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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES


DEPARTAMENTO DE RELAÇÕES PÚBLICAS PROPAGANDA E TURISMO

BRENO RUELA SARTORI


GUSTAVO RAMOS BULLA
LORENA BRAGA PORTELLA GERALDO

O BIOS-MIDIÁTICO E AS MEDIAÇÕES SENSÓRIO IMAGÉTICAS


NAS PRODUÇÕES TELEVISIVAS E NOS MEIOS DIGITAIS

São Paulo
2022
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
DEPARTAMENTO DE RELAÇÕES PÚBLICAS PROPAGANDA E TURISMO

BRENO RUELA SARTORI


GUSTAVO RAMOS BULLA
LORENA BRAGA PORTELLA GERALDO

O BIOS-MIDIÁTICO E AS MEDIAÇÕES SENSÓRIO IMAGÉTICAS


NAS PRODUÇÕES TELEVISIVAS E NOS MEIOS DIGITAIS

Relatório de Pesquisa da disciplina de Teoria da


Comunicação, ministrada pela Profª Dra. Irene de
Araujo Machado no Departamento de Comunicações e
Artes na Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo.

São Paulo
2022
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 4
2. O ENTENDIMENTO DO BIOS-MIDIÁTICO E DO PENSAMENTO
DE MUNIZ SODRÉ 4
3. A TELEVISÃO E O PRECONCEITO RACIAL 7
4. O CONTEXTO DIGITAL E AS NOVAS FRONTEIRAS DO BIOS-MIDIÁTICO 11
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 14
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 16
1. INTRODUÇÃO

Muniz Sodré é um importante teórico e, nas próprias palavras do intelectual brasileiro


(2001. p.20), um ensaísta sobre comunicação e cultura. O estudioso e escritor desenvolveu
diversos trabalhos relevantes para o campo de pesquisa de mídia e indústria cultural no Brasil.
Dentre suas principais contribuições para as reflexões sobre mídia, indústria cultural e cultura
afro-brasileira, destacam-se sua teoria sobre o bios-midiático e como por meio deste ocorrem
as mediações sensoriais das imagens e a espetacularização midiática na contemporaneidade.
A teoria dos bios-midiáticos tem como base as concepções de Aristóteles sobre a
existência de três bios, isto é, formas de vida, as quais “organizam a vida humana na cidade,
vida humana sociabilizada” (SODRÉ, 2001, p. 24). Enquanto para o filósofo grego os bios
compreendiam “a forma de vida do conhecimento, a forma de vida da política e a forma de
vida dos prazeres” (SODRÉ, 2001, p.24), para o ensaísta brasileiro, com o advento do
capitalismo transnacional e o desenvolvimento tecnológico audiovisual, percebeu-se na
contemporaneidade “uma outra esfera da existência, uma outra forma de vida.” (SODRÉ,
2001, p,24), isto é, um novo bios, guiado pelo mercado e centrado na lógica comercial, que é
o bios-virtual, o bios-midiático.
Nesse sentido, o presente trabalho busca refletir sobre esse conceito apresentado por
Sodré, analisar sua influência na vida das pessoas, bem como o caso dos estereótipos das
pessoas negras dentro das lógicas midiáticas. Ainda, este trabalho aborda a inserção do
contexto digital, marcado pelas redes sociais e pela internet, no bios-midiático e as
possibilidades de uma nova reorganização do sensório a partir das novas mídias.

2. O ENTENDIMENTO DO BIOS-MIDIÁTICO E DO PENSAMENTO DE MUNIZ


SODRÉ

O bios-midiático é justamente o conjunto de potencialidades midiáticas aplicados na


vida cotidiana, de forma a constituir um modo de vida, uma vida vicária, isto é, uma realidade
paralela a realidade tradicional, mas indistinguível dela, intrinsecamente conectada de forma a
alterar a vivência dos sujeitos. Todavia, o bios-midiático apenas consegue tal feito pela
intensificação da "tecnologia audiovisual conjugada ao mercado" (SODRÉ, 2013. p.108).
Como são os casos das publicidades televisivas e digitais, por exemplo.

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Ainda assim, conforme a perspectiva de Sodré (2013. p.108), essa indistinção entre
tela e realidade revela o caráter do bios-midiático de constituir (a partir de suas
potencialidades midiáticas) uma integralidade e imaginário espetacularizados, que aspiravam
o virtual. Nesse sentido, fazendo com que nossos sentidos interpretem “não o irreal, mas sim
a indistinção entre o real e o irreal”. Para além disso, segundo o autor o que ocorre é que tal
espetacularização e imagististica ganham forma, ou seja, as potencialidades se concretizam,
não na soma de todas as imagens tecnicamente produzidas, mas sim nos modelos, arquétipos,
estilos, estética, formatos que as formam. E justamente por estarmos inseridos nessa
virtualidade midiática conjugada ao mercado, esse poder dos modelos (e as imagens que
provêm deles e reagem às relações sociais) estrutura-se a partir dos "modelos hegemônicos do
capital e do mercado globais" (SODRÉ, 2013. p.108).
Como já foi referenciado, a espetacularização tem como resultado prático a
transformação da vida em sensação. Nesse sentido, quando ganha forma, a espetacularização
presente nos modelos imagéticos e narrativos das imagens transforma a vida em
entretenimento. Uma vida que, subordinada à economia, o sensório é atiçado e manifesta-se a
partir do consumo e produção de entretenimento, como filmes, programação televisiva,
produção musical, entre outros. Outrossim, para Sodré (2013, p.108), os efeitos sensoriais
implicam para além dos meros sentidos, mas também envolvem a administração do tempo e
das consciências dos indivíduos, pilares para a criação dessa vida vicária. Nesse sentido, a
tangibilidade e percepção desses efeitos se dão na criação de uma ambiência multisensorial,
isto é, um ambiente simulativo, que cria uma outra realidade, mas amplia a realidade
tradicional.
Dessa forma, o sensório passa a ser marcado pelos efeitos de fascinação, moda,
celebridade e emoção, evidenciando uma sobreposição da estesia sob a ética, revelando "uma
experiência mais afetiva do que lógico-argumentativa" (SODRÉ, 2013. p.109). Assim, os
fenômenos estéticos passam ser a vitalidade para a estimulação da vida real e vicária. Sendo
que tal fenômeno é sempre manipulado pela indústria. Ainda assim, “o que importa é esse
espraiamento sensorial estético da mídia, espraiando a vida da gente, fazendo que a gente
habite, more dentro dessa prótese chamada médium” (SODRÉ, 2001. p.21).
Além disso, é importante ressaltar que os modelos geradores de imagens, apesar de
serem logicamente inteligíveis, passam apenas a serem tangíveis ao nosso sensório a partir de
suas manifestações imagéticas, que acabam por reduzir nossa compreensão imediata de sua
complexidade. Contudo, compreende-se sua complexidade quando nota-se que o poder dos
modelos, no conjunto de potencialidades midiáticas, constituem uma cultura, um sistema de

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sensações e emoções, uma atividade estética que passa a ter uma aspiração industrial que se
estende a toda a coletividade social. O autor exemplifica o poder dos modelos e sua
complexidade como cultura através os estereótipos, que são definidos, por ele, como
"emoções coletivas esteticamente condensadas, nos territórios imateriais do bios midiático."
(SODRÉ, 2013, p.109). E o importante de se conceber sobre as próprias forças midiáticas e
seus produtos imagéticos, que sustentam o bios-midiático, é como eles se organizam e
organizam o social e as mediações. Portanto, o essencial é o código, a forma, a aderência
sensorial dos produtos e sua inserção na lógica comercial. A forma, a sensorialidade e a
estética dos produtos importa mais que seu conteúdo propriamente. Inclusive é a partir dessa
concepção, que se compreende a ideologia das forças midiáticas, afinal a “ideologia não está
no que ela diz, não está nos conteúdos, mas nessa forma capitalista mercadológica que os
conteúdos assumem” (SODRÉ, 2001. p.21), ou seja, como organizam e se organizam a partir
da lógica mercadológica.
Ainda assim, é importante ressaltar que os modelos podem acabar não impactando um
indivíduo, provocando seu sensório. Como coloca o autor, a "experiência pode deformar-se
por acúmulo de fantasias e por falta de reelaboração afetiva do vivido" (SODRÉ, 2013.
p.109). O autor levanta a questão de que é possível interpretar o bios-midiático para além da
lógica no plano da representação, isto é, essa conexão indissolúvel entre realidade. Por
exemplo, ele cita que, alguns teóricos da "realidade virtual" argumentam que um "objeto
duplicado em imagens sintéticas pelas novas tecnologias da informação [...] induz a uma nova
experiência perceptiva, independente de qualquer realidade prévia". (SODRÉ, 2013. p.109).
Na contemporaneidade, Muniz destaca que a melhor força midiática que ajuda a
compreender o bios-midiático é a televisão, pois ela é uma ambiência multisensorial, isto é,
diferentemente do jornal e rádio que se dirigem à mente do sujeito, a televisão ajuda a
“compor o ambiente” e se dirige “ao corpo do indivíduo". Os conteúdos e programas
televisivos, seus moldes e diferentes modelos que trazem em sua espetacularização, passam
por criar um “ambiente simulativo”, de “envolvimento multisensorial”, que o corpo recebe
apenas com passividade. Tal envolvimento transpassa a questão sensorial dos sentidos do
corpo e passam a envolver a “administração do tempo do sujeito” e a “administração das
consciências" deste sujeito (SODRÉ, 2001. p.19). Logo, tudo isso contribui para a
constituição desse ambiente como meio da vida vicária. Portanto, além da televisão criar
outra realidade e ampliar a realidade tradicional, de forma a criar uma “realidade que se
agrega a outra”, ambas passam a concorrer entre si também. A realidade da vida vicária passa
a “concorrer com a realidade tradicional em nome do mercado” (SODRÉ, 2001. p.20).

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Assim, a economia da atenção empregada pela televisão, mas também outras forças
midiáticas como as redes sociais, são um reflexo dessa concorrência, uma concorrência pela
forma como o sujeito administra seu tempo (SODRÉ, 2001. p.19). Outra exemplificação
dessa concorrência é que a televisão passa a tentar ocupar o lugar de quem possuía o poder
sob a consciência dos indivíduos, ou seja, lugar de pai e mãe. Nessa perspectiva, a
ressubjetivação promovida pela televisão, proporciona que ela assuma esse lugar . E essa
concorrência se dá com outras forças midiáticas e instituições como por exemplo com a
escola. Enquanto para esta a ética se dá "a partir dos princípios fundadores da sociedade”,
para a televisão a "ética, os valores, as normas são comerciais” (SODRÉ, 2001. p.20). Os
moldes dos programas televisivos e os diferentes modelos que trazem em seu conteúdo
também revelam a ideologia da televisão, pois “a ideologia não está no que ela diz, não está
nos conteúdos, mas nessa forma capitalista mercadológica que os conteúdos assumem"
(SODRÉ, 2001, p.21).
Por fim, Sodré ainda coloca que o bios-midiático se dá em um regime indiciário, sua
forma de vida é a partir da lógica da representação apresentativa. Isto é, “o mundo e seu fluxo
estão vinculados e estão quase presentes dentro dos nossos olhos”, é por isso que a
espetacularização da imagem e a "estética das aparências" é central na compreensão do
bios-midiático. Dessa maneira, a televisão, como é notório, atua dentro da lógica da
“representação apresentativa” do bios-midiático, se constituindo como um “grande médium
indiciário” (SODRÉ, 2001, p.21).

3. A TELEVISÃO E O PRECONCEITO RACIAL

À luz da teoria de Muniz Sodré, do bios-midiático, é sabido que a televisão está


diretamente relacionada com o modo de vida das pessoas, sendo ela uma expansão da vida
cotidiana. “Ela (a televisão) cria uma outra realidade e amplia sua própria realidade, onde o
indivíduo imerge.” (SODRÉ, 2001, p.19). Nesse sentido, as diversas programações
transmitidas pela televisão interferem diretamente no modo de pensar das pessoas e em como
elas enxergam o mundo que as rodeia.
Sob esse viés, o bios-midiático ao mesmo tempo que reflete o contexto no qual está
inserido, também o expande. Dessa maneira, é imprescindível o entendimento da História de
cada sociedade para, assim, compreender também algumas lógicas desse bios definido por
Sodré. Dessa maneira, no que tange à sociedade brasileira, cabe destacar sua colonização e
maneira como o Brasil foi construído, por meio de escravidão e supremacia dos colonizadores

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em relação aos colonizados indígenas e escravizados. A História brasileira foi moldada pela
perspectiva dos portugueses e ainda na atualidade esconde e estigmatiza o lado das
comunidades indígenas e africanas. Embora haja o surgimento de teorias decoloniais e muitas
ações voltadas para um olhar crítico da História, as consequências de todo esse passado
marcado por violência e dominação ainda são fortes na contemporaneidade. Assim, não
obstante a escravidão como no perído colonial ter sido extinta, as marcas que ela deixou ainda
estão longe de desaparecerem. Prova viva disso é o racismo que permanece ativo na
sociedade brasileira e se apresenta nas mais diferentes maneiras.
À vista de tal preceito, pode-se entender que os mecanismos do bios-midiático, sendo
uma expansão da realidade tangível e uma indistinção entre tela e realidade (SODRÉ, 2013,
p.108), muitas vezes, acabam por reforçar esses valores racistas. Nesse sentido, a televisão
faz uso de estereótipos os quais se originam da cultura em que estão inseridos. Como afirma
Lippmann, os indivíduos definem antes de ver, colhem o que a cultura já definiu para eles,
percebendo o que colhem de uma maneira estereotipada. (LIPPMANN, 1980, p. 151).
Assim, alguns estereótipos acabam por ratificar estigmas e preconceitos existentes nas
sociedades.
Ademais, outro ponto importante é a ligação direta entre o bios-midiático e as lógicas
mercadológicas. Assim, “[...] a vocação dessa outra realidade ampliada é de concorrer com a
realidade tradicional em nome do mercado. Em nome da ressubjetivação das pessoas para
torná-las melhores consumidoras, melhores sujeitos adequados ao mercado.”(SODRÉ, 2001,
p.19). Nesse sentido, é interessante para o capitalismo uma homogeneização dos gostos, tal
processo facilita as vendas, haja vista que quanto mais pessoas possuírem gostos parecidos,
mais elas comprarão dos mesmos produtos. Além de que é impossível uma fabricação em
massa de produtos muito distintos uns dos outros. Assim, entra a lógica de poder dos
modelos, defendida por Sodré:

Esse bios não se define radicalmente, entretanto, como soma de todas as imagens
tecnicamente produzidas, e sim como o poder dos modelos (assim como na ordem
mítica, o poder é dos símbolos primordiais ou dos arquétipos), que se atualizam ou
se concretizam em determinados tipos de imagens, historicamente
sobredeterminadas. As imagens midiáticas que regem as relações sociais provêm
dos modelos hegemônicos do capital e do mercado globais. (SODRÉ, 2013, p.108)

Esses modelos hegemônicos, por sua vez, refletem também uma soberania racial e
acabam por ser uma nova forma de opressão, a qual está relacionada com o racismo

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institucional. Ao haver uma construção de padrões pautados na superioridade branca em
todos os seus aspectos, que vão desde características físicas até ideias distorcidas de
superioridade intelectual, os preconceitos são ratificados. Sobre isso, Heller acrescenta que a
maioria dos preconceitos se dão a partir das classes dominantes, uma vez que essas buscam
manter a coesão da estrutura que lhes beneficia. (HELLER, 2004).
Desse modo, ao analisar-se atentamente os padrões estruturais desde o surgimento da
televisão em filmes, novelas, programas de auditório e até mesmo conteúdos jornalísticos,
nota-se a presença de pessoas negras, que além de escassa, na maioria dos casos, aparece
fortemente vinculada à estereótipos preconceituosos. À vista de tal preceito, o documentário
de Joel Zito Araújo, A Negação do Brasil, analisa a história da telenovela brasileira na
perspectiva dos papeis os quais eram sempre atribuídos aos atores negros. Dentre eles,
pode-se citar o arquétipo da mulher preta, que era sempre colocada como empregada
doméstica nas novelas. Sobre isso, a atriz Zezé Motta dá um depoimento e diz que quando
sua vizinha soube que ela fazia um curso de arte dramática no tablado, disse para ela que não
sabia da necessidade de fazer curso de teatro para interpretar empregada. Zézé ainda
acrescenta dizendo que na ocasião achou que a vizinha havia feito o maior disparate do
mundo, mas que logo entendeu o que ela estava dizendo por conta de um papel que foi
contratada para fazer na TV Tupi, no qual ela iria viver justamente uma empregada. Além
disso, em outro momento, a atriz acrescenta dizendo que ao recusar um papel no qual ela
apenas iria servir doces, o produtor chegou a dizer a ela que se continuasse a recusar o papel,
não iria mais conseguir fazer televisão. Ademais, outro estereótipo também destacado pelo
documentário é o do fiel guarda costas, no qual os homens negros muitas vezes eram
reduzidos.
Além disso, o documentário traz a tona o caso da novela A Cabana do pai Tomás, que
foi a primeira a ter um grande elenco negro na TV brasileira, mas que contratou um ator
branco para interpretar o protagonista negro da trama, utilizando-se de blackface ao invés de
contratar um ator com as características certas. Houve também o caso da novela Escrava
Isaura que fez uma leitura do comportamento dos escravos a partir da Casa Grande,
reforçando a versão dos colonizadores da História brasileira, mostrando a libertação dos
escravos como fruto da bondade dos brancos e também reafirmando o fato de que para ser
aceito no corpo social há a necessidade da branquitude, uma vez que Isaura era vista como
superior em relação aos outros escravos, justamente por ter pele clara, além de muitas outras
produções as quais reforçaram esses mesmos valores.

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Ademais, há ainda o relato da atriz Maria Ceiça, que chegou a ter crises em relação à
profissão por perceber que seu tipo físico não se enquadrava nos das protagonistas de
televisão. Disse ainda que apenas quando visitou uma exposição de Jorge Amado e conheceu
suas protagonistas, que conseguiu sentir-se aliviada por ver que ela se encaixava nas
características daqueles papéis, como Gabriela, por exemplo, e, assim, poderia um dia
interpretar uma protagonista.
O depoimento de Maria Ceiça pode ainda ser expandido para o mundo das
publicidades de cosméticos, que por muitos anos apenas focaram nas características brancas,
cabelos lisos e pele clara, de maneira a construir um discurso de que a beleza estava
condicionada à branquitude. Desse modo, a espetacularização da imagem afeta o sensório de
forma a mexer com a consciência do sujeito e sua aceitação, seja de seu corpo, pele ou até de
si mesmo como indivíduo. E isso pode afetar as pessoas de tal maneira, que as fazem buscar
transformações físicas para estarem dentro desses padrões. Ou seja, a realidade da vida
vicária afeta diretamente a realidade tradicional, há uma indistinção, uma concorrência entre
as duas.
Em suma, é importante destacar ainda, que deu-se aqui foco na telenovela, mas que
essas lógicas dizem respeito ao bios-midiático como um todo. Além disso, não obstante toda
essa construção midiática apresentada, na contemporaneidade, existem os movimentos que
buscam corrigir esses processos preconceituosos, valorizando a representatividade nas
produções culturais. Dentre eles, pode-se citar os filmes que estão sendo regravados e as
adaptações cinematográficas de livros que possuíam como protagonistas personagens brancos
mas agora, para as novas releituras, contam com atores principais negros, na tentativa de
incluir essas pessoas nas lógicas midiáticas e, assim, quebrar padrões preconceituosos. Além
de instituir um novo modelo gerador mais inclusivo. À medida que mais pessoas negras
ocuparem todos os espaços, menos elas serão relacionadas apenas a papéis de figurantes e
menos serão colocadas em segundo plano.
Nesse sentido, a série veiculada na Netflix, Bridgerton, por exemplo, baseada em
livros da autora Julia Quinn, contou com atores negros para viverem personagens que eram
brancos nos livros. Essa mudança nada interferiu na trama, muito pelo contrário, apenas
enriqueceu a produção e, apesar de ser uma série de época, não é baseada em fatos reais, de
modo a dar a liberdade para a produção de escalar atores negros para interpretarem
personagens da nobreza, fugindo assim, do esterótipo de em toda série de época o ator negro
só poder representar um escravizado. Apesar de parecer um gesto simples, são ações como
essas que constroem o imaginário das pessoas e vão mostrando que pessoas negras podem

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interpretar qualquer papel. O live action da pequena sereia que trouxe a atriz preta Halle
Bailey como Ariel e a série de Percy Jackson que terá uma Annabeth negra, originalmente
branca nos livros, são outros exemplos.
Ademais, na esfera jornalística também vê-se mais jornalistas negros atualmente, fato
que não ocorria em anos anteriores. Pode-se destacar a jornalista Maju, que é um ícone no
jornalismo brasileiro atualmente. Esses e outros exemplos mudam os modelos presentes no
bios-midiático, que, por sua vez, mudam a forma e a percepção de vida das pessoas.

O bios é o código. É a codificação que se faz vida. É como se fosse uma membrana
que envolvesse os indivíduos. Isso é o bios. E os indivíduos passam a circular, a se
movimentar a partir das regras do código. Só que eu não uso mais a palavra código.
Eu peguei a palavra aristotélica bios. No lugar de dizer o código virtual, eu digo o
bios-virtual. É pra indicar bem que se trata de uma ambiência, de uma forma de vida
e não de uma operação semiótica manobrada por alguém. (SODRÉ, 2001, p.29)

Ou seja, já que os indivíduos se movimentam a partir das regras do código, mudando essas
regras, muda-se, por conseguinte, a maneira de agir dos indivíduos. Assim, pode-se concluir
que a mudança do bios-midiático corrobora com o combate ao preconceito e com a quebra de
estereótipos.

4. O CONTEXTO DIGITAL E AS NOVAS FRONTEIRAS DO BIOS-MIDIÁTICO

Ainda sob a ótica da teoria de Sodré, através da aplicação das ideias do autor aos dias
atuais, observa-se, como exemplo de bios midiático, a lógica das redes sociais. As
plataformas digitais tornaram-se, assim como a televisão a partir dos anos 80, uma ambiência
multisensorial que proporciona um meio ao bios-midiático. Nesse contexto, a construção
imagética dentro das redes sociais cria, também, uma vida vicária, uma ampliação da vida
real. A virtualidade midiática se dá a partir dos mesmos efeitos de moda, fascinação,
celebridade e emoção observados a partir da mediação televisiva, uma vez que os usuários
das redes sociais, ou a imagem que projetam de si é subordinada as imagens dos modelos que
as geram, uma reprodução de uma estética não própria, mas alheia a si mesmo, de forma que
a vida ali exposta não é a real, mas sua ampliação, a vida vicária.
A partir dessa espetacularização de imagens virtuais, forma-se um conjunto de
modelos hegemônicos que promovem a criação de estereótipos que, ao mesmo tempo que são
resultado da vida real, a alteram, numa relação semelhante àquela estabelecida por

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Volochinov (2017, p.93), ao discorrer sobre o signo ideológico, “o signo não é somente uma
parte da realidade, mas também reflete e refrata uma outra realidade, sendo por isso mesmo
capaz de distorcê-la, ser-lhe fiel, percebê-la de um ponto de vista específico e assim por
diante.” Assim, é possível estabelecer uma relação entre os padrões que se estabelecem nas
redes sociais e o signo de Volochinov, mais do que isso, é possível entender que os modelos
midiáticos da vida vicária são também ideológicos.

O ideológico em si não pode ser explicado a partir de raízes animais [...] Seu
verdadeiro lugar na existência está em um material sígnico específico, que é social,
isto é, criado pelo homem. A sua especificidade está justamente no fato de que ele
existe entre indivíduos organizados, de que representa o seu meio e serve como
médium para a comunicação entre eles. (VOLOCHINOV, 2017, p.96)

Portanto, uma vez que esses modelos colocam-se na lógica de mediação, em um


ambiente social e representam, ao mesmo tempo que ditam, distorcem, refletem e refratam a
realidade, eles podem ser entendidos como signos ideológicos. Nesse cenário, a publicidade
também se insere, tanto nos meios digitais, quanto na televisão, no funcionamento do
bios-midiático. Conforme afirma Sodré (2001, p.20) “A publicidade tem uma função de
envolvimento sensorial, paternalização, de garantir ao sujeito de que alguma coisa no nível
macro, no nível do consumo, está velando por ele”. Assim, esse envolvimento sensorial acaba
por deixar ainda mais clara a moralidade mercantil da mídia.

A mídia é uma moralidade. Ao contrário do que se pensa, a mídia não é imoral.


Pode ser imoral do ponto de vista do conteúdo. O território da mídia é um território
de ethos, de um território de moralidade. Uma moralidade de comerciante, que surge
a partir dos costumes, dos hábitos, que é onde a mídia efetivamente se posiciona.
(SODRÈ, 2001, p.24)

À luz desse pensamento, a publicidade desempenha um papel dentro do bios midiático


que vai de acordo com suas características. Os modelos, estereótipos e celebridades são
colocados a cargo da fetichização da mercadoria. Dentro do ambiente digital, os casos de
personalidades que surgem para atender a essa demanda pela fetichização é recorrente, como
no caso da influenciadora Jade Picon. Em uma campanha recente para a marca Arezzo, a
blogueira aparecia vestida de peças de roupas de matrizes culturais africanas, para que
agregasse desejo à nova coleção de sapatos da marca.

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Figura 1 - Peça da campanha da Arezzo com Jade Picon

Fonte: Portal Meio e Mensagem

Entretanto, a modelo não possui nenhuma ascendência ou semelhança fenotípica com


as etnias originárias de África, fato esse que desencadeou uma série de reações negativas à
campanha da marca. Dessa forma, a moralidade dessa ação publicitária se torna, no mínimo,
questionável, demonstrando as contribuições abordadas por Sodré. Ainda, percebe-se que a
estereotipização promovida pelos modelos geradores do bios-midiático atua de tal maneira
que até mesmo a representatividade de povos originários se encontra apagada pelos modelos
hegemônicos da mídia, caso de Jade Picon, influencer que, como os outros demonstra uma
vida não real na internet e faz com que seu público se relacione com ela de maneira a
constituir uma vida vicária seja pelo desejo, pela identificação ou até mesmo pela interação.
Em relação a este último modo de relacionamento, dentro do mundo digital, há uma
ampliação do sensório, não só pela tela, mas também pelo toque, em adição ao observado por
Sodré, “a televisão não é um veículo transmissor de conteúdos. A televisão é uma ambiência,
multissensorial. A televisão não se dirige à mente das pessoas. Ela se dirige ao corpo do
indivíduo.” (2001, p.19)
Nesse aspecto, são várias promessas - como a do metaverso, por exemplo - de novas
tecnologias que permitiriam a criação de uma ambiência totalmente interativa com os
usuários, na qual uma nova realidade poderia criar novos ambientes. A mediação nesses
novos espaços, aos moldes da moralidade mercantil, da espetacularização midiática, da

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promoção de estereótipos e de modelos hegemônicos perpetuariam a acuracidade da análise
de Muniz Sodré, promovendo uma reorganização sensorial ampla e, por fim, uma nova forma
de vida.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dessas reflexões, o modus operandi do bios-midiático pode ser compreendido


a partir das relações de representação, estereotipização e mercantilização midiática dentro da
lógica da moralidade midiática. Pode-se compreender, dentro dessa análise, o caráter vicário
do funcionamento midiático e, para além disso, entender como base desse caráter a realidade,
juntamente com seus valores, regras e normas morais, culturais e sociais. Portanto, a relação
entre o que se estabelece dentro do bios-midiático depende intrinsecamente do que têm-se
estabelecido na vida real. Ou seja, uma vez que a cultura de apagamento de povos originários
e de representações estereotipadas e preconceituosas se estabelece na vida cotidiana, ela se
estabelecerá, também, no bios-midiático. Ao mesmo tempo, essa nova esfera da vida humana
socializada também dita os costumes e o modo de ação da realidade tradicional, a partir dos
modelos hegemônicos, das representações estéticas e do estabelecimento do controle do
tempo e da consciência dos indivíduos por meio do sensório.
Dessa maneira, a linha tênue entre a lógica desse bios e a vivência cotidiana se
demonstra difusa, embaraçada. A relação intrínseca de reflexão e refração da realidade virtual
e da realidade diária se aproxima, dessa forma, às ideias de Baudrillard, ao discorrer sobre a
hiper-realidade.

Já não há o imperativo de submissão ao modelo ou ao olhar. Vocês são o modelo!


Vocês são a maioria! Esta é a vertente de uma socialidade hiper realista, em que o
real se confunde com o modelo, como na operação estatística, ou com o médium [...]
Este é o estádio ulterior da relação social, o nosso, que já não é o da persuasão (a era
clássica da propaganda, da ideologia, da publicidade, etc.) mas o da dissuasão:
Vocês são a informação, vocês são o social, vocês são o acontecimento.
(BAUDRILLARD, 1991, p.42)

Assim, os indivíduos são ao mesmo tempo, objetos e sujeitos do bios midiático, se


submetem aos modelos e ao fazê-lo, tornam-se, de certo modo, suas ampliações. Não há
distinção entre vida vicária e vida real. Não há substituição de um modo de vida sobre o
outro. Há, apenas, uma ampliação recíproca, conforme afirma Sodré “será que essa forma de

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vida, bios-midiático, substitui a realidade tradicional? Ou ela amplia a realidade tradicional?
Sem dúvida nenhuma, ela é uma ampliação, é uma realidade que se agrega a outra.” (2001, p
20).

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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A NEGAÇÃO DO BRASIL. Direção: Joel Zito Araújo. Brasil, 2000.

BAUDRILLARD, Jean. A precessão dos simulacros. In: Simulacros e Simulações. Lisboa:


Relógio d’água, 1991.

HELLER, A. Sobre preconceitos. In: O cotidiano e a história. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
2004.

LIPPMANN W. Estereótipos. In: STEINBERG, Ch. (org.). Meios de Comunicação Massa.


Rio de Janeiro: Cultrix. 1980.

SODRÉ, Muniz. A televisão é uma forma de vida. Famecos. 2001, n. 16, p. 18-
35.

SODRÉ, Muniz. Bios midiático // The media Bios. Revista Dispositiva, Minas Gerais,
Volume 2, número 1, p. 108-110, outubro de 2013.

VOLOCHINOV, V. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Ed. 34, 2017, 1a ed.

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