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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRUSQUE - UNIFEBE

CURSO: JOGOS DIGITAIS


DISCIPLINA: TEORIA DOS JOGOS
DOCENTE: ADONIS MARCOS LISBOA

MATERIAL DIDÁTICO SOBRE O JOGO

LÚDICO: CONCEITOS E CARACTERÍSTICAS

Fala-se muito em lúdico, ludicidade, mas acredito que ainda conhecemos


muito superficialmente este tema. Muitos utilizam freqüentemente esse termo, sem
conseguir conceituá-lo ou apresentar uma descrição satisfatória dele. Não quero
dizer que nesse texto o tema será esgotado, mas a proposta é possibilitar um
conhecimento sobre o assunto e instigar o aprofundamento desse estudo.
O termo lúdico tem uma de suas raízes etimológicas na palavra latina ludus,
que pode significar: jogo, brinquedo, escola. Em suas origens a escola estava ligada
ao lúdico. Assim, podemos dizer que ludicidade é a qualidade daquilo que é lúdico.
Isso é claro, não explica quase nada, apenas serve como ponto de partida para a
explanação do que vem a ser o lúdico.
É inegável, que ao observarmos pessoas se divertindo, estando alegres,
diremos que o que elas estão fazendo é uma atividade lúdica. Podemos entender
nessa perspectiva que a ludicidade seria aquela atmosfera de alegria que se
estabelece entre as pessoas em determinadas situações. Também podemos falar
em ludicidade entre uma pessoa e um animal, uma criança e um brinquedo, enfim, o
lúdico está atrelado às situações agradáveis, que nos proporcionam bem-estar.
Mas afinal, você pode perguntar qual a definição de lúdico? Está aí uma
pergunta difícil de responder!
Entre os animais também encontramos manifestações de ludicidade,
principalmente, entre os filhotes e em especial nos mamíferos. À medida que
crescem, essa ludicidade diminui e, em grande parte dos casos, quase se extingue.
Entre os humanos ela reduz, porém não tanto e vemos situações entre adultos em
que o lúdico retorna com toda força. Muitos psicólogos, filósofos, antropólogos,
pedagogos e outros especialistas já estudaram e estudam a ludicidade. É um campo
vasto e complexo como é tudo que se relaciona ao comportamento humano.
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Apenas a título de sintetizar o que descrevi acima, pode-se dizer que lúdico é
esse espírito de alegria que envolve as pessoas e se manifesta nas situações mais
diversas e poderíamos até dizer, imprevisíveis. Quem já não riu em um velório?
Gosto muito, para explicar isso, da analogia que João Batista Freire apresentou em
um de seus livros sobre o jogo. Esse autor utiliza, como o farei nesse texto, a
palavra jogo como sinônimo de lúdico. Por isso a analogia apresenta esse termo.

Lembro que ao religioso que vê no sorriso de uma criança uma


manifestação de Deus, não lhe passa pela cabeça que Deus deixa de
existir quando a criança pára de sorrir. Da mesma maneira, nunca me
ocorreu que o jogo deixaria de existir porque as crianças que brincavam de
amarelinha tiveram de parar o jogo. Quando isso ocorreu, o jogo não
terminou, foram as crianças que pararam de brincar. A derrota ou a vitória
no futebol não significa o fim do jogo, mas apenas a interrupção de sua
manifestação (FREIRE, 2002, p. 71).

Lúdico – Jogo: esclarecimento dos termos

Nesse trabalho, utilizo indistintamente as palavras lúdico e jogo, ou seja,


considerando-as sinônimos. Dessa forma quero dizer que ao falar de uma situação
lúdica estou falando de uma situação de jogo. Ao falar de jogo, não estou me
restringindo a um jogo de basquetebol, uma partida de xadrez, uma partida de
dominó ou de um jogo digital. Estou tratando das mais diversas situações em que
ele se apresenta, desde uma brincadeira de amarelinha até uma conquista amorosa.
Essa diversidade de manifestações do jogo exposta acima tem como um de
seus principais motivos a polissemia que esse termo apresenta. Refiro-me com essa
expressão a coisas e acontecimentos os mais diversos e diferentes. Diz-se, jogo de
panelas, jogo de cama, jogo de damas, jogo de sedução, jogo de poder, jogo de
futebol, jogo político e assim é possível enumerar muitos outros exemplos.

PARA REFLETIR
Por favor, pense agora sobre isso: qual a similaridade entre um jogo de quarto e
um jogo de polo aquático? Pois, para ambos utilizamos a palavra jogo!
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O Jogo enquanto fenômeno humano

Nossa análise sobre o jogo nesse tópico tem a intenção de olhar para o
mesmo como sendo um grande fenômeno humano. Portanto, tratarei do jogo
partindo de um olhar complexo, pois somente dessa forma podemos entendê-lo. Não
há como verdadeiramente compreender o jogo analisando-o com teorias simplistas,
somente é possível, se nos servirmos de teorias que tratam da complexidade.
O lúdico parece ser inerente à condição humana. Johan Huizinga, após
realizar um exaustivo estudo histórico sobre o jogo, constatou a presença do mesmo
nas diversas culturas que pesquisou, fossem eles povos atuais ou extintos. Diante
desses resultados considerou a ludicidade como uma das principais características
da espécie humana, propondo inclusive que depois de homo sapiens e homo faber,
fôssemos chamados de homo ludens (HUIZINGA, 2005). Abaixo apresento com
mais detalhes a concepção de jogo desse autor, porém, é importante mencioná-lo
nesse tópico por tratar-se de um autor clássico para o estudo da ludicidade
enquanto fenômeno inerente aos seres humanos.
Importante também esclarecer que considero aqui a existência de uma
relação tensional entre jogo e trabalho, significando esse último, aquilo que
desgasta, que rouba energia e jogo, o que acrescenta energia. Portanto, no trabalho
há falta e no jogo há sobra de energia. Partindo desse pressuposto podemos dizer
que aquilo que é jogo não é trabalho e o que é trabalho não é jogo, porém, um pode
transformar-se no outro dependendo das circunstâncias. O exemplo a seguir
pretende deixar isso mais claro.
Imagine uma criança brincando com seus amigos, próximo à sua casa. Ela
está entretida e se divertindo com os companheiros. Num determinado momento,
sua mãe lhe chama e solicita que vá ao mercado comprar algo. Essa criança
provavelmente não gostará da idéia, pois isso significa uma interrupção em seu jogo
e pode-se até dizer, o fim dele. Ela poderá argumentar com sua mãe que está
cansada, o mercado é longe (mesmo que não seja), que agora é que o jogo está
ficando bom e assim por diante. Vários argumentos podem surgir para justificar a
não ida ao mercado e não parar de jogar. Diante da insistência e irredutividade da
mãe, a criança poderá se ver obrigada a atendê-la. Estamos diante de uma situação
que para a criança representa um trabalho, lhe subtrai energia, é desagradável.
Porém, é possível que a situação se inverta. A mãe pode sugerir à criança que
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convide um de seus amigos para ir junto ao mercado. Acatando essa sugestão e


tendo o aceite de um amigo, ela e esse último podem ir ao mercado apostando
corrida, ou seja, brincando. Dessa forma, aquilo que instantes atrás era
desagradável passa a ser divertido e o que seria um trabalho passa novamente a ter
as características de um jogo. Essas características serão apresentadas logo a
seguir quando expor as idéias de alguns autores sobre esse assunto.
É certo que o jogo não existe apenas dentre os humanos, isso é possível
constatar com uma simples observação de nossos animais domésticos. Para
Huizinga (2005 p. 3) “O jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em
suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana; mas os
animais não esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica”. No
entanto, o que parece diferenciar o jogo humano do jogo dos demais animais é a
consciência de que jogamos. Nossa racionalidade possibilita que saibamos estar
entregues a uma atividade lúdica. É claro, fica a ressalva quanto à criança muito
jovem que parece não ter ainda essa percepção e talvez algum outro caso de uma
pessoa com um tipo de distúrbio psicológico. O certo é que na espécie humana, o
jogo tem repercussões importantes e como afirma o autor acima “As grandes
atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde início, inteiramente
marcadas pelo jogo” (HUIZINGA, 2005, p. 7).
Um exemplo da importância do jogo para as criações humanas é a
linguagem. Nas palavras de Huizinga (2005, p. 7):

Na criação da fala e da linguagem, brincando com essa maravilhosa


faculdade de designar, é como se o espírito estivesse constantemente
saltando entre a matéria e as coisas pensadas. Por detrás de toda
expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é um jogo de
palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo,
um mundo poético, ao lado do da natureza.

Para autores como Huizinga, o jogo é algo que transcende a civilização, não
depende dessa para existir. Contudo, o próprio autor deixa claro que investigou o
jogo enquanto elemento da cultura, sujeito às condições humanas existentes nas
sociedades. Aliás, mesmo quando os psicólogos, etólogos, dentre outros
profissionais, estudam o jogo, na maioria das vezes o fazem, para compreenderem
melhor como esse fenômeno se apresenta e se desenvolve em nossa espécie. E
são as contribuições de alguns desses estudiosos do jogo que apresento no tópico
seguinte.
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O Jogo sob o olhar de alguns teóricos

Nessa parte do trabalho apresento a visão de alguns teóricos sobre o tema


em questão. Por ser um tema complexo e extenso, exige daqueles que o estudam
muita dedicação. Antecipo que a extensão do texto referente aos autores
apresentados não será a mesma, pois também em relação aos teóricos temos
nossas preferências e afinidades epistemológicas.

O Jogo na concepção de Jean Piaget

O jogo na concepção de Piaget parece modificar-se de acordo com as


transformações ocorridas na inteligência da criança. Portanto, antes de adentrarmos
no estudo do jogo, apresentamos suscintamente as fases do desenvolvimento da
inteligência, bem como, conceitos piagetianos como assimilação, acomodação,
adaptação e equilíbrio.
Segundo Piaget (1975) para acontecer a construção do conhecimento, a
criança deverá receber vários estímulos, que provoquem desequilíbrios e
reequilíbrios sucessivos, acontecendo assim a descoberta do conhecimento.
A assimilação do objeto pelo sujeito é absorver todo o conhecimento deste,
para incorporá-lo aos seus esquemas já existentes. Caso haja modificações nos
esquemas do sujeito em função das resistências colocadas pelo objeto, o indivíduo
terá que se ajustar a essas mudanças, acontecendo assim, a acomodação deste ao
objeto. É da interação da assimilação e da acomodação que se constrói a adaptação
do sujeito a seu meio. Onde se possibilita a este responder aos desafios do
ambiente físico e social. A assimilação e a acomodação são um jogo constante,
onde as duas se entrelaçam, tendo uma variação muito grande entre elas. Havendo
no jogo uma predominância maior da assimilação.
A inteligência se desenvolve por estádios, apresentando formas específicas.
São quatro os estádios, sucessivos e com complexidades crescentes, vinculados
entre si.
O primeiro estádio é o sensório-motor, que vai do nascimento aos 02 anos
de idade. Este estádio representa o período de descoberta física do indivíduo,
momento da sua vida onde percebe a existência e as funções das partes de seu
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corpo interagindo com o meio, porém, ainda de forma precária. A criança nesta fase
já apresenta os reflexos que são atos mais sistematizados (PIAGET, 1972).
O período sensório-motor é o ponto de partida da evolução mental, onde
inicia a lógica da ação, acompanhada de um começo de construção real. A
inteligência é totalmente baseada na prática, a criança não representa mentalmente
o objeto, sua ação é direta sobre eles, pois ainda não possui um pensamento
definido. O tempo e o espaço começam a se estruturar.
O estádio seguinte é o pré-operatório, que vai dos 02 aos 07 anos. Esta
etapa é marcada, em especial, pelo aparecimento da linguagem. Com isso, a criança
desenvolve a capacidade simbólica; dá início à representação mental do objeto,
pessoa ou situação, marcando sua passagem do sensório-motor ao representativo,
ou seja, não aceita a idéia do acaso e tudo deve ter uma explicação (é a fase dos
“por quês”). A criança capta estados momentâneos, sem juntá-los em um todo. É a
fase caracterizada pelo egocentrismo, ela não reconhece a natureza interiorizando
com o indivíduo (IDEM, IBIDEM).
O terceiro estádio é o operatório concreto e abrange a idade dos 07 aos 11
anos. A criança nesta fase já possui uma organização mental integrada, os sistemas
de ação reúnem-se em todos integrados. Ela é capaz de ver a totalidade de
diferentes ângulos. O pensamento operatório é denominado concreto, porque a
criança só consegue pensar corretamente nesta etapa, se os exemplos ou materiais
que utiliza para apoiar seu pensamento existem mesmo e podem ser observados.
Pode então ordenar, seriar, classificar, ter noções de tempo, espaço, velocidade,
peso e outras (IDEM, IBIDEM). A criança não irá mais tolerar contradições no seu
pensamento ou entre o pensamento e a ação como antes, mas sim, irá sentir
necessidade de explicar logicamente suas idéias e ações.
O último estádio é o operatório formal que vai dos 12 anos em diante. A
partir desta etapa, as estruturas cognitivas na criança alcançam seu nível mais
elevado de desenvolvimento e tornam-se aptas a aplicar um raciocínio lógico a todas
as classes e problemas, buscando soluções a partir de hipóteses e não apenas pela
observação da realidade (IDEM, IBIDEM).

Ao passar de criança a adolescente, o sujeito será então capaz de formar


esquemas conceituais abstratos (termos como amor, justiça, fantasia) e realizar com
eles operações mentais que seguem os princípios da lógica formal, que lhe dará
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sem dúvida, uma riqueza imensa em termos de conteúdo e de flexibilidade de


pensamento. O adolescente adquire a capacidade de criticar e buscar sua
autonomia. É nesta fase que ocorrem as mudanças em todo seu comportamento,
ajudando-o inclusive, no que considera a problemática básica da adolescência, qual
seja, a busca da identidade e da autonomia pessoal.
Após essa breve explanação sobre o desenvolvimento da inteligência explicito
a teoria piagetiana sobre o jogo. Podemos encontrar um indicativo do momento em
que o jogo nasce, nas seguintes palavras de Piaget (1975, p.192) “se a atividade e o
pensamento adaptados constituem um equilíbrio entre a assimilação e a
acomodação, o jogo começa desde que a primeira leva vantagem sobre a segunda”.
Piaget pesquisou e escreveu muito sobre o desenvolvimento da criança, onde
fez referência ao corpo dela e ao brinquedo em termos de evolução intelectual e
social, mostrando como ele se caracteriza em cada período do desenvolvimento. No
período sensório-motor, a interação social da criança é limitada, predomina o
brinquedo isolado, mais de caráter exploratório, onde a criança parece explorar as
potencialidades dos objetos, sem necessidade de se acomodar a eles. Piaget que
durante suas pesquisas usou também seus filhos como fonte inspiradora, analisou
as sucessivas condutas que caracterizam a gênese da imitação e que se escalonam
pelas seis fases do desenvolvimento da inteligência sensório-motora.
O período sensório-motor vai do nascimento ao segundo ano do bebê. Neste
período a criança passa de uma criatura que responde por meio de reflexos para
outra com inteligência mais complexa. Esta etapa do desenvolvimento infantil é
dividida em seis períodos, que descrevo a seguir.
Primeira fase (0 - 01 mês) Piaget diz ser a fase das “adaptações puramente
reflexas”. Como exemplo a sucção, o ato de mamar ou induzir o polegar à boca
(PIAGET, 1975, p. 118).
Na segunda fase (01 - 04 meses) conforme o autor “o jogo parece duplicar
uma parte das condutas adaptativas” (PIAGET, 1975, p. 118). Exemplo: o ato de
levar o dedo ou a mão à boca é repetido inúmeras vezes, a novidade está na
coordenação mão/boca adquirida pela experiência. Outro exemplo são os jogos da
voz, as primeiras lalações, movimentos da cabeça e das mãos acompanhadas de
sorrisos de divertimento, que já pertencem a uma atividade lúdica.
Na terceira fase (04 - 08 meses) ou fase das reações circulares secundárias,
a criança passa a explorar ativamente a realidade exterior e suas possibilidades de
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atuar sobre ela. É uma transição entre os atos pré-inteligentes e inteligentes. O


processo praticamente mantém-se inalterado, mas a diferenciação entre o jogo e a
assimilação intelectual é um pouco mais nítida. Nesta fase não predomina “somente
o corpo do sujeito ou os quadros perceptivos vinculados à atividade sensorial
elementar, mas também os objetos manipulados com uma intencionalidade
crescente” (PIAGET, 1975, p. 121). Como exemplo da reação circular secundária,
podemos citar o bebê que determinado dia puxa acidentalmente uma cordinha à
qual está atada uma série de bichos que se movimentam quando ela é puxada ou
agita brinquedos sonoros.
Durante a quarta fase (08 - 12 meses) a criança é capaz de variar os meios
utilizados para atingir um determinado objetivo. Por exemplo, se quer um brinquedo
que está colocado atrás de um anteparo, poderá empurrá-lo ou puxá-lo, até que
tenha acesso a ele. Há uma coordenação dos esquemas que o bebê possui para
obter um resultado desejado.
Piaget classifica também, como a fase da coordenação dos esquemas
secundários “as condutas mais características deste período, são suscetíveis, como
as precedentes de prolongarem-se em manifestações lúdicas, na medida em que
elas são executadas por pura assimilação, isto é, pelo prazer de agir e sem esforço
de adaptação” (PIAGET, 1975, p. 122).
Há uma seqüência de combinações, que poderíamos chamar uma espécie de
“ritualização” dos esquemas. Entende-se por “ritualização” a formação dos jogos
simbólicos: “[...] bastaria para que o ritual se transformasse em símbolo, que a
criança, em vez de desenrolar simplesmente o ciclo dos seus movimentos habituais,
tivesse consciência da ficção, isto é, „fingisse‟ que dormia” (IDEM, 1975, p. 123).
Na quinta fase (12 - 16 meses) Piaget diz acentuar-se o caráter de
ritualização que acabamos de apontar: “A criança diverte-se ao combinar gestos
sem relações mútuas e sem tentar realmente experimentar, para em seguida repetir
esses gestos ritualmente e com eles fazer um jogo de combinações motoras”
(PIAGET, 1975, p. 123). A atitude de experimentação e a busca da novidade
constituem as características essenciais das chamadas reações circulares terciárias
que aparecem nesta fase. Um exemplo: quando a criança deixa repetidas vezes cair
no chão um carrinho. Cada vez que o faz, experimenta uma nova maneira de jogá-
lo, ora com mais força, ora com menos, de uma altura maior ou menor. Outro
exemplo que Piaget destaca é quando a criança encosta o nariz na face de sua
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mãe, o que a obriga a respirar muito mais vigorosamente. A criança interessa-se


logo por esse fenômeno, mas, em vez de repeti-lo simplesmente ou de fazê-lo variar
para estudar os seus detalhes, complica-o muito depressa por simples prazer: afasta
o rosto alguns centímetros, franze o nariz, funga e sopra alternadamente, com muita
força, olhando para a mãe e rindo às gargalhadas. Os rituais desta fase constituem-
se quase imediatamente em jogos e manifestam uma fertilidade muito maior de
combinações. Esse progresso no sentido da ritualização lúdica dos esquemas
acarreta um desenvolvimento correlativo no sentido do simbolismo (PIAGET, 1975).
Na sexta fase (18 - 24 meses) “[...] finalmente o símbolo lúdico desliga-se do
ritual, sob a forma de esquemas simbólicos, graças a um processo decisivo no
sentido da representação” (PIAGET, 1975, p. 125). Um exemplo clássico citado por
Piaget para caracterizar o jogo simbólico é a criança que vê “uma toalha cujas
bordas franjadas lhe recordam vagamente as de seu travesseiro, apanha-a, retém
uma ponta na sua mão direita, chupa o polegar da mesma mão e deita-se de lado,
rindo muito” (PIAGET, 1975, p. 126). Estes objetos substitutos do travesseiro
tornam-se simbólicos mediante os gestos que simulam o sono. “Em resumo, há
símbolo e não apenas um jogo motor porque há assimilação fictícia de um objeto
qualquer ao esquema, [...] objeto esse que serve, simplesmente, para evocar a coisa
ausente” (PIAGET, 1975, p. 128).
Nos dois primeiros anos de vida da criança, o jogo nasce e se apresenta de
uma forma relativamente mais simples, é predominantemente sensório-motor. Com
o aparecimento da linguagem ele gradativamente se modifica e complexifica. Para
compreender o desenvolvimento do jogo na vida da criança, Piaget buscou
classificá-lo, servindo-se para isso de milhares de observações sobre jogos,
realizadas junto a seus filhos, em escolas e na rua.
Após o estudo de vários autores e através de suas pesquisas Piaget
classificou os jogos infantis da seguinte forma: jogos de exercício que vão do
nascimento até os 02 anos; jogos simbólicos dos 02 aos 07 anos e jogos de regras
que vão dos 7 anos em diante. Cabe ressaltar que as idades apresentadas não são
rígidas, podendo variar de acordo com a maturidade psicológica da criança.
Cada um desses jogos está subdividido em várias fases, que no presente
trabalho não irei pormenorizar. Optei por abordar essa classificação de modo mais
geral, destacando apenas os pontos imprescindíveis para sua compreensão.
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A classe dos jogos de exercício (sensório-motor) compreende as ações que


a criança realiza no início de sua vida. São atividades sensório-motoras que
permitem exercitar novos poderes conquistados. O bebê aprende gestos, que passa
a repetir pelo simples prazer de praticá-los. Como exemplo deste tipo de jogo,
podemos citar a sucção do polegar e o ato de lançar objetos.
O jogo de exercício sensório-motor pode envolver funções superiores. Como
exemplo disto, Piaget cita o ato de fazer perguntas pelo simples prazer de perguntar
(PIAGET, 1975). Uma linha demarcatória que parece existir entre os jogos de
exercício sensório-motores e os jogos simbólicos é a implicação nesses da ficção e
da imaginação, que os primeiros não apresentam (PIAGET, 1975).
Na classe dos jogos simbólicos encontramos o esquema simbólico que é “a
mais primitiva forma de símbolo lúdico” (PIAGET, 1975, p.156), sendo esse
esquema a “[...] reprodução de um esquema sensório-motor fora de seu contexto e
na ausência do seu objetivo habitual” (IDEM, IBIDEM).
Com o advento da linguagem, a criança evolui também na maneira como
joga. A linguagem possibilita o desenvolvimento do símbolo, que é o fator
preponderante nesta fase do jogo infantil. O símbolo permite que a criança assimile
o real aos seus desejos e interesses.
Piaget define o símbolo como a representação de um objeto ausente, por
outro que está à disposição do sujeito. Este objeto (significante/simbolizante) guarda
semelhanças com o objeto ausente (significado/simbolizado). Esta característica da
semelhança entre simbolizante e simbolizado, não necessariamente acontece com o
signo. Além disso, o símbolo é uma criação individual, enquanto o signo é coletivo.
Nesta fase, a criança realiza seus jogos a fim de representar sua vida diária,
conseguindo assim, amenizar alguns medos ou realizar ações proibidas em seu
cotidiano, sem preocupar-se com punições. Contudo, à medida que a criança se
desenvolve, especialmente na faixa etária dos 04 aos 07 anos, esta simbolização vai
se tornando cada vez mais concreta, ou seja, busca imitar os fatos e os objetos com
maior grau de fidelidade.
Dos 07/08 aos 11/12 anos é a fase final do simbolismo lúdico. A criança
abandona o jogo egocêntrico e passa a aplicar efetivamente as regras, bem como,
cooperar mais com seus companheiros de jogo. O símbolo tornou-se imagem e esta
adaptação ao real (PIAGET, 1975). Para exemplificar os jogos simbólicos podemos
citar as brincadeiras de casinha e o jogo de Polícia e ladrão.
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A terceira classe é a dos jogos de regras. Ao chegar à idade de 07/08 anos,


os jogos infantis tendem a ser orientados por regras estabelecidas pelo grupo e “[...]
sua violação representa uma falta” (PIAGET, 1975, p.148). Isto advindo da
capacidade da criança agora, levar em consideração a opinião alheia, ou seja, a
diminuição de sua centralização em si mesma. Segundo Piaget (1975, p.184 e 185)
“os jogos de regras são jogos de combinações sensório-motoras ou intelectuais, com
competição dos indivíduos e regulamentados quer por um código transmitido de
geração em geração, quer por acordos momentâneos”. A regra substitui o símbolo e
se constitui na forma essencial de jogo que perdurará até a fase adulta.
Podemos perceber através deste estudo, que ao evoluir em sua forma de
jogar, a criança tem incorporado na forma seguinte o jogo anterior. A respeito disso,
Piaget (1975) dá exemplos das três classes de jogos em adultos: jogo de exercício
simples (brincar com aparelho novo de rádio), jogo simbólico (contar uma história) e
jogo de regras (xadrez).
O jogo não constitui uma conduta à parte ou um tipo particular de atividade
dentre outras, ele se define somente por uma certa orientação da conduta ou por um
pólo geral de toda atividade, caracterizando-se assim cada ação particular por sua
situação maior ou menor, vizinha desse pólo e pelo modo de equilíbrio entre as
tendências polarizadas. No jogo predomina o pólo da assimilação.
Piaget comenta e critica os critérios mais comumente utilizados para
diferenciar o jogo das atividades não-lúdicas. Os critérios são: o desinteresse, a
espontaneidade, o prazer, a falta de organização, a libertação dos conflitos e a
supramotivação. Este último critério refere-se às atividades que não são jogo,
porém, a modificação da forma de realizá-las pode torna-las lúdicas. Um exemplo
disso apresentado pelo autor é o ato de varrer (não jogo), que ao ser realizado
descrevendo-se figuras, daria um aspecto lúdico a ele (PIAGET, 1975). Encontramos
ainda na obra de Piaget, sua análise sobre as três principais teorias explicativas do
jogo, quais são: Teoria do Pré-exercício de K. Groos; Teoria da Recapitulação de
Stanley Hall. Teoria da “Dinâmica Infantil” de F. J. J. Buytendijk.
Após seus comentários sobre as Teorias acima citadas, Piaget descreve sua
explicação sobre o assunto, no que chamou de Ensaio de interpretação do jogo pela
estrutura do pensamento da criança. Nesta parte de seu livro, o autor reforça mais
uma vez, sua posição de explicar o jogo por sua estrutura e não por seu conteúdo.
Podemos perceber claramente que para Piaget o jogo se transforma na medida em
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que se transforma o pensamento da criança. Há um paralelo entre o


desenvolvimento da inteligência da criança e o desenvolvimento do jogo. Daí
parecem decorrer as classificações que o autor estabeleceu para o jogo infantil, ou
seja, o jogo sensório-motor, o jogo simbólico e o jogo de regras.
Para compreender as explicações de Piaget sobre o jogo, é necessário terem-
se claro os conceitos de assimilação, acomodação, adaptação e equilíbrio. Estes
conceitos estão inter-relacionados e são a base da explicação que o autor apresenta
sobre o jogo. Corroboram com esta afirmação as palavras de Piaget (1975, p. 207)
quando diz, “o jogo infantil é simplesmente a expressão de uma das fases dessa
diferenciação progressiva”, referindo-se aqui à dissociação da assimilação e da
acomodação ocorrida no período sensório-motor. Fato que marca o nascimento do
jogo de exercício, ou seja, a criança repete suas condutas pelo prazer de repetí-las,
sem o esforço exigido pela aprendizagem.
No transcorrer do desenvolvimento do jogo, surge um elemento de dificulta as
interpretações das condutas lúdicas, isto é, o simbolismo (PIAGET, 1975). Com o
símbolo é possível representar uma coisa por meio de outra. É neste período que
ocorre a diferenciação entre “significante” (representa o objeto ausente) e
“significado” (objeto ausente) dando inicio ao pensamento representativo. Para
exemplificar, podemos citar a linguagem, onde o significante é a palavra e o
significado é o conceito, ou seja, a significação das palavras. Outro elemento
importante que surge nesta fase é a imagem, que na concepção de Piaget (1975, p.
209) “[...] é uma imitação interiorizada”. No jogo simbólico há uma livre assimilação
do real ao eu. Outra observação importante a respeito deste tipo de jogo é que o
mesmo “[...] não é mais que o pensamento egocêntrico em estado puro” (PIAGET,
1975, p. 213). Ainda sobre o jogo simbólico Piaget (1975, p. 216) comenta que este
é “[...] sua crença própria, que é uma verdade subjetiva” da criança. Na fase do jogo
simbólico as crianças parecem jogar individualmente, mesmo na companhia de
outros, devido ao seu egocentrismo.
A partir dos 07 anos aproximadamente, a criança adquire a reversibilidade, ou
seja, é capaz de considerar a opinião do outro e isto é um fato importante para a
nova classe de jogo que se instala que é o jogo de regras. Este tipo de jogo é o que
perdurará por toda a vida adulta, bem como representa o ápice do desenvolvimento
dos jogos precedentes, pois não os elimina, incorpora-os. Como diz Piaget (1975, p.
216) “o jogo de regras apresenta precisamente um equilíbrio sutil entre a assimilação
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ao eu – princípio de todo jogo – e a vida social”. Podemos perceber mais uma vez
com estas explicações de Piaget que, para este autor, o jogo segue paralelamente o
desenvolvimento da inteligência na criança.
Ao resumir a obra de um autor renomado como Jean Piaget, em trabalho tão
breve, corremos o risco de omitir aspectos relevantes da mesma. Entretanto, ao
falarmos de jogo, o risco apresenta-se intrínseco e, para compreender melhor o jogo
é necessário jogar, mesmo que seja com palavras e ideias.

O Jogo na concepção de Gilles Brougère

Esse autor, também estudioso do fenômeno jogo, apresenta importantes


elucidações a respeito desse tema que colaboram para uma melhor compreensão
do mesmo, principalmente para a inclusão e oportunização do jogo no contexto
escolar.
Brougère (2003) dedica um livro a discussão do Jogo e a Educação e como
referência, dentre outras possíveis, escolhe a pré-escola francesa, foco de suas
principais pesquisas nesse texto. Inicialmente o autor nos alerta sobre sua visão a
respeito do tema, “Para nós, não se trata de dizer o que é, o que deve ser o jogo,
mas de compreender em que estratégias este vocábulo é utilizado, por que uma
reflexão sobre a educação pode apropriar-se, ou não, desse termo para expressar
suas escolhas” (BROUGÈRE, 2003, p. 9). O autor também chama a atenção para a
polissemia do termo jogo e que a visão que se tem do mesmo varia de acordo com a
época e os autores que o discutem.
Brougère busca recursos na filosofia para o estudo desse assunto. Comenta
que “Se a filosofia não é para nós um espaço de elaboração de uma teoria do jogo,
aparece como o indispensável ponto de partida que evitará que se parta da ilusão de
que existe uma essência do jogo que antecede o emprego do termo” (BROUGÈRE,
2003, p. 10).
Explorando um pouco mais a polissemia do termo, esse autor nos questiona
sobre as diversas aplicações da palavra jogo para denominar coisas tão diferentes.
Como chamar igualmente de jogo uma partida de xadrez e um gato entretendo-se
com uma bola? Nesse ponto, Brougère busca subsídios em um grande filósofo
chamado Wittgenstein. Esse último estudou a linguagem e por meio dessa aponta
14

um caminho para compreendermos melhor o jogo. Esse autor utiliza o termo “jogo
de linguagem” e referindo-se sobre os processos que chamamos jogos comenta,
“Falo dos jogos de damas e de xadrez, de cartas, de bola, das competições
esportivas. O que há de comum em todos? – Não diga: é necessário que tenham
algo em comum, senão não seriam chamados de „jogos‟ – mas veja primeiramente
se têm algo em comum” (WITTGENSTEIN apud BROUGÈRE, 2003, p. 21). E
seguindo na orientação dessa investigação que nos instiga o filósofo Wittgenstein
prossegue afirmando:

Pois, se você considerar, sem dúvida não descobrirá o que é comum a


todos, mas verá analogias, afinidades, e verá toda uma série delas. Como
já disse, não pense, veja! Veja, por exemplo, os jogos de tabuleiros com
suas múltiplas afinidades. Depois passe aos jogos de cartas: neles você
encontrará muitas correspondências com a classe anterior, vários traços
comuns desaparecem, outros aparecem. Se agora passarmos aos jogos de
bola, ainda restará alguma coisa, mas muito se perderá (apud
BROUGÈRE, 2003, p. 21).

E finalizando sua orientação para a compreensão do porque atividades tão


diversas são denominadas sob o mesmo termo, Wittgenstein (apud BROUGÈRE,
2003, p. 22) sugere: “Não há melhor maneira de caracterizar essas analogias do que
pela expressão „semelhanças de família‟; pois é desse modo que as diferentes
semelhanças que existem entre os membros de uma família se entrecruzam e se
mesclam umas às outras [...]”. Quanto às semelhanças de família, o autor antes
citado refere-se a características como a altura, traços faciais, cor dos olhos, o
temperamento etc. Para ele os “jogos” constituem uma família (WITTGENSTEIN
apud BROUGÈRE, 2003).
Gilles Brougère identifica três tipos (níveis) de jogo, os quais apresenta da
seguinte forma:

[...] um jogo é uma certa situação caracterizada pelo fato de que seres
jogam, têm uma atividade que diz respeito ao jogo, qualquer que seja sua
definição. [...] Jogo é o que o vocabulário científico denomina “atividade
lúdica”, quer essa denominação diga respeito a um reconhecimento
objetivo por observação externa ou ao sentimento pessoal que cada um
pode ter, em certas circunstâncias, de participar de um jogo. Situações
bastante diversas são reconhecidas como jogo, de uma maneira direta ou
mais ou menos metafórica (tais como jogos políticos).
O jogo é também uma estrutura, um sistema de regras (game, em inglês)
que existe e subsiste de modo abstrato independentemente dos jogadores,
fora de sua realização concreta em um jogo entendido no primeiro sentido.
Trata-se, por exemplo, de um jogo de damas, de futebol ou “jogo da velha”.
Assim, joga-se um jogo determinado. [...]
[...] Jogo, enfim, é entendido como material de jogo, tal como jogo de
xadrez enquanto constituído do tabuleiro e do conjunto de peças que
15

permitem jogar no sistema de regras também chamado de jogo de xadrez.


Mas nem por isso esses dois níveis se confundem. É possível jogar xadrez
sem material, como quando os jogadores, para quem basta uma
representação interna, abstrata do jogo, jogam às cegas ou se contentam
com um material substituto, mas pode-se igualmente utilizar o material do
jogo para outras coisas: um jogo de xadrez é freqüentemente objeto de
decoração, uma peça pode ter vários outros usos (peso de papel, por
exemplo) (BROUGÈRE, 2003, p. 14 e 15).

O autor acima salienta a importância da linguagem, da língua, para a


construção do entendimento e denominação do que é jogo. Para ele o jogo é uma
construção social. A criança aprende a reconhecer como jogo aquilo que sua
sociedade assim o reconhece. Segundo Brougère (2003) é o adulto que denomina
os comportamentos da criança considerados jogo, e essa no contato com sua
cultura, com seus pares vai aprendendo sobre a ludicidade. Essa aprendizagem é
muito importante para o seu convívio em sociedade. Sobre a denominação do que é
jogo pela sociedade Brougère comenta: “Entretanto, essa denominação, se
relativamente arbitrária, nem por isso é insensata; diz respeito a uma lógica de
denominação e produz efeitos a posteriori: chamar de jogo um comportamento leva
a considerá-lo de outro modo” (BROUGÈRE, 2003, p. 17). O autor reforça a idéia de
que o jogo é cultural, visto que a criança aprende a reconhecer o que é jogo em seu
meio social, portanto, ele considera que o jogo só pode ser produto da cultura onde
vive essa criança. Para Brougère (2003, p. 191) “O jogo não é um comportamento
específico, mas uma situação na qual esse comportamento adquire uma significação
específica. Vê-se em quê o jogo supõe comunicação e interpretação”.
Por isso é que uma luta no contexto do jogo é permitida e não causará
ressentimentos aos jogadores, pois sabem que ela se inscreve no campo do faz-de-
conta. Já os mesmos gestos aplicados no campo da realidade podem causar sérios
problemas. No jogo a “agressão” é permitida. Aliás, importante ressaltar que o uso
moderno do termo jogo, ou seja, daquilo que é contemplado por esse termo, não
está apenas em situações de diversão ou prazer. Sob o vocábulo jogo, anunciam-se
em telejornais, por exemplo, situações de tensão política, negociações de reféns
(BROUGÈRE, 2003). Indicando a subjetividade necessária para compreender o
jogo, o autor sugere que “A idéia de jogo é, antes de mais nada, uma questão de
ponto de vista. Ela supõe uma visão distanciada, um afastamento relativo, uma
espécie de leveza mental, pelo menos provisória” (BROUGÈRE, 2003, p. 18).
16

Brougère muitas vezes usa indistintamente os termos jogo e brincadeira,


parecendo considerá-los em alguns momentos como sinônimos. Nesse ínterim
também surge o termo brinquedo. Sobre esses termos o autor comenta:

O brinquedo, em contrapartida, não parece definido por uma função


precisa: trata-se, antes de tudo, de um objeto que a criança manipula
livremente, sem estar condicionado às regras ou a princípios de utilização
de outra natureza. Podemos, igualmente, destacar uma outra diferença
entre o jogo e o brinquedo. O brinquedo é um objeto infantil e falar de
brinquedo para um adulto torna-se, sempre, um motivo de zombaria, de
ligação com a infância. O jogo, ao contrário, pode ser destinado tanto à
criança quanto ao adulto: ele não é restrito a uma faixa etária. Os objetos
lúdicos dos adultos são chamados exclusivamente de jogos, definindo-se,
assim, pela sua função lúdica. [...] Com certeza podemos dizer que a
função do brinquedo é a brincadeira. [...] a brincadeira escapa a qualquer
função precisa e é, sem dúvida, esse fato que a definiu, tradicionalmente,
em torno das idéias de gratuidade e até de futilidade. E, na verdade, o que
caracteriza a brincadeira é que ela pode fabricar seus objetos, em especial,
desviando de seu uso habitual os objetos que cercam a criança; além do
mais, é uma atividade livre, que não pode ser delimitada (BROUGÈRE,
2004, p. 13 e 14).

Nessa busca de compreensão do jogo, Brougère faz um levantamento do que


foi discutido sobre o tema na filosofia e na psicologia. Apresenta em seu trabalho as
várias visões sobre o jogo durante diversas épocas, destacando desde filósofos
como Aristóteles e Erasmo até psicólogos e psicanalistas como Piaget e Freud.
Como mencionei no início desse capítulo, não pretendo esgotar a explanação
das ideias de autores tão consagrados, o que seria no mínimo ingenuidade acreditar
poder fazer em tão pouco espaço, mas sim, dar a conhecer alguns estudiosos desse
assunto tão importante para a Educação, especialmente, Educação Infantil e Ensino
Fundamental. Ratificada minha intenção, passo a abordar, ainda de forma resumida,
uma parte do trabalho de Brougère que trata do jogo no contexto educacional.
Segundo o autor em destaque, é a partir Fröbel que o jogo passa a ser visto
como uma atividade educativa, ou seja, as crianças podem aprender por meio do
jogo. “Os jogos e os brinquedos são meios que ajudam a criança a penetrar em sua
própria vida tanto como na da natureza e do universo” (FRÖBEL apud BROUGÈRE,
2003, p. 70). Sobre esse tipo de aprendizagem e educação pelo jogo, Brougère
(2003, p. 70) comenta: “Uma educação baseada no jogo espontâneo torna-se não
somente pensável, mas materializada, ao menos no equivalente da escola maternal,
o que corresponde em Fröbel à idade do jogo”. Ainda segundo esse autor “O
interesse dos textos de Fröbel é o de fazer a ligação entre a filosofia romântica e
uma pedagogia que põe o jogo no centro da atividade infantil” (BROUGÈRE, 2003,
17

p. 71). Dessa maneira “O jogo abandona sua relação multissecular com a frivolidade
para se tornar uma educação natural, em um quadro finalista em que a natureza não
pode enganar-se” (IDEM, IBIDEM).
Essa proposta de tornar o jogo o centro da pedagogia, em especial na
Educação pré-escolar, não foi e ainda não é dominante, conforme relata o autor aqui
estudado. O jogo espontâneo sofreu sempre resistências no meio pré-escolar e
certamente, no contexto escolar ainda mais.
Para amenizar a entrada do jogo na escola surgiu então a modalidade de jogo
educativo. Esse não é o jogo no sentido em que o autor vem discutindo até aqui, o
jogo na acepção mais pura da palavra. Na menção do autor “O jogo educativo foi
uma atividade bastarda, dando ares de jogo a uma atividade escolar, a um exercício,
em uma estratégia próxima do estratagema caro a Erasmo, com a diferença de que
se desenvolve em um contexto teórico que reconhece um valor educativo ao jogo
enquanto tal” (BROUGÈRE, 2003, p. 127). Portanto, o jogo educativo foi uma forma
de camuflar o trabalho que a criança deveria realizar na escola. Podemos nos
perguntar se isso não ocorre hoje ainda em nossas escolas. Talvez, ou melhor,
provavelmente sim. A referência de nosso autor é a pré-escola francesa, porém
podemos perceber grande similaridade com o que ocorre em nossas pré-escolas
brasileiras. Mas essa resistência em aceitar o jogo espontâneo na escola parece ser
compreensível. Primeiro porque o estudamos pouco, logo, temos dificuldade em
compreendê-lo e lidar com ele. Segundo, porque a educação formal fundamenta-se
em objetivos, em metodologias; tem a necessidade de apresentar ao final de um
determinado tempo um resultado específico. Diante disso, como fazer para atingir os
objetivos almejados com algo que não pode apresentar de antemão o resultado?
Falo aqui de uma das características do jogo que é a imprevisibilidade, mas sobre
essa comentarei no próximo tópico quando tratar de outro autor. Em suas pesquisas
na escola maternal Brougère pode encontrar uma das maneiras que as pedagogas
encontraram para dar uma solução ao questionamento que apresentei acima.
Conforme o autor “Parece assim que a escola maternal francesa constitui um espaço
que tende a produzir formas específicas de jogo, através de um controle exercido
pelo material, tempo e objetivos de diferentes atividades” (BROUGÈRE, 2003, p.
187). Essa constatação refere-se ao jogo educativo. Referindo-se então a esse
último e ao jogo livre (espontâneo) o autor comenta “Assim, encontramos, de um
lado, um jogo que respeita as restrições de uma aprendizagem definida socialmente,
18

mas que não é mais jogo e, de outro, um jogo enquanto tal, mas cujo valor educativo
repousa sobre o mito de uma boa natureza” (IDEM, 2003, p. 189).
Seguindo no sentido de apresentar o pensamento desse autor sobre o jogo,
exponho alguns critérios que o mesmo indica para identificação do jogo humano;
são eles: “a presença de um grau secundário de linguagem, a decisão (de jogar e no
jogo), a regra (sob suas diferentes formas), a incerteza e a frivolidade” (BROUGÈRE,
2003, p. 194). O mesmo autor chama a atenção para a distinção que existe entre
atitude lúdica e situação lúdica. “Podemos determinar uma situação que compreende
todos os critérios do jogo, mas sem jogadores, sem dúvida, este é o esporte
profissional. Ao contrário, uma pessoa pode dar mostras, em seu trabalho, por
exemplo, de uma atitude lúdica, sem que por isso haja jogo” (IDEM, IBIDEM). Para
ser jogo, segundo Brougère (2003) há necessidade do encontro de uma situação
lúdica e uma atitude lúdica, de um jogo e um jogador.
É diante desses critérios que surge um interesse educativo, pois o jogo pode
oferecer possibilidades de aprendizagem cultural, desde que suas características
sejam mantidas e respeitadas. “Este é o paradoxo do jogo, espaço de aprendizagem
cultural fabuloso e incerto, às vezes aberto, mas também fechado em outras
situações: sua indeterminação é seu interesse e, ao mesmo tempo, seu limite”
(BROUGÈRE, 2003, p. 194).
Apesar do paradoxo que se instala entre o jogo e a educação, Brougère
(2003, p. 208) indica caminhos para que essa aproximação seja possível.

Não se pode fundar sobre o jogo um programa pedagógico preciso. Isto


equivaleria a desapropriar a criança de sua iniciativa, do domínio da
situação que parece um critério essencial. O jogador sempre pode evitar o
que lhe desagrada. Nisso, as relações entre jogo e educação parecem
paradoxais. É suspendendo todo investimento educativo direto que o
professor pode construir um espaço e um tempo lúdicos portadores de
experiências originais diferentes de outras situações, e talvez um lugar de
aprendizagem diferente.

A respeito da frivolidade existente no jogo e da relação dessa com o contexto


educativo o autor acima menciona, “A seriedade mata o jogo, mas a frivolidade é o
que permite ao jogo aproximar-se, em seus efeitos, de uma ação educativa séria,
porque a ausência de conseqüência oferece à criança um espaço específico de
experiência (BROUGÈRE, 2003, p. 209).
Enfim, a proposta do autor acima para a inclusão do jogo na educação é
respeitar as características do mesmo no meio escolar para não deturpá-lo e
19

aproveitar seu potencial de aprendizagem para a criança. Ao professor, o autor


recomenda a construção de um ambiente que propicie o jogo à criança. A partir de
seus objetivos de aprendizagem o professor escolhe e oferece materiais ao jogo da
criança, delimitando assim de certa forma o espaço imaginário do jogo. Dando assim
um encaminhamento para o jogo dos alunos e instigando-lhes dessa maneira às
aprendizagens que ele deseja que os mesmos conquistem. É certo que o professor
não terá com isso a certeza dos resultados a priori esperados, nem também a
indubitável certeza de que os alunos aprenderão o que se propôs ensinar-lhes, mas
em nosso cotidiano escolar, realmente podemos dizer que temos essas certezas?
Algo nessa ação é certo, nossa aula ao menos será mais lúdica e isso já pode ser
considerado bastante.

O Jogo na concepção de Johan Huizinga

Para expor as idéias desse filósofo holandês sobre o tema jogo é necessário
esclarecer de que ponto de vista ele partiu para estudá-lo. No prefácio de seu livro
Homo Ludens, Huizinga deixa isso claro:

O objetivo desse estudo mais desenvolvido é procurar integrar o conceito


de jogo no de cultura.
Assim, jogo é aqui tomado como fenômeno cultural e não biológico, e é
estudado em uma perspectiva histórica, não propriamente científica em
sentido restrito. O leitor notará que pouca ou nenhuma interpretação
psicológica utilizei, por mais importante que fosse, e que só raras vezes
recorri a conceitos e explicações antropológicos, mesmo nos casos em que
me refiro a fatos etnológicos (HUIZINGA, 2005).

Partindo desses pressupostos é que o autor desenvolve toda sua explanação


sobre esse tema e questiona várias teorias da psicologia e da fisiologia que
investigaram o jogo buscando compreendê-lo a partir de um viés biológico. O autor
aponta isso como um equívoco, pois segundo ele, dessa forma não se pode
realmente chegar a uma explicação significativa do jogo. Huizinga objeta essas
explicações questionando-as sobre o que realmente há de divertido no jogo. Para
ele a intensidade do jogo e seu poder de fascínio não podem ser explicados pelas
análises biológicas. Conforme menciona “E, contudo, é nessa intensidade, nessa
fascinação, nessa capacidade de excitar que reside a própria essência e a
característica primordial do jogo” (HUIZINGA, 2005, p. 5). Ou seja, o divertimento é
apontado como definidor da essência do jogo.
20

Seguindo em sua busca de compreender o jogo e encontrar as características


principais desse, a partir de sua função na cultura, o autor aponta que o jogo é
encontrado em toda parte e que o mesmo apresenta-se como uma ação bem distinta
da vida “comum”. Nesta perspectiva é que o autor vai analisar fenômenos como o
mito, o culto, pois há nesses também a presença do jogo. Conforme Huizinga (2005,
p. 7) “Se, finalmente, observarmos o fenômeno do culto, verificaremos que as
sociedades primitivas celebram seus ritos sagrados, seus sacrifícios, consagrações
e mistérios, destinados a assegurarem a tranqüilidade do mundo, dentro de um
espírito de puro jogo [...]”.
Considerando os aspectos até aqui apresentados por esse autor, podemos
perceber quão complexo é esse tema e quanto esforço intelectual exige-nos sua
compreensão. Assim, não se pode aceitar que ele, tão importante para o ensino em
segmentos como a Educação Infantil e o Ensino Fundamental, seja tantas vezes
negligenciado no contexto escolar. Talvez a dificuldade para compreendê-lo seja um
dos motivos para isso acontecer, porém não pode justificar não estuda-lo.
Retomando as ideias de Huizinga, verificamos ele apontar que é no mito e no
culto que se originam aspectos da vida civilizada como: “[...] o direito e a ordem, o
comércio e o lucro, a indústria e a arte, a poesia, a sabedoria e a ciência. Todas elas
têm suas raízes no solo primevo do jogo” (HUIZINGA, 2005, p. 7). Para quase todos
esses temas Huizinga vai destacar um capítulo no qual os discute relacionando-os
com o jogo. No presente texto, me limitarei a apresentar as idéias mais gerais do
autor, não aprofundando esses aspectos.
O jogo é apresentado como sendo oposto à seriedade. No entanto, o autor
apresenta contra-argumentos a fim de explicar que se deve ter cuidado ao fazer
esse e outros tipos de oposição para explicar ou identificar esse fenômeno. “O jogo
não é compreendido pela antítese entre sabedoria e loucura, ou pelas que opõem a
verdade e a falsidade, ou o bem e o mal. Embora seja uma atividade não material,
não desempenha uma função moral, sendo impossível aplicar-lhe as noções de vício
ou virtude” (HUIZINGA, 2005, p. 9). Ao se questionar se o jogo não poderia então
ser incluído no domínio da estética, o autor indica que há muito em comum entre a
beleza e o jogo, porém, essa não pode ser vista como inerente ao jogo enquanto tal.
Ratificando que seu estudo trata da relação do jogo com a cultura, o autor
indica que seu estudo se limita às manifestações sociais desse. Para ele são as
formas mais elevadas de jogo. Seguindo nessa linha, Huizinga passa a elencar o
21

que considera as principais características apresentadas pelo jogo. Para ele o jogo é
uma atividade voluntária. A partir disso indica-nos duas características:

Chegamos, assim, à primeira das características fundamentais do jogo: o


fato de ser livre, de ser ele próprio liberdade. Uma segunda característica,
intimamente ligada à primeira, é que o jogo não é vida “corrente” nem vida
“real”. Pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida “real” para uma
esfera temporária de atividade com orientação própria. Toda criança sabe
perfeitamente quando está “só fazendo de conta” ou quando está “só
brincando” (HUIZINGA, 2005, p. 11).

As características acima apresentadas são denominadas pelo autor de


características formais do jogo. Comentando sobre outros observadores desse
fenômeno, Huizinga salienta que eles indicam como uma dessas características
formais do jogo ser ele desinteressado, visto não ser um mecanismo de satisfação
imediata das necessidades nem dos desejos cotidianos (HUIZINGA, 2005).
Seguindo na apresentação das características formais do jogo, Huizinga
(2005, p. 12) indica que “O jogo distingue-se da vida „comum‟ tanto pelo lugar quanto
pela duração que ocupa. É esta a terceira de suas características principais: o
isolamento, a limitação. É „jogado até o fim‟ dentro de certos limites de tempo e de
espaço. Possui um caminho e um sentido próprios”.
Ao criar esse hiato no cotidiano, o jogo vai apresentar nesse domínio uma
determinada organização que Huizinga vai apontar como outra de suas
características. Para o autor: “[...] ele cria ordem e é ordem. Introduz na confusão da
vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada, exige uma
ordem suprema e absoluta: a menor desobediência a esta „estraga o jogo‟, privando-
o de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor” (HUIZINGA, 2005, p. 13).
A respeito da tensão existente no jogo, o autor acima menciona que essa
desempenha um papel importante nele, pois a tensão refere-se no jogo à incerteza,
ao acaso. Sobre essa qualidade do jogo são citados vários tipos de jogos e
destacada essa tensão é levada ao máximo nos jogos de azar e nas competições
esportivas (HUIZINGA, 2005).
Outro fator muito importante para o jogo são as regras: “As regras de todos os
jogos são absolutas e não permitem discussão” (HUIZINGA, 2005, p. 14). Pode
parecer equivocada a afirmação do autor, no entanto, ele não quer dizer que as
regras não podem ser alteradas. Mais adiante ele explica que no momento em que
são estabelecidas, elas devem ser cumpridas. Aliás, quando algum jogador não
respeita a regra, ele acaba com o jogo. Segundo o autor ele é considerado “estraga-
22

prazer”. Tolera-se mais aquele que burla a regra do que aquele que
deliberadamente não a respeita. Ratifico, o autor não se refere a impossibilidade de
modificação das regras, evidente que isso é possível. No entanto, acordado pelos
jogadores que a regra a partir daquele momento é outra, essa última passa a ser
novamente absoluta, ou seja, deve ser respeitada por todos. Quanto a isso,
podemos facilmente observar que as crianças respeitam muito bem as regras dos
jogos que praticam, salvo quando são imaturas para compreendê-las.
Além das regras o jogo também apresenta um caráter de união entre os
jogadores. Esses podem prolongar seu contanto mesmo quando finalizado o jogo.
Esse espírito é que deu origem aos clubes, às associações; desejo de pertencer ao
grupo. Disso também resulta a possibilidade de nessas comunidades guardarem-se
segredos; saberem de coisas que outros não sabem (HUIZINGA, 2005). Enfim,
procurei apresentar sucintamente as características formais do jogo para podermos
compreender o conceito de jogo que o autor formulou:

Numa tentativa de resumir as características formais do jogo, poderíamos


considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como “não-séria”
e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o
jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e
qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro,
praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma
certa ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com
tendência a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em
relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios
semelhantes (HUIZINGA, 2005, p. 16).

Para esse autor dois aspectos fundamentais encontrados no jogo são: “[...] a
luta por alguma coisa ou a representação de alguma coisa. Estas duas funções
podem também por vezes confundir-se, de tal modo que o jogo passe a „representar‟
uma luta, ou, então, se torne uma luta para melhor representação de alguma coisa”
(IDEM, IBIDEM). O autor faz alusão à representação nos animais, por exemplo, no
pavão, no entanto, é na representação da criança que fixa sua maior atenção, pois
do animal nada podemos conceber sobre o que sente durante a representação.
Quanto à criança, segundo o autor, enche-se de prazer e entrega-se inteiramente a
essa representação, se superando, sem apesar disso perder o sentido de sua
realidade habitual. Essa representação é mais do que uma realidade falsa “[...] é a
realização de uma aparência: é „imaginação‟, no sentido original do termo”
(HUIZINGA, 2005, p. 17).
23

Passando das brincadeiras da infância às representações sagradas das


civilizações primitivas, o autor comenta que: “A representação sagrada é mais do
que a simples realização de uma aparência, é até mais do que uma realização
simbólica: é uma realização mística. [...] Mas tudo isto não impede que essa
„realização pela representação‟ conserve, sob todos os aspectos, as características
formais do jogo” (IDEM, IBIDEM). Ainda sobre essas sociedades comenta:
“Diríamos, então, que, na sociedade primitiva, verifica-se a presença do jogo, tal
como nas crianças e nos animais, e que, desde a origem, nele se verificam todas as
características lúdicas: ordem, tensão, movimento, mudança, solenidade, ritmo,
entusiasmo” (HUIZINGA, 2005, p. 21).
Em sua investigação sobre o jogo Huizinga buscou em diversos idiomas a
palavra que o representa e percebeu que o sentido que esse tem de uma língua
para outra, muitas vezes varia bastante. Por exemplo, o verbo to play em inglês
representa muitas ações que podem ser lúdicas (tocar, jogar, representar) sendo
que se o compararmos a língua portuguesa, temos uma expressão específica para
cada uma dessas ações. Da mesma forma acontece no idioma francês e alemão. A
essa relação entre o jogo e a linguagem o autor dedica um capítulo de sua obra,
aqui faço apenas essa breve alusão que serve de convite à leitura da obra original
indicada. Servindo-se desse conhecimento sobre a linguagem dos povos o autor vai
se aprofundando em seu estudo sobre o jogo e encontrando maneiras de esclarecê-
lo. Ele resume a noção mais familiar de jogo expressada nos diversos idiomas,
principalmente das línguas européias modernas, da seguinte forma:

[...] o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de


certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras
livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim
em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de
uma consciência de ser diferente da “vida quotidiana”. Assim definida, a
noção parece capaz de abranger tudo aquilo a que chamamos “jogo” entre
os animais, as crianças e os adultos: jogos de força e de destreza, jogos de
sorte, de adivinhação, exibições de todo o gênero (HUIZINGA, 2005, p. 33
e 34).

Encontra-se nesse capítulo sobre a linguagem, um detalhado estudo sobre o


termo jogo desde as antigas sociedades gregas, passando pelo sânscrito, o alemão,
francês, inglês, japonês, latim dentre outros. Em cada língua o autor buscou o
significado que os povos dão ao jogo. Para ele, a busca de uma noção homogênea
sobre o conceito de jogo é uma invenção tardia em nossas sociedades.
24

Conforme o autor, o valor conceitual de uma palavra é condicionado pelo


termo utilizado para definir seu oposto, e para ele “[...] a antítese do jogo é a
seriedade, e também num sentido muito especial, o de trabalho, ao passo que à
seriedade podem também opor-se a piada e a brincadeira. Todavia, a mais
importante é a parelha complementar de opostos jogo-seriedade” (HUIZINGA, 2005,
p. 50). Vemos por esta afirmação que o autor nesse momento diferencia jogo de
brincadeira, diferentemente de outros autores. Sobre essa oposição entre jogo e
seriedade o autor alerta que de modo nenhum o jogo se restringe a essa
contrariedade. Para ele “[...] o conceito de jogo enquanto tal é de ordem mais
elevada do que o de seriedade. Porque a seriedade procura excluir o jogo, ao passo
que o jogo pode muito bem incluir a seriedade” (IDEM, 2005, p. 51). Podemos
perceber isso ao observarmos crianças jogando; quanta concentração e seriedade
há na realização da atividade, mas nenhum de nós pode dizer que ela não seja jogo.
Tratando do aspecto de ganhar e perder no jogo, o autor identifica mais uma
característica da atividade lúdica. De acordo com Huizinga (2005, p. 58):

Chegamos aqui à outra característica muito importante do jogo: o êxito


obtido passa prontamente do indivíduo para o grupo. Mas há outro aspecto
ainda mais importante: o „instinto‟ de competição não é fundamentalmente
um desejo de poder ou dominação. O que é primordial é o desejo de ser
melhor que os outros, de ser o primeiro e ser festejado por esse fato.

Discorrendo sobre a competição, esse autor demonstra em seus estudos que


essa tinha uma conotação na antigüidade e entre povos primitivos bastante diferente
da que lhe atribuímos hoje. Reforça a ideia de que vê no jogo os fundamentos da
civilização, pois para ele esse é mais antigo que aquela. Abordando mais uma vez
as questões da competição (no sentido antigo do termo, que podemos denominar
por agon), Huizinga (2005, p. 85) comenta: “Assim, para voltar a nosso ponto de
partida, os ludi romanos, podemos afirmar que a língua latina tinha toda a razão ao
designar as competições sagradas pela simples palavra „jogo‟, pois esta palavra
exprime da maneira mais simples possível a natureza única desta força civilizadora”.
A respeito da transformação ocorrida nas competições, em especial no campo do
esporte, onde isso evidencia-se mais, devido à sistematização e regulamentação
cada vez mais rígidas, o autor salienta a diferença que passa a existir entre os
profissionais e os amadores. Para ele “O espírito do profissional não é mais o
espírito lúdico, pois lhe falta a espontaneidade, a despreocupação. Isto afeta
25

também os amadores, que passam a sofrer de um complexo de inferioridade”


(HUIZINGA, 2005, p. 219 e 220).
O autor segue sua investigação abordando áreas como a Arte e a Ciência, no
intuito de encontrar nelas as características do jogo. Quais elementos do espírito
lúdico essas áreas da civilização apresentam no decorrer de seu desenvolvimento,
aqueles que se perderam e aqueles que se transformaram. É nesse sentido que
Huizinga (2005, p. 227) afirma que a ciência moderna tem se arriscado menos “[...] a
cair no domínio do jogo, tal como o definimos, quando se mantém fiel à mais radical
exigência de rigor e veracidade, ao contrário do que acontecia antigamente, até a
época do Renascimento, quando o pensamento e o método científicos mostravam
inequívocas características lúdicas”.
E finalmente analisando o elemento lúdico como se apresenta na vida social,
especialmente na política, o autor chama a atenção para que se tenha cuidado em
não confundir o jogo com o falso jogo, pois segundo ele podem ser utilizadas formas
lúdicas para ocultar interesses políticos ou sociais, estando isso em desacordo com
o verdadeiro espírito lúdico. Além disso, outro equívoco que pode ocorrer é ao
aplicar-se uma visão superficial sobre fenômenos que apresentam tendência lúdica
tomando-os como jogo, sendo na verdade eles nada terem a ver com ele
(HUIZINGA, 2005). Ainda sobre as questões sociais, o autor faz um importante
comentário sobre o que ele denomina de puerilismo, ou seja, características
marcantes da adolescência como a oposição aos costumes, a revolta, o divertimento
ilimitado, o gregarismo, que passam a dominar aspectos da vida que antes eram
restritos aos adultos; estendendo-se esse fenômeno a nações inteiras.

Temos visto grandes nações perderem toda noção da honra, todo sentido
do humor, a própria idéia de decência e do jogo limpo. Não caberia aqui
investigar as causas e a importância deste abastardamento universal da
cultura, mas não há dúvida que a participação de grandes massas semi-
educadas no movimento espiritual internacional, o relaxamento dos
costumes e a hipertrofia da técnica são em grande parte por ele
responsáveis (HUIZINGA, 2005, p. 228).

Esse comentário de Huizinga não parece um discurso moralista e sim, uma


constatação que cada um de nós pode fazer no seu cotidiano, seja ele escolar,
social, familiar. Infelizmente temos de enfrentar situações em nosso ofício de
educadores, que realmente são muito desagradáveis e confirmam o que o autor
mencionou, tais como: frequentes agressões de alunos a professores; notícias de
corrupção política, constantemente presentes nos noticiários e a ridicularização que
26

por vezes sofre alguém ao relatar um ato de honestidade, como se essa última fosse
um sinal de idiotice ou estupidez.
De maneira um tanto pessimista, talvez realista, Huizinga conclui que o
elemento lúdico da cultura está em decadência desde o século XVIII. Para ele “[...] o
autêntico jogo desapareceu da civilização atual, e mesmo onde ele parece ainda
estar presente trata-se de um falso jogo, de modo tal que se torna cada vez mais
difícil dizer onde acaba o jogo e começa o não-jogo” (HUIZINGA, 2005, p. 229).
Talvez justificando o título de seu livro, o autor a guisa de conclusão aponta
que a civilização só pode existir constituída dos elementos lúdicos e aplique-se aqui
todas as características apresentadas anteriormente sobre o jogo. Conforme
Huizinga (2005, p. 234) “De certo modo, a civilização sempre será um jogo
governado por certas regras, e a verdadeira civilização sempre exigirá o espírito
esportivo, a capacidade de fair play. O fair play é simplesmente a boa fé expressa
em termos lúdicos”.
Para finalizar a abordagem sobre esse autor, que realizou seu estudo
buscando fundamentar-se nas características positivas e universalmente conhecidas
do jogo, reproduzo literalmente mais uma de suas ideias, pois temo que a tentativa
de parafraseá-la a destitua da beleza com a qual o autor a impregnou:

Sempre que nos sentirmos presos de vertigem, perante a secular


interrogação sobre a diferença entre o que é sério e o que é jogo, mais
uma vez encontraremos no domínio da ética o ponto de apoio que a lógica
é incapaz de oferecer-nos. Conforme dissemos desde o início, o jogo está
fora desse domínio da moral, não é em si mesmo nem bom nem mau. Mas
sempre que tivermos de decidir se qualquer ação a que somos levados por
nossa vontade é um dever que nos é exigido ou é lícito como jogo, nossa
consciência moral prontamente nos dará a resposta (HUIZINGA, 2005, p.
236).

Para concluir essa exposição sobre autores que estudam e estudaram o jogo
com dedicação e perspicácia, apresento o último desses, que representa de modo
significativo os autores brasileiros que se dedicam a essa temática.

O Jogo na concepção de João Batista Freire

Esse autor discute a importância do jogo no campo da Educação desde longa


data. É um pensador vinculado à Educação Física, no entanto, seus trabalhos são
se restringem a essa área do conhecimento, espraia-se por todo o campo
27

educacional, visto que o jogo é um fenômeno que abarca a existência humana


independente de onde esteja.
Para Freire (2002) o jogo se apresenta como algo complexo, e como tal, não
pode ser compreendido a partir de uma visão simplista, por isso propõe uma ruptura
com as formas clássicas de investigação desse fenômeno e sugere outro tipo de
pesquisa. Neste sentido, um dos autores que lhe servem de fundamentação teórica
é o filósofo da complexidade Edgar Morin.
Em seu livro “O jogo: entre o riso e o choro” (2002), Freire nos apresenta a
concepção de vários autores sobre esse assunto, bem como, aponta onde estes
parecem ter se equivocado em suas abordagens. Autores como Caillois, Huizinga,
Brougère, Chateau, Buytendijk, Gadamer, Sartre dentre outros, são discutidos neste
livro, além de Piaget, autor que Freire estuda profundamente. Freire resume sua
concepção de jogo da seguinte forma: “Jogo é tudo aquilo que minha percepção me
disser que é jogo” (2002, p. 115). Uma situação que alguém percebe como jogo,
outro pode não perceber desta forma, isto é, a situação é a mesma, o que mudou
foram as percepções. Buscando desmitificar a necessidade de termos certezas
sobre tudo, Freire (2002, p. 115) alerta: “Ansiamos por possuir um critério universal
para julgar o valor de todas as coisas, quer seja o jogo, a arte, a mentira ou a
verdade”. Nesta perspectiva foi desenvolvido esse trabalho, não buscando um
critério universal, e sim, uma percepção mais apurada daquilo que o jogo pode
contribuir para os processos de ensino e de aprendizagem.
Ao falar do Senhor do Jogo, ou seja, um jogo que transcende aos homens e
outros animais e independe deles, Freire (2002, p. 71) esclarece com a analogia que
mencionamos acima, sobre o religioso que observa o sorriso de uma criança. O
espírito lúdico está em nós e pode se manifestar a qualquer momento, basta que a
circunstância, o ambiente, propicie seu aparecimento. À medida que crescemos,
passamos a manter mais controlada nossa ludicidade. Apresentamos manifestações
mais discretas desse aspecto. Porém, mesmo aparecendo menos, não importa a
idade, o lúdico está sempre em nós, em maior ou menor grau. Na criança o espírito
lúdico se manifesta muito freqüentemente, e, como comentei anteriormente nesse
texto, pode-se até dizer, quase incessantemente. Temos dificuldade de fazê-la parar
de jogar, se é que isso é possível e desejável. Nós educadores, podemos utilizar
essa energia para a aprendizagem escolar, basta que saibamos incluir o jogo no
28

contexto educacional, tendo o cuidado de não deturpá-lo e criando um ambiente


favorável ao mesmo em nosso ensino.
Quanto ao ambiente do jogo, o autor indica que este é um ambiente onde se
utilizam as energias que sobram. Não porque reservemos estas energias apenas
para jogar, mas porque é somente no jogo que elas aparecem. Sobre este superávit
energético que utilizamos no jogo, Freire (2002, p. 30) comenta que não é uma
energia para ficar guardada, e sim, “É a energia para jogar, para produzir arte, para
inventar tecnologia, para fazer a poesia”. Citando Buytendijk afirma: “A esfera do
jogo é a esfera das imagens e, com isso, a esfera das possibilidades e da fantasia”
(BUYTENDIJK apud FREIRE, 2002, p. 66). Vemos aí a importância que Freire atribui
à subjetividade quando trata deste fenômeno.
Para este autor, o jogo “é uma coisa nova feita de coisas velhas” (FREIRE,
2002, p. 119), pois o jogador para jogar leva aquilo que já sabe e adapta-o às novas
situações. Quando fala de coisas velhas, o autor está se referindo aos
conhecimentos - esquemas cognitivos e motores - que o jogador possui; as
experiências que vivenciou. A cada nova partida, o mesmo jogo é sempre algo
inusitado, pois as circunstâncias são sempre outras e as próprias pessoas não são
as mesmas a cada vez que jogam. Não irei aprofundar esse aspecto filosófico no
presente texto, mas penso ser importante mencioná-lo, pois se queremos entender o
jogo, devemos pensar sobre essas questões complexas. É nessas situações e pela
ação do sujeito que joga, que o jogo passa ser algo novo feito de coisas velhas.
Podemos compreender essa característica do jogo apresentada acima, analisando-a
sob a luz de uma das mais importantes teorias de Piaget, a teoria da reequilibração.
Utilizarei um exemplo para tentar elucidar a ocorrência prática dessa teoria. O
exemplo apresentado será de um jogo de pega-pega, por ser conhecido por todos
nós desde a infância e ser possível vê-lo sendo jogado pelas crianças que estão em
nossas escolas. Outro motivo para utilizá-lo é para constatarmos que ao estudarmos
as teorias desses grandes teóricos, podemos perceber em atividades simples como
essa, a grandeza de conhecimentos que pode oferecer à criança. Alguns olham com
desdém para os pega-pegas, julgando-os atividades banais. No entanto, eles podem
contribuir de modo significativo para as aprendizagens do aluno, tanto na quadra
quanto na sala; tanto na rua quanto na escola. Nas coisas aparentemente simples
podem ocultar-se aprendizados muito complexos. Defendo que o aluno não tem
29

necessariamente que saber como e porque aprende, porém o professor, tem


obrigação de sabê-lo.
Vamos ao exemplo: imagine um grupo de crianças em um espaço amplo
onde possam jogar o pega-pega chamado Nunca Três. Elas formarão duplas de
mãos dadas e se dispersarão pelo local, com exceção de duas crianças que não
darão as mãos, pois uma será o pegador e a outra o fugitivo. As duplas de mãos
dadas ficam paradas. Ao iniciar o jogo o pegador tentará pegar o fugitivo. Esse
último para se salvar procurará uma dupla e dará a mão para um dos seus
integrantes. Aquele a quem o fugitivo der a mão ficará com ele parado, formando
com este uma nova dupla e o outro que não recebeu a mão deverá fugir, pois
passará a ser o alvo do pegador. Daí o nome do jogo: Nunca Três, visto que nunca
podem ficar três pessoas de mãos dadas. O aluno que passou a ser o novo fugitivo
deverá agora procurar alguma dupla para dar a mão e se salvar; assim o jogo
transcorre. Quanto ao pegador, enquanto não conseguir pegar alguém que sair de
uma dupla, continua nessa função. Se pegar o fugitivo, transformar-se-á
imediatamente em fugitivo e o que foi pego passará a ser pegador, seguindo assim o
jogo, sucessivamente. Essa maneira de jogar, chamamos de primeira etapa; ela não
tem grande complexidade, sendo facilmente compreendida pelas crianças.
Deixamos que joguem dessa forma durante algum tempo, até percebermos que os
erros se tornem quase inexistentes. Após esse tempo, paramos o jogo e fazemos
uma alteração na regra principal do jogo. Agora, aquele que sair da dupla não fugirá
mais, ao sair da dupla passará a ser pegador e o colega que era o pegador
imediatamente passará a ser o fugitivo, ou seja, quem estava pegando passa a fugir
e quem estava parado na dupla sai dela para pegar. Essa mudança no jogo,
chamamos de segunda etapa. Agora sim, as coisas se complicam. Nessa etapa os
erros desde o início são muitos e diminuem em seu transcorrer, porém, perduram
por longo tempo de jogo, às vezes, ainda no final há crianças errando. Falo em
crianças por ser mais freqüente vê-las jogando-o e às quais foram os sujeitos que
pesquisei num trabalho (LISBOA, 2005). No entanto, ao realizar essa atividade com
crianças de várias idades, adolescentes e adultos, os acontecimentos no jogo são
sempre semelhantes.
Agora, à luz da teoria da equilibração explicarei o que acontece no jogo. Ao
iniciarmos o Nunca Três (primeira etapa) percebemos que os jogadores erram
algumas vezes, mas levam pouco tempo para se adaptarem a ele. A ocorrência de
30

equívocos logo se torna quase insignificante. Podemos assim dizer que os jogadores
ao serem solicitados a jogar, assimilaram as regras do jogo, perceberam o espaço,
enfim assimilaram as necessidades que o jogo os impôs; acomodaram essas
exigências aos esquemas cognitivos e motores que possuíam. Esquemas de correr,
de desviar, de segurar. Eles moldaram esses esquemas às necessidades daquela
circunstância. Ao fazerem isso, conseguiram o que chamamos de adaptação. Ao se
adaptarem, conseguiram jogar. Quando isso acontece, dizemos que os sujeitos
atingiram um estado de equilibração. Aquele que não conseguiu jogar é porque não
adaptou-se. É evidente que tudo isso não é realizado em nível consciente, ocorre
sem que a própria criança se dê conta. Freud disse que há mais coisas no
inconsciente do que no consciente. Piaget parafraseando-o dizia que há mais coisas
no inconsciente cognitivo do que no consciente cognitivo.
Quando as crianças passam a jogar a segunda etapa do Nunca Três, isto é,
após a mudança na regra, acontecem muitos erros; há confusão, um verdadeiro
desequilíbrio em suas ações. Erros que se sucedem e perduram por quase toda
essa etapa do jogo. Isso acontece, principalmente, porque elas tentam resolver o
problema de fugir e pegar utilizando os esquemas (as soluções) que utilizaram na
primeira etapa. As soluções anteriores, já não são suficientes para o momento atual
do jogo. Diante dessa dificuldade, as crianças, para se adaptarem novamente,
devem assimilar as mudanças ocorridas, acomodar o conhecimento que já possuíam
ao que foi transformado, na busca de que esses esquemas solucionem o problema
atual. Ao realizarem isso com sucesso, elas se adaptam e adquirem o que Piaget
(1976) chamou de reequilibração majorante. Reequilibração por um retorno à
aquisição do equilíbrio, mas não o equilíbrio anterior e sim, um equilíbrio com algo a
mais (um conhecimento a mais do que o anterior) por isso chamado de majorante.
Dito de outra forma, cada vez que o sujeito é posto frente a situações-problema para
serem solucionadas e consegue resolvê-las ele se torna mais inteligente. Segundo
Piaget (1972, p. 32): “[...] a inteligência constitui o estado de equilíbrio para o qual
tendem todas as adaptações sucessivas de ordem sensório-motora e cognitiva, bem
como todas as permutas assimiladoras e acomodadoras entre o organismo e o
meio”. Ou seja, é a capacidade de resolver problemas ou a capacidade de
adaptação. Essa adaptação pode ser alcançada também com nossa ajuda, não
apresentando diretamente a solução para a criança, mas instigando-a, oferecendo-
31

lhe dicas para encontrá-la. Enquanto professores, temos a possibilidade de


diariamente, oportunizarmos nossos alunos a serem mais inteligentes.
A delonga no exemplo anterior foi necessária para podermos verificar a
importância e a aplicabilidade das teorias que estudamos na Educação. Reafirmo a
importância do professor ser um intelectual e pesquisador, pois dessa forma poderá
explorar e amplificar a potencialidade de seus alunos e a riqueza de seu ofício.
Ao contrário de alguns autores mencionados em seu livro, Freire (2002) não
tenta compreender o jogo buscando encontrar nele coisas que não se encontram em
outras esferas da atividade humana. Para ilustrar sua forma de investigação, cito sua
própria explicação:

Procurei mostrar que sim, que o jogo tende para uma direção, sem guardar
exclusivamente esta ou aquela característica. Descrevi o jogo como uma
atividade em que as coisas são feitas sem que precisem ser feitas, porque
não se distingue nela um compromisso objetivo com algo exterior ao
jogador. Deixei mais aberta que qualquer outra questão esta última,
segundo a qual todas as coisas que chamamos de jogo são jogadas, isto é,
lançadas, arremessadas ao sabor da imprevisibilidade (FREIRE, 2002, p.
121).

A imprevisibilidade é uma importante característica para classificarmos o que


é ou não jogo. Quem de nós não se sente enfadado ao realizar uma atividade
rotineira, que não apresenta nada de novo? Imagine um jogo no qual você já sabe
de antemão o resultado. Um jogo que antes mesmo de iniciar qualquer jogada você
já tivesse a certeza de que seria vencedor ou perdedor. Provavelmente não se
sentiria motivado a jogar, e o que deveria ser algo lúdico, divertido, se tornaria
desestimulante; ao invés de jogo se tornaria trabalho. Considerando aqui trabalho,
como aquilo que retira energia, cansa. Alguém pode contestar que ao trabalhar tem
um cansaço prazeroso, que ama o que faz e se entusiasma ao fazê-lo. Nesse caso,
estamos diante de alguém que transformou seu trabalho em jogo, ou seja, naquilo
que lhe acrescenta energia e motivação. Aliás, é importante diferenciar ofício,
emprego, de trabalho. Comumente nos referimos à nossa ocupação profissional
como trabalho, porém trata-se de um ofício. Por isso, é possível que alguém sinta
muito prazer no que faz profissionalmente, pois sua atividade profissional tornou-se
uma forma de jogar.
O imprevisível nos fascina. Por mais que alguns não gostem de ser
surpreendidos, a maioria das pessoas gosta de surpresas. E essa, em última
instância é aquilo que não se sabe que iria acontecer. No jogo, portanto, não saber o
32

resultado final é o que motiva a jogar; é o que nos faz tentar novamente, pois da
próxima vez poderá ser diferente. Há o esforço do jogador, mas não é o suficiente
para garantir o resultado, e a expectativa então torna o jogo mais fascinante. Há
jogos com mais ou menos imprevisibilidade; quanto maior for essa última mais
fascinante o jogo se torna.
Esse deve ser um dos critérios ao utilizarmos o jogo em nossas aulas. Não
fazer com que o nível de imprevisibilidade se torne tão baixo que desmotive o aluno
a jogar. Essa também é uma das razões pelas quais o jogo tem pouco espaço no
contexto educacional, pois, de modo geral, considera-se que o que se ensina na
escola deve ser ensinado por metodologias com resultados previsíveis, que se
possa prever e verificar ao final de determinado período o que o aluno aprendeu.
Sendo o jogo imprevisível, parece que pouco ou nada teria a contribuir no sistema
de ensino. No entanto, é possível sim, incluir o jogo na Educação, sem que ele perca
essa característica que lhe é tão cara. Dessa imprevisibilidade característica do jogo,
durante sua realização surgem problemas cognitivos que necessitam ser resolvidos
imediatamente, para que os jogadores obtenham sucesso na atividade.
Freire, em suas obras (1994, 2002, 2003) busca demonstrar a potencialidade
que o jogo possui para contribuir na aprendizagem, principalmente para a escola, e
a importância do mesmo para nossas vidas. Acredito ser fundamental para os
educadores, não somente da Educação Física, estudar o jogo de modo mais
aprofundado, pois muitas vezes, este é banalizado na escola, é transformado em
trabalho. Sobre a utilização do jogo na escola Freire e Scaglia (2003, p. 167)
recomendam:

Servidos numa bandeja lúdica, conteúdos de matemática, química ou física


podem ser mais bem digeridos. Não queremos nos opor sistematicamente
a isso, desde que haja um esforço para que o jogo não seja
descaracterizado, isto é, para que o aluno, nesse instante, não deixe de
jogar.

Podemos, na escola, por meio do jogo, levar os alunos a tomadas de


consciência de suas ações. Para isso, devemos causar conflitos na forma de jogar,
seja mudando alguma regra, diminuindo o espaço, o número de alunos etc., pois,
desta forma, os jogadores terão de adaptar-se às modificações, e assim, realizarem
o que Piaget (1976) chamou de reequilibrações majorantes, conforme comentei
acima. Além disso, conversar sobre o que aconteceu no jogo é uma forma de
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tomada de consciência, porque falar sobre aquilo que não está mais acontecendo, é
levar o mundo externo para o mundo interno e assim ampliar o alcance dos
conhecimentos. Sobre esta possibilidade, Freire e Scaglia (2003, p. 120) afirmam
que os alunos se “[...] puderem ter consciência de suas ações de pular corda, de
empinar pipas, de rodar piões ou de cantar cantigas de roda poderão – sem que nós
e eles saibamos disso – estabelecer ligações cada vez mais extensas entre tais
conhecimentos e o mundo fora da escola”. Mais uma vez saliento que, o jogo pode e
deve estar dentro e fora de sala, entre alunos de qualquer idade, mas de modo
especial, entre os alunos das faixas etárias às quais nos referimos nesse trabalho,
que são da Educação Infantil e do Ensino Fundamental.
Como podemos perceber no exposto acima, o jogo é algo complexo e rico em
possibilidades, para ensinar e aprender. Contudo, este potencial somente se
manifesta, na medida em que o conhecemos melhor e isso é obrigação de todo
educador. O jogo está presente em todas as escolas, mesmo que oculto ou
reprimido. Se nas escolas há crianças, há também jogo, pois ambos andam sempre
juntos, mesmo que esse último não se manifeste. Além disso, onde há criança e
jogo, há também inteligência e imaginação. Sendo essa última, para Freire (2002) a
grande criadora de cultura, ou seja, o que diferencia o homem dos outros animais.
O jogo, além dos conhecimentos mencionados acima, pode ensinar o amor.
Para Freire e Scaglia (2003), quando ensinamos ao aluno passar a um colega a
bola, que é o bem mais precioso durante um jogo, estamos ensinando a amar, e,
“Compreender o significado da atitude de passar é algo ainda mais amoroso”
(FREIRE; SCAGLIA, 2003, p. 178). No jogo aqui mencionado como exemplo, O
Nunca Três, não há passes, mas há o ato de dar a mão para salvar o colega e a
cooperação com os demais. Essa possibilidade de ensinar a amar se estende a
outras atividades lúdicas que podemos desenvolver em nossa atuação pedagógica.
Portanto, quando tomarmos verdadeira consciência da importância do jogo para a
vida de nossos alunos e também para a nossa vida, perceberemos a importância
incomensurável de um bom professor para a educação dos seres humanos.

REFERÊNCIAS

BROUGÈRE, G. Brinquedo e cultura. 5 ed. São Paulo: Cortez, 2004.

___ Jogo e educação. 2 reimpressão. Porto Alegre: Artmed, 2003.


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FREIRE, J. B. O jogo: entre o riso e o choro. Campinas, SP: Autores Associados,


2002.

___ Educação de corpo inteiro. 4 ed. São Paulo: Editora Scipione, 1994.

___; SCAGLIA, A. J. Educação como prática corporal. São Paulo: Scipione, 2003.

HUIZINGA, J. Homo ludens. 5 ed. 2 reimp. São Paulo: Perspectiva, 2005.

PIAGET, J. A equilibração das estruturas cognitivas: problema central do


desenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

___ A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho, imagem e


representação. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar; Brasília, INL, 1975.

___ Psicologia da inteligência. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura,


1972.

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