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TEXTO DIRETO – CANDOMBLÉ - PSICOTERAPIA

Adentrei no universo do Candomblé aos treze anos de idade, ao ser suspenso


(escolhido) pelo Orixá Obaluaiê para ser o seu Ogã. Esse evento ocorreu enquanto eu
assistia uma cerimônia para o referido Orixá em um Terreiro de Nação Ketu, localizado
no Subúrbio Ferroviário de Salvador, onde a minha mãe era abiã1 da casa. Contudo, a
minha relação com os Orixás precede o episódio narrado acima, pois, lembro dos
símbolos dos deuses africanos em minha vida desde muito pequeno, especialmente, na
figura do meu avô materno, falecido no ano corrente, especificamente no dia 14/03/2020.
Meu avô, pelo que sei, foi o primeiro membro da família de minha mãe a ser iniciado no
culto aos Orixás, parece que os seus antepassados já possuíam uma espécie de devoção a
essas divindades, sobretudo, com o Orixá Obaluaiê, mas isso nunca foi desvelado de
forma clara para nós, seus descendentes. Morei com o meu avô e toda a minha família
materna desde o meu nascimento, até completar vinte e quatro anos de idade. Lembro de
como toda segunda-feira do mês o meu avô fazia a chamada “flor do velho” (as pipocas
ritualmente preparadas e oferecidas a Obaluaiê), lembro dele colocar no chão, ao lado da
soleira da porta de entrada da casa, um alguidar com pipocas, tendo ao lado uma vela
acesa. Há na família uma história que narra como o meu avô chegou ao Candomblé,
conta-se que ele passava por um momento muito difícil, não conseguia trabalho e passava
alguns instantes sentado ao lado do berço das filhas gêmeas (uma delas a minha mãe)
com o semblante preocupado. Entretanto, penso que algo mais angustiante se passava
pela sua cabeça e tirava a sua paz, já que em dado momento decidiu sair para a rua a fim
de dar cabo da própria vida. Como narrado por ele mesmo muitos anos depois, a sua
intenção era lançar-se embaixo de um veículo, todavia, no momento em que ia cometer o
ato, algo ocorreu, segundo o meu avô, ele foi acometido por um “apagão” e acordou
dentro de um Terreiro de Candomblé no bairro da Engomadeira, caído, aos pés de uma
senhora negra que lhe oferecia água e que posteriormente viria a ser a sua Mãe de Santo.
Em meados da década de setenta do século passado, meu avô foi iniciado para o Orixá
Iemanjá, tendo cumprido em concomitância obrigações para Obaluaiê. Curiosamente, o
Terreiro em que ele foi iniciado tinha como patrono esse Orixá e sua Mãe de Santo, era
também consagrada a Obaluaiê. Após a sua iniciação, a vida de meu avô e de toda a sua
família mudou radicalmente para melhor, conseguiu um emprego na extinta Vale do Rio
Doce, exercendo um cargo de chefia, sendo transferido para trabalhar no interior da
Bahia, na cidade de Santaluz (onde nasci). Esse período é narrado pela família como uma
época abastada e de grande prosperidade. Meu avô tornou-se proprietário de sítios,
cabeças de caprinos e possuía uma enorme influência na cidade em que trabalhava,
chegando a ser diretor de um pequeno time de futebol local. A abundância material era
tão perceptível que as suas cabras pariam barrigas de dois cabritinhos, algo difícil de
acontecer. No decorrer desse tempo, ele retorna a Salvador para “pagar” a sua obrigação
de três anos de iniciação. Em dado momento, segundo a minha avó (esposa do meu avô),
foi dito a ele que estava em seu destino exercer a função de sacerdote, ou seja, abrir um

1
Noviça, postulante a iniciação.
Terreiro de Candomblé. Em paralelo a essa revelação, o meu avô, parecia viver no interior
uma vida dupla, mostrava-se como um importante patriarca, mas também se mostrou
inclinado a farras regadas com bebidas e mulheres. Não sei exatamente o quanto de tempo
esse estilo de vida adotado por meu avô durou no interior, mas parece que nesse período
ele também se afastou das suas obrigações com os Orixás, não indo mais a Salvador
cumprir com as suas responsabilidades religiosas. Neste processo, algo ocorreu (que
inclusive nunca foi esclarecido), de repente ele foi demitido, toda a prosperidade se
perdeu, de tal maneira que em um rápido intervalo de tempo, meu avô e sua família se
viu novamente em Salvador, desempregado e vivendo de aluguel. Poucos anos depois a
sua Mãe de Santo veio a falecer e o Terreiro dela foi fechado. A partir desse ponto, de
acordo com aqueles que viveram esse período, a sua vida entrou numa escala crescente
de declínio. Em contrapartida, meu avô continuava a manter a sua vida dupla, cada vez
mais afastado dos filhos e da família, envolvido em bebedeiras e mulheres. Em dada
altura, ele foi procurado por seus irmãos de santo, consigo lembrar de dois deles, uma
senhora baixinha negra que só vivia de branco por ser filha de Oxalá, ela fazia questão de
ser chamada pela sua dijina2 que era Kalezu. Esta senhora muito carinhosa, toda vez que
me via, fazia questão de me abençoar e de entregar a mim e a minha irmã uma balinha
que sempre trazia no bolso me chamando de Crispim, já que como minha mãe, eu também
sou gêmeo. O outro irmão de santo do meu avô que me lembro bem, era um senhor negro,
troncudo e forte, mas muito simpático, que também era chamado pela sua dijina, que era
Combodossu, ambos já são falecidos. Através desses irmãos, meu avô foi persuadido a
voltar ao Terreiro para buscar os seus assentamentos (representações materiais dos
Orixás), fato que me lembro bem. Meu avô construiu um quarto para os seus Orixás no
terraço da casa em que morava, lembro de ajudar ele a amarrar as bandeirolas no teto do
quarto para a “chegada” dos santos. A partir de então ele passou a “zelar” dos seus Orixás
neste quarto. Ainda assim, a derrocada do meu avô é sempre justificada pela família,
como um castigo divino, uma punição por ele ter abandonado os seus Orixás e os seus
familiares, tornando-se um homem ausente, incapaz de cumprir com os seus
compromissos, especialmente o seu compromisso em abrir uma casa de santo. Em
paralelo a esses eventos, a minha mãe se preparava para ser iniciada no Candomblé, o seu
“chamado” foi um tanto doloroso, já que desde os 15 anos de idade vinha passando por
diversas cirurgias envolvendo colecistectomia e retiradas constantes de hérnias
umbilicais. Ela me contou que na sua primeira cirurgia, em um momento muito delicado
em que estava em observação deitada no leito do hospital, enquanto olhava para o seu
abdome inflamado, achando que ia morrer, quando de repente, viu uma cobra brilhante
subir na cama e se enroscar em cima da sua barriga. Segundo ela, naquele instante, ela
soube que não ia morrer, contudo, ela passou por mais seis cirurgias ao longo dos anos,
até ser iniciada no Candomblé para o Orixá Oxumarê, no mesmo Terreiro em que
Obaluaiê me escolheu para Ogã. Após a sua iniciação, os problemas de saúde
desapareceram e ela nunca mais voltou a sala de cirurgia. Aos 18 anos de idade, ocorreu
a minha “Confirmação de Ogã”, efetivada pelo Orixá Obaluaiê, este, era o Orixá do Pai
de Santo do Terreiro, sendo também o patrono da casa. Sempre tive uma dedicação

2
Espécie de alcunha iniciática própria da Nação Angola (Candomblé Angola).
extrema ao Terreiro e as minhas funções na casa, exercia o meu papel com todo o meu
coração. Para além das funções religiosas, fazia serviços diversos relacionados a
construção civil, pintura, conserto de telhados, manutenção nas edificações, inúmeras
foram as vezes em que me dirigi sozinho ao Terreiro para ajustar as coisas antes do
calendário de festas da casa. O ápice dessa dedicação foi a construção da “Cabana do
Caboclo Tupinambá”, entidade indígena que se manifestava através do Pai de Santo da
Casa. Apesar de ser chamada de cabana, o espaço era na verdade uma espécie de salão.
Esta construção foi erguida por mim e mais dois Ogãs da casa, desde a fundação até o
telhado, lembro de descer cinco caçambas de entulho e terra no carrinho de mão (força
da juventude) para nivelar o terreno, depois cavar os buracos para a construção das
fundações. Foi um ano inteiro dedicado a essa empreitada, trabalhando de domingo a
domingo e de graça, pois pensava estar trabalhando para o sagrado e para a evolução da
minha casa. Construímos tudo, até mesmo uma réplica de uma gruta, cravejando pedra
sobre pedra, local onde ficaria o assentamento do Caboclo. A construção foi concluída e
se passaram os anos, nesse interim, “paguei” a minha obrigação de três anos, e tudo corria
normalmente, tinha uma ótima relação com o meu sacerdote, com os meus irmãos de
santo e era muito bem quisto. Em paralelo a isso, a minha mãe já tinha feito a sua
obrigação de três anos e se preparava para a obrigação de sete anos, momento que se
atinge a maturidade religiosa no Candomblé, nessa mesma época, foi revelado a minha
mãe que ela tinha a “missão” de ser Mãe de Santo e que cabia a ela fundar um Terreiro
de Candomblé. Depois de um certo período, estando a quase dez anos na casa em que fui
confirmado, as coisas começaram a mudar, especialmente na parte que envolvia os rituais
da casa. Desde o início, as práticas religiosas nesse Terreiro eram sempre pautadas no
respeito e dedicação aos Orixás, o bom comportamento no andamento dos rituais era
sempre destacado como sinal de uma boa educação de axé. Todavia, as coisas mudaram
de tal forma que aos meus olhos parecia que eu estava em outro lugar. A primeira
mudança foi a entrada excessiva de bebidas alcoólicas no Terreiro, era muita bebida. O
Xirê e o Rum (a parte lúdica-sacra que envolve cantos, toques e danças para cada Orixá)
passou a ser reduzido, para que a cerimônia fosse realizada da forma mais breve possível,
para que ao final, todos se reunissem ao redor das garrafas de bebida. A liderança da casa
passou a ser visto embriagado após as cerimônias, e nesse estado, o Caboclo se
manifestava em seu corpo e sentado ao lado do engradado de cervejas, bebia garrafas e
mais garrafas, uma atrás da outra sem intervalos. Em seguida, a entidade troçava com os
homens e mexia com as mulheres, comportamento que nunca testemunhei ao longo dos
anos em que convivi com essa entidade. Nesse meio tempo, a minha mãe conseguiu
financiar um terreno com o seu pequeno salário de professora primária e se preparava
para a sua obrigação de sete anos, o lote, localizado entre Camaçari e Dias D’Ávila, é
modesto, mas cercado de natureza e com muitas árvores, ideal para a instalação de um
Terreiro. Enquanto isso, a comunidade terreiro da qual fazíamos parte, se queixava nos
bastidores sobre o comportamento da liderança da casa. Éramos todos muito próximos,
as nossas famílias teceram uma relação intima ao longo dos anos, algo compreensível em
um Terreiro de Candomblé pequeno. O nosso líder era visto sempre embriagado,
inclusive nas festas de família, essa mesma verve era reproduzida no Terreiro. Lembro de
uma festa para um determinado Orixá, onde o nosso sacerdote (segundo ele) manifestado
com a divindade (Xangô), consumiu três garrafas de vinho tinto numa única manhã,
ficando visivelmente embriagado. Esta mesma entidade, após o momento litúrgico do Orô
(ritual que envolve os sacrifícios votivos aos orixás), ficou extremamente feliz quando
um Ogã da casa (que era primo carnal do pai de santo) colocou aos pés da divindade um
pequeno maço com cédulas em dólares, depois, a entidade se dirigiu a mim e disse-me na
frente de todos, que eu não tinha nada na vida pois eu não dava nada daquele nível a ele,
sendo o mesmo o Orixá do dinheiro e da riqueza. Na casa, sempre vigorou a regra que
Orixá algum consome bebida alcoólica, por isso o meu estranhamento. Até que eu, numa
ingenuidade tola, achei que na minha posição de Ogã, escolhido pelo Orixá dele, tinha
como obrigação chamá-lo para uma conversa, o que ocorreu. Nesse diálogo, indaguei ao
meu sacerdote se ele estava com algum tipo de problema, se precisava de ajuda, expressei
que estava achando aquele comportamento estranho e completamente inadequado para
um líder religioso. A resposta que tive foi que ele estava bem, que era apenas um
momento, que ele estava buscando se divertir e que tudo já havia passado. Me retirei da
conversa aliviado, achando que as coisas tinham se resolvido. Todavia, a partir daquela
conversa, tanto ele, como as entidades que se manifestavam através dele passaram a me
agredir, tanto na esfera social como na esfera religiosa. Por respeito a minha mãe, que
entrava para fazer a obrigação de sete anos, na qual ela recebeu a autorização para exercer
a função de Mãe de Santo, eu me abstive de qualquer reação, até o dia de uma Festa
dedicada ao Caboclo Tupinambá. A dada altura dessa festa, após a referida entidade ter
consumido uma grande quantidade de bebida alcoólica, eu estava de pé, observando o
andamento da festa, uma das muitas funções de um Ogã é zelar para que as festas e
cerimônias ocorram dentro do decoro. Quando de repente senti que algo queimava o meu
abdome, quando percebi, era o dito Caboclo, que com um charuto me queimava, a chama
acesa do fumo furou o tecido da minha camisa e queimou a minha pele. A entidade
simplesmente olhou para mim e sorriu, mais tarde, enquanto tocava atabaque, o mesmo
Caboclo, veio me oferecer bebida, eu recusei, ele ofereceu de novo, recusei novamente,
então ele partiu em minha direção, segurou o meu queixo erguendo o meu rosto e
derramou uma quantidade de bebida em todo a minha face, entrando pelas minhas narinas
e molhando as minhas vestes, bem como o instrumento que eu tocava. Todos riram,
inclusive o Caboclo, que apontava para mim com um ar jocoso. O mesmo Caboclo ao
qual dediquei vários anos da minha vida, em especial, a construção da sua morada, olhei
para a Cabana, as paredes pintadas e a gruta erguida, não disse absolutamente nada,
apenas me retirei. Olhei para o Terreiro, as telas que pintei com a representação dos
Orixás e que doei a Casa, e através delas eu me questionava sobre a década de dedicação
aquele lugar. Passados alguns dias, fui até a casa do meu sacerdote e comuniquei que após
a obrigação de sete anos da minha mãe eu não faria mais parte do Terreiro. Ele aparentou
surpresa, disse que não entendia, me encheu de elogios, que era para eu pensar melhor,
mas as coisas continuaram a acontecer, sobretudo na esfera do sagrado. Nesse interim,
minha mãe concluiu a sua obrigação e após três meses eu me retirei do Terreiro. Com a
minha saída veio toda uma onda de difamação em relação a minha pessoa, aquela
comunidade que me viu crescer agora dizia coisas absurdas a meu respeito. Para mim,
particularmente, foi um momento muito difícil, honestamente nunca pensei em sair da
minha casa, pensava em envelhecer lá, ajudando a comunidade. Os assentamentos dos
meus Orixás me foram entregues e os coloquei em um quarto na casa em que eu morava,
foi um período nebuloso, as pessoas que me viram crescer, que fizeram parte da minha
formação pessoal e pelas quais eu tinha muita estima, agora me difamavam, me
chamavam de traidor e de ingrato. Esse período nebuloso durou um bom tempo, pensei
em abandonar o Candomblé, em me desfazer dos assentamentos dos meus Orixás, passei
a questionar sobre o papel do sagrado na minha vida, confesso que o que mais me afetou
foi o fato de ter sido gratuitamente agredido por aquelas divindades em que eu tinha tanta
dedicação, carinho e respeito. Alguns anos mais tarde, fui levado por uma tia para fazer
um jogo de búzios em um famoso e grande Terreiro de Candomblé de Salvador, o que
me preocupava era o fato de não conseguir emprego, aliás, isso é uma constante em minha
vida, a instabilidade material, isso muitas vezes me leva ao desespero. Lembro que fui
muito a contragosto, cheguei ao referido Terreiro às 14:00h, a consulta estava marcada
para às 15:00h, mas só fui ser atendido às 23:00h, isso me deixou bastante nervoso, a todo
o momento, durante esse período de oito horas de espera, alguém aparecia e pedia para
eu aguardar, pois o sacerdote da casa em algum momento iria me atender. Lembro que
foi numa quarta-feira do mês de novembro. Durante a consulta me foi revelado uma série
de coisas que me surpreenderam. O sacerdote ao lançar os búzios me comunicou que
existia uma interferência espiritual, e que isso estava bloqueando o meu caminho para a
questão do emprego. Ele também falou que Obaluaiê estava falando no jogo, ele me
perguntou se eu tinha algum compromisso com esse Orixá, eu afirmei que sim e expliquei
qual era esse compromisso. Ele enfatizou a importância de eu exercer o meu dever junto
a Obaluaiê, lembro da fala dele – “jamais abandone esse orixá”. Em seguida, o sacerdote
me disse que segundo o jogo dele, eu não era um Ogã, é sim um Oloyê, e de acordo com
esse sacerdote, eu teria que passar por processos iniciáticos mais profundos, e que esses
processos me habilitariam a exercer a função que me cabia junto ao referido Orixá.
Também expliquei ao mencionado sacerdote sobre a “missão” designada a minha mãe
em fundar um Terreiro para a nossa família, comuniquei que no sentido religioso o meu
objetivo era ficar junto aos meus familiares. Ele me comunicou que se eu quisesse, as
portas do Terreiro estariam abertas para mim e para a minha mãe, para buscar ajuda e
orientações. Em seguida, ele prescreveu uma série de ebós (oferendas rituais) que eu
deveria fazer para me auxiliar na busca de emprego. Voltando para casa, conversei com
a minha mãe sobre o ocorrido, ela me aconselhou a fazer os ebós e me emprestou o
dinheiro para esta finalidade. Após um breve período, retornei ao Terreiro para fazer os
trabalhos prescritos pelo sacerdote, entre um ebó e outro, passou-se cerca de seis meses.
Já no final do ano, na realização de um outro jogo de búzios com o mesmo sacerdote, foi
apontada a necessidade de se fazer uma obrigação para o meu Orixá, Odé. Eu já havia
completado sete anos de confirmado, e pelos cânones do Candomblé, era chegado o
momento de “pagar” a minha obrigação de sete anos. Até então frequentava o Terreiro
como um “cliente”, o sacerdote sugeriu que eu levasse os assentamentos dos meus Orixás
para o Terreiro, de modo que eu me aclimatasse com a casa e com a comunidade. Relutei
um pouco quanto a essa sugestão, pois sentia que eu não era a mesma pessoa de anos
atrás. Mas em dada altura levei os meus assentamentos para o referido Terreiro e passei
a ser considerado como filho de santo da casa. Este, com toda certeza não é um processo
fácil, tão pouco foi para mim. A comunidade enxerga você com muita desconfiança (com
certa razão), você é visto como um forasteiro. Particularmente, a minha chegada lá não
foi muito receptiva, nos meses que se seguiram eu ouvia constantemente piadas, alguns
pequenos insultos, embora houvessem pessoas com as quais teci relações cordiais, a
maioria era bastante hostil, não trocavam a benção comigo, prática comum entre todos os
adeptos do Candomblé. Eu não era reconhecido como Ogã, mesmo vindo de uma outra
casa, o que entra em desacordo com a prática do Candomblé. Em paralelo a isso, a minha
mãe, se deslocava a esta casa para “aprender” com o Pai de Santo, condição proposta por
ele. Mas ao chegar no Terreiro, ela nunca o encontrava, passava horas sentada em um
banco duro de madeira, sem nem mesmo oferecerem uma água. Após esperar por horas,
ela simplesmente levantava e voltava para casa. Lembro de certa vez que ele sugeriu que
minha mãe comprasse um gravador, pois ele iria registrar para ela alguns rituais. Minha
mãe fez a aquisição do gravador, levou para o sacerdote e até o presente momento ele
nunca foi devolvido, lá ela entregou e por lá o gravador ficou. Situação humilhante.
Mesmo assim me mantive firme e em 2010, fiz a minha obrigação de sete anos neste
Terreiro. De fato, essa obrigação foi muito mais profunda, passei por etapas ritualísticas
muito mais complexas, e pelo que percebi, havia discretamente no sacerdote, uma
esperança de que em algum momento o meu Orixá iria se manifestar em meu corpo, algo
que não ocorreu (na verdade isso nunca ocorreu). Destaco que quando estava recolhido,
passei por vários momentos de assédio por parte de um dos auxiliares do sacerdote da
casa, momento muito difícil, em que se está voltado para a energia do Orixá, estando o
corpo paramentado com certos objetos rituais que proibi, inclusive o uso excessivo da
fala e é preciso conter a agressividade, pois a minha vontade era a de literalmente agredir
aquele indivíduo que todos os dias me visitava no roncó, com o pretexto de contar um
itan (mito) e fazer as suas insinuações. A obrigação foi em julho, e quando foi no mês de
agosto (mês dedicado a Obaluaiê), me foi comunicado pelo sacerdote que eu receberia
um posto na Casa de Obaluaiê. Algo que me surpreendeu, pois, já tinha reportado ao
sacerdote que a minha intenção não era permanecer na casa, ele tinha acordado comigo
que, após a minha obrigação de sete anos, os meus assentamentos seriam levados para o
terreno da minha mãe, já que o objetivo era fundar o Terreiro da família. Ainda assim,
recebi o referido posto no mês de agosto. Percebi que a partir do recebimento desse posto
a animosidade das pessoas aumentaram, lembro que no dia da cerimônia, os indivíduos
olhavam para a faixa que eu recebi e que anunciava o cargo conferido e lançavam sobre
mim um olhar de poucos amigos. De fato, eu não sabia o porquê daquele cargo e nem o
que ele significava, apenas me foi dito pelo sacerdote que eu tinha acesso livre ao quarto
e as coisas de Obaluaiê, mas nada me foi explicado, como exercer, o que fazer ou mesmo
qual o meu papel no Terreiro a partir daquele momento. Permaneci nessa ignorância sobre
esse cargo durante uns três anos, até encontrar alguém que me explicasse o que era aquilo.
Ainda assim, não me sentia parte daquela comunidade, cada vez que eu me dirigia para
lá era um suplício, me sentia tenso e me fechava, ficava isolado em um canto, e isso
aumentava a rejeição que as pessoas sentiam. Admito que também não fazia muito
esforço para me aproximar. Nesse meio tempo, o sacerdote do Terreiro fez uma visita ao
nosso terreno, ele foi acompanhado por uma senhora de um dos terreiros Jeje Mahi mais
antigos de Salvador. Quando chegamos ao Terreiro o arco-íris apareceu, sendo este, um
dos símbolos de Oxumarê, Orixá da minha mãe. Ele disse que aquilo era um sinal do
Orixá, e aconselhou que nos construíssemos na entrada do terreno a Casa de Exu, e
prometeu que estando a casa construída ele iria pessoalmente iniciar as primeiras etapas
para a fundação do Terreiro. Nesse mesmo dia, ele saiu do Terreno admirado, colheu um
sem número de ervas litúrgicas que lá estavam, saiu com três sacas de folhas lá do
Terreno. Essa foi a primeira e a única vez que ele foi ao terreno, após muito esforço para
conseguir uma quantia em dinheiro, construímos a Casa de Exu, e ele, nunca foi até lá
para cumprir a promessa, apesar dos nossos apelos. Nesse meio tempo comecei a ouvir
impropérios das pessoas do Terreiro, tipo: “você e sua mãe não são dignos de receber o
axé dessa casa” ou “quem vocês pensam que são? É preciso ter bala na agulha! ”. Em
dado momento, percebi que existia um código para fazer as coisas acontecerem naquele
lugar, que era, ou se oferecia uma grande quantia em dinheiro ou poderia aventurar uma
possibilidade através de favores sexuais. Este, foi mais uma vez, um dos momentos em
que me questionei sobre o papel do sagrado. A minha permanência nesta casa durou seis
anos, era porta batida na cara, tapas nas mãos ao segurar os bichos no momento do Orô
do Orixá, sem contar os assédios. Mas como sempre trabalhava bastante, aguentava essas
coisas na esperança que essas pessoas nos auxiliassem na fundação do nosso Terreiro,
curiosamente eu e minha mãe (nas poucas vezes em que ela foi lá após o episódio do
gravador) não éramos dignos de receber o axé da casa, mas éramos dignos de varrer o
Terreiro, lavar, catar lixo, pegar no pesado, esse tipo de coisa. Assim as promessas feitas
não foram cumpridas e eu simplesmente deixei de estar presente neste Terreiro. Agora
em maio fez seis anos que estive lá. E honestamente não sinto a menor falta. Depois de
tudo isso, recorremos a outros sacerdotes para nos ajudar a fundar o nosso Terreiro, que
nem chamo mais de Terreiro, mas sim de um lugar para cultuar os Orixás da nossa família.
Mas, alguns foram até lá e quiseram comprar o Terreno, outros foram, fizeram alguma
coisa e pediram uma quantia exorbitante e depois sumiram, outros simplesmente disse
para desistirmos, pois, o lugar não era bom por ser distante de Salvador (de carro se leva
45 minutos para chegar lá). Em 2017, por recomendação de um amigo carioca que
também é sacerdote, procuramos e reencontramos uma das irmãs de santo do meu avô,
nesse período ele já estava bem doente, já tinha dado dois AVC, o que comprometeu a
sua fala. Então fomos até ela para falar sobre os assentamentos dos Orixás dele. Ela fez
um jogo, que revelou que o Obaluaiê (outra vez esse Orixá) do meu avô, queria que a
partir daquele momento eu cuidasse das “coisas” dele. Foi uma surpresa para todos, já
que a primazia seria da minha mãe, por ser mais velha do que eu. A simpática senhora,
conhecida como Iyá Dete de Oxalá, transmitiu o recado: “olha menino, a partir de agora
a responsabilidade com Oluaiê é sua viu? Olhe lá, não vá desprezar esse santo! ” A partir
de então tenho cuidado dele, aliás, coisa que sempre fiz, desde os meus treze anos de
idade. Em cada lugar que passei nessa trajetória conturbada ele esteve presente. Eu
sempre me perguntei o porquê dessa presença de Obaluaiê na nossa família, se meu avô
foi iniciado para Iemanjá. Em 2019, enquanto uma tia arrumava as coisas do meu avô,
ela encontrou um caderninho bem velho, com as páginas amareladas e me ligou. Era o
caderno que continha as anotações da época em que ele foi iniciado, dentro desse caderno
tinha um papel de aspecto ainda mais velho, nele estava datilografada uma série de nomes,
contendo a árvore genealógica da família do meu avô (achei isso muito curioso). Ao ler
as anotações tomei conhecimento de como foi o processo de iniciação dele, curiosamente,
tudo o que foi feito para Iemanjá, foi igualmente feito para Obaluaiê, meu avô usou dois
quelês3 (um de Iemanjá e outro de Obaluaiê), de tal maneira que tenho a hipótese de que
os dois Orixás foram colocados em nível de igualdade na vida dele (algo incomum).
Fiquei comovido lendo aquelas páginas, de repente, há um grande hiato, as páginas em
branco dão a sensação de que ele não terminou a sua história no Candomblé. Ao mesmo
tempo penso em mim e na minha mãe, e temo que a nossa história no Candomblé termine
num grande hiato também. Particularmente, sinto o chamado do Orixá,
independentemente de ele tomar o meu corpo ou não, isso não importa, há inclusive quem
identifique uma incompatibilidade entre as minhas atribuições enquanto Oloyê e o fato
de não manifestar o Orixá em meu corpo, como se isso deslegitimasse a minha conexão
com o sagrado. Fico pensando na nossa procura, quantos sacerdotes já nos classificou
como indignos, seja por não ter dinheiro, seja por não termos “estirpe”, ou seja, por
qualquer outra coisa. Curiosamente a sociedade do Candomblé parece exigir Títulos de
Nobreza, algo que me parece estranho, já que é uma religião que prima pela coletividade,
pelo menos deveria. A sociedade do Candomblé é extremamente crítica e pouco solicita,
pelo menos é o que diz a minha experiência até então. Geralmente sou afetado por uma
sensação muito ruim, como se o meu começo no Candomblé foi errado, penso o quanto
fui permissivo, o quanto compactuei com as coisas que me permitir passar, tudo na
esperança de ver um Terreiro de Candomblé erguido, para auxiliar a minha mãe e a minha
família. Nessa trajetória, fui inundado por uma série de informações, cada um dizia uma
coisa, de tal maneira, que hoje me sinto uma pessoa sem identidade dentro do Candomblé,
isso me dá uma enorme sensação de vazio. Se pudesse, gostaria de dar um restart,
começar tudo de novo, mas não posso. Sinto como se tivesse sobre mim uma porção de
camadas que me impedem de atingir o meu real objetivo dentro dessa religião. Eu amo
os Orixás, mas não sei se amo o Candomblé enquanto instituição religiosa, percebo nela
uma série de tradições coloniais que afetam negativamente as pessoas. Às vezes acho que
serei punido pelo sagrado, pelos Orixás, acho que isso provém da falta de legitimidade e
de apoio dos meus pares, de tanto ouvir que não sou digno, acabo achando que quem fala
isso são os próprios deuses, e as vezes essa sensação me impede de avançar, de seguir e
de continuar de forma mais proveitosa. Tenho lutado contra essa sensação todos os dias.
Contudo, conseguir fazer poucos, mas bons amigos no Candomblé, e isso é algo que
realmente vale a pena. Nessa busca por legitimidade, por aprovação, por um respaldo de
outrem, como alguém que espera por migalhas já se passaram mais de dez anos. O sagrado
parece nos legitimar, mas os nossos pares não. Enquanto isso o nosso terreno está lá, com
as suas árvores, com os seus muros duramente erguidos, com a Casa de Exu que espera o
seu morador. Não se trata apenas de um terreno, ali está um sonho de família, ali está o
esforço de muitos, a esperança de muitos, de seres visíveis e invisíveis..., de todo modo o
candomblé me forjou, ele se evidencia na minha visão de mundo, no meu trabalho, nos
desenhos e pinturas que faço, para mim o Candomblé fala da existência humana, morte,
vida, nascer, lutar, rir, chorar, amar, a fragilidade e a transitoriedade, está tudo ali, a saga
humana sobre este mundo... mas há o cansaço, há o receio da crítica, há o desgaste, há a
frustração, recomeçar é sempre difícil dentro do Candomblé, o que restará será o hiato?

3
Colar ritual que o noviço usa em sinal de submissão ao Orixá para o qual está sendo iniciado.
Páginas em branco? Espero fazer uma trajetória diferente, mesmo não sabendo mais qual
o meu papel no Candomblé.

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