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Tapuia, sim, com muito

orgulho! O dramático
itinerário dos povos indígenas
do Ceará.
- abril 19, 2023
Quando os estrangeiros chegaram em nossa terra, foram bem
acolhidos. Poderíamos ter construído uma boa relação de amizade e
intercâmbio cultural que enriqueceria ambas as partes. Mas eles
resolveram dizer que esta terra pertencia ao rei de Portugal e não a
nós.
Estavam dispostos a colonizar nossos territórios e usar nossa terra e
nossa mão de obra para aumentar as rendas da coroa. Eles, os
estrangeiros, nos chamavam de tapuia, de selvagens, de gentios,
bárbaros, silvícolas, vermelhos (por causa da cor da nossa pele),
diziam que tínhamos a “língua travada” e éramos preguiçosos.
Disseram que nossos costumes eram imorais e que nossos rituais eram
superstição.

Os estrangeiros entraram, dividiram a terra entre eles e nós fomos


escravizados. Outros tantos foram assassinados e outros fugiram.
Como muitos de nós não aceitamos pacificamente a invasão, eles
resolveram negociar: davam uma légua de terra para nossa gente, nos
deixavam vivos e nós passaríamos a servir ao rei de Portugal sob o
comando de um padre que nos ensinaria os bons costumes e a fé.
Deveríamos lutar nas guerras contra nossos parentes para defender o
rei que nos subjugava. Na divisão deles, cada estrangeiro recebia no
mínimo 3 léguas de terra. Para nós, uma légua só, e ainda usariam
nossa mão de obra. A esse confinamento chamaram aldeamento. Foi
assim que em 1694 o Capitão Mor Fernão Carrilho mandou aldear –
confinar os índios Anacé e os Jaguaribara a sete léguas de Fortaleza.
Eles tomavam nossas terras, escravizavam nosso povo, perseguiam e
matavam nossos parentes. Insatisfeitos com essa realidade, nós nos
juntamos, Anacé, Jaguaribara e Paiacu, e atacamos a vila de Aquiraz
em agosto de 1713. Diante disso o governo deu ordem para exterminar
nossa raça ou nos ferir de forma tão cruel que nunca mais pudéssemos
nos levantar contra o rei de Portugal.

Nós, Anacés e Jaguaribaras, encontramos refúgio na Serra de Baturité


onde vivemos em paz até 1725, quando as tropas do Capitão Mor do
Ceará atacaram nossa adeiota e fizeram guerra contra nós. Sob
constante ataque, nós não nos rendemos e, durante 12 anos,
oferecemos resistência aos invasores e defendemos a serra da sanha
dos colonizadores. A luta dos Anacé e Jaguaribara em defesa da serra
de Baturité só terminou em 1737 quando os últimos focos da
resistência foram destruídos. Mas não fomos exterminados.
Continuamos aqui. Mudamos de nome, escondemos nossa identidade
indígena, sempre com medo da violência dos que iam prevalecendo
sobre nós.

Em 1863 o governo do Ceará decretou que não existia mais indígenas


por aqui. Disse que os últimos haviam morrido, fugido ou se
misturado de tal forma que já não se podia mais chamar de "índio". E
os seus antigos territórios poderiam ser usurpados. Daí em diante a
historiografia reforçou a tese do desaparecimento indígena e fez
prevalecer a “apologia do índio morto”. O discurso comum fazia a
memória do vencedor.

Depois de mais de um século, no início da década de 1980, nós, índios


do Ceará começamos a reafirmar nossa identidade e a reivindicar
nossos direitos de povos originários. No final dos anos 1990 os Anacé
se levantaram em São Gonçalo do Amarante e Caucaia, romperam o
silêncio e reafirmaram sua ancestralidade em defesa de suas terras
diante da construção do Complexo Industrial e Portuário do Pecém.
Os Jaguaribara continuaram resistindo na Serra de Baturité e por todo
Ceará os indígenas vão reafirmando sua identidade e cultura ancestral.

Atualmente nós somos 15 povos indígenas no Ceará: Gavião,


Jenipapo-Kanindé, Kalabaça, Kanindé, Kariri, Pitaguary, Potiguara,
Tapeba, Tabajara, Tapuia-Kariri, Tremembé, Tubiba-Tapuia,
Tupinambá, Anacé e Karão Jaguaribara. E como o mundo dá muitas
voltas, o governo do Ceará que em 1863 havia decretado a não
existências de índios no Ceará, sancionou na quinta feira (2 de janeiro
de 2020) a Lei 17.165, que reconhece a existência, contribuição e os
direitos dos povos indígenas para formação da sociedade cearense.

É claro que o reconhecimento do governo não resolve o problema da


invisibilização, preconceito e da violência contra os povos indígenas.
Mas nestes tempos em que o governo federal atua retirando nossos
direitos, negando nossas conquistas e violando nosso modo de vida, é
necessário reafirmar nossa identidade, nossa ritualidade, nossa
espiritualidade e nossa resistência. Estamos aqui como sempre
estivemos. Somos indígenass, somos Karão Jaguaribara, somos
Anacé... somos tapuia, sim, com muito orgulho.

Pe. Evando Alves de Andrade (Homilia na festa de São Sebastião por


ocasião da participação dos parentes Karão Jaguaribara em
11.01.2020)

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