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Jogos e Brincadeiras na

Educação Física Escolar


Jogar e Se Movimentar

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Fabio Luiz D´Angelo

Revisão Textual:
Prof. Me. Claudio Brites
Jogar e Se Movimentar

• Introdução;
• O que São Jogos e Brincadeiras?
• Quais as Inter-relações entre Jogo e as Práticas da Cultura
Corporal que Compõem o Currículo da Educação Física Escolar?

OBJETIVOS DE APRENDIZADO
• Conhecer os jogos e as brincadeiras como elementos da cultura corporal – Lúdica e como
conteúdo e estratégia de ensino na Educação Física Escolar;
• Compreender as inter-relações entre jogo e brincadeira como fenômenos complementares,
indissociáveis e que estão em permanente construção/transformação;
• Identificar o jogo como o maior fenômeno da cultura do Se Movimentar e a sua manifestação
nas diversas práticas corporais estudadas e vividas dentro e fora da escola;
• Reconhecer o jogo e a brincadeira como fenômenos socioculturais importantes na construção
da infância e na expressão da cultura lúdica infantil.
UNIDADE Jogar e Se Movimentar

Introdução
Nesta unidade, estudaremos e refletiremos sobre o conceito de jogo e como o jogar
se faz presente nas relações humanas e na vida dentro e fora da escola. Vamos também
aprender juntos como se dá a inter-relação entre o jogo e as outras práticas da cultura
corporal que fazem parte do currículo da Educação Física Escolar.

O que São Jogos e Brincadeiras?


Desde criança, aprendemos com os nossos pais e professores que uma boa estratégia
para encontrar a definição das palavras é recorrer ao dicionário e, se possível, ao léxico
de etimologia, aquele que nos apresenta a origem do vocabulário. Em uma rápida busca
pela gênese e definição da palavra jogo no dicionário eletrônico “Priberan” (2008-2020),
nos deparamos com um enorme leque de possibilidades. O verbete jogo ocupa um espaço
extenso, com atribuições das mais diversificadas. A sua origem está no latim “jocus” e
“ludus”, com derivações nas palavras gracejo, graça, brincadeira, divertimento, passatem-
po, exercício, competição, partida, peleja, lance, jogada, rodada, brinquedo, conjunto de
peças, coleção, série, entre outras. Vejam o tamanho do problema que temos pela frente,
ou seja, como definir o que é jogo neste emaranhado de palavras?

O Wikipédia (2021), site universal de busca conhecido como a enciclopédia livre, anun-
cia mais de cinco conceitos de jogo. Em uma das suas definições, apresenta o jogo como:

[...] toda e qualquer atividade em que exista a figura do jogador (como in-
divíduo praticante) e regras que podem ser para ambiente restrito ou livre.
Geralmente os jogos têm poucas regras e estas tendem a ser simples. Sua
presença é importante em vários aspectos, entre eles a regra define o
inicio e fim do jogo. Pode envolver dois ou mais jogando entre si como
adversários ou cooperativamente com grupos de adversários. É importante
que um jogo tenha adversários interagindo e como resultado de interação
exista um vencedor e um perdedor.

Na tentativa de resumir e encontrar palavras-chaves, a enciclopédia virtual afirma que


os jogos possuem um certo número de características comuns que permite identificar os
elementos de um jogo. São elas: jogador; adversário; interatividade; regras; objetivo; vi-
tória, empate ou derrota; entretenimento etc. Nos parece que o site peca pela economia
das palavras, quando comparamos com o dicionário eletrônico. Como se vê, o excesso
ou a falta das palavras-chaves estão presentes na tentativa de encontrar a verdadeira
noção do que é o jogo. O próprio site assume que ao longo dos anos surgiram várias
tentativas de dizer o que é um jogo e ressalta que os autores, utilizados como referência,
diferem em relação a estes elementos.

Quando o assunto é a literatura e a produção científica, o quadro é ainda mais desa-


fiador. A produção de obras e pesquisas que tematizam o jogo é incalculável e circula por
inúmeras áreas do saber como a psicologia, a sociologia, a antropologia, a filosofia, a
pedagogia e tantas outras “ias” que temos pelo mundo das ciências. Na leitura do livro,

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Aprendizagem através do jogo, Murcia (2005, p. 18-21), encontramos quase trinta de-
finições do que é jogo. Desde Russel e Freud, passando por Wallon, Winnicott, Chateau,
Schiller, Cagigal e Huizinga, até chegar em Piaget, Callois, Groos, Orlick e outros respeitá-
veis estudiosos do tema, transitamos por conceituações que conectam o jogo às diferentes
dimensões da vida humana: sociais, afetivas, cognitivas, emocionais, físicas, morais etc.

Podemos dizer que jogo é um termo polissêmico que, nas diferentes culturas e civiliza-
ções, se confunde com a natureza do que é ser humano. A ação de jogar revela o homem
na sua inteireza e plenitude. Querem saber mais sobre o que é a humanidade? Observem
os homens no espaço do jogo e ali vocês verão quem somos nós, as nossas fraquezas e
fortalezas em aspectos que envolvem o saber, o ser e conviver. Claro que jogar não é uma
particularidade dos homens, mas sem dúvida a cultura humana se apropriou de tal forma
deste fenômeno que seu estudo e compreensão tem mobilizado, ao longo dos séculos, uma
série de incursões e pesquisas sobre o seu conteúdo e a sua forma de expressão pelo mundo.
Quem são as pessoas que jogam? Quais atividades podem ser consideradas um jogo? Quais
são as formas de jogo? O que caracteriza um jogo? Qual a diferença entre jogo, brincadeira e
brinquedo? São muitas as perguntas e tentativas de respostas, mas como diz Ortiz (2005), “o
conceito de jogo é tão versátil e elástico que escapa a uma localização conceitual definitiva”.
Para o autor, “qualquer tentativa de definição do que é o jogo, sempre será capaz de captar
uma parte da “verdade”, nunca em uma perspectiva global ou total”. Brougerè (1998) faz
uma análise da obra de Jacques Henriot, Sous couleur de jouer – La métaphore ludique
(Sob a cor do jogo – A metáfora lúdica) e vai mais além: “o jogo é uma coisa de que todos
falam, que todos consideram como evidente e que ninguém consegue definir”.

Dada a dificuldade de conceituar o que é jogo, o que devemos fazer? Seria mais acer-
tado abandonar a ideia de aprofundar nossos estudos para que possamos melhor com-
preender este conteúdo tão presente nas escolas e nas aulas de educação física? Claro
que não! A possibilidade e a oportunidade de estudar e refletir sobre o tema nos dará,
sem dúvida, melhores condições de argumentar a favor do jogo no currículo escolar.

Importante!
Não estamos aqui para depreciar ou menosprezar aqueles que se dedicaram ao estudo
do tema, mas sim para, com humildade, tentar aprender e avançar na construção de
uma pedagogia que seja potente na fruição do jogo como conteúdo comprometido com
a educação integral das crianças e jovens que frequentam as nossas escolas.

Uma saída talvez seja apreciar e considerar esse fenômeno pelo olhar das crianças
que jogam. Vocês já tiveram a oportunidade de observar o recreio de uma escola? Vocês
concordam que nesse espaço e tempo da rotina escolar, quando possível, o jogo está
sempre presente? Nas vezes em que estivemos a contemplar os recreios nas escolas
onde atuamos como professor, vimos crianças a jogar. Mais do que isso, todas as vezes
em que perguntamos a elas o que faziam, a resposta era rápida e objetiva: “você não
está vendo, estamos a jogar!” Independente do contexto, do local e da realidade en-
frentada pelas crianças, todas elas usam a palavra jogo e atribuem-lhe um significado
simples e claro; algo que parece obvio e evidente. Será então que a complicação está
na cabeça dos adultos, ainda mais dos adultos professores? A hipótese que levantamos
é a de que as definições oriundas dos adultos, sejam eles pesquisadores do tema ou não,

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será sempre uma apropriação parcial do fenômeno jogo; isto porque, na maioria das
vezes, adotamos um jeito de olhar para o jogo a partir dos pressupostos positivistas e
cartesianos que privilegiam as partes em detrimento do todo, o fazer descolado do com-
preender, a razão em prejuízo da emoção, o conteúdo em oposição à forma e ao produ-
to em desfavor do processo. Para nós, somente será possível uma melhor compreensão
do jogo quando a nossa observação se pautar mais, como fazem as crianças, por uma
visão sistêmica e integradora sobre este fenômeno da cultura humana.

O que isso quer dizer?

Como compreender o jogo a partir de uma visão sistêmica e na perspectiva da totalidade?

A melhor resposta que encontramos até o momento está na obra do Professor João
Batista Freire. Ninguém melhor do que esse sábio pesquisador e educador para nos
ajudar a aprender sobre o jogo e as possibilidades de intervenção pedagógica no espaço
escolar. O Professor João Freire tem o mérito de se manter, como um pesquisador, dia-
riamente conectado com o chão da escola. Ele, nas suas pesquisas e nos seus estudos,
sabe como olhar para o fenômeno do jogo mantendo um vínculo entre o conhecimento
acadêmico e a realidade das escolas e da nossa atuação como professores. Entre as pro-
duções do Professor João Freire, o livro O jogo: entre o riso e o choro, fruto da sua
tese de livre docência, publicado em 2002, nos oferece uma rica leitura sobre o conceito
de jogo a partir da chamada visão sistêmica, um jeito de olhar e sentir o mundo que
busca romper com as disjunções e fragmentações e apela para que possamos valorizar
mais as integrações e a totalidade que caracterizam a ação de jogar.

Ao fazer uma análise sobre a obra de Huizinga, Callois, Chateau e Brougerè, entre
outros consagrados autores e pesquisadores na temática do jogo, Freire (2002) nos
mobiliza a uma reflexão sobre a lógica de compreender o jogo somente pela análise
separada de cada uma de suas partes e a tentativa de generalização para os diferentes
contextos onde jogamos.

Antes de voltarmos à reflexão proposta pelo Professor João Freire, vejam uma sínte-
se de como os autores definiram o que é jogo:

Numa tentativa de resumir as características formais do jogo, poderíamos


considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como “não séria”
e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador
de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer inte-
resse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro
de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas
regras. Promove a formação de grupos sociais com tendência a rodearem-se
de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por
meio de disfarces ou outros meios semelhantes. (HUIZINGA, 1996, p. 16)

[...] as análises precedentes permitem definir o jogo como uma atividade:


1. livre: uma vez que, se o jogador fosse a ela obrigado, o jogo perderia de
imediato a sua natureza de diversão atraente e alegre; 2. delimitada: circuns-
crita a limites de espaço e de tempo, rigorosa e previamente estabelecidos;
3. incerta: já que o seu desenrolar não pode ser determinado nem o resul-
tado obtido previamente, e já que é obrigatoriamente deixada à iniciativa
do jogador uma certa liberdade na necessidade de inventar; 4. improdutiva:

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porque não gera nem bens, nem riqueza nem elementos novos de espécie
alguma; e, salvo alteração de propriedade no interior do círculo dos jogado-
res, conduz a uma situação idêntica à do início da partida; 5. Regulamen-
tada: sujeita a convenções que suspendem as leis normais e que instauram
momentaneamente uma legislação nova, a única que conta e 6. Fictícia:
acompanhada de uma consciência específica de uma realidade outra, ou de
franca irrealidade em relação à vida normal. (CALLOIS, 1990, p. 29-30)

É possível extrair “algumas regras e premissas que respeitamos quando trans-


formamos uma ação séria, real, em algo lúdico”. Primeiramente (1), a função
real (com suas consequências) não é realizada: a bagunça não ocorre mais.
(2) “Certos atos são exagerados”. (3) “A sequência de atividade que serve
de modelo não é seguida nem fiel nem completamente, mas submetida a
paradas e retomadas, a repetições e a pausas, assim como a combinações
com outras sequências de atividade”. (4) Trata-se de ações frequentemente
repetitivas. (5) Os participantes do jogo coletivo entram por vontade própria
e não podem sozinhos dar fim ao jogo. (6) “As mudanças de papel no decor-
rer do jogo são frequentes”. (7) “Prolongando-se muitas vezes além do que
é exigido pela atividade que lhe serve de modelo, o jogo parece estranho às
restrições externas que pesam sobre os participantes”. (8) O jogo pode ser
solitário, mas, com a presença de um parceiro apropriado, transforma-se em
jogo coletivo. (BROUGERÈ, 1998, p. 100-101)

Como podemos notar, Huizinga, Callois e Brougerè realizam um verdadeiro inventá-


rio de características pertencentes ao jogo:
• O jogo implica em perigo*;
• O jogo é demonstração de superioridade;
• O jogo opõe-se ao caráter sério da vida**;
• O jogo é risco;
• O jogo é destreza;
• O jogo é inteligência;
• O jogo é acaso;
• O jogo é livre, voluntário, fonte de alegria e divertimento***;
• O jogo tem regras arbitrárias, imperativas e inapeláveis****;
• O jogo acontece num campo delimitado e imaginário;
• O jogo promove liberdade;
• O jogo gera tensão, incerteza, acaso, imprevisibilidade;
• O jogo possibilita repetição*****;
• O jogo cria ordem*****;
• O jogo é limitado no espaço e no tempo*****;
• O jogo é cultural;
• O jogo é repetição;
• O jogo tem uma dimensão aleatória;
• O jogo é espaço para a criatividade e liberdade de escolha*****;
• O jogo tem um fim em si mesmo*****;
• O jogo é evasão e compensação.

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A crítica a este modelo de compreensão do jogo não está só diretamente relacionada


ao levantamento das características do jogo, mas também ao método utilizado para
interpretar o fenômeno. Primeiro porque as características acima mencionadas não es-
tão só no ambiente do jogo, mas se fazem presentes no trabalho, nas escolas, nas igrejas,
no exército, nos clubes e nas mais diversas instituições onde se realizam as atividades
humanas. Por exemplo, o perigo* está presente não só nos jogos, mas em determinados
trabalhos, na guerra, na caça ou nas viagens; o argumento da oposição ao caráter sério da
vida** se contrapõe à seriedade com a qual muitas vezes observamos as crianças quando
se dedicam ao jogo; a liberdade e atitude voluntária*** estão na escrita deste texto e em
muitas outras escolhas que fazemos ao longo da vida; as regras arbitrárias e imperativas****
também fazem parte da rotina a que são submetidos muitos trabalhadores nas diferentes
empresas ou funções públicas e dizer que o jogo é limitado no espaço e no tempo, que cria
ordem, que gera alegria, que fomenta a criatividade etc., em nada o distingue de uma sé-
rie de outras atividades humanas como trabalhar, fazer compras, cuidar da casa, planejar
uma aula, fabricar um móvel etc.*****. Segundo porque o método de análise (pesquisa) e a
opção por agir de modo a fragmentar o fenômeno em partes, analisando-as isoladamente,
produz a ilusão de que estamos a compreender o todo. Como diz Freire (2002, p. 52-53):

O problema do jogo é complexo e deve, portanto, ser pesquisado do ponto


de vista da complexidade. O simplismo da análise que constatei nos tra-
balhos de alguns autores tolhe a visão para o fenômeno. Eles caíram na
armadilha positivista que por tantos séculos vem turvando a compreensão
para a real complexidade dos fenômenos da natureza e da cultura humana.
No caso do jogo, trata-se de uma questão que tanto diz respeito à natureza,
porque os não-humanos também jogam, como à cultura, pois adquire ca-
racterísticas muito particulares quando somos nós que jogamos.

Não estamos aqui para negar a ciência, mas para acenar com a oportunidade e a
possibilidade de que é possível compreender os diferentes fenômenos naturais-culturais,
entre eles o jogo, a partir da nossa percepção, do aguçamento da nossa observação.
Fazer ciência na perspectiva da totalidade é para nós, professores, sistematizar os pro-
cessos de observação e registro dos fenômenos estudados nos diferentes contextos onde
acontecem. Na leitura e possível compreensão dos fenômenos estudados, buscamos
possíveis generalizações, mas com o cuidado de respeitar os limites e as particularida-
des de como o jogo se manifesta em cada ambiente e nicho ecológico. Reconhecemos
a existência do fenômeno jogo, não e mesmo? Isso porque constatamos a experiência
do jogar em determinados acontecimentos que envolvem pessoas, animais ou mesmo
a natureza de um modo geral; ou seja, de fato acreditamos que ele existe porque nossa
percepção o registra. Sabemos que o jogo existe por suas manifestações, porque pode-
mos vê-lo, podemos tocá-lo, ouvi-lo ou até intuí-lo (FREIRE, 2002, p. 43).

Em seu livro A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento,


Edgar Morin nos alerta sobre os desafios de uma melhor articulação entre a especializa-
ção/fragmentação e a globalização/totalidade. Nos adverte o autor:

O desafio da globalidade é também um desafio de complexidade. Existe


complexidade, de fato, quando os componentes que constituem um todo
(como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o
mitológico) são inseparáveis e existe um tecido interdependente, intera-

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tivo e inter-retroativo entre as partes e o todo, o todo e as partes. Ora,
os desenvolvimentos próprios de nosso século e de nossa era planetária
nos confrontam, inevitavelmente e com mais e mais frequência, com os
desafios da complexidade. (MORIN, 2000, p. 14)

Para nós, pedagogos que somos, a advertência do Prof. Morin nos remete a olhar
para a escola, para as nossas pedagogias, para aquilo que fazemos no dia a dia da in-
tervenção pedagógica de um jeito diferente, não é mesmo? Como olhar o mundo e a
pedagogia do jogo pelo viés da integração, globalização, totalidade, multidimensionali-
dade e complexidade? Como pensar e agir diferente se a vida e o nosso sistema escolar
tradicionalmente obedecem a lógica da especialização e do desenvolvimento disciplinar?
A verdade é que a nossa formação básica e acadêmica nos ensina a fragmentar os con-
teúdos, isolar os objetos de conhecimento e separá-los em disciplinas, ao invés de buscar
a integração e a reunião dos saberes.

Complexidade: a teoria da complexidade vê o mundo como um todo indissociável e propõe uma


abordagem multidisciplinar e multidimensional para a construção do conhecimento. Contrapõe-
-se à causalidade linear, que busca entender o todo decompondo-o em partes, privilegiando os
saberes separados, fragmentados e compartimentados em disciplinas e assume uma aborda-
gem sobre os fenômenos a partir da totalidade, de uma visão sistêmica, integradora e orgânica.

Olhar para o jogo nesta perspectiva defendida por Freire e Morin é fazer um esforço
para encontrar na ação de jogar aspectos que sejam complementares e que levem em
consideração quem “joga” e quem é “jogado”. O sujeito que joga e o jogo jogado são
como duas faces de uma mesma moeda, fazem parte de um mesmo contexto e deveriam
ser vistos como algo indissociável: É impossível dissociar quem joga daquele que é
jogado, no caso, o jogo!

Vamos a uma tentativa de reflexão sobre algumas possibilidades de integração entre


o sujeito que joga e o jogo que é jogado. Pensamos que ao olhar para esse aspecto,
estaremos também mirando uma melhor compreensão e entendimento daquilo que, em
uma concepção de totalidade/globalidade (sistêmica), pode vir a ser jogo. Imaginemos
uma aula de educação física onde as crianças jogam a tradicional Amarelinha. Divididas
em grupos de 4 a 5 meninos e meninas, as crianças desenham o campo de jogo no
chão, separam uma pedrinha ou um saquinho de areia, combinam algumas regrinhas
e se dispõem a saltar, a girar, a se equilibrar e não cair, tentando chegar o mais rápido
possível até o céu. Para os adultos que têm o privilégio de observar esta cena, não resta
dúvida de que o que ali se vê é jogo. As crianças se movimentam gritam, riem, brincam,
brigam, saltam, conversam, comemoram, imitam, etc. É bom pararmos por aqui para
não cairmos no equívoco de construirmos mais uma lista infindável dos aspectos que
compõem o jogo. Para nós, este contexto se configura como um contexto de jogo por-
que aquele que joga e aquele que é jogado se confundem e sugerem integração:

No jogo é possível integrar os mundos do subjetivo e do objetivo – Normalmen-


te, como professores, nos aproximamos do jogo mais preocupados com o seu conte-
údo, com aquilo que o jogo pode ensinar para as crianças. Não há demérito nisso, já
que como pedagogos que somos, temos o oficio de ensinar, mas que tal um olhar mais

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ampliado? Quando observamos crianças a jogar a amarelinha nos parece existir algo
que está explícito, que é concreto e bem objetivo para aqueles que jogam: arremessar
com precisão e acertar o quadradinho, saltar sem se desequilibrar, respeitar a vez dos
colegas, seguir a lógica numérica etc. Tudo está claro e concreto, concorda? Na ação de
jogar são mobilizadas diversas habilidades e aprendizagens que envolvem a motricidade,
a convivência, o raciocínio lógico, entre outras. Basta ver e constatar, certo? Mas e aqui-
lo que está implícito na ação de jogar? O que não é visível e faz parte deste contexto?
Não há um mundo subjetivo que circula no entorno do jogo? Será que todas as crianças
sentem o jogo do mesmo jeito? O que se passa na cabecinha e no coraçãozinho das
crianças que jogam amarelinha? O medo e a frustração de errar, o prazer de acertar a
pedrinha ou o saquinho de areia no alvo, a vontade de jogar cada vez mais, o desejo de
parar de repente, a criação de novas formas de saltar, a diversão de estar com os cole-
gas, a felicidade de chegar ao céu, a oportunidade de desenhar a Amarelinha do meu
jeito etc. Tudo está lá, mas nem sempre como um conteúdo manifesto, visível aos nossos
olhos, não é mesmo? A ação de jogar, em muitos momentos, nos faz voltar para nós
mesmos, para aquilo que somos e queremos ser, para os nossos potenciais e as nossas
limitações, para o concreto e abstrato, para o objetivo e o subjetivo e para o ter o ser.
Entre o ser e o ter, o objetivo e o subjetivo, para que lado tomba a balança? Difícil dizer,
mas o jogo comporta esses equilíbrios e desequilíbrios, uma certa confusão entre o que
observa a plateia e o que sentem os jogadores. Na relação entre aquele que joga e aquele
que é jogado, existem mais conexões do que distrações e disjunções.
É importante que não restem dúvidas quanto a isso, ou seja, o jogo não é só subjetivo, é
também em menor escala, objetivo, assim como o jogo não é só desejo de ser, é também,
em menor escala, desejo de ter (FREIRE, 2000, p. 63).
Difícil precisar os limites e as fronteiras que definem até onde vão, no jogo, o limite do
mundo subjetivo e o limite do mundo objetivo. O que aprendemos até o momento, como
professores, é que se o jogo nos faz homens, os homens também fazem os jogos. Se de
um lado há o território livre do subjetivo, da possibilidade de ser quem se deseja ser; de
outro há o território das coisas reais, com seus limites e suas barreiras. É neste eterno ir e
vir que se localiza o jogo e todo o seu potencial educativo. O que nos cabe? Imaginamos
que talvez nossa tarefa, na educação, seja não atrapalhar, ou melhor, criar ambientes
saudáveis para que as crianças vivam as melhores e mais positivas experiências de jogar.
No jogo é possível integrar os mundos do jogo e do trabalho – Nascemos e cresce-
mos, como professores, escutando coisas do tipo: escola não é lugar de jogar, mas sim
de aprender! A verdade é que a escola e também alguns outros espaços de convivência
humana, têm muito pouca disponibilidade para com o jogo. Na escola, foco das nossas
reflexões, é muito comum uma certa tolerância com o jogo, desde que não cause tumul-
to, conflitos ou grandes confusões. Como diz Freire (2020),

Em alguns casos, o jogo se manifesta de maneira a servir bem aos propósi-


tos educacionais, visto que pode ser controlado, domesticado, orientado de
acordo com regras que o conduz aos objetivos pretendidos. Noutros casos,
indomável, perigoso, indisciplinado, é afastado dos círculos educacionais;
chega a ser punido. Esse a que me refiro por último não entra no contex-
to educacional. O que não quer dizer que não tenha o que educar, o que
formar em quem o pratica, mas não se presta às regras do ensino formal.

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Na lógica de uma possível melhor compreensão do que é o jogo, necessitaríamos
romper com certas visões que se cristalizam no ambiente escolar. Afirmar a escola como
um lugar de trabalho e não de jogo é coisa do passado. Uma pedagogia pautada pela
totalidade e com um olhar cuidadoso para a educação integral provavelmente assumiria
que jogo e trabalho têm algo em comum.
É o que tentaremos fazer a partir de agora, ou seja, buscar possíveis conexões entre
o jogo e o trabalho.
Jogo e trabalho, ou lúdico e tarefa, são fenômenos complementares. Quando jogamos,
usufruímos das coisas, daquilo que a vida coloca à nossa disposição. Ao usufruir, consumimos,
tiramos, deixamos uma falta. Essa falta precisa ser reposta, caso contrário as ações humanas
não serão sustentáveis. A maneira de repor o que falta é trabalhar. Trabalho é produção, é
compromisso, e que esse trabalho seja voltado para melhorar a qualidade de vida e para repor
aquilo que usufruímos quando jogamos, contemplamos, festejamos (FREIRE, 2020).
Vamos analisar dois cenários que, na nossa opinião, podem nos ajudar ainda mais na re-
flexão sobre a relação entre jogo e trabalho. Daqui da janela da minha casa, um apartamen-
to na zona sul de São Paulo, observo no andar térreo, mais precisamente no playground,
dois meninos, de mais ou menos uns 8 anos, brincando de arremessar uma bola em uma
cesta móvel, daquelas ancoradas em um mastro. As crianças parecem estar em uma disputa
para ver quem consegue acertar a cesta e marcar o ponto na maior distância possível. Eles
repetem os movimentos incessantemente, imitam as atletas do basquete profissional, come-
moram os pontos e provocam um ao outro, tentando desconcentrar o amigo. Ali ao lado, há
uns 10 metros de distância, um senhor de mais ou menos 40 anos está a refazer o piso do
prédio após o conserto de um vazamento de água. O homem, debaixo do sol, tem a missão
de colocar pedras, umas ao lado das outras, preservando o desenho e arquitetura do solo.
Ela não pode colocá-las aleatoriamente, mas sim arranjá-las em três cores; preto, branco
e vermelho. Com muito cuidado e esmero, sem tanta pressa, o senhor vai organizando a
pedras, uma a uma, refazendo o desenho original do piso.
Se eu pedisse a vocês para analisar estes dois cenários, rapidamente teríamos como
resposta: os meninos estão a jogar e o senhor está a trabalhar, concordam? Creio que há
muito para aprendermos nesta brincadeira de analisar estes dois cenários. No jogo dos
meninos parece haver sobra, não há a obrigação de acertar a bola na cesta ou seguir re-
gras muito rígidas. Eles jogam sem compromisso com o futuro, como se estivessem ocu-
pando seu tempo livre. Eles repetem os arremessos pelo prazer de expressar habilidades
já construídas e não têm receio em criar novas formas e jeitos de arremessar. O trabalho
do senhor revela um sentido de obrigatoriedade, de produção e de compromisso com o
tempo. É preciso finalizar o trabalho para receber seu salário. Há a expectativa de que
as pedras sejam colocadas adequadamente, sem muito espaço para a criatividade ou
mudança nos arranjos. Estes são aspectos que nos levam a encontrar os distanciamen-
tos entre o jogo e o trabalho. Haveria alguma complementaridade ou aspectos comuns
entre o “basquete” dos meninos e o “piso” do trabalhador?
A precisão nos gestos, a repetição, o esmero, a dedicação, a concentração, a corre-
ção dos erros, uma certa imprevisibilidade, a boa administração do tempo, entre outros,
são aspectos comuns entre os cenários, correto? Não temos a pretensão de dizer que os
contextos analisados são iguais, mas sim provocar os leitores: Será que o jogo tem um
pouco de trabalho e/ou o trabalho tem um pouco de jogo? Será que o um jogo pode

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virar trabalho e um trabalho pode virar jogo? Diríamos que sim! Como já acenamos em
situações anteriores, não temos a obrigação de ver ou dizer para que lado vai pender a
balança. Podemos, do ponto de vista da integração, dizer que todo o jogo tem um pouco
de trabalho e todo o trabalho tem um pouco de jogo. Senão vejamos: não basta haver
repetição para ser trabalho, e nem basta o imprevisível e as idas e vindas para ser jogo;
não é suficiente haver concentração para dizer que é trabalho, e nem haver precisão de
gestos para dizer que é jogo. A distinção talvez esteja na capacidade daqueles que jogam
ou trabalham em tomar a rédea da sua história. Se eu jogo ou trabalho não só por neces-
sidade, mas também por um desejo, por uma intenção e se eu aproximo subjetividade e
objetividade, provavelmente diminuo a distância entre o jogar e o trabalhar.
Claro está que o mundo subjetivo incita ao jogo e o mundo objetivo incita ao trabalho;
claro está que preferimos jogar a trabalhar, mas vejam que extraordinário seria brincar de
transformar o trabalho em jogo ou o jogo em trabalho. Se pudéssemos trocar a palavra tra-
balho por aprendizagem, o que seria da escola? Qual a relação entre jogo e aprendizagem?
É possível aprender jogando? Nas próximas unidades vamos defender e argumentar a favor
do jogo como o melhor espaço para que as crianças aprendam as boas coisas da vida. Por
enquanto, nos reservamos a compartilhar com vocês o ideal de uma escola onde, quem sabe
um dia, possamos escutar: “nesta escola as crianças trabalham e aprendem jogando”.
No jogo é possível integrar os mundos da regra e do símbolo – Em algumas de
suas definições, encontramos que uma das características principais do jogo é a oposi-
ção à seriedade do mundo real. Por outro lado, em outras conceituações, identificamos
que o jogo é sério e absorve inteiramente o jogador. Vivemos ao longo deste texto o dile-
ma da integração e aprendemos que para delimitar o problema do jogo é preciso pensar
nas diferentes nuances que ele assume, principalmente quando estamos no papel e na
função de quem joga. O desafio de conceituar o que é jogo nos obriga a compreender
que para a sua delimitação não basta recorrer a uma fronteira estática, mas sim assumir
uma caracterização pelas tendências, matizes e possíveis polarizações nos diferentes
contextos, tempos e espaços em que jogamos.
Vocês conhecem um jogo da família do futebol chamado de rebatida? Duas duplas, em
uma das traves, disputam pênaltis para ver quem faz mais pontos/gols. Em caso de rebati-
da do goleiro e/ou bola na trave, o jogo continua. Neste caso, quando há uma rebatida, a
dupla que está na condição de chute deve tentar recuperar a bola e fazer o gol; enquanto
que o parceiro do goleiro deve tentar recuperar a bola com os pés e devolvê-la para que
seu amigo arqueiro possa pegá-la com as mãos. O jogo é recheado de regras do tipo: os
pênaltis são batidos alternadamente, só o goleiro pode ficar dentro da área, cada pênalti
convertido vale um ponto, cada rebatida, quando convertida em gol, tem pontuações que
oscilam de 2 a 6 pontos (2 pontos na rebatida do goleiro; 3 pontos na rebatida da trave
e 6 pontos na rebatida do travessão), não vale fazer falta, quando a dupla está na função
de chute e perde a posse de bola a rodada é finalizada, cada jogador tem direito a bater
três pênaltis etc. As regras são unificadas e valem para todos. Elas podem ser alteradas,
desde que acordadas por todos os jogadores. As regras são claras e compõem aquilo que
chamamos o conteúdo explícito do jogo, tanto os jogadores quanto os observadores têm
condições de identificar o regulamento do jogo, sua estrutura e seu funcionamento.
Além de conhecer, vocês já tiveram a oportunidade de jogar rebatida? São muitas
as habilidades a serem desenvolvidas para que, dentro das regras do jogo, consigamos
vencer. Ter uma boa precisão no chute ajuda na pontuação, controlar bem a bola e dri-

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blar quando acontece a rebatida é super importante, saber passar a bola para tentar se
desvencilhar da marcação pode fazer toda a diferença, enfim, são muitas as possibilida-
des e as oportunidades para tentar fazer os gols, certo? Estamos no polo da objetividade,
daquilo que é concreto, ou seja, as regras nos dizem o que podemos ou não fazer para
vencer o jogo. E o polo da subjetividade? É neste polo que moram os símbolos, uma
verdadeira usina de imaginação, criação e construção da nossa identidade, do nosso jei-
to de jogar. Nas vezes em que joguei o jogo da rebatida, vivi, na minha subjetividade, as
melhores experiências de faz de conta. Algumas vezes me senti no estádio, cobrando o
pênalti da decisão do campeonato na presença de mais de cinquenta mil torcedores. Em
outras, me vi como os jogadores do meu time, cobrando o pênalti ora de três dedos, ora
de chapa e até de peito de pé. Inventei meus dribles, comemorei meus gols como o Pelé,
enfim ouvi e senti o que estava dentro de mim. Por alguns instantes, graças à imagina-
ção, me expressei pela linguagem da bola e me senti o melhor dos jogadores de futebol
deste país. Eu e meus colegas, com imaginação, fomos completando o jogo da rebatida,
dando sentido e significado para ele, de acordo com os nossos interesses e as nossas
necessidades. Este é o polo da subjetividade, aquele que nos dá o poder de simbolizar e
fazer de conta, ir ao mundo da fantasia e sentir que temos o jogo nas nossas mãos. Com
um pé na realidade, mas com a liberdade de fazermos as nossas escolhas e jogarmos do
nosso jeito; isso porque o jogo nos pertence e dele fazemos o que podemos e queremos.
Aí está a maravilha do jogo, este fenômeno que nos permite viver intensamente esta
relação íntima que existe entre a regra e o símbolo, entre o objetivo e o subjetivo. A partir
desta reflexão, o que nos interessa como pedagogos do jogo? Nos interessa a percepção de
que o jogo, recheado de regras e símbolos, pode se constituir em um espaço privilegiado de
aprendizagens que circulam nos campos do saber, fazer, ser e conviver.
Na dimensão simbólica, quando jogamos nos permitimos percorrer o caminho do mun-
do da imaginação para a compreensão da realidade. Jogar simbolicamente é a possibilida-
de de a criança construir uma vasta rede de dispositivos que permitem ao seu eu assimilar
a realidade integral do mundo e assim revivê-la, dominá-la e/ou compensá-la. No jogo sim-
bólico é possível resolver conflitos e realizar desejos que não foram possíveis em situações
não-lúdicas. Jogar simbolicamente é desenvolver habilidades relacionadas com a compre-
ensão e assimilação do mundo real. Simbolizar, fantasiar, imaginar, imitar, representar e
ressignificar para incorporar a realidade e o outro são aprendizagens originárias do jogo.
Do jogo simbólico, a criança pode herdar, numa perspectiva cognitiva, a possibilidade de
experimentar papéis, representar, dramatizar, recriar situações, o que futuramente poderá
ser útil, por exemplo, em seu trabalho (MACEDO; PETTY; PASSOS, 1997; 2000; 2005).
No âmbito das regras, vivemos a experiência e a oportunidade de transitar pelo
caminho da autocentração para a descentração (da heteronomia para a moralidade
autônoma). O jogo regrado é o jogo de “ser” socializado. Estamos falando daquele
jogo que as crianças jogam juntas, de acordo com regras estabelecidas e que gover-
nam a competição. Jogando em grupo as crianças são convidadas a se descentrar
e coordenar pontos de vista diferentes, que exigem saber conversar, se comunicar e
conviver uns com os outros. Enquanto jogo, o jogo de regras representa as coordena-
ções sociais, as normas a que as pessoas se submetem para viver em sociedade. Jogar
jogos de regras é desenvolver habilidades de convivência em grupo pautadas cada vez
mais pela independência e autonomia. Cooperar, respeitar, conviver, tolerar, sentir,
solidarizar-se, sensibilizar-se, organizar-se em grupos, discutir temas e construir regras

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UNIDADE Jogar e Se Movimentar

que sejam comuns e unificadas são aprendizagens provenientes do jogo. No jogo de


regras, a criança é colocada em contato com restrições, limites, possibilidades, enfim,
com uma vida regularizada e harmônica. A regra é necessária para que haja solidarie-
dade e compartilhamento (MACEDO; PETTY; PASSOS, 1997; 2000; 2005).

Quando abrimos o baú do jogo e enxergamos suas entranhas, podemos melhor com-
preender este fenômeno. Compreendendo-o, podemos, em seguida, ensiná-lo e torná-lo
tema gerador de diversas outras aprendizagens. Virtudes como a coragem, a confiança,
a perseverança, comportamentos morais autônomos, articulações sociais cooperativas,
apreciação estética de gestos e objetos, expressões corporais refinadas, pensamento
crítico, são aprendizagens possíveis quando os professores, compreendendo a lógica do
jogo, dispõem-se a ensinar para a vida.

Para saber mais sobre a relação entre o jogo e a educação, assista aos vídeos do Professor
João Batista Freire:
• O lúdico na educação física – Parte 1. Disponível em: https://youtu.be/gjYYB9pkS2k
• O lúdico na educação física – Parte 2. Disponível em: https://youtu.be/WLlsUSCJ5fE

Quais as Inter-relações entre Jogo e as


Práticas da Cultura Corporal que Compõem
o Currículo da Educação Física Escolar?
Uma pedagogia da educação física coerente com o paradigma da totalidade, enfati-
zado nesta unidade, define seus conteúdos a partir de pressupostos como a diversidade,
a experiência e a integração entre os saberes. É na diversidade de experiências vividas
corporalmente na escola que temos a oportunidade de integrar os saberes que circulam
nas diferentes práticas, formas e jeitos de Se Movimentar.

Se Movimentar: O gesto humano é um signo que traz em si um significado, que não é


fixo e imutável, e que representa as intenções e os desejos daquele que “Se Movimenta”.
O “Se”, propositadamente colocado antes do verbo “Movimentar”, enfatiza o fato que o su-
jeito (estudante) é autor dos próprios movimentos, que estão carregados de suas emoções,
desejos e possibilidades, não resultando apenas de referências externas, como, por exemplo
as técnicas das diferentes práticas corporais (SEE; SÃO PAULO, 2008).

Na educação do Se Movimentar, quanto mais diversificadas forem as experiências


vividas, mais sabidos corporalmente serão nossas crianças e nossos jovens. O fato é que,
na perspectiva da complexidade (ver glossário acima), este saber não é só corporal, ele
se expande para os campos intelectual, social, afetivo e moral.

Tudo leva a crer, portanto, que, quanto mais diversificadas forem as situações novas,
maior o leque de possibilidades que se formará, o que equivale a dizer que mais ampla
poderá ser a atuação da inteligência, independentemente de se tratar da motricidade, de

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racionalidade, de afetividade ou de outra dimensão qualquer (FREIRE; SCAGLIA, 2003,
p. 145-146).
Parece ter chegado a hora de a pedagogia da educação física se preocupar mais em
educar e respeitar a complexidade das pessoas e dos fenômenos sociais. Aquela maneira
simplista de pensar e praticar o ensino do Se Movimentar, focado apenas no exercício,
na repetição de movimentos e mecanização dos gestos, desprezando outras dimensões
humanas sensíveis, como, por exemplo, a afetividade, a moralidade, a sociabilidade, o
prazer e as emoções, aparenta não atender mais aos propósitos de uma prática que quer
ser mais inclusiva e participativa dentro das escolas. Não estamos a desprezar o chama-
do exercício corporal, mas a provocar os leitores para uma análise de quais conteúdos
devem fazer parte dos currículos da educação física escolar.
Para Freire e Scaglia (2003), “tradicionalmente os conteúdos básicos da educação física
são as atividades lúdicas e o exercício corporal”. Para os autores, estes são os conteúdos
privilegiados da educação física – de um lado o exercício, de outro o jogo. Claro que sob a
ótica da complexidade, exercício e jogo se encontram e, muitas vezes, se confundem nas
aulas de educação física. Por exemplo, em um treino de voleibol, comumente vemos pro-
fessores sugerirem diversos exercícios, os chamados treinos de fundamentos, que orien-
tados para o aperfeiçoamento das habilidades possuem algumas características do jogo
(Figura 1). As repetições individualizadas e previsíveis que caracterizam o exercício na sua
forma mais pura e, às vezes, desmotivam os praticantes, vão adquirindo um novo formato
e ganham em diversificação, desafios, possibilidades de criação e aumento no nível de
motivação dos alunos. O fato é que quando olhamos para a escola, a educação física e
o seu compromisso com a aprendizagem das crianças e jovens, temos uma tendência de
orientar a nossa pedagogia para o polo das atividades lúdicas, mais precisamente o jogo.

Atividades Lúdicas: manifestações de jogo incorporadas pela educação física nos diferentes
contextos de Se Movimentar.
Exercício Corporal: conjunto de técnicas que objetivam fortalecer, corrigir, prevenir e aper-
feiçoar as capacidades e habilidades corporais.

JOGO EXERCÍCIO
*Modelo aberto/ *Modelo fechado/
diversificação limitação
*Imprevisível *Previsível
*Criar, ousar, *Repetição,
correr riscos mecanizar,
automatizar
*Motivação/ *Desinteresse/
significado indisciplina
*Grupo *Individual

Figura 1 – Representação da polarização e possíveis interações entre jogo e o exercício

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UNIDADE Jogar e Se Movimentar

Por que a predominância do jogo no currículo da educação física? Porque no jogo des-
cobrimos uma possibilidade de encontrar um equilíbrio entre o presente e o futuro. O jogo,
tematizado nas aulas de educação física, dentro da escola, provavelmente terá uma reper-
cussão no futuro das crianças e dos jovens, mas sempre mantendo o compromisso com o
presente, com a lógica de que a aprendizagem só é possível quando encontramos algum
sentido ou significado naquilo que fazemos.

Sonhando com o Se Movimentar como um aspecto cada vez mais presente na vida
das pessoas, o que se pretende daqui para frente é discutir uma pedagogia da educação
física que rejeite o pensamento simplista, que separa a parte do todo, isolando e hierar-
quizando os elementos de um dado sistema, e que considere o paradigma da complexi-
dade, que sabe que o todo é maior que a soma das partes, que reconhece a relevância
de se conhecer as partes, mas apenas na medida em que isso auxilie na compreensão e
no diálogo com o todo.

Que conteúdo pode estar mais conectado com a ideia de complexidade? Que con-
teúdo pode ser mais aberto, desafiador, imprevisível e motivante para os estudantes do
que o jogo?

O jogo é campo e espaço privilegiado para o exercício da experimentação, da repe-


tição, do erro, do acerto, enfim de correr riscos e aprender a fazer algo em um contexto
que tenha sentido e significado para as crianças. E mais, esse fazer pode vir acompa-
nhando de um compreender, ou seja, de novas aprendizagens construídas no processo
de interação dos alunos com o mundo ao seu redor. Jogar com o outro, controlar uma
bola, fazer um gol, construir estratégias, imaginar e levantar hipóteses, representar seus
ídolos, ser quem você quiser, solucionar desafios, todas essas permanentes surpresas são
a base de uma educação física comprometida com a educação integral das crianças e
dos jovens que frequentam as escolas. O jogo se estabelece, portanto, como o conteúdo
privilegiado da educação física quando a base do currículo e projeto pedagógico é a
complexidade e a educação integral.

Devem os leitores estar um pouco incomodados com esta assertiva. Muitos devem
estar se perguntando onde estão o esporte, a dança, a ginástica, a luta etc, outros con-
teúdos tão tradicionais da educação física? Assumimos a proposta sugerida por Freire
(1998a) e Freire e Scaglia (2003), que entende o esporte como uma manifestação do
jogo, assim como também são a brincadeira, a luta, a dança e a ginástica (proposta re-
presentada na Figura 02, abaixo).

Deduzimos que estas categorias de Se Movimentar são manifestações, em diferentes


contextos, do jogo, uma categoria maior. Imaginamos que uma análise das relações exis-
tentes entre esporte, brincadeira e jogo pode ajudar na elucidação e esclarecimentos de
como se dá a conexão entre estes elementos que estão na base do Se Movimentar. Como
se explica a brincadeira e o esporte como manifestações do jogar? Por exemplo, a brin-
cadeira de futebol, conhecida como bobinho tem muito de jogo. As crianças não bobinho
por estarem compromissadas com o futuro ou para preencher uma falta. Na brincadeira
de circular a bola com os pés, sem deixar o colega do centro da roda tocar, há uma apro-
ximação entre sujeito e objeto. Há uma polarização em direção à subjetividade; a imagi-
nação, a emoção e a linguagem corporal, entre outras características, criam um ambiente
favorável para que o jogo se manifeste através da brincadeira. O esporte, por exemplo, é

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o jogo em seu contexto mais social. O futebol profissional, jogado pelo mundo a fora, com
regras comuns e aceitas pelas federações e confederações nacionais e internacionais, é
universal e rigorosamente estruturado para permitir que muitos possam praticá-lo. Trata-
-se de uma manifestação do jogar que permite a integração e convivência de muitos povos.

Ambos, o futebol das crianças, uma brincadeira chamada de bobinho e o futebol dos
adultos, um esporte mundialmente conhecido, são manifestações do jogar. O que os
diferencia é justamente a complexidade de sua estrutura social. Para jogar o bobinho
bastam regras poucas e frágeis, já o futebol mundial tem regras “fortes”, acordos amplos
e, às vezes, universais (FREIRE, 1998b).

Jogo

Esporte
Dança
Luta
Brincadeira Ginástica

Figura 2 – O jogo e as suas diferentes manifestações

Compreender o esporte e a brincadeira através das suas inter-relações com o jogo


nos dá uma grande oportunidade para reconectar aquilo que nunca se expressa de for-
ma isolada e constitui-se como o jeito que encontramos para aproximar, nas escolas, as
crianças das experiências positivas de Se Movimentar. Como diz Freire (1998b, p. 107),
“o esporte é o jogo de gente grande; ao contrário, a brincadeira é o jogo de gente pe-
quena. Os pequenos, as crianças, podem brincar, mas não conseguem fazer esporte; os
maiores, por outro lado, podem fazer esporte conservando as possibilidades do brincar”.

Jogo, brincadeira e esporte, na nossa concepção, fazem uma boa parceria e, se bem
articulados, podem subsidiar uma prática mais coerente com a ideia de educação inte-
gral. Se em algum momento, nas nossas aulas, ficamos na dúvida sobre se as crianças
estão brincando ou praticando esportes, temos uma certeza, elas estão sempre em esta-
do de jogo. Assim também deve ser com a dança, a luta, a ginástica e/ou qualquer outra
forma de Se Movimentar tematizada nas escolas. Tratadas como manifestações do jogar,
não nos importará se as crianças estarão praticando futebol, atletismo, judô ou ginástica
artística, mas sim se estarão jogando, se desenvolvendo e aprendendo.

Em qualquer que seja a prática corporal e a manifestação de jogo, o Se Movimentar


se configura como a oportunidade de fruição e convivência com as coisas do mundo, de
modo a torná-lo mais próximo, mais conhecido e menos amedrontador (FREIRE, 1998b).

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UNIDADE Jogar e Se Movimentar

A brincadeira, o esporte ou qualquer outra prática corporal, vistos como uma ma-
nifestação do jogar, caracterizam-se pela complexidade e pela capacidade de lidarmos
com o imprevisível. Logo, ordem e desordem, certezas e incertezas, confusão e clareza
integram-se em um mesmo espaço, que não prevê soluções, mas desafios e obstáculos
a serem superados, fazendo do jogo um espaço privilegiado para boas e interessantes
aprendizagens. São essas situações, vividas e experimentadas em um contexto essen-
cialmente social, que convidam e solicitam dos jogadores aprendizagens que podem ir
para além da técnica e do rendimento. Assim, o desafio está em pesquisar, fortalecer e
consolidar pedagogias e métodos inovadores que priorizem o jogo como desencadeador
daquilo que Freire (2002) e Freire e Scaglia (2003) nomeiam de inteligência criativa.

Isso quer dizer transformar o pátio, a quadra, o campo, a pista ou a piscina, locais
normalmente utilizados para o ensino do Se Movimentar, em um espaço onde se ensina
mais do que o esporte, a dança, a luta, a ginástica etc. Partindo do princípio de que jo-
gar bem envolve qualidades e habilidades das dimensões cognitiva, social, afetiva, moral
e motora, o jogo contribui para que não esqueçamos o que foi aprendido, na medida
em que ao jogar repetimos habilidades que já foram aprendidas e internalizadas. O jogo
também nos ajuda a aperfeiçoar as nossas aprendizagens, porque se transforma em
um contexto significativo onde repetições lúdicas dos gestos, das técnicas, das regras
e das estratégias são exercitadas exaustivamente e, o mais importante, o jogo pode se
tornar um ambiente para novas descobertas e novas criações, ou seja, um campo fértil
de transgressão, que reivindica liberdade de ação e prepara o “jogador” para os desafios
da vida.

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Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Livros
Oficinas do Jogo
FREIRE, J. B. Oficinas do Jogo. São Paulo: Avercamp, 2013.

Vídeos
Instituto Esporte e Educação
Visite o site do Instituto Esporte e Educação, e a sua galeria de produções sobre a pedagogia
do jogo.
https://bit.ly/35yvYLT
Pedagogia do Jogo na Educação Física | LEPE Sem Fronteiras #10
https://youtu.be/ZEWinTwFVyg
Caramba, Carambola: o Brincar tá na escola!
https://youtu.be/oJSKrU-CKys

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UNIDADE Jogar e Se Movimentar

Referências
BROUGÈRE, G. Jogo e Educação. Trad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1998.

CAILLOIS, R. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Cotovia, 1990.

FREIRE, J. B. Pedagogia do futebol. Londrina: Midiograf, 1998a.

________. Esporte educacional. Anais do I Congresso Latino Americano de Educação


Motora e II Congresso Brasileiro de Educação Motora, p. 106-108. Foz do Iguaçu,1998b.

________. O jogo: entre o riso e o choro. Campinas, SP: Autores Associados, 2002.

________. Os fundamentos do jogo. São Paulo: Grupo de estudos na pedagogia do


jogo, 2020. (Apostila)

________; SCAGLIA, A. J. Educação como prática corporal. São Paulo: Scipione, 2003.

HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 4. ed. São Paulo: Pers-
pectiva, 1996.

MACEDO, L. de; PETTY, A. L. S.; PASSOS, N. C. 1997 4 cores, senha e dominó:


oficinas de jogos em uma perspectiva construtivista e psicopedagógica. São Paulo: Casa
do Psicólogo, 1997.

________; ________. Aprender com jogos e situações-problema. Porto Alegre: Artes


Médicas, 2000.

________; ________. Os jogos e o lúdico na aprendizagem escolar. Porto Alegre:


Artmed, 2005.

MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

MURCIA, J. A. M. (org.). Aprendizagem através do jogo. Porto Alegre: Artmed, 2005.

ORTIZ, J. P. Aproximação teórica à realidade do jogo. In.: MURCIA, J. A. M. (org.).


Aprendizagem através do jogo. Porto Alegre: Artmed, 2005.

SEE. Secretaria Estadual de Educação. Proposta Curricular do Estado de São Paulo.


Educação Física. São Paulo: 2008.

Sites Visitados
PRIBERAN. Jogo. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020.
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JOGO. Wikipedia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Jogo>. Acesso em:


09/01/2021.

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