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Considerações sobre o tratamento

das fraturas de fêmur com haste


intramedular de Küntscher *
1 2
RICARDO S. S. MORELLI , ALEXANDRE C.B. DE CASTRO ,
2 2
MARCELO C. DE ASSIS , MARCUS DA SILVA FERNANDES

RESUMO Este estudo baseia-se no tratamento de 19 pacientes


com fratura diafisária de fêmur utilizando-se a haste in-
Os autores avaliam 19 pacientes portadores de fratu-
tramedular de Küntscher, procurando comparar o méto-
ras diafisárias de fêmur, tratados através de osteossínte-
do a foco fechado com a redução aberta e fixação retró-
se com haste intramedular de Küntscher, comparando
grada.
casos operados a foco aberto e a foco fechado. Conside-
rações são feitas em relação ao tempo de consolidação,
arco de movimento do joelho, tempo e dificuldades en- PACIENTES E MÉTODOS
contradas no ato cirúrgico.
Foram estudados 19 pacientes portadores de fratu-
ras diafisárias fechadas do fêmur submetidos a osteossín-
SUMMARY
tese com haste intramedular de Küntscher e que possuíam
Considerations about the treatment of shaft fractures seguimento completo, clínico e radiológico, Quinze pacien-
of the femur with Küntscher Nail Pin tes eram do sexo masculino e quatro, do feminino. No-
The authors evaluated 19 patients with shaft fractu- ve fraturas eram do lado direito e 11, do esquerdo, ten-
res of the femur treated by means of osteosynthesis with do um paciente fratura bilateral. A idade variou entre
the Küntscher Nail Pin, comparing the operated cases 15 e 77 anos, com média de 46 anos. Quanto à causa,
by open and closed methods. They considered factors nove apresentaram fraturas por acidente automobilísti-
such as healing time, range of motion of the knee, dura- co, seis por acidente motociclístico, dois por queda e
tion, and problems during surgery. dois por atropelamento. Nove pacientes apresentaram
outras fraturas associadas: quatro da bacia, duas do sa-
INTRODUÇÃO cro, duas do rádio, uma do tornozelo, duas da tíbia,
duas do olécrano, uma do calcâneo e duas da rótula.
Com o aumento da incidência dos acidentes automo- Doze fraturas foram tratadas a foco aberto e oito,
bilísticos e industriais, são cada vez mais freqüentes as
a foco fechado.
fraturas envolvendo a diáfise do fêmur. A exigência de
O método aberto é realizado com o paciente em de-
uma função normal, consolidação anatômica, retorno
cúbito lateral, com coxim na região glútea, via de aces-
ás atividades normais no menor tempo possível tornam, so lateral à coxa, rebatendo-se o músculo vasto lateral,
via de regra, mais importante o atendimento precoce e e fresagem dos fragmentos. A haste é então introduzida
eficiente desses pacientes. primeiramente no fragmento proximal, saindo pela re-
gião glútea. Em seguida, reduz-se a fratura e reintro-
* Trab. realiz. no Serv. de Ortop. e Traumatol. do Hosp. Mário Gat-
duz-se a haste de proximal para distal.
ti e Hosp. Vera Cruz. No método fechado, o paciente é mantido na mesa
1. Assistente
. do Serviço. ortopédica em decúbito dorsal horizontal (DDH). Uma
-
2. Residente do 3º ano. incisão é feita ao nível do trocanter maior. Palpa-se a

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fóvea do trocanter, por onde se introduz o fio-guia com Foram utilizadas hastes que variavam desde 10mm
controle da fluoroscopia. Uma vez alcançada a redução, a 14mm de diâmetro por 38cm a 48cm de comprimento.
faz-se a fresagem do canal medular utilizando-se fresas Em relação ao tempo operatório, houve variação
flexíveis, introduzindo, então, a haste de proximal para de uma a quatro horas nos casos operados pela técnica
distal, sempre com o auxílio do fio-guia. aberta, sendo a média de 2h e 13 minutos. Já nos casos
Existem casos em que não é possível alcançar a redu- operados pela técnica fechada, a variação foi de 45 minu-
ção e uma pequena incisão é feita para reduzir a fratu- tos a duas horas, com média de 1h e 45 minutos.
ra, como ocorreu em três dos casos relatados. Tais casos O tempo necessário para se conseguir o arco de mo-
foram incluídos como pertencentes ao grupo tratado pe- vimento do joelho maior do que 120° variou nos casos
lo foco aberto. operados a foco fechado de dois meses e meio a sete
Inicialmente, as operaçãos a foco fechado eram rea- meses (média de 4,75 meses); nos casos operados a fo-
lizadas com o paciente em decúbito lateral, o que facilita- co aberto, variou de um mês e meio a sete meses (média
va o encontro do ponto de introdução da haste, porém de 4,25 meses). Dois pacientes submetidos a osteossínte-
dificultava os parâmetros de redução rotacional. se a foco aberto não conseguiram alcançar o arco de
As fraturas foram classificadas de acordo com Win- movimento de 120°.
(12)
quist & Hansen , como mostra a tabela 1. Em relação ao tempo de consolidação, encontrou-
Os critérios de avaliação do momento exato da con- se variação de um mês e meio (mín.) até seis meses
solidação foram clínicos e radiológicos. O critério clíni- (máx.), com média de 2,9 meses, nos casos operados a
co adotado foi a capacidade de apoio monopodial sem foco aberto, e de dois meses e meio (mín.) até seis meses
dor e o radiológico, a existência de trabéculas atravessan- (máx.), com média de três meses, nos casos operados a
do o foco de fratura em pelo menos uma das incidên- foco fechado.
cias.
O controle radiológico foi realizado no pós-operató-
COMPLICAÇÕES
rio (PO) imediato e mensalmente, até o quinto mês.
Para melhor avaliação dos resultados, adotaram-se As complicações encontradas foram:
(7)
os critérios utilizados por Leighton & col. em seu tra- • Um caso tratado pelo método aberto com infec-
balho (quadro 1). ção no segundo mês de PO. Foi necessária limpeza cirúr-
gica sem a retirada de haste, com antibioticoterapia sistên
RESULTADOS mica, evoluindo para a cura da infecção e consolidação
da fratura em seis meses.
Dos 19 casos relatados, 17 foram classificados co-
• Um caso de necrose parcial de vulva, que foi um
mo satisfatórios e dois como insatisfatórios, um por apre-
dos primeiros a ser tratado pelo método fechado, tendo
sentar encurtamento de 1,5cm e o outro pelo desvio an-
como causa a tração excessiva na mesa ortopédica duran-
gular em varo com 12°. Os dois casos foram tratados a
te a redução, com proteção inadequada do local.
foco aberto.

TABELA 1 QUADRO 1

Nº de Método Casos satisfatórios


Tipo de fratura
casos Aberto Fechado Ž Menos de 1 cm de encurtamento
Ž Menos do que 10° de deformidade angular ou rotacional
o

Fratura tipo I cominutiva 6 3 3 • Arco de movimento do joelho maior do que 120 na ausência
Fratura tipo II cominutiva 5 3 2 de fraturas associadas do joelho
Fratura tipo Ill cominutiva 2 2 –
Fratura proximal cominutiva 3 2 1 Casos insatisfatórios
Fratura segmentar oblíqua cominutiva 1 1 – • Mais de 1 cm de encurtamento
Fratura distal cominutiva 1 1 – • Mais do que 10° de deformidade angular ou rotacional
o
Fratura em espiral 1 1 – • Arco de movimento do joelho menor do que 120
Fratura proximal transversa 1 — 1 Ž Utilização de imobilização ou tração no PO

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRATAMENTO DAS FRATURAS DE FÊMUR COM HASTE INTRAMEDULAR DE KÜNTSCHER

Fig. 1 — Fratura cominutiva tipo III tratada pelo método de osteossín- Fig. 2 — Raios-X em AP e P mostrando encurtamento no foco de fra-
tese a foco aberto tura e migração proximal da haste após a queda do paciente

● Um caso de encurtamento de 1,5cm em um pacien- A osteossíntese com placa e parafusos necessita de


te com fratura cominutiva do tipo III, que, no primeiro maior agressão às partes moles, com maior desperiostiza-
mês de PO, sofreu queda apoiando o membro operado, ção do osso, aumentando-se o risco de infecção e inci-
retornando com queixa de dor e aumento de volume da dência de retarde de consolidação, com consequente fa-
(13)
coxa. Na radiografia, verificou-se acavalgamento do fo- diga do material de síntese . Tem sua maior indicação,
co de fratura e migração proximal da haste. Neste caso, porém, nas fraturas com comprometimento periarticu-
foi necessária a reintrodução da haste (figuras 1 e 2). lar.
● Um caso de desvio angular em varo de 12°, fratu-

ra em espiral, tratada pelo método aberto. A osteossíntese com haste intramedular permite o
realinhamento do osso, a rápida regeneração e união
DISCUSSÃO
da fratura e o uso funcional precoce do membro. A
Há diversos métodos de tratamento das fraturas dia- maior limitação para seu uso é sua inadequada fixação
(3,12)
fisárias de fêmur, com suas indicações, vantagens e des- nas fraturas cominuídas ou localizadas mais próxi-
(3)
vantagens . mas às metáfises. As hastes com parafusos bloqueantes,
O tratamento não-operatório (tração, gesso, tração todavia, ampliaram sua indicação (figuras 3 e 4), Sob o
+ gesso) tem como inconvenientes o prolongado tempo aspecto biomecânico, as hastes intramedulares, por esta-
de hospitalização e tratamento, a maior evidência de ri- rem localizadas centralmente, conseguem neutralizar,
gidez articular e consolidação viciosa, porém tem sua in- com maior facilidade, as forças nocivas que agem no fo-
(1,6)
dicação como alternativa em determinadas fraturas co- co fraturário , se comparadas às placas, pois estas úl-
(12)
minuídas . timas têm disposição excêntrica.
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Fig. 3 — Fratura segmentar oblíqua cominutiva tratada com osteossín- Fig. 4 — Raios-X em AP e P mostrando fratura segmentar oblíqua
tese a foco aberto consolidada. Neste caso, foi necessário o uso de parafusos para dimi-
nuir a instabilidade rotacional.
Em 1916, Hey Grovees introduziu o método de os-
teossíntese intramedular nas fraturas diafisárias de fê- Observamos que nem sempre é possível conseguir a
mur. Foi Küntscher, entretanto, quem, em 1940, o popu- redução pelo método fechado. Em três dos nossos casos,
larizou, já utilizando a redução e a passagem da haste houve a necessidade de pequena incisão, suficiente para
sem abrir o foco de fratura
(3-5,7,9,11,14)
introduzir o dedo e facilitar a redução durante a passa-
Com o aprimoramento dos aparelhos de fluorosco- gem do fio-guia. Esses casos foram considerados como
pia com intensificador de imagens, a técnica de fixação do grupo de redução aberta, ainda que alguns autores
a foco fechado tornou-se mais facilmente executável. os classifiquem como osteossíntese a foco fechado (8) .
(2) (5)
Alguns autores defendem a técnica fechada, pois leva- Kovacs & col. demonstraram que a incidência de
ria a menor tempo de consolidação da fratura, menor infecção no tratamento intramedular da fratura de fê-
índice de infeção, retorno funcional mais precoce e me- mur a foco aberto aumentava com o tempo de permanên-
nor tempo de internação. Existem, no entanto, divergên- cia hospitalar antes da cirurgia, com múltiplos traumas
cias a esse respeito. associados, com fraturas expostas e ainda mais quando
(7)
Em um trabalho comparativo, Leighton & col. dois destes fatores estavam associados.
observaram que a única vantagem entre os métodos era Alguns estudos demonstram a importância do hema-
(4)
cosmética, pela presença de menor cicatriz cirúrgica. toma fraturário no processo de regeneração óssea .
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CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRATAMENTO DAS FRATURAS DE FÊMUR COM HASTE INTRAMEDULAR DE KÜNTSCHER

Nos casos tratados com o método fechado, este hemato- CONCLUSÔES


ma é preservado, resultando em calo ósseo de melhor
Na literatura, existe controvérsia quanto à real van-
qualidade e em mais rápida consolidação, diminuindo o
tagem do método fechado sobre o aberto. Neste traba-
índice de retarde de consolidação e de pseudartrose.
lho, apesar do pouco número de casos e da variedade
Em nossa série, o tempo médio de consolidação das
em relação ao tipo de fratura e associação com outras
fraturas foi de três meses, o que está de acordo com
(11-13) fraturas, curva de aprendizagem do método, não encon-
Winquist .As mesmas dificuldades desse autor para
tramos grandes diferenças entre os dois métodos, embo-
determinar a época exata da consolidação da fratura,
ra existam potenciais vantagens no método fechado, co-
sob o aspecto radiológico, foram as aqui encontradas.
mo diminuição do tempo cirúrgico, menor sangramento
O tempo de consolidação não teve relação com o méto-
e menor incidência de complicações importantes.
do de tratamento aberto ou fechado e sim com a presen-
ça de outras fraturas associadas, infecção e grau de co-
REFERÊNCIAS
minuição. Em conseqüência do pequeno número de ca-
sos estudados, não foi possível uniformizar os dois gru- 1 . Allen, W.C., Plotrowski, G., Burstein, A.H. & Frankel, V.H.:
pos quanto a essas variáveis, para que se chegasse a uma Biomechanical principles of intramedullary fixation. Clin Orthop
60: 13-20, 1968.
conclusão estatística.
2 . Bohler, J.: Closed intramedullary nailing of the femur. Clin Or-
Há autores que afirmam ser o maior benefício do thop 60: 51-67, 1968.
(10)
método fechado a baixa incidência de infecção , po- 3 . Bucholz, R.W. & Jones, A.: Current concepts review. Fractures
(7)
rém Leighton & co1. , em seu trabalho, tiveram dois of the shaft of the femur. J Bone Joint Surg [Am] 73: 1561-1565,
1991.
casos de infecção tratados pelo método fechado, discor-
4 . Elias, N., Carvalho, J.G., Oliveira, L.P., Rocha, T.H.N., Melo,
dando que a incidência dessa complicação estaria relacio- M.A.G., Neves, D.M.S. & Mesquita, K.C.: Participação do hema-
nada com o método e que outros fatores (antibiótico pro- toma na consolidação da fratura. Estudo experimental comparati-
filático, tempo cirúrgico) teriam influências significa- vo entre fraturas abertas e fechadas da tíbia. Rev Bras Ortop 27:
529-533, 1992.
tivas.
(12) 5 . Kovacs, A.J., Richard, L.B. & Miller, J.: Infection complicating
A classificação de Winquist & Hansen foi aqui intramedullary nailing of the fractured femur. Clin Orthop 96:
escolhida pela sua simplicidade de avaliação do prognós- 266-270, 1973.
tico quanto ao encurtamento, desvios angulares e rotacio- 6 . Kuntscher, G.: The intramedullary nailing of fractures. Clin Or-
thop 60: 5-12, 1968.
nais e pelo seu uso potencial quanto à indicação da utili-
7 . Leighton, R.K., Waddell, J.P., Kellam, J.F. & Orrell, K.G.: Open
zação ou não de hastes com parafusos bloqueantes. versus closed intramedullary nailing of femoral shaft fractures. J
Os casos que apresentaram encurtamento e desvio Trauma 26: 923-926, 1986.
rotacional eram, respectivamente, cominutiva grau III e 8 . Rodrigues, A.C.M. & Ortiz, J.: Osteossíntese intramedular no fê-
fratura em espiral segundo Winquist. Para essas fraturas, mur a foco fechado sem intensificador. Rev Bras Ortop 23: 279-282,
1988.
a melhor indicação é o uso da haste associada a parafu-
9 . Rokkanen, P., Slatis, P. & Vankka, E.: Closed or open intrame-
sos bloqueantes. dullary nailing of femoral shaft fractures. A compression with con-
Quanto à mobilidade do joelho, dois casos apresen- servatively treated cases. J Bone Joint Surg [Br] 51: 313-323,
1969.
taram um arco de movimento menor que 120° após 12
10. Rothwell, A.G.: Closed Küntscher nailing for comminuted femo-
meses. Em um dos casos, o paciente apresentava fratu-
ral shaft fractures. J Bone Joint Surg [Br] 64: 12-16, 1991.
ra de patela ipsolateral e, em outro, fratura de tíbia ipso- 11. Winquist, R.A., Hansen Jr., S.T. & Clawson, D.K.: Closed intra-
lateral. Não foram observadas diferenças significativas medullary nailing of femoral fractures. A report of five hundred
em relação ao método de tratamento. A média para al- and twenty cases. J Bone Joint Surg [Am] 66: 529-539, 1984.
12. Winquist, R.A. & Hansen Jr., S.T.: Comminuted fractures of the
cançar o arco de movimento total do joelho foi de 3,7
femoral shaft treated by intramedullary nailing. Orthop Clin North
meses nos casos do método aberto e de 4,7 meses nos Am 11: 633-648, 1980.
casos de tratamento pelo método fechado. 13. Winquist,
. R.A. & Hansen Jr., S. T.: Segmental fractures of the fe-
Em nenhum dos casos estudados, houve a necessida- mur treated by closed intramedullary nailing. J Bone Joint Surg
[Am] 60:934-939, 1978.
de do uso de tração ou de aparelhos gessados no pós-
14. Zanasi, R., Rotolo, F., Romano, P., Galmarini, V. & Zanasi,
operatório e o tempo cirúrgico foi menor nos casos trata- L.: Intramedullary osteosynthesis. I. Küntscher nailing in the fe-
dos a foco fechado, concordando com a literatura. mur. Ital J Orthop Traumatol 16: 143-157, 1990.

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