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Horizontes de uma geopolítica crítica latino-americana no século XXI

Licio Caetano do Rego Monteiro


(setembro / 2021)

O objetivo deste trabalho é mapear a produção no campo da geografia política e


da geopolítica na América Latina, considerando seus temas, teorias e inovações. A
história da geopolítica na América Latina foi marcada pela forte influência do
pensamento militar ao longo dos anos 1960, 1970 e 1980 (KELLY, 1997). No Brasil,
observamos uma geopolítica que passa a ser “civilizada” (COSTA; THÉRY, 2012) a
partir dos anos 1980, e temos um panorama já conhecido, desenvolvido em publicação
anterior (REGO-MONTEIRO, 2018). Nosso objetivo é estender esse levantamento para
o restante da América Latina. Algumas perguntas fundamentais são: em que medida a
produção latino-americana apresenta inovações em relação às geopolíticas críticas de
influência anglófona (critical geopolitics) ou francófona (LACOSTE, 1976;
RAFFESTIN,1980)? Quais são as fontes das inovações? De que modo a geografia
política e a geopolítica se articulam com o pensamento social latino-americano em
diferentes tempos? Qual o efeito do giro descolonial na produção da geografia política
latino-americana? E quais práticas socioespaciais podem estar relacionadas a mudanças
nas formas de pensar a geografia política e a geopolítica?
A ideia do projeto surgiu de uma iniciativa tomada no III Congresso Brasileiro
de Geografia Política, Geopolítica e Gestão do Território, quando reunimos geógrafos
de diferentes países da América Latina (México, Colômbia, Argentina e Brasil) para
discutirmos um panorama do campo da Geografia Política em cada um dos países e na
América Latina de um modo geral.
Posteriormente, articulou-se um grupo de trabalho sobre Geopolítica para o
congresso da Latin American Studies Association, em 2020, em Guadalajara, a partir da
iniciativa de Juan Agulló (UNILA). Infelizmente a iniciativa foi suspensa com a
pandemia, mas se tentou manter os contatos para reuniões periódicas na intenção de
fortalecer um espaço de debates e de aproximações. Essa segunda iniciativa também
não teve sequência após uma primeira reunião realizada.
Em 2021, foram realizados ciclos de debates da Rede Brasileira de Geografia
Política, Geopolítica e Gestão do Território (REBRAGEO) e um dos ciclos foi focado
na América Latina, com a participação de oito palestrantes (dois mexicanos, dois
equatorianos, um chileno, um argentino, um uruguaio e uma peruana).
Essas diferentes inserções permitiram ter uma visão privilegiada sobre o campo
da Geografia Política e da Geopolítica contemporâneas na América Latina, a partir dos
intercâmbios propiciados pelas atividades. Também pude levantar, junto aos
interlocutores, importantes dicas e orientações sobre a produção bibliográfica de cada
país. Como ponto de partida, constatei que na América Latina a Geografia Política não é
um campo consolidado e que a Geopolítica aparece mais em outras áreas que não a
Geografia. No entanto, existe interesse e iniciativas para aproximações entre os dois
campos e, por conseguinte, entre a Geografia e outras áreas do conhecimento numa
chave geopolítica.
É nesse contexto de aproximações sucessivas que busco explorar o que poderia
se chamar de geopolítica crítica latino-americana. É crítica por se contrapor às
geopolíticas tradicionais de cunho militar e autoritário desenvolvidas ao longo do século
XX. Ao mesmo tempo, não se confunde com uma tradução automática da geopolítica
crítica anglófona, daí o epíteto latino-americana. O mais correto seria considerar as
geopolíticas, no plural, pois não há exatamente um corpus teórico unificador de uma
geopolítica crítica latino-americana, mas uma pluralidade.

I. Da geopolítica tradicional às geopolíticas contemporâneas na América Latina


A geopolítica tradicional na América Latina
A América Latina foi um dos redutos onde a geopolítica ganhou espaço na
primeira metade do século XX, com a apropriação das ideias vindas da Alemanha,
França e Estados Unidos. A geopolítica tradicional na América Latina contou com a
assimilação das teorias de Kjellen e Ratzel em diversos países: no Brasil com Everardo
Backheuser e Mário Travassos, no México com Jorge Vivó Escoto e na Argentina com
Jorge Atencio (RIVAROLA, 2021, pp. 235-237). Segundo Rivarola,

as perspectivas geopolíticas de Kjellén e (fundamentalmente) de


Ratzel foram aqui fundidas com as perspectivas desenvolvimentistas,
apresentando um novo modelo sobre como orientar um estado
periférico através do sistema internacional, em direção ao
desenvolvimento e à autonomia. É a isso que me referirei aqui como
‘geopolítica do desenvolvimento’.

Ao contrário do que ocorreu na Europa e nos Estados Unidos, onde a geopolítica


ficou no ostracismo ao fim da II Guerra pela associação entre geopolítica e nazismo, na
América Latina não houve declínio do uso do termo, como sugere a análise
bibliométrica do Google Ngram Viewer (REGO-MONTEIRO, 2018).

A trajetória dos termos em espanhol expressa pelo menos dois


contextos espaciais próprios: um é o da Espanha e o outro é o da
América Latina, considerada em sua variedade de contextos nacionais
próprios. A contemporaneidade de regimes autoritários tanto na
Espanha quanto na América Latina entre os anos 1930 e meados dos
anos 1970 traz uma característica que aproxima as geopolíticas em
espanhol dos dois lados do Atlântico.

Diferentemente dos demais gráficos analisados [em inglês, francês e


alemão], a curva ascendente da geopolítica em língua espanhola se
inicia em meados dos anos 1930 e atravessa de forma ininterrupta os
anos da II Guerra Mundial, perdendo fôlego somente nos anos 1950
para retomar logo nos anos 1960 até os anos 1980, quando então
começa a diminuir. Nesse sentido, existe um descompasso bastante
marcado em relação à geopolítica nas demais línguas. A primeira
ascensão teve como marco a chegada de Franco ao poder na Espanha
e a permanência do regime ditatorial mesmo após a II Guerra
Mundial. O efeito da queda dos alemães não foi decisivo para a
redução do interesse pela geopolítica. O novo fôlego pós anos 1960
advém já dos impulsos do pensamento geopolítico dos países de
língua espanhola na América Latina (REGO-MONTEIRO, 2018, p.
104).

Ao longo dos anos 1960 e 1970 se consolidam abordagens geopolíticas em


diversos países da América Latina, com influências da geopolítica clássica e do
nacionalismo desenvolvimentista. Philip Kelly lista dezesseis pensadores geopolíticos
na América do Sul: os brasileiros Carlos de Meira Mattos, Golbery do Couto e Silva e
Therezinha de Castro; os argentinos Enrique Guglialmelli, José Felipe Marini e Nicolás
Boscovich, o uruguaio Bernardo Quagliotti de Bellis; a paraguaia Julia Velilla de
Arréllaga; o boliviano Alipio Valencia Veja; os chilenos Augusto Pinochet Ugarte,
Ramón Cañas Montalva e Emilio Meneses Ciuffardi; o peruano Edgardo Mercado
Jarrín; o equatoriano Jorge Villacrés Moscoso; o colombiano Julio Londoño Londoño e
o venezuelano Rubén Carpio Castillo. Neste grupo de geopolíticos se destaca um
número considerável de oito militares, além de diplomatas, jornalistas e professores
dedicados ao tema da geopolítica. Todos eles podem ser enquadrados como expoentes
da geopolítica tradicional, com produção bibliográfica concentrada entre as décadas de
1960 e 1980.
Segundo Nolte e Wehner (2015), a geopolítica neoclássica continua sendo a mais
influente no âmbito latino-americano, onde a critical geopolitics permaneceu pouco
desenvolvida. “Geopolítica neoclássica” é a que recupera os autores clássicos para
analisar e explicar situações políticas contemporâneas (Megoran, 2010). Apoiado em
Guzzini (2014), Nolte e Wehner afirmam que a geopolítica neoclássica que predomina
na América Latina é a que conceitualiza a política externa a partir das características
geográficas.
A partir dos anos 1980, a influência da geopolítica tradicional arrefeceu, com o
questionamento às visões autoritárias associadas ao pensamento geopolítico e com a
crise dos projetos nacionais de desenvolvimento, quando emerge o neoliberalismo na
América Latina (Rivarola Puntigliano, 2021, pp. 242-243). Apesar da persistência de
algumas publicações ainda vinculadas à geopolítica tradicional, podemos dizer que
houve uma renovação dos enfoques geopolíticos ao longo das décadas de 1990 e 2000,
com a participação maior de civis e com uma agenda que ultrapassava os limites
ideológicos da “doutrina de segurança nacional” propugnada nas décadas anteriores.

A agenda de Preciado e Uc
Em 2010, um importante artigo de Jaime Preciado e Pablo Uc propôs uma
agenda de investigação regional para uma geopolítica crítica na América Latina. Os
autores buscavam já incorporar a influência da critical geopolitics à análise da produção
latino-americana. Consideravam que

existe uma diversificação de práticas geopolíticas que se orientam seja


para a (re)produção de representações dominantes, seja para novos
espaços de representação (em ocasiões alternativas). Esta disputa
político-espacial gerada por diversos discursos geopolíticos que, sem
embargo, são parte de uma grande imaginação regional, já que ainda
frente aos diversos interesses que politizam esta imaginação (dentro e
fora da região), as mais variadas escalas e referentes geográficos se
sobrepõem num espaço físico comum.

(…) Assim, neste trabalho nos propomos a identificar, classificar e


analisar as principais características das práticas espaciais que
(re)produzem as representações dominantes ou projetam novos
espaços de representação, em torno do grande imaginário da América
Latina e do Caribe. Entendida como uma região complexa, que
atravessa simultâneas demandas de espacialização a escalas múltiplas,
assim como diversas experiências de territorialização internas,
externas e transversais à estrutura dos Estados nacionais.

O artigo de Preciado e Uc (2010) delimita muito bem diferentes práticas


espaciais que geravam novos espaços de representação, mas sem que essas práticas ou
espaços produzissem necessariamente uma autodeclarada geopolítica. Quanto à
produção latino-americana, Preciado e Uc (2010) capturam o giro decolonial, mesmo
que este ainda não estivesse incorporado na produção específica de autodeclarados
geógrafos políticos e geopolíticos do continente.
Preciado e Uc apontaram algumas práticas espaciais que constituíam novas
representações geopolíticas na América Latina.
1. Práticas espaciais do poder
Os autores ressaltam aqui os atores hegemônicos que transformam os espaços
para exploração dos recursos naturais, a criminalização e a militarização. Trazem como
exemplo os diversos planos (Plano Colômbia, Plano Puebla-Panamá, Iniciativa Mérida),
a implantação de bases militares e a reativação de frotas marítimas. Ressaltam o
trabalho de Ana Esther Ceceña, à frente do Observatório Geopolítico Latino-americano,
e de Alfredo Jalife-Rahme sobre a geopolítica do petróleo e do gás.
2. Prática espacial do conhecimento
Estas práticas incluem propostas epistemológicas que desafiam o raciocínio
espacial dominante e uma “demanda pela decolonização do pensamento e os saberes
que envolvem a compreensão do espaço”. Entre as referências estão os trabalhos de
Catherine Walsh, Santiago Castro-Goméz, Walter Mignolo e Edgardo Lander. Nenhum
desses autores estão no campo da geografia política/geopolítica. Mas Preciado e Uc
vislumbram um potencial de interação para a agenda de uma geopolítica crítica
latino-americana, uma vez que “as bases desta prática espacial implicam considerar que
a produção de conhecimento é paralela à construção de espacialidades”.
3. Práticas espaciais anti-geopolíticas e contra-representações de resistência
Os autores partem da ideia de anti-geopolítica proposta por Paul Routledge, isto
é, uma força da sociedade civil que se manifesta contra o poder de Estado e das
instituições e contra as representações espaciais dominantes, com o potencial de criar
espacialidades dissidentes, que confrontam a imaginação geopolítica dominante a partir
de uma imaginação anti-geopolítica. Preciado e Uc listam então três práticas que
poderiam ser enquadradas como anti-geopolíticas e contra-representações de resistência:
a indígena, a feminista/de gênero e a ecologista ambiental.
a. Prática espacial indígena
Os autores se referem aos impulsos mais recentes dos movimentos indígenas na
América Latina, que se configuraram na luta pelos territórios, pelo reconhecimento das
etnias e da plurinacionalidade no âmbito de estados nacionais fortemente marcados por
processos excludentes de colonização interna. As geopolíticas indígenas e de
movimentos sociais foram estudadas por autores como Pablo Dávalos, Danièle
Dehouve, Félix Patzi, Pablo Mamani, discutidas também por Álvaro García Linera,
Boaventura de Sousa Santos e Raul Zibechi.
b. Prática espacial feminista/de gênero
Os autores ressaltam que “as relações de gênero são determinantes para a
compreensão da distribuição e o antagonismo que motivam as diversas expressões de
poder sobre o espaço”. As práticas espaciais são corporificadas para colocar em relevo o
papel das mulheres na configuração dos espaços. Preciado e Uc citam os trabalhos de
Sharp e Hyndman e a experiência das mulheres zapatistas no México como um exemplo
de política construída a partir de um outro olhar geopolítico.
c. Prática espacial ecologista ambiental
Os autores afirmam que uma “geopolítica dos movimentos ambientalistas
transnacionais” constrói “contra-espacialidades, toda vez que desafiam a geografia
interestatal capitalista e seus modelos desenvolvimentistas baseados na extração
indiscriminada de recursos naturais”. Falam ainda do cruzamento entre as pautas
indígenas e ambientais.
4. Prática espacial da integração
Estas são as práticas que tratam dos modelos regionais de desenvolvimento,
muitas vezes insustentáveis, da geopolítica da dívida externa e dos projetos de
integração regional, materializados nas instituições supranacionais no interior da
América Latina, tais como a CAN e o MERCOSUL, até as mais recentes UNASUL,
ALBA e CELAC.
5. Práticas sociais dos direitos humanos e das migrações.
No caso dos Direitos Humanos e das migrações, os autores destacam como eles
são marcados por “uma geografia específica do poder e do direito, em função dos
grupos sociais, atores coletivos, sistemas e instituições que os administram, exercem ou
privam”. Considerando as imensas desigualdades e as clivagens regionais na América
Latina, os autores propõem colocar em relevo os diversos direitos, inclusive o direito ao
trânsito e ao trabalho dos migrantes.
Esse “mapeamento” inicial de Preciado e Uc traz à tona autores, abordagens e
temas que constituiriam uma nova agenda da geopolítica latino-americana. Os termos
utilizados são passíveis de questionamento. Por exemplo, devemos nos perguntar por
que enunciar “práticas espaciais de poder” se o poder está presente em todas as práticas.
Também cabe indagar por que as ditas práticas anti-geopolíticas não são enquadradas
como geopolíticas críticas ou alternativas, uma vez que os próprios autores mais tarde
as identificam como geopolíticas, no caso da prática espacial indígena.

Critical geopolitics = geopolítica crítica?


Em que medida a “critical geopolitics” teve ressonância na renovação da
geopolítica latino-americana? O artigo de Preciado e Uc se inicia com um recorrido
sobre o que é a geopolítica crítica, tomando como referência a “critical geopolitics”
anglófona. Os autores falam sobre a imaginação geopolítica moderna – “entendida
como um sistema de visualização totalizadora e de estratificação global com profundas
raízes em referências e interesses euro-estadounidenses, que desenham a política
mundial” – e a divisão entre geopolítica prática, formal e popular, algumas das
principais contribuições da critical geopolitics.
A imaginação geopolítica moderna é fundamentada por John Agnew quando ele
busca demonstrar como a “imaginação geopolítica dominante emergiu da experiência
europeia-americana, mas foi projetada no resto do mundo e no futuro na teoria e na
prática da política mundial” (AGNEW, 1998, p. 2) e como “a descoberta e a
incorporação do mundo como uma unidade singular e o desenvolvimento do estado
territorial como um ideal político vieram juntos para criar o contexto da política
mundial moderna” (AGNEW, p.5). Agnew complementa afirmando que a “imaginação
geopolítica moderna é um sistema de visualizar o mundo com raízes históricas
profundas no encontro da Europa com o mundo como um todo”.
Alguns pressupostos de John Agnew foram incorporados pela chamada critical
geopolitics. A exposição programática da critical geopolitics está bem apresentada em
Ó Tuathail e Dalby (1998). No livro, os autores indicam cinco premissas da nova
abordagem proposta.
Em primeiro lugar, Ó Tuathail e Dalby afirmam que “a geopolítica é um
fenômeno cultural muito mais amplo do que é normalmente descrito e entendido pela
tradição geopolítica dos sábios do aparelho de Estado” (1998, pp. 2-3). Em segundo
lugar, a geopolítica crítica reconhece “a irredimível pluralidade do espaço e a
multiplicidade de possíveis construções políticas do espaço” (p. 3). Em terceiro lugar, a
geopolítica crítica argumenta que “a geopolítica não é uma singularidade, mas uma
pluralidade”, dividida em pelo menos três tipos: a geopolítica popular, a geopolítica
prática e a geopolítica formal (pp. 4-5). Em quarto lugar, afirmam que a prática de
estudar geopolítica nunca pode ser politicamente neutra (p.5). Por fim, em quinto lugar,
conceitualizam a geopolítica como “raciocínio situado” e buscam “teorizar suas
circunstâncias socioespaciais e tecnológicas mais amplas” (p. 6).
Com importantes contribuições para a renovação dos estudos geopolíticos, os
teóricos da critical geopolitics foram pouco traduzidos para o espanhol e para o
português, o que restringiu o seu alcance na América Latina. Consideramos que a
incorporação de suas teses numa geopolítica crítica latino-americana não deve ser feita
como mera subscrição ou cópia dos pressupostos da critical geopolitics, mas como um
diálogo que inclua os conteúdos próprios do contexto e do pensamento
latino-americanos. Um caminho possível é o diálogo com o conceito de “geopolítica do
conhecimento” trazido pelos teóricos da decolonialidade, como veremos a seguir.

Geopolítica do conhecimento
Preciado e Uc propõem um diálogo entre a critical geopolitics e os teóricos
latino-americanos da “geopolítica do conhecimento”, considerando que eles têm em
comum uma forma própria de vincular conhecimento e poder, ao modo de Foucault,
mas levando em conta a situação espacial desse vínculo. É importante, no entanto,
destacar que são construções distintas e autônomas, possíveis de se articular. A
formulação de John Agnew sobre a imaginação geopolítica moderna certamente oferece
uma conexão à ideia de geopolítica do conhecimento, embora Agnew não aprofunde os
dilemas epistemológicos em sua teoria.
A “geopolítica do conhecimento” pode ser considerada como uma correlação
entre lugar de enunciação e pensamento, dentro de uma diferença colonial de produção
do conhecimento (MIGNOLO, 2020). A geopolítica do conhecimento preside os
contextos nacionais e linguísticos, a circulação das ideias é mediada pelas relações de
poder, os diferentes lugares de enunciação são levados em conta a partir de suas
posições relativas dentro das hierarquias de poder/saber.
A “geopolítica do conhecimento” é um termo que foi elaborado no contexto do
Projeto Modernidad/Colonialidad/Decolonialidad, empreendido por nomes das ciências
sociais latino-americanas como Aníbal Quijano, Enrique Dussel e Walter Mignolo. No
Brasil, um dos pioneiros no diálogo com esse grupo foi Carlos Walter Porto-Gonçalves,
que prefaciou a publicação em português, pela CLACSO, da coletânea A colonialidade
do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas, organizado
por Edgardo Lander (2005), livro que praticamente inaugura o debate decolonial no
ambiente intelectual brasileiro.
O termo “geopolítica do conhecimento” aparece no título de uma compilação
organizada por Walter Mignolo, Capitalismo y geopolítica del conocimiento: el
eurocentrismo y la filosofía de la liberación en el debate intelectual contemporâneo
(2001). Na introdução do livro, Mignolo aponta que

a geopolítica do conhecimento, paralela à consolidação e expansão do


capitalismo é, literalmente, outra história. Uma “história” que emergiu
no século XVI como consequência de uma dupla operação epistêmica.
A primeira foi a colonização do tempo e, por conseguinte, a invenção
da Idade Média e da Antiguidade como “antecessores” do
renascimento e de uma história linear que era, por sua vez, universal.
Sua origem estava no oriente do Mediterrâneo. A origem religiosa em
Jerusalém. E a filosófica em Atenas. A segunda foi a colonização do
espaço. E dessa colonização surgiram as três AAAs em referência à
centralidade da E. A dupla colonização do tempo e do espaço criaram
as condições para a emergência de Europa como ponto de referência
planetário. E esta operação foi, fundamentalmente, epistêmica (2001,
p. 25).

Embora seja um conceito recorrente, dificilmente encontramos uma definição


precisa do que seja a “geopolítica do conhecimento”. Na citação de Mignolo, fica
evidente como o termo revela uma outra história do conhecimento, que reconsidera a
centralidade da Europa e o lugar subalterno dos demais continentes nessa história. Esta
é uma visão ampla sobre o significado da “geopolítica do conhecimento”. Mas podemos
utilizar esse conceito também em contextos regionais ou nacionais, sempre que se
percebe uma articulação entre espaço, saber e poder, termos contidos na síntese
“geopolítica do conhecimento”.
O filósofo portorriquenho Nelson Maldonado-Torres (2008), por exemplo,
identifica diferentes geopolíticas filosóficas na produção intelectual de autores como
Martin Heidegger (“as geopolíticas filosóficas de Heidegger eram ambiciosas,
grandiosas e racistas”) (p.79) e Frantz Fanon (“a geopolítica filosófica de Fanon era
transgressiva, descolonial e cosmopolita”) (p.82). Nesse sentido, a geopolítica filosófica
significa a imaginação geopolítica contida e expressa no pensamento de cada autor. A
abordagem geopolítica do conhecimento coloca por terra a ideia de modernidade
universalista e chama atenção para a dimensão colonial do pensamento moderno.
Na mesma linha de Mignolo, Maldonado-Torres afirma que
os próprios laços que ligam a modernidade à Europa nos discursos
dominantes da modernidade não conseguem deixar de fazer referência
à localização geopolítica. O que o conceito de modernidade faz é
esconder, de forma engenhosa, a importância que a espacialidade tem
para a produção deste discurso. É por isso que, na maioria das vezes,
aqueles que adotam o discurso da modernidade tendem a adotar uma
perspectiva universalista que elimina a importância da localização
geopolítica (2008, p.84).

A busca do termo “geopolítica do conhecimento” entre a produção brasileira nos


leva a diversas publicações que tratam de políticas educacionais, principalmente no
ensino superior, num sentido diferente dos teóricos da decolonialidade, mesmo que, em
alguns casos, incorporando seus pressupostos (BAUMGARTEN, 2007; AZEVEDO,
2013; YATIM; MASO, 2014; DUTRA; AZEVEDO, 2016; ESTERMANN; TAVARES;
GOMES, 2017; SANTOS, 2020).

II. Três abordagens recentes


Escolhi três publicações da última década que trazem em seu título o termo
geopolítica, com o intuito de analisar suas contribuições para uma geopolítica
latino-americana contemporânea: Práxis espacial en América Latina: lo geopolítico
puesto en cuestión, coordenado por Efraín León Hernández (2017); Tinku y Pachakuti:
geopolíticas indígenas originarias y Estado plurinacional en Bolivia, de Pablo Uc
(2019); e Tiempo de fronteras: una visión geopolítica de la frontera sur de México, de
Daniel Villafuerte Solís (2017).

Geopolítica e práxis espacial


Em seu livro Práxis espacial en América Latina: lo geopolítico puesto en
cuestión, Efraín León Hernández reúne os autores da coletânea em duas partes, os que
desenvolvem o geopolítico histórico na América Latina e os que propõem uma crítica
aos saberes geopolíticos e espaciais desde a América Latina.
Uma vertente da geopolítica na América Latina é proposta por Hernández ao
pensar a geopolítica como práxis espacial. Com fundamentação marxista, Hernández
propõe uma geopolítica entre classes sociais antagônicas (2017, p. 12) que se manifesta
na oposição entre o processo de imposição da ordem territorial do capital internacional e
a defesa dos territórios e bens comuns pelas classes populares (2017, p. 14). São duas
práxis espaciais distintas e opostas: a primeira se emprega em “múltiplos processos de
controle e disposição do território de acordo com as necessidades de acumulação de
capital no neoliberalismo”; a segunda busca “impedir o avanço da primeira a partir da
defesa de territórios na cidade e no campo, assim como dos diversos bens públicos e
comunitários que sintetizam os territórios nacionais” (2017, pp. 99-100). O autor
caracteriza o geopolítico como “capacidade humana de intervir nas ordens espaciais e
territoriais que regem a vida em sociedade”, diferenciando dois momentos: o de
alteração/intervenção das ordens e o de afirmação/normalização como nova ordem
vigente.
Ao analisar a primeira década do século XXI, Hernández diferencia dois grupos
de países a partir das experiências políticas diante da hegemonia neoliberal e do
imperialismo estadunidense: o primeiro grupo dos que “aprofundaram o neoliberalismo
e sua ordem territorial” e o segundo dos que buscaram experiências progressistas, com
“alianças políticas entre suas próprias classes antagônicas nacionais”. Apesar da
distinção, ambas as experiências impulsionaram “tentativas de integração regional com
agendas territoriais neoliberais” (Hernández, 2017, p. 100). A crise econômica do final
da década de 2000, no entanto, teve como consequência mudanças políticas
significativas nos quadros nacionais, que redefiniram o desenho regional da América
Latina, alterando a correlação de forças e abrindo espaço para ascensão direitista da
década de 2010 (2017, pp. 108-109). O capítulo de Efraín León Hernández busca
colocar em perspectiva o espaço histórico e a ordem territorial latino-americana em face
das mudanças estruturais do cenário econômico e geopolítico global.
Entre os demais capítulos do livro, destacamos o capítulo escrito por Frederico
Saracho López, que trata exatamente da geopolítica crítica anglófona e seus limites.
Depois de apresentar os fundamentos da geopolítica crítica, Saracho afirma que a crítica
da geopolítica crítica não é suficiente, pois fica muito presa às representações, deixando
de lado “uma reflexão espacializada das dinâmicas conflitivas e as desigualdades”. O
resultado seria uma “‘crítica’ acrítica”, que não ataca “as bases materiais-espaciais que
estruturam a assimetria” (2017, p.154). Saracho propõe então um método que “permita
abordar o estudo utilizando as representações, entendidas como um trajeto ao
conhecimento da materialidade e não como um fim em si mesmo” (p.165).

Geopolítica e prática espacial indígena


Uma das pautas levantadas por Jaime Preciado e Pablo Uc (2010) foi
aprofundada por eles próprios, em capítulos sobre geopolíticas indígenas (PRECIADO;
UC, 2014; UC, 2014) e no livro de Pablo Uc, Tinku e Pachakuti: geopolíticas indígenas
originárias y estado plurinacional em Bolivia (2019). Num continente marcado pela
violenta conquista colonial e por processos de independência liderados pelas elites
criollas, a questão indígena permaneceu ativa ao longo dos séculos, como um dos
pontos em aberto das formações nacionais. Ao longo do século XX, a questão indígena
se confundia com a questão da terra e das lutas por reforma agrária. Somente nos anos
1990 podemos ver uma reinvenção das lutas indígenas como lutas por território, pela
vida e pela dignidade (PORTO-GONÇALVES, 2015). Nos anos 2000, o
reconhecimento das territorialidades indígenas nas constituições da Bolívia e do
Equador ampliaram o alcance das reivindicações de autonomia indígena no quadro dos
Estados nacionais estabelecidos. Como afirmam Preciado e Uc:

Da perspectiva indígena, implicou-se uma capacidade efetiva para


resistir, reorientar, negociar ou reverter suas definições de soberania,
das práticas de autonomia e autodeterminação não estatais até a
modificação da institucionalidade estatal ‘desde dentro’ orientadas à
construção de regimes plurinacionais (2014, p. 138).

Segundo Preciado e Uc (2014, pp. 144-145), a prática espacial indígena


corresponde a um discurso geopolítico conformado por práticas e representações. As
práticas são as articulações em diferentes níveis, enquanto as representações são as
cartografias alternativas. Os autores discorrem sobre como as designações espaciais de
Abya Yala, Tawantsinsuyu, Tawa Paqa, caracóis zapatistas e Wallmapu rompem os
limites do território nacional constituindo espaços de referência simbólica e material
alternativos. As articulações ocorrem em níveis nacionais, como a Confederación de
Nacionalidades Indígenas del Ecuador (CONAIE) no Equador, a União Nacional de
Índios no Brasil, a Organización Nacional Indígena da Colombia (ONIC) e outros
exemplos nos diversos países da América Latina, e em níveis supranacionais, a
“campanha continental 500 anos de resistência indígena, negra e popular” em 1992 e as
“cumbres continentais de pueblos indígenas” iniciadas em 1990.
As geopolíticas indígenas originárias são um contraponto aos processos de
expropriação relacionados às economias neo-extrativistas na América Latina, que
operam uma desorganização dos territórios originários e camponeses em benefício de
empresas transnacionais. Preciado e Uc aprofundam os casos da Iniciativa para
Integração da Infraestrutura Sul-Americana (IIRSA) e do Projeto Mesoamérica (antigo
Plan Puebla-Panamá), demonstrando como os megaprojetos a eles relacionados
impactam os povos indígenas, que buscam resistir de diferentes formas (2014, pp.
156-163).
No livro publicado em 2019, Pablo Uc se dedica a interpretar as geopolíticas
indígenas, originárias e camponesas que emergiram no início do século XXI através de
ciclos rebeldes que resultaram no “singular entramado” que esteve por trás do projeto de
Estado plurinacional ratificado pela nova constituição boliviana de 2008 (p. 21). Uc se
pergunta “quais foram as projeções geopolíticas colocadas em disputa frente às práticas
e representações dominantes durante a virtual refundação da Bolívia plurinacional” e
“quais foram as bases de configuração e ordenamento social que redefiniram as relações
de poder na Bolívia” desde o ano 2000 (p. 22).
Um conceito trazido à tona por Uc é o de “abigarramiento geopolítico”, baseado
em René Zavaleta, que fala da Bolívia como uma “formação social abigarrada”, que
pode ser traduzida como uma “sobreposição desarticulada” de diferentes modos de
produção e de contextos (cultural, linguístico, etc.) (p. 32). Com esse conceito, Uc
coloca em evidência as margens que não foram incorporadas à implantação do
capitalismo, onde coexistem comunidades políticas originárias “ausentadas” e estruturas
estatais modernas e coloniais. Nessas brechas do sistema político boliviano, Uc busca
“reconhecer os múltiplos entramados geopolíticos da Bolívia” (p. 33) que foram
determinantes para os acontecimentos que se sucederam na primeira década do século
XXI.
É interessante observar a maneira como Uc utiliza conceitos próprios da
linguagem indígena para delinear as geopolíticas de cada um deles: nayrapacha (tempos
antigos), ao falar da recuperação das memórias que se projetam ao futuro, pachakuti
(catástrofe, renovação, revolta, comoção do universo) e tinku (encontro de opostos).
Uc revisita a história institucional boliviana colocando em relevo as diferentes
memórias que se conjugaram para pôr em xeque o Estado boliviano em meados dos
anos 2000: uma memória larga, de longa duração, das lutas anticoloniais, uma memória
intermediária das rebeliões dos anos 1950 e uma memória curta das lutas antineoliberais
dos anos 1990 e 2000 (pgs. 35-40). Essa história das lutas ensejou tanto a “autogestão
da política comunitária” quanto a “demanda de representação e participação política
indígena na institucionalidade e na estrutura estatal” (p. 41). Uc então mapeia os
diferentes movimentos ocorridos no altiplano, nos vales interandinos e nas terras baixas
ou oriente amazônico (pgs. 42-53).
Pablo Uc se propõe a analisar as diferentes gramáticas de poder espacial
engendradas nas lutas políticas na Bolívia, considerando essas gramáticas como “um
ordenamento das diversas linguagens de poder que as comunidades possuem (...) que
participam voluntaria ou involuntariamente num projeto político, em que prevalecem
heterogêneas imaginações espaciais e aspirações político-territoriais”(p. 143). A partir
da regionalização proposta e das gramáticas de poder espacial, Uc sintetiza três
discursos geopolíticos: o cívico-autonomista do oriente boliviano, o indígena originário
camponês e o da elite de poder no governo e na direção do Movimiento al Socialismo
(MAS), partido de Evo Morales (p.151).

Geopolítica, fronteiras e migrações


Um importante campo de estudos geopolíticos é o que se dedica ao tema das
fronteiras e das migrações. Na América Latina o tema ganha grandes proporções devido
às grandes levas de migrantes em direção aos Estados Unidos e à imposição de severos
controles fronteiriços neste país, cujo símbolo maior é o muro em construção o
separando do México.
Faz tempo que a visão geopolítica sobre as fronteiras tem trazido contribuições
relevantes. Se no passado a geopolítica da fronteira era assunto de militares e
diplomatas, hoje em dia os estudos fronteiriços já estão estabelecidos na academia, com
visões críticas que se relacionam com a dinâmica das sociedades e territórios
fronteiriços. Cada fronteira tem sua especificidade. No mundo de hoje, é possível
apontar casos tradicionais de fronteiras militarizadas (Ex: Coreias) e em conflito (Ex:
Caxemira), mas também casos de fronteirização e desfronteirização, termos
contemporâneos que designam processos de maior ou menor abertura entre países, bem
como processos de restrições segmentadas num mundo em que as técnicas de vigilância
e controle ultradesenvolvidas convivem com populações em situações críticas capazes
de arriscar suas vidas para cruzar fronteiras.
Uma contribuição relevante nos estudos de fronteira na América Latina é o livro
Puentes que unes, muros que separam: fronterización, securitización y procesos de
cambio en las fronteras de México y Brasil, organizado por Alberto Hernández, uma
publicação conjunta do Colegio de la Frontera Norte (México) e da Universidade
Federal do Mato Grosso do Sul. O livro se destaca pela tentativa de colocar lado a lado
abordagens sobre as fronteiras dos dois maiores países da América Latina. Embora não
haja nenhum capítulo especificamente comparativo entre os dois países, há um
intercâmbio teórico-conceitual profícuo.
Uma das fronteiras que têm passado por um processo de fronteirização
acentuado é a fronteira sul do México, que nos últimos vinte anos tem sofrido
transformações e alimentado interpretações com diferentes enfoques. Destaco aqui a
importante contribuição de Daniel Villafuerte Solís com seu livro Tiempo de fronteras:
una visión geopolítica de la frontera sur de México. O livro traz uma visão abrangente
de toda fronteira, seja no aspecto mais descritivo, em suas dimensões espaciais,
geopolíticas e geoeconômicas, seja na dimensão teórica sobre o que significa a fronteira.
O autor consegue também operar a dimensão macroescalar, com destaque para os
Estados Unidos, com sua influência nas políticas migratórias e comerciais, e as
empresas multinacionais, com seus interesses econômicos em extração de recursos; e a
dimensão microescalar, com a pobreza, a violência e as organizações sociais que
reivindicam autonomia. Nessa dupla mirada, é possível ver os processos de
fronteirização e desfronteirização como duas caras da mesma moeda (p. 13).
Certos lugares do mundo são especiais ao oferecerem, ao mesmo tempo, pontos
de vista sobre a situação singular e sobre os processos gerais que ocorrem no mundo
inteiro. A fronteira sul do México é um desses espaços privilegiados de onde se pode ter
ambos os pontos de vista, que são cruzados de forma astuta por Daniel Villafuerte Solís
em seu livro.
O livro problematiza a “frontera sur de México como espacio estratégico en la
geopolítica de los Estados Unidos” (p. 17), o que significa trazer à tona as relações entre
a grande potência do norte e seu pátio traseiro numa zona especialmente sensível, pois
envolve a passagem de migrantes de diferentes países para o corredor-fronteira
mexicano. A fronteira sul do México se torna então um portal para se compreender a
América Latina e o sul global em suas relações de subordinação e resistência frente às
pressões hegemônicas.
A partir de seu caso empírico, Daniel Villafuerte passa uma discussão conceitual
sobre a fronteira, marcando a polissemia de seu significado e as mudanças originadas
principalmente com os processos de globalização nos anos 1990, que destruíram e
criaram diferentes fronteiras ao redor do mundo, seguindo as demandas do capitalismo
global. Voltando ao caso empírico, o autor reforça como o “papel das potências, em
especial dos Estados Unidos, foi fundamental na redefinição das fronteiras”, com uma
visão geopolítica que se estende para além do sul do México, atingindo América Central
e Caribe, especialmente no tocante ao controle das migrações.
Villafuerte traz uma contribuição teórica original, cruzando a ideia de fronteira
como frente (frontier) com a ideia de “fronteira migratória vertical” (apud Casillas,
2008), usada para explicar as barreiras contra a migração internalizadas no México,
fazendo o “corrimiento de la frontera norte hacia el sur”, principalmente após os
atentados de 11 de setembro (p. 91). Assim, “a leitura da fronteira em chave geopolítica
permite ver a importância estratégica do território apesar da relevância que hoje têm
adquirido as redes” (p. 93). A emergência dos transmigrantes centroamericanos mudou
a lógica territorial da fronteira sul do México. De fronteira horizontal, por onde passam
os imigrantes, o México passa a ser uma fronteira vertical ao internalizar e acomodar as
formas de controle demandadas a partir das demandas estadunidenses e acordadas com
as elites políticas mexicanas (p. 113).
As promessas de mundo livre e aberto trazidas pela globalização esbarram na
realidade de políticas de contenção das populações e da migração, políticas estas que
são transferidas das fronteiras dos Estados Unidos para as demais fronteiras. Não é
possível pensar na segurança da fronteira norte sem levar em conta o que se passa na
fronteira sul (p. 250). Aqui reside a especificidade da fronteira sul do México: onde se
encontra ao mesmo tempo a funcionalidade de filtrar migrações de terceiros países e a
adoção de padrões que estão hoje sendo difundidos para diferentes fronteiras do mundo,
independentemente de sua relação funcional com a contenção migratória
norte-americana. Nesse sentido, a fronteira sul é um laboratório onde se experimentam
as tecnologias de gestão de populações. Como conclui Villafuerte,

na fronteira sul do México não haverá muros físicos, ainda que há


varios anos a vigilancia se incrementa dia após dia mediante diversos
dispositivos que vão desde a presença combinada de polícias locais,
estaduais e federais, com apoio do exército até medidas mais recentes
como a construção dos chamados Centros de Atenção Integral ao
Trânsito Fronteiriço (CAITF), no marco do Programa Frontera Sur
(pgs. 272-273).

Esse muro invisível é complexo por conta do emaranhado de combinações que


são tecidas para promover a contenção migratória. Mas é importante observar, como faz
Villafuerte, o desenvolvimento no tempo e no espaço das lógicas de controle territorial e
as lógicas de resistência. É uma visão geopolítica que permite extrair do caso singular
da fronteira sul do México um prisma para compreender outros contextos fronteiriços
na América Latina e no mundo.

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