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Os tuxá de Rodelas e as ilhas do Rio-Mar:

buscando justiça entre mundos submersos

Até a chegada da colonização e da modernidade, esse povo indígena do Nordeste brasileiro


vivia ao redor do rio Ópera. Eles viviam nas ilhas que consideravam sagradas, se divertiam
nas cachoeiras, pescavam para o seu alimento diário e se banhavam entre as pedras como
forma de medicina ancestral. Além disso, eram exímios canoístas e deslocavam-se de uma
zona para outra através dos afluentes. Tudo mudou com a chegada da hidrelétrica de
Itaparica: eles foram deslocados à força para um território sem rio e os reparos prometidos
nunca foram cumpridos. O autor se pergunta qual é a compensação por ter tirado uma parte
importante de suas vidas e promete que seu povo continuará lutando para que as gerações
futuras possam desfrutar de seu rio.

Por Felipe Tuxá - 1° de maio de 2023

Nosso pajé (xamã) Armando contou-me como o meu povo, os Tuxá de Rodelas no estado da
Bahia no Nordeste do Brasil, perdeu muito de seu modo de vida antigo. No tempo do avô de
Armando, João Gomes, ainda havia uma trinta e tantas ilhas no majestoso rio São Francisco
de onde os Tuxá faziam a sua vida. O pajé relembra os primeiros conflitos que nosso povo
teve: “O homem forte da região, o Senhor Aníbal. Chegou com muitos bois e soltou aqui. E
daí pra frente foram tomando, tomando, tomando, quando só ficou a Ilha da Viúva.
Ameaçados de morte, sem armas pra brigar, só tinham arco e cacete. Nosso povo assistia
impotente à perda paulatina de suas terras. Mesmo assim, meu avô estava na luta atrás dos
direitos”.

O povo Tuxá entrou nos registros historiográficos oficiais na segunda metade do século XVII,
período marcado pela expansão portuguesa no interior do Nordeste do país. A colônia
portuguesa cobiçava aquelas terras para criação de gado bovino para supri-la de carne, couro
e outros derivados. Esse foi o início sistemático de processos de territorialização dos diversos
povos indígenas que ali habitavam. Os colonizadores tomaram seus espaços tradicionais e,
quando não foram mortos, levaram-nos à força para os assentamentos, pequenas parcelas
de seus territórios de origem. Eles tiveram que sair do caminho para os bois passarem.

Entre os séculos XVII e XIX, a maior parte do que sabemos “oficialmente” sobre a colonização
e o tratamento destinado aos Tuxá e demais povos na região advém de registros de
missionários e outros documentos com pouco interesse em descrever as características
culturais e a história daquelas coletividades. A memória indígena, por sua vez, segue repleta
de lembranças de políticas que gerenciavam aquelas populações e tentavam apagar a sua
existência com proibições linguísticas, castigos, trabalho escravo, violência sexual e esbulho
territorial. Tais experiências continuam a ser transmitidas oralmente de geração para
geração, como uma cartografia historiográfica inscrita na mente por cantos, mitos, narrativas
e ensinamentos.

Um rio para viver

Há, todavia, um elemento central que aparece em boa parte das narrativas (sejam elas
oficiais ou não) acerca dos povos indígenas dessa região: a centralidade e efervescência da
vida indígena em torno das águas e do Rio Opará. Esse rio foi batizado pelos colonizadores
como “Rio São Francisco”, mas o seu nome nativo, como o conhecemos até hoje, tem a sua
origem no tronco linguístico Tupi-Guarani -pa’ra, que significa “grande-rio”, ou mesmo,
“rio-mar”. Com o tempo, tornou-se “O Rio-Mar” ou “Opará”.

A Região do Sub-Médio São Francisco, entre os estados da Bahia e Pernambuco, entra na


história com as descrições de suas extensas e incontáveis cachoeiras, com as narrativas sobre
o Rio que leva água para uma região extremamente seca, a caatinga. As histórias sobre os
povos indígenas contam que eles se deslocavam em canoas e eram ligados por intensas
redes de relações simbólicas, rituais, econômicas e matrimoniais. Pankararu, Truká, Tuxá,
Tumbalalá, Kariri-Xocó, Xocó, Truká-Tupã, Kapinawá, Pipipã e Kambiuwá são alguns dos povos
que hoje compõem o mosaico étnico indígena na bacia do Opará.

A territorialidade tuxá era marcadamente fluvial. Moravam em ilhas, terras muito férteis e
cobiçadas, ideais para o cultivo de mandioca, milho, cana, abóbora, melancia e cebola,
seguindo o fluxo da vazante. No fim do século XX, viviam na margem baiana do Rio, em terra
firme, onde se estabeleceram num regime de dupla morada. O antropólogo Orlando
Sampaio-Silva, que pesquisou os Tuxá nas décadas de 1970 e 1980, enfatiza a centralidade
do Rio: “Os Tuxá se consideram índios do rio. Falaram com muito orgulho dos seus
conhecimentos da arte de navegar o rio São Francisco, de dia e de noite, enfrentando suas
cachoeiras, descendo e subindo o rio ou atravessando-o de lado a lado, caminhando pelas
ilhas”.

Algumas décadas antes, o etno-arqueólogo norte-americano William Dalton Hohenthal Jr. fez
uma expedição pela bacia do São Francisco com o intuito de registrar a presença indígena na
região, ou, conforme a tônica da época, o que restaria dela. Sobre os Tuxá, escreveu que, em
1702, eram cerca 600 pessoas; em 1852, 132 e, em 1952, 200. “As tribos Tuxá, e da nação
Prokáz, são índios de canoa, cuja economia está baseada na pesca. Fazem eles canoas de
troncos de árvores São exímios navegadores nas águas traiçoeiras, dessa parte do rio São
Francisco”, explicou Hohenthal em seu artigo As tribos indígenas do médio e baixo São
Francisco.

Muito mais que um recurso econômico

Esses autores perceberam a importância do Rio para a comunidade. Todavia, pautavam essa
importância em termos que lhes eram familiares, próprios das suas sociedades, logo, como
um domínio apartado da experiência humana, inato e passível de ser usufruído em termos
utilitaristas. Viam o Rio como se pensassem em seu valor econômico, assim como percebiam
a terra apenas pelo que ela pode produzir. Mas os Tuxá não se relacionavam com o Opará
dessa forma. O Rio era central para eles não apenas por ser a água um recurso vital, mas por
ser ele mesmo parte constitutiva indissociável da sua identidade e cosmovisão.

Naquelas ilhas viveram seus ancestrais, lá foram enterrados e naquelas águas se banharam.
Os seus rituais, eram, preferencialmente, realizados nas Ilhas, onde podiam estar isolados da
presença de não-indígenas. Não é por acaso que associam culturalmente a saúde e o
bem-estar físico, corporal e mental dos indivíduos Tuxá ao consumo e banhos na água do
Rio. Assim é o testemunho do Cacique Bidú (LINK), um dos líderes mais velhos da aldeia: “Na
época do rio corrente, eram muito bonitas as águas, sadias, os roncos da cachoeira, o cantar
das águas. O banho de cachoeira servia de remédio para nós índios, servia para o sistema
nervoso. Mergulhávamos entre as pedras, as águas passando por cima do corpo. Daí vinha a
cura”.

Por isso, é possível afirmar que o fenômeno talvez mais marcante da história contemporânea
do povo Tuxá seja a construção da Hidrelétrica de Itaparica no fim da década 1980 pela
Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF). A comunidade foi obrigada a deixar para
trás suas casas, em 1987, devido à inundação da represa e à formação do lago represado. Se
outrora seu território tradicional tinha mais de 30 ilhas, quando a barragem foi inaugurada,
apenas uma, a Ilha da Viúva ainda restava. Por fim, todo o seu mundo foi inundado.

Os Tuxa foram reassentados na Terra Indígena Nova Rodelas, no norte da Bahia. numa aldeia
construída pela empresa. Os acordos firmados, que prometiam o ressarcimento das terras
inundadas, seguem pendentes, mais de 30 anos depois, sem resolução à vista e a
comunidade, sem terra.

Patrimônios imateriais, sentidos de justiça e de reparação

O autor deste texto também é Tuxá. Mas um Tuxá nascido em 1990 e que, portanto, não
experimentou a vida nas ilhas como as gerações anteriores. Ouviu muitas vezes os pais,
avós, tios e demais parentes falar do modo de vida Tuxá. Mas não pôde remar entre ilhas,
apenas vê o Rio parado, sem as corredeiras que lhe eram tão próprias.

É difícil pensar em justiça para casos como esse. Como reparar uma comunidade por ilhas
sagradas que lhe foram tomadas? Como compensar por um Rio inteiro que foi estancado por
uma barreira de concreto em nome do “progresso da nação”? Como ressarcir as gerações
que foram, as que vieram depois da barragem e as que ainda virão? Como quantificar o valor
dos cemitérios ancestrais submersos e pagar uma indenização diante dos patrimônios
materiais e imateriais que se perderam e nunca mais podem ser transmitidos para as
gerações futuras? Como ensinar o manejo da mandioca em vazante quando não há mais
vazante? Como quantificar a dor da perda e calcular o ônus da morosidade em tais
ressarcimento?
Embora quando falamos acerca da multiplicidade de formas violentas às quais um povo
indígena pode ser submetido, falamos dos assassinatos, dos massacres e chacinas, as
histórias dos povos indígenas no Brasil são, talvez a maioria, muito próximas da experiência
do povo Tuxá. Além dos momentos de violência crítica e espetacular, são marcados por atos
violentos de longa duração, às vezes mais sutis, mas cujo potencial desagregador está
sempre presente e ativo. Tentam destruir lentamente os mundos conhecidos, os mundos
indígenas que desejamos deixar para as gerações futuras, para que nossos filhos vivam como
um Tuxá gosta de viver.

Escrever sobre a violência que acomete os povos indígenas é se deparar com a inventividade
dessas tecnologias genocidas características dos territórios clamados pelo colonialismo
europeu até os dias de hoje. Falar de genocídio e de justiça é sempre sobre reparar o
passado, mas deve ser, sobretudo, sobre os modos com os quais podemos assegurar aquilo
que é essencial para que cada povo indígena possa florescer enquanto povo, ao seu modo
particular.

Voltando a ser gente do rio

O antropólogo Nássaro Násser, que esteve entre os Tuxá e produziu um trabalho chamado
Economia Tuxá, em 1975, terminou sua dissertação alertando que uma “nova” ameaça
pairava no horizonte da comunidade. Referia-se à hidrelétrica que veio a ser construída.
Diante do longo histórico de esbulho e ataques sofridos, Násser concluiu “mormente agora,
que se sentem ameaçados de ter seu território submerso nas águas do São Francisco, pela
barragem que será construída pela CHESF, quem sabe, o último e definitivo golpe que lhes
dará a sociedade envolvente”.

Não foi o último golpe, porque as novas gerações continuam chegando. E chegam ávidas por
justiça pelos parentes que se foram sem ver a terra prometida nos acordos e convênios
firmados e também por construir cotidianamente um futuro digno para o povo Tuxá. Em
2017, a comunidade se organizou e retomou uma área na margem do Opará, conhecida
como “Aldeia Avó”. O território fica em frente ao território que foi inundado. Desde então,
temos ocupado esse espaço, cobrando do Estado brasileiro as medidas cabíveis em prol de
nossos direitos.
Nosso Pajé costumava dizer que “o índio sem terra não vive”. O que é curioso quando
consideramos que por três gerações nascidas na nova aldeia, o povo Tuxá tem se reinventado
para viver em um mundo sem as ilhas, em um mundo sem terra. É assim que ao retomarmos
a Aldeia Avó, , retomamos também o Rio, reinventamos o presente para retomar o futuro. As
crianças voltam a nadar nas águas do Opará, e é também a própria noção de pessoa, da
pessoa tuxá, que se refaz. Voltamos a ser povo do Rio, a ser Opará e ali tiramos a inspiração
para reforçarmos a luta por direitos e justiça.

Felipe Tuxá é indígena do povo Tuxá, antropólogo e professor do Departamento de


Antropologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia. Contato: felipemaior@ufba.br

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