, shows
dionisíacos e movimentações de resistências políticas contemporâneas. Foi uma festa cheia de prazer com
a presença de gente de todas as idades. Como foi também uma festa, repleta de lutas corajosas, a
existência vibrante e guerreira do artista. Até a morte e as suas solenidades, em seu último ato, Zé
deliciosamente subverteu. Evoé, Zé, valeu!

um inimigo do rei
Em seu regresso ao Brasil, depois do exílio, na fase da chamada "abertura política", o jornal anarquista O
Inimigo do Rei publicou uma entrevista, em página inteira, com o diretor nu.

o que importa mesmo!


Mas se, de um lado, Zé deixou de experimentar os anarquismos, de outro lado, xs anarquistas que não
souberam dançar com Zé Celso também perderam ocasiões de se lambuzar e de se alterar incisivamente
em suas intensas invenções. Hakim Bey escrevera certa vez: muitxs anarquistas sobrevivem como se não
houvesse ocorrido uma revolução nos costumes nos anos 1960 e 1970. Libertárixs que se deleitaram com
Zé, não somente no teatro, mas com seus pensamentos, aproveitaram ainda mais os sabores da anarquia.
Saúde, Zé, valeu!

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