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A BRINCADEIRA DA CRIANÇA PARA GILLES BROUGÈRE: SUAS

CARACTERISTICAS E SEU LUGAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Lenira Haddad
CEDU/UFAL, 2012

De acordo com Enciclopédia Internacional de Educação Infantil (Scarlett e


New, 2007, p. 626), as palavras brincar e brincadeira, quando descrevem a atividade
das crianças, geralmente se referem a um estado de ser que as crianças experimentam
e fazem acontecer. Mesmo quando brincam, elas entram e saem de um cenário de
brincadeira, demonstrando uma atividade metacognitiva associada a esse complexo
comportamento.
A despeito de uma riqueza de literatura leiga e profissional sobre esse tópico,
ainda existe uma grande dose de ambigüidade sobre a natureza e significado da
brincadeira na vida das crianças e como essa atividade pode contribuir para seu
desenvolvimento e aprendizagem. Para tentar transpor essa ambigüidade, alguns
teóricos desenvolveram critérios para determinar o que é e não é brincadeira. Os
critérios propostos pelos psicólogos Rubin, Fein, e Vandenberg (1983), a partir da
análise de uma vasta literatura sobre o jogo no âmbito da pesquisa em psicologia, são
os mais amplamente citados. São eles: o caráter fictício (nonliterality); a motivação
intrínseca; ser orientado ao processo; a livre escolha; e o afeto positivo. O caráter
fictício está no fato de as crianças criarem suas próprias realidades enquanto brincam.
A motivação intrínseca diz respeito às crianças serem intrinsecamente motivadas a
participar em brincadeiras, o que significa que sua motivação para brincar vem de
dentro e não mundo exterior. Ser orientada ao processo implica que quando brincam
as crianças não se preocupam com o produto final ou com como a brincadeira vai
acabar. Elas simplesmente se engajam na brincadeira e sua continuidade ou não
depende da satisfação interior de estarem realmente na atividade. A livre escolha
pressupõe o controle das próprias crianças sobre a brincadeira. Por fim, o afeto
positivo implica que as crianças gostam de brincar e estão sempre inclinadas a fazê-
lo.
Esses critérios diferenciam a brincadeira de outras atividades, como por
exemplo, o jogo educativo, que são organizadas pelo professor de forma lúdica e
serve a objetivos que vão além dos colocados pelos participantes da brincadeira. O
conjunto dessas características ofereceria uma maneira de compreender a brincadeira
como uma atividade espontânea, iniciada pela criança, orientada pelo processo, que
envolve elementos de ficção e não têm regras impostas exteriormente.

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Esses vários critérios refletem o desafio que este comportamento
aparentemente natural apresenta para aqueles que desejam melhor compreender e
apoiar as brincadeiras. Entretanto, algumas orientações são difíceis de interpretar
como as que dizem respeito a ser intrinsecamente motivada ou as que afirmam que a
brincadeira produz um afeto positivo.
As interpretações contemporâneas da brincadeira no contexto da educação
infantil advêm de contribuições teóricas de vários campos de conhecimento, que vão
da psicanálise à sociologia da infância. Aqui nos interessa particularmente a
perspectiva sócio-cultural representada por Gilles Brougère. Por ocasião de sua tese
de doutoramento Brougère reviu e analisou esses critérios e propôs cinco
características que permitem identificar a situação lúdica. Tive a oportunidade de
participar de várias conferências proferidas pelo autor no Brasil na década de 90, e
desde então tenho utilizado essa ferramenta com sucesso em programas de formação
inicial, continuada e pós-graduação. Compreender as características que definem a
brincadeira e as diferenciam de outras atividades da criança pode ser um grande
contributo para advogar pela presença da brincadeira nos contexto de educação
infantil.
Nesta capítulo discorreremos sobre os critérios da brincadeira propostos por
Brougère1, suas implicações pedagógicas e as formas que a brincadeira está presente
na educação infantil na perspectiva do autor.

As características da brincadeira da criança segundo Gilles Brougère

Importa para o autor em primeiro lugar romper com o mito de que a


brincadeira é inata à criança e que ela já nasce com os recursos necessários a essa
atividade. Para ele, a brincadeira é uma construção social, resulta de relações
interindividuais, portanto, da cultura, e sendo assim “pressupõe uma aprendizagem
social”. Isso não apenas significa que a criança aprende a brincar brincando como
também que algumas não aprendem a brincar e por isso, não conseguem entrar em
nenhum jogo. Brougère concorda com Wallon que a criança é progressivamente
iniciada no jogo pelo adulto inicialmente como o próprio brinquedo da brincadeira do
adulto e depois o parceiro real e que os “jogos de maternagem” do tipo escondeu-
encontrou são os traços imemoriáveis dessa prática.
Outra confusão frequentemente presente é associar a brincadeira a
comportamentos de exploração. Se o último nos permite buscar informações sobre o

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As informações que serão apresentadas foram obtidas especialmente em Jogo e Educação (Brougère, 1998a) e anotações de duas
palestras do autor realizadas no Brasil, uma em São Paulo, promovida pela Faculdade de Educação da USP nos dias 19, 20 e 21 de
setembro de 1994 e outra em Ubatuba, promovida pela Secretaria Municipal de Educação nos dias 19 e 20 de agosto de 1996.

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nosso meio e com isso contribui para inúmeras aprendizagens, o primeiro envolve
comportamentos bem distintos. Conforme observa Cheyne (apud Brougère, 1988, p.
190) a pergunta que fazemos na exploração é “o que este objeto pode fazer?” e na
brincadeira é “o que eu posso fazer com este objeto?”.
O que efetivamente a criança aprende com essa iniciação progressiva ao jogo
é “compreender, dominar, depois produzir uma situação específica, distinta de outras
situações” (idem, p. 190). Com essa explicação Brougère nos introduz ao primeiro e
mais importante critério que define a brincadeira, a metacomunicação. Baseada em
Bateson esse critério indica que a brincadeira supõe uma comunicação específica.
Para que a brincadeira aconteça é preciso que haja acordo entre os parceiros sobre as
modalidades de sua comunicação e indique tratar-se de uma brincadeira.
o jogo só é possível quando os organismos que a ele se entregam são capazes de um
certo grau de metacomunicação, isto é, quando são capazes de trocar sinais
veiculando a mensagem ‘isso é um jogo’ (Bateson, 1977, p.211, apud Brougère,
1988, p. 190).

A maneira de expressar essa informação pode ser variada, implícita e não


verbal, mas seu fim é instalar a brincadeira, “o espaço específico onde as atividades
vão ter outro valor”. Para que isso aconteça, além do acordo deve haver a
compreensão de certos sinais.
Um exemplo típico é o jogo de briga. Quando uma criança quer brincar de
luta, ela tem que comunicar que é de “mentirinha” e ela faz isso sinalizando com
golpes especiais, introduzindo elementos que diferenciam a brincadeira de briga de
uma briga de verdade. O contexto também é diferente porque em uma brincadeira o
motivo não é a briga em si. Entretanto, essa comunicação pode falhar; a outra criança
pode não entender, ou ter dificuldade de se colocar nessa situação fictícia. Mas é
também impressionante como a maioria das crianças sabe fazer essa distinção. Isso
significa que aprenderam a fazer isso com outras crianças ou com adultos. Esse
aprendizado é adquirido com os jogos que os adultos desenvolvem com as crianças
quando elas são pequeninhas, como nas brincadeiras de esconder uma parte do corpo.
A criança aprende assim a reconhecer certas características essenciais do jogo: seu
aspecto fictício, pois o corpo não desaparece de verdade, trata-se de um faz-de-conta;
a inversão dos papéis; a repetição que mostra que a brincadeira não modifica a
realidade, já que se pode sempre voltar ao início; e a necessidade de um acordo entre
parceiros, mesmo que a criança não consiga aceitar uma recusa do parceiro em
continuar brincando (BROUGÈRE, 1998b, p. 22).
Essa primeira característica da brincadeira também se inspira em Erving
Goffman que vê na brincadeira “o exemplo de uma ação modalizada pela

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transformação da ação de referência que se inscreve em um quadro primário”
(Goffman, 1991, p. 50, apud BROUGÈRE, 1998a, p. 191. A ideia ressaltada aqui é a
de “modalização dos quadros”, atividade que só se encontra na brincadeira humana.
Com Bateson e Goffman o autor chega à especificidade da brincadeira que
remete não ao seu conteúdo mas à “criação de um quadro específico que modifica o
sentido do que se passa no interior”. Imbricada na brincadeira está a mutação de
sentido da realidade. Na brincadeira as coisas se tornam outras. “É um espaço à
margem da vida comum que obedece a regras criadas pelas circunstâncias” (idem).
Embora os comportamentos sejam os mesmos da vida cotidiana, os objetos podem ser
diferentes do que parecem.
Para expressar essa especificidade da brincadeira encontrada em Bateson e
Goffman, o autor utiliza a expressão ‘atividade de segundo grau’ como “uma
atividade que supõe atribuir às significações de vida comum um outro sentido, o que
remete à idéia de fazer-de-conta, de ruptura com as significações da vida quotidiana”
(BROUGÈRE, 1998b, p. 24). Com isso compreende-se que existem atividades da
vida cotidiana que são de primeiro grau, como comer, vestir-se, trabalhar, que se
diferem das atividades de segundo grau, próprias da brincadeira do faz-de-conta. Há
atividades que se assemelham, mas não é a mesma coisa. Uma criança que está
comendo um pão no horário do lanche realiza uma atividade de primeiro grau. Uma
criança que finge estar comendo um pedaço de pão ao ‘preparar’ a refeição em uma
cozinha imaginária realiza uma atividade de segundo grau. Muitas vezes as crianças
utilizam materiais mais realistas para brincar. Ela pode pegar um pedaço de pão e
comer como se fosse uma brincadeira. De qualquer forma é fácil perceber quando ela
está comendo o pão no café da manhã ou quando comer o pedaço de pão é um
elemento da brincadeira. Temos aí uma situação de utilização do mesmo objeto (pão)
com a mesma ação (comer). O que muda é o sentido de cada uma das ações e o
domínio do sentido para as crianças.
Para Brougère, a cultura lúdica são todos os elementos da vida e todos os
recursos à disposição das crianças que permitem construir esse segundo grau. Essa
cultura não existe isoladamente. Quando atua no segundo grau, a criança mantém a
relação com a realidade (o primeiro grau), pois usa aspectos da vida cotidiana para
estabelecer uma relação entre a brincadeira e a cultura local num sentido bem amplo.
As outras características analisadas pelo autor decorrem em consequência da
primeira. Vimos que a brincadeira é uma situação na qual o comportamento adquire
um sentido específico. Além da comunicação e interpretação é preciso que uma
decisão aconteça para que essa situação particular seja criada. A criança que brinca é
uma criança que tomou a decisão de brincar. Brincar é decidir e quem brinca é uma
pessoa que toma decisões. Ou seja, a criança não pode brincar se é obrigada a brincar.

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Entrar no segundo grau é decisão do sujeito. Não é uma questão de liberdade, mas de
propósito. O autor discorda que a liberdade seja um critério útil para distinguir o jogo,
pois é difícil saber se aquele que joga é livre; mais fácil é saber se tomou decisão. A
decisão é então o segundo critério que define a brincadeira que se manifesta não
apenas na decisão de entrar no jogo, “mas também de organizá-lo de acordo com
modalidades particulares”. Portanto, trata-se de um sistema de sucessão de decisões,
que se expressa através de um conjunto de regras. A criança que brinca com uma
boneca toma uma série de decisões sobre esse objeto, se vai dormir, passear, se é de
noite ou de dia, o que vai fazer com ela. Se isso não acontecer, a brincadeira não se
desenvolve. Decidir é criar o mundo do segundo grau. Não há outro resultado além da
sequência de decisões. Sempre é possível decidir em outra direção para dar uma certa
organização ao jogo. Ao contrário do que acontece no real (primeiro grau), no
segundo grau pode-se resolver o problema de uma maneira puramente simbólica e
negociável. E se o adulto intervém com imposição ou procurando resolver o
problema, a situação muda de figura.
O terceiro critério é a regra. Tem relação com a anterior e pressupõe acordo
sobre as regras ou criação de regras entre os participantes. Todo jogo tem regras e
estas podem ser classificadas de duas maneiras: aquelas pré-existentes, inerentes aos
jogos de regras (tênis, pingue-pongue, boliche, dama, xadrez) e as que são criadas
durante a brincadeira pelos que fazem parte dela. No primeiro caso, decidir a
brincadeira é também aceitar o conjunto de regras que caracterizam esses jogos. No
segundo caso, elas não estão determinadas a priori, são criadas no desenvolvimento
da brincadeira e requer que se tornem claras ou negociadas. A decisão é mais
complexa. Implica justamente definir se é dia ou noite, se é hora de comer ou não,
quais serão os personagens da brincadeira e como deverão se comportar. Para
Vigotski (2008) sempre que há uma situação imaginária na brincadeira há regras. Elas
decorrem da situação imaginária. Se a criança faz o papel de mãe, ela tem diante de si
as regras do comportamento da mãe. “O papel que a criança interpreta e a sua relação
com o objeto, caso este tenha seu significado modificado, sempre decorrem de regras,
ou seja, a situação imaginária, em si mesma, sempre contém regras” (p. 28).
No mundo do primeiro grau existem leis – naturais, civis, etc. que se impõem
à sociedade. Em uma sociedade democrática podemos até participar da definição
dessas regras, mas há muitas limitações. No mundo do segundo grau não há lei que
exista previamente. O que existe são regras que dependem das decisões dos
jogadores. Diferentemente dos jogos de regras, na brincadeira as regras só se impõem
sobre a criança porque ela as aceitou. Basta que ela saia da brincadeira para que
aquela regra deixe de se impor sobre ela. Exemplo disso é quando ao querer se eximir
das regras em voga a criança diz: “Vamos parar, eu não estou mais brincando”. Mas é

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preciso observar que o mundo do primeiro grau continua a se impor sobre o segundo,
suas leis estão sempre presentes. Por exemplo, a criança pode fingir de super-homem,
mas a lei da queda se impõe sobre ele, mesmo que ele queira voar. Não é porque ele
entrou no segundo grau que a lei da gravidade vai deixar de existir. Na brincadeira
não se transforma o mundo, mas o sentido, a imagem que temos do mundo.
O quarto critério, também consequente da primeira, é a flexibilidade e
frivolidade presente nessa situação específica que é a brincadeira. A brincadeira é
uma atividade dissociada de suas conseqüências normais e, dessa maneira, aparece
como um espaço único de experiência para quem brinca. De acordo com Bruner
(apud Brougère, p. 192), ela “fornece a ocasião de experimentar combinações de
condutas que, sob pressões funcionais, não seriam tentadas”. Assim, ela é um espaço
de inovação e criação para a criança. A ausência de pressões que caracterizam a
atividade lúdica permite à criança uma série de tentativas e experiências. A
brincadeira é um espaço de experiências originais. A criança decide se será permitido
saltos muito ousados numa situação de brincadeira, ou pulos sobre o rio que causa
medo. A supressão ou redução das consequências transforma a natureza da
experiência.
O quinto critério, a incerteza, a grosso modo quer dizer que nunca sabemos
no que a brincadeira vai resultar. É o que distingue esta atividade de uma peça de
teatro que também é uma atividade de segundo grau. Se alguém de fora der a direção
do jogo pode-se suprimir essa critério da incerteza. Se logo de início se sabe o
resultado final, perde-se o sentido de brincadeira. Também não se sabe a direção que
a brincadeira vai tomar quando as crianças a iniciam, que papéis serão representados,
que falas serão ditas, as ações, enfim, todas as suas atitudes. É no desenvolvimento da
brincadeira que novos significados são atribuídos.

O jogo tem uma dimensão aleatória. Nele se encontra em operação o acaso ou a


indeterminação oriundos da complexidade das causas ativas. É um espaço pouco
controlável do exterior. Toda restrição interna faz o jogo recomeçar, toda restrição
externa corre o risco de destruí-lo (Brougère, 1988, p. 193).

Esse critério também toca na relação entre processo e produto. Para Bruner
(apud Brougère), a atividade lúdica se caracteriza por uma articulação muito frouxa
entre o fim e os meios. Os resultados são pouco importantes, a experiência de novos
comportamentos e a invenção parecem contar muito mais.
Em síntese, a brincadeira é um espaço social uma vez que não é inata, supõe
uma aprendizagem social e uma significação conferida pelos participantes. Esse
espaço social supõe regras, escolha e decisão continua da criança no início e no
desenrolar da brincadeira. Somente o desejo de todos os integrantes da brincadeira
mantém o acordo, podendo ser desmoronada se a negociação fracassar. A regra

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produz um universo específico marcado pelo exercício, pelo imaginário e faz de
conta, mas também pela ausência de riscos, o que possibilita à criança inventar, criar
e experimentar. Por fim, a brincadeira tem uma dimensão aleatória, movida pelo
acaso, pelo incerto, o que pode ser paradoxal para o educador desacostumado a
aceitar que a criança dirija e tenha controle sobre a sua própria experiência.

Implicações pedagógicas dos critérios

A importância de se considerar esses critérios é que eles permitem observar as


atividades da criança e identificar quais concernem ou não à brincadeira além de
possibilitar ao adulto situar-se em relação ao contexto lúdico e avaliar quando sua
intervenção pode facilitar ou destruir a brincadeira da criança. Esses critérios incidem
sobre a relação adulto-criança e a forma como este apresenta as atividades às
crianças. Uma idéia importante subjacente ao conceito de segundo grau é a
importância da iniciativa tomada pelas crianças numa atividade lúdica. Para
Brougère, é preciso aceitar a iniciativa da criança e estimular essa iniciativa da
criança tanto individualmente quanto no grupo. Com o intuito de preservar a
iniciativa, as intenções do educador devem se limitar ao mínimo necessário. É preciso
permitir que as crianças sejam colocadas em situação de resolver os problemas, de
negociar as soluções dos problemas.
O processo é mais importante que o resultado. Por diversas razões estamos
sempre tentando privilegiar os resultados de uma atividade. O papel do educador é
delicado. Não significa que ele não deva intervir, mas que saiba como intervir sem
destruir a brincadeira. Este é o grande desafio colocado por Brougère: estimular e
enriquecer a brincadeira sem destruir os critérios que a definem. Uma das maneiras de
colaborar para a brincadeira é organizar o espaço e fornecer materiais que incitem a
atividade lúdica. Outro requisito é a observação. Uma intervenção adequada requer
uma boa prática de observação. Sem esse recurso, não é possível saber se as crianças
estão realmente brincando, consequentemente, não se pode intervir para melhorar as
condições ou os elementos que promovam a continuidade da brincadeira. A
observação e a análise são importantes também para associar o conteúdo da
brincadeira a outras situações ou atividades a serem propostas.
Para o autor, uma situação de brincadeira na escola é muito diferente de uma
brincadeira de rua ou em casa. A brincadeira no contexto educativo acontece sob o
olhar de um profissional que distingue as situações. Para que a prática de observação
aconteça com naturalidade e a criança não se sinta observada e acuada pela presença
de adultos observadores é preciso que a brincadeira faça parte da proposta pedagógica
da escola.

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Aceitar a brincadeira é aceitar a lógica e os temas que as crianças trazem. Aí é
que entra a importância de se observar como e porque determinados temas são mais
freqüentes nas brincadeiras. O adulto intervém para enriquecer os temas, respeitando
a natureza lúdica da atividade. A organização do ambiente para a brincadeira é uma
das estratégias mais valiosas para enriquecer os temas. Criar um ambiente para a
brincadeira não significa ausência de regras, que lá se pode tudo. Regras que regulem
a utilização do ambiente devem ser criadas, o que pode incluir também o tipo de
brinquedos que trazem de casa. É muito importante observar que tipo de materiais as
crianças escolhem para brincar e como os usam para acrescentar novos materiais e
novas situações para ampliar e enriquecer o repertório. Muitas vezes a observação
não é suficiente, é preciso escutar as crianças e até entrevistá-las.
Brougère defende a brincadeira como um meio de comunicação, uma
atividade específica com finalidades próprias e não uma atividade qualquer da
criança. Bruner mostra como o jogo do bebê com a mãe é importante para o
aprendizado da comunicação. O mesmo acontece para as crianças maiores. São
muitos os ganhos que brincadeira proporciona à criança.
Enquanto atividade de segundo grau, a brincadeira implica um distanciamento
da realidade, portanto, uma análise da sua própria realidade. Brincar é um exercício
de distanciamento do primeiro grau para o segundo grau. Esse exercício permite ao
educador entender como a criança interpreta os vários aspectos de sua realidade e
suscitar temas que valorizem aspectos importantes para serem trabalhados com a
criança.
A brincadeira é um espaço de tomada de decisão. As crianças são pouco
preparadas para tomarem decisões, habilidade tão cara aos adultos. Por isso é
importante que a escola enfatize a aprendizagem de tomada de decisão através da
brincadeira e inclua esse tema na formação de seus profissionais.
A brincadeira é um espaço de experimentação, permite o desenvolvimento de
competências absolutamente importantes que não são contempladas pelo modelo
escolar tradicional.
A incerteza também define a brincadeira. Como conciliar o respeito à
brincadeira e os objetivos educativos propostos no contexto educacional? É preciso
aceitar a dimensão da probabilidade. Certamente existem objetivos mais focados na
aprendizagem de conteúdos que não serão atingidos pela brincadeira. Tornar a
brincadeira como meio de atingir esses objetivos seria um retrocesso.
Outros objetivos, considerados pelo autor como conteúdos de base, tais como
estabelecer relação com o outro; construir relação com o espaço ou realidade cultural;
favorecer a curiosidade e encorajar a experiência pessoal são competências que
antecedem o conteúdo mais específico de aprendizagem escolar e devem ser

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considerados na educação infantil. Se esta etapa da educação não se voltar para a
construção dessas bases, que outra instância o fará?
Em países que optaram por uma educação mais formal, as possibilidades de
brincadeira são mais restritas, em detrimento de aprendizagem de conteúdos
disciplinares. Em países que optaram por uma educação mais informal, os objetivos
mais gerais estão presentes, garantindo as competências de base. Percebe-se, portanto
que o lugar atribuído à brincadeira revela as funções e o sentido da educação infantil.
Em alguns casos busca-se conciliar brincadeira e atividades ligadas aos
conteúdos de aprendizagem de forma a tornar a brincadeira um meio para se
conseguir as aprendizagens almejadas. Para Brougère isso seria uma pedagogia do
engano porque se faz com que a criança sinta que está brincando quando na verdade
está-se oferecendo tarefas como brincadeira. O autor defende a distinção clara entre
os dois tipos de atividade, de forma que a criança saiba quando se trata de atividade
lúdica e quando o objetivo é outro.
Existem outras práticas em que o jogo e a brincadeira são praticamente
excluídos do planejamento e restringem-se à recreação livre, como uma prática
herdada do ensino tradicional.
A posição defendida por Brougère é diferente da oposição tudo ou nada. Para
ele a brincadeira é uma atividade particular que tem suas características próprias e
não a única atividade da prática educativa e deve ser pensada no conjunto de
possibilidades oferecidas às crianças. O importante é que haja sinergia entre a
brincadeira e as demais atividades.

Inserção da brincadeira em uma perspectiva educativa

Para o autor, a brincadeira deve ser alvo de intervenção pedagógica, o que é


paradoxal, pois, ao mesmo tempo em que deve respeitar totalmente a iniciativa e a
decisão da criança, impõe condições prévias.
O primeiro tipo de intervenção é indireto, e se dá através da organização do
espaço e do material, fundamental para garantir a iniciativa e autonomia da criança. O
material oferecido influencia a criança e suas brincadeiras e devido a isso o educador
deve escolher os materiais de acordo com a direção que quer que a atividade tome.
Num primeiro momento deve-se permitir à criança a exploração, no sentido de
descoberta e investigação, vivência fundamental para qualquer aprendizagem. É o
ponto em que a criança pergunta “o que o objeto pode fazer?” Num segundo
momento deve possibilitar a atividade lúdica propriamente dita, ponto em que a
criança pergunta “o que eu posso fazer com esse objeto?” Explorar e brincar é tentar
entender a significação e as funções daquele objeto. Isso supõe que a criança

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interprete os objetos que lhes são oferecidos. Brincar é um meio de inserção no
universo cultural. Através da brincadeira a criança explora, decodifica, interpreta e
constrói novas significações. Por exemplo, ao escolher uma boneca, a criança vai
interpretar minimamente aquele objeto, atribuir-lhe uma idade, sexo etc. Após isso
vai criar uma história no sentido de dar um sentido especial a esse objeto.
Os materiais são oportunidades de encontro da criança com a própria cultura.
A observação permite ver o que a criança constrói a partir dos elementos oferecidos.
Pela escolha dos materiais e brinquedos, percebe-se como se introduz a criança num
universo cultural. Assim, um importante aspecto da intervenção é a coerência no
conjunto de brinquedos, ou do material disponibilizado, pois é determinante na
direção da brincadeira. Assim, o contexto e a coerência são fundamentais para intervir
no rumo da brincadeira. Outro aspecto é a complementação dos diferentes acessórios
da brincadeira. O importante é levar a criança a construir um papel da forma mais
elaborada possível. Na composição, a complementação favorece que a criança
desenvolva diferentes facetas do mesmo papel e possa ir mais longe nas atividades
que essa combinação oferece.
O segundo tipo de intervenção é a direta, considerada mais delicada, difícil e
complexa. Trata-se de entrar na direção e sentido da brincadeira, sugerir uma ação às
crianças, propor um material que possa enriquecer a brincadeira e levar a criança ao
que Vigotski chamou de zona de desenvolvimento proximal.
Outra forma de intervenção que para o autor é pouco desenvolvida é a
complementaridade, ou intervenção complementar. Consiste em desenvolver
atividades paralelas à brincadeira de forma que o resultado dessas atividades
enriqueça as brincadeiras. Ao invés de agir diretamente como na intervenção direta,
propõem-se outras situações que por si próprias vão agir sobre a brincadeira. São
temas complementares que podem ser tratados no campo das artes plásticas, da leitura
de histórias ou das conversas com as crianças. Assim, a brincadeira deixa de ser
marginalizada porque desenvolve o mesmo tema que outras atividades e se mantém
como brincadeira.

O lugar da brincadeira na educação infantil

Apesar de teoricamente a brincadeira ser considerada como uma atividade


válida por si mesmo e importante para o desenvolvimento e aprendizagem da criança
isso não é evidente nas práticas educativas das instituições de educação infantil. O
valor atribuído ao ensino direto do professor e das atividades de aprendizagens
específicas ainda é muito maior do que o valor atribuído à brincadeira. A ideia de que
as tarefas e lições são mais importantes que as brincadeiras livres iniciadas pelas

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crianças e de que os jogos devem ser acompanhados de um conjunto de objetivos de
ensino de conteúdos específicos é altamente compartilhada por professores e pais.
Consequentemente, a brincadeira acaba ocupando um lugar marginal ou inferior em
relação ao conjunto de atividades oferecidas às crianças.
De acordo com Brougère, a brincadeira está presente nas instituições de
educação infantil sob três formas distintas: como lazer ou recreação, como um meio
de aprendizagem de conhecimentos específicos ou como uma atividade com um fim
em si mesma. Cada uma dessas formas tem suas origens localizadas na história e
expressam representações distintas de jogo ou brincadeira.
A brincadeira como lazer é a primeira inscrição do jogo no espaço educativo
segundo Brougère (1988a, p. 54). Sua origem remonta ao período anterior à
revolução romântica e se ancora fortemente na idéia de ‘relaxamento’ indispensável
ao esforço em geral, o esforço físico em Aristóteles e posteriormente Tomás de
Aquino, em seguida o esforço intelectual e também o escolar.
Por muito tempo a brincadeira estará limitada à recreação e ainda hoje essa
atividade está presa ao espaço do recreio, em nossas escolas, representada pela
“oposição entre o tempo de aula e o do jogo” (idem, ibdem). A oposição entre ensino
e recreio esconderia exatamente a oposição entre jogo e seriedade, segundo o autor.

A recreação seja qual for sua necessidade, diz respeito à futilidade, pelo menos no
que concerne a seu conteúdo. O educador justifica a interrupção do ensino sob forma
de recreação, estabelece interditos para evitar qualquer desvio contrário aos objetivos
da educação, mas deixa as crianças livres para determinar seu conteúdo considerado
como sem importância, desvalorizado de antemão por sua futilidade fundamental (p.
54).
Na educação infantil ela é possibilitada como uma atividade livre separada das
atividades de aprendizagem. Assim, acontece no momento do recreio ou intervalo
entre atividades estruturadas e dirigidas pelo professor. Nela, a brincadeira é tratada
como um meio de atender as necessidades físicas, emocionais e sociais das crianças,
Para esse tipo de brincadeira, os professores não oferecem muito apoio no sentido de
providenciar um ambiente lúdico para a brincadeira com materiais apropriados.
Muitas vezes este se encontra ausente, sendo delegada a outros agentes menos
qualificados (auxiliares, serviçais etc.) a tarefa de supervisionar a brincadeira das
crianças. Nessa forma, além do valor da brincadeira em si ser negligenciada,
perpetua-se a idéia de oposição entre o tempo de aula e a brincadeira.
A brincadeira como um meio pedagógico é a segunda inscrição do jogo no
espaço educativo. Para o autor, trata-se de “dar um lugar ao jogo para a educação das
crianças pequenas que aprendem a ler e a escrever de acordo, mas com modalidades
bem precisas”. Essa forma de jogo também é anterior ao romantismo e aparece como

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um suporte para seduzir a criança e que Erasmo, nos tempos modernos, já fazia
referência

Essa maneira doce de transmitir as informações às crianças fará com que se


assemelhem a um jogo e não a um trabalho, pois, nessa idade, é necessário enganá-
las com chamarizes sedutores, já que ainda não podem compreender todo o fruto,
todo o prestígio, todo o prazer que os estudos devem lhe proporcionar no futuro.
(ERASMO, apud BROUGÈRE, 1998 a, p. 55)

Esta forma de brincadeira também continua presente nas instituições de


educação infantil como um recurso pedagógico para aprendizagens específicas. Para
o autor, essa é a forma privilegiada presente nas escolas maternas francesas, onde a
brincadeira livre não conseguiu conquistar seu espaço. A presença do jogo educativa
volta-se menos a seduzir a criança como em Erasmo, e mais para “injetar o jogo com
seu valor educativo em uma atividade que continua a ser totalmente dominada pelo
adulto” (idem, p. 127).
Sob essa condição, o elemento prazeroso da brincadeira é negligenciado,
assim como a iniciativa e os interesses da criança do que fazer naquela situação ou
com aqueles materiais. Consequentemente, a brincadeira perde suas características,
pois é absorvida por uma atividade imposta e dirigida, que é o trabalho escolar. O
interesse não é pelo jogo ou brincadeira enquanto tal, pois não tem um valor
educativo ou pedagógico em si mesmo, mas pelo estudo que deve assumir o aspecto
do jogo para despertar o interesse da criança.
A terceira forma, como um fim em si mesmo, surge no romantismo e tem em
Froebel seu expoente principal. Sua proposta de jardim de infância, implementada na
década de 1840, coloca a brincadeira e os brinquedos específicos no centro.
Conforme atesta Brougère, não se pode atribuir importância maior à brincadeira do
que fez Froebel em A educação do homem, “o mais alto grau de desenvolvimento da
criança dessa idade” (apud Brougère, 1988a, p. 68).
Considerada pelos defensores da brincadeira livre como a forma ideal para ser
implementada nos programas de educação infantil, também está assegurada como um
direito universal de todas as crianças na Convenção dos Direitos da Criança.
Assim, as instituições oferecem amplos espaços (internos e externos) para a
brincadeira e a promovem diariamente, estimulando-a especialmente com a oferta de
amplo acervo de materiais, brinquedos e móveis para despertar diferentes tipos de
jogos. Os materiais e móveis são dispostos geralmente em áreas tais como blocos,
casa e fantasia, bonecas, artes, leitura, de forma a incentivar a interação de pequenos
grupos de crianças. É reconhecido que o contexto social da brincadeira é crucial para
o desenvolvimento global das crianças, que a interação entre pares é uma
oportunidade importante para a aprendizagem social e que a brincadeira é um espaço

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privilegiado para a expressão da cultura infantil. Além disso, os professores são
convencidos de seu importante papel para apoiar a brincadeira da criança e tornar as
crianças brincantes cada vez melhores.
Brincar é uma parte essencial das atividades infantis e vital para o
desenvolvimento humano. Para brincar as crianças precisam ser capazes de se
expressar e usar suas capacidades. Brincar contribui para a construção da identidade
da criança, para o exercício de suas capacidades e habilidades, promove a
aprendizagem e o desenvolvimento como um todo. Assim, deve ser parte essencial e
integrante do currículo da educação infantil. E é nesse sentido que a brincadeira tem
sido posta como um dos dois eixos norteadores da prática pedagógica, conforme
PARECER CNE/CEB Nº: 20/2009 Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Infantil aprovada em 11/11/2009, Art. 9°.

Referências

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Diretrizes


Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Parecer CEB 01/1999, aprovado em 11
de novembro de 2009.
BROUGERE, Gilles. Jogo e educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998a.
_____. A criança e a cultura lúdica. Rev. Fac. Educ., São Paulo, v. 24, n. 2, Julho
1998b. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
25551998000200007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 12 de junho 2012.
Entrevista com Gilles Brougère sobre o aprendizado do brincar. Revista Nova Escola.
2009 http://revistaescola.abril.com.br/crianca-e-adolescente/desenvolvimento-e-
aprendizagem/entrevista-gilles-brougere-sobre-aprendizado-brincar-jogo-educacao-
infantil-ludico-brincadeira-crianca-539230.shtml?page=1
CORREIA, Maysa S. A. A brincadeira na educação infantil: recurso didático ou fim
em si mesmo? Monografia (Graduação em Pedagogia) - Universidade Federal de
Alagoas, Maceió, 2009.
VILELA, Rayssa T. G.; MAYNART, Renata da C. O Lugar dos Jogos e da
brincadeira na Educação Infantil. 2008. 72 f. Monografia (Graduação em Pedagogia)
- Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2008.
RUBIN, K. H.; FEIN, G.C.; VANDENBERG, B. Play. In P.H. Mussen (Ed.),
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Greenwood Publishing Group, 2007, v. 3, p. 626-633.

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