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5/13/2019 Astrologia e Dogmatismo | Passa Palavra

Astrologia e Dogmatismo
A justaposição entre um individualismo extremado e uma ciência da
antiguidade parece apaziguar certas contradições contemporâneas.

16/02/2019

Por Lucas

A premissa básica da Astrologia é que a posição dos astros no momento exato


do nascimento de um indivíduo produz in uências sobre este indivíduo –
sejam relativas à sua personalidade ou ao seu destino. O sistema astrológico
ocidental conta com 12 valores – os signos do zodíaco, que representam
algumas agrupações de estrelas visíveis na Terra. Os astrólogos da antiguidade
escolheram estas 12 constelações pois são aquelas que no céu terráqueo
parecem estar alinhadas com o movimento solar no transcurso de 1 ano. Na
realidade, como sabemos, não é o sol que se move e sim a Terra, mas da nossa
perspectiva humana temos a impressão de que o sol se move contra o fundo de
um “cinturão” de constelações. A linha completa desenhada por esta

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impressão ótica se chama “eclíptica”, e na realidade atravessa 13 constelações


– somando-se O úco às 12 tradicionais. O que se conhece como “zodíaco” é
uma faixa estendida 8 graus para o norte e para o sul da eclíptica, que abarca
as constelações que conhecemos como signos zodíacos e contra as quais
parece estar projetado o sol a partir de nossa percepção humana do
movimento aparente do astro rei.

Os 12 valores astrológicos estão divididos em 4 elementos: água, terra, ar e


fogo, que foram a base das primeiras teorias losó cas pré-socráticas para
explicar a natureza, e que depois também foram adaptados para a medicina e
outros campos da ciência antiga grega, relacionados com os polos opostos
“úmido x seco” e “quente x frio”. Para a realização do mapa natal, onde se
rastreia a posição dos astros no momento em que o feto é expulsado pela
vagina da mãe, se leva em consideração outras duas posições além da projeção
solar no fundo zodíaco: a posição da lua na projeção do fundo zodíaco e
também a constelação que se encontrava ascendendo no horizonte terrestre
no momento do parto no lugar em que este ocorreu. A tudo isto se soma a
posição de planetas especí cos do sistema solar em relação a todas as
constelações e à lua.

Temos então um sistema com 12 valores, divididos em 4 elementos, que


formam combinações de 3 posições (signo solar, lunar e ascendente), às quais

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se soma a presença de alguns planetas de nosso sistema solar, para determinar


em alguma medida a vida do indivíduo humano.

Se vale a pena falar sobre astrologia hoje é somente


porque se trata de um discurso com uma
surpreendente frequência em conversas de
amigos/as e companheiros/as nos mais diversos
âmbitos. Se entendemos que em nosso continente e
em boa parte do mundo as religiões monoteístas se
estabeleceram com a força de poderosos impérios e posteriormente com o
doutrinamento exercido por diferentes órgãos de poder, o crescente interesse
por um esoterismo genérico e sem uma fonte determinada é chamativo e
merece nossa atenção. Não necessariamente para combatê-lo, mas para
entendê-lo, na mesma medida em que é importante compreender o por quê do
crescimento recente dos radicalismos monoteístas, particularmente do
evangelismo e do islamismo.

“Autoconhecimento” é talvez o que melhor traduz a oferta da astrologia, e


responde a uma visão de mundo muito mais autocentrado e menos
verticalizado do que aquelas oferecidas por diferentes tipos de igreja, com seus
pastores ou líderes espirituais. De fato, se algo caracteriza a astrologia popular
atual é a ausência de guras públicas que traduzam o misticismo em ordem
social, além de uma série descentralizada de fontes de conhecimento
legitimadas (sites de internet, livros vendidos em bancas, colunas de jornais,
“bruxos” e “bruxas” autointitulados, cursos de “formação”, etc). Isto é, um
misticismo dedicado não ao conhecimento de uma verdade do mundo, senão a
uma verdade de si, e que não implica a autoridade pessoal ou institucional
senão o de um “conhecimento antigo” genérico, difuso e com múltiplas
fontes.

Mas estamos diante de um conhecimento francamente dogmático, que não


questiona nem fundamenta suas próprias bases, que as aceita como verdades

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eternas, mesmo nas versões mais “relaxadas” que


a rmam que as in uências astrais são “ uidas” e
não determinantes, tentando dar uma margem de
inexatidão para a ciência astrológica e seus
elementos analíticos. Esta seria a crítica cientí ca à
astrologia, ou seja, a crítica herdeira da tradição moderna que propôs uma
revisão total do obscurantismo medieval e das verdades inquestionáveis
promovidas pela Igreja – os dogmas. O obscurantismo é uma posição
intelectual que nega a capacidade humana de buscar o conhecimento das
coisas e que propõe entender o mundo e a organização social a partir de um
conjunto de dogmas que não podem ser questionados devido ao fato da razão
humana não ser capaz de propôr outra forma de entendimento do mundo. O
homem foi emanado de Deus e, por isso, a mente humana não pode nunca
chegar a entender Deus (e suas leis, que as igrejas defendem hoje com espadas
e chumbo). Assim também, emanado da mística cósmica-astral, o homem (e a
mulher) não deveriam questionar o mistério dos astros, pois tudo isso é muito
mais do que podemos pensar racionalmente…

Mas a razão humana não se baseia somente no empirismo da ciência da “alta


modernidade”, nem somente nas matemáticas profundas da ciência moderna
madura (e muito menos da ciência como e ciência capitalista de nossos dias).
A crítica por meio da razão também toma corpo no pensamento social e na
desnaturalização das formas de vida hegemônicas. E procedendo desta forma
podemos pensar: se os astros in uenciam a vida dos indivíduos, o zeram
desde o princípio dos tempos humanos? Os astros in uenciavam a
personalidade dos primeiros  homo sapiens, diziam algo sobre os traços de
personalidade dos indivíduos das primeiras tribos ou organizações humanas?
Como se relacionam os diferentes tipos de calendários lunares e solares e as
diferentes formas de contabilizar o tempo desenvolvidas por diferentes
civilizações? Todas se reduzem verdadeiramente a uma única essência? O

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conceito mesmo de “personalidade” e “destino”, são aplicáveis a diferentes


momentos e lugares da história humana?

Como podemos ver, para além do questionamento


sobre forças e causalidades físicas, quando
enfrentamos a astrologia com a história ou com a
antropologia facilmente nos damos conta de que existem questões não
resolvidas. É que este conhecimento místico, isto é, que guarda um saber
oculto sobre o mundo que não responde aos termos da razão humana,
pressupõe uma noção de humanidade a-histórica. Pressupõe uma essência
humana desvinculada da história, não simplesmente ao ignorar a
multiplicidade de horóscopos – ou por sua homogenização em uma verdade
eclética – mas principalmente por universalizar os traços especí cos de nossa
sociedade, particularmente a ideia de personalidade, relacionando-a com os
astros eternos. Esta operação parece produzir um efeito muito buscado em
nossa época: ancorar nosso “eu” em uma força superior abstrata, organizada
de modo quase matemático. O dado aleatório, a data de nascimento, responde
pelo que somos por motivos supranaturais que podem ser lidos e conhecidos
por meio de sinais inscritos no mundo sensível e articulados por meio de
conjuntos de valores. Estamos determinados por outras coisas, somos o que
somos, está escrito nas estrelas – já não importa o que fazemos, pois tudo o
que fazemos é apenas a expressão de algo maior que não podemos modi car.

Não me parece uma simples coincidência que em


economia uma das teorias hegemônicas
atualmente se baseie em uma concepção a-
histórica de humanidade, que considera que os
indivíduos são movidos por uma força que
transcende e é mais forte do que a consciência: a
maximização utilitária do homo economicus. Pois bem, em uma época onde as
relações capitalistas avançam sobre os códigos sociais tradicionais,
acelerando, por exemplo, os relacionamentos sexo-afetivos, a rotatividade
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nos postos de trabalho, a mercantilização dos corpos, das imagens, a mistura


dos estilos de vida, dos costumes, etc, vemos também como os setores mais
conservadores têm juntado forças em porções muito grandes da população. A
relevância numérica destes setores era impensável em meados dos anos 90,
quando a globalização capitalista estava sendo conduzida quase sem oposição
pela classe gestorial transnacional. Esta condução trazia consigo a semente de
todas as posições da esquerda liberal atual: a defesa da igualdade de gênero e
raça (igualdade de oportunidades no mercado), a promoção de um sistema
multilateral de integração entre os países do mundo (mas onde os mais fortes
detinham poder de veto e os EUA a permissão para ignorar todos os acordos), o
desejo sincero por um mundo melhor e sem fome (que seria alcançado por
meio do trabalho dedicado dos especialistas).

A justaposição entre um individualismo extremado e uma ciência da


antiguidade parece apaziguar certas contradições contemporâneas. A herança
e a interpretação sobre uma suposta “cultura ocidental” está sendo disputada
com muita intensidade, e muitos/as de nós fomos surpreendidos/as pela força
com a qual a direita conservadora a nível mundial tem conseguido impor os
termos do debate. Se nos anos 90 alguns setores da esquerda que não havia
sido incorporada nos quadros gestoriais acusavam a “cultura ocidental” de
substituir todos os idiomas pelo inglês, de acabar com as formas de vida
tradicionais nos países do terceiro mundo, de envenenar os seres humanos por
meio de mentiras cientí cas, etc, vemos agora na segunda metade dos anos 10
que a direita conservadora tem acusado a “cultura globalista” de
cosmopolitismo (imigração, entidades internacionais, judeus), de acabar com
os costumes e a vida tradicional em países do primeiro mundo (feminismo,
dissidências sexuais, islamismo), de enganar os seres humanos por meio de
mentiras cientí cas (mudança climática,
terraplanismo, darwinismo, etc). O recurso a um
conhecimento não avaliado pelos critérios
cientí cos dominantes, no caso da astrologia, abre

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as portas para uma postura “antissistêmica”, sem que tenhamos que abrir
mão do individualismo a-histórico. Resulta disso que podemos acusar as
críticas à astrologia como uma reprodução da mentalidade dominante
(“cienti cismo”) nos mesmos termos nos quais um eleitor do Trump ou do
Bolsonaro podem acusar as críticas ao machismo como uma expressão da
mentalidade dominante – imposta e reproduzida pelas principais autoridades
internacionais do passado recente (Obama, Clintons, ONU), pelos professores
universitários e pela educação sexual (neo-marxismo pós-moderno, ideologia
de gênero) e pela imprensa corporativa (a conivência com os governos de
turno, a conspiração globalista de George Soros, os Illuminati, etc).

O consumo do misticismo em nossa sociedade pode trazer bem-estar para


muitos/as trabalhadores/as, que podem encontrar em certas práticas e rituais
bons momentos de relaxamento. Mas é uma arma de dois gumes, dado que a
esmagadora maioria destas práticas espirituais e religiosas está enquadrada
em uma busca por harmonia e equilíbrio que mascaram as contradições de
nossa sociedade. Basta visitar rapidamente a sessão de autoajuda de qualquer
livraria para constatar a facilidade e a naturalidade com a qual se vincula
espiritualidade individual com êxito na sociedade capitalista. A harmonia e o
equilíbrio têm sido intensamente associados ao produtivismo nos degraus
mais altos da sociedade como forma de evitar o stress de ambientes

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competitivos, e esta cultura individual tem sido copiada por muitos/as nos
degraus mais baixos, como costuma ocorrer nas sociedades de classe. Por
outro lado, vemos como a espiritualidade coletiva está levando a uma
organização cada vez mais numerosa e protofascista em diferentes lugares do
mundo. Os credos e nossa posição em relação ao fenômeno espiritual, não
merecem um pouco mais de nossa atenção e crítica?

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