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BLACK BRECHT

E SE BRECHT FOSSE NEGRO?

DIONE CARLOS

DRAMATURGIA DESENVOLVIDA PARA O COLETIVO LEGÍTIMA DEFESA.

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PARTE I
O TEMPO DOS VIVOS
PRÓLOGO DO COLETIVO LEGÍTIMA DEFESA
Narrador(a)
Boa Noite
É uma honra para nós, nos unir a vocês, hoje, dia (dizer o dia e a hora), no momento em
que refletimos sobre a continuidade da violência social e racial, estrutural no Brasil,
explorando os significados novos e antigos de verdades há muito estabelecidas, mas ainda
não reconhecidas .
Nós sabemos que o processo histórico de colonização foi uma conquista marcada pela
violência de um grupo de seres humanos sobre outros e da conquista das terras que esses
povos mantinham.
Assim, precisamos reconhecer que os ataques genocidas contra os primeiros povos
dessa terra são a arena fundadora das muitas formas de violência estatal e paramilitar que
se seguiram. Além disso, a violência da colonização europeia, incluindo o tráfico de
pessoas para a escravidão, constitui a história que a África , a Ásia, o Oriente Médio e as
Américas compartilham. Em outras palavras, há uma história mais extensa e mais
abrangente da violência racista que testemunhamos hoje.
Nossa compreensão e nossa resistência em relação às formas contemporâneas de
violência devem, portanto, ser suficientemente amplas para reconhecermos o
enraizamento da violência histórica, da violência do colonialismo de ocupação contra os
indígenas (os ameríndios), no território brasileiro e da violência da escravidão infligida
aos povos africanos.
Nosso trabalho, aqui, hoje, ou seja, nossa peça/intervenção, é parte da evidência da
condição de incompletude das lutas planetárias por igualdade, justiça e liberdade.
Se as lutas fossem completas, não seria necessário, o julgamento que iremos testemunhar,
porém, hoje, diante do tribunal da história, ainda é necessário reafirmarmos que a
liberdade é uma luta constante.
Este é o raio X do Brasil.
Sejam Bem Vindas.

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PARTE II
O TEMPO DOS MORTOS
INSPIRADA NA PEÇA O JULGAMENTO DE LUCULUS, DE
BERTOLD BRECHT.
O JULGAMENTO DO HOMEM COLONIAL PELOS
CONDENADOS DA TERRA.

PERSONAGENS:
LUCULUS BRASILIS (General, missionário, civilizador, latifundiário, homem de negócios,
investidor, pensador, mercador de escravos que conquistou Pindorama).
ARAUTO (NARRADOR ONIPRESENTE)
VOZ CAVERNOSA (SABOTAGE)
AMARA (QUILOMBOLA)
JUIZ DOS MORTOS (JUIZ VERMELHO- UM GRANDE OBÁ)
JURADOS DO REINO DOS MORTOS:
PROFESSOR- JURADO
AMA DE LEITE- JURADA
COVEIRO-JURADO
PEIXEIRA/MÃE- JURADA
NÃO-NASCIDO- JURADO
TESTEMUNHAS DE PEDRA:
REI CEGO
YAYÁ- MULHER ENGRA COM PERUCA BRANCA
PASTOR DE OVELHAS
ESCRAVIZADOS 1 E 2
MENINA
HOMEM COM PATENTE NO PEITO
COZINHEIRA

FALANGE (VOZES)

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Narrador(a) anuncia a cena.

O CORTEJO FÚNEBRE
Ruídos de uma grande multidão

ARAUTO- Atenção. Está morto o grande Luculus Brasilis, o general, missionário,


civilizador, latifundiário, homem de negócios, investidor, pensador, mercador de escravos
que conquistou Pindorama, a Ilha de Vera Cruz, a Terra de Santa Cruz, o Brasil, que
derrubou os Tupis, os Tupinambás, que escravizou os bantus, os Geges, que de riquezas
cobriu nossa cidade de São Paulo, do Rio de Janeiro, Ouro preto, São Luiz do Maranhão,
Salvador de Recife.

À frente do catafalco, carregado por soldados, caminham com os rostos cobertos, os


mais ilustres varões da potentíssima terra do Brasil, e, ao lado dele, vão seu advogado
e o seu cavalo.

CANTO DOS SOLDADOS QUE LEVAM O CATAFALCO


(Catafalco: Estrado alto sobre o qual se coloca o ataúde ou a representação de um
morto a quem se deseja prestar honras)

Segurem, parceiros!
O senhor das terras do Brasil
Vai a caminho do Reino das Sombras
Cuidado para não tropeçarem!
O que em metal e carne conduzimos
Foi um dos poderosos deste país.

ARAUTO– Atrás dele vai sendo carregado um gigantesco friso, onde se representam os
seus feitos heróicos e que lhe servirá de pedra tumular.

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CANTO DOS ESCRAVIZADOS QUE CARREGAM O FRISO
Cuidado, olha a pisada!
Não podemos tropeçar!
Nós, que levamos o friso
Com as cenas de triunfo e glória!
Com suor nos olhos, quase cegos!
Não podemos soltar a mão da pedra!
Muita atenção: Se ela cair no chão
Pode ficar reduzida a pó, ao nada!

ARAUTO- Neste momento, passa o cortejo pelo obelisco que a cidade erigiu ao valoroso
filho. As mulheres levantam as crianças. Os soldados contêm os espectadores nos cordões
de isolamento. Atrás do cortejo, a rua parece que está de luto: Pela última vez, vê passar
o grande Luculus Brasilis.

Diminui o rumor da multidão e afasta-se o cortejo.

O SEPULTAMENTO

A Voz Cavernosa é um guardião da porta do Reino das Sombras (Narrador do Mundo


dos Mortos/SABOTAGE).

ARAUTO– Eis que, em Brasília, eleva-se um pequeno mausoléu Imperial construído na


Catedral Metropolitana para ser, depois da morte, o abrigo de um Civilizador-General.
Em frente a ele, um grupo de escravizados chega trazendo o friso triunfal. À pequena
tumba chega, afinal, o morto.

VOZ CARVENOSA- Alto!

ARAUTO– Da parede fronteira faz-se ouvir uma voz. É a voz cavernosa quem fala agora.
Daqui em diante, é ela quem dá as ordens.

VOZ CAVERNOSA– Virem o estrado! Para além deste muro ninguém vai carregado!
Para além deste muro cada qual vai com os seus próprios pés!

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ARAUTO– Os soldados vão inclinando o estrado. E o grande Civilizador-General vê-se
de novo em pé, sem muita segurança.

VOZ CAVERNOSA- Ninguém cruza o umbral acompanhado!

ARAUTO– Assim fala a voz que dá as ordens. O advogado de defesa deseja entrar para
lavrar um protesto.

VOZ CAVERNOSA – Protesto rejeitado!

ARAUTO – O Civilizador-General está imóvel.

VOZ CAVERNOSA – Atravesse o umbral!

ARAUTO– O Civilizador-General chega ao pequeno umbral, detém-se ainda uma vez,


olha ao redor e vê com olhos pesados, os soldados e os escravizados carregando a lápide.
Vê também, pela última vez, seu cavalo, seu advogado e o verde do Pau-Brasil. Vacila.
Sente o vento da rua pela estreita passagem. E pela primeira vez, escuta o vento.

Barulho de vento.

VOZ CAVERNOSA– Tira o elmo, que a nossa porta é baixa!

ARAUTO – E o Civilizador-General tira o seu lindo elmo, e entra, curvado.

A RECEPÇÃO

VOZ CAVERNOSA – Desde que entrou, o novato está junto à porta, imóvel, com o
elmo embaixo do braço: É uma estátua dele próprio. Outros mortos também recém-
chegados, estão sentados no banco, esperando. Como na vida esperando: Pela cerveja no
bar, pela namorada chegar, pela sorte mudar.

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LUCULUS BRASILIS – Por Jesus e a Virgem Santíssima, que significa isto? Aqui estou
eu, de pé, esperando? Ouve-se ainda, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Curitiba,
Brasília, a chorar de luto por mim e aqui não há ninguém para me receber? Já tive
militares, pastores e pecuaristas na porta da minha casa, esperando por mim, muitas vezes
por meses! Não há ordem neste lugar? Onde estão todos os homens e mulheres de bem?
Eu ordeno que me levem daqui! (Silêncio). E ainda tenho de ficar no meio desta gente?
(Silêncio).

AMARA– Senta, novato. Senta, você deve estar cansado. (Luculus silencia). Não seja
teimoso: Você não vai poder ficar de pé o tempo que tem para esperar. Eu cheguei muito
antes de você....Quanto dura o julgamento lá dentro, eu não sei dizer. E é fácil de entender.
O exame das ações que tomamos em vida tem que ser muito bem feito e acontece
individualmente, porque disso depende o veredito: Ser condenado ao inferno ou ser
chamado ao Reino dos Bem-aventurados. Muitas vezes o julgamento é rápido. Aos juízes,
basta uma olhada, e pronto: "Esse aí", dizem eles, "teve uma vida limpa e foi útil aos seus
concidadãos". Pela medida dessa utilidade é que eles dão as melhores sentenças e dizem
ao julgado: "Vá em paz! ". Mas em outros casos, o julgamento pode levar dias,
principalmente para os que mandaram alguém para cá, para o Reino das Sombras, antes
de ter chegado a hora certa. Quanto a mim, estou um pouco preocupada, mas tenho
esperança de haver entre os jurados, pelo que já ouvi, alguns membros mais pobres que
bem sabem como é difícil para nós a vida nestes tempos de guerra. Eu o aconselho,
novato...Aprenda a esperar.

AMARA

Não sou o que você pensa,

nem sou o que você pensa que sou.

Daí não vou deixar mais uma vez o seu olhar me moldar,

um olhar que raramente consegue me enxergar.

Sou dessas mulheres saídas de lugares

que você custa acreditar.

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Mulheres que giram no ônibus, sobem ladeiras,

carregam crianças, tropeçam pelas calçadas

e calçadões. Sou tudo isso e muito mais.

Mulheres que aparecem em dias que você desconhece,

mas sabe clicar em dias de votos e volteios,

falando em tudo que já fizeste e entoas liberdade

que nunca se sabe pra quem.

Pois eu vos digo:

somos Etelvina, Luiza, Amara e Leonor

saídas de ventre preto, cafuzo, retinto, que a todo instante você tenta matar.

Não, senhores, e algumas senhoras,

trago na língua travado o que vocês no alvoroço tentam incriminar.

Venho dizer: tire a senzala

que você tenta me associar,

e põe no lugar, quilombos e quilombolas, que estamos sempre a reinventar.

E para de me nomear.

Não sou o que você pensa,

nem vou deixar mais uma vez

você tentar me catalogar

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pelo olhar do outro

que raramente me vê.

Sou daquelas mulheres, como tantas outras,

Cremilda, Amara, Maria da Conceição,

que cortam caminhos, vagueiam nas feiras,

cochilam no ônibus, esperam nas filas

e rodeiam um tambor.

E peço, rogo, para de nomear,

pois agora e sempre sou Maria do Quilombo

só você não consegue enxergar.

VOZ CAVERNOSA– Amara!

AMARA– Estão chamando por mim. Veja como sai dessa, novato! Sente -se!

ARAUTO– O novato está imóvel junto à porta, mas o peso de suas condecorações e as
palavras da senhora já o fizeram mudar. Olha ao redor, para certificar-se de que está
sozinho e faz menção de ir em direção ao banco. Mas é chamado antes de sentar: A
senhora fora julgada pelos jurados com um simples olhar.

VOZ CAVERNOSA– Louculus!

LUCULUS– Meu nome é Luculus, Luculus Brasilis. Aqui não sabem como eu me
chamo? Descendo de uma ilustríssima família de estadistas, civilizadores e generais. Só
na boca suja dos ignorantes (escravos) e da gentinha baixa é que me chamam Louculus.

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VOZ CAVERNOSA– Louculus!

ARAUTO– E assim é chamado, mais de uma vez, pelo seu apelido marginal. Vai
Luculus, o grande Civilizador-General que conquistou Pindorama , que derrubou os
Tupis, os Tupinambás, que escravizou os Bantus, os Gegês, que de riquezas cobriu nossa
cidade de São Paulo, do Rio de Janeiro , Ouro preto de São Luiz , Salvador de Recife. À
noite, quando em cima dos túmulos, senta a família brasileira para jantar, vai Luculus,
perante o Tribunal do grande Juiz dos mortos se apresentar.

ESCOLHA DO DEFENSOR

O JUIZ DOS MORTOS FALA O IDIOMA DE UM PAÍS AFRICANO E UMA


TRADUÇÃO SIMULTÂNEA ACONTECE DURANTE A CENA.

ARAUTO– Perante o Supremo Tribunal do Reino das Sombras apresenta-se Louculus,


o general-civilizador que diz chamar-se Luculus. Sob a presidência do juiz dos Mortos,
cinco jurados participam do julgamento: Um professor, uma peixeira, um coveiro, uma
ama de leite e um não nascido . Estão sentados em cadeiras altas, sem mãos para segurar,
nem bocas para comer e os olhos, há muito, apagados. Incorruptíveis.

JUIZ DOS MORTOS- Sombra, aqui estás para ser julgado. Precisas prestar conta da
existência que tiveste entre os homens. Se o que fizeste foi bom ou mal, se a tua face é
digna de ser vista no Reino dos Bem-Aventurados. Mas tu vais precisar de um defensor.
Tens algum defensor, entre os que pairam no Retiro dos Bem-Aventurados?

LUCULUS BRASILIS– Solicito, então, que seja convocado o famoso Marquês de


Pombal, para, como perito em ações civilizatórias , como foram as minhas, prestar
depoimento.

VOZ CAVERNOSA– Marquês de Pombal!

ARAUTO– Ninguém responde.

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VOZ CAVERNOSA– No Retiro dos Bem-Aventurados não há nenhum Marquês de
Pombal.

JUIZ DO MORTOS– Sombra, o teu especialista é desconhecido no Reino dos Bem-


Aventurados.

LUCULUS BRASILIS– Como? Ele expulsou os jesuítas, proibiu o nheegatu, tornou


obrigatório o uso do português, do Oiapoque ao Chuí, o Inesquecível, que deixou na terra
a marca indelével dos seus sapatos. O poderoso Marquês...

JUIZ DOS MORTOS – Não é conhecido aqui.

Silêncio.

LUCULUS BRASILIS – Padre Manoel da Nóbrega.

VOZ CAVERNOSA– Padre Manoel da Nóbrega!

Silêncio

VOZ CAVERNOSA- No Retiro dos Bem-Aventurados não há nenhum Padre Manoel


da Nóbrega.

LUCULUS BRASILIS– Como?

JUIZ DOS MORTOS – Não é conhecido aqui.

Silêncio.

LUCULUS BRASILIS – Rui Barbosa.

VOZ CAVERNOSA– Rui Barbosa!

ARAUTO- O silêncio, mais uma vez.

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VOZ CAVERNOSA– No Retiro dos Bem-Aventurados não há nenhum Rui Barbosa!

LUCULUS BRASILIS – Não é possível.

JUIZ DOS MORTOS– Não é conhecido aqui.

LUCULUS BRASILIS–. Solicito, então, que seja convocada a redentora, Isabel Cristina
Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bourbon e Bragança, Princesa
Isabel, para que, como perita em ações modernizadoras, como foram as minhas, prestar
depoimento.

VOZ CAVERNOSA- Princesa Isabel!

ARAUTO- É, silêncio de novo.

.VOZ CAVERNOSA– No Retiro dos Bem-Aventurados não há nenhuma


Princesa Isabel.

LUCULUS BRASILIS – Não é possível!

JUIZ DOS MORTOS – Este nomes históricos, aqui, são apenas o que realmente foram
em vida. Aqui não assustam, nem enganam mais ninguém. Suas frases são lorotas, seus
feitos não merecem registro, suas glórias são, para nós, apenas fumaça, que só serve para
indicar onde houve o incêndio. Sombra, a tua postura dá a entender que o teu nome talvez
esteja ligado à realização de estupendas façanhas. Mas são façanhas das quais, aqui, não
se toma conhecimento.

LUCULUS BRASILIS – Peço então que se traga a este local o friso do meu túmulo,
onde, talhada em pedra, está a minha carreira triunfal!

ARAUTO- É difícil para um Civilizador-General entender que agora é apenas sombra.

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LUCULUS BRASILIS- Mas, francamente, como pode ele ser trazido? Escravos o
arrastavam, mas com certeza, aqui, os vivos não entram.

JUIZ DOS MORTOS – Escravizados? Sim, entram, a vida deles é uma espécie de morte,
pode-se até dizer que eles estão só com um pé na vida. Apenas um passo os separa do
Reino das Sombras. Traga-se, pois, o friso!

ENTRADA DO FRISO
Filme de 5 minutos sobre a colonização : Entenda o processo colonial em 5 minutos.
Black Brecht apresenta: Kuthetha ou Shecassombisiwá- O julgamento do homem
colonial pelos condenados da Terra.

Fim da primeira parte. Começo da segunda.

ARAUTO– Junto ao muro, os escravos ainda estão esperando, indecisos: Para onde vai
o friso? E eis que através do muro, de repente, uma voz se faz ouvir.

JUIZ DOS MORTOS– Entrem!

ARAUTO – Em Sombras transformados, arrastando o pesadíssimo fardo, lá vêm eles,


atravessando o muro.

CORO DOS ESCRAVIZADOS –Da vida para a morte levamos este fardo, sem recusa.
Há muito tempo, o nosso tempo não é nosso, tampouco é sabido o fim do nosso caminhar.
Obedecemos novas vozes assim como às velhas. Para que perguntar? Para trás nada
deixamos e à frente nada temos a esperar.

ARAUTO– E atravessando o muro vão aqueles que não possuindo nada, tampouco um
muro havia de deter. Chegam carregando o seu fardo. Ante o supremo tribunal das
Sombras está o friso com as suas cenas triunfais. Reparai bem, jurados de Além-Túmulo:
Um rei cego, uma mulher negra com uma peruca branca na cabeça, um pastor segurando
um cajado com uma mão e a cabeça de uma ovelha com a outra, a imagem de um santo
banhado a ouro sendo carregado por dois escravizados, uma menina exibindo uma

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tabuleta com a inscrição: Leilão, um homem com patente no peito, com a mão erguida,
saudando o Civilizador- General e uma cozinheira cortando um peixe.

JUIZ DOS MORTOS – São essas, Sombra, as tuas testemunhas?

LUCULUS BRASILIS – São essas, sim. Mas como elas poderão falar?
São feitas de pedra.

JUIZ DOS MORTOS– Para nós, não. Para nós, elas falam. Sombras petrificadas, estão
prontas para o depoimento?

CORO DAS FIGURAS DO FRISO– Imagens destinadas, uma vez, a dar testemunho
em plena luz. Somos, em pedra, as sombras daqueles que foram sacrificados. Tanto
sabemos falar quanto sabemos calar. Imagens destinadas, uma vez, a dar testemunho em
plena luz. Imagens de humilhados, amordaçados, esquecidos, sufocados por
determinação daqueles conhecidos como vencedores. Tanto queremos falar, quanto
queremos calar.

JUIZ DOS MORTOS – Sombra, as tuas testemunhas estão prontas para o depoimento.

O INTERROGATÓRIO

ARAUTO – O general avança e aponta para o Rei cego.

LUCULUS BRASILIS– Aí está um dos que eu derrotei. Invadi o seu reinado e combati
seus arcos e flechas, lanças e escudos com pólvora e fogo. E os venci, por fim, com a
minha cruz. E os dominei com o meu idioma.

JUIZ DOS MORTOS – Isto é verdade, Rei?

REI CEGO–Sim, venceram com a ajuda de uma cruz, com a Bíblia numa mãoe e na
outra uma pistola.

JUIZ DOS MORTOS– Façam suas perguntas, os jurados!

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ARAUTO – O jurado que em vida foi escravizado, mas antes professor, curva-se agora
sombrio e faz uma pergunta.

PROFESSOR – Como foi que tudo isso aconteceu?

REI– Como ele disse: fomos atacados com pólvora e fogo, pistolas e canhões, mas nada
se igualou ao poder de destruição da cruz que ele portava.

PROFESSOR – E você foi, dentre muitos, o que...

REI– sim, o primeiro...Mas não enviei os meus prisioneiros a outro continente.

ARAUTO– Os jurados tomam conhecimento do testemunho do rei. Ergue-se agora a


sombra de uma mulher com uma peruca branca. Alguém tem algo a perguntar?

AMA DE LEITE– Yayá, você também! Como veio parar aqui?

ARAUTO- A Jurada que em vida foi ama de leite toma a palavra.

YAYÁ- De navio.

AMA DE LEITE– Então, como?! Você faz parte do cortejo triunfal do Civilizador-
General?!

YAYÁ– Sim, estou ali, eternizada em pedra, celebrando a vitória!

AMA DE LEITE– Vitória sobre quem? Sobre você? Sobre nós?

YAYÁ- Sobre o meu vizinho.

AMA DE LEITE– Seu vizinho? Minha mãe era sua vizinha. A isso você dá o nome de
triunfo?

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YAYÁ- Os homens que me trouxeram até aqui não foram impedidos pelos homens que
poderiam me proteger. Fui usada como moeda de troca de povos em guerra. Entregue
como um troféu. Violada por todos eles: Vizinhos e estrangeiros. Quem vem primeiro
com a princesa? Todos quiseram um momento sobre mim, como se eu fosse uma égua
com pedigree certificado pela Coroa Real Nativa. Dormi em um continente e acordei em
outro. Já não era mais eu. Meus pés e meus braços eram feitos de correntes. Fui jogada
em uma mina para encontrar ouro. Disseram: Negra de mina! Ela sabe onde fica o ouro.
E eu desci até o inferno, mas encontrei o que eles queriam. E passei a ser violada pelo
dono da mina. E o que é o cheiro de um porco para quem já ficou presa em um chiqueiro?

AMA DE LEITE– Irmã, nós tivemos o mesmo destino. A mim, ninguém também
protegeu.

ARAUTO– Os jurados tomam conhecimento do testemunho da Mulher.

JUIZ DOS MORTOS – Sombra, queres prosseguir?

LUCULUS BRASILIS– Sim.

ARAUTO- A Menina com uma tabuleta com a inscrição: Leilão, toma a palavra.

MENINA- Eu brincava entre árvores, sem saber que eram cemitérios verdes previstos
em acordos já firmados. Eu sabia que andava por onde os meus ancestrais caminharam,
mas não sabia que pisaria sobre os cadáveres dos meus pais.

ARAUTO– O jurado que em vida foi professor curva-se agora sombrio e pergunta:

PROFESSOR– Como foi isso?

MENINA- Eles chegaram durante a madrugada, com seus rostos escondidos em


máscaras de lã. Pegaram meus pais, os amarraram junto ao tronco das árvores e os
sacrificaram ali, diante da aldeia. Depois atearam fogo em tudo. Eu vi a aldeia em chamas.
Eu estava lá quando levaram as outras crianças. Eu ouvi os gritos das mães de braços
vazios erguidos para o alto, como se pudessem receber seus filhos de volta. Como se o

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céu pudesse devolvê-los, mas eles já não eram mais delas. Eram sem-pátrias, adotados
por um governo que os tratava como animais. E as covas eram todas rasas, mas estavam
lotadas. Eu ainda tenho barro vermelho nas minhas mãos, depois de cavar um lugar e
tentar morrer. Mas eu não consegui.

ARAUTO– Os escravizados, que carregam o Santo banhado a ouro, manifestam-se.

ESCRAVIZADOS- Chegou aqui com uma cruz de madeira e voltou para o seu país com
uma cruz banhada a ouro! Além de transformar humanos em burros de carga!

MENINA- Meus pais são pó e a floresta é fumaça.

LUCULUS BRASILIS – Expulsei-os, sim! Eram duas vezes cento e cinquenta mil
adversários outrora, agora já não são mais adversários!

MENINA- Eu sou o meu próprio país.

ESCRAVIZADOS– Seres humanos, outrora; já não mais seres humanos!

MENINA- Minha nação é feita de barro vermelho do sangue dos meus pais.

LUCULUS BRASILIS – E ainda os convenci que o meu Deus é mais forte que os Deuses
deles!

MENINA- Quem deu mais no leilão da minha terra?

ESCRAVIZADOS – E tivemos que entregar o nosso ouro para banhar os teus Santos!

MENINA- Quem são os compradores deste leilão?

ESCRAVIZADOS- Mas entalhamos nossos Deuses na madeira de tuas igrejas!

MENINA- Quem dá mais?

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ESCRAVIZADOS- E rezamos para os nossos Deuses no altar dos teus Santos!

PROFESSOR- A teu favor, anotaremos, Sombra, apenas isto: levaste ouro e prata às
igrejas ao exterior. Quantas belas catedrais espalhadas pela Europa! Todas banhadas a
ouro e sangue!

ARAUTO–Os jurados tomam conhecimento dos que falam em nome dos escravizados.
A palavra agora está com a jurada, que é peixeira.

PEIXEIRA/ MÃE – Era sobre ouro que vocês falavam. Não restou uma mina ativa na
minha cidade. Esgotamos todas as reservas para abastecer outros países e alguns
privilegiados daqui. Mas ouro não me importa. A guerra sim. Disso eu entendo. A guerra
que acontece na esquina de casa. A guerra que assola o coração das mães e dos pais. Mais
das mães, pois este país ainda é uma Mátria, terra de mãe solo com filhos para cuidar.
Mães como eu. Mães que repetem sempre a mesma fala, todos os dias, na porta de casa,
antes dos filhos saírem. A gente nunca sabe se o filho ganha a rua ou se é a rua que ganha
o nosso filho. Por isso, a gente repete: Leva o RG, não sai de chinelo, não corre, não faz
movimento brusco, obedece, me liga, não anda em má companhia, já sabe como é: se
estiver junto com quem errou, você paga o pato. Eu trabalho na feira, vendendo peixe,
multiplicando dinheiro para alimentar a minha família. Eu trabalho na rua, como tantas
outras antes de mim, fazendo revolução com tabuleiro de doce, fruta, charuto. Ali, no
meio da feira, uma espada transpassa o meu peito, feito uma lança atirada por um
desconhecido. Mãe sabe, mãe sente. Eu vi no olho do peixe morto, o olho do meu filho.
O fio de conta se partiu no meu pescoço. Voltei para casa com o olho do peixe morto
dentro do meu olho. Você está viva, eu repetia para mim. Você está viva. Bateram na
minha porta, abri, aquela luz vermelha e azul invadiu a minha casa, aquela sirene
desligada invadiu a minha casa, aquelas botas enlameadas invadiram a minha casa. O
vento, que nunca acha espaço para passar no meio das vielas, entrou na minha casa. O
vento me segurou. O vento me tomou. Eu sou tantas mulheres. Eu sou tantas mulheres,
há tanto tempo. Gira tempo, tempo gira. Mãe de filho crucificado com fuzil. Fone de
ouvido com música alta, meu menino surdo para o mundo, mergulhado em música, escape
de sempre. Gira, tempo, gira. Eu queria gritar, mas a voz não vinha. E eu fiquei ali, de
boca aberta, sem emitir um som, esticando o pescoço, como se me faltasse o ar e acharam
que eu estava morrendo, mas eu estava viva. Você está viva. E o RG e o tênis, sujo, sujo

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de vermelho escuro. E eu devia ter dito para ele não levar o fone de ouvido. Eu devia ter
dito para ele não escapar para a música. Então, escreveram no jornal que novas medidas
estavam sendo implementadas em benefício da segurança pública e que o meu filho era
uma margem de erro. Meu filho, uma margem de erro. “A boca que tudo come tem fome ”,
dizia a mulher mais velha da casa. Gira tempo, tempo gira. Eu não queria ir para a guerra,
mas ela entrou na minha casa.

JUIZ DOS MORTOS- Sombra, de agora em diante, tu és pedra e não tem voz no reino
do mortos, apenas uma profunda e inédita consciência. Que se registre o depoimento da
peixeira, da mãe. Que se registre que as mulheres deste país estão no campo de batalha
há muito tempo.

ARAUTO- O Civilizador-General petrifica. O homem com patente no peito parece


agitado no banco. O jurado, um coveiro, pede a palavra.

COVEIRO- Por que o senhor saúda o Civilizador-General no friso que retrata o triunfo?

HOMEM COM PATENTE NO PEITO- Eu o servi, queria ser como ele. Um


Civilizador-General, mas venho do povo, nasci muito, muito pobre. Fiz o que foi preciso
para tentar ser, pelo menos, aceito por ele. Eu não o estava saudando durante o que
chamam triunfo. Pedia aumento de salário e um colete à prova de balas. Estava mostrando
a minha mão vazia.

JUIZ DOS MORTOS- Querer ser como ele justifica o fato de tê-lo apoiado em suas
ações de extermínio?

HOMEM COM PATENTE NO PEITO- Não sei dizer, Excelentíssimo. Eu o segui,


servi, imitei e, mesmo assim, não fui aceito.

COVEIRO- Quantas vezes, em vida, precisei cavar mais fundo para receber um corpo a
mais na terra. Como um arquiteto construindo beliches para os mortos. Quantas lágrimas
derramadas pelos vivos regaram nossa terra. Às vezes, nascia um cravo branco onde as
mães choravam. Às vezes, um filhote de Quero-quero nascia e aprendia a voar para longe
dali, como se soubesse o que havia acontecido com aqueles mortos, muitas vezes sem

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velório, sem friso, sem placa, sem identificação, sem nada. Enterrados anônimos,
enrolados em jornais amassados e algumas velas acesas. Quantas balas encontrei entre os
ossos.... Fiz coleção. Um museu de calibres. Balas de revólveres e dentes.

ARAUTO- O coveiro parece comovido. Que se registre este relato.

PEIXEIRA/MÃE- Eu só queria o meu filho de volta.

ARAUTO – Os jurados tomam conhecimento do testemunho do homem com patente no


peito e das lágrimas da jurada que é peixeira.

JUIZ DOS MORTOS – Sombra, teus triunfos cheiram mal aqui, no Reino dos Mortos.

ARAUTO- A testemunha que é cozinheira toma a palavra.

COZINHEIRA- O Civilizador-General é um homem de gosto refinado. Conhece


temperos e cozinha com técnica apurada. Ovelha a La Luculus é uma glória! Trabalho
para a sua família desde os meus onze anos. Ele sempre me elogia. E quanto mais me
elogia, mais forças eu tenho para servi-lo. É de minha inteira responsabilidade o preparo
das refeições diárias e dos banquetes oficiais. E o faço sempre com um sorriso no rosto.
Ele sempre me tratou como se eu fosse da família. Por isso, sou eternamente grata.

ARAUTO- Pede a palavra o jurado que em vida foi professor:

PROFESSOR– Que nos importa saber o que ele mais gostava de comer?

COZINHEIRA- Ele me deixava cozinhar o que eu quisesse. Sempre me deu autonomia


na cozinha.

COVEIRO- Sim, eu entendo. Por causa dele, descobri formas de enterrar pessoas que
jamais teria praticado se não fosse por suas ações, mas nunca fui elogiado, reconhecido
pelos meus feitos. E não faria diferença para mim. Minhas mãos carregam terra de
defunto. Eu sei bem o que vem depois dos elogios.

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ARAUTO- A testemunha que é Pastor decide falar.

PASTOR- O Civilizador-General Luculus é o grande benfeitor deste país, com quem


estabeleci vínculos espirituais e de junto a quem travei batalhas contra o mal, na defesa
do bem. Um homem de caráter ilibado.

ARAUTO- Que se registre a palavra ILIBADO junto aos jurados e juradas aqui
presentes. O professor irá falar.

PROFESSOR- Ilibado: Não tocado, sem mancha, puro, livre de culpa ou de suspeita,
reabilitado, justificado.

ARAUTO- Que se registre a explicação do jurado, que foi professor antes de ser
escravizado, sobre a palavra trazida à cena pelo pastor.

PROFESSOR- Pastor, o senhor está retratado no friso do triunfo segurando a cabeça


decapitada de uma ovelha. O que ela sugere?

PASTOR- O sacrifício de um membro do rebanho.

PROFESSOR- Compreendo. Eu mesmo fui sacrificado. Fui de tutor, educador de um


príncipe africano à prisioneiro e na sequência me tornaram um escravizado. E o cajado?

PASTOR- É o instrumento que guia e disciplina o rebanho.

PROFESSOR- É um cajado longo, maior que o senhor.

PASTOR- Sim, para alcançar ovelhas desgarradas.

PEIXEIRA/MÃE- Eu quero o meu filho de volta. Alguém aqui tem como trazer o meu
filho de volta?

JUIZ DOS MORTOS- Que ninguém silencie esta mulher. Deixem-na falar o quanto
quiser.

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PEIXEIRA/MÃE- O meu filho é uma ovelha, Pastor?

ARAUTO- Que se registre a pergunta feita pela jurada que é peixeira...e mãe.

PEIXEIRA/MÃE- O meu filho é uma ovelha desgarrada?

ARAUTO- A jurada que é ama de leite caminha na direção da testemunha que é pastor.

AMA DE LEITE- O senhor me lembra o homem que abençoou os navios abarrotados


de inocentes escravizados. Eu estava no porto, com o meu próprio filho no colo, antes
que ele fosse vendido para outra família. Antes que colocassem os filhos de outras pessoas
nos meus braços, sugando o meu seio, se fortalecendo com o leite que deveria ser do meu
filho.

PEIXEIRA/MÃE- O meu filho é um membro sacrificado do rebanho, pastor?

MENINA- O senhor me lembra o homem que realizou o leilão da minha terra. O senhor
e o Civilizador-General. Muito parecidos, quase idênticos, se não fosse pelas roupas e o
jeito de falar, eu não saberia distinguir. O Civilizador-General usa uma espada na cintura
e o senhor porta um cajado na mão, como se abrisse espaço para a espada, como se guiasse
o Civilizador-General até um reino prometido. Este reino era meu?

PEIXEIRA/MÃE- Que tipo de sacrifício é a morte do meu filho?

ARAUTO- Yayá, a testemunha de pedra retratada como uma mulher negra de peruca
branca toma a palavra e caminha na direção de Luculus Brasilis, agora um homem sem
voz, petrificado. Ela cheira o réu.

YAYÁ- Sinto cheiro de porco preso, de porco criado por gente, de porco imundo, de
porco que vive na lama. Ao nada com ele, minha gente! Ao nada!

PEIXEIRA/MÃE- Ao nada!

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COVEIRO- Ao nada!

PROFESSOR- Ao nada!

AMA DE LEITE- Ao nada!

JUIZ DOS MORTOS- Sombra, embora este julgamento não tenha acabado, falta ainda
uma testemunha. Garanto que o seu friso, a tua pedra tumular, será quebrada tão logo isto
aqui termine. Teus triunfos serão reescritos, talhados em pedra, pelas mãos de um artista,
um artista negro, convoco Aleijadinho para o serviço, expondo o horror que você e seus
comparsas chamam: Glória! Que ninguém esqueça, sob pena de repetir tais feitos.
Garanto que terás boca e não poderás falar, terás mãos e não poderás tocar. Uma espécie
de demônio barroco defeituoso. Serás um observador da verdadeira glória e do triunfo
dos humilhados desta terra chamada Brasil.

PEIXEIRA/MÃE- Gira tempo, tempo gira. O vento fala comigo: Vai, continua, volta,
pega, traz, avança. O vento fala comigo.

ENTRADA DO JURADO ABIKU, DO NÃO-NASCIDO

ARAUTO- Anuncio a chegada do último jurado a ser ouvido: O Não-nascido, um abiku.

NÃO-NASCIDO, em transe, ao público:


Brasil, terra de não-nascidos
Sacrificados ainda no ventre
Bebês-alvos em estandes invisíveis de tiro
Aquele que poderia ter sido e não foi
Eu
Aquele que não foi e agora é
Sobre cada corpo pesa o som da minha voz:
Eu quero nascer, me deixa nascer
Eu sou aquele que não vai embora
Somos muitos
Invocando futuros

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Vamos nascer
Sim, vamos nascer
Eu sou como um baobá
Minhas raízes são expostas
Me ergo diante do mar
Rodeado de conchas e ossos
Sou um presente
Invadindo a costa
Retomo o que é meu
Sou ossos e promessas no fundo do oceano
Eu sou o que não te deixa desistir
Eu pulso na tua veia
Encharco o teu coração de vida
E repito: Eu quero nascer, eu quero nascer
Me deixa nascer, me deixa nascer
Eu quero existir através de você
Eu sou a mão que te ajuda a atravessar muros
A palavra que nasce na voz e ganha papel
O papel que recebe a palavra e ganha voz
Black Brecht
E se Black fosse Brecht
Negro seria
Eu derrubo qualquer eugenia
Palavra negra é a minha magia
Aqui, os humilhados
Têm mãos para pegar
Têm bocas para comer
Meu choro é selvagem
Não tenho medo de você
Afundo caravelas, rasgo bandeiras, incendeio estandartes
Chego nesta terra e beijo o solo onde piso
Tem um continente dentro de mim
Eu me arrisco a voltar no tempo
Eu volto para você

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Antes de sermos continentes separados
Antes de nos dividirem em países inventados e capitanias hereditárias
Quando eu cheguei aqui, África, eu voltei para você
Não, eu não tenho medo
Eu sou o bater de asas de uma borboleta
Não posso voltar a ser casulo
Vem, vamos nascer!

ARAUTO- Que se registre o testemunho do Abiku, do Não-nascido. E que se registre


uma festa em meu coração, a partir de agora.

JUIZ DOS MORTOS- Luculus Brasilis, eu lhe condeno a ver o nosso futuro a partir de
agora, por toda a eternidade, sempre cercado pelos aflitos que ajudou a criar. Sob a força
do machado e o peso do martelo: Ao nada contigo e aos seus!

ARAUTO
Black Brecht: Nossa peça/intervenção
Na primeira parte vivemos o tempo dos vivos.
Na segunda: O tempo dos mortos.
Neste exato momento, tem início a terceira parte: O tempo dos não-nascidos, dos futuros
que carregamos conosco, muitas vezes em silêncio, trabalhando diariamente. Não me
refiro a sonhos, tampouco à promessas, senhoras e senhores. Falo de corpos, vozes e
presenças das filhas e dos filhos de uma pátria queimada. Pátria de mãe gentil, de mãe
solo, de mãe que inventa sobrenome paterno para os filhos. Eu narro esta história por
incômodo e por amor.

PEIXEIRA/MÃE- Gira tempo, tempo gira. O vento fala comigo: Vai, continua, volta,
pega, traz, avança. O vento fala comigo.

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PARTE III
O TEMPO DOS NÃO-NASCIDOS
VOZES/FALANGE

Afrobrasileiras/os
Batizadas/os com fogo
Água benta ardente na testa
Marca de sobreviventes
Vinte séculos no espírito
Quatrocentos anos nas costas
Depois do fim, em legítima defesa, somos nós.

Qual é o seu verdadeiro nome?

Afropolitanas/os
Não viemos de lugar nenhum
Carregamos os nossos lugares conosco.
Para que não nos digam o que somos, nem para onde vamos
Nossa voz é um passaporte diplomático
Desconhece fronteiras
Vence a guerra com palavras.
Somos trânsito, movimento e asas.
Qual é o seu verdadeiro nome?

Afrotopos/as
Afrotopia encarnada.
(Entre os dentes, caninos brilhantes).
Mordemos com vontade.
Mastigamos com prazer.
Nossos corpos são um manifesto afro-surreal
Territórios livres (de nações-empresas-coloniais).

Qual é o seu verdadeiro nome?

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Afrocentristas/os
Herdamos tecnologias milenares.
Não somos Deuses, nem alienígenas.
Nos rendemos ao extremo.
Criamos, construímos, edificamos.
Entregamos nossos corações à escuridão, com os olhos focados na luz.
E nos vemos, escutamos e sentimos.

Qual é o seu verdadeiro nome?

Afronautas
Griots, ancestrais.
Carregamos aldeias no peito.
Somos o amor que germina
Somos o amor que fulmina.
Depois de acordar, não podemos mais dormir.
Anoitecemos com o ouro negro do sol em nossas retinas.

Qual é o seu verdadeiro nome?

Afropunks
Usamos botinas, jaquetas de couro, turbantes e tranças coloridas.
Brincos, argolas, anéis.
De cabeça firme e pulso erguido.
Miramos estrelas e disparamos diamantes.

Qual é o seu verdadeiro nome?

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Afromusicais
Produzimos ritmos intercontinentais
Maxixe, xaxado, lundu
Jazz, blues, maracatu
Maculelê, jongo, samba de roda
Umbigada, batuque, baião
Afro, rap, punk, rock, gospel, negros.

Qual é o seu verdadeiro nome?

Afrodiaspóricas/os
Somos frutos benditos
Da primeira diáspora: A humanidade.
Recém-nascida em berço africano
Nômade por necessidade
Continente-pulmão-espiritual do mundo
Força alheia à qualquer vontade.

Qual é o seu verdadeiro nome?

Afroperspectivistas (Afrográficos)
Escrevemos com os pés, as mãos e a cabeça.
Nossos pensamentos são coreografados.
Dançamos com os mortos, andamos entre os vivos, ouvimos os que ainda vão nascer.
Somos afro-atlânticos/afro-atlânticas.
Temos água do mar em nossas veias.
E areia fina sobre uma pele escaldante.

Qual é o seu verdadeiro nome?

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Afroemancipados/das
Neste corpo armadura
Envolto em tecido palavra.
Praticamos gestos mágicos cotidianos.
Ocupamos a vida com a nossa voz
Convocamos a voz silenciada para a vida
Encantamos a morte.

Qual é o seu verdadeiro nome?

Afrodespertos/as
Reis e rainhas caminham com os pés descalços.
São Anjos, Santas e Marginais coroados.
As portas e janelas das casas e dos edifícios estão abertas à nossa espera.
Chovem pétalas de rosas, penas de pássaros, folhas ainda verdes caem das árvores.
O vento sopra nossos verdadeiros nomes.
Qual é o seu?

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