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DOSSIÊ: ENTRE NATUREZA E CULTURA 153

Koko e Michael, dois


artistas para o século XXI

EDGARD DE ASSIS CARVALHO

Capacidades cognitivas de primatas não humanos sempre foram


colocadas sob o signo da suspeita, da dúvida e do menosprezo. A
insistência em não reconhecê-las inclui-se na inglória tentativa de
garantir apenas para humanos o privilégio da cultura. Colocada em
silêncio pela ciência e pela filosofia, a animalidade foi reduzida à
universalidade dos instintos, mesmo quando se voltava para a deci-
fração do mundo misterioso de chimpanzés, gorilas e bonobos.
O cinema incumbiu-se de levar para a tela macacos enfurecidos
que exibiam um certo grau de bondade, como em King Kong, que
controlavam os humanos, como em O planeta dos macacos, em suas
várias versões, ou que amavam sutilmente lindas mulheres, como
em Max meu amor.
Empenhou-se também em reconhecer a inconsistência das frontei-
ras criadas entre nós e eles, como em Montanha dos gorilas, inspirado
na vida de Dian Fossey, pesquisadora que passou vinte anos estudan-
do os gorilas até ser cruelmente assassinada por caçadores, ou em
Instinto, filme em que um antropólogo, após ser aceito por um bando
de gorilas e viver com eles, acaba preso e internado em um hospital
psiquiátrico.
A imaginação de diretores de cinema e escritores de ficção é sem-
pre premonitória no que diz respeito às ilações deterministas e às
certezas comprovadas e constitui tema controverso, que demanda dis-
cussões mais aprofundadas. Pode-se, no entanto, afirmar que, duran-
te a segunda metade do século XX, pesquisas científicas experimen-
tais acabaram por comprovar que primatas transmitem conhecimen-

MARGEM, SÃO PAULO, No 15, P. 153-154, JUN. 2002


154 MARGEM No 15 – JUNHO DE 2002

tos, exibem emoções, controlam a vida em grupo, possuem signos


lingüísticos.
Koko e Michael são dois gorilas; a primeira adora assistir o filme
Free Willy, o segundo se deliciava com as cantorias de Luciano
Pavarotti. Koko adora vermelho, Michael se deslumbrava com tonali-
dades amarelas. Como uma adulta de 31 anos, preocupada com a
silhueta, Koko come muito tofu, além das nozes, raízes e frutas de seu
dia-a-dia. Já Michael deglutia seus alimentos com muita pasta de amen-
doim. Koko adora gatos, Michael preferia cães. O vocabulário de am-
bos possui cerca de mil palavras. A preferência de ambos pela pintura
é um caso à parte.
Seus quadros já foram exibidos em galerias de arte, são vendidos
pela Internet, a renda revertida para a Fundação Gorilas, a Gorilla’s
Foundation, uma das organizações incumbidas de lutar pela preserva-
ção dos primatas em todo o planeta. Koko chegou com três anos ao Zoo
de São Francisco. Sua mãe humana, a dra. Francine (Penny) Patterson,
incumbe-se de observá-la em seus 31 anos de vida. Michael chegou
depois, como um candidato para o casamento. Não deu certo. Torna-
ram-se amigos, olhavam-se muito, brincavam demais. O pai de Michael,
o dr. Ron Cohn, empenhou-se o que pôde para que o casório se efetivas-
se. Michael faleceu em 2000, vitimado por problemas cardíacos.
A escolha de algumas de suas telas para ilustrar esse número de
MargeM — Entre natureza e cultura — fala por si só. Basta olhar
alguns dos quadros selecionados, cujos títulos são, em sua maioria
dados por eles, para sentir de perto o espectro da cultura, da represen-
tação, do simbólico.
Se, há algumas décadas, os loucos foram admitidos no circuito
das artes oficiais, mesmo que restritos a andares superiores de bienais
e salas especiais de exposições, Koko e Michael entram agora na gale-
ria da vida, como legítimos representantes de um mundo que ainda
nos reservará infinitas surpresas. Resta saber se a ciência será capaz
de negociar com essas evidências e sepultar de vez a fronteira entre
primatas e homens, reconhecendo que nossa identidade comum vai
além da palma da mão.
Caso haja interesse dos leitores, Koko acaba de lançar um CD nos
Estados Unidos. É autora das letras das músicas e, como afirma o
produtor do álbum, responsável pela escolha das melhores mixagens.
O CD já se encontra à venda, custa 14 dólares e pode ser adquirido no
website da fundação. Basta acessar http://www.koko.org.

Edgard de Assis Carvalho, professor do Departamento de Antropologia da PUC-


SP. E-mail: edgardcarvalho@terra.com.br

MARGEM, SÃO PAULO, No 15, P. 153-154, JUN. 2002

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