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ANDRÉ PAZ
SANDRA GAUDENZI
NARRATIVAS
E IMERSIVAS
INTERATIVAS
PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA,
LEI MUNICIPAL DE INCENTIVO À CULTURA - LEI DO ISS APRESENTAM
ALBERTO SARAIVA
COORDENADOR DA COLEÇÃO
ARTE E TECNOLOGIA
1ª EDIÇÃO
RIO DE JANEIRO, 2019
EDITORA COEDIÇÃO
PROJETO APOIO
PATROCÍNIO
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
B946
Bug: narrativas interativas e imersivas /
organização André Paz, Sandra Gaudenzi;
coordenador da coleção Alberto Saraiva. -
1. ed. - Rio de Janeiro: Automatica, 2019.
Inclui índice
“Formato bilíngue”
ISBN 978-85-64919-31-0
ISBN 978-85-64919-30-3
27/02/2019 01/03/2019
APRESENTAÇÃO
5
entrevistas a seguir, ao incorporar diversas vozes e visões, repre-
sentam mais uma tentativa de aprofundar o diálogo entre pesquisadores
e aqueles que criam e produzem as obras.
O primeiro capítulo aborda todo o cenário por trás dos proje-
tos de narrativas interativas e imersivas. André Paz e Mayra Jucá
apresentam um retrato da paisagem, para além das obras: produtores,
festivais, labs, centros de pesquisa. Mostram também como essas
obras acontecem em ecossistemas inovadores e apresentam a proposta
do Bug404 nesses termos. Sandra Gaudenzi complementa o cenário com
suas considerações sobre as mudanças de mentalidade necessárias ao
desenvolvimento de projetos, baseada em sua experiência como idea-
lizadora e coordenadora do !F Lab, entre outras fontes. Por fim, os
produtores Laure Cops e Wouter Vanmol, da NuNam, contam em entrevista
a experiência de participarem do mesmo LAB.
O capítulo Narrativas Interativas está focado no espectro de
obras chamadas de documentários interativos, webdocumentários, living
documentary ou documentário transmídia. Em “Além das interfaces:
conceitos e obras fundamentais de narrativas interativas”, André
Paz e Katia Augusta Maciel apresentam uma introdução ao campo de
pesquisa e aos conceitos básicos para se compreender e desenvolver
novos projetos. Já o artigo de Arnau Gifreu-Castells aborda o está-
gio de desenvolvimento do documentário interativo e transmídia em
diferentes lugares do mundo. Em seguida, em entrevista a Jéssica
Cruz, Marina Thomé e Marcia Mansur, do Estúdio Crua, diretoras do
documentário interativo e transmídia Som dos Sinos (2015), anali-
sam os bastidores deste projeto que utiliza as novas mídias para a
divulgação do patrimônio imaterial, representado pela tradição dos
toques de sinos das igrejas históricas de Minas Gerais, no Brasil.
O terceiro capítulo é dedicado às Narrativas Imersivas. O artigo
“Narrativas imersivas: imaginando múltiplas realidades”, de Julia
Salles e María Laura Ruggiero, apresenta os novos desafios que se
colocam no processo criativo na visão de quem produz. A entrevista
a seguir oferece uma viagem guiada pelo prestigioso estúdio de rea-
lidade virtual canadense Félix & Paul, que tem se destacado, por
exemplo, com obras como Through the Masks of Luzia e Dreams of O,
com o Cirque de Soleil. Para completar, Xavier de la Vega apresenta o
Okio Studio, pioneiro francês em realidade virtual, com obras como I
Philip e Altération, duas ficções científicas em realidade virtual.
Trabalhos de Félix & Paul e Okio estão entre as obras selecio-
nadas para a Mostra BUG, apresentadas no quarto capítulo. O evento
apresentou um panorama diverso dividido em sessões e projeções de
documentários interativos, narrativas mobile, vídeos 360, animações
em realidade virtual e instalação. Grande parte das obras do catálogo
é analisada ao longo do livro, ilustrando as questões aprofundadas
nos artigos e entrevistas. Ficam aqui como um convite ao leitor
para explorar esse universo de novas formas de se contar, provocar
e vivenciar histórias.
ANDRÉ PAZ E SANDRA GAUDENZI
ORGANIZADORES
APRESENTAÇÃO OI FUTURO
ROBERTO GUIMARÃES
GERENTE-EXECUTIVO DE CULTURA DO OI FUTURO
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VISÃO PANORÂMICA
ANDRÉ PAZ1
E MAYRA JUCÁ2
O CENÁRIO INOVADOR DAS NARRATIVAS INTERATIVAS E IMERSIVAS · ANDRÉ PAZ E MAYRA JUCÁ · 8-17 9
Buscamos assim dar uma visão geral do pano de surgiriam posteriormente abordando o mesmo tema
fundo do surgimento e realização dos proje- (a vida em arranha-céus pelo mundo) por novos
tos. Não se trata de um mapeamento exaustivo. ângulos. Os projetos subsequentes a Highrise
Estamos abordando uma profusão de obras de mantiveram seu aspecto inovador, seja em termos
difícil classificação e com processos de pro- de narrativa, método ou tecnologia, contribuindo
dução e criação diversos. Apenas localizamos para o desenvolvimento de novas fronteiras para
referências que possam servir aos leitores as narrativas interativas em geral.
que desejam se lançar como realizadores, que Outro projeto relevante deste período é
buscam inspiração e apoio na viabilização de Alma: Une Enfant de la Violence, realizado em 2012
seus projetos. pelo grupo francês ARTE e pela produtora Upian.
Trata-se de um documentário sobre a violência
de gangues urbanas na Guatemala, que está base-
UM CENÁRIO EM EBULIÇÃO ado em um aplicativo para dispositivos móveis.
Rider Spoke (2007)9, do coletivo Blast Theory,
O percurso histórico das narrativas interativas da Inglaterra, já havia utilizado um dispositivo
e imersivas digitais remete a tecnologias e móvel, mas para construir uma narrativa com
experimentações de décadas anteriores. Neste conjunto de relatos em áudio referencialmente
trabalho, entretanto, nos concentramos sobre geolocalizados, acessado por um passeio de bici-
os últimos dez anos, quando se constata a cleta. Sejam baseados em websites, aplicativos
ebulição de um cenário criativo e produtivo, ou mesmo instalações, a verdade é que a última
com alguns marcos já consolidados. década viu proliferarem narrativas interativas
No caso das narrativas interativas, tal- não ficcionais que foram sendo classificadas como
vez a referência fundamental seja Highrise, documentários interativos, i-docs, intercative
obra lançada em 2010 pela canadense Katerina factuals, documentário expandido, documentário
Cizek e posteriormente vencedora do Emmy. transmídia, gerando assim novas possíveis catego-
Esse documentário interativo, realizado pelo rias, todas ainda em processo de reconhecimento.
National Film Board (NFB), trata das questões Essas obras inauguraram campos de realiza-
sobre moradia em grandes edifícios ao redor ção e pesquisa com seus conceitos próprios, como
do mundo. Highrise na verdade é um conjunto é apresentado no artigo “Além das interfaces:
de projetos realizado ao longo de anos, que conceitos e obras fundamentais de narrativas
se tornou um case emblemático por diversas interativas”, de André Paz e Katia Augusta
razões: pela inovação estética, onde o per- Maciel, neste mesmo livro. Em 2011, por exemplo,
curso do espectador é conduzido não apenas em Bristol, na Inglaterra, Judith Aston, Jon
pelo texto ou pelo vídeo, mas pelo design Dovey e Sandra Gaudenzi organizaram o primeiro
criado a partir de colagens; por seu modelo i-docs, simpósio sobre narrativas interativas
de produção colaborativa, com profissionais vinculado ao projeto de pesquisa homônimo do
de 13 cidades do mundo criando conteúdo de Digital Cultures Research Center, da University
forma descentralizada para o documentário; of the West of England. A partir de 2012, Mandy
e pelo fato de se tornar uma obra em pro-
gresso permanente, com produções derivadas que
9 https://www.blasttheory.co.uk/projects/rider-spoke/
Rose passa a integrar o grupo e o evento exploração espacial da montanha onde o evento
se torna bienal, com mais quatro edições aconteceu, em Seattle, nos Estados Unidos. O
realizadas até 2018. O livro I-Docs: The texto traz informações sobre o fato, os vídeos
Evolving Practices of Interactive Documentary, acrescentam a visão subjetiva de personagens e
lançado em 2017 por três das quatro respon- a apresentação do cenário oferece possibilidades
sáveis pelo evento (Judith Aston, Sandra de interação como, por exemplo, a escolha do
Gaudenzi e Mandy Rose), se tornou referência ângulo para a visualização do local e posição
inconteste no campo. Em 2013, aconteceram a de cada esquiador no momento do desastre. Esse
defesa e difusão das teses de doutorado de formato simples se tornou uma referência que
Sandra Gaudenzi, The Living Documentary: from influenciou reportagens desde então. Um ano
representing reality to co-creating reality depois, em 2013, por exemplo, o The Guardian
in digital interactive documentary, e Arnau lança Firestorm11, também como scrollytelling,
Gifreu-Castells, El Documental Interactivo: desta vez mais centrada em conteúdo audiovisual,
evolución, caracterización y perspectivas de que também recebeu diversos prêmios.
desarrollo, que se tornaram referências teó- O jornalismo se tornou assim um mercado
ricas no campo então incipiente das narrativas para conteúdos digitais que adotam as novas
interativas. A esta altura, era crescente o linguagens e mídias. The Guardian e The New
interesse por estas obras digitais, que já York Times, entre outros, se destacam hoje como
não se adequavam aos gêneros e categorias criadores, compradores e difusores de obras,
tradicionais do audiovisual. seguindo uma tendência que já vinha em curso e
As narrativas interativas não ficcio- que vem sendo impulsionada pelo barateamento das
nais se expandiram por diferentes áreas, novas tecnologias.
mas o jornalismo teve um papel destacado na A partir de um trabalho amplo de pes-
disseminação mais ampla dessas novas possibi- quisa, o MIT Open Documentary Lab lançou, em
lidades. Em 2012, o lançamento da reportagem 2015, a publicação Mapping the Intersection
interativa Snow Fall , pelo The New York
10
of Two Cultures: Interactive Documentary and
Times, contribuiu para uma compreensão mais Digital Journalism (Mapeando a Interseção
concreta sobre como uma narrativa interativa Entre Duas Culturas: Documentário Interativo
poderia impactar o jornalismo convencional. e Jornalismo Digital), trazendo um panorama
Ainda centrada em um texto extenso (long- das instituições, modelos de produção, obras,
form), dividido em seis partes, a reportagem perfis de profissionais, principais apostas,
tinha um percurso narrativo conduzido pelo desafios e tensões. O estudo confirma a adesão
rolamento vertical da página (scroll), o que de grandes empresas jornalísticas, públicas e
gerou a expressão scrollytelling, e a edição privadas, a experimentações em formatos ino-
entremeada de elementos em diversas mídias vadores envolvendo diversas plataformas, com
(fotografia, vídeo, sound design, computação recursos não apenas interativos, como imersivos.
gráfica, simulações em 3D). A história de Parte do projeto Highrise, A Short History
uma avalanche de neve é contada a partir da
O CENÁRIO INOVADOR DAS NARRATIVAS INTERATIVAS E IMERSIVAS · ANDRÉ PAZ E MAYRA JUCÁ · 8-17 11
of The Highrise (2013)12 é um exemplo desta inédito de produção, comercialização e disponi-
aproximação entre o documentário interativo bilização em massa de dispositivos e conteúdos,
e o jornalismo digital. Realizado a partir que ampliaram as possibilidades de produção e
da colaboração entre o The New York Times recepção de narrativas imersivas através do uso
e o National Film Board, a obra utiliza de óculos adaptados para a visualização de vídeo
desde material histórico extraído do acervo em 360o ou de realidade virtual.
documental do jornal até conteúdo enviado O ano de 2015 foi marcado pelo início
pelo público, com o objetivo de investigar da comercialização dos óculos da Samsung Gear
as raízes históricas da vida em torres ver- (Oculus). Em 2016, o Oculus Rift passou a ser
ticais pelo mundo. comercializado, possibilitando uma experiência em
Em 2009, a renomada jornalista norte-a- realidade virtual autêntica. Grandes corporações
mericana Nonny De La Peña, com passagens pelas como Facebook, Google, Sony e Samsung passaram
revistas Newsweek e The Times, pela agência a investir na realidade virtual, entendida como
Associated Press e pelo The New York Times, se uma plataforma computacional com infinitas pos-
tornara pesquisadora sênior da Universidade sibilidades de aplicação na sociedade. A partir
da Califórnia do Sul e iniciara as primeiras daí, um grande número de narrativas imersivas
experiências com realidade virtual aplicadas começam a surgir. O universo de conteúdo para
ao jornalismo. No mesmo ano, por exemplo, ela essas aplicações é muito amplo, incluindo, por
já tinha lançado Gone Gitmo13, uma reportagem exemplo, materiais educativos ou games. Nosso
digital sobre a penitenciária de Guantánamo interesse se restringe, porém, a produções do
que conquista a capa da revista International gênero documentário ou do segmento artístico, como
Documentary Magazine. A obra interativa e aqueles selecionados pela Mostra BUG. O capítulo
imersiva utiliza o videogame Second Life para Narrativas Imersivas deste livro aborda um recorte
criar uma versão virtual da prisão, onde o dessas produções. Como exemplo, apontamos 6x9:
usuário pode ser encarcerado e até mesmo A virtual experience of solitary confinement e
sofrer sessões de tortura. The Party (2017) , ambos realizados pelo The
14
A disseminação do que chamamos neste Guardian, ilustrando a adoção desse formato por
livro de narrativas imersivas digitais acontece grandes empresas jornalísticas.
alguns anos depois das narrativas interativas, Emissoras de rádio e TV, especialmente as
quando a comercialização dos dispositivos se públicas BBC, na Inglaterra, RTVE, na Espanha,
intensifica, com custos menores acompanhados e a franco-germânica ARTE, também vêm investindo
de uma melhora significativa na experiência em produções de narrativa interativa e imersiva.
do usuário. Tecnologias de realidade virtual As três mencionadas, por exemplo, estabeleceram
existem há décadas, sua origem remete ao século departamentos específicos para a criação e teste
XIX (La Valle, 2017). As narrativas imersivas de conteúdos digitais. Algumas vem investindo em
e volumétricas também não são um fenômeno plataformas inovadoras, conquistando prêmios e se
recente. O que vivemos, entretanto, é um ciclo destacando como referências centrais na cadeia
produtiva de documentários tanto interativos
12 http://www.nytimes.com/projects/2013/high-rise/index.html
13 http://gonegitmo.blogspot.com/2009/03/on-cover-of- 14 www.theguardian.com/technology/2017/oct/07/the-party-a-virtual
documentary-magazine.html -experience-of-autism-360-video. Ver página 129.
como imersivos. Elas são responsáveis tam- e conferências, empresas produtoras, eventos
bém por um crescente número de co-produções e mercados catalisadores de novos projetos,
internacionais, como é o caso do docugame fundos financiadores de projetos, universidades
Prison Valley (2010)15, fruto de co-produção e centros de pesquisa.
entre o grupo ARTE e o National Film Board, O Canadá é talvez o país que mais se destaca
que recebeu diversos prêmios por sua aborda- atualmente como ‘ecossistema inovador’. O já
gem inovadora onde o espectador se cadastra, comentado National Film Board (NFB) é reconhe-
ganha uma identidade anônima e percorre o cido internacionalmente como um dos principais
conteúdo como se estivesse num jogo, podendo produtores e distribuidores de narrativas intera-
inclusive fazer comentários que ficam visí- tivas e imersivas. O Documentary Organization of
veis para outros visitantes. Também é o caso Canada (DOC) é uma instituição bastante atuante
de Altération (2017)16, narrativa imersiva no país. Desde 1994, em Toronto, o HotDocs Film
de ficção científica em realidade virtual Festival, um dos maiores eventos de exibição
produzida pelo grupo ARTE em parceria com o de documentários do mundo, anos depois veio a
estúdio Okio. concentrar as atrações com narrativas digitais
Embora as obras de narrativas interati- interativas e imersivas no programa HotDocX.
vas e imersivas configurem dois campos dis- Do DOC também surge o docSHIFT, que organiza o
tintos, quando observamos os seus bastidores, DocSHIFT Summit. Em Montreal, as universidades
notamos uma série de interseções. Situada e produtoras aparecem como um hub de pesquisas,
entre a produção audiovisual, o design e a interatividade e experimentação artística. O
programação, toda essa produção requer não estúdio Felix & Paul surge nesse ambiente e
apenas os recursos, técnicas e conhecimen- desponta como um dos produtores mais criativos
tos dessas áreas como precisam desenvolver e profícuos de narrativas em realidade virtual17,
novas ferramentas, processos e habilidades com obras como Through the Masks of Luzia18 e
técnicas, bem como referências estéticas. São Dreams of O19, ambas produzidas em 2017 com o
necessários ainda novos arranjos produtivos Cirque de Soleil. Na costa Oeste, por sua vez,
dentro da chamada ‘economia criativa’ que Vancouver se consolida como um pólo de tecnologia
viabilizem os projetos e redes propulsoras e inovação em realidade virtual e aumentada.
de inovação tecnológica e de experimentações Ao longo dos últimos anos, uma série de
estéticas. Por isso a produção tanto de nar- festivais contribuíram para a consolidação do
rativa interativa quanto imersiva, sobretudo cenário e evidenciaram o reconhecimento das
quando falamos dos documentários e animações obras interativas e imersivas. Na Europa, o IDFA
artísticas, se desenvolve inicialmente no DocLab, em Amsterdam, exibe e premia documentá-
contexto de alguns pólos criativos na Europa rios produzidos em novas mídias e plataformas
e América do Norte. Nesses lugares, emergiu com duas categorias de premiação: o DocLab Award
uma série de iniciativas relacionadas entre for Digital Storytelling e o Immersive Non-
si que constituem ecossistemas inovadores Fiction Award. Também oferece treinamentos para
mais férteis, como os principais festivais
17 Veja entrevista com um dos fundadores do
Studio Felix&Paul na página X
15 http://prisonvalley.arte.tv. Ver página 110. 18 https://www.felixandpaul.com/?projects/luzia. Ver página 127.
16 http://www.okio-studio.com/okio-project1-alteration.html 19 https://www.felixandpaul.com/?projects/o. Ver página 127.
O CENÁRIO INOVADOR DAS NARRATIVAS INTERATIVAS E IMERSIVAS · ANDRÉ PAZ E MAYRA JUCÁ · 8-17 13
a elaboração de projetos (DocLab Academy), realidade virtual surgem, não por acaso, nestes
sessões de pitching e possui uma linha de pólos. Upian (Paris); Okio Studio (Paris); Honkytonk
financiamento para trabalhos de natureza Films (Paris); Felix & Paul Studios (Montreal e Los
interativa, imersiva e outras formas de arte Angeles); Helios Design Labs (Toronto); Submarine
digital. Outros festivais como o Sheffield Channel (Amsterdã); Penrose Studios (San Francisco),
Doc/Fest (Inglaterra) ampliam ano a ano o estão entre as produtoras que vem se sobressaindo
destaque para mostras de realidade virtual neste cenário, desenvolvendo projetos autorais mas
e outros formatos interativos e imersivos. também obras sob encomenda para clientes da publi-
Até mesmo festivais internacionais de cinema cidade, do jornalismo, ONGs. Além desses players
tão prestigiosos e tradicionais como os de destacados, muitos produtores de pequeno e médio
Cannes (França) e Veneza (Itália) já possuem porte passaram a se dedicar a projetos interati-
programas específicos para obras em plata- vos e imersivos buscando financiamento a partir
formas inovadoras, com destaque para mostras de rodadas de pitchings em festivais ou atentos a
e categorias competitivas exclusivamente novas linhas de financiamento abertas por antigos
para obras em realidade virtual. Há ainda investidores. Ligado ao Tribeca Film Festival, o
os festivais que se tornaram referência para Tribeca Film Institute oferece, por exemplo, uma
documentários interativos como o Interdocs linha de financiamento, o TFI New Media Fund, que
Barcelona (Espanha), que atualmente possui apoia projetos de não-ficção sobre questões sociais
versões em países da América Latina como contemporâneas que usam o poder do storytelling e
Chile e Colômbia. da crossmedia em plataformas online, videogames e
Nos Estados Unidos, o Tribeca Film aplicativos móveis, entre outros formatos.
Festival foi pioneiro - os organizadores Para os novos produtores, os labs represen-
garantem que foi o primeiro - ao incluir uma tam mais uma oportunidade para o desenvolvimento
categoria exclusiva para obras em realidade de projetos. Trata-se de workshops e treinamentos
virtual (Tribeca Immersive) e a incorporar oferecidos em feiras e festivais, como os já
obras online e até mesmo games em seu programa. citados IDFA DocLab Academy e o Sundance New
Em 2018, o festival inovou ao abrir uma sala Frontier. Mas há também programas mais extensos
especial para exibição de obras imersivas, de acompanhamento e desenvolvimento de projetos
o Tribeca Cinema360. Não menos relevante, o como o Interactive Documentary Workshop (IDW),
Sundance Festival tem o programa New Frontier na Suiça, e o !FLAB20, na Inglaterra. O !FLAB,
Lab, que em 2013 já incorporava projetos de programa criado e coordenado por Sandra Gaudenzi,
realidade aumentada entre outras formas de consiste em uma série de encontros onde coaches
narrativas digitais interativas e imersivas. Na especializados oferecem mentoria aos parti-
mesma linha do IDFA DocLab Academy de Amsterdã, cipantes, através de dinâmicas e ferramentas
o New Frontier oferece treinamento e mentoria direcionadas, baseadas em uma metodologia21 que
para desenvolvimento de projetos, mantendo um parte do conceito de Desing Thinking. O programa
vínculo de médio prazo com os selecionados é aberto a realizadores provenientes de diversos
para ajudá-los a entrar no mercado.
20 www.iflab.net
Os primeiros estúdios especializados 21 Sandra Gaudenzi assina artigo e entrevista, nas páginas seguin-
em obras digitais interativas e imersivas em tes, sobre a metodologia do programa !F Lab e o processo criativo de
narrativas interativas.
campos e indústrias, com os mais variados fundador da produtora, é também responsável
backgrounds profissionais. pelo website webdocumentário.com.br, o primeiro
Neste universo de inovações constantes, dedicado a disseminar novas formas de se contar
não há um formato ou processo de produção que histórias no ambiente digital nesse sentido. Nos
funcione como um modelo a ser seguido. Cada anos seguintes, uma série de projetos surgiu. A
projeto deve conceber seu formato, suas estra- maioria deles esteve representada no programa da
tégias narrativas e seu processo de produção. Mostra BUG 2018. Se destaca o premiado projeto
Essa característica acentua ainda mais a transmídia Som dos Sinos (2014)24, do Estúdio
relevância dos laboratórios de desenvolvimento Crua, que se multiplica em um webdocumentário,
de projetos, mas também o papel dos centros um longa metragem documental, um aplicativo
de pesquisa e universidades na composição para dispositivos móveis, um mapeamento sonoro
dos ‘ecossistemas inovadores’. Mais uma vez e projeções itinerantes. O projeto se debruça
cabe destacar as iniciativas que vêm sendo sobre a tradição dos toques de sinos das igrejas
realizadas pelo Open Documentary Lab, do MIT históricas do estado de Minas Gerais, no Brasil.
(Massachusetts Institute of Technology), como Como acontece em toda América Latina, a
o já citado Docubase, eventos como o Virtually produção brasileira tem um perfil de engajamento
There, estudos como Mapping the Intersection social e muitas obras são financiadas com recur-
of Two Cultures: Interactive Documentary and sos de organizações da sociedade civil, fundações
Digital Journalism e o programa de residência privadas com programas de financiamento a cam-
artística do Instituto. panhas e projetos sociais, ou editais públicos
voltados para iniciativas de cunho social. É
o caso do próprio Som dos Sinos, da plataforma
CENÁRIO BRASIL: O BUG404 colaborativa Meu Rio Vale um Webdoc (2016)25, o
documentário interativo Ilha Grande: cada praia
Ao longo da última década a produção de nar- uma ilha; cada ilha um história (2016)26. O mesmo
rativas interativas e imersivas se estendeu a se observa em relação a narrativas imersivas do
outras regiões além da Europa e na América do gênero documentário, que começaram a surgir no
Norte. No segundo capítulo deste livro, Arnau Brasil a partir de 2016, ano em que foi lançado
Gifreu-Castells traz um mapeamento atualizado Rio de Lama: A Maior Tragédia Ambiental do
no artigo “Desenvolvimento atual do documen- Brasil (2016)27, da produtora Junglebee. Na mesma
tário interativo e transmídia nas Américas, linha, estão Fogo na Floresta (2017)28, da mesma
Europa e Austrália”. No Brasil, os primeiros produtora, e Amazônia Adentro (2017)29, ambos
documentários interativos surgiram no começo de 2017 e My Africa (2018)30, da ONG Conservação
da década. Filhos do Tremor – Crianças e seus
Direitos em um Haiti Devastado22, da produtora
24 www.somdossinos.com.br. Ver página 135, e entrevista com as
CrossContent, foi lançado em 2010, por exem- realizadoras no capítulo 2.
25 www.meuriovaleumwebdoc.com.br/. Ver página 117.
plo. Rio de Janeiro: Autorretrato (2011)23,
26 http://ilhagrandewebdoc.website/. Ver página 108.
da mesma produtora, é de 2011. Marcelo Bauer, 27 www.riodelama.com.br. Ver página 124.
28 https://youtu.be/Jv8nkw8hy-c
29 https://www.conservation.org/global/brasil/Pages/Amazonia-
22 http://www.webdocumentario.com.br/haiti/ Adentro.aspx
23 www.riodejaneiroautorretrato.com.br. Ver página 109. 30 www.conservacao.org.br/myafrica. Ver página 125.
O CENÁRIO INOVADOR DAS NARRATIVAS INTERATIVAS E IMERSIVAS · ANDRÉ PAZ E MAYRA JUCÁ · 8-17 15
Internacional, em coprodução com parceiros. Faz-se necessário não só
No final de 2017, um grupo de profis- um trabalho de comunicação
sionais apoiados por empresas se reunia para entre os principais atores
criar uma comunidade brasileira de empre- deste campo (realizadores,
endedores atuantes no mercado de X-Reality pesquisadores, críticos
(realidade virtual, realidade aumentada e e público), como de
realidade mista – conhecidos como XR). Em divulgação das referências
fevereiro de 2018 é formalizada a fundação internacionais, tanto
do XRBR, um Hub Brasileiro de X-Reality. A no sentido das obras,
iniciativa sem fins lucrativos visa conectar processos produtivos,
os elos da cadeia criativa e produtiva em procedimentos e estratégias,
um ambiente de troca de experiências entre como das discussões e
profissionais, empreendedores, pesquisadores, propostas estéticas.
gestores e financiadores. O HUB agrega todas Trata-se de construir um
as possíveis aplicações com XR, represen- terreno fértil que agregue
tando um universo ainda mais amplo do que o inovações tecnológicas e
coberto pela Mostra BUG e por este livro. experimentações estéticas
Mas aponta para um cenário auspicioso de e de linguagem, o que
desenvolvimento de um ‘ecossistema inova- requer a cooperação
dor’ para o campo das narrativas imersivas, entre realizadores e
conforme definimos aqui. centros de pesquisa,
Ainda que pareça dotada de um futuro base de dados, festivais
promissor, a produção de narrativas imersivas e canais de informação
no Brasil, hoje, não acompanha o volume e a respeito desse campo
sofisticação da produção dos pólos inter- incipiente e promissor.
nacionais. Mas, se olhamos para além das
(PAZ E SALLES, 2015: P. 157)
interfaces, notamos a riqueza de propostas
criativas, realizadas com limitados recursos
financeiros. O incipiente cenário brasileiro Este diagnóstico foi a motivação central para a
se baseia na iniciativa de empreendedores fundação do Bug40431, um portal e rede de diálogo
que trabalham com pequenas equipes e baixo e colaboração entre pesquisadores e realizadores
orçamento, sem um bastidor que impulsione os que visa contribuir para a disseminação das
projetos, como festivais, linhas de finan- narrativas interativas e imersivas no Brasil,
ciamento apropriadas, atuação de grandes sobretudo no sentido de apoiar a concepção,
empresas. O diagnóstico apresentado em 2015 desenvolvimento e produção de novos projetos. A
por André Paz e Julia Salles, em artigo sobre ideia é incentivar a articulação da Universidade
os documentários interativos no Brasil, segue com diferentes atores: artistas, produtores,
atual e se estende facilmente ao que chamamos gestores, público. O projeto partiu da divulgação
aqui de narrativas imersivas:
31 bug404.net
de conteúdo especializado em mídias sociais e de difusão de narrativas interativas e imersivas
website e articulou acadêmicos de diferentes no Brasil, com mais de 50 obras selecionadas,
universidades, produtores audiovisuais e incluindo uma conferência e diversos workshops
interessados oriundos de diversas áreas profis- na programação. Tanto a Mostra como este livro
sionais, que passam a colaborar com a produção estão organizados como uma introdução ao campo e
de conteúdo textual, eventos, e oportunidades uma contribuição para o fortalecimento de nosso
de parcerias técnicas ou científicas em torno ‘ecossistema’ para a realização de novos proje-
de documentários interativos, realidade vir- tos. Os autores aqui reunidos são parceiros na
tual, docugames, narrativas mobile. empreitada de, para além de documentar e mapear
Logo o Bug404 foi diversificando suas um cenário, contribuir para um diálogo amplo
ações com os mesmos princípios. Na Universidade entre os que nele atuam: curadores, pesquisado-
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), res, produtores, artistas e público.
o programa de extensão BugLab apoia encon-
tros de produtores e interessados em todo o
REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS
Brasil, realiza workshops e ações de divul-
gação. Pesquisadores e alunos criam o projeto
BugBrasil, um mapeamento inicial do campo das GAUDENZI, Sandra. (2013). The Living Documentary: from repre-
senting reality to co-creating reality in digital interactive
narrativas interativas e imersivas em esfera documentary. Tese de Doutorado, Goldsmiths College, University
of London.
nacional, e assumem as traduções para o por-
tuguês do Docubase, em colaboração com o MIT GIFREU-CASTELLS, Arnau. (2013). El Documental Interactivo:
evolución, caracterización y perspectivas de desarrollo.
Open Documentary Lab. A parceria com Arnau Barcelona: UOCPress
O CENÁRIO INOVADOR DAS NARRATIVAS INTERATIVAS E IMERSIVAS · ANDRÉ PAZ E MAYRA JUCÁ · 8-17 17
VISÃO PANORÂMICA
PENSANDO AS NARRATIVAS
INTERATIVAS ‘FORA DA
CAIXA’: UMA CONVERSA
COM SANDRA GAUDENZI
PENSANDO AS NARRATIVAS INTERATIVAS ‘FORA DA CAIXA’: UMA CONVERSA COM SANDRA GAUDENZI · POR ANDRÉ PAZ · 18-25 19
um empecilho. E é por isso que eu resolvi podiam se expressar, postar seu conteúdo.
mudar o termo e abrir para uma definição É quando há, de repente, um grande aumento
mais ampla, ‘interativo factual’ que é um de conteúdo que vem das pessoas que falam
termo que uso e acho que praticamente o de suas vidas, de suas realidades, e que
grupo todo do i-Docs, com o qual colaboro, estão efetivamente criando conteúdo digi-
está usando. tal factual.
É uma maneira de se colocar da forma mais Com o tempo a internet progrediu, deixamos
inclusiva possível, para que as pessoas para trás a era CD-ROMs - é claro que os
que trabalham no campo da arte, por exem- CD-ROMs e os DVDs foram os avós das nar-
plo, e que fazem não ficção com HoloLenses rativas interativas – e veio o momento das
e realidade virtual, também percebam que bandas largas (ou seja, a capacidade de ter
fazem um ‘interativo factual’. Então o bastante conteúdo de vídeo). Foi então que
resultado é abrir o campo, e a única dis- as revistas, os jornais, as emissoras, o
tinção aqui passa a ser se é puramente campo da educação, as universidades aber-
factual e se usa interatividade. Destaco tas, todo mundo começou a pensar: “espera
a interatividade, pois, a meu ver, se você aí, isso é um campo inteiramente novo,
posta a sua matéria jornalística ou docu- é aqui que podemos expor e oferecer às
mentário na internet, no YouTube, você pessoas conteúdo de não-ficção. E, já que
está definitivamente criando uma narra- permite interatividade, por que não usar?”
tiva digital, mas não interativa. Para
No momento em que os grandes jornais como
que seja interativa você precisa dotar o
The Guardian e o The New York Times, diga-
usuário de alguma capacidade de agência,
mos, há uns 10 anos, começaram a pensar
e é a partir deste ponto que eu acredito
que o futuro do jornalismo não está mais
que nasce um produto diferente.
no papel, mas está online, passaram a ter
uma escolha: queremos postar apenas maté-
rias lineares que são baseadas em texto
(porque a internet é apenas um modo de
distribuí-las), ou queremos usar o que
COMO VOCÊ AVALIA, HISTORICAMENTE,
O SURGIMENTO DESTE NOVO CAMPO? o meio possibilita, ou seja, permitir
movimentos para adiante e para trás, um
loop que se retroalimenta, e inclui a par-
O surgimento do campo interativo factual
ticipação dos usuários na narrativa? E,
se associa estreitamente ao surgimento da
claramente, de forma bem gradual, houve
internet. Foi quando a internet 2.0 per-
uma abertura para a segunda opção, que é
mitiu às pessoas criarem conteúdos par-
de usar o meio no seu máximo potencial.
ticipativos, colaborativos e individuais,
entre o ano 2000 e 2005, nos primórdios Então eu acho que é uma evolução gradual.
da Wikipedia e do YouTube. Ali nascia E que a internet, quando começa, há uns 15
a ideia de que a internet poderia ser anos, na forma como entendemos a internet
um lugar de liberdade, onde as pessoas hoje - como um instrumento participativo
- foi o início da narrativa interativa. E levou ao desenvolvimento do Oculus Rift,
cada vez mais a indústria compreendeu que que então se tornou repentinamente uma
esta era a nova forma de ser. Na verdade, proposta viável para o mercado.
nos últimos cinco anos foi quando real-
Agora só o que se ouve, nos últimos três
mente começamos a ver grandes projetos.
anos, são pessoas pensando “oh, agora que
Com as televisões entrando nesse campo, e
temos uma tecnologia nova, a bom preço,
até organismos de financiamento de cinema
vão precisar de conteúdo, então vamos nos
começando a criar, a nível nacional, ao
lançar nesta nova coisa e vamos produ-
redor do mundo, alguns órgãos de finan-
zir conteúdo, quer de ficção ou não-fic-
ciamento do cinema interativo, ou de jogos
ção, factual, quer para educação, para
interativos, para criar mais deste tipo
pornografia, para treinamento”. Então,
de conteúdo.
sim, há um boom, e sim, é uma tendência
significativa.
existe há pelo menos 25 anos, aqueles sões. Então vamos ver o que acontecerá
que acompanham o trabalho de Jaron Lanier com a realidade virtual. Acho que, fre-
sabem que nos anos 80 houve um grande quentemente, é mais uma questão das rea-
sível, mas o problema era o seu custo. de mercados do que sobre como poderíamos
O que realmente mudou essa equação foi usá-la (a realidade virtual) do ponto de
Nonny De La Peña. Parte de sua pesquisa está pronta para se baratear, e tomar a
PENSANDO AS NARRATIVAS INTERATIVAS ‘FORA DA CAIXA’: UMA CONVERSA COM SANDRA GAUDENZI · POR ANDRÉ PAZ · 18-25 21
direção de criar um mercado de massa. Acho que exatamente a mesma coisa ocorre
Não acredito que a realidade virtual se com os webdocs, os webdocumentários. O
torne a rainha deste segmento de mercado, momento em que os webdocs eram novos, no
acho que será apenas de uma pequena parte sentido em que ninguém tinha visto nada
dele. Acredito que, no longo prazo, novos parecido antes, provavelmente já passou.
desenvolvimentos poderão surgir. Ainda
Eu diria que há sete anos, por volta do ano
precisamos ver muitos novos dispositivos
de 2010, havia talvez uns sete, e entre
que serão talvez mais próximos do que o
2010 e 2014 surgiram muitos webdocs. Isso
Google estava tentando fazer com o Google
fica evidente porque as emissoras estavam
glasses. Sim, nos próximos 10 anos isso
investindo neles, sabemos porque os jor-
vai se desenvolver e haverá definitiva-
nais faziam uma boa quantidade deles, e
mente um mercado, mas não creio que será
agora não falamos mais deles. Mas não quer
o único mercado.
dizer que deixaram de existir, significa
Tal como as plataformas móveis, os celu- apenas que eles não são mais uma novidade.
lares, tem tamanha importância na nossa O nosso sistema de mídia agora precisa
vida, pois é neles que as pessoas real- falar da realidade virtual porque ele
mente consomem seu conteúdo agora, acre- precisa alimentar a ideia da inovação.
dito que nos próximos cinco anos ainda Mas, para mim, isso também quer dizer que
teremos muitas novas plataformas, e a no meio tempo os webdocs, o jornalismo
RV (realidade virtual) e RA (realidade de formato longo (longform) que usa a
aumentada) e RM (realidade mista) e RX internet para criar matérias mais longas
(realidade estendida), seja qual nome se e ricas em mídias, com vídeo etc., hoje
dê a elas, ficarão apenas para consumido- estão se tornando a norma. E é desta forma
res pioneiros. que consumimos muito de nossas notícias,
quando usamos os aplicativos das grandes
emissoras.
Um aspecto que eu adoro da história das o tempo todo. Qualquer website que seja
inovações é que as coisas são novas até que um pouquinho mais empolgante e compli-
as pessoas se acostumem a elas, e então, cado, que não seja apenas de texto, que
esses produtos tiveram uma vida como ino- Simplesmente não usamos mais esse termo.
TOMANDO UMA PERSPECTIVA MAIS televisão na nossa casa está morta. O que
AMPLA, QUAIS SÃO OS MAIORES não quer dizer que eles não consumam con-
DESAFIOS PARA O DESENVOLVIMENTO teúdo. Mas eles consomem conteúdo online e
DO CAMPO DO ‘INTERATIVO FACTUAL’?
eles o consomem com uma lógica diferente.
As emissoras precisam saber disso, e se
O desenvolvimento do campo do interativo alguém quer que essa garotada se envolva
factual basicamente se resume à quanti- com o mundo, que leiam as notícias, que
dade de dinheiro que é investida nele. se engajem em qualquer movimento, você
Acredito que as grandes instituições, precisa entender de que modo eles querem
sejam elas as emissoras, os jornais, edu- consumir informação e narrativas.
cadores, universidades, os investimentos
na inovação a nível nacional, têm seu Então, eu acredito que estamos em um
papel, e será necessário investir nisso momento interessante, para que o campo se
vendo é que há muitos grandes atores que massivos e as pessoas estão indo nesta
estão resistindo a assumir esse papel, e direção, mas o que vemos é uma espécie
é normal, é assim que acontece. Se você é de resistência, que ao meu ver vai ser
know how sobre contar histórias de maneira pessoas e as grandes instituições come-
linear, e era aquele o seu diferencial, çarem a perder a sua audiência, é nesse
o fato de que você precisa repentinamente momento que elas vão se ligar, porque
mudar sua forma de contar histórias é na vai ser um choque de realidade: ou nos
PENSANDO AS NARRATIVAS INTERATIVAS ‘FORA DA CAIXA’: UMA CONVERSA COM SANDRA GAUDENZI · POR ANDRÉ PAZ · 18-25 23
coisa que gostaria de dizer é que acredito
que o mundo interativo tem muito ainda
de indústria artesanal. Ou seja, você
pode realmente cozinhar com seus próprios
ingredientes, você não precisa sempre
fazer uma refeição de master chef, você
pode criar uma refeição bastante empol-
gante, associando elementos que ninguém
nem iria pensar em juntar.
5 https://opensource.org/
VISÃO PANORÂMICA
DO LINEAR AO DIGITAL
INTERATIVO: UMA TRANSIÇÃO
QUE DEMANDA MIND SHIFTS
SANDRA GAUDENZI1
DO LINEAR AO DIGITAL INTERATIVO: UMA TRANSIÇÃO QUE DEMANDA MIND SHIFTS · POR SANDRA GAUDENZI · 26-35 27
interpretação final. Ao fazer com elas, e como elas moldam o relaciona-
para unir muitas vozes nosso mundo compartilhado. Podemos fazer uso
DO LINEAR AO DIGITAL INTERATIVO: UMA TRANSIÇÃO QUE DEMANDA MIND SHIFTS · POR SANDRA GAUDENZI · 26-35 29
Chamamos esse processo de WHAT IF IT, IMAGEM 2. CARDS E CANVASES DO PROCESSO
WHAT IF IT (HTTP://WWW.IFLAB.NET/)
já que ele começa com uma pergunta (O QUÊ
é o meu conceito?) e depois pede que você
Interaja com o seu público (logo o “I”),
depois Formule seu desafio e impacto (“F”),
Idealize, através da criação de protótipos
(logo o “I”) e finalmente Teste (”T”) antes
de começar de novo.
objetivo (ou impacto) claro, trabalhar com uma baixar o The !F Lab Field Guide to Interactive
equipe multidisciplinar desde o primeiro dia, Storytelling Ideation2 e usá-lo, também gostaria
e adotar uma abordagem do processo de produção de lembrá-lo que nenhuma metodologia é imutável,
que é iterativa (baseada na repetição, análise e que foi concebida para o auxiliar, não para
e aperfeiçoamento de ações) e centrada no usu- criar limites. Por favor, experimente o método,
ário. Para ter uma ideia, veja o resumo de todo e mude-o de acordo com suas necessidades e
o material de apoio que usamos para ajudar os ambiente profissional. Eu fiz a mesma coisa.
DO LINEAR AO DIGITAL INTERATIVO: UMA TRANSIÇÃO QUE DEMANDA MIND SHIFTS · POR SANDRA GAUDENZI · 26-35 31
significativas e ver o resultado das decisões - aprendemos essa lição com os participantes do !F
e escolhas” (Murray, 1997:126). Lab que vinham do campo audiovisual. Eles estavam
Se os usuários não estão curiosos para acostumados a começar com sua própria ideia e
explorar as opções que você criou para eles, depois entrar na produção, uma vez que eles rece-
então você não conseguiu envolvê-los. Todos já beram a aprovação de seu projeto. Convencê-los de
assistimos programas de TV que não nos inte- que criar empatia com a plateia desde o início não
ressaram por pura preguiça e inércia. Em uma é só a melhor maneira de desafiar seus próprios
mídia interativa, porém, a história não vai preconceitos, mas também é um passo fundamental
adiante se nós não interagimos com ela, então… para deixar a plateia interessada e, em última
Fim da história. Por essa razão específica, instância, para gerar ideias interessantes e ‘fora
você deveria ter uma mentalidade em que você da caixa’, demandou uma atitude tente-você-mesmo.
projeta com a sua audiência, e não para sua
audiência. Isso é o éthos fundamental do ‘User
Centered Design’ (UCD) (design centrado no usu- 2. FAÇA SUA PESQUISA
ário), uma vertente do ‘Design Thinking’, que
começa o design de qualquer produto, serviço Muitas pessoas desejam fazer uma narrativa
e experiência ao estudar e se envolver com seu interativa porque acreditam que assim poderiam
usuário final. Para Donald Norman, o primeiro evitar redes de distribuição fechadas e alcançar
designer a usar o termo, “o design centrado no uma plateia maior. É uma expectativa falsa.
usuário enfatiza que o propósito do sistema é O seu projeto pode ser online, mas se ninguém
servir o usuário, não é usar tecnologia espe- sabe dele, você efetivamente não tem plateia.
cífica, não é para ser um programa elegante” A mudança de mentalidade necessária nesse caso
(Norman, 1998:61). é a seguinte: não espere que a audiência venha
Se você olhar cuidadosamente o processo até você, é o seu trabalho atraí-la.
do WHAT IF IT (imagem 1), você verá que aco- Garantir uma plateia frequentemente
modamos as cinco fases do UCD às necessidades significa ter um orçamento promocional para
dos narradores interativos. A segunda fase é gastar, mas também significa que você vai
interagir com o seu usuário, o que significa: precisar ter uma estratégia de lançamento e
teste o seu conceito entrevistando seu público algumas parcerias firmes. Enquanto encora-
alvo, aprenda quais plataformas eles usam e o jamos o leitor a procurar parceiros desde o
que eles sabem sobre o tema, antes de começar início, nós também sabemos que, se você não
o seu processo de criação de ideias. Somente tem algo para mostrar, é difícil de envolvê-
depois de ter feito isso, você pode começar a -los. É uma situação de ovo-e-galinha na qual
trabalhar em um protótipo inicial do seu con- é necessário ter um protótipo para explicar
ceito, e que você irá testar, de novo, com seu sua ideia, mas você também precisa de ajuda
público alvo. Esse é o começo de um processo para criar o seu primeiro protótipo. Nossa
iterativo duplo entre você e a sua audiência. sugestão é que você trabalhe em pequenos
Por mais estranho que possa parecer, essa passos, onde o desenvolvimento da história e
pequena mudança de mentalidade tem sido a mais pesquisa de parceiros caminhem juntos. Quanto
difícil, e provavelmente a mais importante mais você progredir com sua ideia, mais você
poderá mostrá-la para pessoas diferentes conteúdo, design e programação, ainda é diverso
e pedir ajuda. demais para uma só pessoa conseguir fazer tudo
Para que ganhe credibilidade nesse com qualidade. Então aceite a seguinte mudança
equilíbrio delicado, é importante que esteja de pensamento: você precisa de ajuda, e você
preparado, e exerça absoluto domínio do seu precisa de ajuda de pessoas que vêm de indústrias
‘jogo’. Nunca subestime a importância de diferentes, pois elas estarão acostumadas a
conferir outros tratamentos do tema tanto nas processos e linguagens completamente diferentes
narrativas lineares quanto nas interativas. quando trabalham em grupos.
Não há como enfatizar o bastante a impor-
• Tenha uma série de pontos comparativos tância de se criar uma equipe multidisciplinar
entre o que você quer fazer e o que desde o primeiro dia. Pode ser difícil no iní-
outros já fizeram. cio, mas vai valer a pena quando você perceber
• Por que a interatividade é essencial que elas criam ideias e soluções que você não
para envolver a sua plateia de escolha? poderia nem imaginar. Para resolver o problema
• Seja consciente de tendências que já de ter abordagens diferentes no trabalho, nós
existem em narrativas interativas. sugerimos que você escolha uma série de passos
Quando a ‘próxima tecnologia’ começar que vão te levar à produção de um primeiro pro-
a ficar para trás, você vai precisar tótipo (também conhecido como o Menor Produto
justificar porque a adotou. Viável - “Minimum Viable Product”) e se com-
• Você também deve ser capaz de inserir prometer com ele, como equipe. Esse primeiro
seu projeto nos estilos diferentes de protótipo, uma vez testado com sua plateia,
narrativas interativas que já existem. será seu melhor aliado na busca de futuros
Afinal, você é o especialista… ou não? financiadores e parceiros.
3 http://docubase.mit.edu
a: por que usar sua única voz para representar
4 http://www.doclab.org/category/projects/ outros? Se você já incorporou um certo nível de
5 http://i-docs.org/
DO LINEAR AO DIGITAL INTERATIVO: UMA TRANSIÇÃO QUE DEMANDA MIND SHIFTS · POR SANDRA GAUDENZI · 26-35 33
co-autoria com os seus usuários e sua equipe comunidade e ter um impacto social, e a pressão
multidisciplinar, por que não estender aos social pode aumentar muito e criar um impacto
seus personagens? a nível político. O impacto, portanto, possui
O recém criado Estúdio de Co-Criação do múltiplas camadas e não é linear (é sistêmico).
MIT (MIT Co-Creation Studio) enfatiza que
6
Isso nos leva para a nossa quinta mudança de
“A co-criação oferece alternativas para a mentalidade: pense no impacto como um processo
visão de autor único. É uma constelação de não-linear com vários pontos de entrada. O seu
métodos de mídia e enquadramentos. Projetos trabalho é definir estrategicamente o quão
se originam de processos, evoluem de dentro longe você quer que o seu projeto influencie,
de comunidades e com pessoas, ao invés de e projetar pontos de ação tanto em sua história
serem feitos para ou sobre elas”. Visite como em sua campanha de promoção para acionar
o site deles, e você encontrará ideias e um movimento de impacto. Você também precisa
recursos para ajudar a elaborar projetos estar ciente de que não lidamos com uma ciência
nos quais o impacto vem de uma colaboração definida, as mídias de rede são dominadas por
entre o design do projeto e as comunidades lógicas relacionais e não-causais, de forma que
a que se destina. você só pode dançar conforme a música, fazendo
ajustes constantes enquanto escuta as reações
que você está gerando.
5. TENHA UMA ESTRATÉGIA DE IMPACTO CLARA
Pense no impacto como a mudança que você quer 6. GARANTA A COERÊNCIA DO SEU PROJETO
que o usuário viva durante a experiência do
seu projeto. Veja isso como uma lista de Finalmente, como parte do processo iterativo
‘antes’ e ‘depois’. Se você listar mudanças de criação, volte para os fundamentos do seu
específicas que você quer que aconteçam projeto: sua plataforma escolhida, plateias,
(que o usuário se conscientize ao aprender impactos, parceiros e recursos. Se você deseja
sobre o seu tema, sinta uma certa emoção, aumentar suas chances de sair do estágio da demo,
e faça algo como assinar uma petição ou ou do protótipo, para uma produção completa, você
outros) você precisa fazer o design do seu deve ter certeza de que esses cinco pontos estão
projeto nessa direção. A jornada de usuário alinhados, porque isso é o que vai constituir
precisa levar a plateia onde você quer que sua proposta, ou o tratamento do projeto.
ela vá - veja a tela de impacto (impact Notamos através dos anos do !F Lab que,
canvas) do usuário no processo WHAT IF IT. frequentemente, os participantes tinham respostas
Agora se distancie do seu usuário e veja claras para cada um dos cinco pilares de seus
o panorama geral: impacto é como uma cebola, projetos, mas eles não estavam necessariamente
ele possui camadas diferentes. No centro relacionando-as. Por exemplo, víamos histó-
você tem o (usuário) indivíduo. Porém, seus rias destinadas a um público de adolescentes
usuários podem ter um impacto dentro de sua usando uma plataforma que o público não usava.
Ideias para projetos tecnicamente complexos
de transmídia, que exigiam vultuosos recursos
6 https://cocreationstudio.mit.edu/
financeiros, liderados por pessoas sem con- Uma vez que você encontra a resposta
tatos na indústria. Ou até mesmo projetos para essa pergunta essencial, você então deve
sobre tópicos que não tinham atrativos para decidir se quer seguir o seu instinto criativo
o público selecionado, mas que o autor queria ou prefere ter a orientação de uma metodologia
continuar por causa de seu próprio interesse de ideação, como o processo WHAT IF IT. Essa
neles. Todos nós nos apaixonamos por nos- escolha é completamente sua. Seja qual for a
sas histórias, mas isso não é suficiente se escolha que você faça, provavelmente, irá notar
queremos que elas sejam ouvidas/assistidas. que não se pode evitar algumas mudanças de
Em um ambiente não-linear em rede como é o mentalidade que estão listadas neste artigo.
digital, ainda é importante, para levar um Essas mudanças são mais ou menos inevitáveis
projeto adiante, que a nossa intenção seja porque elas são parte da jornada que nos leva
coerente. Isso nos leva à nossa última, e, a avaliar, e algumas vezes a descobrir, o que
provavelmente, mais contra-intuitiva mudança queremos da esfera digital e que papel quere-
de mentalidade de todas: ser coerente não mos que nossas histórias tenham ao forjá-la.
é ter previsto todas as causas que geram Bem-vindo à mudança de mentalidade digital.
algum efeito, mas ter uma visão sistêmica
onde forças diferentes podem expandir rumo
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
à direção desejada. Pense em sua narrativa
digital como uma forma viva que age no mundo BRUNER, Jerome (1986) Actual Minds, Possible Worlds.
Cambridge: Harvard University Press.
por múltiplas forças. Seu trabalho é dire-
cioná-la, e não fingir que a controla. ECO, Umberto (1962) Opera Aperta, Milano: Bompiani Editore.
Para concluir, embarcar na criação de
GAUDENZI, Sandra (2019) The !F Lab Field Guide to Interactive
narrativas interativas e inovadoras vai muito Storytelling Ideation. http://www.iflab.net/wp-content/
uploads/2019/01/The-F-Lab-Field-Guide.pdf
além de aprender novas habilidades tecnoló-
gicas. É uma afirmação política e ideológica MC ADAMS, Dan P. (1993) The Stories we Live by. London: The
Guilford Press.
dentro do mundo digital, no qual você se
posiciona ao enquadrar e forjar o discurso MURRAY, Janet (1997) Hamlet on the Holodeck. The Free Press.
digital, o que ele é, o que ele será. As
NORMAN, Donald (1998) User Centered System Design. New
narrativas interativas não são somente uma Jersey: CRC Press.
maneira de ter livre distribuição na inter-
Thalhofer, Florian, Judith Aston, and Stefano Odorico (2018)
net e de fazer nossas histórias globais, mas “A Few Questions for Florian Thalhofer.” Alphaville: Journal
of Film and Screen Media, no. 15, Summer 2018, pp. 106– 112.
também são uma forma de pensar sobre o mundo www.alphavillejournal.com/Issue15/InterviewThalhofer.pdf
e sobre os relacionamentos que nós queremos
ZIMMERMANN, Patricia (2018) “Thirty Speculations Toward a
construir nele. As narrativas interativas Polyphonic Model for New Media Documentary.” Alphaville:
Journal of Film and Screen Media, no. 15, Summer 2018, pp.
criam mais do que contam. Elas são ferramen- 9–15. www.alphavillejournal.com/Issue15/ArticleZimmerman.pdf
tas. Elas são uma forma de posicionamento.
É por isso que perguntar a si mesmo “Por que
essa história deveria ser interativa?”, desde
o primeiro dia, é essencial. A interatividade
é uma escolha autoral.
DO LINEAR AO DIGITAL INTERATIVO: UMA TRANSIÇÃO QUE DEMANDA MIND SHIFTS · POR SANDRA GAUDENZI · 26-35 35
VISÃO PANORÂMICA
DE CONTADORES A
FACILITADORES DE
HISTÓRIAS: UMA ENTREVISTA
COM LAURECOPS &
WOUTER VANMOL, DA NUNAM
simples no formato de documentário. Era uma conta é pessoal, mas essa foi (e talvez
história grande demais para se encaixar. A ainda seja) a história mais pessoal que
engajadas, queria gerar impacto, e estava se 18 anos Laure perdeu o pai, quando ele se
tela. No final, o !F Lab fez mais do que aju- No meio tempo, sua melhor amiga Saura tam-
dá-los com suas ideias, mudando por completo bém decidiu tirar a própria vida.
seus modos de pensar sobre seus papéis como LAURE COPS (LC): Talvez seja uma ousadia dizer
contadores de histórias. O resultado foi a isso, mas eu me tornei uma pessoa mais forte,
mudança de perfil da empresa, que passou mais rica. Me custou sangue, suor e lágrimas.
da produção de histórias lineares para “um Em algum ponto deste caminho decidi usar todo
estúdio criativo que molda histórias para aquele horror como a minha força. Porque ao
cinema, fotografia, palavras, instalações, e mesmo tempo em que cada suicídio é uma tragédia
projetos interativos para clientes, plateias para as pessoas que são forçadas a lidar com
e nós mesmos”. ele, os resultados para cada um podem ser muito
Mudar de uma mentalidade linear para diferentes. Algumas pessoas que sofrem o luto
uma perspectiva interativa e de 360o signi- do suicídio entram em espirais descendentes e
ficou mudar a forma de trabalhar, aprender desenvolvem pensamentos suicidas elas mesmas
novas ferramentas e, principalmente, olhar (20 a 30 por cento dos que perdem um ente
para o mundo de outro modo: menos no papel querido para o suicídio), enquanto outras,
de observadores e mais como facilitadores que conseguem passar pelo processo do luto de
de mudança. Esta entrevista é uma tentativa maneira a olhar adiante, podem encontrar novos
resultados, e um sentido, um entendimento mais
2 https://www.nunam.be/
profundo da vida (e da morte).
DE CONTADORES A FACILITADORES DE HISTÓRIA: UMA ENTREVISTA COM LAURE COPS &... · POR SANDRA GAUDENZI · 36-43 37
WV: Desde o princípio sabíamos que The histórias digitais ou interativas. Os pro-
Golden Forest 3
(A Floresta Dourada) era fessores na nossa escola vinham de ambien-
um projeto sobre o período pós suicídio. tes offline, a maior parte tinha pouco
Como é esse processo complexo de luto? conhecimento sobre como o jornalismo estava
Como se leva adiante a nossa vida quando ou deveria estar se adaptando à internet.
perdemos um ente querido? Como se volta Mas é claro que eu sabia que havia algo
a abraçar a vida? Provavelmente intuímos se desenvolvendo. Ao trabalhar como jor-
que deveria ser algo interativo, mas foi nalista para um meio online, fui atraído
apenas no primeiro workshop do qual par- por projetos estimulantes que surgiam, que
ticipamos, o !F Lab Storybooster 2015, exploravam novos caminhos.
que conseguimos traduzir nossos pensa-
LC: Mais adiante começamos nossa própria
mentos iniciais em razões concretas.
exploração. Fizemos experiências com sof-
LC: Naquele momento sabíamos que que- tware como Klynt e Racontr e fizemos um
ríamos que nosso projeto fosse anônimo trabalho de longform com Pageflow4 sobre
e ad hoc. A Floresta Dourada deveria o abastecimento de energia da Europa, que
ser um guia para ajudar as pessoas a misturava textos, fotografia e vídeo. A
lidarem com seu luto de forma a olhar esta altura já sabíamos que existia reali-
para frente. O projeto precisou dar dade virtual, realidade aumentada, mas não
oportunidade ao usuário de percorrer o sabíamos como chegar até essa mídia e como
filme no seu próprio ritmo. O usuário produzir conteúdo para ela. Para A Floresta
precisava poder dirigir a história em Dourada queríamos que o projeto fosse
direção aos sentimentos e situações com baseado na internet porque nos parecia que
as quais estava lidando no momento. E, desta forma chegaríamos ao maior número de
para fazer isso, o formato interativo espectadores possível. Não era por vaidade,
era a única solução. mas era porque sabemos que muitas pessoas
que perdem membros da família por suicídio
nunca tiveram oportunidade de encontrar
ajuda em suas comunidades.
VOCÊ ME DISSE QUE O !F LAB TINHA ‘antigas possibilidades’ e que era o alvo-
SIDO UMA EXPERIÊNCIA QUE MUDOU recer de uma nova era de contação de histó-
A SUA VIDA. PODERIA EXPLICAR? rias. E afinal é isso que se persegue com
maior interesse: a sensação da exploração.
LC: [O conceito] “A interface é parte
LC: Estranhamente, entrar nesta busca aca-
da experiência” foi um estalo. O !F Lab
bou nos trazendo de volta para casa. Ao
desencadeou uma espécie de ‘amadure-
explorar essas novas mídias, descobrimos
cimento profissional’. Foi o primeiro
o poder da história. E mais ainda, a arte
lugar onde questionamos o meio. Onde
da história. A beleza do trabalho. Nos fez
aprendemos que ‘sua tela não é apenas uma
pensar em como estávamos usando histórias
tela’, é mais do que o espaço em branco.
nos nossos projetos audiovisuais de jorna-
Descobrimos que cada meio tem seus desa-
lismo até então.
fios e possibilidades. Possibilidades
de chegar ao usuário. Possibilidades WV: !FLab mudou nossas perspectivas. Não
para chegar ao seu objetivo como um apenas aprendemos a mudar de visão, mas
criador, mas também possibilidades no também aprendemos o fato fundamental que
campo da pura contação de histórias. é que há diferentes perspectivas. Acredito
Possibilidades para revelar, interagir e que !F Lab nos ensinou isso ao nos pres-
imergir… Gostamos de acreditar que cada sionar a pesquisar nossa estratégia de
história tem um meio que a veste como impacto. Nossa lição: onde a história e o
uma luva. Seja ela baseada em texto, meio entram em colisão? IMPACTO.
áudio ou vídeo. Seja ela linear ou não
linear. Seja o meio realidade aumentada,
realidade virtual, radio, podcast, chat-
bot e assim por diante.
FOCAR NO USUÁRIO - AO INVÉS DE
WV: Antes do !FLab nosso conhecimento APENAS NA NARRAÇÃO DA HISTÓRIA -
da mídia era limitado a texto, vídeo FOI UMA MUDANÇA RADICAL PARA VOCÊS?
ou foto. Havia ‘apenas’ TV ou cinema. COMO FOI QUE VOCÊS SE AJUSTARAM A
ISSO, E COMO VOCÊS PLANEJAM SUAS
E fazíamos parte do ‘nicho do vídeo’. O HISTÓRIAS INTERATIVAS ATUALMENTE?
que a !FLab fez não foi apenas nos per-
mitir perceber isto, mas também revelar
WV: Foi realmente uma mudança radical de
um mundo novo de mídias e possibilidades
perspectiva mental, mas, na verdade, não
baseado em tecnologias que ainda estão
foi tão difícil de se fazer. Talvez a maior
por vir.
mudança que os ‘realizadores tradicionais’
Na verdade, foi apenas ao nos depararmos precisam fazer é ir além dos seus egos,
com todos estes loucos, impressionantes porque uma grande parte do esforço de ‘focar
e intrigantes projetos na internet, em no usuário’ é sobre isso, acreditamos.
DE CONTADORES A FACILITADORES DE HISTÓRIA: UMA ENTREVISTA COM LAURE COPS &... · POR SANDRA GAUDENZI · 36-43 39
Não é apenas a sua história que você mas essa é a parte da diversão! - e !F Lab
está contando. É encontrar um terreno realmente funcionou ao nos dar um guia de
em comum entre você e sua plateia. Você como atravessar esse processo interativo.
passa de um contador de histórias para
Já a parte financeira do nosso empreendi-
um arquiteto de histórias. O que exige
mento, por outro lado, é o maior desafio.
que você se adeque a esse papel inteira-
Fazer um filme, um documentário curto,
mente novo. E gostamos deste novo papel!
um longa-metragem... não custa tanto.
LC: Ao nosso ver, esse processo de focar Mas para gerar uma experiência imersiva,
no usuário está intimamente ligado ao interativa, com o nível de qualidade que
entendimento de que para realizar proje- queremos, implica em produções maiores.
tos interativos você não vai ser mais o E equipes maiores. E, portanto, desafios
único com controle da situação. Você quer maiores para conseguir o orçamento que se
tecnólogos criativos que pensem sobre a precisa. Principalmente em um campo em que
história também. Você quer que os desen- toda a indústria (financeira) ainda está de
volvedores somem algo à história. Você certa forma se desenvolvendo.
quer que a sua plateia interaja e pos-
sivelmente seja co-criadora da história.
Então, como realizadores, nos vemos cada
vez mais como facilitadores. Temos uma
visão e precisamos criar um ecossistema QUE CONSELHOS VOCÊS DARIAM
onde cada parte envolvida possa prospe- AOS NOVATOS NO CAMPO? COMO SE
EQUACIONA DE MANEIRA CORRETA A
rar e contribuir em algo para esse filme CRIATIVIDADE E A VIABILIDADE?
maior que temos em mente.
WV: E é assim que gostamos de trabalhar WV: Adoramos trabalhar com os nossos amigos,
hoje em dia. Procuramos nos cercar de mas sentimos muita falta de ter ‘amigos tech’
pessoas com as quais gostamos de tra- (ou saber mais nós mesmos sobre programação/
balhar e que são ótimas nas coisas que desenvolvimento). Seria maravilhoso cons-
nós não somos. Se fala em estar sobre truir alguns protótipos experimentais e se
os ombros de gigantes, não é?! Montar a lançar no percalço de uma ideia louca pelo
nossa equipe se tornou uma parte impor- grande desconhecido adentro, só pelo prazer
tante do processo de cada projeto. da coisa!
Quais foram os principais obstáculos Ao contratar uma equipe tech não sobra
que vocês encontraram depois do workshop muito espaço para experimentar e explorar
para desenvolver o projeto de vocês? apenas por diversão. Então encontre amigos
Foram financeiros ou conceituais? para brincar e experimentar juntos! E cer-
tamente amigos que tem habilidades que você
LC: Claro que levar adiante o processo
não tem. Amigos que tenham uma abordagem
criativo, ou conceitual, é sempre repleto
diferente. Vai lhe dar o prazer de co-criar
de desafios que precisam ser vencidos,
coisas que são mais ou menos livres, novas,
inéditas, loucas, que não são necessá-
rias e não precisam cumprir um prazo.
Vai lhe dar o prazer de fracassar sem E QUAL É O SEU PONTO DE PARTIDA
consequências. QUANDO UM CLIENTE CHEGA ATÉ
VOCÊ? IDEIAS? POTENCIAL
INTERATIVO? ORÇAMENTO?
LC: Temos 3 tipos de projetos acontecendo expectativas ou uma mentalidade mais tra-
bastante viáveis, mas que também podem Em geral, quando fazemos experiências real-
gerar experiências pessoais de pura mente interessantes com a interatividade,
diversão. Depois temos alguns projetos são casos em que “todos os planetas se
de médio-porte. Projetos que abrem espaço alinham”. Tem que haver uma história, tem
para a expressão criativa, mas que não que ter potencial interativo, o cliente
desafiam o limite da viabilidade. São precisa estar disposto a segui-lo no cami-
projetos nos quais trabalhamos por algu- nho criativo (e frequentemente dar um passo
mas semanas ou alguns meses, onde fre- para o desconhecido) e tem que existir um
quentemente há expectativas de clientes orçamento que permita tudo isso. Essas coi-
que precisamos satisfazer. E, por fim, sas não são (ainda) fáceis de conseguir.
temos o ‘grande projeto’. Um projeto que No nosso caso, pelo menos. Apesar de que
faz nossos corações baterem apaixonados. também devemos dizer que parece que há uma
O grande projeto é o que te define. O espécie de ‘despertar pro digital’ entre
projeto que faz parte da sua obra. Este alguns de nossos clientes. Talvez também
projeto no qual você derrama toda a sua porque procuramos manter bons relaciona-
criatividade e no qual você luta como mentos com os nossos (potenciais) clientes,
dragão para que seja viável. É assim que e “divulgar a profecia interativa”.
fazemos hoje em dia, mas quem sabe como
faremos amanhã? Enquanto formos dragões LC: Dito isso, você sempre pode ajudar
DE CONTADORES A FACILITADORES DE HISTÓRIA: UMA ENTREVISTA COM LAURE COPS &... · POR SANDRA GAUDENZI · 36-43 41
‘customização total’ e usamos Wiremax -
um software para fazer vídeo interativo5
para criar algo como um produto mínimo O QUE VOCÊ GOSTARIA DE DIZER
viável. O cliente acreditou na ideia PARA AS PESSOAS QUE SÃO NOVAS
de fundo, e gostou do documentário, e NO CAMPO, E QUE VOCÊ GOSTARIA
DE TER OUVIDO EM 2015?
para a próxima campanha está disposto a
providenciar mais fundos para continuar
pelo campo da interatividade e atingir um WV: Tenha objetivos claros. Seja ambicioso.
nível mais alto. Então, realmente é um Mas veja as coisas em perspectiva. Não se
ANDRÉ PAZ1 E
KÁTIA AUGUSTA MACIEL2
ALÉM DAS INTERFACES: CONCEITOS E OBRAS FUNDAMENTAIS ... · POR ANDRÉ PAZ E KÁTIA AUGUSTA MACIEL · 44-59 45
conceitos básicos formulados no contexto NARRATIVA DIGITAL INTERATIVA
desse novo campo de pesquisa, organizados a
partir da perspectiva da estética relacional No amplo universo das possibilidades narrati-
que vem sendo desenvolvida por André Paz. vas advindas da difusão das mídias digitais e
Os conceitos foram selecionados para mapear da internet, o que caracteriza uma narrativa
o campo e apontar as potencialidades de suas digital interativa? Quais são as suas caracte-
obras, com o objetivo de funcionarem, assim, rísticas específicas? A marca primordial dessas
como referências para projetos inovadores obras é apresentar uma interface interativa,
de realização ou pesquisa. O próximo item ao invés da tradicional tela das criações para
apresenta o campo de uma forma geral, com seus cinema e televisão em geral. Nessas obras, o
diversos formatos e conceitos mais básicos. espectador encontra uma experiência de interação
O item seguinte apresenta a perspectiva da que o transforma em interator, assim como em
estética relacional que permite reconhecer outros campos da arte interativa, conforme já
as obras como projetos que vão muito além da descrevia Louis-Claude Paquin, em 2006, em seu
interface. Já os itens posteriores exploram, livro Comprendre les médias interactifs. Como
respectivamente, as potencialidades que as afirma Paquin (2006: 15): “Com as interfaces,
obras adquirem ao incorporarem diferentes a manipulação direta, os espectadores tornam-
práticas de agenciamento de participantes -se interatores”, pois é preciso interagir
e usuários. fisicamente com um banco de dados para que a
No campo das narrativas interativas narrativa aconteça.
digitais, não há um formato de obras que O exemplo mais oportuno é da obra que se
prevaleça ou tenha se tornado hegemônico. tornou a maior referência do campo: Highrise
Podemos identificar alguns formatos mais (2009-2017) . Esse documentário interativo de
consolidados. Mas, na verdade, o que obser- Katerina Cizek, realizado pelo National Film
vamos é o surgimento disseminado de obras Board (NFB), do Canadá, explora as questões
híbridas. A marca desse campo inovador é a sobre moradia em grandes edifícios ao redor
sua fertilidade criativa. Acreditamos que as do mundo. Como se define em seu website: “An
pesquisas possam contribuir para essa ferti- Emmy-winning, multi-year, many-media, collabo-
lidade e para o desenvolvimento do campo, ao rative documentary experiment at the National
alimentar novos projetos. Afinal, eles não Film Board of Canada, that explores vertical
vão ‘inventar a roda’, mas inovar a partir living around the world”. Highrise se tornou,
das obras de referências e dos diversos na verdade, um conjunto de narrativas inte-
caminhos e possibilidades que elas apontam. rativas sobre o mesmo tema. O documentário
Para isso, buscamos trazer conceitos que interativo Out My Window (2010)16, por exemplo,
nos permitam mapear o terreno desse campo, se debruça sobre a vida de pessoas que habitam
evitando classificar de forma muito rígida arranha-céus em diferentes lugares do mundo.
essas obras híbridas que não se encaixam em Pela interface, o interator pode escolher e
categorias muito específicas. navegar por 49 histórias vindas de 13 cidades
ALÉM DAS INTERFACES: CONCEITOS E OBRAS FUNDAMENTAIS ... · POR ANDRÉ PAZ E KÁTIA AUGUSTA MACIEL · 44-59 47
incorporam a interatividade à narrativa. projeto é representante de um conjunto de obras
Essas obras podem existir em um ou mais dos que utiliza algoritmos na interatividade, como
seguintes suportes: websites, aplicativos Digital Me (2015)20, de Sandra Gaudenzi. Nos
para dispositivos móveis, instalações em episódios, o interator é solicitado a forne-
galerias ou museus e performances. cer alguns dados sobre si mesmo e experimenta
A grande maioria dos I-docs têm web- durante a fruição da obra um processo análogo
sites como suportes, por isso também são aos métodos e ferramentas que rastreadores
chamados de webdocumentários ou webdocs. usam comercialmente na internet. Do not Track,
Exemplos incluem Out My Window, A Short portanto, é um documentário interativo em série
History of the Highrise (2013) 17
e Universe que não apenas narra uma história ou um dis-
Within (2015) , todos do projeto Highrise
18
curso, mas oferece ao interator uma experiência
. É o caso também de obras reconhecidas e similar àquela da temática que explora. Assim
premiadas internacionalmente como Hollow também é Network Effect (2015)21, de Jonathan
(2013)19 da documentarista Elaine McMillion Harris e Greg Hochmuth, que explora o efeito
Sheldon, e Do not Track , do documentarista psicológico do uso da internet na humanidade. O
Brett Gaylor, realizado pela Upian, umas das interator tem cerca de sete minutos para visu-
produtoras de maior destaque no campo. Com alizar um gigantesco banco de dados, induzido
uma montagem gráfica e o uso da técnica de a um estado de ansiedade. Uma provocação a
paralaxe, Hollow explora o declínio popu- respeito da ilusão de conhecimento e comple-
lacional de áreas rurais nos Estados Unidos tude gerada pela internet. Essas obras fazem
por meio da história dos moradores do condado parte do conjunto de documentários interativos
de McDowell, na Virgínia Ocidental, que tem que colocam questões do próprio ambiente da
uma população de 20 mil habitantes, quando internet, assim como os já citados Digital Me
já teve 100 mil na década de 1950. O projeto e Universe Within.
contou com a participação direta da própria Apesar de a maioria dos documentários
comunidade, que sugeriu temas e propostas interativos estarem baseados em websites, alguns
para as pesquisas, além de fornecer parte casos usam como principal suporte um aplicativo
do próprio material audiovisual que compõe para dispositivos móveis. Talvez o exemplo mais
a obra. A partir de colagens interativas conhecido seja Alma: Une Enfant de la Violence,
surpreendentes (acionadas por scroll), Hollow realizado pelo grupo ARTE e pela produtora Upian,
utiliza vídeos, infográficos, fotografias e dois dos maiores realizadores no campo. Alma
imagens de arquivo para explorar o universo é um documentário sobre uma jovem homônima de
dos personagens e histórias locais, arti- 26 anos que nasceu na Guatemala e cresceu na
culadas com campanhas em mídias sociais e pobreza, em meio a guerras de gangues urbanas,
campanhas para doação. conhecidas como maras. Alma integrou por cinco
Já Do not Track é uma série documen- anos um dos grupos mais violentos do país e
tal sobre privacidade e economia na web. O viveu imersa em assassinatos, agressões e bru-
talidade. Nesta obra, o interator pode escolher
17 http://www.nytimes.com/projects/2013/high-rise/index.html
18 http://universewithin.nfb.ca/mobile/index.html 20 http://www.interactivefactual.net/digital-me/
19 http://hollowdocumentary.com/ 21 www.networkeffect.io. Ver página 107.
entre Alma narrando seus relatos ou imagens oferecendo experiências complementares dentro de
de algumas cenas que ilustram o que é nar- um mesmo universo narrativo. Como aponta Carlos
rado. Também baseado em aplicativo, Rider Scolari no livro Narrativas Transmedia: cuando
Spoke (2007), do coletivo Blast Theory, da todos los medios cuentan (2013), diferentes
Inglaterra, já explora um conjunto de relatos sistemas de significação (verbal, icônico,
em áudio referencialmente geolocalizados audiovisual, textual) são agregados de uma
nas ruas enquanto os interatores circulam maneira complementar e se expandem. Em Cultura
pelas cidades onde o trabalho foi exibido da Convergência (2009), Henry Jenkins mostra
e experimentado. Usar as mídias de forma como cada nova obra é fundada na anterior, ao
geolocalizada se tornou um procedimento bas- mesmo tempo em que oferece novos ‘pontos de
tante comum entre documentários interativos acesso’ ao universo narrativo criado. Para o
em websites ou aplicativos. Esse também é o público, o contato com uma parte leva poten-
caso do aplicativo do projeto Som dos Sinos cialmente à descoberta de outras. A experiência
(2014)22, que disponibiliza conteúdos audio- transmídia, de fato, acontece através da uma
visuais georreferenciados sobre a tradição busca ativa do público por esses ‘pontos de
dos toques de sinos das igrejas históricas acesso’ ao sistema23.
do estado de Minas Gerais, no Brasil. Nele, Dessa forma, um i-Doc pode ser um ‘ponto
o interator pode navegar por esses conteúdos de acesso’ a um documentário transmídia mais
à distância, em qualquer lugar do planeta, amplo, que atravesse diferentes plataformas on
identificando no mapa a localização das ou off line: filme, website, livro, instalação
igrejas as quais se refere. Mas pode tam- ou aplicativo. O projeto Som dos Sinos, por
bém, ao circular pela região e pelas ruas exemplo, integra um webdoc, um longa-metragem
das próprias cidades, encontrar e navegar documental, um aplicativo para dispositi-
por conteúdos das igrejas que estão perto vos móveis, um mapeamento sonoro e projeções
de si fisicamente. O aplicativo faz parte, itinerantes. Elementos estéticos singulares
na verdade, de um projeto maior que inclui atravessam as diferentes plataformas, tais
um webdocumentário que explora o universo como o design gráfico e o estilo de montagem
das torres dos sinos e se desdobra ainda em audiovisual. As projeções itinerantes levam
outras plataformas. Assim, Som dos Sinos é conteúdos audiovisuais para as paredes externas
um documentário interativo que se apresenta das igrejas em pequenas localidades no interior
também como um documentário transmídia. do estado de Minas Gerais. Já para Mostra BUG,
especificamente, Marina Thomé e Márcia Mansur
realizaram uma vídeo instalação no centro
DOCUMENTÁRIO TRANSMÍDIA cultural Oi Futuro, no Rio de Janeiro. Dessa
forma, o Som dos Sinos disponibiliza um universo
A lógica transmídia pressupõe um conjunto narrativo sobre a temática dos toques de sinos
de conteúdos que atravessa múltiplas plata- em igrejas históricas através de múltiplas
formas com conexões narrativas e estéticas,
23 Essa lógica transmídia foi amplamente debatida e aplicada à
análise de narrativas digitais interativas, como webdocumentários,
no livro Direção de arte e transmidialidade (2018), organizado por
22 www.somdossinos.com.br. Ver página 135. Amaury Fernandes e Katia Augusta Maciel.
ALÉM DAS INTERFACES: CONCEITOS E OBRAS FUNDAMENTAIS ... · POR ANDRÉ PAZ E KÁTIA AUGUSTA MACIEL · 44-59 49
plataformas para diversos públicos e espaços denuncia uma política não reconhecida oficial-
físicos. Pela natureza intrinsecamente fluida mente de esterilização em massa de forma não
e subjetiva do encontro entre o público consentida de mais de 300 mil mulheres e 20 mil
e cada uma das obras, o nível de imersão homens das classes mais pobres do Peru nos anos
bem como de engajamento é sempre variado e 1990, durante o governo de Alberto Fujimori. A
distinto. A experiência do público depende grande inovação do projeto partiu da forma como
de como cada um transita pelos diferentes conseguiu levantar os testemunhos das vítimas,
pontos de acesso e pelo universo narrativo em grande maioria mulheres e indígenas, e desen-
do documentário transmídia como um todo. cadear ações integradas em busca de justiça.
O projeto oferece uma linha telefônica para a
qual as vítimas podem ligar de forma gratuita
UMA PERSPECTIVA PARA ALÉM DA INTERFACE e fazer seus testemunhos de maneira anônima.
Esse recurso foi fundamental, pois a maioria das
Uma vez que entendemos os conceitos de ‘nar- mulheres falava idiomas quechua e, inserida em
rativa interativa’, ‘documentário interativo’ uma tradição oral e indígena, tinha dificuldade
e ‘documentário transmídia’, podemos, assim, de se expressar de forma escrita ou através de
nos localizar melhor nesse campo. Surge vídeos, ainda mais por se tratar de um tema tão
então a pergunta: o que essas obras trazem delicado. A partir daí, o projeto se baseia na
de significante para o conjunto de possibi- integração das tecnologias – linha telefônica
lidades narrativas em um contexto mais amplo, e a interface digital. A interface foi conce-
humano? Pra reconhecer esse potencial, vamos bida em função dos propósitos do projeto e da
adotar a perspectiva da estética relacional solução criativa de engajamento das vítimas na
conforme vem sendo desenvolvida por André produção de conteúdo em registros sonoros. Ela
Paz nos últimos anos (Paz e Salles, 2013 e disponibiliza os registros sonoros na página
2015; Paz, 2017), a partir da redescrição web de uma forma que diferentes interatores
criativa das propostas de Nicolas Bourriaud possam também contribuir com novos registros
(2009) e Vilém Flusser, articuladas com as em áudio. Assim, o documentário interativo se
contribuições do campo de pesquisa da tra- conforma como uma obra colaborativa formada por
dição dos documentários lineares. Por essa contribuições de diferentes grupos.
perspectiva, as obras assumem uma conotação Pela interface de sua plataforma online,
processual em função de noções relacionais. o interator pode escutar relatos de vítimas,
Além da interface, elas são vistas como ‘dis- testemunhas, especialistas. Pode enviar seus
positivos’, sendo reconhecidas como processos próprios relatos ou enviar suas mensagens e apoio
mais amplos de práticas interativas e de às vítimas. Pode fazer doações ao projeto ou
agenciamento entre equipe, participantes e colaborar com seu desenvolvimento, pressionando
interatores, ao longo dos processos criativo a Justiça peruana para que os responsáveis sejam
e de realização. Vejamos um exemplo. punidos. Portanto, o interator tem uma série
De Maria Court e Rosemarie Lerner, The de possibilidades práticas de engajamento na
Quipu Project é um projeto de documentário narrativa e no propósito que ela materializa.
interativo, colaborativo e transmídia, que Mais do que uma obra terminada, o documentário
interativo The Quipu Project é um processo luta por justiça e a necessidade do engajamento
de práticas colaborativas de agenciamento de diferentes pessoas nesse sentido.
de vítimas e interatores em uma plataforma A interface promove uma espécie de agen-
híbrida de conteúdos polifônicos, em mídias ciamento lúdico das pessoas, ao abrir uma série
diversas, canalizadas por um propósito. de possibilidades de interação e engajamento
Dessa forma, o projeto não apenas narra as que dissolvem as fronteiras entre produção,
histórias das vítimas, ele enreda as pessoas distribuição e recepção. Não se trata aqui de
na tentativa de resultar em impacto social uma narrativa fechada e pré-determinada pela
concreto. Não é apenas uma narrativa que equipe de realização, mas de experimentações
conta uma história, mas um engajamento para possíveis. Narração e interação se mesclam em
a construção de uma nova história. um processo aberto e indefinido. Nesse sen-
A apresentação do The Quipu Project tido, conceber um documentário interativo é
ilustra bem o conceito de ‘dispositivo’. uma aposta nas dinâmicas próprias que ele pode
Quando olhamos os documentários interativos desencadear. Não é por outra razão que Gaudenzi
como um ‘dispositivo’, vemos além da inter- (2013a e 2013b) considera os documentários
face. Um ‘dispositivo’ aqui não se refere ao interativos como uma entidade relacional aberta
sentido no senso comum de um aparato eletrô- com dinâmicas próprias e propõe usarmos o termo
nico, como um celular ou tablet. Trata-se living documentary. “They put the emphasis
de um cruzamento de práticas e elementos on becoming, rather than explaining. (…) The
técnicos, discursivos, organizacionais, message is not in the form, it is in the inte-
estéticos, que promove efeitos e afetos em raction” (Gaudenzi, 2013b: 26). Nesse sentido,
algum sentido24. Visto assim, a interface é como aponta Paz (2017), a poética do documen-
um núcleo de cruzamentos de práticas e formas tário interativo reside em grande medida na
de interação, agenciamento, relações. Mais fertilidade do ‘dispositivo’, ou seja, em sua
do que uma obra enquanto produto, trata-se potência para desencadear dinâmicas próprias e
de um processo para o qual não há um modelo autônomas com efeitos e afetos imprevisíveis.
pré-concebido. Como já foi dito, não há No caso de Quipu, o impacto do projeto
um formato ou processo produtivo consoli- também veio em função da potência do ‘disposi-
dado de narrativas interativas. Conceber um tivo’ criado e de uma estratégia de comunicação
documentário interativo inovador é, antes e ações transmídia. O projeto contou com uma
da produção do conteúdo, desenvolver um ampla divulgação pelas mídias sociais e uma
‘dispositivo’ próprio, ou seja, um cruza- campanha extensa e delicada para conscien-
mento específico de práticas e processos tização, articulação de uma rede nacional e
que passam pela interface. No caso de The levantamento dos testemunhos através do trabalho
Quipu Project, a interface foi definida em de ativistas em inúmeras localidades. Assim,
função de seu viés ativista, movida pela como Zambrano e Gifreu-Castells colocam, em
Aproximación al potencial colaborativo de la
24 Entendemos o conceito de dispositivo em um sentido amplo narrativa documental interactive en los procesos
a partir da apropriação e redescrição do conceito original de
Foucault, que representa um conjunto específico de campos de
de cambio social (2016), o projeto funcionou
força e elementos heterogêneos, técnicos, arquitetônicos, dis- como uma caixa de ressonância das demandas das
cursivos, afetivos, filosóficos, morais.
ALÉM DAS INTERFACES: CONCEITOS E OBRAS FUNDAMENTAIS ... · POR ANDRÉ PAZ E KÁTIA AUGUSTA MACIEL · 44-59 51
comunidades locais e suas vítimas para o relações. O próximo item aponta exemplos nesse
mundo. As denúncias iniciais desencadearam sentido de projetos que estruturam de forma
todo um processo social que resultou em inves- coerente propósitos, condições de produção e
tigações e ações na justiça peruana. Esses práticas de agenciamento.
impactos estão em sintonia com a perspectiva
da estética relacional. Os documentários
interativos são experimentações criativas, A COERÊNCIA DOS PROJETOS
‘dispositivos’ de interação que ensejam a
possibilidade de novas relações no mundo. Considerando então os documentários interati-
“Não se trata mais, entretanto, de projetos vos além de suas interfaces, quais práticas
utópicos e da reconstrução totalizante das têm sido usadas e como elas se relacionam com
formas de relação da sociedade, mas de ofere- os propósitos e modos de produção do projeto
cer pequenas possibilidades de modificações como um todo coerente? Voltemos ao exemplo de
concretas e circunscritas. A possibilidade Highrise. O projeto apresenta de forma clara
de uma arte relacional consiste em tomar em seu website que seu propósito é desencadear
como horizonte teórico a esfera das rela- e participar de processos de inovação social,
ções humanas e seu contexto social e não a além do registro e documentação: “Collectively,
afirmação de um espaço simbólico autônomo” the projects — and the ones to come — have
(Paz, 2017: p. 90). both shaped and realized the Highrise vision:
Nesse contexto, a autoria se desdobra to see how the documentary process can drive
em diferentes dimensões. O processo criativo and participate in social innovation rather
começa na concepção do ‘dispositivo’ dentro than just to document it; and to help re-in-
do projeto como um todo, como no caso de The vent what it means to be an urban species in
Quipu Project. Estamos falando da autoria the 21st century”. Por um lado, Highrise se
das formas de interação em um sentido amplo. dedicou a explorar formas e procedimentos que
A autoria aqui remete para a coerência entre contribuíram de forma incontestável para o
o propósito do projeto e sua temática, pla- desenvolvimento das linguagens e do campo das
taforma, formas de interação, práticas e narrativas interativas digitais. Por outro, o
formas de engajamento e, enfim, interface. projeto coloca em questão a vida em arranha-céus
Essa dimensão do projeto vai influenciar através do agenciamento criativo em direção a
ou determinar em grande medida a narrativa mudanças concretas. Pela perspectiva relacio-
e a produção e recepção do conteúdo. Outra nal, enreda participantes e interatores de uma
dimensão da autoria diz respeito a produção forma inovadora que visa pequenas modificações
do conteúdo em si. Por um lado, essa autoria – inovações sociais.
pode seguir práticas de co-criação ou mídia Highrise ilustra essa dupla natureza de
participativa. Por outro, pode seguir pelas propósitos dos documentários interativos. Por
possibilidades de envio de conteúdo através um lado, os projetos inovadores se propõem a
da plataforma. O desafio é não apenas ser um explorar novas fronteiras da linguagem, alme-
processo criativo de um ‘dispositivo’, mas jando contribuições formais para o campo, que
um ‘dispositivo criativo’, que enseje novas são de extrema importância. Inúmeros projetos
se dedicaram e realizaram seus propósitos padronize a realização das obras. Há possi-
nesse sentido ao se debruçar sobre dife- bilidades de projetos de diferentes escalas,
rentes temas, como os já citados Hollow, Do complexidades e estruturas produtivas. Dessa
not Track, Alma, The Quipu Project, Network forma, Highrise se propõe o desafio da inovação
Effect. Por outro lado, como defende Paz social através de um projeto multiplataforma de
(2017), parece uma espécie de propensão grandes dimensões e ousado em termos estéticos,
natural dos documentários interativos tra- porque o National Film Board é uma instituição
zerem também propósitos para os projetos com amplos recursos que tem uma longa tradição
exteriores às investigações estéticas ou de de incentivo a documentários inovadores em
linguagens. Em What is interactivity for? termos de proposta e linguagem. Realizado por
The social dimension of web-documentary uma pequena produtora, o já comentado Som dos
participation, Kate Nash (2014) defende Sinos utiliza também diversas plataformas com
que a continuidade entre a tradição de uma inovação social para registro e divulgação
documentários e a nova produção de docu- de um patrimônio imaterial, mas com recursos
mentários interativos acontece justamente financeiros e humanos muito mais reduzidos. The
pelo exercício de certas funções sociais Shirt on Your Back (2014)25, realizado pelo The
- mais do que pelas convenções do gênero Guardian representa todo um conjunto de obras
ou práticas de produção. Entre elas, Nash com viés jornalístico, produzido por grandes
aponta: i. Registrar, revelar ou preservar: empresas do setor. Já As quatro Estações de
os documentários interativos podem ser Iracema e Dirceu (2015)26 é um documentário
bancos de dados ou coleções que podem ser interativo que conta a rotina de uma família
acessadas e organizadas de diversas formas, em situação de miséria no sul do Brasil com
o que potencializa a convergência entre recursos financeiros bem mais modestos, rea-
documentário e documento, como o caso já lizado pelo Diário Catarinense.
comentado de Som dos Sinos; ii. Engajamento Com orçamentos bem mais restritos, em espe-
cívico: os documentários interativos podem cial na América Latina, as universidades também
promover a construção de comunidades de têm uma produção própria, com propósitos e modos
interesses comuns e incentivar o debate e de produção específicos. É o caso de Mujeres
ações, como Highrise; iii. Persuasão: os en Venta (2015)27, por exemplo, que registra
documentários interativos podem exercer e denuncia o crime de tráfico de mulheres na
papel de convencimento no discurso e opinião Argentina, realizado pela Universidade Nacional
pública sobre determinadas questões, como de Rosário. O trabalho usa relatos de vítimas,
em The Quipu Project. depoimento de especialistas e dados levantados
Assim, em grande medida, os projetos por investigação jornalística. Já O que a baía
de documentários interativos e transmídia tem (2018)28, realizado pela Universidade Federal
assumem diferentes propósitos e funções do Rio de Janeiro (UFRJ), se apresenta como uma
sociais, de acordo com os recursos que con-
segue mobilizar e seus modos de produção. 25 www.theguardian.com/world/ng-interactive/2014/apr/bangladesh
-shirt-on-your-back. Ver página 112.
Como não têm um formato pré-estabelecido 26 www.clicrbs.com.br/sites/swf/DC_quatro_estacoes_iracema_dirceu.
no campo, não há um modo de produção que 27 www.documedia.com.ar/mujeres. Ver página 110.
28 www.baia.net.br
ALÉM DAS INTERFACES: CONCEITOS E OBRAS FUNDAMENTAIS ... · POR ANDRÉ PAZ E KÁTIA AUGUSTA MACIEL · 44-59 53
aplicação prática da pesquisa de Katia Augusta foi desenvolvida com moradores do subúrbio de
Maciel sobre como expressar e experimentar a Toronto ao longo de dois anos. A equipe traba-
diversidade ecológica da Baía de Guanabara lhou em oficinas com urbanistas, arquitetos,
através de uma criação audiovisual intera- designers, programadores e os moradores, que
tiva, na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. foram convidados a imaginar como gostariam que
O I-Doc inclui filmagens em flat screen e fosse o entorno e áreas comuns dos edifícios.
em 360o buscando diferentes níveis e modos Esse processo resultou na interface de One
de engajamento. A ideia, como afirma Katia Millionth Tower, o primeiro documentário 3D de
Augusta Maciel no artigo “Documentário inte- código aberto, no qual o interator pode navegar
rativo: a Baía de Guanabara prêt-à-porter” por esses projetos imaginados. Antes da plata-
(2018), é que a obra possa ser utilizada por forma e de sua interface, porém, o ‘dispositivo’
professores para agenciar e também potencia- integrou um conjunto de ações de restauração
lizar o ensino e aprendizagem para além dos do patrimônio, reforma de zonas deterioradas e
muros da escola. Também realizado na mesma até cursos de formação digital e alfabetização
universidade, por André Paz, Ilha Grande: de jovens. Tanto em Ilha Grande, como em One
cada praia uma ilha, cada ilha, uma história Millionth Tower, a concepção da plataforma como
é um documentário interativo que traz his- a produção do conteúdo seguiram princípios da
tórias vividas por personagens nas diversas co-criação. A diretora Katerina Cizec se tornou
comunidades pesqueiras das praias ao redor da talvez o nome mais reconhecido no campo que
Ilha Grande, no estado do Rio de Janeiro. A defende os processos de co-criação, sendo uma
narrativa interativa é baseada em uma série das responsáveis pelo Co Creation Studio do
de vídeos que foi publicada também de forma MIT Open Doc Lab. Os projetos de co-criação
sequencial nas mídias sociais. A interface incorporam representantes dos grupos que são
é bastante simples. Como descreve André Paz o assunto do projeto como participantes com
(2017), o documentário interativo foi conce- voz ativa no processo criativo. Contam assim
bido a partir do diálogo com as comunidades com o diálogo aberto e a colaboração entre os
locais durante uma série de ações realizadas participantes e pesquisadores, especialistas
em um projeto maior chamado Voz Nativa, que em tecnologia e outros profissionais, no desen-
visava apoiar o turismo de base-comunitária volvimento do projeto e no processo produtivo.
na Ilha Grande e o protagonismo dos jovens No livro I-docs: The Envolving Practices of
locais nesse processo. Interactive Documentary (2017), Mandy Rose
A simplicidade da interface de Ilha coordena a edição de toda uma sessão dedicada
Grande contrasta com a complexidade de One ao tema co-criação.
Millionth Tower (2015) , de Highrise. No
29
Há diversas formas de se incorporar a voz
entanto, os princípios por trás do processo de dos participantes que representam o assunto do
criação e da relação com os assuntos e parti- projeto. Em Ilha Grande e One Millionth Tower,
cipantes dos projetos são, em grande medida, a concepção do dispositivo e da interface já
similares. A concepção de One Millionth Tower é resultado desse diálogo. Outros projetos
incorporam os participantes como produtores
de conteúdo, de mídias, que são então chamadas
29 http://Highrise.nfb.ca/onemillionthtower/
de mídias participativas. Quando o conteúdo ATRAVÉS DA INTERFACE
participativo tem um volume determinante na
constituição do conteúdo da narrativa, os
documentários interativos são chamados de Os documentários interativos exercem dife-
colaborativos. Esse é o caso do reconhecido rentes práticas de agenciamento através da
internacionalmente 18 Days in Egypt (2011)30, interface, que disponibiliza ao interator o
de Jigar Mehta e Yasmin Elayat. O conteúdo acesso e navegação pela sua estrutura narra-
da obra é o conjunto de mídias enviado por tiva - a forma como está organizado o conjunto
pessoas que viveram os 18 dias de turbu- de mídias do sistema. Essa estrutura é com-
lência política e social no Egito. Como posta por uma combinação finita de segmentos
coloca Paz (2017), esses projetos requerem narrativos e assume um aspecto rizomático com
a mobilização dos participantes como um diferentes formatos. Em trabalhos publicados
componente fundamental. Para viabilizar a em 2001, 2011 e 2015, Marie-Laure Ryan, por
criação do conteúdo, o processo produtivo exemplo, descreve possíveis arquiteturas
precisa criar uma comunidade de partici- de narrativas interativas, de onde resulta
pantes ou agenciar participantes de uma o potencial narrativo da obra. Um exemplo
comunidade pré-existente. Outros projetos básico é o circuito em rede (ver Figura 1),
buscam agenciar os interatores através da no qual interatores podem saltar entre uni-
interface como produtores de conteúdo ou dades narrativas (também chamadas de nós).
outras formas de participação. Zambrano e Nesse tipo de estrutura não há um significado
Gifreu-Castells (2016), por exemplo, focam narrativo totalizante, como explica Tatiana
suas análises nas práticas participativas e Levin em sua tese de doutorado Narrativa e
colaborativas em documentários interativos. Interatividade no Webdocumentário (2016).
Eles apontam alguns casos conhecidos de docu- Outro exemplo detalhado por Levin (2016) é
mentários interativos e colaborativos nesse a ‘anêmona-do-mar’, estrutura na qual cada
sentido, como Mapping Main Street (2010) 31
unidade narrativa é conectada a um núcleo
e Question Bridge: Black Males (2011)32 . O central (Figura 2). A partir de cada núcleo
caso já comentado de The Quipu Project busca se organizam segmentos narrativos menores
tanto o engajamento dos participantes como ou micro histórias. Aqui, a partir de um
dos interatores. O item a seguir discorre núcleo central inicial, o interator pode
sobre a potência da interface em função dos seguir por uma trilha e descobrir várias
modos de interatividade. micro histórias correlacionadas, ou voltar
e seguir por outra trilha.
30 http://www.18daysinegypt.com/
31 www.mappingmainstreet.org
32 http://questionbridge.com/
ALÉM DAS INTERFACES: CONCEITOS E OBRAS FUNDAMENTAIS ... · POR ANDRÉ PAZ E KÁTIA AUGUSTA MACIEL · 44-59 55
hiperlinks, sem interferir no conteúdo da obra.
O modo hipertextual está presente em maior
ou menor grau em todos os I-docs, dando ao
interator um caráter de explorador. Ele segue
a lógica do “clique e vá” ou “clique e veja”.
Dessa forma, I-docs hipertextuais podem, por
Fig.133 e Fig.234 exemplo, disponibilizar vários caminhos e uma
gama de perspectivas em torno de um tema ou
No trabalho já citado, Arnau Gifreu-Castells assunto. É o caso do já apresentado Hollow, onde
(2010) apresenta todos os formatos de estru- os moradores de McDowell, nos Estados Unidos,
turas narrativas observadas por Ryan e, mais buscam desmistificar a visão estereotipada do
além, aprofunda a relação delas com os modos município. McDowell sofre com a falta de empre-
de navegação. O mergulho nessas questões gos, o tráfico de drogas e a violência, mas
está além do escopo deste artigo, mas esse não se entrega e resiste. Através de relatos
tema é fundamental para o desenvolvimento de várias famílias, diferentes perspectivas
de novos projetos. As obras oferecem modos são apresentadas. De forma hipertextual, o
de navegação e interatividade que se baseiam interator rola o mouse para cima e para baixo,
em distintas estruturas narrativas. Para para um lado e para o outro, desvelando opções
ilustrar os modos de interatividade, entre- de links para diversos vídeos e fotos sobre
tanto, vejamos alguns exemplos em função da as diferentes realidades naquela localidade.
perspectiva organizada por Sandra Gaudenzi No modo de interatividade conversacional,
em The Living Documentary: from representing há uma espécie de diálogo entre o interator e o
reality to co-creating reality in digital i-Doc. O sistema responde de forma específica
interactive documentary (2013). A autora aos gestos do interator, havendo uma constante
apresenta quatro modos de interatividade: troca na obra. O interator não apenas transita
hipertextual, conversacional, participativo por um conteúdo fixo previamente determinado
e experiencial. Esses modos não são exclu- como no modo hipertextual. Suas ações também
sivos. Ou seja, o mesmo i-Doc pode utilizar influenciam no conteúdo e na história enquanto
mais de um, ainda que um deles predomine ao ela se desenrola. As tecnologias digitais são
ponto de marcar a interatividade da obra. empregadas aqui para dar ao interator a impres-
O modo de interação hipertextual é o são de navegar num mundo simulado, como em um
mais empregado. Nele, o interator apenas jogo. Universe Within, do projeto Highrise,
navega entre diferentes conteúdos previamente encarna essa conversa tanto no sentido metafó-
arranjados pelo autor e disponibilizados rico aqui empregado, como no sentido literal.
pela interface. O interator se move entre Três personagens se apresentam e se propõem
a guiar a experiência narrativa. Os avatares
33 Estrutura em rede. Fonte: Peeling the Onion: Layers of
representam algoritmos com os quais se pode
Interactivity in Digital Narrative Texts (2011). Marie-Laure
Ryan. Disponível em: http://www.marilaur.info/onion.htm dialogar, a partir de questões provocativas
34 Legenda: Estrutura da Anêmona do Mar. Fonte: Peeling the
Onion: Layers of Interactivity in Digital Narrative Texts
sobre a vida digital. A obra explora assim a
(2011). Marie-Laure Ryan. Disponível em: relação de pessoas que habitam arranha-céus em
http://www.marilaur.info/onion.htm
diversas cidades do mundo com a web, enquanto Facebook, artigos de blog ou até mesmo apenas
provoca o interator a refletir sobre como contar a um amigo ajudará muito”. Assim, o
ele próprio se relaciona com a rede. O já que configura esse modo de interatividade é a
comentado Do not Track se utiliza em geral participação do interator no conteúdo, a partir
do modo hipertextual para disponibilizar da disseminação da banda larga, como nos casos
conteúdo sobre como funciona a economia da já destacados de 18 Days in Egypt, Mapping Main
vigilância na web. Mas se utiliza também do Street e Question Bridge: Black Males (2011)35.
modo conversacional em diversos momentos O que se destaca nessas obras não é a escolha
chave, quando, por exemplo, solicita dados pelo interator da ordem de visualização dos
pessoais do interator para respondê-lo com conteúdos previamente disponibilizados (modo
um retrato do seu perfil. Essa é uma marca hipertextual), nem a conversa interator-sistema
do projeto: oferece uma experiência ao inte- (modo conversacional), mas a participação do
rator de como, de forma análoga, seus dados interator na criação, produção e difusão do
são utilizados por sites, redes sociais, conteúdo da obra.
plataformas de streaming. Portanto, utiliza No modo experiencial de interatividade,
o modo conversacional para conscientizar o as obras exploram um espaço híbrido entre o
interator de como a web é um espaço onde ambiente digital e o mundo concreto. Buscam
movimentos, falas e identidades são grava- expandir a vivência de um lugar ou de uma ins-
das, rastreadas e utilizadas. Dos telefones talação artística, por exemplo, correlacionando
celulares a redes sociais, tudo é vigiado a narrativa digital interativa a movimentos do
na busca por informações estratégicas para corpo no espaço, percepções da visão, audição,
a publicidade. tato. Como explicam Gaudenzi e Aston (2012),
Já no modo participativo, o interator é I-docs podem adicionar camadas à percepção da
inserido no processo criativo da obra, con- realidade, gerando uma experiência para os
vidado a enviar fotos, depoimentos, vídeos, interatores que é física e virtual ao mesmo
ou editar, remixar, traduzir, legendar. tempo. É comum as obras integrarem as mídias
Como já comentado sobre o projeto Quipu, geolocalizadas (locative media), através da
o interator pode enviar seus relatos ou utilização do GPS (Global Positioning System)
mensagens às vítimas para fazer parte da e dispositivos móveis. É o caso, por exemplo,
obra. Pode também se tornar voluntário e do aplicativo do já citado Som dos Sinos, onde
ajudar a transcrever e legendar testemunhos o interator pode acessar fisicamente nas peque-
enviados ao projeto. Mais além, como dito nas localidades do interior de Minas Gerais
anteriormente, o interator também pode fazer conteúdos diversos geolocalizados sobre os
doações, assinar uma petição pública, ou se toques de sinos das igrejas que visita. Também
engajar em diversas ações de divulgação do baseado em aplicativo, em Rider Spoke (2007)36,
projeto. Afinal, como coloca o website da do coletivo Blast Theory, da Inglaterra, o
obra: “O objetivo do nosso projeto é ajudar interator circula de bicicleta por pontos da
essas histórias a alcançar o maior número cidade onde explora um conjunto de relatos
de pessoas possível e, para isso, confia-
mos em pessoas como você! Tweets, posts no 35 http://questionbridge.com/
36 https://www.blasttheory.co.uk/projects/rider-spoke/
ALÉM DAS INTERFACES: CONCEITOS E OBRAS FUNDAMENTAIS ... · POR ANDRÉ PAZ E KÁTIA AUGUSTA MACIEL · 44-59 57
em áudio georreferenciados, deixados por interatores, ao longo dos processos criativo
outros interatores que passaram pelos mesmos e de realização. E destacamos a necessidade de
lugares. Já A Cartography of Iconic Memory coerência entre essas práticas, o formato, a
(2014)37, de Morgan Rhys Tams, conta com estrutura produtiva e o propósito do projeto.
códigos QR permanentemente instalados na Esperamos, assim, contribuir de alguma forma
pequena vila de pescadores de Skagströnd, para a fertilidade criativa desse campo ino-
na Islândia. Usando um smartphone para ler vador e estimulante.
os códigos, o interator pode ver pequenas
animações especificamente criadas para cada
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
local, buscando trazer vida nova a luga-
res praticamente esquecidos no interior da ASTON, J. (2017). Sandra Gaudenzi and Mandy Rose. I-docs:
The Envolving Practices of Interactive Documentary. London
Islândia rural. Para interagir com a obra, and New York: Columbia University Press.
o participante deve seguir um mapa de um
BOURRIAUD, N. (2009). Estética Relacional. São Paulo: Martins
local a outro, percorrendo ruas de cascalho, Fontes.
campos enormes e a costa rochosa. A outra
GAUDENZI, Sandra. (2013a). The Living Documentary: from
alternativa é conhecer o projeto através do representing reality to co-creating reality in digital
interactive documentary. Thesis. London: University of London.
webdocumentário que tenta recriar a experi-
ência da instalação artística para aqueles GAUDENZI, Sandra. (2013b). The Interactive Documentary as
a Living Documentary. Revista Doc On Line 14 , p. 9-31.
que não podem estar fisicamente na Islândia. Accessed 30 August 2017. http://www.doc.ubi.pt/
Os I-docs utilizam um ou mais modos de
GIFREU-CASTELLS, Arnau. (2010).The Interactive Multimedia
interatividade de diferentes formas. Como Documentary: a proposed analysis model. Thesis. Pompeu
Fabra University.
foi dito no início deste artigo, não há
um formato hegemônico, mas um conjunto de JENKINS, H. (2006). Convergence Culture: Where Old and New
Media Collide. New York: NYU Press.
obras híbridas que compartilham uma série de
características comuns de maneira criativa LEVIN, T. (2016). Narrativa e Interatividade no Webdocumentário
[Tese]. Universidade Federal da Bahia.
e inovadora. Nesse ambiente, cada projeto
precisa encontrar a maneira mais eficiente de MACIEL, K.A e Fernandes, A. (2018). Direção de arte e
transmidialidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.
explorar as atribuições e especificidades do
meio digital, bem como das diversas lingua- MACIEL, K.A. (2018). Documentário interativo: a Baía de
Guanabara Prêt-à-Porter. Revista de Geografia. v.35, n.1.:
gens, mídias e tecnologias que o atravessam. https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistageografia/index
Nosso intuito não foi, portanto, apontar
MURRAY, J. (2012). Inventing the medium: principles of
caminhos a serem seguidos, mas referências interaction design as a cultural practice. Londres: The
MIT Press.
que possam inspirar novos projetos de nar-
rativas interativas digitais ou de pesquisa NASH, K. (2014). What is interactivity for? The social
dimension of web-documentary participation. Continuum:
nesse campo. Para isso, assumimos uma pers- Journal of Media & Cultural Studies, p. 37-41.
pectiva que reconhece as obras como processos
PAQUIN, Louis-Claude. (2006). Comprendre les médias inte-
mais amplos de práticas interativas e de ractifs, Québec: Isabelle Quentin Éditeur.
agenciamento entre equipe, participantes e
Paz, André and Júlia Salles. (2013). Dispositivo, Acaso e
Criatividade: Por uma estética relacional do webdocumentário.
Revista Doc On Line 14, p. 33-69. http://www.doc.ubi.pt/.
37 http://www.morgantams.com/cartography/
PAZ, André and Júlia Salles. (2015). Brasil, Mostra a sua
Cara: aproximações ao cenário brasileiro de documentários
interativos. Revista Doc On Line 18, p. 130-165. http://
www.doc.ubi.pt/.
DESENVOLVIMENTO ATUAL DO
DOCUMENTÁRIO INTERATIVO E
TRANSMÍDIA NAS AMÉRICAS,
EUROPA E AUSTRÁLIA
ARNAU GIFREU-CASTELLS1
DESENVOLVIMENTO ATUAL DO DOCUMENTÁRIO INTERATIVO E TRANSMÍDIA NAS AMÉRICAS, EUROPA... · ARNAU GIFREU CASTELLS · 60-71 61
nos países anglo-saxões e francófonos está meios digitais e o documentário, assim como
mudando e se transformando num documentário produtoras especializadas no campo do documen-
do tipo imersivo, dentro do conceito que tário interativo e transmídia. No entanto, a
podemos denominar de ‘Realidade Aumentada’ principal rádio difusora do país, a National
(Milgram y Kishino, 1994). Ao mesmo tempo, Film Board of Canada (NFB), criada em 1939 pelo
estas novas vias adotadas pelo documentário, governo canadense, é a que mais se destaca.
tendo a tecnologia como mediadora, parecem A tradição e apreciação do Canadá pelo
encontrar-se num momento culminante nos cinema de não ficção, e especialmente, a nar-
países de língua latina, especialmente na rativa documental, não é recente: em meados
Ibero-América, em países como Argentina, do século XX se destacou como berço do Cinema
Colômbia, Chile ou México. Antes de iniciar Direto, uma corrente documental cujo principal
a análise dos principais países envolvidos no objetivo era filmar diretamente a realidade
desenvolvimento, produção e pesquisa dessas e representá-la de forma sincera. Este tipo
novas narrativas de não-ficção, é preciso de cinema, que nasceu entre 1958 e 1962, mais
observar que este trabalho não pretende fazer especificamente na província canadense de
uma análise exaustiva de tudo o que acontece Quebec e nos Estados Unidos, teve Jean Rouch
neste âmbito, mas uma primeira investigação como seu principal expoente. Outra inovação
sobre quais acreditamos ser suas pontas mais importante se deu através da temática social
relevantes em 2018. Dessa maneira, formulamos e de intervenção cidadã, sendo o projeto mais
para esta edição do livro BUG uma evolução representativo Challenge for Change (NFB,
do trabalho apresentado em 2013. 1967-1980), que ajudou a dar voz a comunida-
des desfavorecidas do Canadá empoderando-as
com câmaras e outros dispositivos de filma-
2. O ESTADO DE DESENVOLVIMENTO gem. Esse projeto seminal de cinema tradi-
NAS AMÉRICAS 2
cional resultou, no início do século XXI, em
Filmmaker in Residence (Katerina Cizek, NFB,
2.1 CANADÁ 2006)3, e, posteriormente, no símbolo chave
do documentário transmídia atual do National
Na nossa primeira parada vamos explorar Film Board, Highrise (Katerina Cizek, NFB,
o continente americano, especialmente a 2009-2015)4. Com o passar do tempo, o NFB vem
América do Norte. No Canadá, a cada ano são se especializando em quatro áreas que conver-
destinados milhões de dólares para a pro- gem e se complementam no campo da narrativa
dução interativa e transmídia de conteúdos transmídia de não ficção: o documentário, a
de ficção e não ficção. O governo oferece animação, a educação e a interação5. A pro-
financiamento público por meio do Canadian dução interativa e transmídia do NFB é ampla
Media Fund e outros editais, existem várias
3 O NFB ensaiando Highrise (Blog Webdocs. Historias del siglo XXI
instituições dedicadas à convergência dos
– RTVE.ES) http://blog.rtve.es/webdocs/2016/01/9-filmmaker-in-
residence-nfb-ensayando-highrise.html
4 www.outmywindow.nfb.ca. Ver página 106.
2 Para ver as ilustrações desta seção com prints selecionados
5 As sete maravilhas do NFB (Blog Webdocs. Historias del siglo XXI
pelo autor, acesse:
– RTVE.ES)
http://agifreu.com/img_catalogo_mostrabug/America_P.jpg
http://blog.rtve.es/webdocs/2016/04/2-las-siete-maravillas-del-nfb-parte-1.html
e diversificada, e pode ser consultada de projetos com financiamentos generosos.
na seção Interactive 6
em seu portal web. Em relação à pesquisa e desenvolvimento de
Do NFB destacamos os projetos Highrise , projetos educativos, destaca-se, entre os
Waterlife (Kevin McMahon, 2009)7, Welcome centros e grupos de pesquisa americanos, o
to Pine Point (Paul Shoebridge e Michael MIT Open Documentary Lab.
Simons, 2011)8, Bear 71 (Jeremy Mendes e Em relação à produção, destacamos dois nomes
Leanne Allison, 2012) , A Journal of Insomnia
9
na vertente criativa: Sharon Daniel14 e Jonathan
(Thibaut Duverneix, Bruno Choinière, Harris15. Sharon Daniel é uma artista que pro-
Guillaume Braun e Philippe Lambert, 2013)10, duz documentários interativos e participativos
In Limbo (Antoine Viviani, 2015) , Way to go 11
focados em temas de justiça social, econômica,
(Vincent Morisset, Philippe Lambert, Édouard ambiental e penal, construindo arquivos online
Lanctôt-Benoit e Caroline Robert, 2015)12 e e interfaces que aproximam as histórias de comu-
The Enemy (Karim Ben Khelifa, 2017) . 13
nidades marginalizadas para além dos limites
sociais, culturais e econômicos. Destacamos as
obras Public Secrets (2008)16, Blood Sugar (Sharon
2.2. ESTADOS UNIDOS Daniel e Erik Loyer; Vectors Journal, 2010)17,
Inside the Distance (LINC-KU Leuven, STUK Arts
Embora os Estados Unidos não sejam um país Centre, Courtisane, University of California em
que ofereça financiamento público volumoso Santa Cruz, Fórum Europeu de Justiça Restaurativa,
para produzir este tipo de documentários, Suggonomè - Serviço de Mediação Flamenca, OPAK,
ao longo do tempo vêm proliferando vários 2013)18 e Undoing Time PLEDGE/S.O.S (2013)19.
festivais e iniciativas privadas que mere- Jonathan Harris é um criador único, já que devido
cem destaque. É o caso de festivais como a uma formação combinada entre fotografia e com-
Tribeca, Sundance ou South by Southwest, putação, trabalha como um artista renascentista,
entre outros, em que o documentário intera- tendo desenvolvido uma habilidade extraordiná-
tivo e transmídia faz parte da programação ria e domínio de vários códigos e linguagens.
há muito tempo. Diversos festivais também Destacamos seus projetos We feel Fine (Jonathan
introduziram a categoria do documentário Harris e Sep Kamvar, 2006)20, Cowbird (2011)21, I
interativo e transmídia dentro de suas love your work (2013)22 e Network Effect (Jonathan
respectivas competições. Mas talvez o Harris e Greg Hochmuth, 2015)23.
mais interessante nestes festivais seja
14 http://www.sharondaniel.net/.
o instituto de promoção e financiamento:
La travesía de Sharon Daniel: De Public Secrets a Inside the dis-
especialmente o de Tribeca e Sundance. A tance. Parte 1-3 (Blog Webdocs. Historias del siglo XXI – RTVE.ES).
http://blog.rtve.es/webdocs/2014/08/3.html
Fundação Ford também promove este tipo 15 http://number27.org/. Jonathan Harris, el hombre orquestra (Blog
Webdocs. Historias del siglo XXI– RTVE.ES). http://blog.rtve.es/
webdocs/2016/02/4-jonathan-harris-el-hombre-orquestra.html
6 https://www.nfb.ca/interactive/ 16 http://www.sharondaniel.net/#publicsecrets
7 https://www.nfb.ca/film/waterlife/ 17 http://www.sharondaniel.net/bloodsugar/
8 https://www.nfb.ca/interactive/welcome_to_pine_point/ 18 http://www.sharondaniel.net/inside-the-distance/
9 https://bear71vr.nfb.ca/ 19 http://www.sharondaniel.net/undoing-time/
10 https://www.nfb.ca/interactive/a_journal_of_insomnia/ 20 http://wefeelfine.org/
11 https://www.nfb.ca/interactive/in_limbo/ 21 http://cowbird.com/
12 http://a-way-to-go.com/ 22 http://iloveyourwork.net/
13 http://theenemyishere.org/ 23 http://networkeffect.io/. Ver página 107.
DESENVOLVIMENTO ATUAL DO DOCUMENTÁRIO INTERATIVO E TRANSMÍDIA NAS AMÉRICAS, EUROPA... · ARNAU GIFREU CASTELLS · 60-71 63
2.3 ARGENTINA incompleta se não mencionássemos o departamento de
Comunicação Multimídia da Universidade Nacional
A Argentina é, sem dúvida, o país mais de Rosário que, através de seu diretor Fernando
fértil no âmbito estudado dentro da América Irigaray, lidera este projeto singular, e cuja
Latina. Os eventos e atividades na Argentina série de documentários transmídia sob a marca
em relação ao documentário interativo e DocuMedia Periodismo Social Multimedia, obteve
transmídia se concentram principalmente em importantes reconhecimentos durante os últimos
sua capital, Buenos Aires, e na cidade de anos. Destacamos Calles perdidas (Documedia-UNR,
Rosário. Os eventos dedicados ao tema como 2013)26 e Mujeres en venta (Documedia-UNR, 2015)27.
Doc Buenos Aires, Doclab, Foro de Periodismo Além disso, a Argentina é o único país da
Digital-Encuentro de Narrativas Transmedia América Latina que tem feito co-produções com
de Rosario, Mediamorfosis, Festival de Mar as duas emissoras públicas que mais apostam no
del Plata ou Ventana Sur incluem este tipo documentário interativo mundialmente: ARTE e
de narrativas em suas edições mais recentes. o National Film Board of Canada. Como exemplo
Em relação à experimentação e produção, citamos Primal (Bruno Stagnaro, Caroline Hayeur,
os especiais multimídia do jornal Clarín David Mongeau-Petitpas, Manuel Archain e Marc-
(1996-2009) foram os primeiros trabalhos Antoine Jacques, 2014)28, a primeira co-produção
pioneiros em não ficção no cone sul do con- da entidade canadense com o Canal Encuentro da
tinente americano. Trata-se de um conjunto Argentina, o canal de televisão do Ministério
de mais de 40 peças dirigidas por Gustavo de Educação da República Argentina.
Sierra e produzidas pela equipe multimí-
dia de Clarin.com, das quais destacamos El
viaje que el Ernesto se convirtió en el Che 2.4. COLÔMBIA
(2007). Em relação a criadores importantes,
o jornalista Alvaro Liuzzi é um dos pioneiros A Colômbia é outro dos países emergentes no cone
que vem trabalhando na convergência entre sul em relação à produção e promoção do documen-
documentário e jornalismo com um conceito tário interativo e transmídia. Este país conta
inovador: utilizar as plataformas de não com uma rede consolidada de eventos e mercados em
ficção com o objetivo de reviver em seu relação ao meio audiovisual e aos novos meios,
público fatos históricos chave na Argentina, entre eles: Bogotá Audiovisual Market, Festival
como o 30o aniversário da guerra entre Internacional de Cine de Cartagena de Indias,
Argentina e Grã Bretanha nas Malvinas, a Colombia 4.0, Festival de la Imagen, Muestra
identidade de Rodolfo Walsh em Clave Digital, Internacional de Documental de Bogotá, Festival
ou a comemoração dos 30 anos de democracia de Cine Creative Commons Bogotá, DocsBarcelona
no país. Destacamos seus projetos Proyecto Medellín, Ambulante Colombia, etc. Além disso,
Walsh (Alvaro Liuzzi, 2010)24 e Malvinas 30 existe um potente sistema de estímulos promovido
(Alvaro Liuzzi, 2012)25. pelo governo e Proimagenes, com financiamentos
Do mesmo modo, a análise estaria
26 http://www.documedia.com.ar/callesperdidas/
24 http://proyectowalsh.com.ar/ 27 http://www.documedia.com.ar/mujeres/. Ver página 110.
25 https://docubase.mit.edu/project/malvinas-30/ 28 http://primal.nfb.ca/es
e editais como Crea Digital (Ministério de 2.5. BRASIL
Tecnologias da Informação e Comunicação),
o Edital de documentário interativo para a No Brasil, o desenvolvimento da não ficção inte-
web (Ministério da Cultura), o Fundo para o rativa e transmídia apresenta bases sólidas,
Desenvolvimento Cinematográfico (Proimágenes embora se encontre em estado incipiente devido
Colombia), New Media Colombia e New Media à falta de subvenções públicas e investimento
Canadá (Proimágenes Colombia), etc. privado. Porém, mesmo com esse baixo investimento,
Na Colômbia, como na Argentina, as produtoras como Cross Content, sob a liderança
primeiras narrativas de não ficção inte- de Marcelo Bauer, têm criado plataformas como
rativa começaram pela via do jornalismo. ‘Webdocumentario.com.br’, que acolhem produções
Tratou-se de uma série de reportagens de baixo orçamento.
interativas denominadas Reportaje 36029 Em relação à pesquisa e formação, dois pio-
produzidas pela equipe de Novas Mídias neiros em narrativas digitais, Denis Porto Renó
do País de Cali, sob a direção de Felipe e Vicente Gosciola, tem se dedicado a estudar
Lloreda. Além da produção das reportagens e formar na área da não ficção a partir de suas
360o do País de Cali, destacamos os seguin- duas principais formas de expressão: o jorna-
tes documentários interativos e transmídia: lismo e o documentário. Destaca-se, também, o
4 Ríos (Elder M. Tobar, Orgánica Digital, trabalho do grupo de pesquisadores e cineastas
Centro Ático Universidade Pontifícia que se uniram e criaram a plataforma Bug404, uma
Javeriana, Identity School of Digital iniciativa promovida por André Paz com o apoio
Arts; Animaedro Estúdio de Animação e de Julia Salles, Claudia Holanda, Kátia Augusta
Fundação Chasquis, 2011)30; Cuentos de vie- Maciel e Mayra Jucá. Bug40435 tem como objetivo
jos (Marcelo Dematei, Carlos Smith, Laura contribuir para a expansão de dito campo no
Piaggio e Ana Ferrer, Hierro Animación, Brasil, não só através de pesquisa e divulgação
Piaggiodematei e Señal Colombia, 2013) ; 31
de estudos sobre narrativas interativas no mundo
Pregoneros de Medellín (Ángela Carabalí e e no Brasil, como também por meio de conferên-
Thibault Durand, Grupo Carabalí, 2015)32; cias, cursos, oficinas e eventos. Tem o mérito
Paciente (Jorge Caballero, Gusano Films, de estabelecer uma rede brasileira sobre novas
2016) 33
e Desarmados (Fabio Díaz Vergara, narrativas, oferecer conhecimento e suporte
Paola Morales Escobar e Juan Sebastián técnico para criar documentários interativos e
Zuluaga, Departamento de Comunicação apoiar a produção de projetos estratégicos, como
Social, Universidade EAFIT, 2017)34. Black-box e Bug Brasil.
Destacamos alguns projetos pioneiros como
Canto do Brasil (Geoffrey Hiller, 2006)36, Rio
de Janeiro: Autoretrato (Marcelo Bauer, Sérgio
Moraes, Giovanni Francischelli e Lucian Rosa,
2011)37, Copa para Quem (Maryse Williquet,
29 https://www.elpais.com.co/reportaje360/web/home.html
30 http://4rios.co/
31 http://cuentosdeviejos.com/ 35 http://bug404.net/
32 https://pregonerosdemedellin.com/#es 36 http://www.hillerphoto.com/brazil/intro.htm
33 http://pacientedoc.com/ 37 http://riodejaneiroautorretrato.com.br/dev2011/Content/Swf/in-
34 http://desarmados.org/ dex_portugues.html. Ver página 109.
DESENVOLVIMENTO ATUAL DO DOCUMENTÁRIO INTERATIVO E TRANSMÍDIA NAS AMÉRICAS, EUROPA... · ARNAU GIFREU CASTELLS · 60-71 65
Switch asbl, 2014)38, Ilha Grande: Cada ou Honkytonk Films, e de outras entidades
Praia, uma Ilha; Cada Ilha, uma História que contribuem para a produção e expansão
(André Paz, 2016) 39
e Som dos sinos (Marcia deste tipo de obras.
Mansur e Marina Thomé, Estúdio Crua, 2017)40. A principal emissora europeia, o canal
ARTE, é uma entidade que sempre se inte-
ressou pelos produtos culturais e artís-
3. O ESTADO DE DESENVOLVIMENTO NA EUROPA 41
ticos, potencializando a cultura em todos
os níveis. Seu departamento de web sempre
3.1 FRANÇA apostou na experimentação e inovação com
as formas não lineares e com os gêneros
A França é o país europeu que mais apostou de não ficção (especialmente reportagem e
na narrativa documental interativa e documentário). Toda a experiência adquirida
transmídia desde suas origens. O sistema com o desenvolvimento dos formatos ópticos
francês audiovisual e de novas mídias (CD Rom e DVD Rom) dos anos 90 na França
conta com muitos estímulos que se originam abriu caminho, várias décadas após, para
e fundamentam principalmente em três uma constante inovação na experiência do
pilares chave: primeiro, o fato de que usuário e usabilidade na web.
o cinema foi fundado e é original deste A toda esta estrutura de base, temos
país (1895), portanto a França tem uma que somar um circuito de mercados e fes-
longa tradição cinematográfica junto a tivais que possibilita o desenvolvimento,
outros países como os Estados Unidos. Em financiamento, produção, exibição e distri-
segundo lugar, é um país que tem apostado buição destas obras. Para mencionar alguns,
na inovação e experimentação tecnológica destacamos Cross Video Days (Paris), Sunny
em vários campos. Por fim, e talvez o Side of the Doc (La Rochelle) ou Marche du
mais determinante: conta com um sistema Film (Cannes).
de estímulos e financiamentos públicos no Produzidos na França, recomendamos
campo cinematográfico e de novas mídias os projetos Gaza-Sderot. Life in spite
que contribuem para expandir a cultura of everything (Khalil al Muzayyen, Robby
francesa. Boa parte das produções intera- Elmaliah, Films/Trabelsi Productions ,
tivas e transmídia recebeu contribuições The Sapir College, Ramattan Studios, Bo
generosas por parte de emissoras públi- Travail!, Upian, 2008)43; Prison Valley
cas, como ARTE42 ou France Télévisions, (David Dufresne, Philippe Brault, Upian,
do governo, por meio do Centre National ARTE , 2010) 4 4; Alma. A Tale of vio-
du Cinéma et de l’Image Animée (CNC), e lence (Miquel Dewever-Plana, Isabelle
de um conjunto de produtoras, como Upian Fougère, ARTE, Upian, 2012)45; Type:rider
(Cosmografik, Agat Films & Cie, Ex Nihilo,
38 http://www.copaparaquem.com/
BulkyPix, ARTE, 2013)46; Do not track (Brett
39 http://www.ilhagrandewebdoc.website/
40 http://somdossinos.com.br/
41 Para ver as ilustrações desta seção com prints seleciona- 43 http://gaza-sderot.arte.tv/
dos pelo autor, acesse: 44 http://prisonvalley.arte.tv/?lang=en. Ver página 110.
http://agifreu.com/img_catalogo_mostrabug/Europe_P.jpg 45 http://alma.arte.tv/. Ver página 121.
42 https://www.arte.tv/sites/en/webproductions/ 46 http://typerider.arte.tv/#/
Gaylor, Upian, ARTE, ONF, BR, 2016) 47
; Femke Wolting. Atualmente, detém estúdios
Dada-Data (Anita Hugi e David Dufresne, em Amsterdam e Los Angeles, e embora nos
Akufen, RSI, RTS, SRF, ARTE, 2016) 48
e primeiros anos tenha se focado no desen-
Phallaina (Marietta Ren, Smallbang, CNC, volvimento e produção de filmes lineares
FranceTV Nouvelles Ecritures, 2016) . 49
e interativos, o objetivo da empresa nos
últimos tempos tem sido criar projetos trans-
mídia significativos com ênfase especial na
3.2 HOLANDA animação interativa e nos jogos digitais.
Da Holanda, destacamos três projetos
A Holanda é outro ator importante neste interativos de não ficção produzidos por
campo por dois motivos particulares: pelo Submarine Channel: Collapsus: The Energy
desenvolvimento do IDFA Doclab50, a seção Risk Conspiracy (Tommy Pallotta, Submarine
interativa do International Documentary Channel, VPRO, Dutch Cultural Media Fund,
Film Festival de Amsterdam, o festi- SNS Reaal Fund, VSB Fund, Gasterra, 2010)51;
val mais importante de documentários do Unspeak (Tommy Pallotta, Submarine Channel,
mundo, junto ao Hot Docs Film Festival, VPRO, Creative Industries Fund NL, Dutch
em Toronto (Canadá). Há mais de 10 anos, Cultural Media Fund, Netherlands Ministry
o IDFA Doclab premia os melhores docu- of Culture, The City of Amsterdam, The
mentários interativos em sua competição Netherlands Film Fund, 2013)52 e Last Hijack
anual, oferece exposições, uma conferên- Interactive (Tommy Pallotta e Femke Wolting,
cia, navegações guiadas e vários eventos Razor Film, ZDF, IKON, Creative Industries
relacionados no final de novembro. Também Fund NL, The City of Amsterdam, The Dutch
co-produz projetos numa linha de difusão Cultural Media Fund, The Netherlands Film
do conhecimento e preservação digital Fund, 2014)53.
(Moments of Innovation, Online Database,
etc.). O segundo ator chave neste país
é a emissora pública VPRO, que destina 3.3 INGLATERRA
fundos volumosos à produção de ficção e
não ficção interativa e transmídia. A Inglaterra, como a Holanda, conta com dois ou
Finalmente, o terceiro convidado três ativos importantes em relação ao campo ana-
para a festa são as produtoras, e espe- lisado. Em primeiro lugar, em Bristol se realiza,
cialmente uma delas se constitui como desde 2011, a conferência mais importante do
uma das empresas mais férteis na produção mundo sobre documentários interativos, denominada
do documentário interativo do mundo: a i-Docs54. Trata-se de um encontro realizado a
Submarine Channel. Este estúdio holandês cada dois anos organizado por Judith Aston,
especializado nas narrativas transmídia Sandra Gaudenzi e Mandy Rose. A este encontro
foi fundado em 2000 por Bruno Felix e assistem boa parte das pessoas interessadas neste
DESENVOLVIMENTO ATUAL DO DOCUMENTÁRIO INTERATIVO E TRANSMÍDIA NAS AMÉRICAS, EUROPA... · ARNAU GIFREU CASTELLS · 60-71 67
âmbito a nível acadêmico, já que a Inglaterra 3.4 ESPANHA
concentra uma boa parte dos pesquisadores
deste campo, que embora não sejam naturais do A Espanha oferece um amplo leque de projetos
país, desenvolvem sua carreira acadêmica aqui. interativos de não-ficção, mas na maioria dos
Em segundo lugar, sua emissora prin- casos são produções com orçamentos limitados.
cipal, a British Broadcasting Corporation Se, por um lado, o país tem demonstrado
(BBC), lançou algumas iniciativas que pro- interesse e gerado expectativas, além de
moveram o desenvolvimento e produção deste deter uma boa formação e um sistema eficaz
tipo de narrativas, como é o caso de BBC de exibição e distribuição através de eventos
Taster 55
ou BBC Connected Studio , que são 56
e festivais consolidados (DocsBarcelona,
plataformas para a criação e desenvolvimento Documenta Madrid, Medimed, etc.), por outro
de narrativas digitais. Por último, vale lado o financiamento tem sido quase inexis-
mencionar que este país conta com formação tente. Isso limita a expansão das obras,
de alto nível no campo e centros de prestigio embora sirva como exemplo inequívoco de como
reconhecidos (DCRC-Digital Cultures Research é possível produzir com poucos recursos,
Centre da Universidade do Oeste da Inglaterra, muita criatividade e sistemas alternativos
Digital and Interactive Storytelling LAB da de captação de recursos.
Universidade de Westminster, etc.), assim como Na Espanha destaca-se em primeiro lugar
um circuito relevante de eventos e festivais sua emissora pública mais importante: Radio
que promovem a criação e financiamento de Televisión Española. O modelo de Laboratorio
documentários interativos: Sheffield Doc/ de Innovación Audiovisual criado no depar-
Fest, Mozilla Festival, etc. tamento de meios interativos de RTVE (Lab
Se a Inglaterra não se destaca pela sua RTVE)60 é único no mundo, reunindo uma equipe
produção, encontramos ainda bons exemplos pequena e muito qualificada que trabalha na
de convergência entre jornalismo e documen- experimentação constante em torno das lingua-
tário como em The Guardian, e os projetos gens das novas narrativas. O Lab RTVE começou
Global guide to the first world war (Francesca muito ativo nos primeiros anos, para terminar
Panetta, Lindsay Poulton e Iain Chambers, se centrando na co-produção de projetos de
The Guardian, Kiln.it, 2014) 57
e The shirt webdoc com sua marca denominada Factoría de
on your back (Lindsay Poulton, The Guardian, webdocs, e recentemente gerando conteúdos
WorldView, 2014) . Também destacamos Anyone’s
58
para Playz, a plataforma de conteúdos exclu-
Child Mexico: families for safer drug control sivamente digitais de RTVE.ES.
(Matthew Brown, Ewan Cass-Kavanagh, Mary Ryder O segundo importante ator espanhol é o
e Jane Slater, University of Bristol, 2017) . 59
festival DocsBarcelona61, que desde 2013 promove
sua seção interativa e transmídia do festival,
DESENVOLVIMENTO ATUAL DO DOCUMENTÁRIO INTERATIVO E TRANSMÍDIA NAS AMÉRICAS, EUROPA... · ARNAU GIFREU CASTELLS · 60-71 69
liderado por Adrian Miles e Francesca
Rendle-Short. Deste país destacamos os
projetos Long Journey, Young Lives (David
Goldie e Hilary Balmond, ABC, 2002)71,
Africa to Australia (SBS Online, 2010)72,
The Block: Stories form a Meeting Place
(Matt Smith, Alicia Hamilton e Poppy
Stockell, SBS, 2012)73, The Boat (Matt
Huynh, SBS Online, 2015)74, I’m your man
(Kylie Boltin e Damian McDermott, SBS,
2017)75 e Kgari (Ella Rubeli, Boris Etingof
e Kylie Boltin, SBS, 2017)76.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
71 http://www.abc.net.au/longjourney/documentary_broadband.html
72 http://www.sbs.com.au/africatoaustralia/
73 http://www.sbs.com.au/theblock/
74 http://www.sbs.com.au/theboat/
75 http://www.sbs.com.au/imyourman/
76 http://www.sbs.com.au/kgari/
NARRATIVAS INTERATIVAS
MÍDIAS E PLATAFORMAS
ECOAM O SOM DOS SINOS
MÍDIAS E PLATAFORMAS ECOAM O SOM DOS SINOS · POR JÉSSICA CRUZ · 72-81 73
E COMO FOI O PROCESSO DE PRODUÇÃO E TUDO SAIU COMO O PLANEJADO?
DO SOM DOS SINOS, ENGLOBANDO
TODA A OBRA TRANSMÍDIA?
MT: A gente cometeu um erro: não pegamos o
GPS de todas as igrejas que a gente foi,
MT: A gente fez uma viagem de campo, já
e isso para o App foi um problema, porque
colheu um pouco de repertório audiovi-
a gente não pegou as coordenadas e depois
sual, mas para pesquisa. Quando a gente
tivemos que buscar isso e deu um super
chegou para gravar, a gente tinha um
trabalho. Como é um projeto transmídia,
documento chamado forma do filme, um
tinha muita coisa em campo, a gente teve
pouco do formato audiovisual do pro-
que captar som, tinha as entrevistas para o
jeto como um todo, a gente sabia o que
App, as coordenadas das igrejas, as fotos,
a gente ia filmar, como ia filmar, já
os frames para o App, todo o material
tinha descrito quais os personagens que
para o longa-metragem, que tem um tempo
a gente queria achar, por exemplo, além
bem diferente dos planos, uma montagem bem
dos sineiros que já tinha essas repre-
mais espaçada, tem uma coisa toda com a fé
sentações da juventude, da tradição,
popular, então a gente tinha muito mate-
tinha também uma coisa de falar com a
rial para captar com direções audiovisuais
comunidade, a gente tinha uma relação
diferentes, mas a grande maioria a gente
de personagens, queríamos uma parteira,
conseguiu pensar antes, acho que só a temá-
porque ia ter uma questão do nascimento e
tica do webdoc que era dentro da torre foi
na morte do sino, coveiros, um escultor,
uma coisa posterior de edição e de conceito
santeiro...No campo, quando chegamos, a
principal, e essa parte do App que deu
gente foi descobrindo os personagens,
muito trabalho, acho que o produto que mais
mas a gente já tinha tudo isso mapeado.
deu trabalho foi o aplicativo.
Em termos técnicos, o webdoc precisaria
de cenas mais imersivas, então a gente
já ia com essa câmera mais imersiva, que
subia as escadas, que descia as esca-
das, que ia pegando detalhes da fachada EM TERMOS DE EQUIPE, O QUE TINHA DE
das torres, que ia pegando os nomes dos NOVO? VOCÊS TIVERAM DIFICULDADE PARA
ACHAR PROFISSIONAIS CAPACITADOS?
sineiros na parte interna, na pedra, a
gente já sabia que queria mostrar a torre
aos poucos, não queria nada de planos MT: A gente contratou 40 pessoas, que
gerais, você pode ver que tem poucos trabalharam nesse projeto, mas tinha uma
MÍDIAS E PLATAFORMAS ECOAM O SOM DOS SINOS · POR JÉSSICA CRUZ · 72-81 75
FALE UM POUCO DO MATERIAL COMO FOI CONCEBIDO O WEBDOCUMENTÁRIO
CAPTADO. COMO FOI O SOM DOS SINOS, ESPECIFICAMENTE?
APROVEITAMENTO?
são três projetores que relacionam esse MT: No CRUA Doc estamos na fase de distri-
universo da torre, e você está imerso buição do Gary, que é um curta, finali-
nessas imagens. Tem um conteúdo que é zando a distribuição do Som do Sinos, que
do webdoc, e em um dos projetores tem um a gente vendeu para o Canal Brasil. Alzira
conteúdo inédito. Espindola, a gente ganhou o Itaú Cultural
agora para desenvolver o longa-metragem
da vida dela, então, estamos trabalhando
nesses projetos agora.
MÍDIAS E PLATAFORMAS ECOAM O SOM DOS SINOS · POR JÉSSICA CRUZ · 72-81 77
feiras internacionais, também essas
grandes produtoras com núcleos intera-
tivos e que cada vez mais estão tomando QUE DESAFIOS VOCÊS TÊM ENFRENTADO?
chão, tanto na área de propaganda e agora
na área de entretenimento, que envolve
MT: Um é a gente conseguir formação, é
cinema, tem muito festival com VR, e
uma questão, porque quando a gente faz
acho que o Brasil está começando a criar
esses laboratórios, tem pessoas de várias
algumas alternativas nesse sentido.
áreas diferentes, tem um filmmaker, um
Quando a gente fez o Som dos Sinos era fotógrafo, um designer, um pesquisador,
uma coisa totalmente nova, e acho que um arquiteto, e muito pouco curso de for-
ainda é para a área de patrimônio cul- mação, curso técnico, tanto que a SPCine
tural. Acho que um caminho para as nar- está criando esses cursos, está chamando
rativas interativas é de impacto social. essas empresas para poderem criar cursos
Acho que mais do que para área de entre- de formação mesmo. Então acho que formação
tenimento, em um país como o Brasil, é uma questão, que a gente precisa. Dois:
que precisa, que tem uma necessidade de banda larga, no Brasil, a gente enfrenta
trabalhar com direitos humanos, impac- muito esse problema, a gente vai dar aula,
tos sociais, uma estratégia transmídia inclusive em São Paulo, não tem internet
é muito importante, tanto para alcançar para dar aula em instituições grandes.
mais público, quanto para fazer projetos
E, com certeza, investimento público para
que consigam viabilizar ajuda externa,
isso, são editais muito pequenos, as pessoas
articulação em rede.
não são muito bem remuneradas em todos os
E acho que a CRUA enxerga muito isso sentidos, como eu disse, projetos de tecno-
no nosso trabalho de formação, a gente logia são caros, as pessoas são remuneradas
produz colaborativamente, a gente tem por hora, então não é fácil você contratar
ideias de fazer parcerias para traba- com um custo tão baixo. Tecnologia você
lhar com VR nos próximos laboratórios. precisa de dispositivo, você vai fazer uma
Em termos de tecnologia, vai mudando, a exposição de 360o e RV, você tem que ter o
cada ano já muda muito, toda aula que cardboard, internet boa, fio, cabo, tem que
a gente vai dar tem tecnologias novas ter alta tecnologia, Led, a gente faz muita
para falar e discutir, o próprio celu- coisa com projetor, os lugares grandes não
lar, em termos de produção muda muito tem projetor, como você vai fazer uma expo-
a produção audiovisual, o Brasil tenta sição interativa? É muito difícil, eu fui
correr atrás, mas é difícil, porque lá na exposição do Bill Viola, são uns puta
fora eles já estão em outro momento, já projetores, projetando em granito, imagina
se discute preservação audiovisual nesse quanto custa, é muito dinheiro. Como você
meio de transmídia. vai ser artista visual e trabalhar com
projetor e RV? Isso é dinheiro! Falta de
investimento, formação e banda larga, só que onde tem verba para isso que não é
esses são os desafios. propaganda, não é interesse privado?
jornada do usuário que a gente fala, mas o elemento temático, então a gente já vem
todo mundo tem um celular, as empresas entendemos que as vilas operárias seriam um
vão investir nisso porque é onde os con- dispositivo narrativo incrível para falar
sumidores estão. O investimento digital da história de São Paulo, para falar sobre
está cada vez maior, e já ultrapassou a relações de trabalho e sobre questões que
TV. Só que na nossa área, que é impacto são muito atuais hoje, como imigração e
social e patrimônio cultural, isso sim formas de moradia na cidade. A gente apre-
é muito difícil uma empresa investir, sentou para o Centro de Pesquisa e Formação
porque quando você trabalha com impacto do SESC, que são parceiros da CRUA já há 3
social, mesmo, não estou falando de uma anos, um projeto de laboratório, isso era
empresa que fala que a beleza da mulher outro desejo nosso. A gente desenvolveu a
é o que vale, estou falando de impacto metodologia de hackathons, que são 6 dias,
social que envolve uma série de verten- 8 horas por dia, de 15 a 20 pessoas, então
tes políticas, não vai querer se expor, é uma maratona intensiva, que tem essa
projetos transmídia em direitos humanos, soas, cada grupo teve escolhas narrativas
MÍDIAS E PLATAFORMAS ECOAM O SOM DOS SINOS · POR JÉSSICA CRUZ · 72-81 79
bem interessantes, eles foram em cinco
vilas operárias diferentes. Teve um
grupo que falou sobre moradia, como é
morar uma casa que é patrimônio, outro
grupo foi pelos esportes que têm nas
vilas, que é uma coisa que une as pessoas
mais idosas, histórias das vilas, e um
grupo que falou bastante do bairro de
Perus, onde tem uma fábrica antiga e uma
vila onde hoje em dia não se pode entrar.
NARRATIVAS IMERSIVAS:
IMAGINANDO MÚLTIPLAS
REALIDADES
JULIA SALLES1 E
MARÍA LAURA RUGGIERO2
3 A estereoscopia é uma técnica binocular de imagem que funcio- tecnologia entre usuário e computador, que emprega
na da seguinte forma: durante a captação da imagem, duas lentes
simulação em tempo real e interações via vários
alinhadas no eixo horizontal registram imagens da mesma cena
com um distanciamento correspondente à distância entre os olhos canais sensoriais. As modalidades sensoriais são
esquerdo e direito do sistema de visão humano. Em seguida, a
exibição da imagem estereoscópica é feita em um dispositivo
a visual, auditiva, táctil, olfativa e de pala-
binocular que exibe no visor do olho direito a imagem capta- dar” (Burdea & Coiffet, 2003, p. 3). Todas estas
da pela lente à direita do dispositivo de captação (o mesmo
procedimento é aplicado no visor do olho esquerdo). Assim, a características contribuem para uma impressão
sensação de profundidade é restituída de forma semelhante ao
viva de ter sido transportado ao espaço virtual.
processo de visão humana, que estima a profundidade com base na
triangulação entre o objeto observado e as posições dos olhos Em alguns tipos de experiência de RV tam-
esquerdo e direito. O mesmo procedimento pode se aplicar a
imagens de síntese.
bém é possível se ‘deslocar’ dentro da imagem.
4 https://www.statista.com/statistics/752110/ Um conceito que ficou bastante popular para
global-vr-headset-sales-by-brand/
NARRATIVAS IMERSIVAS: IMAGINANDO MÚLTIPLAS REALIDADES · JULIA SALLES E MARÍA LAURA RUGGIERO · 82-91 83
classificar o grau de interatividade com a sobre os equipamentos corre o risco de estar
imagem em dispositivos de RV é o de ‘graus rapidamente desatualizado.
de liberdades’ (muitas vezes referido como Quanto ao conteúdo, algumas das principais
DoF, do inglês, degrees of freedom). No caso plataformas de distribuição de experiências
das imagens em 360° (estereoscópicas ou não), narrativas em RV são SteamVR, Oculus, Within.
fala-se em 3 graus de liberdade: o olhar pode Você pode fazer o download de games, vídeos e
se movimentar nos eixos horizontal, vertical outras experiências, como Kurious, do Cirque du
e diagonal. Neste caso, a imagem reage aos Soleil. A produção e distribuição de conteúdo
movimentos que o participante pode fazer para realidade virtual também tem ganhado força
com a cabeça: olhar para os lados, olhar no campo do jornalismo: The Guardian, New York
para cima e para baixo, inclinar a cabeça. Times, AJ+ e ARTE são exemplos de veículos
No entanto, se o participante movimentar pioneiros na área do jornalismo em RV. Como
seu corpo no espaço (sem alterar a posição relata Marcelle Hopkins, vice editora de vídeo e
da cabeça), a imagem virtual 360° não se co-diretora de realidade virtual no The Times:
altera. Para os deslocamentos do corpo no “Jornalistas e tecnologistas de várias áreas
espaço são necessários outros ‘graus de no The Times começaram a experimentar com a
liberdade’. Seis graus de liberdade, ou 6DoF, realidade virtual há poucos anos. Lançamos o
refere-se à possibilidade de a imagem reagir NYT RV em novembro de 2015 ao publicar o docu-
aos deslocamentos do participante para os mentário RV The Displaced (sobre três crianças
lados, para frente/trás, e para cima/baixo. refugiadas por guerra) e a distribuição de
Com isso, além dos movimentos de rotação da mais de um milhão de dispositivos de realidade
cabeça, a imagem também reage aos movimentos virtual Google. Desde então, produzimos mais
do corpo no espaço. de 20 filmes RV, e aprendemos muito com cada
No caso da RV 360° (3DoF), para poder um deles” (Hopkins, 2017).
fazer a experiência, o participante precisa Festivais de cinema também têm tido um
de um óculos de realidade virtual (preferen- papel importante na difusão de conteúdo de
cialmente com um fone de ouvido) e conteúdo realidade virtual criando programas dedicados
em 360°. A experiência em 6DoF exige um dis- à exibição de narrativas digitais e em RV.
positivo um pouco mais complexo, pois além Casos emblemáticos desta abertura dos festivais
dos óculos e do conteúdo específico, muitas de cinema à realidade virtual são o programa
vezes há a necessidade de sensores externos, New Frontier, do Sundance Film Festival, o
joysticks e computadores com processador e DocLab, do IDFA (International Documentary Film
carta gráfica muito potentes. Todos estes Festival of Amsterdam), e mais recentemente,
elementos necessários à experiência em 6DoF Venice VR, o programa dedicado à realidade
acabam encarecendo bastante o consumo deste virtual da Mostra de Veneza.
tipo de tecnologia, o que diminui muito sua Como podemos observar, as formas de difu-
acessibilidade. Hoje em dia existem muitos são e de consumo de realidade virtual apresentam
tipos de óculos de realidade virtual no algumas especificidades e diferenças em relação
mercado. O cenário de hardware evolui muito ao cinema e outras narrativas audiovisuais
rapidamente, portanto, qualquer comentário lineares. O mesmo acontece com a criação do
conteúdo. Neste artigo, abordaremos alguns todos esses fatores, vemos que o campo audiovi-
aspectos do processo criativo de reali- sual começou uma expansão em direção ao design
dade virtual: como pensar e desenvolver de experiência.
uma experiência imersiva que traz o corpo
do participante para dentro do conteúdo
audiovisual? Como construir uma narrativa COREOGRAFIA DA ATENÇÃO
na qual elementos essenciais da linguagem
cinematográfica (como o enquadramento) são Nas narrativas lineares as ações se inscre-
transformados? Buscamos neste texto propor vem dentro de um enquadramento definido pelo
algumas pistas iniciais para uma linguagem diretor. Já nas narrativas-de-experiência, o
em construção. enquadramento ainda existe como esfera, o que
permite ao diretor uma versão mais avançada do
seu papel tradicional. O diretor cria narrativas
EVOLUÇÃO DA NARRATIVA EM DIREÇÃO espaciais e gera algo maior que um quadro limi-
AO DESIGN DE EXPERIÊNCIAS tado: ele constrói um espaço 3D que contém um
universo narrativo de características especiais.
Desde a invenção do cinematógrafo e durante Entre as características que fazem da RV um
a explosão do rádio, teatro e TV massivas, modo narrativo singular, surge o conceito de
as narrativas passaram por vários graus de ‘coreografia da atenção’.
imersão e conexão com a plateia. A emergência Em experiências de RV, não se pode garantir
do mundo digital não apenas gerou a possibi- que o participante ou visitante observe exata-
lidade de criar um hiperrealismo sintético, mente o que o diretor deseja. Nem é o objetivo
mas também abriu as portas às narrativas deste tipo de tecnologia-técnica monopolizar
transmídia, recriando um mundo de entrete- a atenção do participante, mas é certo que há
nimento que hoje permite a participação no vários modos de projetarmos caminhos que serão
processo criativo e uma ampla gama de opções criados com base na atenção do participante.
de interação com as histórias. As narrativas espaciais podem ser cria-
O mundo digital abriu a porta para uma das de vários modos: como uma coreografia que
grande quantidade de mudanças que geraram trabalha com pontos nodais de emoção distri-
uma reconfiguração dos papéis na indústria buídos pelo espaço 3D, ou com uma direção de
do cinema e do audiovisual. Sem descartar arte detalhada que dirija o movimento da aten-
o passado e o presente, o futuro imersivo ção para propor significados. Movimento, cor,
desponta como uma construção repleta de luzes e sombras, design sonoro, e os próprios
desafios para criadores e participantes. diálogos podem agir como ganchos que levam o
Atenção, empatia, usuários, protótipos e participante a rotas possíveis no multiverso
interatividade são alguns dos termos que de histórias.
começam a se tornar centrais na criação A atenção pode ser dirigida como uma
audiovisual. Observamos a transformação de coreografia desde a fase de concepção: pode-se
histórias lineares em universos narrativos, trabalhar com modelos em diferentes escalas ou
de plateia em participantes. Considerando com atores que se deslocam no espaço. Também
NARRATIVAS IMERSIVAS: IMAGINANDO MÚLTIPLAS REALIDADES · JULIA SALLES E MARÍA LAURA RUGGIERO · 82-91 85
é possível mensurar a atenção através de Square Enix, também explora diferentes téc-
mapas de calor em um protótipo que funcione nicas narrativas que podem contribuir com
como demo. Para que a força da experiência a ‘coreografia da atenção’. A combinação
imersiva não se torne opressora, é neces- do formato tradicional de Mangá em 2D com
sário entender e equalizar a quantidade de imagem e áudio 360o permite a passagem de
informação sensorial que o participante irá um regime de enquadramento para um regime
receber para traçar seus possíveis caminhos de imersão. Dessa forma, a coreografia da
na história. Algumas das obras em RV que atenção se constrói num vai-e-vem entre 2D
participaram da Mostra BUG ilustram bem e 3D, entre enquadramento da cena e presença
como o conceito de ‘coreografia da atenção’ no espaço virtual. Essa técnica também nos
opera em narrativas desse tipo. permite ter a sensação de entrar no mundo
A Mostra BUG exibiu dois trabalhos, fictício do Mangá, de forma que podemos
frutos da colaboração entre Felix & Paul entrar no enquadramento e nos vemos rodeados
Studios e Cirque du Soleil, ambos baseados de personagens fictícios que estão vivendo
em Montreal (Canadá). Nesta colaboração, a história ao nosso redor.
eles exploraram várias técnicas que podem
ser aplicadas na ‘coreografia da atenção’.
Through the Masks of Luzia5, baseado em ESPECTADOR. PARTICIPANTE. JOGADOR. VISITANTE
um dos espetáculos do Cirque du Soleil, é
“considerada a primeira experiência em rea- Desde que as histórias começaram a se expandir
lidade virtual feita por meio de processos ultrapassando as plataformas lineares tradi-
de hiperestereoscopia e hipoestereoscopia”. cionais e começaram a envolver dispositivos
Estas técnicas permitem que “o participante digitais, o papel da audiência mudou e evoluiu,
ora se sinta como um gigante ora como uma não só em termos de marketing, mas também em
miniatura em meio a cenas de acrobacias termos de narrativa. Neste processo, o grupo
inacreditáveis. Para aumentar ainda mais a que se denominava como audiência começou a
imersão, as equipes de criação da companhia entrar na narrativa de corpo inteiro e a
redesenharam as performances artísticas, retomar, de forma híbrida, outros papéis. De
criando algo completamente novo”. espectador a participante, a audiência ganhou
Já em Dreams of O6, para que a experi- uma nova perspectiva: se tornou visitante de
ência em realidade virtual pudesse acompa- mundos criados ou capturados.
nhar os momentos aquáticos da coreografia, a Como é entrar em uma narrativa com nosso
Felix & Paul Studios desenvolveu uma câmera corpo inteiro? Se por um lado essas experiên-
VR com imagem de alta qualidade adaptada cias não ocorrem apenas na realidade virtual
para o mergulho. e na realidade aumentada, mas também aconte-
Tales of Wedding Rings , uma expe- 7
cem em experiências abertas, mais parecidas
riência de Mangá imersivo produzida pela com teatros não-convencionais ou teatros sem
um palco principal, por outro, a experiência
NARRATIVAS IMERSIVAS: IMAGINANDO MÚLTIPLAS REALIDADES · JULIA SALLES E MARÍA LAURA RUGGIERO · 82-91 87
plataformas. Dependendo do conteúdo e da complicado e inexato. Histórias, em qualquer
sensorialidade da experiência, a maneira plataforma, tem a possibilidade de mudar o
como saímos da história é completamente mundo, porque narrativas em geral despertam
diferente em cada caso: não é o mesmo sair um processo empático.
da experiência de um documentário de guerra Pensar em uma plataforma tecnológica,
e sair de um passeio de montanha-russa. É tal como realidade virtual, como um tipo de
importante ter em mente que durante essa plugin que nos permite sentir como outros, é
experiência o visitante é pura emoção, ele reduzir todos os processos humanos a uma mera
não se concentra em reflexões durante os ativação tecnológica. Se a história que esta-
minutos de existência na realidade virtual, mos contando não possui um design cuidadoso e
mas esse tempo de reflexão chega no final. imersivo, um desenrolar emocional habilidoso,
A transição de volta da virtualidade para o e um processo de narrativa detalhado, gerare-
mundo físico deve gerar um espaço adequado mos experiências que podem ser igualadas a um
para reflexão ou uma nova ação. ‘turismo de situação’.
Viagens virtuais podem nos levar a vários
eventos e emoções, mas o modo como chegamos
EMPATIA, EMOÇÕES E DESIGN FEITO lá fará a diferença entre poverty porn ou uma
POR HUMANOS: O PLUGIN EMPÁTICO? experiência de impacto profundo. O termo poverty
porn foi introduzido pela primeira vez nos anos
Desde o começo da última onda de RV, o conceito 80 e sugeria o uso de mídia, especialmente
de ‘empatia’ foi lançado como um componente filmes e fotos, explorando situações de pobreza
significativo. A ideia de ‘Máquina Empática’ ou injustiça para aumentar doações a uma causa
desenvolvida por Chris Milk, na palestra The ou para introduzir situações sociais difíceis e
Birth of Virtual Reality as an art form (O específicas para audiências privilegiadas. A RV
nascimento da realidade virtual como forma de e essa noção vaga de uma tecnologia empática e
arte), na plataforma TED Talk, em 2015, mostra imersiva imediatamente virou um terreno fértil
que a realidade virtual cria um solo fértil para uma nova onda de poverty porn.
para a indústria de entretenimento faminta por É importante lembrar que toda história e
engajamento e atenção. “A [realidade virtual] contador de história, que são eficazes em suas
conecta humanos com outros humanos de maneira missões, ativam empatia e esse processo não
tão profunda como jamais vi em qualquer outra diz respeito apenas à tecnologia utilizada.
mídia, e consegue mudar a percepção que as Estudos em neurociência (Stephens, Silbert, &
pessoas têm umas das outras. (...) É por isso Hasson, 2010) afirmam que nossos cérebros sin-
que eu acho que a realidade virtual tem o cronizam as emoções do contador de história com
potencial para de fato mudar o mundo10. as emoções da audiência que escuta ou assiste.
Apesar de existirem elementos factuais As mesmas partes do cérebro se ativam quando
para igualar RV com um processo empático, sentimos junto com outros, como uma ponte que
pensar em RV como uma máquina empática é nos conecta pela história. Então essa máquina
empática já existe, é o que conduziu a humani-
10 https://www.ted.com/talks/ dade por anos desde que os primeiros contadores
chris_milk_the_birth_of_virtual_reality_as_an_art_form
de histórias apareceram em nosso planeta, a porque elas criam um estranho tipo de compro-
máquina empática é a história sendo contada misso. Mas será que é um problema relacionado
ou vivida. Mas a RV estaria melhorando isso, à tecnologia? Não. A narrativa está faltando
fazendo isso evoluir ou apenas é um outro nesta equação. Precisaríamos construir mais
meio para se experimentar histórias? máquinas empáticas ou construir nós mesmos
A realidade virtual e nosso mundo como melhores contadores de história? Poderei
mediado por telas onde narrativas digitais ser empático no mundo virtual se não o sou na
nos protegem da opção de ser vulnerável, nos realidade?
dão uma forma segura para participar de uma Quando crio uma experiência de realidade
ação individual ou coletiva, sem realmente virtual em que o participante é jogado em uma
vivenciar isso e com uma saída de emergência zona de conflito, e vive a dor de outros,
bem definida. estaria despertando empatia? Ou provocando
As maravilhas do mundo digital nos per- empatia? Um meme me faz ser engraçado? Photoshop
mitem ser ativistas-de-um-clique, defendendo me faz ser bonito? Posso viajar para o inte-
causas dolorosas do nosso sofá de couro, a rior da dor enquanto estou protegido com uma
salvo da crueldade. Isso permite que nos armadura digital?
conectemos a centenas de pessoas em um dia Entender que estamos vendo o nascer de
sem realmente ter conectado com nenhuma. uma nova linguagem é a chave para nos pergun-
Também nos permite falar coisas que nunca tarmos como devemos tratar da empatia dentro
falaríamos pessoalmente. Nós já vivemos em do processo de design. Para ser mais preciso:
realidades virtuais toda vez que entramos em estamos no alvorecer de uma nova tecnologia que
redes sociais, equipados ou não com óculos ainda não criou sua linguagem. E linguagem é
de realidade virtual do Google. importante. A linguagem abre e destrói barrei-
Mais uma vez, o problema não está na ras do possível ou imaginável. A linguagem nos
tecnologia e sim no quanto participantes, permite dar nome aos nossos sonhos e medos e
criadores e cidadãos de um mundo digital se por esse processo, construir o que é possível.
dedicam para entender a realidade atual, A criação dessa linguagem é o processo
tendo que lidar agora com um mundo virtual, chave que não deveria ser ligado unicamente
real e aumentado, compartilhado. Ser um aos criadores da ferramenta. Nós não queremos
cidadão de milhares de lugares ao mesmo que os inventores da imprensa sejam os únicos
tempo não é fácil. que podem publicar livros, queremos?
O uso das ferramentas de realidade vir- Participar do processo onde linguagens e
tual para uma nova sociedade de informação narrativas emergentes são criadas deveria ser
ainda é questionável. Em uma experiência eu um diálogo diverso desde o princípio, consi-
posso ser o centro de um conflito, mas se eu derando origem, gênero, acesso à tecnologia e
estou olhando para ele de fora (desconexão) visões criativas. Se faltar essa diversidade
eu não consigo atuar, eu continuo um voyeur na proposta da linguagem audiovisual, faltará
externo e flutuante da dor dos outros. verdade, ela se tornará uma linguagem monopo-
As realidades sintéticas podem nos lizada ou uma linguagem morta. E o mesmo acon-
roubar a opção de ser realmente vulnerável, tecerá se faltar emoção ou se a narrativa for
NARRATIVAS IMERSIVAS: IMAGINANDO MÚLTIPLAS REALIDADES · JULIA SALLES E MARÍA LAURA RUGGIERO · 82-91 89
conduzida por comiseração. Citando o trabalho linear até que o participante sentisse certas
de Brene Brown (The power of vulnerability, emoções ou foi uma jornada que levou o par-
XX), apresentado na plataforma TED talk, a ticipante por diferentes estados emocionais
“Empatia alimenta a conexão; comiseração (curiosidade-tensão-medo-terror por exemplo)?
conduz à desconexão” . 11
Como construímos medo, tristeza, alegria
A exploração atual da linguagem de RV ou êxtase? Da mesma forma que a imersão e empa-
irá mais cedo ou mais tarde levar à democra- tia não são processos automáticos dirigidos
tização da tecnologia, mas também à demo- pela tecnologia, gerar emoções também é um
cratização de uma linguagem aberta que irá processo construtivo e humano. Trabalhar com
começar a se mesclar com nossas vidas e com os nós emocionais em uma narrativa imersiva,
nossos meios preferidos de entretenimento, sugere conectar com a realidade física antes
informações e prazer. de conectar com a realidade virtual.
Como nos lembramos de experiências humanas
que foram realmente memoráveis? O que sentimos
DESIGN CONDUZIDO POR HUMANOS E EMOÇÕES naquela noite em que estávamos com muito medo
de ficarmos sozinhos na floresta? O que sentiu
Criações em transmídia, realidades virtuais e naquela vez em que você estava tão apaixonado
experiências interativas tem a peculiaridade pela vida que não conseguia parar de sorrir? Ao
de poder adicionar camadas de complexidade nos lembrarmos, se tentarmos esmiuçar as nossas
diferentes e novas habilidades para os pro- experiências, distinguindo elementos sensoriais
cessos criativos da narrativa audiovisual. e de narrativa, vamos chegar a vários elementos
Esses tipos de criações são abordados que vão nos ajudar a construir e reconstruir
por um processo de design que tem em mente emoções. Quando estamos felizes, sentimos tudo
o participante-humano durante a criação da em um ritmo diferente de quando estamos com medo.
narrativa e da jornada visual que ele irá As percepções variam em cores, tonalidades, a
experimentar. percepção de uma geometria fica mais amigável
Esse processo de narrativa também é ou mais intimidante. O relato detalhado de uma
um processo de design sensorial para criar, experiência vivida ajuda a conectar com todos os
balancear e gerar histórias (enredo) e emo- elementos que fizeram parte desta experiência.
ções em uma atmosfera virtual. Uma forma de Este relato pode contribuir para que possamos
entrar nesse processo de design pode ser pela em seguida analisar e replicar estes elementos
engenharia reversa, criando uma experiência na experiência na realidade virtual. A rea-
através de pontos nodais que concentrem lidade física, sonhos e memórias são cruciais
emoções diferentes. para o processo de design de outras realidades
Exemplo: Quando estiver saindo da expe- alternativas.
riência de RV, qual é o sentimento que desejo Entender a arte e o ofício de uma mídia
que o participante traga de volta consigo incluindo a vasta quantidade de elementos que
para a realidade-física? Foi uma trajetória a linguagem híbrida audiovisual e experien-
cial incorpora, requer paciência e vontade
de explorar. Essa exploração exige de nós que
11 https://www.ted.com/talks/brene_brown_on_vulnerability?language=pt-br
entremos em um terreno diferente que começa
a surgir na sociedade atual: a transição do
contar-história para o vivenciar-história.
Nessa jornada de exploração das conexões
de conteúdo, plataformas tecnológicas e
interação, precisamos que os criadores não
apenas recriem o que vivemos como reali-
dade, mas também as vastas possibilidades
que se abrem de interferir neste universo,
com uma visão artística poderosa. O desafio
será identificar uma experiência que vale a
pena ser recriada, e depois levá-la adiante,
construindo versões alternativas daquela
experiência plena de significado, provocando
a exploração infinita do campo artístico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NARRATIVAS IMERSIVAS: IMAGINANDO MÚLTIPLAS REALIDADES · JULIA SALLES E MARÍA LAURA RUGGIERO · 82-91 91
NARRATIVAS IMERSIVAS
3 https://www.felixandpaul.com/?projects/
cisando de pessoal, porque pretendemos ampliar
inside_impact_east_africa ainda mais”, anuncia Cindy.
4 https://www.felixandpaul.com/?projects/maasai
FÉLIX & PAUL STUDIOS: VISITA GUIADA AO PRESTIGIADO ESTÚDIO DE REALIDADE VIRTUAL · POR FANNY BELVISI · 92-99 93
Depois dos cookies e do chá, é hora de e sintaxe, que estão aqui bem confusas. O
acessar as obras propriamente ditas. O que espectador está verdadeiramente dividido entre
sustenta a reputação da Félix & Paul Studios um aqui (seu corpo) e um ali (sua consciência).
é justamente o posicionamento que assumem Se esta mídia é a materialização de um antigo
frente aos projetos, com uma abordagem docu- sonho do Homem – o poder da onipresença – a que
mental que permite um mergulho no coração nova relação com o corpo ela nos leva?
de situações ‘reais’ onde o espectador vive Roland Barthes analisa, em 1968, o que
uma experiência quase ‘pura’. ele chama de ‘efeito do real’8 no âmbito da
Cindy coloca o imponente, e para ser literatura realista. Esse ‘efeito do real’ na
sincero bem desconfortável, capacete de RV presença, no contexto dos textos literários,
nos meus olhos e um par de fones nos ouvidos. mais especificamente dos romances realistas do
A viagem começa com uma das primeiras rea- século XIX, trata de elementos descritivos que
lizações do estúdio, Strangers with Patrick não tem nenhum valor funcional. Ou seja, que não
Watson5, na qual o espectador é imerso na são úteis para a narrativa em si do romance.
intimidade de um músico ensaiando em um estú- Esse ‘efeito’ surge claramente relacionado
dio. Seguimos nossa exploração com Nomads: aos elementos descritivos do texto que agregam
Herders6, fascinante incursão nas paisagens menos à ação, mas validam uma relação imediata
da Mongólia com uma cena impressionante onde e autêntica com o real. Tendo em mente esta
o espectador se infiltra no interior de uma reflexão, podemos nos perguntar: a força da
yurt e se encontra cercado por uma família realidade virtual não viria também justamente
de mongóis comendo e entretida em seus afa- deste ‘efeito do real’? Tomando esse entendi-
zeres. Temos a mesma sensação de vertigem mento como fundamento, pode-se concluir que a
diante de um tête-à-tête com Bill Clinton, narrativa dos filmes produzidos até agora é
praticamente em carne e osso, sentado no relativamente fraca, e que o espectador final-
seu escritório, falando conosco em Inside mente chega mais perto da sensação de assistir
impact: East Africa with President Clinton. à uma descrição da realidade – que não é a sua
E como o Félix & Paul Studios se lançou na – mais do que se ater a uma história.
ficção, Cindy nos mostra o projeto Wild - A realidade virtual oferece ao espectador
The Experience , apresentado no Festival
7
uma experiência estética potente de estímulo
Sundance em 2014, elaborado em parceria com dos sentidos. Contudo, privando o público de
Fox Searchlight e Fox Innovation Lab, à época uma distância física em relação à obra, ela não
da estreia do filme Wild. lhe tira também, de um certo modo, sua distância
No final das contas, a experiência crítica, aquela que permite apreciar uma obra
sensorial é convincente, ainda que a mídia e a representação do real que ela propõe? Além
levante muitas reflexões. A realidade virtual disso, que representação da realidade oferece a
altera questões críticas do cinema ‘clás- realidade virtual? Como ela difere do cinema? O
sico’, e nos obriga a repensar sua gramática que acontece com os conceitos de enquadramento
e planos? O papel do diretor permanece o mesmo
5 https://www.felixandpaul.com/?projects/introtovr
6 https://www.felixandpaul.com/?projects/herders
7 https://www.felixandpaul.com/?projects/wild 8 www.persee.fr/doc/comm_0588-8018_1968_num_11_1_1158
ou será que ele passa a assumir a função de dessas pausas, o espectador está mais apto
um diretor de teatro que organiza o cenário a retomar a intensidade dramática.
e os personagens e depois sai de cena para
Na realidade virtual, temos essa primeira
dar espaço ao espetáculo?
dimensão, ou seja, a intensidade do sto-
Ninguém com mais legitimidade do que
rytelling. Mas temos também a intensidade
Félix Lajeunesse para responder a esses
da presença do espectador que moldamos em
questionamentos.
função do tipo de experiência que preten-
demos proporcionar. Em Nomads: Herders,
temos planos que têm uma intensidade mais
forte do que outros. Assim que o espec-
SEUS FILMES TEM UMA DURAÇÃO tador chega na yurt com as pessoas, não
GERALMENTE DE 8 A 10 MINUTOS. tem narração propriamente dita, mas existe
ESSA TEMPORALIDADE ESTÁ, EM
PARTE, LIGADA A DIFICULDADES uma sensação de conexão muito forte com
TÉCNICAS. MAS ESSA ESCOLHA aquelas pessoas. No entanto, não acontece
POR FORMATOS CURTOS ESTARIA nada de especial. Se se tratasse de um
TAMBÉM RELACIONADA AO FATO DE
OS SEUS FILMES EXIGIREM UMA filme clássico, essa cena seria um acessó-
FORTE INTERAÇÃO DO ESPECTADOR, rio e ordinária. Contudo, se a pensarmos em
PRINCIPALMENTE NOS DOCUMENTÁRIOS? termos de evolução da sensação de presença,
É UM DESEJO DE CONTROLAR A
NOSSA CAPACIDADE DE ATENÇÃO? ela é protagonista na experiência vivida.
FÉLIX & PAUL STUDIOS: VISITA GUIADA AO PRESTIGIADO ESTÚDIO DE REALIDADE VIRTUAL · POR FANNY BELVISI · 92-99 95
proporcionar um impacto real no estado máximo à experiência sensorial humana: a
de espírito do público. maneira como enxergamos as coisas natural-
mente na realidade, como as escutamos, e
Para mim, uma obra de RV sem qualidade
como as percebemos no espaço.
irrita, porque eu estou lá dentro e não
posso sair. Eu estou mergulhado em uma A RV recebe e expressa as coisas de forma
coisa que detém toda a minha percepção. muito análoga à do ser humano. Se trata de
Isso me tira do sério! Por outro lado, uma experiência imediata, muito íntima e
se fosse um filme clássico, eu poderia que não parece fazer grande distinção entre
diminuir meu nível de atenção e pensar a consciência do espectador e a do artista
em outras coisas. Isso não é possível que criou o filme.
em um filme de realidade virtual. Existe
A natureza própria da mídia é diferente,
um vínculo muito estreito criado com o
logo a posição do espectador também é. Mas
espectador. Em Herders, nós prestamos
eu não acredito que a RV, mesmo na sua forma
muita atenção na evolução da história e
mais real, permita uma confusão. Mesmo
na maneira como vamos agir no estado de
quando filmamos momentos da vida integral-
espírito do espectador. Porque essa mídia
mente, setores da vida não manipulados, o
consegue nos tocar de maneira muito sensí-
cérebro do espectador continua consciente
vel, nós tentamos fazer isso de uma forma
de que ele está imerso em uma experiência,
muito cuidadosa, respeitando a inteligên-
que ele pode sair a qualquer momento. Ele
cia e sensibilidade do espectador.
não acha que foi teletransportado. A RV
cria uma sensação de imersão na cabeça do
espectador, mas não se trata de uma desco-
nexão completa.
O que muda, então, é a relação que se um questionamento comum para muitas pes-
mantém com esta representação. A mídia soas que vêm do cinema. Elas enxergam a
FÉLIX & PAUL STUDIOS: VISITA GUIADA AO PRESTIGIADO ESTÚDIO DE REALIDADE VIRTUAL · POR FANNY BELVISI · 92-99 97
O desafio que a gente se impõe enquanto
estúdio e enquanto diretores é o de mergu-
lhar cada vez mais na ficção. Até o momento, APLICADA AO DOCUMENTÁRIO, A RV
estamos muito prudentes. É importante para PROPORCIONA ÀS VEZES AO ESPECTADOR
nós entender primeiro a matéria com a qual UM SENTIMENTO DE VOYEUR. ELE
ESTÁ PRESENTE NA CENA E, AO
estamos trabalhando. Nós estamos indo na MESMO TEMPO, EXPERIMENTA UMA
direção de projetos mais ambiciosos em ter- PASSIVIDADE. O PRAZER QUE A RV
mos de ficção. PROPORCIONA VEM TAMBÉM DE UM
SENTIMENTO DE TRANSGRESSÃO DO
PROIBIDO: O ESPECTADOR É CONVIDADO
A UMA CENA, MAS SABE PERFEITAMENTE
QUE NÃO DEVERIA ESTAR ALI. O
QUE O SENHOR PENSA SOBRE ESSE
ASPECTO: O ESPECTADOR QUE NAVEGA
SE VOCÊS MERGULHAREM ENTRE PRESENÇA E PASSIVIDADE?
COMPLETAMENTE NOS PROJETOS
DE FICÇÃO, VÃO ABANDONAR
O DOCUMENTÁRIO? FL: Neste momento, há muito discurso na
indústria com relação a essa problemática,
FL: Nós não vamos abandonar o documentá- especialmente entre as pessoas que vem do
rio, pelo contrário! O que eu vou dizer universo dos games. Segundo eles, estar
é um pouco exagerado, mas eu sempre tive presente não é nada, seria preciso poder
encontrou seu lugar de fato no cinema. baseia no storytelling, mas apenas na inte-
Como se a expressão documental através ração. No fim das contas, é uma tendência a
da mídia cinematográfica nunca tivesse dogmatizar as coisas: “isso deve ser assim,
encontrado seu ápice, pelo fato de o ou então não é RV”. Para mim, o problema
Por fim, o documentário que persegue a que ela é limitada. Isso acaba por definir
veracidade acaba passando por uma mídia regras do que se pode e o que não pode
não consegue atingir o seu ápice no Por outro lado, estou convencido de que
cinema, é perfeitamente possível que quanto mais o espectador está em contato
isso ocorra na realidade virtual. Os com a RV, mais o sentimento de passividade
diretores vão finalmente encontrar uma diminui. Ele acaba se integrando completa-
via de desenvolvimento para suas obras mente a essa sensação.
onde possam se expressar plenamente.
NARRATIVAS IMERSIVAS
3 http://www.Okio-studio.com/Okio-project4-I-philip.html
espectador criar um sentimento de empatia com
Ver página 129. essa cabeça de robô”, relata ele. I, Philip é
4 http://www.Okio-studio.com/Okio-project1-alteration.html
OKIO STUDIO, O PIONEIRO DA REALIDADE VIRTUAL FRANCESA... · POR XAVIER DE LA VEGA · 100-104 101
um filme com ponto de vista subjetivo, onde o E foi assim que nasceu o nosso curta-metragem,
espectador se infiltra na cabeça de um robô onde, assim que o espectador coloca seu capa-
e reconstitui o espírito de Philip K. Dick. cete de realidade virtual, ele se encontra no
Assim que Antoine apresentou os primeiros interior da cabeça de um robô, uma espécie de
demos sobre sua experiência em realidade vir- criatura digital no meio dos humanos.
tual no polo web da ARTE, Gilles Freissinier, Para rodar I, Philip, foi preciso inven-
chefe do polo, convencido de suas capacidades, tar do zero um dispositivo de filmagem. “Nós
logo perguntou se tinham projetos em realidade alinhamos algumas técnicas para ter um efeito
virtual. Um projeto sobre Philip K. Dick? Que verdadeiro de cinema, não queríamos um efeito
coincidência! A ARTE acabava de lançar um de GoPro (seis câmeras GoPro acopladas são um
dispositivo transmídia que girava em torno padrão para reportagens em 360°). Além do mais,
do escritor. “Eu não tinha nem finalizado o desejávamos rodar em relevo”, conta Pierre.
roteiro quando Antoine chegou com a notícia de Sendo assim, ele acoplou duas câmeras Red (câmera
que a ARTE queria lê-lo”, conta Pierre. Algumas digital de altíssima definição) para filmar
semanas de trabalho depois, o canal anunciou: em 3D. Os microfones foram instalados no topo
“vamos ao banco!”. Patrocinaram a montagem do das câmeras, o que os obrigou a suprimir os
curta-metragem, cujo orçamento foi a bagatela ventiladores e a fixar um tubo comprido na
de 500.000 euros. Isso é o que chamamos de parte de trás dos equipamentos para garantir
estar na hora certa, no lugar certo. a ventilação necessária. “Era uma câmera bem
Os responsáveis pelo polo web da ARTE estranha...”. “De onde vem nosso desejo de
conseguiram financiar em um primeiro momento filmar em relevo? Ora, do desejo de recriar a
o demo do projeto, para submeter sua produção realidade! Assistir no capacete de realidade
à aprovação e verificar se seria possível virtual um vídeo em 360° é como ver através de
realizar o maior desafio do filme – rodá-lo uma bolha. A realidade é em relevo”, finaliza
integralmente com uma câmera subjetiva. Antoine.
Assumiram o risco, já que, até então, só se Os dois sócios e produtores pertencem a
tinha ciência de um único longa-metragem de um grupo internacional restrito de hackers da
ficção filmado com esse recurso (Lady in the realidade virtual, junto com os canadenses Félix
Lake, 1947), que teve mais repercussão pela & Paul ou o americano Chris Milk (de Within),
curiosidade que suscitou do que por ter se que fabricam seus próprios utensílios de fil-
tornado uma referência cinematográfica de magem para realizarem um sonho antigo: recriar
fato. Marianne Lévy-Leblond e Lili Blumers, a realidade da maneira mais fiel possível. “Se
da ARTE web, temiam que o olhar-câmera dos mantivermos o nosso nível de exigência, vamos
personagens, presente em muitas cenas do continuar a construir câmeras. Até o momento, o
filme, não funcionasse. “Trabalhamos um mês que fazemos é fabricar a melhor câmera possível
e meio no demo e fomos apresentar”, explica para aquele filme. A próxima não terá nada a
Pierre. “Eles viram o filme uma única vez – ver com a câmera de I, Philip”.
foi super frustrante – e disseram: “ok, cool!” Pierre rapidamente desistiu de filmar em
Perguntamos se não queriam assistir mais uma 360°, o que implicava em deixar a cena uma vez
vez. Responderam-nos “não, não, está bom!” acionada a câmera. Mas isso significava se lançar
em desafios arriscados. “Como queríamos um E tem outros elementos, dispostos lá e cá, que
stitching perfeito (o stitching consiste enriquecem a história”, acrescenta Antoine.
em costurar vários pontos de vista a fim E o enquadramento, essa decisão crucial
de reconstituir uma imagem em 360°), nós do cineasta, que exclui, acentua, aumenta,
rodávamos em muitas etapas. Concretamente, complexifica, dá ritmo à ação; esse quadro
quando dois atores dialogavam, eu não os não foi igualmente abolido? Logo imaginamos os
filmava juntos, mas primeiro um, depois o guardiões da sétima ARTE se exaltando, prestes
outro... Só que o segundo não tinha direito a mostrarem suas garras: sem enquadramento,
de responder, não podia nem sequer mexer, ainda podemos falar em cinema? “Essa história
porque prejudicava o som”. Ou seja, o filme de dizer que não existe quadro, porque sua
em 360° nos obrigava a reinventar o bom e câmera filma tudo...”, vocifera Pierre. “Em 360
velho plano-contra plano. “A filmagem era a gente não filma tudo. É a posição da câmera
muito desafiadora para os atores”, completa que induz – ou não – à sensação de estar no
Antoine. “Mas aí, Pierre podia dirigir os lugar de outrem. A composição do quadro ainda
atores, o diretor iluminava a cena...”. é uma escolha decisiva. Nós filmamos uma cena
Enfim, tratava-se de fazer cinema. na praia de Etretat (na região da Normandia).
E o que acontece com o cinema em um Poderíamos ter colocado a câmera em milhares
filme em 360o? Sabemos que sua gramática de lugares diferentes. Escolhemos um, onde as
fica revirada. Para começar, não existe rochas, filmadas em relevo, acrescentavam à
“fora de cena”, já que a câmera capta a cena narrativa. Não podemos dizer que não há mais
em todos os ângulos. ‘O “fora de cena’ na quadro. Ao contrário, tem muito mais quadro do
realidade virtual é o cômodo ao lado. Tem que antes. A realidade virtual mete medo nos
uma cena, em I, Philip, em que escutamos realizadores, eles temem que seu papel desa-
a conversa de dois personagens que não pareça. No entanto, na realidade virtual, tem
vemos. Eles estão em outro cômodo, no final uma infinidade de decisões a serem tomadas”.
do corredor”, aponta Pierre. Sendo assim, A realidade virtual é um cinema com uma
para o espectador, o quadro se constrói por interatividade inerente, ativada pelos movi-
exclusão, já que, a cada momento, ele vê uma mentos da cabeça (e do corpo, dependendo do
fração da imagem em 360o. Isso significa dispositivo). Mas como antecipar como o espec-
que o diretor precisa de uma ação que se tador vai reagir àquela imagem? “Nosso papel
desenrole em vários pontos do quadro. “A principal é de guiar o olhar do espectador. Mas
realidade virtual implica em uma hierar- existe também o que eu chamaria de uma interati-
quia entre os elementos da cena. Primeiro vidade passiva: o espetador desbloqueia alguns
temos os elementos fundamentais, que o elementos dentro da imagem. Um personagem só
espectador não pode perder para compreender aparece se ele olhar naquela direção, mas ele
a história. Uma boa parte da narrativa na simplesmente não aparece caso o espectador não
realidade virtual consiste em guiar o olhar olhe para o lado certo. Essa interatividade
do espectador, através do som, da luz, dos é que acho mais interessante do que em webdo-
movimentos de imagem, para que ele veja o cumentários, onde as escolhas são claras (ir
que deve ser visto e quando deve ser visto. para a direita ou para a esquerda?). Aqui, o
OKIO STUDIO, O PIONEIRO DA REALIDADE VIRTUAL FRANCESA... · POR XAVIER DE LA VEGA · 100-104 103
espectador não tem consciência do que ele a resposta é absolutamente afirmativa: “a rea-
perdeu”, observa Pierre. É possível que I, lidade virtual vai certamente ter uma grande
Philip tenha se beneficiado de tal interação importância no futuro – Goldman Sachs prevê uma
por redirecionar os movimentos do especta- trajetória comparável com a da televisão. Mas
dor para o coração da ação. A faculdade de ela vai continuar coexistindo com os conteúdos
virar cabeça por todos os lados, em algum da web e audiovisuais. Não há nada que diga que
momento, pode prejudicar a identificação o espectador tenha um desejo de ficar imerso
do espectador com o robô e, portanto, a sua permanentemente na realidade virtual. Eles vão
presença na ação. preferir alternar entre conteúdos imersivos e
Esse sentimento de ‘presença’ virou um uma partida de futebol em 2D, com alternância
mantra para os adeptos da realidade virtual. de planos; ou então entre uma aba da internet
Assim que assistiu com capacete à obra Síria: com um documentário e sequências específicas
a batalha pelo Norte, que o Okio-report em realidade virtual. O futuro está na comple-
produziu para o Le Parisiencom a agência de mentação das mídias”.
imprensa Smart, sediada na Síria, Pierre,
pela primeira vez em sua vida, teve a sen-
sação de onipresença. “De uma hora pra outra
a Síria era aqui, eu estava lá.”
Com essa experimentação que contempla
todas as potencialidades da realidade vir-
tual, ainda há lugar para a produção digital
clássica – se ousarmos falar em classicismo
para formatos de 10 anos atrás? Para Antoine,
CAPÍTULO 4 | CHAPTER 4
INTERACTIVE
NARRATIVES
outmywindow.nfb.ca
hollowdocumentary.com
networkeffect.io
Network Effect explora o efeito psico- Network Effect explores the psycholog-
lógico do uso da internet na humanida- ical effects of internet use on human-
de. O projeto se baseia nos infinitos ity. The project is based on the in-
cruzamentos de informações que o usuá- finite cross sections of information
rio pode gerar a partir de um gigantes- which the user can generate through a
co banco de dados composto por 10 mil gigantic database composed of 10 thou-
videoclipes, 10 mil frases faladas, no- sand video clips, 10 thousand spoken
tícias, tweets, gráficos, listas e mi- phrases, news stories, tweets, graph-
lhões de dados postados por indivíduos ics, lists, and millions of data post-
na web. Só há uma questão: a janela de ed by individuals on the web. There is
visualização é limitada a cerca de sete only one issue: the viewing window is
minutos (cálculo feito a partir da ex- limited to around seven minutes (a cal-
pectativa de vida média no país de onde culation based on the average life ex-
a página é acessada), induzindo o usuá- pectancy in the country from which the
rio a um estado de ansiedade, de impos- page is accessed), inducing in the user
sibilidade de conclusão. Uma provocação a state of anxiety, frustrating any at-
a respeito da ilusão de conhecimento tempt at conclusion. A provocation re-
e completude gerada pela internet. lated to the illusion of knowledge and
107
completeness generated by the internet.
Ilha Grande: Cada Praia, uma Ilha; Cada Ilha, uma História 2015
DOCUMENTÁRIO INTERATIVO/INTERACTIVE DOCUMENTARY • BRASIL/BRAZIL
ilhagrandewebdoc.website
acidadeinventada.com.br
riodejaneiroautorretrato.com.br
interactive.quipu-project.com
109
Prison Valley 2010
DOCUMENTÁRIO INTERATIVO/INTERACTIVE DOCUMENTARY • FRANÇA/FRANCE
prisonvalley.arte.tv
documedia.com.ar/mujeres
Mujeres en Venta aborda as etapas Women for Sale addresses the stages
do crime de tráfico de mulheres na of the criminal trafficking of wom-
Argentina, desde a captura e manei- en in Argentina, from their capture
ras de enganá-las até as rotas que and manners of tricking them, to the
são percorridas, a exploração se- trafficking routes, sexual exploita-
xual e o resgate. Os relatos cora- tion, and rescue. The courageous
josos das vítimas que conseguiram accounts from victims who managed to
escapar do horror se cruzam com os escape their horror intersect with
dados produzidos por uma minuciosa data produced from a detailed jour-
investigação jornalística e com o nalistic investigation and with tes-
testemunho de especialistas, fami- timony from specialists, relatives,
liares e organizações antitráfico. and anti-trafficking organizations.
Do Not Track 2015
DOCUMENTÁRIO INTERATIVO/INTERACTIVE DOCUMENTARY • CANADÁ/CANADA
donottrack-doc.com
PRODUÇÃO/PRODUCTION: UPIAN, NATIONAL FILM BOARD OF CANADA (NFB), ARTE E BAYERISCHER RUNDFUNK (BR) • REALIZAÇÃO/CREATOR:
BRETT GAYLOR
Do Not Track é uma série documental so- Do Not Track is a documentary series about
bre privacidade e economia na web. Durante privacy and the web economy. During each of
cada um dos setes episódios interativos, o the seven interactive episodes, the user is
usuário é solicitado a fornecer alguns dados asked to provide some data about herself
sobre si mesmo e, com isso, experimenta os and, with this, experience the methods and
métodos e ferramentas que rastreadores usam tools which trackers use commercially. The
comercialmente. A ideia é provocar reflexões idea is to provoke reflections regarding the
a respeito das informações pessoais que são personal information which is collected and
coletadas e utilizadas por inúmeras empre- utilized by numerous companies and services,
sas e serviços, mesmo quando a pessoa não even when the person does not consciously
autoriza conscientemente o uso. Cada episó- authorize its use. Each episode explores one
dio explora um aspecto de como a web tem se aspect of how the web has transformed into
transformado em um espaço onde movimentos, a space where movement, speech, and identi-
fala e identidade são gravados, rastreados ty are recorded, tracked, and used without
e utilizados sem permissão. Dos telefones permission. From cellular telephones to so-
celulares a redes sociais, de publicida- cial networks, from personalized advertise-
de personalizada a Big Data, cada episódio ments to Big Data, each episode will have
info.jerusalemwearehere.com
111
Momento MX 2017
DOCUMENTÁRIO INTERATIVO/INTERACTIVE DOCUMENTARY • MÉXICO/MEXICO
momentomx.com
theguardian.com/world/ng-interactive/2014/apr/bangladesh-shirt-on-your-back
The Shirt on Your Back é um documen- The Shirt on Your Back is an in-
tário interativo baseado no desas- teractive documentary based on the
tre de Rana Plaza, o acidente mais Rana Plaza disaster, the deadliest
fatal da história da indústria mun- accident in the history of glob-
dial. Em 2013, uma gigantesca fá- al industry. In 2013, a gigantic
brica têxtil ruiu, matando mais de textile factory collapsed, kill-
1.130 pessoas e ferindo o dobro. ing more than 1,130 people and in-
Neste trabalho, o ciclo de vida de juring twice that. In this work,
uma camisa é traçado e usado como the life cycle of a shirt is traced
mote disparador de questões sobre and used as a jumping-off point
o terrível custo humano envolvido for questions about the terrible
na fabricação dos milhares de peças human cost involved in fabricat-
que saem de Bangladesh direto para ing the thousands of pieces which
as prateleiras de marcas de roupas leave Bangladesh directly for the
“fast fashion” em todo o mundo. shelves of “fast fashion” cloth-
ing brands all over the world.
Bugarach: Cómo Sobrevivir al Apocalipsis 2011
DOCUMENTÁRIO INTERATIVO/INTERACTIVE DOCUMENTARY • ESPANHA/SPAIN
lab.rtve.es/webdocs/bugarach/
thisland.nfb.ca
113
as condições extremas que enfrentaram. treme conditions faced by the team.
Amazônia 2017
DOCUMENTÁRIO INTERATIVO/INTERACTIVE DOCUMENTARY • BRASIL/BRAZIL
revistapesquisa.fapesp.br/webdoc/amazonia
redesestrategicassus.org
riofrescobol.art.br
PRODUÇÃO: CENTRAL DE PRODUÇÃO MULTIMÍDIA DA ESCOLA DE COMUNICAÇÃO DA UFRJ • REALIZAÇÃO: MESTRADO PROFISSIONAL EM CRIAÇÃO
E PRODUÇÃO DE CONTEÚDOS DIGITAIS DA ESCOLA DE COMUNICAÇÃO DA UFRJ. A PARTIR DA IDEIA ORIGINAL DE ANTONIO J. CARVALHO,
ALUNOS, PROFESSORES E TÉCNICOS TRABALHARAM COLABORATIVAMENTE NA REALIZAÇÃO DA OBRA / PRODUCTION: UFRJ SCHOOL OF
COMMUNICATION MESTRADO PROFISSIONAL EM CRIAÇÃO E PRODUÇÃO DE CONTEÚDOS DIGITAIS. ORIGINAL IDEA BY ANTONIO J. CARVALHO.
STUDENTS, PROFESSORS, AND TECHNICIANS WORKED IN COLLABORATION TO PRODUCE THE WORK.
entrevilasdoc.com.br
115
Economizadora (Santista Mill, 1935).
As Quatro Estações de Iracema e Dirceu 2015
DOCUMENTÁRIO INTERATIVO/INTERACTIVE DOCUMENTARY • BRASIL/BRAZIL
clicrbs.com.br/sites/swf/DC_quatro_estacoes_iracema_dirceu
hibridos.cc
mapasafetivos.com.br
As cidades não são feitas de con- Cities are not made of concrete, but
creto, mas de histórias, e têm nas stories, and their people are their
pessoas sua maior riqueza, seu colo- greatest wealth, their color. The
rido. O projeto Mapas Afetivos reúne project, Mapas Afetivos, unites and
e geolocaliza dezenas de relatos em geo-locates dozens of video accounts
vídeo, de gente famosa e de desco- of both famous and everyday peo-
nhecidos, sobre memórias marcantes ple, about notable memories imprint-
impressas em bairros, ruas, parques ed in the neighborhoods, streets,
e casas que, por vezes, nem exis- parks and homes which, sometimes,
tem mais. Por meio dessas falas, é no longer exist. Through these ac-
possível conhecer uma cidade antes counts, it is possible to become
invisível, mais humana, composta por familiar with a once invisible city,
afeto e intimidade. O projeto in- now more human, composed of affects
clui também oficinas culturais de and intimacy. The project also in-
reconhecimento afetivo de territó- cludes cultural workshops on affec-
rios em diversas cidades do país. tive recognition of territories in
various cities around the country.
meuriovaleumwebdoc.com.br
Meu Rio Vale um Webdoc é um documentá- Meu Rio Vale um Webdoc is an inter-
rio interativo que apresenta um mosaico active and collaborative documentary
de “postais audiovisuais” do Rio de Ja- which presents a mosaic of “audiovisu-
neiro, criados por alunos do curso ho- al postcards” of Rio de Janeiro, cre-
mônimo realizado nas Naves do Conheci- ated by groups of students from the
mento em 2016. Os vídeos apresentam as course held in Naves do Conhecimento in
principais paisagens e personagens de 2016. The collective production gath-
Irajá, Madureira, Vila Aliança, Padre ered drone images, 360o videos, time
Miguel, Triagem, Nova Brasília, Penha lapses, interviews, musical clips,
e Santa Cruz, locais onde o curso foi from each of the eight neighborhoods
realizado. A produção coletiva reúne which host the Naves do Conhecimento
imagens de drone, vídeos em 360o, time- (Irajá, Madureira, Vila Aliança, Pa-
-lapses, clipes musicais e registros de dre Miguel, Triagem, Nova Brasília,
percursos e leituras poéticas, rodas de Penha, and Santa Cruz). The user can
rap e de capoeira, além de entrevistas also send an audiovisual postcard by
com artistas, religiosos e peladeiros email, and choose three videos from
locais. O usuário ainda pode enviar um each neighborhood to create it.
postal audiovisual por e-mail, esco-
117
lhendo três vídeos de cada bairro.
Oficinas Kinoforum de Realização Audiovisual 2016
DOCUMENTÁRIO INTERATIVO/INTERACTIVE DOCUMENTARY • BRASIL/BRAZIL
kinoforum.org.br/oficinas/
PRODUÇÃO/PRODUCTION: ASSOCIAÇÃO CULTURAL KINOFORUM E CROP COLETIVO • REALIZAÇÃO/CREATOR: ASSOCIAÇÃO CULTURAL KINOFORUM E
CROP COLETIVO
doctela.com.br/se-eu-demorar-uns-meses/
bug404.net/pedalei/
PRODUÇÃO/PRODUCTION: BUG 404 E CROP COLETIVO • REALIZAÇÃO/CREATOR: ANDRÉ PAZ E JULIA SALLES
copaparaquem.com
119
NARRATIVAS
MOBILE
MOBILE
NARRATIVES
theenemyishere.org
PRODUÇÃO/PRODUCTION: NATIONAL FILM BOARD OF CANADA (NFB), CAMERA LUCIDA, EMISSIVE, FRANCETV
NOUVELLES ÉCRITURES AND DPT. • REALIZAÇÃO/CREATOR: KARIM BEN KHELIFA
The Enemy é um aplicativo para dis- The Enemy is a mobile device ap-
positivo móvel que mescla reali- plication which blends augment-
dade aumentada e mista para colo- ed and mixed reality to place
car o participante frente a frente the participant face to face with
com combatentes de três das zonas combatants from three of the most
de conflito atuais mais dramáti- dramatic and violent conflict
cas e violentas do mundo: El Salva- zones in the world: El Salvador, the
dor, República Democrática do Congo Democratic Republic of the Congo,
e a fronteira de Israel e Palesti- and the Israeli Palestinian bor-
na. Antes da experiência principal, der. Before the main experience,
é exibido um vídeo em 360o do lo- a 360o video of the selected lo-
cal selecionado para contextuali- cale is shown to contextualize the
zar as histórias que estão prestes stories which are ready to be expe-
a serem vivenciadas. Surgem então rienced. Then the combatants arise,
os combatentes contando suas narra- telling their narratives, and
tivas, e o participante, com o ce- the participant, cell phone in
lular em mãos, pode caminhar até um hand, can walk to one of them
deles e examiná-lo mais de perto. and explore them up close.
Alma: Une Enfant de la Violence 2012
NARRATIVA MOBILE/MOBILE NARRATIVE • FRANÇA/FRANCE
alma.arte.tv/en/webdoc/
Phallaina 2016
NARRATIVA MOBILE/MOBILE NARRATIVE • FRANÇA/FRANCE
phallaina.nouvelles-ecritures.francetv.fr/phallaina_en.php
121
Inventeca 2018
NARRATIVA MOBILE/MOBILE NARRATIVE • BRASIL/BRAZIL
storymax.me/inventeca
PRODUÇÃO/PRODUCTION: STORYMAX • REALIZAÇÃO/CREATOR: SAMIRA ALMEIDA, FERNANDO TANGI AND LAURO GOE
Nautilus 2017
NARRATIVA MOBILE/MOBILE NARRATIVE • CANADÁ E FRANÇA/CANADA AND FRANCE
storymax.me/nautilus
PRODUÇÃO/PRODUCTION: STORYMAX •
REALIZAÇÃO/CREATOR: SAMIRA ALMEIDA, FERNANDO TANGI AND MAURÍCIO BOFF
storymax.me/frrittflacc
VÍDEO
IMERSIVO
IMMERSIVE
VÍDEO
Rio de Lama: A Maior Tragédia Ambiental do Brasil 2016
VÍDEO IMERSIVO/IMMERSIVE VIDEO • BRASIL/BRAZIL
riodelama.com.br/
youtu.be/Jv8nkw8hy-c
conservation.org/global/brasil/Pages/Amazonia-Adentro.aspx
My Africa 2018
VÍDEO IMERSIVO/IMMERSIVE VIDEO • BRASIL E KENYA/BRAZIL AND KENYA
conservacao.org.br/myafrica
oculus.com/vr-for-good/programs/step-to-the-line
Revelação 2018
VÍDEO IMERSIVO/IMMERSIVE VIDEO • BRASIL/BRAZIL
facebook.com/PyntadoEntretenimento/
oculus.com/experiences/gear-vr/1360461600675039/
Through the Masks of LUZIA, baseado Through the Masks of LUZIA, based on
em um dos aclamados espetáculos do one of Cirque du Soleil’s acclaimed
Cirque du Soleil, é uma celebração da shows, is a celebration of Mexi-
cultura mexicana, envolta em surrea- can culture, enmeshed in surrealism
lismo e fantasia onírica. Considerada and dreamlike fantasy. Considered
a primeira experiência em realidade the first virtual reality experi-
virtual feita por meio de processos ence made through hyper- and hypos-
https://www.felixandpaul.com/?projects/o
fisheyevr.eu/portfolio/syrias-silence
luciddreamsprod.com/
www.mk2films.com/en/film/i-philip
https://www.theguardian.com/technology/2017/oct/07/the-
party-a-virtual-experience-of-autism-360-video
The Party é uma experiência em narrativa The Party is an immersive narrative about
imersiva sobre autismo, que coloca o par- autism, which puts the participant in the
ticipante no lugar da adolescente Layla, place of the recently-diagnosed teenag-
recém-diagnosticada, durante a festa de er, Layla, during her mother’s surprise
aniversário surpresa de sua mãe. Por meio da birthday party. Through the narration of
narração dos pensamentos de Layla, é possí- Layla’s thoughts, it is possible to expe-
vel experienciar a sobrecarga sensorial e rience the sensory overload which she is
auditiva a que fica exposta e suas tenta- exposed to, and her attempts to deal with a
tivas de lidar com uma situação estressante stressful situation using the coping mech-
usando os mecanismos de enfrentamento que anisms she has created to deal with her
criou para administrar sua ansiedade. O dra- anxiety. The drama provides a powerful,
ma fornece uma poderosa perspectiva em pri- first-person perspective of the challeng-
meira pessoa sobre os desafios que situações es which social situations can represent
sociais podem representar para autistas. O to autistic people. The project involved
projeto envolveu a consultoria e participa- the consultation and direct participation
ção direta de mulheres de espectro autista, of women on the autism spectrum, such as
como Sumita Majumdar, que escreveu o rotei- Sumita Majumdar, who wrote the script, and
ro, e Honey Jones, que faz a voz de Layla. Honey Jones, who provides Layla’s voice.
REALIDADE
VIRTUAL
VIRTUAL
REALITY
thelittleprincevr.com/
tindrum.dk/project/nothing-happens/
penrosestudios.com/stories/2016/4/13/introducing-allumette
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Altération 2017
REALIDADE VIRTUAL/VR • FRANÇA/FRANCE
arte.tv/sites/webproductions/alteration
pintastudios.com
mediaspace.nfb.ca/epk/museumofsymmetry
jp.square-enix.com/mangainvr/
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Zero Days VR 2017
REALIDADE VIRTUAL/VR • EUA/USA
zerodaysvr.com
Way to Go 2015
REALIDADE VIRTUAL/VR • CANADÁ E FRANÇA/CANADA AND FRANCE
a-way-to-go.com
PRODUÇÃO/PRODUCTION: NATIONAL FILM BOARD OF CANADA (NFB) E FRANCETV NOUVELLES ÉCRITURES • REALIZAÇÃO/CREATOR: VINCENT
MORISSET
TRANSMEDIA
INSTALLATION
somdossinos.com.br
E IMERSIVAS
INTERATIVAS
NARRATIVAS
BUG