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surpreendentes
apresentadas fora da caixa
em diversos espaços públicos
do Brasil: algumas “rasteiras”
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Alexandre Mate
Produções teatrais
surpreendentes
apresentadas fora da caixa
em diversos espaços públicos
do Brasil: algumas “rasteiras”
ines
que
cí
veis...
Alexandre Mate
Ficha Catalográfica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Mate, Alexandre
Produções teatrais surpreendentes apresentadas
fora da caixa em diversos espaços públicos do
Brasil [livro eletrônico] : algumas "rasteiras"
inesquecíveis / Alexandre Mate. -- 1. ed. --
Guarulhos, SP : Scarlet, 2023.
PDF
Bibliografia.
ISBN 978-65-997364-2-1
23-153307 CDD-792.0981
Índices para catálogo sistemático:
Ficha Técnica
Autor: Alexandre Mate
Edição e revisão: Simone Carleto
Projeto gráfico e diagramação: Rogério A. Hanssen
Colaboradores: Companhia Teatral Cadê Otelo?, Cia. Pão Doce de Teatro, Grupo Arte da Comé-
dia, Coletivo Estopô Balaio de Memória, Criação e Narrativa, Teatro do Kaos, Grupo Rosa dos
Ventos, Companhia Mamulengo da Folia, Cia. Coexistir de Teatro, Bando La Trupe, Cia. de 2,
Grupo Andaime de Teatro, Cia. Mungunzá de Teatro, Ás de Paus, Núcleo Pavanelli de Teatro de
Rua e Circo, Coletivo de Galochas, Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes, Nhocuné Soul,
Companhia dos Pés, Honesta Companhia de Teatro, Teatro Ventoforte, Grupo Imbuaça, Dramart
Produções, Grupo de Pernas Pro Ar, Coletivo Ayê, Trupe Irmãos Atada, Companhia São Jorge de
Variedades, Trupe Olho da Rua, Teatro da Vertigem, Trupe Artemanha de Investigação Urbana,
Minha Companhia, Grupo de Teatro Quem Tem Boca É Pra Gritar, Companhia dos Inventivos,
Coletivo Pi e Desvio Coletivo, Grande Companhia Brasileira de Mystérios e Novidades, Cia. Pé
de Lona, Barracão Teatro, Trupe Sinhá Zózima, Grupo Teatro que Roda, Cia A Dita Cuja, Oigalê
Cooperativa de Artistas Teatrais, Cia. de Teatro Os Satyros, A Digna Companhia e Um Cafofo,
Coletivo Parabelo, Grupo Esparrama, Brava Companhia, Grupo Namakaca, Companhia Pia Fraus,
Carroça de Mamulengo, Velhus Novatus, Grupo Clariô de Teatro, Teatro Popular União e Olho
Vivo, Grupo de Teatro Cirquinho do Revirado, Companhia Antropofágica, Circo Navegador, La
Mínima Circo e Teatro, Pavilhão da Magnólia, Cia. Lúdicos de Teatro Popular, Grupo Parlendas
de Teatro, Grupo Pombas Urbanas, Tablado de Arruar, Cia. D’Vergente de Teatro, Estudantes do
Instituto de Artes da Unesp, Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, Companhia Fraternal de
Artes e Malas-Artes, Núcleo de Atores e Atrizes de Ribeirão Pires, Companhia de Teatro Nu Escu-
ro, Trupe da Lona Preta, Cia. Artehúmus de Teatro, Companhia Estável de Teatro, MB Produções
Artísticas, Oficina Cultural Raul Seixas, Companhia Forrobodó, Formação de Atores e Atrizes de
Ribeirão Pires – NARP, Companhia Será o Benidito, Oficina Uzyna Uzona, A Próxima Companhia,
Companhia Lona de Retalhos, Grupo Tá na Rua, O Coletivo Teatro, Cia Incrível Teimosa, Compa-
nhia do Miolo e Companhia Paulicea, Cia. do Feijão, Grupo Galpão, Grupo Chão, Companhia Cê-
nica, Buraco d’Oráculo, Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare, Companhia do Miolo, As Marias
da Graça, Hangar de Elefantes, Companhia de Saia!, Ivo 60, Cia. Teatral Boccaccione, Parlapatões,
Patifes e Paspalhões, Teatro de Rocokós, Cia. Os Palhaços de Rua, Coletivo 302, Grupo Teatral
Nativos Terra Rasgada
Sumário
9
II.93_ Top-Top-Top (Ivo 60 – São Paulo)........................................................................... 156
II.94_ Ubu Rei (Cia. Teatral Boccaccione – Ribeirão Preto).................................... 157
II.95_ U Fabuliô (Parlapatões, Patifes e Paspalhões – São Paulo)....................... 159
II.96_ Um Show de Variedade Palhacísticas (Teatro de Rocokós – São Paulo)...... 160
II.97_ Vikings e o Reino Saqueado (Cia. Os Palhaços de Rua – Londrina/PR)....... 160
II.98_ Vila Parisi (Coletivo 302 - Cubatão/SP)............................................................. 161
II.99_ Zorobe: Ouviu-se Um Lamento: Era a História de Um Jumento (Grupo Teatral
Nativos Terra Rasgada – Sorocaba/SP)................................................................. 162
II.100_ 1,20 X 2,00 X R$ 0,50. Cabines, 1: Hamlet; 2: Sermões aos Peixes;
3: Navalha na Carne; 4: Mãe Coragem; 5: Vestido de Noiva (artistas
desvinculados de grupos de São José do Rio Preto/SP).................................. 163
O
professor Alexandre Mate tem trazido contribuições
inestimáveis ao teatro de rua e ao teatro popular brasi-
leiro em geral. Elencamos aqui algumas de suas ações
no que tange ao primeiro, sempre na condição de coreuta,
isto é, como alguém que se destaca do coro para poder em-
preender algo de inestimável valor ao coletivo. Alexandre é do
bando, veio do coro e ao coro sempre retorna. Durante algumas
edições da Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, realizada pelo
Movimento de Teatro de São Paulo (MTR/SP) coordenou uma
enorme equipe de estudantes para realizarem apreensões
críticas acerca dos espetáculos que foram apresentados em
2 É caipira do interior de São Paulo, descendente de nordestinos e artista de teatro de rua. Formado
como ator pela Escola Livre de Teatro de Santo André – ELT, atua como docente nos cursos do Departa-
mento de Artes da Universidade Federal de Rondônia – Unir. É mestre e doutor em Artes pela Universi-
dade Estadual Paulista – Unesp.
diversas edições da Mostra, resultando daí a publicação de
cinco números da Revista Arte e Resistência na Rua. Um feito
histórico, pois muitos coletivos que nunca haviam tido um re-
gistro e uma reflexão escrita sobre seus trabalhos, passaram a
ter, graças ao trabalho de muitas mãos, mas sob a coordenação
experiente de Alexandre Mate.
O MTR/SP foi parceiro em diversas ações realizadas a partir
do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (Unesp), como cursos de extensão ou ações de
alguns grupos, sempre com a presença imprescindível de Ale-
xandre Mate, que nos levou ─ “essa gente das margens” ─ para
dentro da universidade pública. Em 2009, em um encontro de
teatro de rua realizado pelo Grupo Cutucurim, em Angra dos
Reis/RJ, nasceu o Núcleo de Pesquisadores de Teatro de Rua,
lá estava mais uma vez Alexandre Mate, junto com outras/os
pesquisadoras/es. Alexandre retornou à sua base e junto com
os coletivos teatrais de rua da cidade de São Paulo intensificou
14
15
trazidos à baila por meio de seus espetáculos. Espetáculos que
o marcaram indelevelmente, carregando-os em suas estru-
turas mentais.
O panorama aqui avistado, mesmo que não dê conta da
totalidade das experiências de nosso continental país, tem
significativa diversidade, tanto nos aspectos formais, quanto
no sentido de um princípio de espraiamento para além dos
principais centros econômicos brasileiros. Suas análises são
aguçadas, porém, generosas, considerando cada experiência
a partir de seu contexto e não incorrendo em uma escala de
valor abstrata e universal que, ao fim e ao cabo, terminaria
por reiterar a perspectiva dominante.
Em sua arqueologia virtual do presente (como nos inspira
Boaventura de Sousa Santos), a partir de reminiscências e lei-
turas críticas anteriores de sua própria autoria e em cotejo com
uma amplidão de referências, o autor recupera destacadas
experiências cujo silenciamento impingido pela literatura he-
gemônica pode ser exemplificado em sua lembrança da mon-
tagem de O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, por
parte da pernambucana Dramart Produções, sob a batuta de
Marco Camarotti. Antes de reestabelecer contato com o impor-
tante pesquisador pernambucano Leidson Ferraz, Alexandre
Mate buscou intensamente referências da obra, por ele as-
sistida no Recife, em 1993, sem no entanto, encontrá-las. Ainda
que o espetáculo tenha sido apresentado durante perto de 20
anos, fora de seu contexto regional é como se ele praticamente
não tivesse existido.
Tal obra, como tantas outras, não apenas existiu, como teve
significativa importância em seu estado de origem e impactou
enormemente o professor Alexandre Mate. Por isso também o
valor das memórias aqui reunidas, como uma oportunidade
de vislumbrar de forma mais ampla a história do teatro bra-
sileiro, para que nele estejam presentes em igualdade de di-
16
17
atravessar a rua ou o rio de frente à sua casa, universidade,
ou trabalho, mas, ainda assim, muitas vezes, desconhecidas)
possam refletir, refratar e se prismar em tantas outras expe-
riências pedagógicas, artísticas e acadêmicas que nela se ins-
pirarem. Boa leitura e longa (e boa) vida ao teatro de rua e ao
teatro popular brasileiros!
I. Quais seriam os (inocentes e “incluídos” da
vez a pagar o) pathos por insistir em cantar
o seu próprio quintal em perspectiva contra
hegemônica? Ou Para demonstrar os processos
de refração estético-ideológica quanto aos
preconceitos estruturais às formas populares
de representação, algumas obras em exposição
N
o primeiro texto desta (que se pretende uma) série3,
tematizando determinados aspectos quanto a certas
formas teatrais populares de cultura (que sendo po-
pular, pela infinita diversidade de criação precisa ser grafada
no plural), na maior das notas de roda pé, busquei cercar e
refletir a partir do conceito-ratoeira contido na palavra in-
clusão. Fruto dos processos de infernal imperialização, quer
dizer, globalização, que se impõe “na surdina” pela força de
3 O texto, escrito em julho de vinte-vinte, foi “batizado” como Preconceitos Estruturais Contra as Formas
Populares de Cultura, a Comédia Popular e o Teatro de Rua. Excludências e/ou Silêncios Sepulcrais nas Univer-
sidades Brasileiras: “Deixe o índio em paz!”. Publicado na Ephemera. Revista do programa de Pós-gradua-
ção da Universidade Federal de Ouro Preto, vol. 4, número 8, 2021.
uma ideologia, que recalca, principalmente, as possibilidades
de apreensão crítica do real. Se se baixar a guarda, se se des-
cuidar de apreensões críticas constantes tudo tende a se natura-
lizar, tomando e tornando um organismo complexo como mais
uma fonte de veiculação de valores, quase sempre contrário
às singularidades individuais e classistas. Evidentemente, e
para “incluir” os seres na falsa e devastadora sensação de que
possam ser cidadãos e cidadãs do mundo, é preciso, e de dife-
rentes formas, aplacar, eliminar, subsumir, induzir ao esque-
cimento, todas as diferenças para criar – ilusoriamente – um
arquipélago de ilusões, cuja sensação confira uma segurança
aparente a tudo e a todos...
A pandemia mundial, causada pelo Coronavírus, no devas-
tador ano de 20204, de certo modo, demoliu efetivamente as
ilusórias (e classistas) paredes de proteção de um mundo fun-
damentado na aparência e na espetacularização... um mundo
em dissolvência em que tudo passou a se perder! Uma nova
19
ordem mundial deve vir, especialmente com relação à lin-
guagem teatral. Os meios virtuais e os espaços alternativos,
públicos e abertos, por enquanto, têm substituído e abalado a
arquitetura coercitiva e hegemônica da caixa preta, mas, en-
tretanto, em agosto de 2020, não se tem certeza das mudanças
que estão por vir!
Tomando a epígrafe de Drummond, que “abre” esta re-
flexão, lutar com as palavras é luta vã, assim como vã, igual-
mente, se caracterizam as contendas com relação às espe-
culações de que se possa ser capaz de fazer com relação ao
futuro, tendo em vista o presente ser tão incerto e boa parte do
passado desconsiderado, escondido, encarcerado, pisado... Na
4 Quanto às mortes desnecessárias, por descuido ou desinteresse premeditado, por parte do governo
brasileiro, caracterizando-se em real processo de genocídio, porque as palavras, além de desafiadoras
e impacientes são, também, urgentes, sugiro, em razão de e sem metáforas a vida ser tão rara deixar a
obra de Lenine nos invadir: https://www.youtube.com/watch?v=SWm1uvCRfvA.
luta permanente contra as baratas a que se refere Clarice Lis-
pector, sobretudo em A Quinta História5, nesse quase sempre
e permanente intervalo “entre”, ficamos abandonados, no
escuro... apenas imaginando. Apenas! Sem esmorecer porque
os processos de luta não são poucos e estão a demandar muito
mais do que apenas epifanias, é preciso produzir, registrar...
documentar as memórias.
Tendo em vista o assunto que se pretende e se trata aqui,
é preciso não esmorecer e não esquecer de que a luta não é
fácil e que toda vez que registramos processos vividos na his-
tória, revelamos memórias e ações que – frequentemente têm
sido consideradas não importantes pelos detentores do poder
da vez – precisam ser preservadas. Produzi-las a partir de
outros pontos de vista, de outros sujeitos históricos, contra-
pondo processos de luta pela sobrevivência e existência, nos
permanentes processos sociais de disputa. De todos os modos,
quando ouvi, em aula, pela professora Marilena Chaui que “[...]
20
5 Obra [magistral] de Clarice Lispector. “A Quinta História”, no livro A Legião Estrangeira 13ª ed. São
Paulo: Siciliano, 1992.
documental e abordagens críticas, as práticas do teatro de rua,
além de estarem cercadas por densas camadas de preconceito,
de diversas naturezas, encontra-se, em boa parte dos casos,
quase que em processo de isolamento e desconhecimento
quanto às suas particularidades. Desse modo, porque é funda-
mental o registro, houve uma atenção maior às questões infor-
mativas que, em processos de seleção e exposição, também têm
uma abordagem manifestadamente crítica. Além disso, como
decorrência das afirmações anteriores, os materiais de consulta
são raros, o que tende a dificultar os processos objetivos de
pesquisa. Na ausência de materiais, é preciso, como procedeu
a escritora Mary Renault, com relação à sua fonte básica da
pesquisa, preencher as lacunas da produção cultural na Anti-
guidade clássica grega. Estudiosa de tal produção e contexto,
na ausência de documentos mais concretos, a escritora teve de
preencher as lacunas e ausências de evidências documentais
com um conjunto de possibilidades6. Nesse sentido, Renault
21
abandonou, se se pudesse assim se referir, as “narrativas histó-
ricas puras” para reconstituir romanceadamente seu trabalho
de investigação. Bem, e porque na literatura a presunção é ca-
racterística fundante para as investidas imaginativas, evidente,
a autora transitou com todo tipo de presunção necessária. Do
conjunto de obras produzidas pela autora-historiadora, quase
todas traduzidas para o português, A Máscara de Apolo7, é ab-
solutamente significativa para quem estuda a produção teatral
e as mentalidades do período mencionado. Nessa narrativa,
6 No Brasil, também nos processos de (des)ajuizamento, por exemplo, o tal juiz Sérgio Moro, em
determinado momento, e foi o que valeu, condenou o ex-presidente Lula, mesmo sem provas, por
presunção de culpa. Em agosto de 2020, certa outra juíza, condenou um rapaz por presunção de
culpa, usando o argumento de sua raça (ele era negro)... Com relação às práticas populares, por
parte de parte substancial dos acadêmicos, há uma presunção de culpa por certa incapacidade de
ineditismo (alegam tantas/os) que tais práticas apenas se repetem... Enfim, como escreveu Dante
Alighieri, na Divina Comédia: “[...] mas deles não falemos/ olha e passa!’.
8 Marlene Dietrich. ABC de Marlene Dietrich. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero, 1985, p. 32.
Brecht com relação à renomeação da linguagem artística,
teatro. Fruto de apropriação de práticas populares coligidas
a certos procedimentos ritualístico-religiosos, o “teatro” foi
criado com um fim absolutamente específico e determinado,
quer seja, promover a identificação com as personagens
exemplares para, nos processos radicais, fugir do caráter re-
pugnante. Nessa perspectiva, aquilo que se faz na rua, em
sua totalidade, não busca a identificação emocional, não tem
os valores de “depuração dos espíritos”, não quer educar...
então, evocando as ponderações brechtianas, talvez a prática
do teatro popular e de rua fosse mesmo o “taetro”. Mesmo
sem desenvolver aqui as ponderações esparsas e inconclusas,
presentes em A Compra do Latão, a tentativa de diálogo
contida na obra aludida, manifestadas na forma de diálogo,
entre o Filósofo, a Atriz, o Ator, o Maquinista (representando
o “novo público”) e o Dramaturgista podem trazer reponde-
rações sobre o nome e a função da linguagem, que, em algum
23
momento não tão distante, poderá ser conhecida como o
antigo teatro. Penso ser conveniente, sem aprofundar, apre-
sentar aqui as ponderações de Fernando Peixoto, em Brecht:
Uma Introdução ao Teatro Dialético (1981, p.31-2):
[...] o ator, finalmente convencido, se “converterá” às
novas ideias; e o radicalismo, digamos sociológico,
do filósofo, se revelará, no final, em sua verdadeira
natureza - trata-se, sim, de transformar a função
social da atividade teatral, a partir de novas
exigências sociais determinadas pelos novos tempos.
Mas nada disso implica renunciar aos princípios
estéticos que regem a produção artística [...]. Trata-
se, na verdade, de admitir os princípios estéticos
como históricos, portanto transformáveis. Por isso
é urgente reformulá-los. O fim do velho teatro não
deve ser confundido com o fim do teatro ou sua total
negação. Ao contrário, significa sua revitalização. A
redescoberta de sua utilidade.
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O mundo encontra-se em dissolvência, mas é impossível saber
quantas pessoas estão a revisitar os arraigados devastadores.
No Planalto Central do País, pelo que se pode constatar cotidia-
namente as perversidades (muitas inomináveis) continuam!
Então, cabe, sim, uma indagação sobre o que haveria, na con-
dição de senões, quanto à mudança de hábitos e uso de reper-
tórios que não ofendessem seus semelhantes!
Sem considerar os nomes dos produtos de consumo, vo-
cábulos como: react, spoiler, fake news, crush, lock down, feat,
yes!!, delay, gap, bullying, streaming, live, okl, made/make, pool,
net, podcast, coach, impeachment, touch, clean, rater, feed back,
staff, bike, laptop, shopping, feeling, workshop, flyer, folder,
bike, pet, look, play list, make up, up, top, food truck, freak, home
work, check in/check out, play list, look, recall, fitness, underline,
teaser, coach, vibe, feeling, (qualquer número) off, cover... que
merda! E não me interessa saber se o mundo fala inglês! Até
é possível que se fale naquela língua, mas o idioma do pen-
samento, do sonho, da militância, tende a ser outra... Gosto
e quero, como os mestres e mestras que importam, falar em
português!! O inglês naturalizou-se: naturalizaram-se as resis-
tências!... Em mais de um texto, Dostoievsky cria personagens
(evidentemente assemelhadas ao real do momento histórico
em que viveu) que, insatisfeitas com a língua falada, usavam,
de modo arrogante, expressões e palavras em francês (era o
idioma da gente dita douta e nova rica...) como a conferir-lhe
status (hum!!!), ou melhor, distinção!9.
Cabeça oca: mata-borrão! Consciência inocentada e não
apenas para seguir e ser subserviente às modas imperiais!
Cabeça despestanejada: sem saber e sem pensar começa a
falar, o mais naturalizadamente possível como se soubesse os
sentidos da palavra e de sua representatividade.
Nesse particular, tanto as culturas populares (de raiz) como
aquelas de gente mais sagaz de classe média, inconformada
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com o que lhe é dado viver, brinca. Joga e glosa com os se-
guidores cegos das modas. Desse modo, pode-se dizer que a
paródia, também, pode ser verificada por meio das misturas
de idiomas. Então, uma coisa é forjar que se fala uma língua,
que se sabe alguma coisa dela e usá-la para legitimar a sobre-
vivência, como criou Chico Buarque de Hollanda em Pivete
(Monsieur have money per mangiare).
O espetacular compositor baiano Assis Valente, em Tem
Francesa no Morro, evidentemente criticando as misturas, com
preponderância de certo idioma, assim se manifesta:
Donnez-moi s’il vous plaît
l’honneur de danser avec moi
Danse Ioiô, danse Iaiá.
27
O cinema falado é o grande culpado da situação
Dessa gente que sente que um barracão
Prende mais que o xadrez
Lá no morro, se eu fizer uma falseta
A Risoleta desiste logo do francês e do inglês
[...]
Tudo aquilo que o malandro pronúncia
Com voz macia é brasileiro, já passou de português
10 A composição foi copiada da obra de Salvyano Cavalcanti de Paiva. Viva o Rebolado!: Vida e
Morte do Teatro de Revista Brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p. 365-67.
totalidade de tudo o que se gosta tem um valor, um custo...
nem sempre (para a maioria quase nunca) se consegue pagar
o quantum o desejo vale coisa.
Metaforizando, o mundo é feito de minúsculos grãos de
areia. De acordo com o ideário apresentado e difundido pela
ideologia liberal, a maior redenção de um minúsculo e insig-
nificante grão de areia (proposição que, também, pode ser
pensada para o ser humano) ocorre quando este se trans-
forma/metamorfoseia em uma pérola. De acordo com as pro-
posições de discursos dessa perversa natureza, o grão-pérola...
vale algo porquê, “do nada” (e o esforço demandado para tal
metamorfose: o quanto de trabalho a concha deve de fazer)
ele conseguiu se transformar em uma mercadoria, objeto do
desejo para poucas ostentarem no pescoço, orelha e peito bur-
gueses... Triste situação. Perversa condição! Transitando por
proximidade, em estado de metáfora, Vinícius de Moraes es-
creveu um poema (Os Inconsoláveis), em cujo último verso se
29
lê: “[...] São águias acorrentadas pelos pés”... Evocando, nova-
mente, os sofrimentos/ esforços/ trabalho da mãe ostra talvez
se possa parafrasear e lançar: quanto mais a ostra respira,
maior seu “açucartormento” em lágrimas.
De certo modo, e partir de suas próprias necessidades e
muito trabalho, muito trabalho..., sem contar com parafernálias
alheias a si, muitos grupos têm conseguido, por meio de ações
coletivas, se transformar em pérolas momentâneas (porque o
fenômeno é sempre epifânico) para que toda a gente que não
tenha acesso à linguagem teatral, possa ver, embevecer-se, de-
liciar-se, refletir sobre si e tantas coisas a correr mundo afora.
Adereços de feira e não protegidos por vitrines blindadas, o
teatro de rua (à semelhança de uma joia talhada com muito
trabalho no tempo e em localidades distantes) tem conseguido,
mesmo sem políticas públicas para a cultura, chegar em toda
parte: invasores/ras ressignificadores/ras dos espaços públicos
e democráticos do imenso corpo social chamado, cidade, vila,
aldeia, terreiro, praça, rua, quilombo, ônibus, barco, quadra...
Corpos tentaculares, o da artistada de rua, que se contrasta,
em estado de harmonia com a paisagem urbana: caótica, com-
plexa, contrastada, rápida, indiferente.
Nesse particular, talvez não se possa deixar de mencionar
que o teatro de rua é audaz, intrépido, destemido e generoso ao
extremo. Tendo em vista tratar-se de “uma obra aberta” (também
no sentido categorizado por Eco11), o espetáculo, de diferentes
modos, precisa se refazer, dependendo das contribuições cons-
cientes ou acidentais de transeuntes e da cidade. Mesmo sem
nenhuma confortabilidade a gente inserida na categoria teatro
de rua enfrenta qualquer dragão da maldade. De modo diame-
tralmente oposto ao teatro hegemônico, blindado e protegido por
todo tipo de aparato (e não estou absolutamente tirando os mé-
ritos desta forma de teatro), o teatro popular e de rua tem preen-
chido todo tipo de lacuna, fundamentalmente, por meio das po-
30
31
que apresentada de modo grotesco, é sempre uma contestação
do inapercebido; de redimensionamento e da retomada da
percepção do poético no cotidiano; de depuramento do olhar e
percepção, também, diferenciadamente do existente: a cidade,
funcionando com cenário vivo, induz à redescoberta do
próprio e, tantas vezes, inapercebido território; da criação de
algo que incomoda porque “atrapalha” o estabelecido; envol-
vendo tudo isso, e que concerne ao humano, um espetáculo de
rua leva um sujeito a transformar o outro em um semelhante.
De perto ou de longe, com ou sem fala/texto/legenda, as ma-
nifestações artísticas, em espaços públicos, desalojam o aco-
modado, estabelecido, o não mais passível de discussão. Entre-
tanto, diferentemente do que pensam os arautos a serviço das
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ao mesmo tempo em que mantém o diálogo com
sindicatos e representantes dos movimentos de luta
dos trabalhadores.
[...]
O Novo Teatro vem com uma perspectiva
popular, como um espaço cultural que permite a
expressão de temas e conteúdos que não haviam
sido representados anteriormente, esmera-se em
recolher na história e na exigência dos diferentes
grupos documentos que depois são trabalhados
dramaticamente e devolvidos ao povo na forma
teatral. Insere-se no teatro latino americano e
mergulha na história, nos mitos e na consciência
coletiva com o intuito de averiguar os elementos
que fazem parte do patrimônio do povo. O objetivo é
resgatar a memória cultural e política do isolamento
em que se encontrava e carecer de meios adequados
de expressão.
Os grupos inseridos neste período representam,
na sua maioria, artistas independentes. Buscam
por meio da investigação de novos temas e
da colaboração de outros profissionais, como
historiadores, sociólogos, psiquiatras, alcançar um
público que até então se mantinha afastado do
evento teatral: operários e estudantes. E para atingir
esse espectador que não era freqüentador das salas
de espetáculo, produz obras que se deslocam até
os locais mais inusitados, como praças, sindicatos,
escolas, acampamentos e entre camponeses. Enfim,
um teatro que literalmente vai aonde o povo, seu
público, está14.
14 Luciana Magiolo. “As Marcas de Um Novo Teatro”, inserido na Revista Camarim, 37. São Paulo: Coo-
perativa Paulista de Teatro, ano 9, 1º semestre de 2006, p.12.
35
assuntos diversos, de usos de expedientes distintos, mas, de
certo modo, tendo um chão histórico apreensível e local com
costumes próximos e reconhecíveis, diversos são os coletivos
teatrais de rua, espalhados pelo Brasil a criar obras cujos re-
sultados são absolutamente belos. Tive a sorte-alegria-estado
de felicidade-possibilidade... de assistir a muitas e antológicas
obras teatrais, sobretudo na cidade de São Paulo, que, estou
convencido, ser um dos grandes centros mundiais de criação
teatral. Invencionices, imaginação incansável, situações inusi-
tadas (sem os recursos tecnológicos dos considerados grandes
coletivos paradigmáticos da produção teatral mundial) se fa-
zendo ato. Com as obras do sujeito histórico teatro de grupo
(e aqui o conceito de grupo é tomado e praticado como cole-
tividade de sujeitos e não como simples ajuntamento), prin-
cipalmente, que têm e se fundamentam em outros processos
de descentração de poder, os resultados – tantas vezes – são
surpreendentes ou maravilhosos (esta última palavra deriva
do árabe mihrāb ou mirabe como nicho arquitetônico nas mes-
quitas mulçumanas, que indica Meca).
Desse modo, o maravilhoso, etimologicamente, concerne
também àquilo que persegue o desconhecido. Então, como a
totalidade da gente que indica, sugere, “conhece”, tida como
especialista pouco ou quase nada sabe das expressões teatrais
apresentadas na rua, o pântano ideológico alavanca silêncios
e falas inapropriadas. Por fim, não se trata de defender a tese,
às vezes próximas a certo dogmatismo cegante, de que o teatro
de rua pudesse ser superior ao teatro de caixa: apesar de per-
tencentes à mesma linguagem, o tratamento e escopo diferen-
ciado de ambas as tornam diferentes: apenas isso. Um trata-
mento-resultado não é superior ou melhor que o outro. Quase
de modo tautológico, as defesas de uma delas em detrimento
da obra sequer conhecida é que pode e deve ser encarada com
seriedade. Penso que os detratores são fundamentalmente de
36
37
II. Coletivos teatrais e a lembrança de alguns
de seus “rebentos” espetaculares16.
O
bjetivando a demonstração e socialização de tantas ex-
periências significativas, e sem a menor pretensão ou
possibilidade de “vencer” tudo o que tem sido produzido
(e não menciono nomes ou obras importantes apresentadas na
rua, em razão de não se estruturarem a partir de proposição de
troca mais efetiva com o público), indico poucas das inúmeras
obras significativas que tive a oportunidade e prazer de assistir
pelo Brasil. Avisando aos navegantes, do bem e do mal..., que o
processo de visitação não teve a pretensão de apresentar – neste
momento – análises em profundidade das obras elencadas. O
objetivo fundamental, utilizando de uma metáfora rural, do
campo, se caracteriza em documentar um pouco mais algumas
iniciativas em processo. No sentido de não criar um texto tão
longo, tentei escrever coligindo formas e tratamentos estéticos
diferenciados; territórios, companheiros e companheiras na
recepção e eventos diversos. De certo modo, a narrativa, por
16 Não é demais reiterar que importantes e significativas montagens não constam da relação apre-
sentada. Realmente, há um grande número de obras que se apresenta em espaços inusitados, mas
ao permanecer apenas no espaço interno, ainda que em proposição de deambulação, não correspon-
de ao escopo aqui vislumbrado. Portanto, coletivos como: Companhia Artehumus de Teatro, Grupo
Clariô de Teatro, Grupo XIX de Teatro, Teatro Documentário dentre tantos não foram aqui inseridos.
Talvez no quarto texto da série tal levantamento venha a ser desenvolvido.
intermédio da qual os coletivos são apresentados, transita a
partir de uma estrutura episódica, coligindo aspectos do jorna-
lístico, da crônica e da síntese exigida por verbetes.
Pedindo compreensão para aquelas obras importantes e
seus conjuntos criadores pela omissão (mas me colocando à
disposição para a sequência e o trabalho partilhado de todos
os coletivos de teatro de rua existentes, que, quero crer, deverá
acontecer com a gente militante da Rede Brasileira de Teatro
de Rua/RBTR), aponto na sequência alguns espetáculos, sem
os devidos aprofundamentos. Como se sabe, uma lembrança
“puxa a outra”, tanto individual como coletivamente, portanto,
e nos limites do trabalho mais individualizado, na sequência
aquilo que consegui lembrar. Evidentemente, como a obra e
a recepção são vivas, as lembranças não são absolutas mas
vieram repletas de muitos agradecimentos, alegrias e tristezas
(por gente parceira falecida)... Por último, é preciso destacar
– tomando algumas reflexões de Maurice Halbwach17 – que,
39
ao lembrar, ainda que o ato seja isolado e individual, sempre
trazemos paisagens sociais, nas quais habitam gentes, sons,
sensações, atitudes... Portanto, lembro das obras mais emocio-
nantes e significativas e – de certo modo – de muitas das gentes
que, comigo, tiveram a oportunidade de se tornarem pessoas
melhores, mais sensíveis, mais permeáveis à beleza e aos se-
melhantes... Evidentemente, em razão de o gosto depender
de um conjunto de atributos, apreensões, permeabilidades, o
critério para seleção, não adota o maravilhoso indiscutível, as
obras insuperáveis... mas, e insistindo, as obras que marcaram
emocional, estética e teatralmente.
Em um primeiro caminhar, bastante prolongado, por
entre as imponderáveis camadas da luta entre o lembrar e o
17 Obra fundamental para quem busca compreender melhor os (in)contidos na potência e ato de
lembrar, Maurice Halbwach. Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
esquecer, surgiram rompendo as paredes – tantas vezes blin-
dadas – da memória, coletivos teatrais de: Alagoas, Ceará, Goiás,
Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do
Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo: “evoando,
evoemos” as memórias escondidas/ interditadas18:
T
rata-se de um coletivo, dirigido por Marcelo Denny (in-
felizmente, falecido em 2020) e que, pelo processo de
pesquisa desenvolvido, parece não mais existir. O espe-
táculo, assistido por ocasião de uma das edições do Festival de
Teatro do Vale do Paraíba (Festivale/SP), no Festival Nacional
de Teatro de São José do Rio Preto/SP, em 1998, e na própria
cidade de Pindamonhangaba era impactante. Em Pindamo-
40
18 Tenho de pedir, também, consideração pelo fato de boa parte das obras lembradas ser da cidade
ou estado de São Paulo. Realmente, a produção teatral da cidade de São Paulo tem sido uma de
minhas pesquisas mais constantes nas últimas décadas. Outra questão é que busquei confiar muito
mais na memória do que em documentos existentes sobre as montagens.
Sem dúvida, muitas obras significativas têm sido apresentadas na rua, mas a categoria “na” rua
não se caracteriza no objetivo desta reflexão. Coletivos com propostas surpreendentes apresentam,
algumas vezes, obras em vias públicas, mas, e lamentavelmente, por não ter tido, ainda, a possibili-
dade de tê-las assistido (total ou parcialmente), optei por não as apresentar aqui. Vi cenas, mas não
espetáculos inteiros de alguns coletivos que, seguramente, também, fariam parte desta exposição:
da Companhia Horizontal de Arte Pública (de Maricá no Rio de Janeiro), o significativo Coletivo Tea-
tro de Operações (do Rio de Janeiro), OPovoemPé (de São Paulo).
Por último, obras teatrais da cidade de São Paulo aparecem apenas com a indicação do estado/
capital; o mesmo critério foi usado para as obras do estado/capital do Rio de Janeiro.
O espetáculo da Cadê Otelo? era espetacular: figuras
míticas, construídas em tamanhos gigantes, decoração do
chão por onde as cenas se desenvolviam, fogos de artifício...
criavam um cenário surpreendente, grandiloquente e que
enchia os olhos. Portanto, e através das criações visuais de
Marcelo Denny, que também dirigia o espetáculo, tratava-se
de um espetáculo desenvolvido a partir do chamado primado
da forma. Em razão do grande momento de criação, o espe-
táculo ganhou muitos prêmios e foi apresentado em vários
festivais de teatro pelo Brasil. Não tenho dúvidas quanto ao
que permanece na memória, fundamentalmente, da obra:
sua significativa visualidade e de um processo de criação in-
vencionista (levantando, sobretudo, as imagens do teatro me-
dieval) ao paroxismo.
Observação: para mais informações do Coletivo e acesso a fotos,
matérias e desenhos da obra, consultar: www.marcelodenny.
com. Até 06/10/2022 parte do material de criação de Marcelo
41
Denny podia ser consultado e conhecido por intermédio do en-
dereço acima.
T
rata-se de um coletivo cuja forma (compreendendo a
estrutura, conteúdos e pontos de vista) insere-se nas
formas populares de cultura. Já havia ouvido falar
sobre os trabalhos da artistada de Mossoró, mas, ao vivo,
ainda não tive a opotunidade de acompanhar nenhum tra-
balho da Companhia. Em 2021, e por convite aceito para
fazer a seleção da Mostra de Teatro da Periferia, promovida
pela Companhia de Teatro Heliópolis, pude assistira à obra
aqui em destaque. Mesmo com o espetáculo apresentado
virtualmente, fiquei absolutamente entusiasmado com o
trabalho assistido19.
Mesmo de modo virtual, o trabalho foi impecável: tudo
afinado, pensado, urdido e sincronizado. O esmero do coletivo
foi tão significativo que até mesmo a tela, onde apareciam enqua-
dradas as personagens, foi decorada com motivos visuais bem li-
gados e característico do popular. Durante o debate, integrantes
do coletivo afirmaram que cada ator/atriz se fez “presente” de
suas casas, entretanto, os focos estavam impecáveis. Foi um mo-
mento de grande emoção de beleza e de realização. Depois de
assistir a obra, fui pesquisar os trabalhos da Companhia, e, do
mesmo modo que o espetáculo, o material da Pão Doce é muito
bem cuidado. Além de diversos saraus, e com intensa progra-
mação, a Companhia, com uma trajetória continuada desde 2002,
já levou à cena: Eu Chovo, Tu Choves, Ele Chove de Sylvia Orthof
(2004), Meus Bons Tempos (2006-2012), Sonho de Cinderela (2008),
À Luz do Luar (2012), A Casatória c´a Defunta (2014).
42
D
irigido por Roberto Innocente20, um italiano que se “na-
turalizou” brasileiro, tive a oportunidade de assistir ao
espetáculo mais de uma vez. Innocente, sem dúvida é
19 Além da seleção dos espetáculos da Mostra, participei também como debatedor e crítico. Abso-
lutamente, tomado pela obra, na manhã do dia seguinte escrevi: A Casatória c’a Defunta espetáculo
maravilhoso que reedita a “lógica popular” contida no adágio segundo o qual: um mais um é sempre
(infinitamente muito) mais que “doze”, que pode ser lida no sítio https://ciadeteatroheliopolis.com/
20 Infelizmente, o diretor italiano foi mais uma das vítimas abatidas em pleno voo... a Covid-19 o
apanhou e o “levou” em abril de 2021.
um especialista em commedia dell’arte e conseguiu no espe-
táculo promover uma das determinações básicas da comédia
popular: aclimatar-se no território que ocupa.
Em tese, a obra se passa na pensão de uma senhora – que
corresponde à categoria dos velhos (vecchi) – e que tem duas
filhas. Hospeda-se na pensão um velho coronel e seu criado,
super esperto. Além destas personagens, chega um outro
jovem malandro, fugitivo do Rio de Janeiro. As personagens
do mal unem-se para acabar com as personagens do bem, mas
como quase sempre, a personagem feminina e dona da pensão
(Dona Josefina) tem seus poderes e acaba por resolver a trama.
Os elencos mudaram nas vezes em que assisti, então, fica
difícil destacar alguém. Na primeira vez Ana Rosa Tezza fazia
o Coronel (muito hilária). Com relação à partitura, não se trata
de uma proposta porosa, mas, sem dúvida, a obra consegue
segurar o público e ambienta, basicamente, em todos os as-
pectos, a commedia dell’arte para o Brasil.
43
Observação: para mais informações do Coletivo e
acessar: http://teatrobarracaoencena.com.br/espetaculos/
aconteceu-no-brasil-enquanto-o-onibus-nao-vem/
O
bra impactante. O trajeto da obra-viagem inicia-se na
estação de trem do Brás. O bairro, bastante tradicional
da cidade de São Paulo, fica na Zona Leste e tem um
intenso movimento. Do trem espectadores e espectadoras, por
meio da indicação de ator e atrizes da Companhia, passam por
várias paisagens da cidade. No Jardim Romano, conduzidos por
um grande coro, o olhar antes sem pouso e de passagem pelo
trajeto, de acordo com o programa da obra: “[...] é convocado a
mergulhar nas memórias alagadas de seus moradores através
de um percurso pelas ruas, casas, becos e vielas”.
Sem qualquer metáfora, porque o Jardim Romano se ca-
racteriza em um local de contrastes inimagináveis, o conjunto
que acompanha a obra (compreendendo o público, a gente que
mora no local, sobretudo as crianças e os/as artistas) passa por
becos apertadíssimos; para defronte de certas casas e locais
para homenagear moradores e moradoras já mortos; assiste a
cantorias diversas; ouve excertos de textos e de obras criadas
coletivamente; finaliza nas margens de um imenso, fétido e
agonizante rio.
Espetáculo de contrastes absolutamente antagônicos e
(des)humanos: imagens lindas, canções significativas, in-
terpretações pungentes em um ambiente apertado, sujo, de-
sumano, fétido... quase indisponível, mas habitado por gente
44
O
espetáculo foi apresentado nos espaços abertos da
Companhia de Cubatão, que em 2020 completa 25 anos
de existência. Portanto, inserido na condição de obra
apresentada em espaço híbrido, o texto de Nelson Rodrigues,
mesmo com a partitura rigorosamente fechada, sob a batuta
do incansável e inventivo Nelson Baskerville (que faz questão
45
em afirmar que a obra contou, também, com o trabalho de di-
reção de Lucas Beda, Marcos Felipe e Sandra Modesto, da Com-
panhia de Teatro Mungunzá – São Paulo), teve um resultado
surpreendente. Repleto de imagens oníricas, ainda que o ori-
ginal, pela sua temática, transitasse com referências bastante
grotescas, Baskerville conseguiu criar situações “cinematográ-
ficas”. A cena do enterro da protagonista, em cova real, cavada
no atrium (área interna do espaço) do Kaos, com uma “chuva
torrencial” (providenciada com algumas mangueiras), foi an-
tológica e absolutamente inesquecível.
A obra de Nelson Rodrigues estava lá, mas totalmente
ressignificada e redimensionada por meio de um espetáculo
cujo texto se caracterizava em ponto de partida, mas não de
chegada da espetacularização criada.
Observação: para mais informações do coletivo e ficha técnica
do espetáculo, consultar: www.teatrodokaos.com.br. Em julho
de 2022, escrito por Alexandre Mate, foi lançado o livro Em
Cubatão/SP (na Originária Cui-pai-ta-ã), os 25 Anos de Arte e
Resistência do Teatro do Kaos. Histórias em Espetacularidades
e Partilhas, que apresenta um conjunto significativo de fotos.
C
oletivo essencialmente de práticas de palhaço de rua,
cuja sede se localiza em Presidente Prudente, que é uma
cidade que fica a 556 km da cidade de São Paulo. Ori-
ginalmente, os integrantes – estudantes de diferentes cursos,
na Unesp da mesma cidade, começaram a fazer teatro por
insistentes convites de um dos fundadores do Grupo (Fer-
nando Ávila, que já havia feito teatro na cidade de Barretos).
Montado o coletivo, para se inserir nos caminhos do teatro,
46
21 Quando não se tem muita certeza quanto à melhor palavra usar para expressar/manifestar um
pensamento-ideia, é sempre recomendável consultar gente séria, com pesquisas significativas na
área. Até um determinado momento estava a usar a palavra palhaçaria, mas sempre me lembrando
de algumas polêmicas quanto ao uso de tal palavra. Conversei com Mario Bolognesi, pesquisador
em tempo integral do assunto e, como sempre, atencioso e prestativo, destaca que o termo está cor-
reto, mas devido ao uso que se fez dele (sobretudo na França, que tende a carregar e refletir certo
colonialismo), recomendou o uso de palhaçada.
etc.22. Mesmo tomando a obra medieval, com personagens de-
finidas, o que ocorre, em toda as produções do coletivo (e está
é também uma das características do teatro popular, de rua ou
não), é exatamente tomar o texto como ponto de partida ou um
roteiro de ações.
Muitos são os méritos do coletivo, entretanto, e se se puder
formular desse modo, os integrantes do Rosa são mestres abso-
lutos na arte relacional. Nesse sentido, e em várias ocasiões, é
fala recorrente dos integrantes do grupo a busca por ampliação
da teatralidade para conquista e ampliação dos processos de
troca com o público. Impressiona a facilidade com que o con-
junto lida com o público e o leva para a cena, em jogos ab-
solutamente respeitosos, dinâmicos e populares. Verdade que
tal procedimento é intrínseco ao teatro de rua, mas nem todos
conseguem ter a maestria do grupo.
Observação: para mais informações do coletivo e ficha técnica
do espetáculo, consultar: www.rosadosventos.art.br
47
II.7. A Folia no Terreiro do Seu Mané Pacaru (Companhia
Mamulengo da Folia - Guararema/SP).
O
coletivo, formado fundamentalmente por um mestre
mamulengueiro e um incontável número de bonecos e
bonecas (criados de acordo com certa feição e tradição
de certas regiões do Nordeste) dedica-se à pesquisa e criação
do mamulengo. Em tese, o mestre mamulengueiro chama-se
Danilo Cavalcante (ilustre filho de Pernambuco), mas mo-
rador, durante muito tempo, da cidade com maior número de
nordestinos no Brasil, que é São Paulo, solidifica sua carreira
22 “Rosa dos Ventos e o Público: Uma Relação de Brincadeira”, in: Rego do Gorila: Todo Mundo
Quer Ver. Presidente Prudente/SP: publicação do Grupo, Ano I, nº1, novembro de 2011, p. 18-21.
como ator (porque artista ele sempre foi) ao atuar no Grupo
Buraco d’Oráculo. A partir de determinado momento, porque
a tradição, além do comportamento, pode ajudar a construir
certa mentalidade (por se localizar, também, na estrutura geno-
típica), Danilo se lança ao trabalho com o teatro de mamulengo.
Trata-se de um gênero que concilia: conhecimento de tradições
culturais populares; verve cômica; pensamento rápido; grande
capacidade de improvisação; destreza com as mãos...
Assisti ao espetáculo diversas vezes. Apesar de ser a mesma
narrativa, cada espetáculo se aclimata à região e aos tipos que
assistem a obra... Em tese, e recheado de inúmeras improvi-
sações, a obra apresenta a história de Marieta, filha de Seu Mané
Pacaru, que celebra o casamento com o vaqueiro Benedito,
quando chega o “coisa ruim”. A figura do mau, vai fazer de tudo
para impedir o casamento. A partir deste mote, um conjunto
de personagens desfilará no espetáculo. Na maioria das vezes
em que assisti, o maravilhoso Trio Agrestino, formado em 1969,
48
T
emperatura próxima do agradável em uma noite de
sábado. O local de representação ficava na Avenida
Doutor Arnaldo, via de intenso movimento de carros,
ônibus e pedestres. A avenida tem estação de metrô, Hospital
da Mulher, Hospital das Clínicas, as tradicionalíssimas bar-
racas/quiosques de flores, dois cemitérios. Em um desses ce-
mitérios, o do Redentor, caracterizou-se no espaço de apresen-
tação de A Jornada de Orfeu. Dirigido por Patrícia Teixeira, o
espetáculo promove processo de deambulação pelo cemitério.
A fábula baseia-se no mito da Antiguidade grega de Orfeu
(que foi, também, um símbolo das artes). Assim, guiados por
Hermes, espectadores acompanham Orfeu no Hades (mundo
subterrâneo dos mortos) para tentar recuperar sua “esposa”
Eurídice.
Na obra-peregrinação, o público desloca-se por todo o ce-
mitério, de um modo muito solene, superando as dificuldades
para que Orfeu encontre Eurídice: cantos, sobretudo de la-
mento; diferentes sinais (sonoros, de luz); falas (narrativas
e diálogos)... orientam o deslocamento. A obra vai propondo
uma espécie de processo de contrição coletiva. Sem qualquer
comunicação, acompanha-se a triste trajetória de Orfeu... É
49
possível apiedar-se da tristeza da heroica personagem (Orfeu),
sobretudo porque, de um modo ou de outro, talvez cada espec-
tador/a, se pudesse, procederia do mesmo modo para tentar
recuperar alguém importante em sua vida e falecido. A obra
enquanto desejo e desenvolvimento não é leve nem pesada,
tem tensão (principalmente pelo cenário de deslocamento).
Observação: para mais informações do coletivo pesquisar nas
chamadas mídias virtuais.
F
ormado em 2003 por artistas-educadores/as do Ceará e
Rio Grande do Norte, o coletivo foi formado congregando
sujeitos de diversos tipos de formação artística. Além das
obras produzidas, uma das mais importantes contribuições do
coletivo concerne ao processo de pesquisa das identidades e
tradições populares e da socialização da memória social de su-
jeitos apartados das formas documentais. No blog do coletivo,
pode-se encontrar a seguinte informação:
O Bando La Trupe integra o Movimento Escambo
Popular de Rua, que atua em diversos estados
do Brasil, promovendo, debatendo, instigando,
socializando e gerenciando cultura, em lugares onde
o acesso a esta e a discussão ao direito cultural, é
limitado. Sendo o grande mote do Bando, popularizar
os códigos artísticos de práticas culturais com o povo
e para o povo brasileiro.
51
O
coletivo é formado em 2006 por atores jovens, mas
bastante vocacionados para a linguagem teatral de
rua. Inicialmente, os dois fundadores da Companhia
montam, de modo lancinante o espetáculo Pé na Curva. A ida
para a rua parece ter sido uma consequência dos modos rela-
cionais com o público. No primeiro espetáculo, a inquietude
e os transbordamentos criativos da dupla não caberia nos li-
mites do palco italiano.
Dirigidos por Márcio Douglas (ator com excepcional trabalho
de palhaço), A Nau dos Desterrados apresenta as narrativas de
três piratas desgarrados (um mouro, um espanhol e um hindu)
que, em situação de deriva, depois de muito tempo perdidos,
23 Mario Pedrosa. “Frade Cético, Crianças Geniais”, na obra: Dos Murais de Portinari aos Espaços
de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1991, p.75-8.
conseguem aportar em algum pedação do imenso continente
brasileiro. Recuperados da peripécia – em estado de deriva e
incerteza –, dentre outras ações, passam a lembrar, de modo
machista, debochado, escatológico, irreverente, sardônico a
invasão da cidade do Rio de Janeiro, por esquadra de piratas,
comandada por René Duguay Troiun, em 1711. Assisti ao espe-
táculo em destaque no Festival Nacional de Teatro de Piracicaba
(Fentepira) e no Festival Nacional de Teatro do Vale do Paraíba
(Festivale). Em ambas as apresentações, apesar de as falas e a
gestualidade serem absolutamente escatológicas (repleta de pa-
lavrões, insinuações machistas, atitudes grotescas), o público
entrava em delírio e participava das orquestrações propostas
pelos atores, sem represálias, condenações morais etc. Muitos
belos achados, em estado de potente teatralidade prendiam
espectadores e espectadoras à obra, iluminada por tochas de
fogo... Terminado o espetáculo, podia-se perceber uma neces-
sidade de quero-quero... quero mais. O desejo coletivo ocorria,
52
A
presentado pelo conhecidíssimo e respeitado grupo de Pi-
racicaba, A Noiva do Defunto, é uma comédia portuguesa,
de domínio público, que estreou em 2006. O texto foi gen-
tilmente cedido ao Grupo pela família do Circo Piranha, por meio
de Luís Jóia Ramos, o palhaço Serelepe. A estreia ocorreu em
2006, foi uma obra que assisti defronte ao Cemitério da Saudade
na cidade-sede do coletivo. Alguns minutos antes da meia
noite, a obra se iniciava, sendo protagonizada por personagens
cômico-populares e, absolutamente, regionalizadas, a partir de
um clássico do circo-teatro português (de domínio público). Cli-
matizada aos usos, costumes e sotaque piracicabano, o melo-
drama circense (absolutamente revisitado pela farsa), vertido ao
universo daquela situação “cemiteresca”, gera um resultado é de-
licioso e provoca quilos de risada. Penso que dos bons achados da
montagem, a escolha do local de apresentação tenha sido excep-
cional: a obra desmistifica os medos atávicos e as tantas místicas
que cercam, até hoje, um cemitério tarde da noite. Desse modo,
é muito interessante a expansão que a obra vai promovendo nos
corpos de quem assiste. No começo todo mundo fica bem perto,
mas com a obra em andamento, percebe-se o estado de dispersão.
Evidentemente, e há material da obra sendo apresentada durante
o dia, muitas das conquistas territoriais se perdem e, por assim se
manifestar, o foco vai exclusivamente para a obra.
Tendo em vista a adaptação à forma original (um melo-
drama, cuja estrutura inicial é promovedora de baldes de
53
água), o resultado, de puro entretenimento, acaba, em razão
dos expedientes farsescos, a se caracterizar em uma real mani-
festação popular. A direção do espetáculo é de Antônio Chapéu
que soube trabalhar bem com alguns expedientes como: tra-
vestimentos, exageros/hipérboles, pantomimas, ambigui-
dades, escatologias e, principalmente, as porosidades com o
público. Segundo as fontes disponíveis e consultadas, a obra
acabou por ser assistida por mais de 30.000 espectadores.
Observação: para mais informações sobre o coletivo24 e ficha
técnica do espetáculo, conferir em: https://www.facebook.com/
andaimeteatro/ Para uma cena, no local essencial, ver também:
https://www.youtube.com/watch?v=QoFsVIs1ySo
24 Sobre a trajetória do coletivo, consultar: Alexandre Mate. Andaime Um Jeito de Ser: o Primeiro ¼ de
Centenário de um Grupo Piracicabano de Teatro. São Paulo: Editora Unimep, 2013.
II.12. Anonimato (Cia. Mungunzá de Teatro - São Paulo)
C
oletivo paulistano formado em 2008 por atores e atrizes
formados/das pelo Teatro-escola Macunaíma. “Marcado”
por explícita ousadia, o coletivo montou seu primeiro
espetáculo Por que a Criança Cozinha na Polenta? (adaptação
de literatura romena) convidando Nelson Baskerville para di-
rigir. O segundo espetáculo montado, Luis-Antonio Gabriela,
também dirigido por Nelson Baskerville, caracteriza-se em
uma das grandes referências teatrais dos anos 201025.
Em uma linda sexta-feira do mês de junho de 2022, no
deslumbrante Jardim da Luz, com árvores centenárias e des-
lumbrantes, acompanhei o espetáculo, dirigido de modo in-
tensamente emocionado por Rogério Tarifa. Assim como o
belíssimo e pungente espetáculo, cujo texto foi costurado por
Verônica Gentilin (a partir de criações individuais do conjunto
de intérpretes), assim como Rogério Tarifa e todo o elenco,
54
25 Com relação à primeira década de existência do coletivo, consultar: Alexandre Mate. Mungunzá:
Oba! Produção Teatral em Zona de Fronteira... São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2018.
conseguia desviar o foco do espetáculo, cuja beleza fisgava o
olhar, a atenção, a emoção... tudo sendo processado em ato;
tudo reverberando em relação. A obra, realmente era coletiva,
mas orquestrada, em seus finalmentes, por Rogério Tarifa
(cuja maioria das direções eu já conhecia).
Se se pensar o Jardim da Luz (ou Parque da Luz), cuja con-
figuração tem o formato de um imenso quadrado, tem-se: Pina-
coteca do Estado; uma área que, repleta de construções (muitas
das quais antigas e com imenso valor histórico), chega ao Rio Ta-
manduateí; a lindíssima e centenária Estação da Luz e o Museu
da Palavra; área do Bom Retiro, repleta de lojas e oficinas de
confecção (repletas de gente que sobrevive quase de modo es-
cravizado)... Mais adiante de cada local citado – bem perto e um
pouco mais longe –, gente muito pobre, trapeira (cuja deambu-
lação é por comida, cujos restos são encontrados nos lixos...), a
Cracolândia, composta por coros de gente cuja feição humana,
dia a dia, vai se perdendo; a prostituição praticada por valores
55
absurdamente aviltantes... Aquele conjunto de paisagens e de
circunstâncias (inu)humanas faz parte do espetáculo, donde,
seguramente o mais contundente traço se caracteriza/ alicerça/
manifesta em um “cantochorado” de/da utopia.
Observação: para mais informações do coletivo (até o espe-
táculo Epidemia Prata), consultar:
https://www.ciamungunza.com.br/historico
C
oletivo formado em 2008 por jovens atores e atrizes, e
seguindo certas tradições populares, cujo tratamento
visual (tanto os adereços como figurinos, com destaque
para a “pereira”, feita de guarda-chuvas vazados”) é de uma
extrema beleza artesanal. Assisti ao espetáculo na cidade
de São Paulo em duas ocasiões e lugares bastante distintos:
o centro da capital paulista, em um dia da semana; e no, so-
bretudo burguês, Parque do Ibirapuera, em um sábado, nu-
blado, entretanto, como costuma acontecer, repleto de gente,
principalmente de crianças. Tendo em vista a beleza da obra,
em processo de apresentação desde 2010, a narrativa funda-
mentada em conto fantástico, o uso das pernas de pau, a musi-
calidade e capacidade relacional com os ambientes e públicos,
Pereira da Tia..., destacando, ainda, a direção coletiva, teve o
mesmo e relevante entusiasmo do público.
Apesar de o tema ser clássico e conhecido: Miséria prende
a Morte em sua pereira e somente a liberta com a promessa de
não ser levada. Tal conquista faz com que Miséria permaneça
eternamente a buscar seu filho Fome. Em tese, ainda que o
tema carregue um certo peso, a jovialidade e inventividade
por meio da qual a obra é criada, sem dúvida, caracteriza-se,
56
U
ma das vezes em que assisti a obra foi exatamente em
uma das entradas da estação Santa Cecília do metrô
(na capital paulista). Naquele momento, e ao lado de
uma feirinha permanente, o espetáculo, em sintonia com a
respiração da rua cumpriu sua vocação estético-social. A nar-
rativa, criada em parceria por Calixto de Inhamuns e Simone
Pavanelli, apresenta diferentes pontos de vista dos processos
de exploração, tomando como alegoria, principalmente, a
gente da terra. De modo evidente, a obra se estrutura por
meio de uma narrativa que denuncia e evidencia todo tipo
de maus tratos dos “donos do Brasil”, em um sistema injusto,
excludente, predatório, como é o capitalista. Em cada epi-
sódio da obra, tendo em vista que a narrativa é épica, um
determinado ponto de vista é evidenciado. sempre buscando
explicitar acontecimentos reais e tentativas de subjugamento
de gente da terra aos senhores (ainda) feudais no Brasil. Além
dos expedientes épicos, tendo em vista a tradição do coletivo
e o processo de formação de Marcos Pavanelli, que dirige o
espetáculo, expedientes do circo confluem para a criação da
obra. Assim, e na condição de dono autoritário de circo, ale-
gorizando os donos da terra e das gentes, submete a todos
com um chicote nas mãos.
Terminado o espetáculo-denúncia, cuja realidade corres-
57
ponde à maioria das gentes que circulam pelas ruas, o coletivo
insiste, tendo em vista os temas apresentados pela obra ou
algumas apreensões com relação aos contextos daquele mo-
mento, que o público, se quisesse, poderia fazer uso de um mi-
crofone, de pedestal, colocado à disposição.
Infelizmente, faz algum tempo que o coletivo não monta
mais espetáculos. O casal Marcos Pavanelli e Simone Brites
“recolheu-se” em uma propriedade rural, provavelmente pla-
nejando, em momentos certos, retomadas à linguagem26.
26 O Núcleo Pavanelli conseguiu em alguns anos, sobretudo em razão da conquista representada pelo
Fomento Municipal ao Teatro, publicar um conjunto significativo de obras. Dentre elas, a revista A Poé-
tica da Rua. São Paulo: Centro de Pesquisa para o Teatro de Rua Rubens de Brito; Núcleo Pavanelli de
Teatro de Rua e Circo, 2010 e 2012. Nos dois números, o de 2012 (Caderno 3) apresenta uma resenha
mais detalhada da obra aqui selecionada.
II.15. A Revolução das Galochas (Coletivo de Galochas –
São Paulo)
T
rata-se de um coletivo formado por estudantes da Escola
de Comunicações e Artes da USP. “Ingratos/as” ao escolher
a rua e os temas tratados por um olhar político e popular,
é como se jogassem fora toda a cultura hegemônica que lhes
fora passada na universidade. Na verdade, os/as artistas do co-
letivo, que explicitam ligar-se aos pressupostos de um teatro
de ocupação, de acordo com certos pontos de vista das formas
hegemônicas de cultura, escolheram errado seus super heróis.
De qualquer modo, o coletivo insere-se em um coro de faze-
dores e fazedoras de teatro que pensam as questões político-
-militantes como fundantes para o trabalho teatral. Assiste ao
espetáculo em uma Mostra de Teatro da Companhia de Teatro
de Heliópolis. Então, um dos espaços para apresentação das
obras selecionadas foi, também, o território da comunidade
58
T
rata-se de obra desenvolvida em espaço híbrido. A obra
original demorava, em sua versão maior, mais de 8h.
59
Tal dimensão se devia, também, porque o coletivo assu-
mia-se e fazia obras para a classe trabalhadora. Desse modo,
além de a forma ser sofisticadamente popular, não seria pos-
sível àqueles sem automóvel assistir à obra (cuja sede do co-
letivo ficava em espaço ocupado de prédio abandonado da pre-
feitura), tendo em vista o horário de funcionamento do metrô
paulistano (que começava a operar às 5h da manhâ). Portanto,
das 22h às 5h da manhã, o público assistia à obra, tomava café,
jantava uma sopa substancial e deambulava por todo o espaço.
A narrativa divide-se, geograficamente em três atos e es-
paços: um interno e dois externos. Espetáculo construído co-
letivamente, em proposição épica-dialética, com cenas antoló-
gicas, o coletivo apresenta em sua página o seguinte resumo:
O espetáculo tem a pretensiosa vontade de narrar
a saga da aventura humana com um intenso
movimento de inúmeros personagens reprodutores
da vida e que, na somatória de suas experiências
alienadas, não percebem que constroem a cidade,
a sociedade e a história. O primeiro ato traz
um prólogo alerta aos viajantes, versa sobre o
movimento do ser social construtor de história, da
cidade, do capital. O segundo ato divide o público
em dois grupos. A cisão dá-se de forma brusca.
Num lado, o refugo humano vítima do despejo de
uma favela; noutro, o seleto grupo de possíveis
compradores de apartamentos de luxo em região
nobre da cidade. A festa, ou terceiro ato, traz
a possibilidade de quebra de alguns padrões e
em posse de parcial liberdade, pois, mesmo aí a
determinação social opera, experimentamos a bruma
de um porvir, o projeto de sociedade descolado das
cercas da ideologia dominante. A mesma festa é
apresentada como o mergulho coletivo nas entranhas
da sociedade do espetáculo.
A
Companhia dos Pés, cujo símbolo é um elefante,
foi criada em 2007, sendo seu principal objetivo a
junção do teatro e das chamadas técnicas verticais
(compreendendo escalada e rapel): teatro aéreo e, também,
de risco. De acordo com o material pesquisado, e inserindo-se
em alguns estudos e experiências semelhantes, e a partir de
temas mais urgentes da contemporaneidade, a Companhia
desenvolveu experimentos coligindo o teatro, a dança, as
artes visuais – em perspectiva de encantamento –, sempre
centrados fundamentalmente no corpo em estado de dese-
quilíbrio. Portanto, a partir de tal pressuposto, as manifes-
tações estéticas do coletivo buscam instaurar certo estado
de aflição, no concernente à recepção, para que a beleza,
em vários de suas formas e sentidos possam ressignificar as
apreensões do belo. Nos treze anos de existência do coletivo,
coordenado por Angélica Zignani, o coletivo já criou e apre-
sentou 13 espetáculos.
Assisti ao espetáculo em destaque no Festival Interna-
cional de Teatro de São José do Rio Preto, em 2008. Angélica
Zignani é a diretora do coletivo, portanto, Asas foi seu es-
61
petáculo de estreia. Em tese, e de modo bastante sucinto,
o conjunto de intérpretes do espetáculo, dois atores e uma
atriz, formavam um coro ou, metaforicamente, um “corpo
com duas asas” e, por meio de escaladas inundavam o co-
tidiano de asas. A obra era bastante poética e talvez tran-
sitasse, do ponto de vista temático, com demonstrações
quanto aos perigos rondantes para realização de alguns
sonhos. Parafraseando fala/pensamento/escrita recorrente
de Clarice Lispector, não se tratava de uma obra para en-
tender racionalmente, mas – e fundamentalmente – tentar
devanear e, mesmo com alguma aflição, ser capaz de “voar”
junto/conjuntamente.
Observação: para mais informações do coletivo, consultar
facebook.com/ciadospesrp/
II.18. As Presepadas de Damião – De Como Fez Fortuna,
Venceu o Diabo e Enganou a Morte Com as Graças de Jesus
(Honesta Companhia de Teatro – Campinas/SP)
T
rata-se de uma montagem de turma formada na Unicamp,
cuja obra foi dirigida pelo saudoso (e querido) Mário
Santana, falecido em 2008. As Presepadas de Damião...
é um espetáculo cujo tema, narrativa e expedientes estrutu-
ram-se às manifestações da cultura popular brasileira, como
o cavalo marinho e a folia de Reis. Damião, pobre e amigo da
vadiagem, é visitado por dois viajantes misteriosos. Em razão
de receber a graça de três pedidos, seu espírito aventureiro e
inquieto acaba por causar grandes quiproquós na terra, no céu
e no inferno.
Assisti ao espetáculo em uma das edições do Festival Na-
cional de Teatro de Piracicaba (Fentepira), em um sábado pela
manhã, em uma das praças tradicionais do centro da cidade.
62
I
lo Krugli, nascido na Argentina, mas radicado no Brasil,
desde a década de 1960 vinha à cidade de São Paulo. Na
década posterior retorna à Sampa e nela permanece até sua
morte, ocorrida em 2019. Ilo foi um verdadeiro mestre em seu
ofício como artista (ator, diretor, poeta, autor, artista plástico...)
e formou centenas de artistas a imprimir continuidade às prá-
ticas desenvolvidas no Ventoforte. Ilo apresentava seus espetá-
culos para gente de todas as idades e em todos os espaços dis-
poníveis. Havia uma ludicidade poética encantatória em suas
obras, comoventes e – como escrevi várias vezes – que juntava,
que trazia para perto as pessoas que assistissem aos espetá-
culos do coletivo. Penso, e estou certo de que não há exagero
na afirmação segundo a qual, qualquer pessoa sensível, ao
ter a oportunidade de assistir/participar das “festas” apresen-
tadas pelos espetáculos do Ventoforte, tende a sair modificada:
63
os espetáculos, de diferentes modos, promoviam como que
transfusões de sangues amorosos...Muito difícil selecionar um
espetáculo do coletivo, mas a felicidade estética de As Quatro
Chaves levava ao choro pelo encantamento estético, cuidado,
expedientes (e achados) estéticos, procedimentos com o pú-
blico, particularmente com as crianças. Espetáculo enigmático
(como toda criança gosta), ao final havia uma partilha de pães
com todo o público.
Infelizmente, com a morte de Ilo, o coletivo deixa de existir,
mas, para alegria e afeto de toda a gente que gosta de bom
teatro – e o “ventoforte” internalizado em poesia permanente
dentro de cada ser que passou, viveu, aprendeu com o mestre
Ilo –, continua a imprimir sequência à obra e aos tantos en-
sinamentos. Incontável o número de artistas a continuar as
lições vivenciadas, sempre em jogo e troca cúmplices, com Ilo
Krugli e suas criações engravidadas por tantos ventosfortes.
Na cidade de São Paulo, onde o Ventoforte teve a sua sede, e
“formou” tanta gente, com relação aos neófitos, pode e se deve
citar a colossal Companhia do Tijolo, cujos temas montados,
ainda que diferentes daqueles do Ventoforte, têm um trata-
mento estético bastante aproximado à escola Ventoforte.
Felizmente, há muito material disponível sobre o criador e
coordenador do coletivo: matérias, publicações especializadas,
teses e dissertações.
U
m dos coletivos mais longevos de teatro de rua do Brasil
(em atividade desde 1977), o Imbuaça (nome em home-
nagem ao artista popular, embolador Mané Imbuaça)
produziu, ao longo de suas décadas de existência, uma série de
64
P
ossivelmente, não conseguiria lembrar o número de vezes
em que assisti à obra do grande mestre Ariano Suassuna.
Do mesmo modo, seria impossível deixar de lembrar a
uma montagem que assisti em um circo na capital pernam-
bucana. A montagem foi inserida para a felicidade de quem
gostava de obras de raiz (e boas) em um encontro da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 1993. O es-
petáculo-espetáculo, ao ser apresentado por artistas pernam-
bucanas/nos (ou moradores naquela capital) apresentou uma
obra cuja “velocidade”, ritmo, elocução, “tempero”, sedução
65
eram rigorosamente nordestinos... Dentro daquele circo, que
o grande artista, historiador, professor Leidson Ferraz (com
quem conversei sobre o espetáculo, abril de 2021) ouve, pela
totalidade das pessoas, ter feito um calor imenso, não me
lembro do calor do tempo, mas – e inesquecivelmente – da-
quele referente à obra.
Realmente, coisa de cantar a própria aldeia... Evidente que
é possível alcançar e atingir o “coração” de uma obra, não im-
porta de onde ela tenha vindo ou tenha sido criada, mas as-
sistir a um Suassuna, em sua terra (mesmo ele tendo nascido
na Paraíba), é entender as pequenas filigranas de sentido nos
distintos e diversos sentidos de uma obra. Lembro que os
atores e atrizes tinham uma eletricidade contagiante; ouço
27 Para mais informações sobre os caminhos trilhados pelo coletivo, consultar Lindolfo Amaral. “Um
Itinerário do Teatro de Rua”, publicado na Rebento – Revista de Artes do Espetáculo. São Paulo:
Instituto de Artes da Unesp, nº 3, março de 2012, p.88-103.
ainda, ao fazer um esforço de memória, a melodiosidade na
elocução das personagens: palavra musicada em estado de re-
pente! Isso! Espetáculo-festa: repentista! Inesquecível!!
O Auto da Compadecida foi dirigido por Marco Camarotti,
nascido em Paudalho – Pernambuco (https://marcocamarotti.
wordpress.com/about/) e, segundo informações de Leidson, foi
um espetáculo apresentado durante perto de 20 anos.
Antes de encontrar a referência sobre a obra, fiquei incon-
tável número de horas a realizar pesquisas para descobrir a
inserção daquele espetáculo na SBPC... Consultei muitos mate-
riais e não encontrei pista alguma. Busquei recontratar algumas
das pessoas que tinham estado no evento e que poderiam ter
assistido à obra. Entretanto, não vinham as informações. Cha-
teado, imaginava que aquela obra iria morrer comigo, mas,
graças ao encontro com Leidson, retomei e reencontrei aquela
experiência tão bela e significativa.
Observação: para mais informações do coletivo e do espe-
66
G
rupo existe desde 1988. Assisti ao espetáculo no Festival
Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, em
2011. Os espetáculos do coletivo coligem diferentes in-
fluências, mas, sem dúvida, há uma forte influência das artes
plásticas em suas obras, que apresentam grandes cenografias
(engenhocas inspiradoras para a imaginação ir longe), bonecos
inusitados e caracterização de atores e atrizes instigantes. Com
direção de Jackson Zambelli, cuja caracterização para perso-
nagens é sempre muito e magistralmente excêntrica, Auto-
mákina - Universo Deslizante é uma obra-instalação que leva as
possibilidades metafóricas ao extremo. A máquina-traquitana,
na obra, teria sido construída pela personagem feita por Zam-
belli, conhecida como duque de Hosain’g. De certo modo, a
obra tende a “ejetar” os seres sensíveis, ou quem se concede,
ao assistir ao espetáculo a ir..., mesmo sem sair do lugar a um
mundo ficcional único.
Segundo material à disposição, encontra-se a seguinte
afirmação:
O espetáculo de teatro Automákina – Universo
Deslizante trata de uma questão pertinente a
todos os homens de todos os tempos: “a arte da
sobrevivência”. Com uma linguagem que mescla
o simbolismo do teatro de bonecos com seus
personagens autômatos fazendo uma metáfora
a existência humana, o virtuosismo das técnicas
circenses e a poética do teatro de rua.
67
Observação: para mais informações do coletivo e ficha técnica
do espetáculo, consultar: www.depernasproar.com.br
A
yê, em iorubá, significa “terra”, no plano terreno. As-
sisti ao espetáculo em 2013, em Porto Alegre. Lembro
que era uma noite muito fria, mas, e sem demorar
muito, o espetáculo foi propondo um aquecimento atávico, an-
cestral, comovedor. O Coletivo foi formado em um Quilombo
no centro de Porto Alegre, e a narrativa da obra referia-se a um
processo permanente de luta e resistência da comunidade qui-
lombola contra todas as formas de opressão por que passavam
os homens e mulheres negras. Em tese, lembro que boa parte
das questões temáticas diziam respeito às questões referentes
à miscigenação, à escravização, aos processos de exploração e
coerção da gente negra.
Criado a partir de procedimentos ritualísticos e ances-
trais, a obra apresentava uma musicalidade surpreendente e
imagens poderosíssimas. O espetáculo, como se caracterizam
as boas obras, pouco a pouco, pela menos para mim, provocava
uma emoção tão virulenta e intensa... algo como aterramento e
flutuação, juntas, lutavam em estado de comoção. O sentido e
vivência da beleza da arte e seus transbordamentos, por meio
de obra tão intensa, me convulsionaram.
Infelizmente, pelo processo de pesquisa, parece que o coletivo
não existe mais, entretanto, informações podem ser obtida em:
https://escapeteatro.blogspot.com/2013/04/aye-portoalegrers.html
O
bra alicerçada completamente nos jogos propostos entre
artistas e público por meio de tradicionais reprises cir-
censes, orquestrados pelos palhaços protagonistas. O
espetáculo, com direção de Márcio Douglas, tem costura dra-
matúrgica desenvolvida por meio de toneladas de expedientes
paródicos, apresentadas por três atores. Tive oportunidade de
assistir ao espetáculo na cidade de São José dos Campos e, em
razão de o espetáculo estruturar-se por meio de muitos qui-
procós, a criançada acaba por se divertir e, dependendo dos em-
bates, torcer por uma ou outra personagem em suas querelas e
contendas. Com relação aos adultos, o espetáculo consegue ca-
tivar por meio das paródias do universo do bang-bang.
Observação: para mais informações do coletivo e ficha técnica
do espetáculo, consultar:
https://www.youtube.com/watch?v=x90RSgvroZQ&t+32s
II.25. Barafonda (Companhia São Jorge de Variedades
– São Paulo)
C
oletivo da Cidade de São Paulo formado a partir de inte-
grantes formados pela Escola de Arte Dramática da USP,
apresenta um conjunto significativo de obras até chegar
a Barafonda. O espetáculo é um susto delirante. Ao acompa-
nhá-lo (tem caráter processional), ao longo de seus dois ou mais
quilômetros, cujo partida ocorre na Praça Marechal Deodoro,
não se pode dizer com certeza, em muitos momentos, o que é
real e o que é criação teatral.
Em tese, a obra, extremamente complexa, estruturou-se a
partir do mito de Prometeu, das Bacantes e das gentes (em es-
tados de potência) do bairro nomeado Barra Funda: tantos as
figuras do bairro como as performances individuais e coletivas
do imenso e belíssimo coro de intérpretes. Para ampliar a com-
plexidade, o percurso de deambulação do espetáculo inicia-se
69
na Praça Marechal Deodoro e se “encerra” no mítico Largo da
Banana (onde teria nascido o samba paulista). No percurso
longo, em determinado momento é necessário atravessar o leito
de um ramal de estrada de ferro: onde ocorre uma aparição, ou
seria epifania de Mario de Andrade, vivido por Paschoal da Con-
ceição. A obra hibridiza tempos e personagens distintas. No meio
do percurso da obra-cortejo, o público todo que acompanha as
ações, para na, então, sede da Companhia para tomar água, café e
comer uma bananinha ou paçoca. A direção geral do espetáculo,
formado por um imenso coro de intérpretes (vinte e cinco atores
e atrizes), tem na batuta de Patrícia Guifford uma obra consti-
tuída por momentos de raras e surpreendentes belezas.
Em uma entrevista, a diretora (excelente atriz, também),
afirma:
Seduzidos pela possibilidade de dialogar cada vez
mais diretamente com o lugar que habitamos e
convencidos da relevância de se realizar um teatro
que faça cada vez mais parte da vida, sem mediações
e convenções controladoras, resolvemos voltar o
olhar para nossa própria “aldeia”: a Barra Funda e
sua rica história, que se apresenta como metáfora
da cidade e da civilização. O espetáculo é um passeio
pelo bairro e pretende juntar nosso elenco com o
público e formar um grande coro.
Rua – Santos/SP)
C
oletivo foi fundado em 2002 com algumas determinações
quanto ao tipo de teatro desejado e necessário. Do ponto
de vista temático, a Trupe tem buscado transitar a partir
das proposições brechtianas, tendo clareza de o teatro se ca-
racterizar em um experimento histórico-estético social; e, do
ponto de vista estético, as práticas da palhaçada e a musica-
lidade têm sido suas fontes de pesquisa e aprofundamento.
Nesse período de existência, a Trupe montou e apresentou tra-
balhos muito significativos, mas, o último de seus espetáculos,
radicaliza as pesquisas até então trilhadas. Blitz – o Império que
Nunca Dorme, que toma como tema a violência e truculência
policiais, em tratamento paródico de representantes da polícia
(o coro de intérpretes usa minissaia e, no geral, apresenta-se de
modo bastante feminilizado e, evidentemente, imbecilizado).
A partir de um golpe certeiro, o elenco afigura-se demolidor,
quanto à composição dos sujeitos que representa. De outro
modo, beócios e representantes daqueles que, no mundo real e
crudelíssimo, são violentos e absolutamente repressores. O ca-
ráter panfletário, sardônico e mordaz de construção e criação
da obra, depois de muitas ameaças, fez com que, em uma das
apresentações em Santos, a polícia interrompesse o espetáculo
e detivesse um dos integrantes do coletivo (Caio Martinez).
Assisti ao espetáculo (Blitz...) em uma feira do MST, no
Parque da Água Branca (Zona Oeste da cidade de São Paulo),
em um lindo domingo de sol. O espetáculo promove alguma
deambulação, e o que mais podia se ouvir, tendo em vista o
caráter ácido da obra, eram frases como: “- Não acredito!”; “-
Massa!”, “- Estou me sentindo vingado”... Riso catártico, demo-
lidor e de reversão da ordem e estatuto social, conforme indi-
cação de Mikhail Bakhtin no livro A Cultura Popular na Idade
Média e no Renascimento: o Contexto de François Rebelais.
71
Observação: para “respostas” a este momento histórico (2020),
havia um vídeo que foi retirado e impedido de circular... De
qualquer modo, para demais informações do espetáculo, con-
sultar https://www.trupeolhodarua.com/ Ver, também, https://
trupeolhodarua.blogspot.com/ Há uma crítica do espetáculo,
de Rodrigo de Morais Leite. “Blitz, um espetáculo de rua pro-
missor”, in: Diário do Litoral. Santos, 16/12/2017.
D
e tempos em tempos, no concernente à direção de espe-
táculos teatrais, determinados criadores, seus grupos e
obras são alçados, pelos chamados especialistas, à con-
dição de paradigmas da linguagem. Gerald Thomas, Renato
Cohen, Gabriel Villela, Roberto Alvim, Antônio Araújo... Evi-
dentemente, alguns desses sujeitos e algumas de suas obras,
realmente são muito interessantes e inovadoras. Mas, e pelos
mais variados motivos, assim como no texto Roda Viva, de Chico
Buarque de Hollanda, o João da Silva, transformado em John
Silver, desaparece. Não é o caso de Antônio Araújo, algumas de
suas direções, nos anos 1990, funcionaram como faróis quanto
a diferenciadas possibilidades de experimentação. A Trilogia
Bíblica, composta por: O Paraiso Perdido (1996), O Livro de Jó
(1995), Apocalipse 1.11 (2000) foi um marco referenciante.
Na primeira década do século XXI, o Teatro da Vertigem
apresentou a obra Bom Retiro 958 metros. Obra híbrida com-
posta por deambulação interna e externa, compreendeu a pro-
cessionalidade por 958 metros no Bairro do Bom Retiro. Em
tese, o bairro, que compreendia imensa zona alagada do Rio
Tietê, depois de “corrigido”, serviu, por um determinado mo-
mento de tempo, à gente endinheirada. Depois transformou-se
72
O
espetáculo foi apresentado dentro da programação da
20ª edição do Janeiro Brasileiro da Comédia, de São
José do Rio Preto/SP. O local escolhido para a apresen-
73
tação da obra foi uma localidade distante do centro de São José
do Rio Preto, chamada Talhado. A vila contava com poucas
ruas, uma praça lindíssima com igreja e coreto, jardim impe-
cável. De algum modo, para quem era de fora do local, aquele
lugar representava uma volta a lugares distantes, no tempo e
no espaço.
A concepção, criação e atuação do espetáculo era da sur-
preendente Janaína Morse. O espaço representacional, na
totalidade do tempo, circunscreveu-se a uma lona de aproxi-
madamente 2 metros de diâmetro. Ao lado da lona, incontável
número de crianças em uma noite quente e agradável. No ar
um cheiro de mato, de “vida despoluída”. A narrativa foi estru-
turada apresentando uma ida à praia. A ambientação contou
com conchinhas, algumas gotas de água para representar
o mar e um conjunto de adereços característicos de uma pai-
sagem praieira. Sim, a atriz, que inicia sua apresentação, vai
tirando peças e mais peças de roupa (inclusive dois sutiãs) e
termina de maiô. Evidentemente, nesse processo preparatório
para a roupa de banho ela convida um belo rapaz para aju-
dá-la. Com relação ao jovem, que é chamado outras vezes à
cena, o final apresenta uma cena típica de casamento...
A atriz teve uma atuação absolutamente carismática e en-
cantadora. Atuante absolutamente consciente de si, seu tra-
balho e de seu potencial. Relacionou-se de modo incrivelmente
popular. A atuação de Janaína promoveu um fenômeno “psico-
-físico-químico” de imensa força centrípeta. As crianças, algo
distantes da lona, foram se aproximando, mais e mais. Basica-
mente, a apresentação, e literalmente, contou com as crianças
como personagens constituintes da cena. Fenômeno admirável
de quem ama e quer estar mais aprochegado.
De fato, naquele dia 25 de janeiro de 2023, aqueles/aquelas
que se permitiram, viveram um lindíssimo momento compreen-
dendo a beleza, absolutamente complexa, contida no simples.
74
A
Trupe Artemanha foi criada em 1996, no município que
fica em uma das divisas de Sampa, Taboão da Serra; e,
em 2005 e, a partir desta data, o coletivo, com espaço no
distante (do centro da cidade) Campo Limpo realizou conjunto
significativo de ação. Além de espetáculos, em determinado
momento, por meio da coordenação de Luciano Santiago, em
prédio ocupado, o coletivo criou uma escola de formação de
atores e atrizes, em uma perspectiva popular. Lamentavel-
mente, a escola não existe mais e o coletivo foi reconfigurado,
mas as lições e ações do passado, estou certo, orientam a conti-
nuidade dos novos integrantes do conjunto criador.
No espetáculo em destaque, o coletivo resolve buscar a rua
como espaço de encenação. Nessa estreia, apresenta, adotando a
estrutura do teatro de revista, o circo e outras formas populares,
algumas especulações sobre a formação do Brasil ou, de outro
modo, quantos sãos os brasis que comporiam o estado-nação de-
nominado, formalmente, de Brasil. A partir da visão e narrativa de
dois escravos-tigre o Brasil, em estado de contradição, mas acom-
panhado por muita música e tradições populares é revisitado.
Assisti ao espetáculo em uma das edições da Mostra de Teatro de
Rua Lino Rojas (SP), e o resultado da obra, pelo colorido, garra do
conjunto de atores e atrizes, pela musicalidade e situações cômicas
cumpriram a função determinante do teatro de rua: comunicar-se
e relacionar-se com a cidade e seus/suas frequentadores/ras.
Observação: para mais informações do coletivo e ficha técnica
do espetáculo, consultar: Revista do Movimento de Teatro de
Rua (MTR-SP)28.
75
II.30. Canção, Malazarte e Trupizupe (Grupo de Teatro
Quem Tem Boca É Pra Gritar – João Pessoa/PB)
F
undado em 1987, e à semelhança de tantos outros cole-
tivos populares, colige lições e ensinamentos de Ariano
Suassuna e de Hermilo Borba Filho; da cultura popular
nordestina; expedientes da commedia dell’arte, que corres-
ponde a um processo-síntese de diferentes tradições populares;
de procedimentos dos saltimbancos e menestréis medievais...
De acordo com o mestre-diretor do coletivo, Humberto Lopes,
a obra se caracteriza em uma retomada, nordestinizada,
de alguns dos expedientes da commedia dell’arte italiana,
28 Revista Arte e Resistência na Rua. Movimento de Teatro de São Paulo: São Paulo: Grafnorte. Ano
II, nº 2, julho de 2012, p.75-80.
temperada com comicidade e significativa “picância grotesca”,
característica de certa forma de comédia.
Assisti ao espetáculo em 2015 e comecei minha leitura
crítica do seguinte modo:
Simplesmente surpreendente! O grupo paraibano de
teatro Quem Tem Boca É Pra Gritar apresentou-se
na edição de 2015 da Mostra Internacional de Teatro
Paraíba Encena (MIT-PB) com o vulcânico espetáculo
Canção, Malazarte e Trupizupe. Iniciado com uma
salva de fogos e um cortejo arrebatador (jamais,
em toda minha vida de espectador, senti tanta
emoção com um cortejo), a “artistaiada brincante”
do Grupo da Paraíba transformou o espaço de
representação na Praça do Coqueiral em epicentro
de uma rinha ou território de felicidade. Rinha
porque os corpos estavam absolutamente afinados,
com os tônus no lugar certo, com os aterramentos
impecáveis e com uma alegria corporal pulsante:
verdadeiro hemocentro cujo combustível foi alegria
(contagiante).
E
spetáculo que faz parte da Trilogia Inventiva, composta,
ainda, por: Bandido é Quem Anda em Bando e Azar do Val-
demar)29. Por intermédio de processos colaborativos, o co-
letivo formado na Escola Livre de Teatro de Santo André escolhe
a rua como seu palco. Depois de uma primeira experiência, e ao
tomar contato com a magistral: Viva o Povo Brasileiro, de João
Ubaldo Ribeiro, o trio criador do Grupo iniciou os processos de
adaptação da obra e criou o primeiro dos espetáculos da tri-
logia: Canteiros. Tomando o épico como força operatriz, traba-
lhadores da construção civil, em sua hora de almoço, lembram
de parentes de histórias de suas vidas, decorrente da questão
de quem pode escolher aquilo que come. Então, por meio da
narração, aquela gente, em sua obra do almoço, se reconhece e
presta homenagem às gentes que vieram antes.
Além dos trabalhadores (todos migrantes nordestinos), aparece
77
uma vendedora de marmitas que, por meio de grande capacidade
efabulatória, apresenta suas histórias, também. O trabalho de in-
terpretação coligi narração (conceito de diegése) e ação (conceito
de mimese). A criação dramática, criada em processo colaborativo,
foi organizada por meio da direção de Edgar Castro.
Observação: para mais informações do coletivo e ficha técnica
do espetáculo, consultar: www.facebook.com/osinventivos
F
undado em 2011, o coletivo de intervenção e de perfor-
mances públicas, cujo epicentro encontra-se na cidade de
São Paulo, tem apresentado suas obras, com empenhado
29 Para mais informações, consultar Bandido É Quem Anda em Bando: no ½ da Travessia de uma “Trilogia
Inventiva”. São Paulo: pub. de Os Inventivos, vol. 1, nº 1, jan. 2012.
e inconteste sentido de intervir na paisagem pública da cidade
e chamar a atenção para questões absolutamente essenciais
na contemporaneidade (e vida brasileira). O sugestivo nome
atribuído ao espetáculo de intervenção metaforiza/simboliza
infinitas pessoas que, mesmo diante dos acontecimentos cru-
delíssimos da vida político-social brasileira, permanece imune
e alheia ao que grita à volta. Tive a oportunidade de assistir
à intervenção duas vezes: em ambas a mesma e arrepiante
impressão de inquietude e desassossego. Assistir ao desfile de
seres, próximos do amorfo, de aparência humana, mas sem
rostos ou expressões humanas caracteriza-se em epifania gro-
tesca e proto-humana.
O coro de homens e mulheres (cujo mote deflagrador se
fundamenta em um fragmento da obra Ensaio Sobre a Ce-
gueira, de José Saramago, segundo o qual: “O medo nos cegou.
O medo nos fará continuar cegos”) veste roupas “clássicas”
e de tonalidade pastel, totalmente bezuntados de argila e ca-
78
79
Mystérios e Novidades – Rio de Janeiro)
A
Grande Companhia... de Mystérios... caracteriza-se
hoje em uma referência estética de possiblidades in-
findas que a rua oferece. O coletivo surge na cidade
de São Paulo em 1981, quando as artes, mesmo sem nunca ter
estacionado, experimentava um momento de efervescência,
tendo em vista os enfrentamentos a todo tipo de coerção im-
postos ao pensamento, à vida e às artes. A maga-criadora
e coordenadora do coletivo, Lígia Veiga, depois de passar
quase cinco anos na Europa (de 1986 a 1990), volta ao Brasil
e, a partir daí, instaura uma proposta bastante singular e
artística que marcará o caminho pelas ruas a partir daí. No
Rio de Janeiro, o coletivo inseriu-se e tem lutado até o mo-
mento no Movimento de Arte Pública. Em tese, a narrativa
textual da obra espetacular da Companhia, corresponde
a uma livre adaptação do clássico de Eurípedes (em que o
autor se fundamenta: Canto IX, da Odisseia, de Homero), na
qual o dramaturgo da Antiguidade clássica grega relata as
aventuras de Ulisses na caverna do ciclope Polifeno. Eviden-
temente, e tendo em vista a longa tradição de criação ao pa-
roxismo (ao extremo) de Lígia Veiga, o mito ressignificado
e reambientado/climatizado, serve de suporte à obra que
promove um verdadeiro despertamento de reconhecimento
de beleza.
A obra transita com um conjunto de adereços inusi-
tados, com destaque a instrumentos incomuns, fruto de
um trabalho valorosíssimo de pesquisa destes em períodos
antigos. O conjunto de intérpretes (sempre em pernas de
pau), desenvolve a narrativa cênica de um modo a mate-
rializar uma verdadeira opereta ou ópera popular: greco,
indígena e africano. A encenação, e isso fica bastante evi-
dente para quem conhece e estuda teatro, promove uma
80
E
m tempos pandêmicos, que colige perversidades múl-
tiplas, estratagemas táticos têm sido buscados de todas as
formas e modos. Desde a primeira e documentada expe-
riência de expulsão dos artistas populares, ocorrida na Anti-
guidade clássica grega, tais sujeitos (na totalidade das vezes)
em agrupamento, têm resistido. Atualmente, com a impossibi-
lidade de apresentação nos edifícios fechados, e com restrições
em espaços públicos, algumas táticas de sobrevivência têm
sido desenvolvidas.
Não assisti às obras apresentadas pelo coletivo aqui em
destaque, mas (assim como o espetáculo Vikings e o Reino Sa-
queado, da Cia. Os Palhaços de Rua), tive a oportunidade de
vê-los – e mais de uma vez – por vídeo. O espetáculo assistido
foi o delicioso Circo de Doisdo. É muito admirável a criação
81
do coletivo em uma região que fica nas proximidades de Pi-
racicaba e Limeira, mas, segundo pesquisa realizada, não tem
tradições teatrais e, também, outros grupos teatrais... Em tese,
a Companhia é formada por três integrantes: Suelen Zacharias,
Hugo Delariva e Denis Menezes, entretanto, a obra aqui des-
tacada é apresentada por dois de seus integrantes, os palhaços:
Capivara (Denis Menezes) e Fiofó (Hugo Delariva). A dupla
transita, enquanto composição, com as principais singulari-
dades pressupostas pela existência, em processo de confusão,
com o clássico da palhaçada (ou palhaçaria) de circo. Sinto não
haver propriamente o clássico Augusto e Branco, mas a com-
binação, em contraste, funciona muito bem (o que, neste caso,
refere-se à comicidade).
Malabares, quiproquós, equilíbrio, reprises circenses cons-
tituem o repertório da dupla que têm uma dinâmica muito in-
teressante e um tempo muito bom.
Observação: para mais informações do coletivo e do espe-
táculo, consultar:
https://www.youtube.com/watch?v=ZSSMZ6WGdy8
https://www.youtube.com/watch?v=xMrhXKdNYlk
C
riado em 1998, por Ésio Magalhães e Tiche Vianna, lo-
caliza-se em Barão Geraldo (que é um distrito, que
compreende vários bairros, habitado por muita gente
que estuda e trabalha na Unicamp), o Barracão Teatro é um
espaço de investigação, pesquisa e de criação cênica. Em tese,
o espaço, mantido por Tiche e Ésio colige, sobretudo, as práxis
do trabalho de palhaço, da commedia dell’arte e das máscaras.
Apesar de múltiplas dificuldades para manutenção do espaço,
tanto Tiche Vianna como Ésio Magalhães, juntos e separados,
82
O
coletivo se formou a partir da união de alguns/mas
estudantes do processo de formação da Fundação das
Artes de São Caetano do Sul (região conhecida pelo
nome de ABCD paulista30), em 2007. Trata-se de um coletivo
cujas obras são apresentadas dentro de um ônibus, e este, para
que os espetáculos se cumpram, está permanentemente em
movimento. De uma certa forma, os espetáculos acontecem
como metáfora (metaphorai; de acordo como são nomeados
todos os meios de transporte coletivo na Grécia). Mesmo sem
sair do banco em que nos sentamos) somos transportados...
e, no caso da Sinhá Zózima, tem-se uma dupla metáfora! Por-
tanto, de modo aparentemente íntimo, o espetáculo “invade” a
cidade, em suas veias pulsantes.
Cordel do Amor Sem Fim, de certa forma, tendo em vista
83
sua narrativa cênica se caracteriza em uma espécie de cantata
da megalópole. O de dentro, correspondendo à narrativa espe-
tacular (escrita, ensaiada e apresentada à gente do coletivo) é
delicada, repleta de imagens telúricas e perspectiva poética. O
de fora, cuja narrativa é improvisada, caótica, com sequências
irregulares e, normalmente, inapreensível, palpita em outra
cadência. Já o mais de dentro ainda, correspondendo às moti-
vações das personagens e às traduzibilidade de tantas camadas
simbólicas (de quem assiste, podendo se perceber assistido
também) em voragem, disputa, sobre e justaposições perma-
nentes. A obra promove um entrecruzamento lancinante.
Cláudia Barral escreveu e Anderson Maurício orquestrou a
30 O ABCD paulista, de acordo com as iniciais corresponde a Santo André, São Bernardo, São
Caetano, Diadema. Além desses quatro, fazem parte ainda: Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da
Serra. O “ABC” corresponde a municípios com parque industrial bastante numeroso o que confere às
localidades mencionadas um PIB bastante alto, em termos de Brasil.
obra. Portanto, a alusão à cantata ocorre pelo contraste entre o
conjunto de duas e duas “sinfonias” (dentro, mais dentro, fora:
em fuga e de modo inverso). Tal jogo de canto e contracanto;
cenas e/em contracenas formam, em perspectiva de tessitura,
uma obra para além de quatro intervalos de andamento.
Observação: para mais informações do coletivo e ficha técnica
do espetáculo, consultar: Rudinei Borges. Teatro no Ônibus:
Pesquisa Cênica da Trupe Sinhá Zózima. São Paulo: Coope-
rativa Paulista de Teatro, 2013.
A
ssisti ao espetáculo em Porto Velho, em 2015, no evento
84
O
coletivo de Ribeirão Preto foi criado em 2007. Em razão
do tempo de estrada e da inquietude de seus/suas in-
tegrantes, muita coisa já foi apresentada em distintos
85
espaços próximos e distantes de sua cidade de origem de fun-
dação. Trata-se de um coletivo, fundamentalmente de rua,
mas, é seguro, apresenta-se em qualquer espaço possível e ne-
cessário (atendendo a convites).
Dessa vez, para criar seu espetáculo, com direção de
Flávio Racy, que também faz a personagem de Quixote, o co-
letivo adota a personagem mítica de Miguel de Cervantes e,
como se age nas formas populares de cultura, faz com que
D. Quixote ou D. Caixote reapareça em terras brasileiras. O
espetáculo tem um figurino muito belo, transita com algumas
engenhocas cenográficas, desenvolve-se por meio de vários
expedientes do teatro popular, tem uma partitura aberta e
mistura várias tradições, incluindo aí também do circo. O con-
junto de atores e atrizes, é bastante afinado e, realmente, con-
segue dar conta do recado e das exigências de um espetáculo
de rua. A obra se desenvolve por meio de rodiziamento para
a apresentação do conjunto de personagens, denunciando al-
gumas das manipulações do sistema predatório em que es-
tamos mergulhados. Do conjunto de achados interessantes,
Sancho é feito por uma mulher – dona de casa, ou mulher do
povo – que, é lúcida e atenta aos acontecimentos da vida, e
desenvolve uma função de rapsoda (narradora), cuja função
majoritária e buscar desenvolver a consciência de Quixote,
que ela chama de Caixote.
Assisti ao espetáculo, uma segunda vez, na 17ª edição do
importante evento de São José do Rio Preto, chamado Janeiro
Brasileiro da Comédia (2019), em um parque cultural, ressig-
nificado a partir de um antigo frigorífero da cidade. A obra,
nessa ocasião, encantou não apenas a mim como o conjunto
que acompanhou aquela apresentação.
Observação: algumas informações da Companhia podem ser
buscadas/encontradas no Facebook.
86
F
ormado em 1999, o coletivo se caracteriza como um dos
mais significativos e representativos agrupamentos de
teatro de rua do Brasil. Com dez espetáculos já produ-
zidos, sendo o primeiro deles a obra aqui em destaque, e
ainda em repertório, o coletivo gaúcho já teve os seus espetá-
culos assistidos por mais de 500.000 pessoas. Assisti a quase
todos os espetáculos do Grupo e, especificamente, a Deus e o
Diabo na Terra da Miséria (com direção de Hamilton Leite)
em uma das edições da Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas/SP
e no Festival Nacional de Teatro de São José do Rio Preto, em
2000. O Oigalê é um coletivo de resistência e de tradição e tem
como uma de suas características fundantes buscar temas e
tratá-los do ponto de vista das tradições determinantes da
cultura pampiana.
Portanto, por intermédio das obras apresentadas pelo
Oigalê pode-se acessar um conjunto de chaves que abrem
portas a uma mentalidade e singularidades de uma cultura de
resistência, tradicionalíssima (no melhor dos sentidos pres-
supostos pela palavra) e de depuramento formal. Na obra em
destaque, e decorrente dos contos de tradição oral, vertida, se-
gundo a artistada do coletivo a certas tradições gaudérias: Mi-
séria (dono de uma ferraria), recebe a visita de Nosso Senhor
e São Pedro. Estes lhe concedem três pedidos. Miséria engana
Deus e o Diabo, motivo pelo qual é condenada a vagar pelo
mundo afora.
A narrativa foi recriada, reinventada, ressignificada e
vem sendo apresentada, por meio de diferentes linguagens,
no âmbito da cultura. A gente “oigalense” recria a obra com
apuramento em vários níveis. Primeiro destaque: sem mi-
87
crofones, ouve-se absolutamente tudo o que o elenco fala (o
que não tem sido tão fácil de encontrar); o coletivo transita,
com voleios permanentes (não há frontalidade em nenhum
momento); os figurinos são belíssimos e sempre limpos e
bem cuidados; a musicalidade é sempre bem cuidada; os/as
artistas da cena conseguem (e sem apelos ditos mais fáceis)
cativar parte do público. Assim, há uma torcida explícita
por uma ou outra personagem nos embates pressupostos
pela narrativa.
Observação 1: para mais informações do coletivo e ficha
técnica do espetáculo, consultar: oigale.com.br
Observação 2: especificamente sobre a produção teatral de
Porto Alegre, dos anos 1970 à primeira década do século XXI,
consultar o primoroso trabalho, sobretudo de materiais icono-
gráficos, de Jessé Oliveira. Memória do Teatro de Rua em Porto
Alegre. Porto Alegre/RS: Editora Ueba, 2010.
II.40. Édipo na Praça (Cia. de Teatro Os Satyros –
São Paulo)
S
egundo a informação de que se podia ter acesso na
ocasião, o irrequieto coletivo teatral, sediado na Praça
Roosevelt, “antenado” aos principais acontecimentos da
cidade, montou a obra em destaque. Naquele momento his-
tórico, a cidade havia sido “invadida” por uma onda absolu-
tamente significativa, chamada genericamente de “Jornadas
de Julho”. A mobilização popular, inicialmente, tomou espaços
públicos para protestar contra o aumento dos preços das ta-
rifas públicas de transporte. Gradativamente, como costuma
acontecer, as manifestações de protesto foram se tingindo de
diferentes e arbitrários interesses. Em determinado momento
de tais manifestações, como decorrência do processo de re-
pressão, alguns/algumas manifestantes terem se refugiado
no Teatro dos Satyros, tal atitude chamou a atenção do con-
88
89
leantes na praça, mas contrastadas com o brilho e viço da obra
e do conjunto criador. Nos trabalhos de coro havia muitas
referências pictóricas importantes de momentos de luta e de
enfrentamento aos detentores de poder e aos terrorismos de
estado. Em momento de criação feliz e potentemente épica,
aquela obra conseguia reunir a obra teatral clássica, fazer
alusão ao “Mito da Caverna” de Platão e ao momento histórico
da cidade.
Observação: A Companhia tem muito material da produção
e do conjunto de suas obras, entretanto, para ter acesso
a uma obra mais analítica sobre a obra aqui selecionada,
indico a dissertação de mestrado de Miguel Arcanjo Prado
de Oliveira: Oficina e Satyros no jornal: o discurso da mídia
hegemônica sobre o teatro de grupo e a internet como alter-
nativa possível (2016).
II. 41. Entre Vãos (A Digna Companhia e Um Cafofo –
São Paulo)
A
Companhia foi criada em 2010 e seus trabalhos, em
tese, ligam-se a uma linha mais experimental de teatro.
O espetáculo tem uma estrutura complexa de apresen-
tação. Isto é, a dramaturgia de texto (com assinatura de Victor
Novoa) e a dramaturgia de cena (com a assinatura de Luiz Fer-
nando Marques) coligem as histórias de quatro personagens
diferentes. Em tese, de acordo com o contido em matéria de
divulgação do espetáculo, o deflagrador da obra foi o Edifício
São Vito, conhecido como treme-treme (demolido em 2011).
Para iniciar o processo de deambulação, na compra de in-
gressos, escolhe-se a personagem que se desejará seguir. Nesse
momento, cada espectador/a ganha um aparelho para acom-
panhar as orientações e procedimentos de acompanhamento
e percurso da obra. Após isso, recebe-se uma mensagem para
90
E
m 2015 fui convidado a fazer a curadoria da importante
I Mostra de Heliópolis a Periferia em Cena, cujo determi-
nação básica ligava-se a coletivos assumidamente perifé-
ricos. O evento foi espetacular e contou com diversos coletivos
teatrais da cidade de São Paulo. Uma das obras selecionadas
foi uma performance teatral de andança. A excepcional atriz e
peformatista Denise Raquel andava pela feira-livre, fantasiada
91
com orelhas de coelhinha, gravata borboleta e com os seios de
fora (que eram bastante grandes e bonitos, é preciso registrar!),
sustentados em uma bandeja, na qual havia, também, alguns
produtos para acompanhamentos de sorvetes. Através de um
processo de deambulação, pela feira livre da 95ª DP – (em um
sábado, perto do horário do almoço), na comunidade de Helió-
polis –, a atriz-coelha “simplesmente”, abordava homens e mu-
lheres e, olhando em direção à bandeja perguntava se a pessoa
queria... se a pessoa não queria experimentar... se a pessoa não
deseja se refrescar um pouco...
As reações eram estarrecedoras!! Incredulidade misturada
a, e era possível perceber isso, a um choque: sem dúvida,
aquela manifestação se caracteriza em algo nunca antes visto
ou imaginado. Homens e mulheres, se quisessem rir não con-
seguiam: algo como um rictus nascia e morria, quase imediata-
mente. Entretanto, depois que a artista passava, sobretudo os
homens riam, sempre buscando a cumplicidade de alguém...
Denise Raquel, que na vida cotidiana era bastante reservada e
tímida (ministrei aulas para ela no Instituto de Artes da Unesp)
transformava-se no teatro.
A feira era bastante extensa e Raquel, no horário de
maior afluxo de gente, deve ter feito o percurso de ida
e volta umas três vezes. Assisti a muitas obras e perfor-
mances, mas, confesso, poucas vezes em toda a minha vida
como espectador, senti reações tão fortes e poderosas.
Sobre a performance, escrevi uma crítica batizada: “Uma
‘Coelha’, muito mais que erótica, ampliou o desassossego da
feira da 95ª DP: lenda urbana ou epifania na comunidade
de Heliópolis?”.
Observação: para mais informações do coletivo, consultar
www.coletivoparabelo.com/coletivo
92
E
m 1964, Thiago de Mello (poeta surpreendente), escreveu
em abril de 1964 – no Chile, perseguido pela ditadura ci-
vil-militar de 1964 – o antológico Os Estatutos do Homem
(Ato Institucional Permanente). Em determinado momento do
poema aparece:
[...] Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança [...].
Thiago de Mello (Os Estatutos do Homem - Ato Institucional Permanente).
93
àquele detalhe arquitetônico.
A partir da total aceitação por parte dos transeuntes (avi-
sados e desavisados), sobretudo aos finais de semana e fe-
riados, o Grupo Esparrama tem apresentado seus espetácu-
los-intervenção cuja natureza arquetípica, do ponto de vista
da espacialidade, demanda alguma complexidade para clas-
sificação. O palco se situa no umbral da janela, mas algo para
além dele (no aposento) também pode ser visto. Em algumas
obras, o próprio elevado também se transforma em palco
para algumas cenas. Trata-se, portanto, de espacialidade hí-
brida, decorrente de espetáculo de ocupação, fundamental-
mente, público.
O primeiro espetáculo a adotar o novo espaço chamou-se
alegoricamente de Esparrama na Janela, obra que juntou pa-
lhaçaria – na janela e no chão do viaduto suspenso e dife-
rentes tipos de bonecos. Um olhar menos verticalizado pelo
conjunto de belezas e propostas que constitui a obra pode
classificar a obra como sendo infantil, mas (e como já mani-
festado neste material) uma obra boa ou o bom teatro alegra
a toda a gente, independentemente da idade cronológica. A
primeira vez em que assisti ao espetáculo fiquei deslumbrado
com o aproveitamento espacial, com a alegria do público que
se concentrava defronte à janela (sobre o elevado) e à pai-
sagem urbana que limitava e dirigia para longe o olhar. Real-
mente, fiquei encantado com a obra e com seus motivadores.
Em uma entrevista concedida por Iarlei Rangel, o diretor do
espetáculo faz questão de dizer que ao adotar aquele espaço,
o coletivo não aderiu, na condição de agente, às propostas
de gentrificação que têm ocorrido no centro da cidade. Ao
contrário disso, Iarlei afirma que o coletivo critica, dentre
outras questões, o processo de especulação imobiliária (de-
senfreado) que ocorre na capital paulistana. Desse modo,
Esparrama na Janela caracteriza-se em uma lindíssima me-
94
A
s cenas, basicamente, são montadas em estado de pron-
tidão de guerrilha. Sempre em bandos, e tomando
como referências algumas reflexões desenvolvidas por
Guy Debord (sociedade do espetáculo), as personagens anta-
gônicas: pobres (em situação de total processo de segregação
e exclusão) entendem, mas de modo fragmentário, sua total
submissão a uma casta de ricos (mantida em uma bolha). Tra-
ta-se, portanto, de uma obra que tematiza a questão da luta de
classes, denunciando, como é preciso, e de modo panfletário,
os inúmeros processos de exclusão, expropriação e coisifi-
cação dos sujeitos e suas consciências. Por outro caminho, era
e continua a ser uma significativa preocupação do coletivo o
estudo de como descortinar as engrenagens do mundo, per-
manentemente escondidas ou de difícil acesso em um tempo
95
de sociedade espetacularizada. Os integrantes do coletivo no-
meiam ao conjunto de propostas estéticas que vem desenvol-
vendo de “teatro da contra imagem”.
Nesse pressuposto, evidentemente, está contida uma forma
estética que defende estética e politicamente uma forma
teatral, herdeira da agitação e propaganda, das práxis popu-
lares e do teatro épico-dialético. Portanto, o “mantra” de cha-
mamento político se faz presente na frase-mote deflagradora
da função do teatro para a gente da Brava: “A vida será livre e
não haverá concorrência quando os trabalhadores perderem
a paciência!”.
Desse modo, e pelas evidências cada vez mais efetivas
das diferenças entre pobres e exploradores, o espetáculo, a
partir de um conjunto impecável de atitudes fundamentadas
no conceito de gestus (gesto social a revelar/manifestar as
contradições), os níveis fragmentários de consciências dos
explorados, ganham alguma luz, entretanto, empacam pelos
mais diversos motivos. Aquilo que pode não parecer revo-
lucionário para alguns sujeitos, de certo modo, e sem ideali-
zações ou quixotismos, representa o momento em que o país
se encontrava. Ao final, certo grau de percepção das contra-
dições consegue ser percebido e o conjunto de explorados,
com coquetéis molotov, em punho, encaminha-se para um
monumento legitimador de injustiças (dependendo do espaço
de apresentação o local muda).
Há muito material publicado sobre o coletivo. Nas indi-
cações bibliográficas apresentada ao final deste texto, são apre-
sentados todos os títulos publicados. Especificamente, com re-
lação à obra em destaque, consultar: Ademir de Almeida; Max
Raimundo e Fábio Resende (orgs.). Brava Companhia – Caderno
de Erros II. São Paulo: LiberArs, 2015, p. 16-27.
96
O
s jovens integrantes do coletivo, antes de constituí-
rem-se na condição de um novo grupo (em 2004),
haviam participado de vários outros coletivos, so-
bretudo circenses. Quanto às novas perspectivas de trabalho e
criação, afirmam os artistas:
Depois de muito tempo carregando equipamentos
pesados, montando trapézios e toda a parafernália
do circo tradicional, decidimos criar um espetáculo
prático, de fácil montagem, sem necessidade
de contrarregras, que pudesse ser realizado em
qualquer espaço – ruas parques... O sonho comum
dos três artistas-palhaços era montar um espetáculo
de rua e viver dignamente dele, tendo como focos o
olhar do palhaço e a música ao vivo31.
31 Revista Arte e Resistência na Rua. Movimento de Teatro de São Paulo: Grafnorte, ano II, nº 2,
julho de 2010, p. 72.
Assisti ao espetáculo em uma das Mostras de Teatro de
Rua Lino Rojas (SP), Alê Roit dirige o espetáculo e o resultado,
ligado e costurado aos expedientes e técnicas do novo circo,
apresenta uma obra repleta de reprises, e sempre em relação
de troca com o público. O trio é formado por três palhaços ou
comediantes? sem nariz ou sem maquiagem mais tradicional,
mas que conservam uma relação bastante tradicional em sua
composição (um Branco, como característica mais autoritária;
um Augusto, que sempre leva a pior e um outro mais parecido
com o Branco).
Observação: para mais informações do coletivo, consultar no
Instagram @namakaca.
97
O
coletivo foi formado em 1984, pela dupla Beto Andretta
e Beto Lima (infelizmente, este último faleceu em 2005).
A Companhia adotou e mergulhou, desde sempre,
na forma denominada teatro de bonecos, de animação, de
imagens, juntando às técnicas desse tipo de linguagens, o circo,
a dança... Alguns coletivos de excelência na mesma linguagem,
também, pesquisam e desenvolvem trabalhos primorosos na
área (XPTO, por exemplo), mas, em algumas oportunidades
a Pia Fraus apresenta algumas de suas obras em espaços pú-
blicos híbridos e abertos.
Como característica e necessidade decorrente do gigan-
tismo das formas, das viagens e das dificuldades de desloca-
mento do coletivo, sem perder a potência criativa, teve de
pensar a criação de objetos traquitânicos (traquitana tem co-
notação de algo que vai se (re)transformando, mudando de
função, de acordo com a necessidade e o uso que dela se faz)
e que conseguissem caber em espaços mais econômicos... Evi-
dentemente, tal necessidade concreta, funcionou e acredito
tem funcionado para que a potência criativa se amplificasse,
fugindo de tendências já consagradas. O trabalho de Filhotes da
Amazônia - assim como Bichos do Brasil, Gigantes do Ar – tem
uma função epifânica e surpreendente. A partir de uma nar-
rativa monumental (do latim moneo, correspondendo a nar-
rativa visual): de uma oca, nave, ovo, uma caixa de surpresas...
saem, retrabalhadas a partir de uma leitura contemporânea,
figuras e personagens da cultura popular brasileira, neste caso
amazônicas, sobretudo. Crianças e pessoas sensíveis que têm
oportunidade de assistir ao espetáculo se encantam. De modo
encantatório, evidentemente, a montagem (e outras similares)
tem um aspecto de importância quanto ao respeito e conscien-
tização da preservação dos bichos e da flora.
Observação: para mais informações do coletivo e mais infor-
mações sobre o espetáculo, consultar: www.piafraus.com.br
98
D
ireção de Carlos Gomide, que criou a Carroça em 1977.
Assisti ao espetáculo no Festival Internacional de Teatro
de São José do Rio Preto, em 2006; e, três anos depois, no
Festival de Teatro de Angra dos Reis. Nas duas ocasiões, a mesma
sensação: encantamento e uma consciência de paixão e (real) vo-
cação do conjunto para a cultura popular. O coletivo, adotando
antigo processo de formação das companhias deambulantes
populares, assim também como nas circenses, é constituída por
parentes, juntando pai, mãe e filhos... começando a aparecer os
netos e, evidentemente, a gente agregada, que se junta ao coletivo.
Todos os integrantes da família, e sem exceção, são
efabuladores. Conseguem narrar e viver as personagens da
narrativa com total inteireza, dignidade e conhecimento do
terreno em que pisam e se movimentam. A dupla Carlos Gomide
e Schirley França, como líderes do conjunto artístico, têm (e
isso foi passado para todos/as que deles vieram) uma emocio-
nante destreza e paixão pelo trabalho realizado. Quando se
sabe que o trabalho é apresentado por uma família, a emoção
se duplica. Quando não se sabe tratar-se de uma família, além
de gostar dos números, pode-se se estranhar o fato de os/as ar-
tistas serem tão parecidos... O fato, do ponto de vista estético,
é que o coletivo colige aspectos da cultura popular, da manipu-
lação de bonecos e objetos e de alguns expedientes circenses.
Evidentemente, muitos são os méritos do coletivo, mas
sempre que assisto aos espetáculos da Carroça sei, mesmo
de longe, estar fazendo parte de uma festa ancestral, que se
renova, de modo intenso, no momento de sua eclosão.
Observação: para mais informações do coletivo e ficha técnica
99
do espetáculo, consultar: www.carrocademamulengos.com.br
E
m uma fria noite do mês de setembro de 1996 (devo ter
reassistido em janeiro de 1997), assisti ao espetáculo que
foi apresentado sob o viaduto Tenente João Alves Cardoso
(viaduto do Parque da Cidade), em São José dos Campos. O espe-
táculo constava da programação da 13ª edição do Festivale (Fes-
tival Nacional de Teatro do Vale do Ribeira) e foi montado com
direção do então muito jovem diretor Reginaldo Nascimento.
Além de o texto ser muito forte em seu caráter de reve-
lação e de denúncia de um mundo real e extremamente per-
verso, o diretor, basicamente, construiu uma instalação para
apresentação da obra. Apesar de o espetáculo ser apresentado
em espaço público, o local não se caracterizava em espaço de
circulação corriqueiro. Desse modo, quando o espetáculo era
apresentado à noite dificilmente alguém que não soubesse do
evento estaria a passar por lá. Portanto, tal designação se ca-
racterizava em outra zona de audiência, que imbricava o pú-
blico e o privado. De qualquer modo, o espetáculo era de uma
visceralidade espantosa. Lembro-me de uma das atrizes ter
grandes hematomas nas pernas, decorrente dos tombos (não
dispunha de técnicas para “aliviar” as dores que deveriam ser
mesmo reais).
A dramaturgia de texto, por sua temática incomodava;
a dramaturgia de cena, por sua crueza e visceralidade inco-
modava; o território de apresentação (carros, ônibus, cami-
nhões passando sobre o viaduto) e o leito de uma estrada de
ferro ao lado incomodavam; o escuro da noite e seus tantos e
nem sempre apreensíveis sinais perturbavam. Pena que Regi-
100
O
coletivo foi fundado em 2002, com o nome Grupo Lasca
o Oco, mas com a nova designação Clariô surge em
2005. O Grupo foi fundado pelas irmãs Naruna Costa
e Naloana Lima e pelos sempre saudosos Mario Pazini e Will
Damas. Assisti ao espetáculo, que se insere em proposição hí-
brida quanto ao uso de espaços. Assisti ao espetáculo em es-
paços diversos: tanto em espaços híbridos, mas fechados e em
outros, sobretudo a sede do coletivo, com cenas internas e ex-
ternas. O Clariô tem sua sede nos limites de fronteira da zona
Sul de São Paulo e Taboão da Serra, em uma espécie de vila,
com vários cômodos para o quintal. Uma das cenas é realizada
na rua (quando assisti, tenho a lembrança, mas sem certeza,
de esta ainda não estar pavimentada, que beira o córrego Pi-
rajuçara), sendo as outras no quintal entre as casas e cômodos
distintos. Em outra e especialíssima ocasião assisti ao espe-
táculo na Casa Maria José de Carvalho, no Ipiranga (em uma
mostra de teatro promovida pela Companhia de Teatro de He-
liópolis), nos jardins do fundo da casa, que fica no Bairro Santa
Luzia. Nesta segunda vez, o Grupo criou um conjunto de ca-
sebres para as personagens-moradoras daquela comunidade.
Hospital da Gente, e não apenas porque as/os integrantes
101
do Grupo afirmam, caracteriza-se em uma obra cuja forma in-
sere-se em proposição periférica ou estética da quebrada. As
personagens trazem problemáticas muito particulares, por
isso ganham (parafraseando o autor russo León Tolstói: “Canta
tua aldeia e cantarás o mundo”) uma dimensão planetária. O
mundo é formado, sobretudo, por gente pobre e apartada do
mínimo essencial para viver. É disso que a artistada da Clariô
trata, de suas histórias e de suas necessidades, que, querendo
ou não, gostando ou não, corresponde à totalidade daquelas
da população brasileira. A poética é de uma crueza de beleza
demolidora: todas as precariedades transformam-se em es-
tética. A obra expõe tudo aquilo que a gente poderosa tenta
opacizar, esconder e impedir o acesso. A obra emociona os
seres sensíveis em um tamanho de “alastragem” feito rastilho
de pólvora, rastilhos de incompletude. Hospital da Gente (pro-
vavelmente tomando como mote a música de Chico César, que
é maravilhosamente cantada pela excepcional Naruna Costa,
que apresenta a Mulher do Lixão) caracteriza-se em obra ter-
reiro, em obra gira, em obra ancestral. Para mim, trata-se pa-
rafraseando a qualidade de certas bebidas de obra que quanto
mais passa o tempo melhor fica.
Observação: para mais informações do coletivo, consultar o
emocionante: youtube.com/watch?v=m2LijvcZ9Nw
C
riado em 1966, no Diretório Acadêmico XI de Agosto, da
Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, surge
o coletivo, originalmente chamado de Teatro do XI.
Idibal Pivetta (César Vieira) participa da criação do novo co-
102
32 O conceito configura-se exagerado para quem não conhece o teatro popular e aquele especifica-
mente de e apresentado nas ruas, o coletivo, que teve incontável número de participantes, a a partir do
início dos anos 1970, jamais deixou de apresentar suas obras nos lugares os mais inusitados e distantes
das áreas ditas centrais.
trabalhadores e com consciência de sua condição periférica),
por meio de suas obras “tira dos ricos para dar aos pobres”. Isto
é, cobra das instituições que têm dinheiro e apresenta gratui-
tamente em qualquer lugar com pessoas interessadas. A partir
de 1970, com a montagem de O Evangelho Segundo Zebedeu,
que foi apresentado em um circo, o coletivo tem apresentados
obras rigorosamente populares, ligadas ao ponto de vista dos
olvidados e massacrados pela política dominante. Assisti a
João Cândido do Brasil, na integra ou em fragmentos, em vários
locais da capital paulista. João Cândido foi um marinheiro que,
em 1910 liderou uma revolta contra os maus-tratos e o uso da
chibata como castigo. Em Introdução do texto publicado, César
Vieira questiona:
Detectamos, com tristeza, que o preconceito contra o
negro, feroz e escancarado à época de sublevação de
João Cândido, continua até hoje, às vezes disfarçado
e sub-reptício, outras violento, cru, atuante, audaz,
permanente e impune.
103
Os negros marujos de 1910 cortaram marras,
levantaram âncoras, içaram bandeiras e com seu
exemplo tentaram nos passar bússolas... mas,
infelizmente, continuamos sem rumo, à deriva.
De que vale este país se orgulhar de ser parte atuante
do surto tecnológico e do avanço da globalização
se em cada porão de delegacia, em cada esquina,
em cada sinal de trânsito, em cada favela, em cada
Febem, minuto a minuto, se apaga uma centelha,
impedindo-a de se transformar em chama?
Criciúma/SC).
O
Cirquinho do Revirado foi fundado em 1° de maio de
1997, quando Yonara Marques e Reveraldo Joaquim
solicitaram a confecção de uma pequena lona de circo
para apresentar teatro de fantoches. Daquele momento até os
dias atuais, alguns dos espetáculos do coletivo andaram por
todo o Brasil. O primeiro espetáculo que assisti (em um festival
de teatro de São José do Rio Preto) foi Amor por Anexins, criado
por Arthur Azevedo, quando ele tinha por volta de 16 anos de
idade. Em sendo levado para a rua, a dupla apresentou a obra
com pernas de pau. Passados mais de 10 anos, desde o contato
inicial, tive a felicidade redobrada de assistir ao espetáculo de
bufões batizado Julia.
Assisti ao espetáculo no Festival Nacional de Teatro de Pira-
cicaba (Fentepira) e escrevi a respeito:
Dois bufões, em parceria, vendem números
simplórios com o objetivo de receber trocados para
sobreviver, a caracterização é fellinianamente
grotesca. Júlia, a mandona – e supostamente
paraplégica – usa seu chicote e outros expedientes
para mandar em Palheta. Este, por sua vez, manda
no público. Os contrastes se misturam, não há um
dominador. Usando uma traquitana-carroça (que
serve de vários modos), a dupla, absolutamente
escatológica (fala palavrões, transita com
ambiguidades, é mal educada, xinga o público),
apronta horrores, mas o público não arreda pé. A
capacidade comunicacional é impressionante: mais
de 300 pessoas obedecem, são cúmplices.
105
O
coletivo paulistano ao se batizar com a palavra-con-
ceito antropofagia, tem praticado, em todos os seus
espetáculos, a junção de expedientes do teatro épico
(em perspectiva dialética) e de várias das vanguardas histó-
ricas europeias, destacando as proposições de Tadeusz Kantor.
Desse modo, ao coligir conceitos kantorianos (invencionices
de maquinarias) às práticas agitpropistas na rua, a Antropo-
fágica, por intermédio do experimento em destaque, invadiu
as ruas dos locais em que se apresentou (assisti em Santos e em
São Paulo) com música, cenas, manifestos, bicicletas, carroça...
Thiago Vasconcelos, coordenador do coletivo e diretor da obra,
33 Talvez a única fonte documental sobre a obra possa ser encontrada em Thiago Reis Vascon-
celos. “Máquinas de intervenção urbana – uma experiência antropofágica ou O uso livre de todos
os modelos e procedimentos ou Zezé de Karl Marx e Luci Engels cantam enquanto um coro de
Macunaímas declama Maiakóvski em São Paulo de Piratininga”, in: Rebento – Revista de Artes do
Espetáculo, 4. São Paulo: Instituto de Artes da Unesp, maio de 2013, p. 26-35.
ao lado de seu irmão (músico excelente e criador da totalidade
das musicalidades do coletivo) formam uma dupla de cria-
dores extremamente inventivos.
Sobre a Carroça, assim aparece em sítio da Companhia:
As Máquinas Antropofágicas são mecanismos
estruturais de intervenção e investigação artística
desenvolvidos pelo grupo ao longo de sua trajetória.
A ideia de Máquina enquanto ferramenta teatral,
muito inspirada na poética e nas obras teatrais de
Tadeusz Kantor, se materializa pela primeira vez em
2010 com a Karroça Antropofágica. Uma estrutura
móvel sobre rodas, abre-alas de um coro cênico-
musical deslizante, desenvolveu-se como mistura de
cortejo, happening, performance e intervenção.
Dessa experiência, desdobramos um eixo de ação
ao qual demos o nome de Máquinas de Intervenção
Urbana, construídas para explorar formas não
convencionais de diálogo teatral com a rua e a cidade.
Para além destas, um outro conjunto compreende as
Máquinas Processuais, voltadas para o aprofundamento
da relação entre o público e nosso processo criativo.
O
coletivo – cuja sede atual encontra-se na cidade de São
Sebastião, no litoral norte de São Paulo – existe desde
1997 e, durante esse longo período, além da criação
de novas obras, sobretudo por incentivo e ação de Luciano
Draetta, tem ajudado nos processos de formação, substancial-
mente na área de circo e do trabalho de palhaço. Formado,
também, em Letras, Luciano Draetta tem, a partir de matrizes
populares, transformado seu palhaço, naquilo que tanta gente
preconiza e já fez, ou seja: unir, sem prejuízos para ambos os
lados, o popular e o erudito.
Assisti ao espetáculo algumas vezes, em espaço fechado, hí-
brido e público. Em qualquer um deles, o espetáculo funcionou,
em razão de o público participar da obra e da alegria por ele
provocado. Em tese, dois garis, em trabalho ou em conversa,
além de comicidade e ambiguidades no texto, relacionam-se
com diversos objetos de trabalho, mudando, de modo cômico
as suas funções originais. Gags, sapateado, percussão corporal
ajudam a criar uma obra de puro entretenimento.
Observação: para mais informações do coletivo, há alguns
sítios, mas não consegui acessá-los. Pode-se consultar: https://
www.youtube.com/watch?v=ukMQk48FOIE
107
II.54. Luna Parke (La Mínima Circo e Teatro – São Paulo).
T
rata-se de um coletivo criado em 2002, que se caracteriza,
em uma das referências no gênero, no que concerne às
artes do trabalho do palhaço. Os espetáculos, apresentados
na rua, em caixa ou espaços alternativos, têm alegrado a muita
gente. Infelizmente, a dupla maravilhosa, formada por Fernando
Sampaio e Domingos Montagner, criadores do coletivo, se desfez
por um cruel golpe do destino. Entretanto, Fernando Sampaio
continua o trabalho com novas parcerias, reinventando-se como
excêntrico. Em tese, caracteriza-se em marca singular e fun-
dante do coletivo, a pesquisa do repertório clássico do palhaço
e sua adaptação aos mais diferenciados suportes dramatúrgicos.
O coletivo, sempre convidando novos e novas artistas para seus
processos de criação, tem em seu repertório um conjunto de
obras antológicas, sendo a totalidade delas, apresentada em es-
paços fechados (mas sempre levando as relações e trocas com o
público, conquistadas no teatro de rua).
Do conjunto de obras do coletivo, especificamente na con-
dição de espetáculo de rua, destaca-se Luna Parke, cuja nar-
rativa cênica reúne um conjunto de números clássicos de circo
tradicional. Assim como outros coletivos formados por duplas,
a cumplicidade entre os criadores da obra, além de suas verves
cômicas, era algo admirável: coisa, pode-se dizer, de casal em
total harmonia. Por intermédio da obra em destaque, pode-se
encontrar as afirmações da dupla Domingos/Fernando se-
gundo as quais o espetáculo se caracteriza em homenagem aos
ambulantes e artistas de feira.
Observação: para mais informações do coletivo e ficha técnica do
espetáculo, consultar: https://www.laminima.com.br/repertorio
108
O
espetáculo, apresentado na 20ª edição do Janeiro Bra-
sileiro da Comédia apresentado em São José do Rio
Preto/SP, poderia começar avisando ao distinto público
que brincantes maravilhosos iriam apresentar seu potente es-
petáculo. Apresentado em quadra coberta, em razão de o mês
de janeiro de 2023 (ano de realização do evento mencionado)
ter muitos dias de chuva. Portanto, a apresentação ocorreu em
espaço híbrido, gigantesco, mas delimitado por imensa pro-
teção de pano.
Com direção da veterana Herê Aquino, criadora que en-
tende “muitíssimo bem do riscado”, das coisas ligadas às
formas populares de cultura e da representação popular, o
conjunto (excepcional) de atuantes, com destaque à Silvianne
Lima, a narrativa apresenta a história de um cabra da peste
que arrecada dinheiro para montar uma obra de Shakespeare,
desenvolve alguns ensaios com gente interessada e que foge,
com o dinheiro e a obra não apresentada. Inserido, portanto,
em proposição metateatral e repleta de expedientes populares,
a obra comove e nos conduz àquelas manifestações originárias
e populares e que têm resistido nos ditos e desconhecidos
“brasis”! obra de um encantamento excepcional.
Em determinado momento da apresentação, em um bairro
chamado Pinheirinho (periferia de São José do Rio Preto) veio
uma lufada de vento que, parece, queria varrer e derrubar
tudo... Assim como os males enlouquecidos da gente terrorista
do, inesquecível dia “8 de Janeiro de 2023”, mas, em movimento
contrário, o afeto da obra foi sugado para dentro. A obra ma-
nifesta a gente (e artista) do bem! De gente que resiste e que
promove o reesperançar de que dias melhores virão. A lufada
levou para dentro (de nossas potências e memórias ancestrais),
109
convulsionou e provocou uma onda de troca (insistindo) rees-
perançada na resistência das manifestações populares.
Observação: para mais informações do coletivo consultar
https://www.pavilhaodamagnolia.com.br/
R
ealmente, não consigo me lembrar o ano em que assisti ao
espetáculo. Recordo-me, entretanto, de Mário e as Marias
ter sido apresentado em um determinado espaço da
área de lazer do Sesc Santo Amaro, repleto de gente, sobretudo
crianças. O espetáculo dirigido por Gira de Oliveira apresenta
excertos da obra de Mário de Andrade apresentados por cinco
Marias (atrizes do espetáculo). As Marias, talvez uma alegoria
de uma das grandes paixões do poeta e estudioso Mário de
Andrade, além de aproveitamento da cenografização real do
espaço, relacionavam-se com adereços muito belos e uma car-
roça-traquitana que, ao mudar de função, servia às mais dis-
tintas necessidades demandadas pela proposta de encenação:
sobretudo fazer com que Mário de Andrade, de posse de um
novo par de óculos (apresentado pelas atrizes em rodízio), pu-
desse redimensionar tudo aquilo que constituía o mundo.
Lembro-me de o figurino ser muito colorido e todas as
atrizes usarem saias, bastante rodadas. As Marias de Mário
traziam para a cena fragmentos de diferentes brincadeiras
infantis, tendo em vista as redescobertas de Mário menino.
Então, como uma das importantes pesquisas de Mário de An-
drade ter se desenvolvido a partir de certas tradições popu-
lares, as cenas coligiam, de modo lúdico (em forma de uma
ciranda, talvez?) algumas manifestações que eram canto-nar-
radas pelo coro feminino e encantavam bastante, e não apenas
110
A
o completar seis anos de existência, o coletivo, que já
vinha de trabalhos com forte temática de crítica social,
montou Marruá. A narrativa da obra foi organizada co-
ligindo processos de vivências dos/as integrantes do coletivo
e de relatos colhidos durante apresentações de outros tra-
balhos de gente de quilombos, seringais, vilas e assentamentos
do MST, aldeias. Trata-se, portanto, de uma dramaturgia que
se fundamenta em homens e mulheres à margem da história
oficial e dos interesses das autoridades constituídas, O pro-
cesso de coleta de material foi coletado adotando certas propo-
sições metodológica da História Oral. O título conferido à obra
concerne ao nome utilizado e atribuído por peões na região
Centro-Oeste do Brasil, metaforicamente, ao boi que foge/ se
desgarra do rebanho, se aventura pelo mato e transforma-se
em um animal selvagem, a correr todos os riscos, mas a viver
de modo livre. Obra-manifesto, contém a essencial alegoria da-
quilo que compreende o deixar de ser manso e lutar por aquilo
em que se acredita.
De certo modo, coligindo a violência atordoante do Brasil
contra a gente pobre e desgarrada e a permanente atenção
que um marruá precisa ter, o espetáculo tem uma estética ace-
lerada. Nesse particular, falas, ações, musicalidade... tem algo
da dinâmica dos repentes e desafios de galos em uma rinha
de luta. A direção do espetáculo, a partir de criação coletiva,
111
coube a Luciano Carvalho que dentre outras tarefas, é ator,
diretor, autor... do Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes.
Ao escrever uma crítica do espetáculo apresentado na Praça
Patriarca (centro velho da cidade de São Paulo), Luiz Eduardo
Frin afirma:
Elemento importante do espetáculo é a poética
e inspirada confecção dos adereços feitos por
artistas de diferentes partes do País e que trazem,
concretamente, para o palco, as andanças do grupo.
No final, como uma representante do grupo, Natália
Siufi não esconde o orgulho de convidar a todos para
que a partilha simbólica da arte seja realçada pela
partilha do alimento [uma melancia].
E
m 1989, o coletivo criado, sobretudo pelo incentivo de Lino
Rojas, pousa, depois de algumas batidas de asas, no distante
bairro de São Miguel Paulista. Nasce o Pombas Urbanas e,
a partir daí, apesar de tantas tristezas (sendo a maior delas o
assassinato de Lino Rojas), o coletivo vem, mesmo com asas,
por meio de enraizamentos exemplares, multiplicando teatro e
afetos. Trata-se de um dos primeiros coletivos na cidade de São
Paulo a ocupar um espaço abandonado (e então frequentado
por certa malandragem da região) e a montar uma fundação
educativo-artística, com reconhecimento (inter)nacional. A co-
munidade, de um dos bairros (ou o mais) populosos da capital
paulista, tem, ao longo de mais de três décadas, desenvolvido
um trabalho exemplar e contínuo. Estive na sede do coletivo
umas três vezes, em diferentes horários, e em todas as ocasiões
112
113
C
riado em 2001 e, desde essa data, o coletivo vem criando
um significativo conjunto de obras, tanto nos espaços pú-
blicos (rua, sobretudo) como nos privados. O espetáculo
em destaque é de 2003, e, de modo bem preciso, manifesta
certa vocação do Tablado, quanto à emergência na discussão
de denúncia de certos temas de natureza mais explicitamente
política. Aliado a isso, o conjunto criador tem consciência de
que o teatro de rua tem uma proposta de intervenção e de in-
quietação de consciências endurecidas, refratárias e inocentes.
A rua se “organiza” por meio do entrecruzamento do caos e
da virulência em perspectiva de “desproteção”. A encenação
em espaços públicos, e isso é bastante reconhecível, promove
e ativa inúmeros outros centros de atenção que o trabalho de
palco e suas facilitações de blindagem não desenvolvem. In-
tervir no caos, do ponto de vista estético, tem se caracterizado
nas propostas do coletivo.
Com direção de Heitor Goldflus e Pedro Mantovani, Movi-
mentos para Atravessar a Rua, tem sua narrativa dividida em
três episódios cujo protagonismo é desenvolvido por gente à
margem, como camelôs, desempregados e moradores de rua.
Assisti ao espetáculo em uma quinta-feira, às 17h, no (chamado
e abandonado) marco zero da capital paulistana, a Praça da
Sé. Naquele território e paisagem de abandono, o espetáculo
emocionava até os ossos. Além da encenação, repleta de bons
e inventivos achados e de expedientes tratados de modo ale-
górico, o reconhecimento de si por meio da criação da obra e
suas personagens era arrebatador.
Não importa quanto tempo dure... não importa os tantos e
reiterados impedimentos... não importam os descasos estéticos
e de classe... não importa, o teatro de rua e seus/suas artistas,
de modo sempre teimoso, têm estado na História e modifi-
cando (muito e pouco) os cotidianos das gentes...
Observação: para mais informações do coletivo, consultar no
114
Instagram @tablado_sp
https://teatroderuaelt.blogspot.com/2006/04/entrevista-tablado-
-de-arruar.html
A
ssisti ao espetáculo na 10ª edição do Festival Nacional
de Teatro de Piracicaba – Fentepira (2015). Trata-se de
um espetáculo de estética popular, que recorre, inicial-
mente, aos arquétipos da commedia dell’arte para imprimir um
saber bem brasileiro à obra. Quebrando um pouco a tradição, a
mocinha (que é apresentada como uma feia) apaixona-se pelo
capitão bravateiro. O pai, ressignificado a partir da máscara
de Pantaleão não quer o casamento. Então, em conluio com
o amante e o par de criados Arlequim e Brighela – deliciosa-
mente travestidos de médicos – a mocinha adota como tática
fingir-se de muda. Depois disso outros estratagemas se seguem,
sempre hilariantes.
Em tese, a obra apresenta um pai sovina (Pantaleão) que
promete a filha a um determinado e velho homem. Esta, tendo
em vista a tradição, encontra-se conformada até conhecer um
Capitão, por quem se apaixona e quer se casar. Não fosse pela
ajuda de dois criados, que indicam à moça fingir-se de surda,
o pai não mudaria de ideia. O elenco consegue sair-se muito
bem e, pela batuta de Roberto Innocente, hipérboles, traves-
tismos, quiprocós, apelos sexuais, repetições cômicas... acon-
tecem de modo absolutamente correto e a conquistar o público
do espetáculo.
O espetáculo, que foi apresentado em um ponto de refe-
rência muito importante da cidade (Casa do Povoador, situado
às margens do Rio Piracicaba), como de certo modo é mais
115
comum acontecer, em obras apresentadas na rua, algumas
vezes, desandou um pouquinho, mas não perdeu o ritmo.
Outra particularidade importante, e o espetáculo é de rua,
mas em partitura fechada, o conjunto canta muito bem, toca
vários instrumentos e apresenta-se em um figurino muito in-
teressante, mesmo que os tons sejam mais neutros.
Por último, assim como outras obras aqui listadas, é preciso
destacar a importância que profissionais que conheçam a
linguagem, neste caso a commedia dell’arte, tem, tanto para
deixar seus legados para quem não dispõe de muitas infor-
mações sobre a forma como para alegrar o público os espaços
públicos.
Observação: para mais informações do coletivo, consultar:
https://www.facebook.com/DVergentedeteatro/
https://www.youtube.com/watch?v=qZB2_dNLOoc&&t=32s
II.61. Na Rêgo (espetáculo de estudantes do curso de
Licenciatura em Teatro do Instituto de Artes da Unesp/
São Paulo).
E
studantes inquietos e inquietas de último ano de curso
de Licenciatura em Teatro e tendo tido a oportunidade
de experimentar muitas possibilidades durante o curso
consegue, pela concepção e direção, em processo colaborativo,
de Leonardo Palma criar a obra Na Rêgo. O trabalho, em tese,
foi um experimento, que tinha como escopo, do ponto de vista
temático, transitar com as questões de gênero, apresentado
como Trabalho de Conclusão de Curso.
A rua Rêgo Freitas, e seguramente desde os anos 1970, ca-
racteriza-se em um território central da cidade de São Paulo
ocupado por profissionais do sexo. Basicamente, de modo se-
melhante àquele de qualquer outra grande cidade do mundo,
116
117
II.62. Amargo Santo da Purificação - Uma Visão Alegórica e
Barroca da Vida, Paixão e Morte do Revolucionário Carlos
Marighella (Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz –
Porto Alegre/RS).
A
ssisti ao espetáculo algumas vezes; em São Paulo, mais
especificamente na Mostra de Teatro Lino Rojas (centro
da cidade de São Paulo) e em Campo Limpo, bairro da
periferia da cidade de São Paulo). Assim como outros coletivos
de raiz e de tradição (Tá Na Rua, Imbuaça, Rosa dos Ventos,
Teatro Popular União e Olho Vivo, Oigalê, Imaginário Maracan-
galha...), o Ói Nóis tem uma trajetória impecável, conciliando
ampliadamente, a partir dos pressupostos apresentados por
Walter Benjamin, em “O autor como Produtor”: qualidade es-
tética e tendência política consequente e militante. Os temas
que alimentam as obras do coletivo são colhidos de nosso
quintal e as criações alimentadas por conjunto e misturas de
seivas populares e de inventividade ao paroxismo.
O coletivo gaúcho, criado em 1978 por Paulo Flores, Júlio
Zanotta, Rafael Baião, Jussemar Weiss e Silvia Veluza, vem,
pelas mãos, trabalho e compromissos estéticos-militante de
Paulo Flores e Tânia Farias, desenvolvendo um conjunto de
obras exemplares. Mesmo parecendo descabido (para os de-
licados, que prefeririam morrer...), é absolutamente emocio-
nante o conjunto de obras e coerência do coletivo ao longo de
sua trajetória. Desse modo, ainda que tenha havido muitas
trocas e mudanças de elenco, a dupla tem definido os temas e
coordenado todas as montagens do coletivo. Com relação ao
O Santo Amargo da Purificação, ao pesquisar sobre o coletivo,
descobri que, em 1989, mas não referindo-se a Marighella,
houve uma montagem proibida pela censura. Descobri,
ainda, que as incursões pela rua se iniciaram em 1981, e que,
118
119
e Malas-Artes – São Paulo).
O
s mestres Luís Alberto de Abreu e Ednaldo Freire se
conheceram durante o ensino médio. Participaram,
a partir daí, de diversas ações artísticas. Juntos como
autor e diretor, em 1979, a dupla realiza o espetáculo Foi Bom,
Meu Bem? Depois disso, e Ednaldo como diretor, a dupla cria
Cala Boca Já Morreu. A despeito de as temáticas serem bem di-
versas, em comum a narrativa épica. Outras obras vieram, mas,
em 1993, surge a Fraternal Companhia de Artes e Malas-Artes,
cujo principal objetivo se centrava na produção de obras inse-
ridas na forma do teatro épico e tendo como temática e ponto
de vista aspectos ligados à tradição da comédia popular. Com
34 Revista Arte e Resistência na Rua. Movimento de Teatro de São Paulo: São Paulo: Grafnorte. Ano
II, nº 2, julho de 2012, p.53-62.
patrocínio da Siemens do Brasil, o coletivo cria um projeto am-
bicioso e muitíssimo bem realizado, que compreendeu a mon-
tagem da tetralogia (fundamentada na união de formas de co-
média popular e a commedia dell’arte italiana): Burundanga,
O Anel de Magalão, Sacra Folia e O Parturião35. Esse projeto e
outras obras que se seguiram amealharam o respeito da crítica
e a presença constante de público.
De modo absolutamente sucinto, a obra em destaque apre-
senta a saga da “sagrada família” que, no sentido de fugir do de-
creto de Herodes, anda por Paraíba, Minas e Goiás. A temática
é religiosa, mas apresentada, sem desrespeito à tradição, em
uma perspectiva profana. O conhecimento da narrativa, cria
situações de delírio por parte de quem assiste. O riso é abso-
lutamente contaminador. Ednaldo Freire (já havia morado) e
Luís Alberto de Abreu (ainda mora em Ribeirão Pires), na festa
de Nossa Senhora do Pilar (padroeira da cidade, e a convite da
Prefeitura) levam, na condição de uma das atrações do evento,
120
35 Sobre o Projeto e as dramaturgias de texto, consultar Luís Alberto de Abreu. Comédia Popular Bra-
sileira. São Paulo: Siemens; Fraternal Companhia de Artes e Malas-Artes, dezembro, 1997. Luís Alberto
de Abreu. NICOLETE, Adélia (org.). Luís Alberto de Abreu: um Teatro de Pesquisa. São Paulo: Perspectiva,
2011.
II. 64. O Baile Brasil (Núcleo de Atores e Atrizes de
Ribeirão Pires – Ribeirão Pires/SP).
O
espetáculo, com começo dificílimo, foi levado na
quadra poliesportiva do Complexo Cultural Ayrton
Sena. A apresentação ocorreu em uma noite muito fria
e destinou-se, sobretudo, a estudantes de duas escolas públicas
do município, inserido no chamado grande ABCD paulista. Tra-
tou-se de um evento pioneiro no município: espetáculo teatral
em uma quadra de esportes. A excitação e a gritaria eram tão
intensas que não foi possível apresentar algumas indicações
preliminares quanto ao que trataria a obra. Então, mesmo sem
as informações, no início, a estudantada “dominou”, mas, pela
obra foi sendo conquistada.
Adaptado de O Baile, excepcional obra de 1983, dirigida por
Ettore Scola (que, por sua vez adaptou o espetáculo teatral da
montagem da companhia francesa chamada Théâtre du Cam-
121
pagnol). Na versão de Ribeirão Pires, o espetáculo foi total-
mente ambientado aos mais representativos acontecimentos
brasileiros, a partir do início do governo de Getúlio Vargas
(1930-1945) até a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985).
A montagem estava inserida em uma proposta cultural do go-
verno petista durante a primeira gestão da prefeita Maria Inês
Soares, cujo gerente era o professor Ivan Russeff. A ação foi
iniciada em 1997, e em 1998 mais de mil pessoas (de crianças
até a terceira idade) participavam das oficinas e cursos de
teatro desenvolvidos na cidade. Baile Brasil foi uma das mon-
tagens daquele ano em oficina com adultos, contando com a
participação de aproximadamente trinta estudantes de teatro.
Em tese, a obra foi concebida para os palcos, mas, em razão
de seu alcance e reconhecimento, foi apresentada também em
outros espaços, cujos resultados estéticos eram sempre mais
“favoráveis” e surpreendentes.
II. 65. O Cabra que Matou as Cabras (Companhia de
Teatro Nu Escuro – Goiânia/Goiás).
A
obra produzida por autor anônimo, e originalmente
chamado de A Farsa do Mestre Pierre Pathelin, inse-
re-se como produção característica do teatro medieval,
e é muito montada. Portanto, em decorrência de a cultura
popular ter sido permanentemente difundida por meio da
oralidade, é quase característica desse tipo de teatro tomar o
texto como um pretexto. Então, em razão disso, acaba por ser
sempre surpreendente os modos como os/as artistas de rua (e
também os populares) reorganizarão a dramaturgia tomada
como referências para, por meio dela, inserir todos os jogos
e combinações lúdicas possíveis. Assisti ao espetáculo do Nu
Escuro, na Vale do Anhangabaú, no centro da cidade de São
Paulo, em 2009.
O coletivo foi criado em 1996, com o primeiro nome de
122
A
ssisti ao espetáculo, em uma das vezes, nas imediações
da passarela de ligação da Rua Silva Bueno com a Co-
munidade de Heliópolis (Sacomã/SP). Tive a felicidade
de assistir ao espetáculo algumas vezes, entretanto, adoto
esta apresentação em razão de a Comunidade de Heliópolis
se caracterizar na maior favela do Brasil. Como o horário de
apresentação foi entre o final da tarde e início da noite, foi
impossível contar o número de transeuntes a assistir a obra.
Nesse dia, como sempre acontece, procuro andar pela área
de público, no sentido de colher algumas impressões sobre a
obra. O nível de alegria e felicidade só não é surpreendente em
razão de o espetáculo ser realmente muito bom. Sérgio Carozzi
e Joel Carozzi, criadores do coletivo são irmãos e vêm de expe-
riências significativas antes de criarem o Lona Preta.
123
De fato, como consta do nome, o espetáculo é um grande con-
certo musical: os cinco integrantes tocam. Aliado ao domínio dos
instrumentos, a dramaturgia mescla música com o trabalho de
palhaço. De modo algo diferenciado de tantos outros coletivos
a trabalhar com desse ofício (de palhaço), e decorrente, princi-
palmente, da politização e militância dos Carozzi, os esquetes
apresentados, além de criticar costumes e poderosos o fazem
de um modo rigorosamente consciente. Entretanto, a crítica de
natureza política não é apresentada de modo cifrado e de difícil
entendimento, ao contrário. Há no material dramatúrgico, uma
simplicidade absolutamente requintada. Desse modo, de formas
diferentes e pela junção de vários aspectos composicionais (que
coligem os três campos de pesquisa do coletivo: palhaçada, mili-
tância política e crítica ao sistema capitalista e musicalidade), as
pessoas entendem e respondem ao apresentado pelo coletivo:
velhos/as e crianças, jovens e adultos.
O mais “curioso” de tudo é que apesar de o coletivo tran-
sitar com um humor corrosivo, escatológico, grotesco... é raro
o momento em que uma emoção, pelo reconhecimento de
estar diante da beleza, não me leva ao choro. Comédia que faz
chorar!! Oxímoro!? Impossível!? Realmente, sinto-me tocado
pela beleza que forra a obra e que a revela. Mais curioso é o
fato de um grande e querido amigo, amante do teatro, ao ir as-
sistir a obra (por muita insistência minha), detestou tudo o que
viu. Achou a obra primária, “amadora”, mal feita... Apreensões
também são díspares... Inserida na categoria aqui explicitada
e com quatro obras no repertório, sem dúvida, o coletivo se ca-
racteriza em um dos mais significativos coletivos em atuação
na cidade de São Paulo.
Observação: para mais informações do coletivo e ficha técnica
do espetáculo, consultar:
facebook.com/Trupe-Lona-Preta-278673148876563/
Sobre sentimentos e possibilidade de criação em tempos de
124
pandemia:
https://www.youtube.com/watch?v=VHB6gLQP_3I
https://www.youtube.com/watch?v=psjy97CMUeE
E
vill Rebouças, fundador do coletivo, dramaturgo e di-
retor dos espetáculos criados pela Artehúmus, a partir
de um determinado momento, sai dos espaços fechados
e inicia processo por espaços alternativos para apresentação
de suas obras. Desse modo, talvez o mais radical dos espaços
em que uma de suas obras foi apresentada (Evangelho para
Lei-gos) foi apresentada em um banheiro público, desativado,
sob a rua Xavier de Toledo, no centro de São Paulo, em 2004.
A partir daí, o diretor tem buscado apresentar suas criações
em espaços passíveis de ressignificação. Assim aconteceu
com OhAmlet...
Apesar de o espetáculo ter sido apresentado em vários
espaços (inclusive na rua, quando a obra foi apresentada
na Casa de Cultura Oswald de Andrade), assisti à obra na
Casa Mariajosé de Carvalho, cuja coordenação tem sido de-
senvolvida pela Cia. Heliópolis de Teatro. O espetáculo foi
apresentado no jardim dos fundos do espaço. Em uma noite
bastante fria, aquele Hamlet da Artehúmus (e sua trupe...),
cujo tratamento é rigorosamente experimental, por meio de
várias cenas – criadas, sem dúvida, de modo colaborativo –
conduziu, a quem se permitisse, por um significativo passeio
de cotejamento de dois momentos históricos: “aqueleste”,
sempre mesmo.
Diversos achados, manifestações e camadas estéticas com-
punham o espetáculo. Falas e corpos expressivos conduziam a
125
diferentes cenários... às vezes, perdia-se a dimensão do exato
local em que se estava. Às vezes, os cordões de Ariadne, re-
configurados, levavam para labirintos de não-lugares... então,
comia-se pipoca quentinha. O mito shakespeariano foi ressig-
nificado e devorado... triturado para poder ser (re)visto por
meio de cacos metafóricos e reais de vidros, esparramados
pelo chão, mas permitindo vislumbrar algumas réstias da Lua
no céu. Enfim, como alguns de seus pais e mães, o espetáculo
coligia poesia-mito-deboche... como o já experimentado por
algumas vanguardas, sobretudo europeias ou, melhor ajus-
tando, glauberianas.
Observação: para mais informações do coletivo e análises
sobre o espetáculo, consultar, dentre outros materiais:
www.artehumus.blogspot.com
Evill Rebouças (org.). Ateliê Compartilhado, 1. São Paulo: Cia.
Artehúmus de Teatro, março/2011.
II.68. O Homem Cavalo & Sociedade Anônima (Companhia
Estável de Teatro – São Paulo).
O
coletivo se forma, inicialmente (porque foi se modifi-
cando ao longo de sua existência), a partir de uma turma
do curso de interpretação da Fundação das Artes de
São Caetano do Sul (São Caetano do Sul/ região conhecida como
ABCD paulista SP). Espetáculo inserido em proposição do teatro
épico-dialético, parte de um tema contundente, que concerne à
sua exploração do humano em uma sociedade perversa, exclu-
dente e predatória e, por meio de episódios independentes e
articulados, apresenta a narrativa de coisificação O espetáculo
foi montado nas dependências do Arsenal da Esperança, uma
antiga hospedaria de imigrantes, construída em 1886, para
abrigar a gente migrante recém chegada a São Paulo. Neste
espaço, que atualmente abriga homens em situação de risco,
foi onde o coletivo realizou suas pesquisas para a montagem
126
127
acento caipira, chamando-os de corpo e recolhe-se
novamente ao seu “mundo interior”: um velho latão
que um dia abrigou um produto químico qualquer.
E
m um domingo ensolarado, mas com incontável número
de nuvens carregadas de chuva, o espetáculo O Mago das
Megabolhas, foi apresentado em um salão de clube comuni-
tário em Schmitt (uma região de São José do Rio Preto. Tratou-se
de uma apresentação em espaço híbrido. Originalmente a obra
estava programada para outro espaço aberto, mas devido à
previsão de chuva foi mudado. Em trabalho solo, o mestre das
bolhas, dos malabares, da animação, Marcelo Aristides de Lima,
transformou a vida da população da localidade. Gente de todas as
idades, literalmente apinhadas no salão, nos seis janelões do lado
de fora e em barranco alto de um dos lados tiveram uma expe-
riência única! Ao som inicial de Taj Mahal, de e cantada por Jorge
Bem Jor e até o final do espetáculo, com duração de 50 minutos
a alegria e animação foram contagiantes! A maestria de Marcelo
foi tão excepcional que acredito. Deva (além de mim) ter levado
muita gente ao choro!!
A apresentação ocorreu no dia 29 de janeiro de 2023, vinte e
um dias depois do horroroso 8 de Janeiro, em Brasília. Durante
o espetáculo, encantador e feérico, ainda ferido e arrasado
com aquela data de paroxismo do terror e da insanidade pelo
ódio, imaginava que aquelas pessoas, tão disponíveis à partici-
128
E
m 1991, tive a oportunidade de assistir a um espetáculo
que muito me impressionou: O Nome do Negro (espetáculo
teatral de rua em 7 estações), cuja direção foi um trabalho
coordenado por Newton de Souza e Zebba dal Farra. Trata-se
de obra criada a partir das memórias de Sebastião Francisco,
militante negro, nas em Valença (zona rural do Rio de Janeiro),
em 1900. Sebastião, dentre outras questões, foi militante do
Partido Comunista Brasileiro e vivenciou acontecimentos im-
portantes na história do país. Dentre outras ações, podem ser
destacadas: a greve da construção civil de 1917, em São Paulo,
e a Intentona Comunista, em 1935, liderada por Luiz Carlos
Prestes. Atento a todas as lutas importantes, Sebastião Fran-
cisco (conhecido, depois de algum tempo de “Sêo Francisco”)
foi um líder comunitário no distrito de Itaquera, zona leste da
129
Cidade de São Paulo, Brasil.
Assisti ao espetáculo, em 1 de maio de 1991, na Casa de
Cultura Raul Seixas e no dia 18 de maio, defronte ao Teatro
Municipal de São Paulo (no centro da capital paulista). Nas
duas ocasiões fiquei absolutamente surpreendido com as pro-
postas de encenação e a musicalidade da obra. Inventividade
em estado de samba, apresentado por atores e atrizes, em sua
maioria negra, feito um desfile de escola de samba, caracteri-
zaram a obra. Fiquei muito surpreendido com o espetáculo,
que fiz questão em assistir uma segunda vez. Antes desta mon-
tagem, e na categoria de teatro de rua, havia assistido apenas a
espetáculos do Tá Na Rua e do Teatro Popular União e Olho Vivo
ou manifestações populares: banho da Doroteia, malhações
de Judas... Entretanto, e mesmo sem conseguir fazer tantas li-
gações, através deste espetáculo, passei a entender que algumas
obras (O Percevejo, dirigido por Luiz Antônio Martinez Corrêa;
Ubu, Folias Physicas, Pataphysicas e Musicaes, dirigido por
Cacá Rosset) mesmo sendo apresentadas em teatro de caixa,
muito deviam aos expedientes populares.
Observação: para mais informações do coletivo e ficha técnica
do espetáculo, consultar: Newton de Souza. O Processo de Mon-
tagem do Espetáculo “O Nome do Negro” em São Paulo. Tese (de
Doutoramento) defendida na Faculdade de Letras da Univer-
sidade de Lisboa: Lisboa/Portugal, 2019.
A
ssisti ao espetáculo em uma edição do Festival de Teatro
do Vale do Paraíba (Festivale), Festival Internacional de
Teatro de São José do Rio Preto, em 2008; São José dos
130
A
pedido da Secretaria de Cultura da Estância Turística de
Ribeirão Pires, em 1998, o grande mestre criador Luís Al-
131
berto de Abreu, escreveu O Pum de Micura. A obra, fruto
da genialidade de Abreu, um amante da natureza, apresenta
a criação/origem daquela localidade (Ribeirão Pires, cuja tota-
lidade da área territorial é ocupada por mata atlântica e pela
Represa Billings) usando um mito criador, que é o micura (mais
conhecido também como gambá). O pressuposto decorreu de
certa matança do marsupial pela população, que viciosamente
afirmava (e afirma) que o bichinho invade seus terrenos. Para
Abreu, a lógica seria e é inversa: foram os humanos que inva-
diram o território dos bichos... Nessa perspectiva, Micura criou o
mundo por intermédio de puns (peidos). Evidentemente, nessa
perspectiva, um de seus puns mais caprichados aconteceu com
a criação da exuberante mata atlântica. A partir deste mote,
Abreu escreveu uma obra universal (para gente de todas as
idades) e inseriu-se em uma proposta de educação ambiental
desenvolvida pela prefeitura, que naquele momento era admi-
nistrada por Maria Inês Soares (do Partido dos Trabalhadores).
O espetáculo foi dirigido por Newton de Souza (um artista
muito e excepcionalmente vocacionado para a visualidade) e
foi apresentado nos mais diferenciados e distintos lugares. A
personagem principal, além de Micura, evidentemente, era
um menino (uma espécie de Manecológico, segundo nome
atribuído a personagem da literatura) que, em relação com
as incontáveis belezas da natureza, ia descobrindo e reve-
lando o mundo para seus outros parceiros de atuação, tanto as
outras personagens como o público. O resultado foi uma obra
de poética lúdica surpreendente. Nos espaços e áreas abertas,
inevitavelmente, aspectos da flora atlântica “invadiam” e in-
corporavam-se à cena; ruídos de pássaros, cheiro de mata...
tudo confluía para a proposta estético-pedagógica da obra.
Janeiro).
C
oletivo formado em 2002, e atualmente, além de André
Garcia Alvez – e seguindo a tradição popular e circense –
de companhias familiares, o grupo conta com a presença
da companheira Ludmilla e do filho e filha do casal: Alice e
Pedro. Na ocasião em que assisti ao espetáculo, em destaque
(na Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas/2008), André, na con-
dição do palhaço Migué Bruguelo Ditoefeito apresentava-se so-
zinho. O espetáculo foi apresentado no Viaduto do Chá, que em
determinado momento da história da cidade, ligava o centro
velho ao centro novo. Na Revista do Movimento de Teatro de
Rua de São Paulo36, há duas fotos de Augusto Paiva, que trazem
o ator e o espaço onde a obra foi apresentada.
36 Revista Arte e Resistência na Rua. Movimento de Teatro de São Paulo: Grafnorte, ano I, nº 1, abril
de 2009, p. 44-6.
O Salto, durante um pouco mais de uma hora, apresenta a
potência do trabalho de palhaço de André Garcia Alvez, para
realizar uma reprise (cena) tradicionalíssima das atrações
circenses. Migué Bruguelo Ditoefeito promete ao público que
dará três saltos mortais, de olhos fechados, sem tirar os pés
do banco... Evidentemente, antes disso, como se sabe nas artes
do a palhaço, tudo pode acontecer, principalmente – feito uma
criança – não cumprir ou atender ao prometido.
Observação: além da Revista indicada, mais informações do
ator, seu trabalho e luta, consultar uma recente discussão,
presente em uma roda de estudos, em agosto de 2020: https://
www.youtube.com/watch?v=yP9bDX7_lc0
E
spetáculo que abriga uma tetralogia magistral, composta
133
por A Terra, O Homem – I, O Homem – II – Da-Re-Volta
ao Trans-Homem e A Luta, cuja estreia nacional ocorreu
no Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto/
SP, em 2004. A partir de Os Sertões, de Euclides da Cunha, en-
trecruzada de tantas outras referências, em voragem antro-
pofágica, a batuta genial de José Celso Martinez Corrêa e os
procedimentos colaborativos, constroem uma das mais impor-
tantes tetralogias do teatro brasileiro de todos os tempos. As
obras de Zé Celso, assim com aquelas de Amir Haddad (que co-
meçaram a fazer teatro juntos e que criam o Grupo Oficina, em
1959) – sem deixar de considerar tantos/as outros/as criadores/
ras –, caracterizam-se naquilo que de mais importante se criou
e apresentou, e não apenas no Brasil.
Assisti ao espetáculo em meio a um importantíssimo festival
(que era o Internacional de Rio Preto), no terreno onde de Frigorífico
Swift se transformou em um polo importantíssimo de produção
cultural da cidade de São José do Rio Preto. O mais curioso de tudo
é que me lembro do conjunto que compôs a tetralogia, mas a força
das obras (cada uma delas e todas) é tão significativamente intenso,
que não consigo separar uma da outra. Ao tentar distinguir do
evocado, sem buscar materiais de pesquisa, a sensação de abraço
forte, de terra vermelha (alguma coisa está plasmada nas estru-
turas mnemônicas trazendo a lembrança) morros e mais morros
e uma imensa depressão de terra. Lembro de os corpos, repletos
de um determinado e manifestado tônus manifestavam o estado
de luta e de gente que luta por libertar-se; lembro que o branco
das roupas, assim como o conjunto de sensações fortes, ia pouco-
-a-pouco tomando conta e se transformando (as roupas ficavam
irreconhecíveis): as personagens pareciam mesmo de barro.
As obras espetaculares do Oficina têm um caráter que se
insere na palavra conceder-se. De fato, não importa qual possa
ser o impacto que se tem com as obras de um dos mais lon-
gevos grupos de teatro do país, o grande e inequívoco mestre
134
T
rata-se de mais coletivo teatral, fundado em 2014, na
cidade de São Paulo, que colige em sua atuação o ético e
o estético. A Companhia foi criada com estudantes, com
passagem pela graduação e pós=-graduação do Instituto de
Artes da Unesp e uma outra atriz formada em Artes Cênicas
pela ECA/USP. Antes de o coletivo se formar com um novo
nome, os/as integrantes já haviam participado de montagens
da Clã – Estúdio de Artes, cuja direção era de Cida Almeida. O
coletivo, desde sua nova reconfiguração, tem participado de
lutas importantes, sobretudo aquelas que dizem respeito ao di-
reito de moradia. Portanto, o coletivo tem conciliado o teatro e
as lutas militantes para dignidade humana.
Havia ministrado aulas para três dos integrantes da Com-
panhia durante o processo de graduação (Licenciatura em
Artes Cênicas) no já mencionado Instituto de Artes da Unesp.
135
Tive oportunidade de assistir ao trabalho, que reconfigura/res-
significa a narrativa mítica dos Três Porquinhos, que, na versão
à disposição, concerne a uma releitura de conto de tradição
oral. A adaptação do texto é de Renato Mendes, que, em seu
processo de adaptação, trouxe a fábula para um chão histórico
de injustiças e desigualdades. A direção é de Rafaela Carneiro,
atriz e diretora com importante destaque na produção teatral
paulistana. Os atores criadores são: Caio Franzolin, Caio Ma-
rinho e Gabriel Kuster... o Lobo, que não aparece, é o dono das
casas em que os Porcos querem morar.
O espetáculo concilia a diversão (sobretudo por meio de
aspectos do trabalho com palhaços) e um caráter de denúncia
de um conjunto de mazelas sociais, mais propriamente ligadas
ao universo da impossibilidade de viver, aos permanentes pro-
cessos de despejo, da concentração de poder dos donos pro-
prietários, das normas de um capitalismo injusto e perverso.
Assisti ao espetáculo em área exterior do Sesc Santana. Havia
muita gente naquela manhã, sim porque se trata, em tese, de
um espetáculo infantil, muito bem feito, atendendo, portanto,
a qualquer idade. Os atores conquistam e divertem o público.
Foi um belo momento ter acompanhado aquele trabalho em
uma manhã ensolarada.
Observação: para mais informações do coletivo e sobre o espe-
táculo, conferir: https://www.aproximacompanhia.com.br/sobre
T
rata-se de um coletivo formado por atores e atrizes bas-
tante jovens. Em tese, e a partir de uma explosão mam-
bembe de cores. A partir de uma adaptação de um dos
136
A
ssisti ao espetáculo no Rio de Janeiro e em Santo André.
A totalidade dos espetáculos do Tá na Rua adotam como
expedientes constitutivos, a partir de humor caustico
(sobretudo com relação aos poderosos e seus costumes), o
deboche, a irreverência, a mordacidade, o exagero e a car-
navalização. Penso que a estética de Amir Haddad além do já
mencionado tem uma proposição libertária e absolutamente
responsável. Tenho tido, ao longo da vida, a feliz oportunidade
137
de assistir aos espetáculos do coletivo, mas Para Que Servem
os Pobres, tem uma elaboração demolidora! De certa forma, o
ponto de vista do pobre, derivado/derivante do conceito de pro-
letariado e mesmo de lúmpen – abarcando as tradições popu-
lares –, tem função protagônica e se caracteriza na voz-idioma
procurada e manifestante das produções do coletivo. Tal de-
terminação, aliado aos compromissos com o estar no mundo,
é fruto do conhecimento e identificação, principalmente por
parte de Amir Haddad, com os desterrados, maltratados, per-
seguidos do teatro popular, desde sempre.
Para assistir “e entender” às obras do Tá na Rua é funda-
mental o se deixar levar pelo tratamento de que lança mão o con-
junto criador coletivo. Desse modo, é preciso tentar aproximar/
não perder de vista e o que lhe dá sustentação estético-política.
Amir Haddad, é bom, inicia-se pelos territórios da represen-
tação em 1958, quando, em um primeiro momento, junto com
José Celso Martinez Corrêa e Carlos Queiroz Telles, participa da
criação do grupo nomeado Teatro Oficina. Desgarrando-se do
coletivo paulistano e no Rio de Janeiro, sem abrir mão dos prin-
cípios que o levaram ao teatro, de linha mais experimental e
contra hegemônico, percebeu a rua e suas tradições sempre in-
terditadas como uma possibilidade concreta de estar no mundo
e participar das lutas contra as truculências e injustiças.
A obra em destaque, apresenta e representa – quase em
proposição de um desfile de escola de samba –, por meio de
uma personagem-coro, as diferentes funções (leia-se, em pers-
pectivas cáusticas, as “utilidades“) dos pobres. O espetáculo as-
sistido em Santo André, em uma praça pública de um bairro
burguês, em pleno domingo, com casais padrão margarina, se
caracterizou, rigorosamente, na contracena da criação do Tá
na Rua. Por exemplo, quando se tratou de demonstrar que os
pobres servem para trabalhar, as situações cômico-em-estado-
-degradantes da situação de trabalho no Brasil, evidentemente,
arrancou gargalhadas do público; a demonstração de que os
138
O
bra absolutamente experimental, que toma o universo
de Bispo levando-a ao paroxismo, em todos os seus as-
pectos. Por exemplo, o criador do roteiro e diretor, o
jovem Kadu Veríssimo é apresentado no programa (ou Pron-
tuário) a partir da consigna: “Esquizo Paranóico Delirante”.
Tive a oportunidade de ser arrebatado pela apresentação do
139
espetáculo em uma edição do Festikaos, da cidade de Cubatão
(cidade que fica no sopé da Serra do Mar). A sede do Teatro
do Kaos, que promoveu o Festival apontado, fica em uma pe-
quena praça, em uma das entradas da cidade. Nos quatro lados
da praça ficam: a sede do coletivo teatral, sendo basicamente
a única habitada. Em outra face, há um conjunto de casas fe-
chadas, tombadas pelo patrimônio histórico; no terceiro lado
tem-se o terreno de uma empresa e, no quarto lado, uma es-
trada de acesso à cidade de Cubatão.
O espetáculo, de caráter deambulatório, povoado por per-
sonagens saídas das imaginações enlouquecidas de Bispo do
Rosário e Estela do Patrocínio é construído por cenas de perder
o fôlego e temer pelo despojamento do conjunto de intérpretes
da obra. Se uma das personagens já tem um universo de inusi-
tados, ao coligir as duas personagens (Bispo e Estela do Patro-
cínio) a obra ganha uma dimensão de total desassossego. Não
é possível medir a obra por um tempo cronológico... Não tenho
a menor ideia de duração do espetáculo, mas pela criação (ex-
tremamente arriscada e ao paroxismo dos intérpretes) guardo
na memória algo muito-muito longo. Insisto que isso não se
deve ao fato de a obra não agradar, mas pelo medo, receio,
inusitados. O diretor era muito jovem, mas impressiona o que
ele conseguiu do conjunto de intérpretes. O coro enfrentava a
lama, a água, a ausência de luz, as posturas físicas inusitadas...
com inteireza admirável. De outra forma, no exterior inú-
meros são os obstáculos das personagens (correr, esconder-se,
equilibrar-se...), e, em razão de ser uma obra híbrida, todas as
cenas internas, tanto no teatro como em outras áreas do Kaos,
correspondem a instituições manicomiais.
De certo modo, a obra transita com muitos expedientes de
teatros experimentais, mas as deformações, as tantas imagens
quase não vistas, as falas carregadas, as maquiagens gro-
tescas... induzem principalmente ao teatro expressionista.
Lembro que durante o debate apresentei ressalvas com re-
140
N
o escuro de uma noite me janeiro de 2023, mas por
meio do brilho intenso de uma palhaça batizada de In-
crível Teimosa, a atriz Daniele Pezenti apresentou seu
espetáculo solo na Praça Allan Kardec, Jardim Soraia, em São
José do Rio Preto. Maestrina potente, regeu sua orquestra,
constituída por gente de todas idades, credos, crenças, pro-
fissões. Terça-feira de alegria e, como escreveu o poeta Thiago
de Mello, livres para “caminhar com uma imensa begônia na
lapela”. Tratou-se de um espetáculo que, por meio da evasão
imaginativa se podia congregar, apensar das tantas e no-
meadas diferenças.
Em tese, a palhaça Incrível Teimosa, ao ser animada para
animar uma festa, ensaia com o público, reunido naquela
praça, com a intensão de ser aprovada no teste... Afinal, tratar-
-se-ia de ganhar um dinheirinho para legitimar a existência,
sempre tão difícil. Entretanto, a dificuldade transforma-se em
energia potencializada. A cada número (malabares, magia,
charadas...) e sequência: contando com a participação popular,
a maestrina vai somando o número de pessoas que se rendem
à sua potência encantatória.
141
Ao roteiro, a atriz apropriava-se dos mais distantes, mas
entretanto perceptíveis estímulos da vida que seguia na ime-
diações da praça. Até o relinchar de um cavalo serviu para a
atriz brincar e brindar, conjuntamente, com a cumplicidade
do público.
Por último, no debate ocorrido logo após o espetáculo,
na mesma praça, durante a 20ª edição do Janeiro Brasileiro
da Comédia, em São José do Rio Preto, a atriz contou que se
formou em Artes Cênicas, mas que o teatro de rua não fez
parte de seu processo de formação. Entretanto, por meio de
seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), a atriz ousou e
levou seu trabalho aos espaços abertos e públicos. Então,
mesmo sem ter a permissão de ninguém, agradeço/agrade-
cemos a ousadia!!!
Observação: quem quiser mais informações sobre o Coletivo,
consultar https://www.facebook.com/ciaincrivelteimosa/
II.80. Quem Não Sabe Mais Quem É, O Que É
e Onde Está Precisa Se Mexer (Companhia São Jorge de
Variedade – São Paulo).
N
a peça de divulgação da montagem consta: “A Cia. São
Jorge de Variedades Convoca”... Pois é, tendo em vista
o resultado espetacular, rigorosamente experimental
e híbrido da obra: rua, intervenção, caixa..., tratava-se mesmo
de uma obra-convocação, que podia ser assistido às sextas-
-feiras, às 12h. A convocação à cena acontecia por deambu-
lação. Uma mulher, de peruca loira de canekalon, empu-
nhando uma mala (assemelhada – será? – ao Coelho de Alice
no País...) e apressada, intimava o público a acompanhá-la
para algum lugar. No caminho várias cenas e intervenções.
Depois de curto trajeto pelo bairro (Barra Funda), com des-
taque a uma faixa no caminho, segundo a qual: “Aquele que
142
D
epois do belo e pungente cortejo, ouve-se: “Tá cheio
de Lampião por aí. Só falta alguém reluzir. Acender!
Trovoar!”. Em uma caatinga de concreto, os coletivos cria-
dores da obra em pauta, pesquisam e apresentam situações com
o objetivo de aproximar as histórias do cangaço da/na contem-
poraneidade em uma grande cidade na periferia do capitalismo.
Lampiões e Marias Bonitas, mesmo tendo outras fisionomias,
padecem dos males da injustiça e da exploração. Desse embate,
143
pode-se destacar, do ponto de vista temático, a crítica contun-
dente da crueldade característica de sujeitos, que “sobem” na
vida e fazem o papel de algozes de seus semelhantes.
Tive oportunidade de assistir ao espetáculo em uma tarde
de domingo muito cinza, na cidade de São Paulo, sobre o (inter-
ditado de tráfego de carros) Elevado Costa e Silva, ou Minhocão
como é conhecido. A direção do espetáculo ficou a cargo do ve-
terano Alexandre Kavanji e a direção de atores ficou sob a batuta
(da bamba) Renata Lemes. O resultado, também contando com
atores e atrizes excelentes foi surpreendente. O espetáculo se
estrutura por meio da criação de imagens líricas e afeitas ao
universo do cangaço. Em alguns momentos, e tendo em vista
os tons marrons dos figurinos, as personagens assemelham-se
àquelas imagens criadas por figureiras e figureiros do Brasil.
Observação: para mais informações do coletivo e ficha técnica
do espetáculo, consultar: ciapaulicea.blogspot.com ou https://
www.youtube.com/watch?v=iUy-BNkYxT4
Observação:1. – não se trata de tietagem, mas Amir Haddad,
realmente, é um dos maiores mestres do teatro brasileiro.
Sua militância e criações estéticas são memoráveis e se ca-
racterizam em “escola” para os que estão a vir e para os
que já estão!!
A
obra em destaque é de 2004 e se caracteriza no sexto
espetáculo montado pelo coletivo, fundado em 1998,
e com aproximadamente 15 montagens. Segundo o
material sobre a obra, o espetáculo resultou de processo
de pesquisa de tradições dramáticas brasileiras, por meio
do cotejo entre aspectos da sabedoria popular (relatos, tra-
dições, costumes) mesclada àquele de expedientes da criação
teatral contemporânea. A obra, com dramaturgia e direção
144
O
coletivo, formado em 1982, por intermédio da mon-
tagem da obra de William Shakespeare começa a ter
seu trabalho conhecido e reconhecido nacionalmente.
Através de características musicais e visuais (fundamentados
em certo caráter do barroco mineiro), Gabriel Villela, diretor
do espetáculo, em parceria com artistas do Galpão, ao cantar
seu quintal, conseguem transpor a tragédia de amor impos-
145
sível entre Romeu e de Julieta para o Brasil. Atualmente, a
obra caracteriza-se em referência de hibridização bem rea-
lizada quanto aos procedimentos de climatização de certos
textos clássicos. Desse modo, o erudito e o popular são valori-
zados por si e sua mistura resulta em depuração, sofisticação
e feliz realização.
Acompanhado da saudosa Maria Lúcia Pereira, assistimos
ao espetáculo na Praça da Sé, no centro, dito zero, da capital
paulistana. Havia na ocasião um público gigantesco, consti-
tuído por pessoas frequentadoras e moradoras das imediações,
transeuntes que passavam por ali (e foram surpreendidos)
como muita gente do teatro. A massa que assistia ao espetáculo,
como resposta à beleza possibilitada/ trazida/ manifestada pela
obra, respondia por meio de risadas, interjeições e todo tipo de
comentário. Tratava-se de uma obra solar. As roupas coloridas
e lindas; as interpretações centrífugas: circenses; os desloca-
mentos coreografados; como cenário, além da paisagem da
cidade, com destaque a Catedral da Sé, havia uma Veraneio-
-colorida e com funções de traquitana. No momento em que
escrevo este texto, acompanho algumas falas de Amir Haddad,
em evento que discute o teatro de rua. O mestre do/de teatro de
rua acabou de afirmar que a condição de se saber periférico,
enquanto criador de espetáculos na rua é condição funda-
mental para de enfrentamento para a construção de um outro
mundo. Além disso, afirma o mestre: “[...] mesmo poluído, o ar
que se respira na rua é muito melhor do que aquele viciado,
trancado nos espaços de representação burguês!” Portanto,
parafraseando Amir, a montagem de Romeu e Julieta, em inú-
meros aspectos equivale-se ao original shakespeariano e lhe
faz repente. Obra viva e pulsante, fazendo com que o teatro
cumpra uma de suas determinações mais específicas: dialogar
com seu tempo.
Das Minas Gerais para o mundo, talvez seja essa a impor-
tância-resposta do espetáculo do Galpão com sua (versão ori-
146
R
ealmente, do ponto de vista profissional, fui convidado
a participar de eventos extremamente importantes e
significativos em minha vida. Dos festivais de teatro
que participei, e fundamentalmente como debatedor, não
consigo apontar o número de edições, por exemplo, do Fes-
tival Nacional de Teatro do Vale do Paraíba (Festivale). Vivi
momentos surpreendentes e inesquecíveis, com artistas,
obras, técnicos e técnicas, companheiros e companheiras de
avaliação e locais... São José dos Campos é uma linda cidade.
Há inúmeros locais de beleza deslumbrante: o Banhado (que
se caracteriza em uma linda e profunda depressão bem no
centro da cidade); o Parque da Cidade (localidade da antiga
Tecelagem Parayba, cujos jardins foram idealizados por
Burle Marx e cuidados por imenso contingente de jardineiros
e jardineiras).
Exatamente em um recanto (relicário) do imenso jardim
do Parque da Cidade, em uma tarde de sábado ou manhã de
domingo..., com muita/muita gente a passear pelo Parque,
a linda e poética obra Ruas de Barros, dirigida – sensivel-
mente - por Frederico Foroni foi apresentada. Realmente,
não lembro com clareza da edição (possivelmente entre
2013), mas naquele dia, especialmente, uma certa espécie
de árvore estava em processo de florada... cheiro exube-
147
rante... espécie de condutor a um estado de plenitude. No
local de apresentação da obra, um varal, alguns poucos ade-
reços e uma trupe de 4 intérpretes que, de modo épico, ro-
diziavam-se para apresentar a narrativa, lindamente com-
posta por aspectos de vida e com muitos (e ma-ra-vi-lho-sos)
poemas de Manoel de Barros.
A narrativa dividia-se em 7 passos (ou episódios). Com mú-
sicas ao vivo, encantado com tudo o que via naquele espaço
deslumbrante, com tudo o que podia sentir de perfumado pelo
olfato, ao receber as palavras pantaneiras (de todas as coisas
da natureza)... fui tomado por uma emoção indescritível! Ao
relembrar, me vem um estado de emoção e de encantamento.
Observação: Não sei dizer se o coletivo continua em ativi-
dades, mas um pouco do espetáculo aqui referenciado pode
ser apreendido em https://youtu.be/H7gU0xxBuE4
II.85. Sabiás do Sertão – Teatro Musical Brasileiro em Um
Ato, Uma Andança e Uma Chegança (Companhia Cênica
– São José do Rio Preto/SP).
T
rata-se de uma companhia do “sertão” paulista que tem
em seu repertório um conjunto de criações cantando
seu próprio quintal e a mostrar (lembrando o mundo) as
raízes da cultura caipira paulista. Sabias do Sertão refere-se à
dupla regional, formada pelo casal Cascatinha & Inhana. As-
sisti ao espetáculo em, pelo menos, duas ocasiões distintas.
A partir de uma dramaturgia exaltatória e episódica, o
espetáculo passa em revista, recheada de muita e deliciosa
música, o repertório da dupla, que animou os sonhos e a vida
de tanta gente em solo brasileiro. O espetáculo é dirigido pelo
“ventofortíssimo” Luiz Carlos Laranjeiras, com assistência de
Fagner Rodrigues. O resultado é bastante comovente, forte e
148
N
a belíssima cidade de Santos, mais especificamente na
Fonte do Sapo (um espaço próximo do mágico), em um
dia sem sol, mas sábado ou domingo, em 2014, tive a
oportunidade prazerosíssima de assistir ao belíssimo espe-
táculo, escrito pelo mestre (de uma vida inteira) Ilo Krugli e di-
reção do surpreendente Rogério Tarifa. A beleza do espetáculo,
o elenco ma ra vi lho so criou uma atmosfera de festa naquele
final de tarde. Adultos e crianças surpreendidos naquele
espaço surpreendente por obra igualmente envolvente.
Na obra, repleta de alusões de religiosidades ancestrais, um
menino a dormir é confundido com o Santo. Tal confusão leva o
menino a se redescobrir em estado de pura e colossal aventura.
Espetáculo-cortejo, com cores, musicalidades, atuações, cenas
em estado de beleza. Resultou daí um espetáculo arrebatador.
Como o espetáculo fazia parte de um evento promovido pelo
Sesc Santos (Mirada), tinha de andar pelo espaço e sentir o pro-
cesso de recepção da obra. Adultos e crianças ligadíssimas ao
espetáculo.
Observação: para mais informações, consultar: ciasaojorge.
com www.facebook.com/Cia-Sao-Jorge-de-Variedades
149
d’Oráculo – São Paulo).
O
coletivo, fundamentalmente de rua, foi formado em
1998 a partir de uma oficina teatral desenvolvida por
Joca Andreazza. O espetáculo, criado de modo co-
letivo, mas com direção de Adailton Alves, tematiza dentre
outros aspectos – a partir de um ponto de vista da gente
excluída –, sobretudo, a questão dos processos de luta e de
ocupação. A fábula é apresentada por intermédio da nar-
ração, que mescla as questões mais pessoais àquelas sociais.
O tratamento formal da obra transita em chaves alegóricas.
Em tese, o espetáculo apresenta as dificuldades e enfren-
tamentos de um conjunto de migrantes que, ao buscar por
uma vida melhor (ainda que na mais distante das periferias,
em local sem nenhuma benfeitoria). Destino da totalidade
das gentes, que precisa viver por si mesma, pode-se afirmar
que a obra (principalmente em razão de todo o elenco ser
filho de gente migrante e nordestina) busca demonstrar que
as adversidades, quase sempre é funesto para quem está
na rabeira do mundo, comendo o pão que o diabo amassou,
como se afirma popularmente.
Entretanto, e a despeito das dificuldades e adversidades,
o espetáculo, mesmo construído por meio de um conjunto de
expedientes épicos (em certa perspectiva dialética) tem uma
poeticidade encantatória: pelas músicas, pela elocução de sere-
nidade, pelo figurino e pelos adereços de cena. A obra se inicia
com uma das personagens coando um café enquanto apresenta
uma narrativa, repleta de causos de si e de sua gente. Assisti
ao espetáculo algumas vezes, sendo que a mais emocionante
delas aconteceu em uma praça no centro da cidade de São José
dos Campos, inserido na programação do Festival Nacional de
Teatro do Vale do Paraíba (Festivale). O silêncio respeitador
de número significativo de espectadores e espectadoras, que
150
37 Revista Arte e Resistência na Rua. Movimento de Teatro de São Paulo: Grafnorte, São Paulo: Ano
II, nº 2, julho de 2012, p.93-97. Além disso, o coletivo publicou: Alexandre Mate. Buraco d’Oráculo:
Uma Trupe Paulistana de Jogatores Desfraldando Espetáculos pelos Espaços Públicos da Cidade.
São Paulo: RWC, 2009. Adailtom Alves Teixeira (org.). Buraco d’Oráculo: 15 Anos de História – Para
Muito Ser TÃO Ser, Muito Mais Cuzcuz. São Paulo: Grafnorte, 2013.
II.88. Sua Incelença, Ricardo III (Grupo de Teatro Clowns
de Shakespeare – Natal/RN).
O
coletivo de Natal, nascido em 1993, reúne um conjunto
absolutamente expressivo e de muita luta. Em tese,
aparece nos materiais do coletivo que seu conjunto
criador tem desenvolvido um processo de investigação cen-
trado na chamada presença cênica do intérprete. Nesse parti-
cular, e como decorrência do processo de formação cultural (e
respectivas ancestralidades), os/as artistas do Grupo têm levado
à cena, por meio dos mais variados expedientes, as formas po-
pulares de cultura, na interpretação, na gestualidade, na musi-
calidade... O coletivo, que transita sempre por meio de propo-
sições colaborativas, a partir de determinado momento de sua
existência, assim como tantos outros coletivos, tem convidado
outros profissionais para criação de seus espetáculos.
Conheci o coletivo em 2001, sobretudo pelo disciplina-
151
díssimo conjunto de artistas acompanhar a todos os debates
que eu e o saudoso Sebastião Milaré desenvolvíamos durante
aquela edição. Mesmo sem ter espetáculos naquela edição, e
por conta própria, o coletivo esteve atentamente presente às
discussões. Depois disso, em outras edições o coletivo apre-
sentou alguns de seus trabalhos. Dentre eles, Muito Barulho por
Quase Nada, de Shakespeare, foi uma encenação maravilhosa.
Assisti ao espetáculo Sua Incelença, Ricardo III, dirigido por Ga-
briel Villela, em uma das áreas externa do Sesc Belenzinho (SP). O
mês era julho e o frio, no dia assistido era intenso, entretanto, o co-
lorido da obra era um fenômeno de aquecimento intenso. Lembro
de não ter ficado tão entusiasmado com a obra em razão de a verve
popular (por mim já conhecida) não ter aparecido. Parece que a
concepção, sempre e maravilhosamente barroca do diretor, arre-
feceu o espírito irreverente do coletivo. Entretanto, a criação mu-
sical de Marco França (ao mesclar o cancioneiro popular à obra,
donde, inclusive o título do espetáculo) foi outro ponto de absoluto
destaque. De qualquer modo, mesmo se caracterizando em espe-
táculo apresentado na rua (o que concerne a partitura fechada), ao
deslocar-se para um espaço aberto (criando um território hibrido)
o céu, as nuvens, as luzes do local, os ruídos da cidade... acabaram
por intervir de um modo muito sugestivo.
Observação: para mais informações do Coletivo, consultar no
Instagram @teatroclowns
A
Companhia do Miolo, criada em 2003, escolheu a rua
para dialogar com as gentes, sem interdição quanto ao
acesso da linguagem. Desde a data de sua criação, o co-
letivo montou e apresentou um conjunto bastante significativo
de obras. O início (a estreia) ocorreu com O Doente Imaginário
152
S
im: é possível fazer rir a partir de situações as mais
simples. Em tese, o roteiro de Tem Areia no Maiô, de
Denise Crispun, apresenta os embaraços (absolutamente
sem qualquer complicação) de mulheres amigas para ir à praia
em seu calhambeque... Não fossem palhaças, e, realmente tudo
estaria vencido. Com direção de Beto Brown e excelentes atri-
153
zes-palhaças, nas diversas vezes em que assisti ao espetáculo,
fui parte de um coro cujo riso corria solto e permanentemente.
O espetáculo, inicia sua jornada em teatro de caixa e com
um número maior de atrizes, mas, em determinando momento
vai para os espaços públicos e neles permanece por longo pe-
ríodo de tempo. Como característica fundante, das ações do
trabalho de palhaço (e, de certa forma, As Marias são pioneiras
nas artes da palhaça mulher), a personagem erra a todo mo-
mento em razão de, mesmo tentando/ movendo todos os es-
forços imaginados, não conseguir proceder de acordo com os
preceitos estabelecidos. A explosão da obra, na condição de
entretenimento, alicerça-se nas tantas dificuldades ou impos-
sibilidades permanentes de fazer qualquer coisa certa.
Observação: parece que não há um sítio das Marias, mas,
tendo em vista o número de apresentações da obra, há muitas
matérias disponíveis.
II.91. Terra à Vista “Mergulhamos em todos os breus e nunca
nos faltou visão” (Hangar de Elefantes – São Paulo).
S
egundo o material à disposição, o coletivo teria sido criado
em 2009 com o objetivo de produzir e discutir arte pú-
blica. Trata-se de uma obra híbrida, cujas ações ocorrem,
neste caso, na rua e em destroços de uma vila abandonada.
Para acompanhar a obra, cuja temática se desenvolve, princi-
palmente, por todo tipo de violência decorrente de quem está
a margem, mesmo em espaços centrais, e não se tem um lugar
onde morar. Há, de vários modos, também, uma denúncia
contra os estados de espetacularização ou, no caso específico,
a venda de gato por lebre.
O espetáculo se inicia na Praça Dom Orione, na Bela Vista
(que é um bairro central da capital paulistana) e, em cortejo,
acompanha-se uma narradora. Esta incorpora à sua nar-
rativa questões de natureza imobiliárias. Em cortejo, somos
154
A
Companhia não existe mais, entretanto, uma de suas
obras, totalmente feminina e fundamentada na obra de
Cora Coralina permanece na memória suscitando um
conjunto de emoções. Assisti ao espetáculo em uma das edições
do Festival Nacional de Teatro do Vale do Paraíba (Festivale),
em São José dos Campos. A obra foi apresentada em uma praça,
em bairro afastado do centro e foi arrebatadora. O elenco era
constituído apenas por atrizes: Ana Maria de Carvalho, Lu-
ciana Coin, Ritah Koelho, Graça Reis e Mônica Huambo. Ao som
155
de música ao vivo tocada por Wagner Freire. Na orquestração
de artistas que entenderam e recriaram a poeta Cora Coralina,
a direção do espetáculo foi de Wilton Amorim. Como, basica-
mente, quase todo o conjunto havia passado pelo Ventoforte,
do sempre saudoso Ilo Krugli, e o que é bom deixa marcas pro-
fundas, a obra tinha uma criação muito ligada à ancestralidade
do grupo referência. As atrizes, diziam os poemas, dançavam,
pediam bençãos às suas inspirações e cativaram todos os su-
jeitos ali presentes.
Na condição de mediador dos debates do Festivale, tive a
felicidade de assistir ao espetáculo com o grande mestre Luís
Alberto de Abreu, que continua, para alegria geral, criando
em sua terra adotada: Ribeirão Pires; estavam também pre-
sentes e fazendo parte da comissão Carlos Eduardo Colabone
e Maria Lúcia Pereira, dois seres muito amados e queridos (e
lamentavelmente falecidos). Ao terminar o espetáculo, e era
necessário fazer algum comentário sobre a obra, nos quatro,
muito emocionados/a, misturávamos à fala lágrimas de en-
cantamento pela obra assistida. Aquele dia se caracterizou
em um grande momento de poesia, força feminina, cultura
popular e humanidade.
A
tualmente, o Coletivo original mudou de nome para
Teatro do Pequeno Ato e não mais tem como caracte-
rística estrutural apresentar-se em espaços abertos).
O coletivo formou-se com estudantes da Escola de Comuni-
cações e Artes da USP. Então, apesar de o processo de for-
mação recebido na escola de teatro ser absolutamente ligado
às formas hegemônicas, ao ser formado, o coletivo fez sua
opção pelo teatro de rua. Tive a oportunidade de assistir a
156
38 Do significativo material sobre a grande atriz e comediante, recomendo vivamente: Virginia Maria
de Souza Maisano Namur. Dercy Gonçalves – o Corpo Torto do Teatro Brasileiro. Tese de Doutoramento
defendida no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas/ SP, 2009.
oportunidade, raciocínio rápido, astúcia. Tais qualidades as
atrizes e atores do coletivo tinham, e como se diz popular-
mente: para dar e vender.
Ao tomar a linguagem de quadrinhos de Henfil, um dos
mais significativos mestres no Brasil, a desenvolver uma pro-
posta de quadrinho crítico, o coletivo constrói uma obra de
grande impacto: repleta de escatologias, sarcasmos (direta
e indiretamente por Henfil e suas personagens antológicas),
humor corrosivo e sardônico, tanto para os conhecedores das
criações do Henfil como para o público passante. Top-Top-Top,
com direção de Pedro Granato, de certo modo, se caracteriza
em excelente demonstração da tese defendida Bete Dorgan, se-
gundo a qual aprender as proposições stanislavskianas é fun-
damental para o bom – e sempre difícil e complexo – trabalho
com as técnicas de palhaço.
Observação: infelizmente, o coletivo não existe mais, mas para
ter acesso algumas imagens de apresentação, consultar:
157
https://youtu.be/EwRPUEXunaw
em versão completa https://youtu.be/Ac-1S2U6f_w
O
coletivo foi formado em 2006 e, depois de algum tempo
de existência, sentiu a necessidade de aprofundar-se
nos processos de pesquisa da cultura popular pra-
ticada na rua. Desse modo, ao tomar a irreverente, vanguar-
dista e caótica obra de Alfred Jarry, Ubu Rei, cuja estreia ocorre
em Paris, em 1896, como denúncia corrosiva aos processos
de corrupção de aprendizes de/e ditadores perversos, o trata-
mento da obra, como não poderia deixar de ser, apresenta as
personagens de modo bufonesco, em uma comédia popular,
grotesca, escatológica e corrosiva. Montado por um jovem
elenco, com direção de Tânia Alonso, cujo protagonista é cons-
truído pela excepcional atriz Nathália Fernandes, o espetáculo
montado pelo Boccaccione, nas duas vezes em que assisti à en-
cenação, é arrebatador. Tive a oportunidade de assistir ao es-
petáculo na Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas/SP e em uma
das edições do Festival Nacional de Teatro do Vale do Paraíba
(Festivale), em São José dos Campos, em 2011.
Além de o resultado apresentado nas ruas ser muito inte-
ressante, o processo de montagem, em cada nova localidade, é
bastante inovador, tendo em vista a rapidez com que acontece.
Acredito haver variações, mas, no dia de apresentação do espe-
táculo, uma oficina é desenvolvida para quem tenha interesse
em fazer parte do espetáculo como figura do coro. No sentido
de viabilizar a participação da gente interessada, algumas
dicas são apresentadas. Evidentemente, por ser uma obra
apresentada em espaço público, incontável número de lacunas
158
T
ive oportunidade de assistir ao espetáculo na tem-
porada teatral paulistana de 1996, e, um pouco mais à
frente, fazendo parte do Festival Nacional de Teatro do
Vale do Paraíba (Festivale), em São José dos Campos. O espe-
táculo, no Festivale, foi programado para ser apresentado no
Parque da Cidade, antiga sede da Tecelagem Parayba, com um
imenso jardim concebido por Burle Marx. Em uma construção
para apresentação de obras em semi-arena, o espetáculo foi
montado em um final de semana, à tarde.
O título do espetáculo dos PPP decorre da palavra francesa
fabuliaux (possivelmente do gênero de comédia popular da
Antiguidade clássica romana, satura) diz respeito a certo tipo
de contos licenciosos franceses, cuja documentação aponta ser
característico do período medieval e da renascença. Em tese,
159
a comédia ou farsa é demolidora de todas as normas dos bons
modos e boa conduta. Trata-se de um humor escatológico, gro-
tesco e sardônico: demolidor, mesmo! Ao estilo das obras de
rua, que se desenvolvem por meio de uma partitura porosa, a
quantidade de cacos, em proposta improvisada, fazia a delícia
do público, que, imagino, ao término da obra devem ter saído
com dor no estômago de tanto rir.
Observação: para mais informações do coletivo e ficha técnica
do espetáculo, consultar o sítio dos parlapatoes.com.br Ver,
também: Nelson de Sá. Divers/Idade: Um Guia para o Teatro
dos Anos 90. São Paulo: Hucitec 1997.
II.96. Um Show de Variedade Palhacísticas (Teatro de
Rocokós – São Paulo).
À
semelhança da Carroça de Mamulengos, o coletivo (com
mais de vinte anos de existência), é formado por mãe,
pai e três filhos. Cileia Biaggioli e Carlos Biaggioli têm
formação na área teatral pela Escola Livre de Teatro de Santo
André. O coletivo tem sua sede no bairro de Parelheiros, que
fica a 37 km do centro da capital paulista. A “família Rocokóz”
é formada por gente admirabilíssima. O coletivo tem desen-
volvido projetos absolutamente incríveis e comunitários.
Assisti ao espetáculo em, pelo menos, duas oportunidades.
A última delas aconteceu na Mostra de Teatro de Heliópolis, na
rua, de intenso movimento onde fica o Hospital de Heliópolis. O
dia de apresentação foi um sábado, com início às 16h. Em tese,
uma família de saltimbancos permite que as pessoas se apro-
ximem de sua carroça para apresentar-lhes alguns números
160
T
rata-se de uma companhia de dois atores, formados
pela Universidade Estadual de Londrina. “Assisti”, o que
é quase uma verdade, ao espetáculo algumas vezes, en-
tretanto, todas elas por meio de dispositivos virtuais. Ao parti-
cipar como selecionador e integrante da comissão julgadora da
5ª edição do Festival de Teatro do Kaos (Festkaos, de Cubatão
– baixada santista), tive a oportunidade de ver o espetáculo
filmado em vários espaços. O par clássico de palhaços é repre-
sentado por Adriano Gouvella (Batata Doce) e Lucas Turino
(Turino). Além de todos das habilidades clássicas de artistas
circenses, há alguma coisa a mais na composição da dupla.
Desse modo, depois de apresentado oficialmente o espetáculo,
e durante a conversa com os artistas e a comissão julgadora, “o
algo a mais” foi revelado: Adriano, desde moleque faz capoeira,
e Lucas tem se dedicado à yoga. Essa mistura harmoniosa em
diversidade, cria uma dinâmica muito interessante, algo como
arrebatamento amansado... De outro modo, do ponto de vista
da encenação, há os jogos tradicionais de palhaço, mas emoldu-
rados por uma espécie de contracena de ritmo “acelerefreado”.
Realmente, mesmo sendo por meio de uma gravação (é/foi
o que se teve no Brasil, basicamente de março de 2020 até fins
de 2021), a dupla tem momentos surpreendentes e de afeto
161
(poucas vezes por mim presenciado) com o público. Os dois
palhaços, em contraste, têm um carisma típico e, ao mesmo
tempo, transcendente da linguagem.
Observação: para mais informações do coletivo, consultar
http://www.ospalhacosderua.com.br/
T
rata-se de um coletivo relativamente novo, que se juntou
para formar um grupo para contar e representar as his-
tórias da cidade de Cubatão. A cidade, originalmente
fica “encravada” em plena mata atlântica entre a “muralha”
compreendida pela Serra do Mar e áreas de mangue. Entre-
tanto, tendo em vista as indústrias de metais pesados, que
foram instaladas na cidade, e até um determinado momento
histórico, a região foi chamada de inferno na terra ou “vale da
morte”. A mesma má fama da região decorria, principalmente,
pela densa, tóxica e pesada camada de poluição das indústrias
químicas. Outra particularidade da cidade diz respeito à tota-
lidade da população ser formada por gente nordestina. Então,
e apesar de o coletivo ser formado por gente jovem, as obras
do coletivo têm um compromisso de cantar o seu quintal. De
acordo com material do coletivo, Vila Parisi faz parte do Projeto
Zanzalá, que compreende a realização da Trilogia Industrial.
Vila Parisi é um espetáculo-instalação ou uma espécie de
ópera periférica. Por meio da ocupação de uma praça, cuja
moldura, ao fundo, permite divisar algumas indústrias que
compõe o polo petroquímico, o público deambula por diversos
cenários (com tentativas ilusionistas e híbrido-imaginativas)
representando a vida em comunidade: bar, casas, terreiro
afro, frigorífico, rádio... No domingo em que assisti ao espe-
táculo, que começava, intencionalmente, com alguma luz na-
162
C
oletivo criado em 2003, e o espetáculo em destaque, tive
oportunidade de assistir na Mostra de Teatro Lino Rojas/
SP, em 2009. Partindo de forte característica das questões
regionais, o coletivo apresenta, as peripécias e dificuldades de
tropeiros em sua lida diária para sobreviver. A narrativa, entre-
tanto, é apresentada sob o ponto de vista de dois jumentos (e no
teatro popular, sobretudo, tal processo é absolutamente tran-
quilo). Um dos jumentos, de nome Zorobe, é atraído pela pos-
sibilidade de encontrar o pai que, segundo o que ele soubera,
teria ido para um lugar maravilhoso. Evidentemente, a nar-
rativa apresenta as dificuldades e perigos por que passam os
dois aventureiros, no sentido de atingir seus objetivos.
Fundamentados na tradição caipira paulista (como ocorre
no Brasil como um todo), as caracterizações no teatro popular
são meio fantásticas e as cores chapadas e muito fortes. A ar-
tistada do coletivo, cantando suas tradições e quintal, teria
abusado de tais características. Uma das maiores delícias do es-
petáculo (e o eco disso presentifica-se em minhas lembranças)
podia ser encontrado na elocução dita caipira e na ingenuidade
das personagens, cuja inspiração parecia estar alinhada aos
163
grandes intérpretes da cultura de raiz, sobretudo caipira, da
qual se pode destacar o ator e comediante Mazzaroppi.
Observação: para mais informações do coletivo, consultar
facebook.com/teatrosorocaba/ e https://www.youtube.com/@
nativosterrarasgada35
N
o entre apresentações de espetáculos de caixa, durante
o 1º Festival Internacional de Teatro_2021, em São José
do Rio Preto, em cabines fechadas com um ator ou atriz,
apenas, cinco diretores, em significativo esforço de síntese e
concisão, apresentaram suas criações. As cabines tinham a
medida que aparece no título, nelas, apenas um/a espectado-
dor/a assistia as obras. Apesar de as cabines, conceitualmente,
serem fechadas, as mesmas ficavam em espaços públicos. Par-
ticularmente, assisti às cinco encenações sempre em espaços
próximos àqueles fechados e oficiais.
Obra fechada, mas em espaço público, portanto, expe-
rimentalmente, mais um espaço híbrido de encenação. Obra
semi blindada com partitura porosa, decorrente de aconteci-
mentos externos, não propriamente decorrente de quem as-
sistisse39. Não se podia ver, mas, se próximo ao espaço repre-
sentacional, era possível ouvir a obra e flagrar alguns de seus
efeitos em razão da reverberação do uso da luz. A partir de
proposta de Jorge Vermelho, que dirigia o Festival, as cabines,
contaram com: 1: Hamlet, dirigida por Jorge Vermelho e inter-
pretada por Fabiano Amigucci; 2: Sermões aos Peixes, dirigida
por Walter Máximo e interpretada por Aldair Aquino; 3: Na-
164
39 Em mensagem a mim enviada, por exemplo, Jorge Vermelho conta que em uma das edições do
tradicional Festival Nacional de Teatro de Pindamonhangaba, uma forte tempestade carregou a sua
cabine e deixou-o, literalmente, dentro de um latão de água.
III. Considerações [Ah!]finais...
E
sta reflexão, materializada na forma de um texto, é a se-
gunda de uma – pretendida – série. Então, e na medida em
que ela se caracteriza em uma espécie de demonstração
de um conjunto de afirmações no primeiro texto da série, se-
gundo o qual, as obras de teatro de rua não são consideradas,
mas que, apesar disso, elas existem, podendo, portanto, serem
conhecidas e estudadas em diversos espaços, inclusive univer-
sitários, penso ser importante ler a primeira reflexão da série,
batizada: Preconceitos Estruturais Contra as Formas Populares
de Cultura, as Comédias Populares e os Teatros de Rua. Exclu-
dências e/ou Silêncios Sepulcrais nas Universidades Brasileiras:
“Deixe o índio em paz!”.
Sem querer vender gato por lebre, as obras aqui inseridas
(e decorrentes de 12 estados brasileiros e fruto de 34 cidades),
como apontado anteriormente, coligem aquilo que foi possível
lembrar40; encantamento quanto ao resultado: tanto pelo uso
de expedientes como pelos modos relacionais com o público;
reconhecimento quanto à importância da obra; em processo de
apresentação; importância dos temas no concernente a buscar
apresentar as características daquilo que se poderia inserir
nas chamadas culturas brasileiras e suas gentes tão distintas
167
Paulo): obra apresentada em um ônibus; O Baile Brasil (Núcleo
de Atores e Atrizes de Ribeirão Pires – Ribeirão Pires/SP); Homem
Cavalo & Sociedade Anônima (Companhia Estável de Teatro – São
Paulo): obra apresentada dentro em circo montado no Arsenal
da Esperança; Maquinista (Pavilhão da Magnólia - Fortaleza/CE),
espetáculo de rua apresentado em quadra desportiva em razão
de o tempo estar chuvoso; OhAmlet – do Estado de Homens e de
Bichos (Cia. Artehúmus de Teatro – São Paulo); O Mago das Me-
gabolhas (MB Produções Artísticas - Guaíra/PR), em razão de o
artista trabalhar, também com bolhas de sabão, é fundamental
que a obra seja apresentada em espaço fechado, entretanto, o
artista é mesmo fruto do teatro de rua.
Obras em espaço aberto, mas sem tanta permeabilidade (no
concernente à improvisação), e inseridas no chamado teatro na
rua: A Barca do Inferno (Companhia Teatral Cadê Otelo? – Pin-
damonhanga/SP); A Pereira da Tia Miséria (Núcleo Ás de Paus
- Londrina/PR); A Revolução das Galochas (Coletivo de Galochas
– São Paulo); Asas (Companhia dos Pés – São José do Rio Preto/
SP); Automákina – Universo Deslizante (Grupo de Pernas Pro Ar
- Canoas/RS); Ayê (Coletivo Ayê – Porto Alegre/RS); Cegos (Desvio
Coletivo – São Paulo): obra de intervenção urbana; Ciclopes
(Grande Companhia Brasileira de Mystérios e Novidades – Rio de
Janeiro); Circo de Doisdo (Cia. Pé de Lona – Iracemápolis/SP); Eró-
ticoelha (Coletivo Parabelo – São Paulo/SP); Este Lado para Cima
(Brava Companhia – São Paulo); João Cândido do Brasil: A Re-
volta da Chibata (Teatro Popular União e Olho Vivo – São Paulo);
Lavou, Tá Novo (Circo Navegador – São Sebastião/SP); Movimento
Para Atravessar a Rua (Tablado de Arruar – São Paulo); Mário e
as Marias (Cia. Lúdicos de Teatro Popular – São Paulo); Muda por
Amor (Cia. D’Vergente de Teatro– Piracicaba/SP); O Amargo Santo
da Purificação - Uma Visão Alegórica e Barroca da Vida, Paixão e
Morte do Revolucionário Carlos Marighella (Tribo de Atuadores
Ói Nóis Aqui Traveiz – Porto Alegre/RS); O Nome do Negro (espe-
168
169
RS); É Nóis Na Xita!!! (Grupo Namakaca – São Paulo); História
de Teatro e Circo (Carroça de Mamulengo – Juazeiro do Norte/
CE); Júlia (Grupo de Teatro Cirquinho do Revirado - Criciúma/
SC); Karroça Antropofágica: Espetáculo-intervenção (Com-
panhia Antropofágica – São Paulo); Luna Parke (La Mínima
– São Paulo); Marruá (Companhia Parlendas de Teatro - São
Paulo); Mingau de Concreto (Pombas Urbanas – São Paulo); O
Cabra que Matou as Cabras (Companhia de Teatro Nu Escuro –
Goiânia/Goiás); O Concerto da Lona Preta (Trupe da Lona Preta
– São Paulo); O Pavão Misterioso (Companhia Forrobodó/ São
José do Rio Preto/SP); Otelo e a Loira de Veneza ou O Pancadão
da Traição (Companhia Lona de Retalhos – Santo André/SP); Os
Tr3s Porcos (A Próxima Companhia – SP); Para Que Servem os
Pobres (Tá na Rua – Rio de Janeiro); Que Festa É essa, Criatura?
(Cia Incrível Teimosa - Londrina/PR; Relampião – A Saga do
Cangaço (Companhia do Miolo e Companhia Paulicea/SP); Reis
de Fumaça (Companhia do Feijão - São Paulo/SP); Ser TÃO Ser:
Narrativas da Outra Margem (Buraco d’Oráculo/SP); São Jorge
Menino (Companhia São Jorge de Variedades – São Paulo); Todas
as Vidas (Companhia de Saia! – São Paulo); Top-Top-Top (Ivo 60
– São Paulo); Ubu Rei (Cia. Teatral Boccaccione – Ribeirão Preto/
SP); U Fabuliô (Parlapatões, Patifes e Paspalhões – São Paulo);
Vikings e o Reino Saqueado (Cia. Os Palhaços de Rua – Londrina/
PA); Zorobe: Ouviu-se Um Lamento: Era a História de Um Ju-
mento (Grupo Teatral Nativos Terra Rasgada – Sorocaba/SP).
Espetáculos ao ar livre, tendo em vista sua condição de
obras desprotegidas das blindagens mais tradicionais das casas
de espetáculos, em tese, precisam ter uma partitura aberta às
surpresas. Nessa perspectiva, os sujeitos de tais obras preci-
sariam ter uma capacidade bastante desenvolvida para im-
provisar. Em razão desta determinação fundante (aliada à
tradição histórica) se pode entender a razão de as formas po-
pulares, principalmente de personagens cômicas dominarem
170
171
corporal como cognitiva. O mestre Dario Fo e a mestra Franca
41 O grande mestre Luís Alberto de Abreu, a meu pedido, em 1998 escreve um texto para que deter-
minadas questões ecológicas pudessem ser discutidas na Estância Turística de Ribeirão Pires (que faz
parte do ABCD paulista), que era e é uma área de proteção ambiental. O autor escreve O Pum de Micura.
Trata-se de uma obra deliciosa, atenta ao entendimento de seu objetivo por pessoas de todas as idades e
de todas as escolaridades. Pum, sem eufemismos, refere-se a peido e micura é o outro e original nome de
gambá. Na narrativa ou nova genealogia criada por Abreu, o mundo teria sido feito por meio de alguns
puns de micura. Em determinado momento, há um argumento segundo o qual os gambás são acusados
de invadir as casas de moradores da cidade, mas trata-se, exatamente, do contrário: homens e mulheres
invadiram as matas, derrubaram-nas e invadiram o espaço original, e não apenas dos micuras... A apre-
sentação consta da relação aqui selecionada.
42 Depois de “[...] cena de sangue num bar/ Da Avenida São João”, em Ronda, composição de Paulo Van-
zolin – retomada/ ressignificada em Sampa, por Caetano Veloso, a esquina da Avenida Ipiranga com a
São João nunca mais foi a mesma... Quem participou das manifestações e protestos, por exemplo, pelas
Diretas Já! (em 1983/1984), o Vale do Anhangabaú ou a Praça da Sé, em Sampa, jamais foram as mes-
mas praças. Gostando ou não, aceitando ou criticando, depois da construção da ciclofaixa na Avenida
Paulista, na gestão de Fernando Haddad, além de atender a quem andar com bicicletas a paisagem da
Avenida, se humanizou e foi ressignificada! Quem assistiu, por exemplo, Barafonda, e fez o percurso do
espetáculo, jamais vai considerar a Rua Lopes Chaves do mesmo modo... Enfim, o grande poeta portu-
guês Luís Vaz de Camões já havia escrito que “[...] tudo é composto por mudanças/ tomando sempre
novas qualidades”. Espaços públicos são ventres de memória coletiva.
Rame tratam muito bem disso; Amir Haddad, do mesmo modo,
discursa e pratica a partir de tal pressuposto. A narrativa de
encenação, compreendendo texto dramático e encenação,
na rua, tendo em vista que um espetáculo de rua invade um
espaço/território social, para tentar prender a gente que passa,
precisa tomar a comicidade como um visgo sedutor. Na rua, de
todos os modos, não permitiria as sutilezas e complexidades
psicológicas e intersubjetivas. Evidentemente, os especialistas
em teatro (das formas hegemônicas, que, na condição de car-
tilhas, já vêm prontas), e não é tão raro ouvir: não conhecem
e não gostam. Tal opção, adesão ao “consagrado”, partindo de
desqualificação, ao fazer um trabalho de natureza saneadora,
apenas camuflam a questão da luta de classes.
De qualquer forma, a ida à rua (que, territorialmente, se carac-
teriza em espaço de luta e resistência) – na condição de um corpo/
organismo vivo complexo e pulsante –, a partir das formas popu-
lares (que, em boa parte dos casos, se caracteriza como opção es-
172
173
que funcionam como um excelente chamariz e permanência
de foco; a interpretação (e atores e atrizes de rua dominam
inúmeras linguagens expressivas) tem de ser monumental,
extrospectada, vulcânico-centrífuga, em um corpo em rotação
permanente (sobretudo quando se estiver em formato de
arena); a elocução precisa ser potente (ainda há muitos cole-
tivos que não usam microfones), articulada e audível para os
mais próximos e os mais distantes; os deslocamentos precisam
acontecer sempre com algum tom pré-antecipatório, com
alguma determinação épica. Há um conceito brechtiano que,
traduzido para o português, foi traduzido como “mostração”.
A ação que vai ser feita, sem buscar surpresas, precisa se re-
velar em toda a sua potência. Antes de apresentar um poema,
que apresenta, de modo bem efetivo o conceito, é sempre
bom lembrar que Bertolt Brecht, e jamais escondeu isso, foi
um criador pesquisador. Portanto, o resultado de suas obras
contempla a incorporação de diferentes formas e estruturas
estéticas. Há ensaios em que o criador-pesquisador trata da
questão da interpretação asiática
Mostrem que mostram! Entre todas as diferentes
atitudes
Que vocês mostram, ao mostrar como os homens se
portam
Não devem esquecer a atitude de mostrar.
A atitude de mostrar deve ser a base de todas as
atitudes.
Eis o exercício: antes de mostrarem como
Alguém comete traição, ou é tomado pelo ciúme
Ou conclui um negócio, lancem um olhar
À plateia, como se quisessem dizer:
Agora prestem atenção, agora ele trai, e o faz deste
modo.
Assim ele fica quando o ciúme o toma, assim ele age
Quando faz negócio. Desta maneira
O seu mostrar conservará a atitude de mostrar
De pôr a nu o já disposto, de concluir
De sempre prosseguir. Então mostram
Que o que mostram, toda noite mostram, já
mostraram muito
E a sua atuação ganha algo do fazer do tecelão, algo
174
44 Bertolt Brecht. “O Mostrar Tem de Ser Mostrado”, in: Bertolt Brecht – Poemas 1913-1956. São Paulo:
Ed. 34, 2000, p. 241.
de criação), portar-se como “se fora a personagem”, na rua
é preciso ter rapidez para responder a todo tipo de desafio,
é preciso saber tocar instrumentos, dançar vários tipos de
dança, cantar vários tipos de música, ter algum domínio de al-
gumas técnicas circenses, as intenções e a concretude do gesto
precisam ser mostradas e evidenciadas com clareza. Muitas
pessoas que assistem ao espetáculo são passantes, então, não
há tempo para apresentar aos poucos, de modo elegante e ma-
tizado as particularidades da personagem: texto falado e gesto
precisam estar em sintonia e se fazerem presentes. Rotular que
tal disposição é mecânica, apressada, pouco elaborada, esque-
mática... é desconhecer por completo a rede de complexidade
pressuposta pelo simples.
Penso que o trabalho de criação e construção da perso-
nagem/figura/tipo de obras que se apresentam em espaços
públicos, acaba, e por uma rede de questões, sendo afetado
e tendente a modificações pelos contextos (questões de na-
175
tureza histórico-social); pelas singularidades de recepção
(trata-se de uma forma estética com permeabilidades e po-
rosidades, em processo) e pelas questões territoriais. Não
quero, como é costume, apresentar a superioridade de uma
ou outra forma: as hegemônicas ou híbridas ou populares.
Trago à tona, lembro aquilo que se soma às complexidades
das artes da representação, ao se considerar o seu lócus de
existência, em manifestação.
Um espaço teatral consagrado: teatro e seu palco há his-
tórias. O antigo Teatro Brasileiro de Comédias abrigou obras
protagonizadas por Cacilda Becker, Cleyde Yáconis, Sérgio
Cardoso... no espaço da plateia, evidente, é incalculável o
número de pessoas que se emocionou, que “viveu” a perso-
nagem, que reviveu pela obra e suas personagens suas pró-
prias mazelas; mas, e é inequívoco, em um espaço público:
que congrega, colige e afasta contradições, muito além das
emoções silenciosas promove e manifesta as mais díspares e
distintas histórias coletivas. Nas ruas, como artérias vivas do
corpo vivo das cidades, foram vividas: repressões, violências,
perseguições, todo tipo de cena pungente, massacres, vio-
lências, medos reais... então, por menor que sejam as consi-
derações que se consiga estabelecer, de certo modo, as “im-
pressões sócio-histórico-territoriais” tendem a permanecer nas
contradições heterotópicas dos espaços públicos. Entretanto,
porque não é possível acabar aqui tal raciocínio, a despeito de
o espaço público ser e conter todo tipo de diferença, talvez se
possa afirmar (mesmo inventando uma palavra), que a hetero-
topia pública ganha dimensão “semelhantópica” nos espaços
invadidos, mas ressignificados por um jogo cuja participação é
essencial e visceralmente aberta e democrática.
Em países periféricos como o nosso, a história, no concer-
nente às questões geopolíticas, tem sido feita pelos mais dife-
renciados tipos de arrastão. Arrastões com a complacência e
176
45 Exageramento ou não, as duas obras são: o surpreendente Koyaanisqatsi (1982), um filme de Go-
dfrey Reggio, com música de Philip Glass, que apresenta inúmeras imagens de arquivos; e a essencial
Mahagonny, de Bertolt Brecht, fazendo alusão a uma cidade em que se pode fazer de tudo... mas o que
não pode é não ter dinheiro.
em cada sequência/fragmento, diferentes possibilidades de
criação, cujos tratamentos estilísticos são/podem ser diferen-
ciados: portanto, o resultado final apresenta distintas possi-
bilidades formais, e não apenas estéticas; mesmo havendo al-
gumas obras solo, pela própria impossibilidade compreendida
pela dinâmica social, os espaços representacionais – que não
existem ou transitam com paredes ou aparatos apartantes e
segregadores – podem ser “invadidos” por convidados ou
não. Em qualquer caso, os processos que decorrem de tais en-
contros demandam o trânsito com a improvisação e o trabalho
com jogos relacionais. Em cada episódio da narrativa espeta-
cular, normalmente, não há uma personagem principal, mas
uma exposição com mudança de funções protagônicas.
Como no teatro de caixa, e sem novidades, as obras
podem entreter ou divertir; propor reflexões, provocar – de
diferentes modos – quem assiste; denunciar todo tipo de re-
pressão, exploração, preconceito, injustiças, procedimentos
177
coercitivos, patrulhas... Pode assumir um ponto de vista ab-
solutamente determinado, liquidificar certezas; estupidificar
os poderosos (quase sempre!!); vingar-se dos opressores;
transitar com expedientes grotescos, bufonarias, escatoló-
gicos, corrosivos, ambiguidades, a partir de diversos trata-
mentos... Alguns dos coletivos aqui apontados, até transitam
com aquilo que se chama de politicamente incorreto, mas o
modo como tais ações são apresentadas não chocam e não
colocam mais lenha na fogueira ideológica dos preconceitos.
Com temas históricos, completamente inventados; assuntos
locais ou distantes; com teatralidade explicitada; com ati-
tudes: panfletárias, reiterantes, mas não sem embate e con-
trastes, de comportamentos naturalizados; rigorosamente
politizados e críticos. Nesse particular, há coletivos, aqui
apontados, que transitam com uma evidente politização da
forma estética. Estrutura adotada, seleção de conteúdos e
tratamentos para desenvolvimento da própria forma, inse-
rem-se no épico dialético; com visualidade fundamentada
em simplicidade poética ou por meio de espetacularidades
carnavalescas; adotando formas teatrais consagradas, e nor-
malmente misturadas em processo de coexistência estética
quanto à forma: expedientes do drama, farsa, melodrama,
contação de histórias, circo-teatro, épico, documentário, re-
vista, épico icônico, épico dialético, danças dramáticas. Real-
mente, na rua não existe a menor pretensão quanto a pensar
em qualquer tipo de pureza formal. Os processos de criação,
composicionais, de apresentação têm de ser híbridos...
mesmo quem nunca estudou estética e teoria teatral, história
do teatro... tem consciência e conhecimento de questões es-
truturantes da linguagem teatral.
Enfim, assim como nos espetáculos de caixa, tudo cabe nos
espetáculos de/na rua, em perspectiva popular. Entretanto, e
isso é inequívoco, além do já explicitado, a questão da aces-
178
46 Mesmo sem vislumbrar ser uma reflexão definitiva, produzi um texto em que trabalho alguns aspec-
tos dos pressupostos quanto à acessibilidade. Quem quiser conhecer, pode conferir: Alexandre Mate.
“Apontamentos Acerca do Conceito de Acessibilidade”, contido em O Teatro Adulto na Cidade de São Pau-
lo. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
rantes e de criação de um “novo teatro”47 os pontos de vista, e
hoje tudo tem sido trazido à tona, precisa inserir-se nas lutas
decoloniais. Com relação a tais “combates contra os descasos
estruturais”, a dramaturgia de texto e expedientes de dra-
maturgia de cena, tomando algumas questões ancestrais, em
perspectiva mítica (no concernente à origem, sobretudo), têm
sido construídas. Como tudo estava sedimentado por séculos,
certas apreensões, ainda naturalizadas, nem sempre são tão
facilmente apreensíveis: lugares de fala, lugares étnicos,
lugares ancestrais, lugares de gênero têm sido levados em
conta. Nesse particular, boa parte dos textos clássicos (muitos
maravilhosos e absolutamente importantes), pela mudança
de comportamento e mentalidade não conseguem atender às
necessidades dos processos de luta em jogo. Então, um novo
teatro está sendo gestado.
A pandemia mundial (decorrente da covid 19) pegou todo
mundo “de calças arriadas”. Os perigos da contaminação pa-
179
raram o mundo. Penso que não se possa pensar em êxodo para
as ruas, mas processos de deambulação, derivas, processionali-
dades, meetings, performances públicas deverão ser ampliadas.
Mas sabe-se, também, que tudo o que é mais confortável atrai
mais. Dificilmente, artistas de teatro das formas hegemônicas
buscarão, a não ser excepcionalmente, as vias públicas.
Em uma espécie de compasso de espera, as manifestações na
rua, em espetáculos de rua trazem/manifestam, na condição de
obra viva, permeável, interferível, exemplarmente, me parece,
o conceito de “arte da presença”, “arte da representação”, mas
encontram-se em uma imensa fila para serem entendidas, con-
sideradas, enfrentadas. De fato, e em razão de não ser uma
questão semântica – por enquanto –, porque já estou a fazê-lo
47 Tal determinação, considerando as práxis criativas do teatro que surge em âmbito mundial, e com
obras absolutamente antológicas e processos de criação estonteantes produzidos no Brasil
nos dois primeiros textos desta série, gostaria de questionar o
conceito de “presença”, nas formas hegemônicas de represen-
tação. Presença em apartamento, em distância não apenas ar-
quitetônica... Presenças de narrativas cênicas cujos temas e plu-
ralidade de vozes não são consideradas e/ou trazidas à baila.
Presenças de indivíduos em atos e exercícios de subjetividades...
Enfim, no terceiro texto a ser produzido, o objetivo fundamental
se centrará em evidenciar sujeitos e coletivos cujos trabalhos de
criação por meio da linguagem teatral – compreendendo pontos
de vista, temas expedientes e formas relacionais –, mesmo sem
reconhecer, muito devem às formas populares. De outro modo,
muitas das obras apresentadas em espaços públicos, que são ter-
ritórios universais, podem subverter em vários sentidos (sem as
segregações, sobretudo econômicas, o acesso aos pensamentos
e criações estéticas, fora dos interesses hegemônicos e distantes
das formas alienantes da cultura de massa.
Para finalizar, falem o que falar, pensem o que pensar,
180
Q
uero crer, e como apresentei em determinado mo-
mento, ser muito mais injusto não apresentar nada,
não tomar partido, não marcar de que lado se está.
Portanto, um processo de seleção é preferível a seleção ne-
nhuma: realmente, permanecer no silêncio/silenciamento
quanto a determinadas criações é confortável, mas extrema-
mente funesto. A relação aqui apresentada, é parcial e abso-
lutamente subjetiva, mas se caracteriza em esforço mnemôni-
181
co-documental. Entretanto, mesmo sem repetir espetáculos de
coletivos que são referência, é realmente inacreditável como
certas obras não façam parte dos chamados estudos do teatro
brasileiro, tanto em cursos técnicos como universitários: de
formação de atores e atrizes, de formação de profissionais da
área (graduação); cursos livres etc.
Então, apresento, mesmo sendo difícil! espetáculos que me
marcaram pela beleza formal, pela pertinência e tratamento
temático, pela relação com o público. Como qualquer outro
evento belo ou traumático, significativa e arrepiante, apre-
sento aqueles espetáculos que estão firmemente presentes em
minhas estruturas de memória emocional.
• A Farsa do Mestre Pierre Pathelin (Grupo Rosa dos Ventos
– Presidente Prudente/SP), assistido em diversos espaços/ci-
dades diferentes.
• A Saga do Menino Diamante – Uma Ópera Periférica (Dolores
Boca Aberta Mecatrônica de Artes em parceria com a
banda Nhocuné Soul – São Paulo/SP), assistido apenas uma
vez, mas cujas imagens são referência de trabalho épico
consistente a conciliar beleza estética, compromisso político
e ação comunitária.
• As Quatro Chaves (Teatro Ventoforte – São Paulo/SP), es-
petáculo essencial, assistido diversas vezes, em diferentes
espaços e cidades. O gosto do pão final, partilhado com todo
o público, até hoje, encanta meu organismo.
• Barafonda (Cia. São Jorge de Variedades – São Paulo), es-
petáculo – surpreendente – de/na rua assistido em estado de
encantamento duas vezes. Perto de 4 km de uma andança
estético-comunitária inesquecível.
• Blitz – o Império que Nunca Dorme (Trupe Olho da Rua –
Santos/SP), espetáculo assistido duas vezes, ao vivo e gravado.
Obra trabalhada com invencionices cômicas e deboche car-
navalizado essenciais, de um impacto impressionante.
182
183
ao espetáculo na praça da Sé de São Paulo, pela primeira
vez... Foi algo surpreendente! Realmente, a força popular
da obra e os seus tantos achados e expedientes das formas
populares de cultura veio com toda a sua potência naquele
espaço-central, absolutamente periférico e esquecido da
cidade.
• Ser TÂO Ser – Narrativas de Outra Margem, assisti ao espe-
táculo, algumas vezes em diversos espaços e cidades. A obra
me emociona até os ossos e se caracteriza em demonstração
cabal da beleza poética e emocional da linguagem popular,
tão desconhecida e desconsiderada pela gente “douta”!
• Concerto da Lona Preta (Trupe Lona Preta/SP), assisti ao
espetáculo em diversos espaços, tanto abertos como fe-
chados. A poética cômica do coletivo impressiona, e –
mas não impressionantemente – faz chorar. Sim, porque
a beleza pode promover esse estado, entretanto, não um
choro identificador com os sofrimentos e as mazelas de uma
personagem, mas com a beleza estética.
Para finalizar, que ao ser possível voltar a circular por todos
os espaços (públicos e privados), que se busque conhecer as
obras que, por diferentes motivos e a partir de diferenciadas
proposições estético-participativas, sejam apresentadas nas
veias ou rugas da cidade (lembrando que em latim rua tem
significado de ruga). Nessa perspectiva, e a partir de uma me-
táfora metonímia, que as marcas vitais da existência humana
(os seres humanos, todos os seres vivos: gente, bicho, planta,
vento, sol...) em relação de troca, no tempo das rugas públicas
possam ser conhecidas e tomadas sem as comparações com
outras formas. Que se tome e se conheça tudo aquilo (inclusive
do ponto de vista estético-representacional) sendo levado pela
“imensa avenida chamada Brasil” (como magistralmente es-
creveu Gonzaguinha).
Sim, Drummond, temos de concordar com você: “Havemos
184
de amanhecer!!”48
48 O “ponto final” desta reflexão aconteceu no domingo, 10/10/2021, às 11h20. Que leitores e lei-
toras no passado entendam e compreendam o terror político e pandêmico pelo qual passamos no
mundo, e particularmente no Brasil.
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texto
185
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