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O QUE É GEOGRAFIA CRÍTICA?

1. As origens

A Geografia crítica -- ou simplesmente Geocrítica -- nasceu em meados da década de 1970,


inicialmente na França e posteriormente na Espanha, Itália, Brasil, México, Alemanha, Suíça e
inúmeros outros países.

Essa expressão, na origem, foi criada ou pelos menos identificada com a obra A Geografia - isso
serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra (de 1976), de Yves Lacoste, e com a proposta da
revista Hérodote (cujo primeiro número também foi editado em 1976), que no início era uma revista
de "geopolítica crítica" e também de geografia, com especial ênfase na renovação do seu ensino em
todos os níveis.

Pode-se dizer que os pressupostos básicos dessa "revolução" ou reconstrução do saber geográfico
eram a criticidade e o engajamento. Por criticidade se entendia uma leitura do real -- isto é, do
espaço geográfico -- que não omitisse as suas tensões e contradições, que ajudasse enfim a
esclarecer a espacialidade das relações de poder e de dominação. E por engajamento se pensava
numa geografia não mais "neutra" e sim comprometida com a justiça social, com a correção das
desigualdades sócio-econômicas e das disparidades regionais. A produção geográfica até então,
dizia-se -- embora admitindo exceções: Réclus, Kropotkin e outros -- , sempre tivera uma pretensão
à neutralidade e costumava deixar de lado os problemas sociais (e até mesmo os ambientais na
medida em que, em grande parte, eles são sociais), alegando que "não eram geográficos".

É lógico que essa nova maneira de encarar a geografia não surgiu do nada. Ela se enraizou e
floresceu num contexto de revisão de idéias e valores: o maio de 1968 na França, as lutas civis nos
Estados Unidos, os reclames contra a guerra do Vietnã, a eclosão e a expansão do movimento
feminista, do ecologismo e da crise do marxismo... E ela se alimentou de muito do que já havia sido
feito anteriormente, tanto por parte de alguns poucos geógrafos quanto por outras correntes de
pensamento que podem ser classificadas como críticas. Desde o seu nascedouro, a Geografia crítica
encetou um diálogo com a Teoria crítica (isto é, com os pensadores da Escola de Frankfurt), com o
anarquismo (Réclus, Kropotkin), com Michel Foucault, com Marx e os marxismos (em particular os
não dogmáticos, tal como Gramsci, que foi um dos raros marxistas a valorizar a questão territorial),
com os pós-modernistas e inúmeros outras escolas de pensamento inovadoras. Mas ela
principalmente representou uma abertura para -- e um entrelaçamento com -- os movimentos
sociais: a luta pela ampliação dos direitos civis e principalmente sociais, pela moradia, pelo acesso à
terra ou à educação de boa qualidade, pelo combate à pobreza, aos preconceitos de gênero, de
cultura/etnia e de orientação sexual, etc.

Quase ao mesmo tempo, embora alguns anos antes, surgia na Grã-Bretanha e principalmente nos
Estados Unidos a chamada Geografia radical, que significou uma reação dos geógrafos anglo-
saxônicos -- ou pelo menos de uma parte deles -- contra o excesso de quantitativismo, contra a
denominada Geografia pragmática, ou quantitativa, que predominou nesses países nos anos 1960 e
na primeira metade da década de 70. Também a Geografia radical reprochou a pretensa neutralidade
da tradição geográfica e, principalmente, o comprometimento implícito dessa Geografia quantitativa
com o poder instituído, com o Estado capitalista e com as grandes empresas. Era preciso revirar a
geografia, afirmava-se, usá-la a favor dos dominados, dos oprimidos ou, como diríamos hoje, dos
excluídos.

Da mesma forma que a Geografia crítica, a Geografia radical buscou subsídios tanto nos movimentos
populares e sociais quanto nas correntes radicais de pensamento, em especial o marxismo. Neste
ponto, ela diferiu um pouco da Geografia crítica, pois esta desenvolveu-se de forma um pouco mais
aberta e pluralista, tendo maior convívio com outras correntes de pensamento e, inclusive,
demonstrando sérias restrições ao socialismo real e ao marxismo "oficial" ou ortodoxo, o marxismo-
leninismo. Além disso, a Geografia crítica sempre insistiu na renovação escolar, na crítica à escola e
à geografia tradicionais, na necessidade de um novo ensino voltado para desenvolver no educando a
criticidade, a inteligência no sentido amplo do termo (ao invés de mera capacidade de memorização)
e, no final das contas, o senso de cidadania plena. Já a Geografia radical -- talvez pelo fato de que a
disciplina geografia foi excluída do currículo escolar das escolas fundamentais e médias dos Estados
Unidos durante mais de três décadas (nos anos 1990 ela voltou, inclusive revalorizada) -- pouco se
preocupou com o ensino. O seu grande adversário -- e portanto, o alvo a ser atingido -- era a
Geografia pragmática e não o tradicionalismo nas escolas fundamentais e médias e, por tabela, no
ensino universitário.

É sintomático o fato de que na última década do século XX, quando começou a ocorrer um forte
movimento de reconstrução do sistema escolar norte-americano (suscitado em grande parte pela
necessidade de concorrer no mercado internacional, sob novas condições históricas, com a Europa,
com o Japão e com outras economias dinâmicas) e a sua abertura à revolução técnico-científica, à
globalização e inclusive aos direitos humanos, os educadores e geógrafos escolares nesse país
tiveram que buscar subsídios em outras sociedades -- na França, na Alemanha, na Espanha e até
mesmo no Brasil. Isso porque, nestes sistemas nacionais de ensino, a disciplina geografia nunca
chegou a ser completamente eliminada e, além do mais, ocorreram aí nos anos 80 vigorosos
movimentos de renovação na geografia escolar, algo que os Estados Unidos não vivenciaram nesse
período. Pouco a pouco, nas escolas elementares e médias norte-americanas vai se tornando usual o
ensino da geografia, inclusive com uma maior carga horária a partir de mais ou menos 1994, que se
preocupa com as relações de gênero (homem/mulher), com a questão da orientação sexual, com
novas formas de preconceito étnico e cultural, com as desigualdades internacionais e inter-regionais,
com os problemas ambientais, etc., algo que para eles é novo em geografia (embora venha sendo
introduzido a um ritmo acelerado), mas que para nós já se tornou relativamente banal desde os anos
1980.

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