Capacidades cognitivas de primatas não humanos sempre foram
colocadas sob o signo da suspeita, da dúvida e do menosprezo. A insistência em não reconhecê-las inclui-se na inglória tentativa de garantir apenas para humanos o privilégio da cultura. Colocada em silêncio pela ciência e pela filosofia, a animalidade foi reduzida à universalidade dos instintos, mesmo quando se voltava para a deci- fração do mundo misterioso de chimpanzés, gorilas e bonobos. O cinema incumbiu-se de levar para a tela macacos enfurecidos que exibiam um certo grau de bondade, como em King Kong, que controlavam os humanos, como em O planeta dos macacos, em suas várias versões, ou que amavam sutilmente lindas mulheres, como em Max meu amor. Empenhou-se também em reconhecer a inconsistência das frontei- ras criadas entre nós e eles, como em Montanha dos gorilas, inspirado na vida de Dian Fossey, pesquisadora que passou vinte anos estudan- do os gorilas até ser cruelmente assassinada por caçadores, ou em Instinto, filme em que um antropólogo, após ser aceito por um bando de gorilas e viver com eles, acaba preso e internado em um hospital psiquiátrico. A imaginação de diretores de cinema e escritores de ficção é sem- pre premonitória no que diz respeito às ilações deterministas e às certezas comprovadas e constitui tema controverso, que demanda dis- cussões mais aprofundadas. Pode-se, no entanto, afirmar que, duran- te a segunda metade do século XX, pesquisas científicas experimen- tais acabaram por comprovar que primatas transmitem conhecimen-
MARGEM, SÃO PAULO, No 15, P. 153-154, JUN. 2002
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tos, exibem emoções, controlam a vida em grupo, possuem signos
lingüísticos. Koko e Michael são dois gorilas; a primeira adora assistir o filme Free Willy, o segundo se deliciava com as cantorias de Luciano Pavarotti. Koko adora vermelho, Michael se deslumbrava com tonali- dades amarelas. Como uma adulta de 31 anos, preocupada com a silhueta, Koko come muito tofu, além das nozes, raízes e frutas de seu dia-a-dia. Já Michael deglutia seus alimentos com muita pasta de amen- doim. Koko adora gatos, Michael preferia cães. O vocabulário de am- bos possui cerca de mil palavras. A preferência de ambos pela pintura é um caso à parte. Seus quadros já foram exibidos em galerias de arte, são vendidos pela Internet, a renda revertida para a Fundação Gorilas, a Gorillas Foundation, uma das organizações incumbidas de lutar pela preserva- ção dos primatas em todo o planeta. Koko chegou com três anos ao Zoo de São Francisco. Sua mãe humana, a dra. Francine (Penny) Patterson, incumbe-se de observá-la em seus 31 anos de vida. Michael chegou depois, como um candidato para o casamento. Não deu certo. Torna- ram-se amigos, olhavam-se muito, brincavam demais. O pai de Michael, o dr. Ron Cohn, empenhou-se o que pôde para que o casório se efetivas- se. Michael faleceu em 2000, vitimado por problemas cardíacos. A escolha de algumas de suas telas para ilustrar esse número de MargeM Entre natureza e cultura fala por si só. Basta olhar alguns dos quadros selecionados, cujos títulos são, em sua maioria dados por eles, para sentir de perto o espectro da cultura, da represen- tação, do simbólico. Se, há algumas décadas, os loucos foram admitidos no circuito das artes oficiais, mesmo que restritos a andares superiores de bienais e salas especiais de exposições, Koko e Michael entram agora na gale- ria da vida, como legítimos representantes de um mundo que ainda nos reservará infinitas surpresas. Resta saber se a ciência será capaz de negociar com essas evidências e sepultar de vez a fronteira entre primatas e homens, reconhecendo que nossa identidade comum vai além da palma da mão. Caso haja interesse dos leitores, Koko acaba de lançar um CD nos Estados Unidos. É autora das letras das músicas e, como afirma o produtor do álbum, responsável pela escolha das melhores mixagens. O CD já se encontra à venda, custa 14 dólares e pode ser adquirido no website da fundação. Basta acessar http://www.koko.org.
Edgard de Assis Carvalho, professor do Departamento de Antropologia da PUC-