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Modo Operativo AND: potência clínico-política entre o play e a realidade.

Iacã Machado Macerata


Christian Sade
Intro
O Modo Operativo AND (MO-AND)1, criado pela antropóloga e artista Fernanda
Eugénio, é um sistema teórico-metodológico para a investigação e experimentação da
relação e dos seus modos. Tal sistema funciona através de dispositivos de jogos de
improvisação e composição não-competitivos, como estudo praticado das políticas de
coexistência, convivência e colaboração (Eugènio, 2019). Também denominado jogo das
perguntas - como viver juntos? Como não ter uma idéia? (Eugènio, 2019) - o MO-AND
pode ser entendido como um exercício ético-estético, político-existencial que cria uma
zona de atenção e experimentação recíproca consigo e com o mundo, através do
exercício dos modos de posicionar-se na relação: de si para si, para com os outros
humanos e para com o ambiente. Em sua prática, se evidencia a integralidade e
inseparabilidade dessas relações, onde se fazem processos que compõem a
subjetividade. Propomos considerar o MO-AND como uma prática de cuidado de si2
relevante para a contemporaneidade.
Interessa-nos a produção de subjetividade na prática de jogo do MO-AND, e
apresentamos, neste texto, uma inteligibilidade possível desta produção no jogo, a partir
de uma articulação entre a perspectiva psicanalítica de Donald Winnicott e da abordagem
enativa de Francisco Varela. Em ambas identificamos o pressuposto do primado da
relação na produção da subjetividade e, como propomos, a inseparabilidade entre clínica
e política. Esta mirada acerca do MO-AND é construída a partir de um projeto de
pesquisa3 realizado desde 2018, que buscou analisar os efeitos de cuidado da prática do
MO-AND na experiência subjetiva.
A prática de jogo do MO-AND envolve um exercício de distribuição e (re)conexão
entre pensamento e gesto, cognição e afeto, mente e corpo, entre sujeito e mundo, onde
o que está em jogo é a interface entre os termos, a relação entre eles. Propomos aqui ler
tal exercício como a construção de uma capacidade transicional (Winnicott, 2019) ou

1 www.and-lab.org
2 Intervenções de um sujeito sobre si mesmo, um ocupar-se de si mesmo que tem por objetivo a
transformação de si (Foucault, 1984).

3"A dimensão de cuidado do Modo Operativo AND: contribuições para uma clínica de território”,
Departamento de Psicologia do Instituto de Humanidades e Saúde da Universidade Federal Fluminense,
coordenada pelos autores desse artigo.
1
capacidade para a relação com as relações. Para Winnicott (2019), esta capacidade é
construída pelo play (jogo, jogar, brincar), em um espaço potencial, e se caracteriza pela
criação. Propomos ler a prática do MO-AND como uma atividade de play que,
caracterizada pela transformação de si e de mundo, produz efeitos de cuidado, pois se
dá por um participar do plano comum.
O plano comum - plano das relações - é onde se localiza toda a possibilidade de
experiência de alteridade4. Reside aí uma qualidade basal deste cuidado: seu caráter
clínico-político. A relação com a alteridade é uma questão política-existencial, central no
contemporâneo, incontornável ao capitalismo colonial, o qual Achille Mbembe define
como uma altero-fobia: sustentado por um gregarismo identitarista e segregacionismo em
relação ao outro - o não europeu (Mbembe, 2018). Joel Birman (2001) ao descrever a
modulação na subjetividade moderna, que tinha seu eixo na interioridade e na reflexão
sobre si mesmo, para uma subjetividade pós-moderna, diagnostica, na subjetividade
contemporânea, um autocentramento que se conjuga de maneira paradoxal com uma
hipervalorização da exterioridade. Birman propõe que o autocentramento contemporâneo
aparece através do imperativo de exaltação gloriosa do Eu. O que ficaria obliterado nesse
modo de subjetivação é a alteridade e a intersubjetividade, que tenderiam ao apagamento
e ao silenciamento.
Para Suely Rolnik (2018), no regime hegemônico do inconsciente - inconsciente-
colonial-capitalístico - a dimensão fora-do-sujeito, limiar do vivente humano é
desapropriada e a experiência !sujeito” - dimensão de formas ou representações - ganha
um poder desmesurado. A existência ficaria restrita ao seu registro formal ou
representacional - o que a autora chama experiência sujeito. Tal redução implica em uma
dissociação do plano da relação, de onde advém o saber-do-vivo, engendrando uma
micropolítica e uma posição desejante mais submissa ao inconsciente-colonial-
capitalístico. Posição reativa a tudo que comparece como perturbação do status quo
subjetivo. O problema politico-existencial da alteridade comparece como fobia a tudo que
perturba ou destitui a pretensa universalidade e homogeneidade das formas de vida.
Queremos sustentar aqui que o exercício do MO-AND tem relevância clínico-
política justamente porque constrói um dispositivo de jogo que tem a curiosa característica

4 Entendemos a alteridade não como a qualidade de um “outro”, radicalmente diferente e separado de um “eu”
igualmente dotado de individualidade substancial. A alteridade entrelaça “eu” e “outro” de modo paradoxal. Os
paradoxos nos põem no limiar do pensável e do representável, nele o que deveria se manter separado se entrecruza num
mesmo plano, de tal forma que o que se distingue não se separa, como no famoso desenho das mãos de Escher (Varela,
1994). A partir do paradoxo, a alteridade se define como esse outrem que é diferente do mesmo (ipse) e dele não se
separa; ela nos lança no plano do entre-dois. Diferença irredutível aos pontos de vista pelos quais normalmente
compreendemos um problema e que, por isso mesmo, é fonte de seus deslocamentos e de suas transformações
qualitativas (Monneret, 2008).
2
de incluir o acidente, incluir a perturbação, incluir como parte fundamental de sua prática
a experiência de alteridade. Isso é feito, como veremos, pelo play, por um manejo e
atenção recíprocos e paradoxais a si e ao ambiente. O cuidado que localizamos em sua
prática tem a direção de um exercício de habitar o plano do comum, através da
construção de uma corporeidade desperta à participação no plano processual e sempre
em aberto da relação, plano de interferência da alteridade na constituição de si e do
mundo.
O MO-AND
Agenciados a uma complexa rede conceitual, os dispositivos de jogo do MO_AND
se caracterizam por não serem jogos competitivos e de performances. Tratam de realizar
uma composição estética e coletiva sem plano prévio, dentro de uma zona de atenção
comum, em tempo real. Durante o jogar, não se fala sobre o jogo. A fala, quando usada, é
matéria para jogo, não comando, explicação ou meta-narrativa. Suas regras são regras
imanentes: são criadas no próprio jogar. O exercício ou a brincadeira do jogo é encontrar
o jogo, e encontrar o jogo é encontrar/inventar suas regras, a cada situação.
Há somente um recorte inicial: a delimitação de uma zona de atenção coletiva, o
tabuleiro. Este funciona como um simulador de acidentes (Eugènio, 2019), uma zona de
atenção para reparar nos acontecimentos através dos quais se desenrola o jogo, zona
para reparar (n)os acidentes precípuos aos acontecimentos. O tabuleiro é delimitado
como recorte de um dentro e um fora provisórios - demarcados com fita adesiva no chão,
por exemplo. O jogo será jogado através do uso de objetos e materiais de toda sorte:
sucatas, materiais de todo tipo, aqueles geralmente tidos como obsoletos ou
dispensáveis, chamados de tralha (Eugènio, 2019). Mas não somente, tudo que entra na
zona de atenção do tabuleiro é matéria para o jogo. Interessa os modos de
funcionamento virtuais destas materialidades, modos como elas operam no tabuleiro:
textura, tamanho, peso, cor, som, etc. As qualidades e potencialidades dos objetos que
serão ativadas no jogo dependem da sequência de jogadas: algumas se atualizam, tem
relevância no jogo, outras não.
Cada jogada é chamada de tomada de posição. De forma consecutiva, mas não
teleológica, as jogadas acabam por produzir certa composição estética no tabuleiro, que
surge como efeito dos modos de relação - os modos operativos - imanentes às tomadas
de posição. Por isso a composição, no ideário do MO_AND, é sempre posição-com: efeito
não-programado e não controlado de um pôr-se com - dimensão “como não ter uma
idéia?”. Não sendo definida por nenhum sujeito ou em nenhum locus externo ou superior
que não o próprio espaço da relação, não pressupondo um exercício de interpretação ou
3
hermenêutica, o protagonismo do jogo é transferido dos sujeitos para a relação e para o
acontecimento (Eugènio, 2019). Se não há programa ou controle, há direção: ao invés de
um sentido-significado, um sentido-direção. Regra é a formação de uma unidade
sequencial provisória entre as jogadas, uma operação que se repete entre as tomadas de
posição (Eugènio, 2019).
De maneira apenas esquemática, podemos desenhar a dinâmica do jogo da
seguinte forma: uma posição 1 é introduzida no tabuleiro (através da colocação de um
objeto qualquer ou da realização de uma ação), formando uma primeira paisagem; a
posição 2 se faz com, em relação à paisagem insaturada pela posição 1, delineando uma
primeira relação (1 e 2); uma nova paisagem no tabuleiro se forma, como um
acontecimento que contém uma virtualidade de possibilidades para desdobramento do
jogo. A posição 3 entra, podendo estabilizar uma unidade sequencial, através da
construção de uma relação com a relação formada entre as posições 1 e 2. Três é a
unidade mínima para o surgimento de um jogo e para a instauração de um plano comum
(relação de relações). Longe de finalizar o processo, a terceira posição realiza um
sentido-direção, sendo também uma nova primeira posição. Ao encontrar/inventar um
plano comum, o jogo passa a ser sustentar a regra imanente que emergiu da relação de
relações, através do manuseamento das quantidades de repetição e diferença que se
introduzem a cada nova posição. Por esgotamento ou por novo acidente, o procedimento
reinicia: posição 1 com posição 2 (relação entre posições), com posição 3 (relação com
relação), e assim por diante: relações entre relações entre relações (Eugènio, 2019). O
jogo, assim, não tem um fim preestabelecido, podendo, em tese, durar ad infinitum.

4
Posição 1 Posição 2

Posição 3 Posição 4

Posição 5 Posição 6

Posição 7

Imagens acervo AND-Lab.

5
Mas o jogo não se dá somente no manuseio da tralha no tabuleiro. Em cada
tomada de posição há sempre um jogo ou processo "interno" ao jogador, de si para si.
Cognição e afeto no jogo se dão de maneira inseparável do gesto, se produzem e se
prolongam nos modos como os objetos são escolhidos e manuseados. O objetivo do jogo
não é o produto estético, mas o processo, o modo como se operam as posições-com
coletivas. Por isso, seu caráter estético é inseparável de sua dimensão ética.
O MO-AND sintetiza-se no exercício do Reparar em sua tripla modulação: (i) Re-
parar, primeira ação que se faz consigo mesmo: parar quando o acontecimento nos pára,
parar a narrativa que já sabe o que é ou o que vai ser, parar a recognição; (ii) Reparagem,
como atenção e mapeamento dos modos e operações do que acontece no tabuleiro,
evitando as interpretações ou os juízos do que deveria haver; (iii) Reparação, como
manuseamento e manutenção da sustentabilidade da relação - a dimensão “como viver
juntos?”, medindo as doses de diferenças ou repetições que o tabuleiro necessita para
manter-se vivo (Eugènio, 2019). O conectivo "e" (and, em inglês), que dá nome ao
sistema, sintetiza o modo de relação, modo operativo que a prática do jogo visa exercitar
e exercer: uma abordagem que não se baseia nem no saber (a lógica do é) nem no achar
(a lógica do ou), mas no sabor, no saborear e no encontrar (a lógica do E) (Eugènio,
2019). O MO_AND é também o jogo das perguntas “o quê-como-quando-onde?”, que
escapa às perguntas usuais “quem e por quê”, que tendem a construir uma meta-narrativa
da situação e da relação, gerando uma proliferação de ideias e interpretações que
deterioram o tecido comum das relações (Eugénio, 2019).
O MO-AND toma a relação como a dimensão fundamental onde se constrói a
realidade. A partir disso, o jogo convoca atenção e ação recíprocas sobre si e sobre o
mundo, auto-observação e mapeamento da situação, cuidado de si e cuidado do
ambiente, o que inclui os outros jogadores mas também os outros atores inumanos5: “me
vejo nas jogadas; elas tem um pouquinho de mim. Percebo meu cansaço e minhas
frustrações e que essas influenciam no jogo”; “Enquanto eu to ali no jogo eu to reparando
nos objetos e no que eu to sentindo” 6. Propomos pensar essa atenção e ação recíprocas
como cuidado, onde este é entendido como atividade de acolhimento do que há, no
entorno e na situação, e como ação de transformação. Cuidado para nós tem sentido de
criação e cultivo do plano comum, que, ao mesmo tempo, escapa a uma adequação a
qualquer modelo transcendente e a uma criação ex nihilo, ou seja, uma invenção que
legitima e conta com o que já existe. Como trabalhado no próprio ideário do MO-AND, a

5 Sobre a noção de ator inumano, ver Bruno Latour (1999).


6 Essas citações em itálico são trechos de entrevistas realizadas na pesquisa citada acima.
6
jogadora é antes de tudo uma gamekeeper, ela trabalha pela sustentabilidade vital do
jogo, não sendo autora isolada nem espectadora.

"Eu olho os objetos e escolho um para começar. Algum objeto que de


alguma forma me chamou atenção ou que nele houve algumas
possibilidades de composição que estivessem de acordo com o meu
momento. Como se fosse um chamado – não um chamado porque ele
não me chama, mas enfim. Acho que vai a nível de uma certa intuição. Na
hora de escolher o primeiro objeto eu não penso muito sobre o que
colocar ali. Bem, porque não tem nada ali, está aberto. Então um objeto
que seja... que me venha ao momento através de meu contato sensível
com ele ou que também tivesse abertura para possíveis composições”.

O que vemos nos dispositivos de jogo do MO-AND é justamente um exercício que


passa ao mesmo tempo por um viver junto - há uma realidade compartilhada - e ao
mesmo tempo por não ter uma ideia - não há uma realidade verdadeira universal - seja
objetiva, seja subjetiva. O jogo precisa da alteridade, que passa tanto pela dimensão
intersubjetiva (molar), quanto pela perturbação do acontecimento e do acidente
(molecular). A alteridade comparece no jogo através da inclusão do acidente, feita pelo
exercício do reparar, em três sentidos: reconhecimento do acidente enquanto perturbação
em mim, acesso às propriedades e potências que o acidente porta, através da construção
de um saber que é sabor, um saber abordado a partir de meu corpo, minha perspectiva, e
por posição-com o acidente, uma composição que reconfigura o tabuleiro, como espaço
relacional si-mundo, produção de realidade subjetiva e social. O que acontece no
tabuleiro não está dado independente da(s) jogadora(s) e do que nele se passa.

"As coisas (no jogo) não saíram da forma que eu queria e eu tive que
lidar. Eu continuei incomodada até eu conseguir lidar com aquilo ali”.

“É como se eu precisasse de algum elemento de fora (…) a marca do giz


já estava ali. É como se a marca de certa forma fosse o elemento que eu
precisava e ai eu começo por ela. Aquilo que era uma forma no começo
do jogo começa a ganhar outra propriedade. As cartolinas também... Eu
não sabia na hora que peguei as cartolinas... No primeiro momento que
peguei a cartolina era só um formato e ai nesse segundo momento do
7
jogo quando eu pego na cartolina, ela tem várias outras cartolinas dentro
e ai eu desenrolo as cartolinas e elas fazem um movimento parecido ao
das fitas e então eu fui me guiando pelo desenrolar. Eu sou muito ligada a
isso da diferença vir do outro, a diferença tem que vir do outro de alguma
maneira e ai quando a diferença não vem de mim e nem do outro, eu
acho engraçado. As coisas não são como a ideia que você criou antes do
jogo, aonde a diferença vem de você ou do outro, o jogo vem e as coisas
emanam dele mesmo e foi isso que aconteceu. Até que uma delas não
para em pé e cai. Quando eu levanto as formas, as fitas ficam como
cordas e quando uma dessas formas cai, ela cai em cima das outras fitas
e derruba todas as outras formas que estavam levantadas. Eu ri. Acho
que foi por ter sido um acidente que eu não ocasionei, nem o outro, foi do
jogo e que eu tive que lidar com aquilo”.
O play
Se o diagnóstico do problema clínico-político no contemporâneo passa pelo
problema da alteridade, este por sua vez passa pela fragmentação da experiência, que
claudica entre um fechamento narcísico e uma submissão heteronômica. Como estar em
relação com uma realidade que não se reduz a nenhum dos pólos: subjetivo e objetivo?
Esta é a formulação de Winnicott (2019) para o problema da maturação humana: a
relação entre o que é objetivamente percebido e o que é psicologicamente7 concebido. A
saúde para Winnicott passa por habitar e se desenvolver em uma terceira zona que
escapa aos dois pólos: o espaço potencial ou transicional (2019, 2000), construído
através da atividade do play.
Para Winnicott (2019), o processo de maturação só é possível pela incorporação
da alteridade: incorporação de objetos “diferentes de mim” em "meu" padrão pessoal. Da
experiência inicial de continuidade absoluta com o mundo - narcisismo primário -
passando pela introjeção projetiva psíquica dos objetos - relações de objeto - chegando a
destruição da onipotência e a posição-com uma alteridade incontrolável e não totalizável -
o uso do objeto. A capacidade de uso do objeto será condição de possibilidade para o que
Winnicott chama de experiência cultural: relacionar-se e criar com, no, para, a partir e
através do mundo. Criatividade não como capacidade psicológica, mas como

7 Na tradução, Winnicott usa o termo subjetivo. Preferimos usar o termo "psicológico" para marcar a
realidade interna ao sujeito, pois entendemos a subjetividade como um processo que engloba processos
“internos” ao sujeito, mas também processos aquém e o além do sujeito.
8
coemergência de si e mundo8. Esta relação criativa com o mundo é o que possibilita uma
integração paradoxal - direção clínica de Winnicott: si e não si, realidade interna e
ambiente, mente e corpo, razão e emoção (Belo, Scodeler, 2013).
O uso do objeto é quando o objeto é colocado, na experiência do bebê, fora da
área dos fenômenos psicológicos - fora da introjeção projetiva onipotente – e, ao mesmo
tempo, se agencia com o bebê, constituindo-o e sendo constituído por ele. É
necessariamente real, faz parte da realidade partilhada, e não um feixe de projeções. Tal
uso do objeto é possibilitado pelo encontro/construção dos objetos e fenômenos
transicionais9. Não se pode dizer que são internos nem externos aos sujeitos. Estão entre,
em trânsito.
Se, para Winnicott, a experiência é um processo temporal permanente de
passagem entre eu e não-eu, a condição de emergencia de um self com sentimento de
continuidade é o espaço potencial (Luz,1989). É por ele que as relações de contiguidade
(experiência cultural) tomam lugar das relações de continuidade (onipotência). O espaço
potencial é instável, pois é membrana ou superfície de contato, uma interface entre si e
mundo. O play é um fazer sem conteúdo específico que constrói uma contiguidade na
(des)continuidade. Possibilita a integração maturacional como composição integrativa das
forças existentes no humano - o impulso sensível e o racional (Belo, Scodeler, 2013).
Podemos dizer, composição integrativa sempre de forma situada, na sua relação com o
ambiente. Esse parece ser um aspecto fundamental em Winnicott: o sujeito só pode ser
pensando de forma situada, em um espaço de relação com uma alteridade que
paradoxalmente o cria e é criado por ele. Um território.
O Parangolé10 de Hélio Oiticica é eloquente para pensar o play enquanto qualitativo.
O processo que sustenta a experiência estética do parangolé é chamado por Oiticica de
play. Parangolé-play porque é uma obra-acontecimento, que se constitui como
agenciamento em determinado momento e lugar. Interessa a Oiticica uma concreção da
obra que escapa à intenção e controle do artista e que envolve outros atores, sempre
como coautores do parangolé. O play dá o sentido de que a obra é acontecimento, que só
existe enquanto experiência compartilhada entre obra e expectador, que se torna, assim,
participante. Oiticica o define como programa-jogo-dança-experimentação que só pode

8Usamos aqui o conceito de coemergência de Francisco Varela (1994, 2003), pois entendemos que a abordagem enativa
da cognição é afinada ao pensamento de Winnicott, na medida em que ela afirma o primado da relação, a gênese da
cognição a partir dessa dimensão paradoxal anterior ao surgimento de sujeito e mundo.
9 Gestos, maneirismos e melodias que têm importância vital ao bebê (Winnicott, 2019).

10Tais obras constituem-se, na sua maioria, de capas, cujo valor estético emerge da sua
vestimenta e do seu uso na dança-giro pelo espaço.
9
acontecer como criação de um corpo coletivo (Oiticica, 2013) e que passa por “livrar o
sujeito do ego, da identidade (...) conceito de sujeito que não é mais dotado de
profundidade psicológica” (Oiticica, 2013), onde o agente não é um eu reificado, mas jogo
de dissolvência e composição na fronteira corpo/ambiente, em ato (Macerata, Costa,
Silva, 2018).
Há uma dissolvência no parangolé e uma destruição no uso do objeto que apontam
para uma desmontagem na estrutura de determinado acoplamento estrutural sujeito-
mundo. A noção de colapso (breakdown) de Varela (2003) nos ajuda a pensar uma
desmontagem que é condição de abertura para a alteridade e, como consequência, para
criação. O colapso de determinado acoplamento eu-mundo enseja a emergência da
experiência prerrefletida, inundando a experiência de momento presente (Stern, 2007).
Esse uso que fazemos da perspectiva psicanalítica de Winnicott é atravessada pela
abordagem enativa, que toma por base da experiência subjetiva a dimensão prerrefletida
da experiência (Passos et al., 2018): dimensão não-representacional, intensiva e
processual, base dos processos cognitivos superiores, emoções e modos de agir. Não se
localizando nem dentro nem fora do sujeito, a experiência prerrefletida é o leito de sua
produção, zona de coemergência entre sujeito e mundo, fundo sem fundo da experiência
de estar vivo. A experiência prerrefletida se situa sempre na corporeidade, como posição
existencial no tempo e espaço, que cria uma perspectiva. Corporeidade é a dimensão
pré-organísmica, situada na imanência do corpo com seu espaço de relação (Gil, 2004), o
corpo sensível, que implica uma concomitância entre pensar-agir, em distinção e
inseparabilidade com um ambiente, um território.
O play é então um agenciamento com o alheio que, sustentado na experiência
prerrefletida e na corporeidade, singulariza uma vivência que está em posição-com a o
ambiente: “é na superfície de articulação entre o sujeito e o mundo que reside o princípio
de diferença, singularização e variabilidade do sujeito” (Luz, 1989, p. 29). A distância
possível entre um sujeito e um objeto não é um lugar de discurso, mas um lugar de uso:
espaço de inscrição do gesto, moção pulsional erótica ou agressiva. A corporeidade é
onde se dá a integração com o ambiente. O que nos leva a ler o que Winnicott chama de
integração construída através do play como coemergência. Uma consistência, um
território para se viver que engloba um si e um mundo.
MO-AND play: o jogo desmonta, o jogo diz: monta!
O jogar do MO-AND funciona como o play de Winnicott: trata-se de um colocar em
jogo, disparar, performar, criar e criar-se nesta zona nem objetiva nem psicológica do
plano comum. O play convoca uma atenção e uma ação de si sobre si em conexão com a
10
ambiente e um acolhimento e um manejo com o acidente, como portal para a alteridade.
Quanto mais as jogadoras de nossa pesquisa conseguem incluir os acidentes, mais elas
percebem que o jogo se mantém, que ele continua, apesar (ou justamente por causa) das
suas descontinuidades, da sua “destruição”; o jogo não depende do controle onipotente
da(s) jogadora(s) e por isso mesmo ele pode ser “destruído”, “colapsado”, pois ele
sobreviverá a sua própria destruição, podendo então ser usado, jogado. É nesse ponto
que o encontro com as diferenças no jogo deixa de ser vivido como uma ferida, para ser
vivido como um oferta (Eugénio, 2019).
O play é um processo sempre com o meio e estando em meio: nunca se completa,
nunca cessa, encarnando uma virada ética em que a inclusão do acidente que perturba,
que desestabiliza o código vigente da situação, se torna, na experiência, mais abertura e
dádiva do que dívida e paralisia. Por isso o primeiro movimento do AND é o re-parar:
permitir ser parado quando o acidente nos pára, incluir o que desestabiliza a narrativa
cognitiva estabelecida. O que traz uma abertura no plano do jogo e uma abertura em si,
para poder encontrar outro pensamento-ação, encontrar outra posição, pôr-se-com o que
muda. Esse é um aspecto fundamental: o jogo desmonta. A partir de um acidente/colapso,
é preciso ativar o segundo movimento do reparar: a reparagem. Mapear o que há, o que a
situação tem e como ela nos tem, o que se faz abrindo-se mão das ideias prévias que
tínhamos instantes antes sobre ela. Não ter uma idéia, ou seja, a situação deixa de ser
vista e vivida como um É. Se destrói um É projetado, e essa é a condição de entrada em
um modo operativo E, que o play requer.
O uso da tralha porta a equivocação da representação e da percepção utilitária do
objeto. No jogo o pré-conceito do objeto se dissolve, e é convocado um materialismo
radical, onde toda materialidade é perspectiva. Um copo de plástico pode ser abordado
de muitas formas, a depender de sua posição no espaço de relação. Por isso constrói um
saber que é da ordem do sabor, onde está evidente que aquilo que se percebe e se
pensa somente se produz como saber situado, sustentado em uma posição. Posição que
direciona a atenção às operações, captadas pelo mapeamento do que há: o-quê-como-
onde/quando. Mergulho no concreto, em sua virtualidade, não separa o sujeito da ação.
Embora não se destitua a representação e a percepção utilitária, não se fixa nela, não se
‘da lugar central e organizador à abstração. O reparar evidencia a inseparabilidade entre
mundo percebido e perspectiva que o aborda.
O jogo do MO-AND demonstra de maneira bastante ostensiva a inseparabilidade
entre o jogar/brincar e a realidade: uma realidade que vai se produzindo em forma de
jogos de composição, em uma criação que precisa da intrusão da alteridade, tanto dos
11
outros jogadores como do acidente, do imprevisível, e do incontrolável. A inclusão do
acidente no jogo pode ser lido como a desmontagem ou destruição que o uso do objeto e
o play requerem. Sobreviver a desilusão da quimera da ideia, à destruição do sentido-
significado, e sustentar a desestabilização é um desafio constante no jogo do MO-AND, e
aparece em nossa investigação como incômodo, angústia. O exercício de acolher o
acidente que traz uma desmontagem já é uma primeira exigência do MO-AND: conjurar a
interiorização, núcleo de regras prévias e universais para o sujeito, podendo afirmar a
dimensão não toda/total do jogo e de si mesmo.
Mas o play do MO-AND não se restringe a desmontagem que o acidente produz. É
imanência entre desmontagem e montagem, como em um caleidoscópio, paradoxo
destruição e criação. Se o jogo desmonta, o próprio jogo diz “monta!”, ele enseja uma
remontagem de si e da composição no tabuleiro, que remete à irreversibilidade do
desdobramento do vivo como sentido-direção da criação, marcha em frente sem marcha
ré. É a terceira modulação do reparar como reparação: criação, re-atualização.
O que nossa investigação vem demonstrando são efeitos de descentramento e de
(re)conexão com o plano sensível da experiência corpórea e afetiva, e por isso, com o
plano relacional das forças, que compõe todo vivente. O mérito do MO-AND é conseguir
organizar um dispositivo para essa experimentação, que aparece como resposta a um
contexto de produção de subjetividade com estas problemáticas clínico-políticas. Assim,
vemos o MO-AND como dispositivo de prática de cuidado de si para transformação de si
e de mundos. Podemos dizer que a potência clínico-política do play do MO-AND é
justamente a atividade de participar e ser participado, e proliferar um viver junto ecológico,
heterogenético.
Referências
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12
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