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Coordenação da Coleção
Benedito Nunes

Consultoria Editorial
Ivan Fabiano Machado Brasil'-
Maria das Graças da Silva Pera ArnEsENTAÇÃO
' Produção Editorial
Ivan Fabiano Machado Brasile Lait Zuimero
É bom revisitar trechos do diálogo, quase um monólogo,
Capa
Lais Zumero entre Sócrates e Glauco quando tratam dos filósofos e da governança
Reprodução: Máscara de Platão das cidades, contidos no Livro VII, da República, de Platão:
Edição de texto
José dos Anjos Oliveira “.. que nem os ignorantes e desconhecedores da verdade, nem os
Editoração Eletrônica que permitimos passar toda a vida nos estudos podem ser bons
Maria Auxiliadora Prado, João Carlos Moraes, governantes: os primeiros, por carecerem de um ideal com que
Cristóvam Pantoja Lisboa
relacionem todos os seus atos, assim públicos como particulares; os
Revisão outros, por não se resolverem nunca a exercer essas atividades, visto já
José dos Anjos Oliveira, Lairson Costa,
Maria Josely AlmeidaM. Dias se imaginarem na ilha dos bem-aventurados...”

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ci Se encontrares para os que têm de ser dirigentes uma vida
(Biblioteca Central da UFPA, Belém-PA-Brasil) melhor do que o ofício de governar, conseguirás que a cidade seja bem
administrada, porque somente uma cidade nessas condições é que pode
Platão, 427-347 a.C.
ser comandada por cidadãos verdadeiramente ricos; não ricos em ouro,
A República / Platão; tradução de Carlos Alberto Nunes. — 3. ed. —
Belém: EDUFPA, 2000. sem. dúvida, mas no que devem ser ricos os bem-aventurados: em vida
virtuosa e sábia. Onde os famintos e mendigos se ocupam dos negócios
ISBN 85-247-0195-1 públicos em proveito próprio, com a esperança de fazer mão baixa” no
t ' -
que bonver de bom... Assim não é possível. Sempre que a conquista do
1. Filosofia antiga. 2, Platonismo. IL. Nunes, Carlos Alberto. IL. Título.
poder se transforma num prélio encarniçado, a guerra doméstica e
CDD 20. ed, - 184 intestina acarreta a destruição tanto dos dirigentes como da cidade...”
O copyright, 3º edição, 2000, Universidade Federal do Pará . Sendo assim, não devem ambicionar o mando os amigos do
1 edição, 1973/22 edição, 1988
bode para
à não terem de lutar com os seus concorrentes...”
Todos os direitos da tradução reservados à à Universidade Federal do Pará, havidos por
doação do Tradutor Carlos Alberto. Nunes. Proibida a reprodução total ou parcial,
“.. E não é certo, continuei, que, com relação à verdade, devemos
Os infratores serão processádos na fóima da lei.
também considerar estropiada a alma que odeia, de fato, a mentira
voluntária, sem a admitir em si própria nem conseguir dominar-se
DISTRIBUIÇÃO
quando se manifesta nos outros, mas tolera facilmente a involuntária,
Editora Universitária - EDUFPA/Livraria do Campus
Biblioteca Central da UFPA, Rua Augusto Corrêa, n. 1
e longe de mostrar-se indignada consigo mesma quando é apanhada
Campus Universitário - Guamá 66.075-110 — Belém-Pará-Brasil em alguma falsidade, aprax-se de chafurdar-se na ignorância, como
Telefax: (0xx91) 249-2700/211-1351 - Caixa Postal 8609
faz na lama o porco?...”
E-mail: edufpaQufpa.br
“. Porque o homem livre, lhe disse, não deve aprender nada como
escravo. Os trabalhos corpóreos podem ser impostos sem maior prejuígo
para o corpo, porém na alma não cala nenhum conhecimento adquirido à
força...”

» Por isso, meu caro, munca ensines nada às crianças por, meios
violentos, mas à guisa de bringuedo, é como melhor poderás observar as Prerácio
aptidões de cada um.

Cu E já não seria uma medida preventiva de grande relevância não


Com A República começa a 3º edição das Obras Completas de
deixá-los provar muito moços da Dialética?
Segundo creio, de maravilha poderá ter-te escapado como procedem Platão, publicadas pela primeira vez pela Universidade Federal do Pará
os adolescentes, quando pela primeira vez lhe sentem o gosto: usam-na à em treze volumes (Diálogos, 1973-1980), em tradução de Carlos Alberto
guisa de brinquedo, para rebater a indo e a todos, e imitando os que os Nunes e a seguir relacionadas, tão só para fins informativos. Com aspecto
confundem com sens argumentos, põem empenho, por sua vex, em confundir material e tipográfico renovado em relação à 2º edição (1988), esta 32
os ontros, comprazendo-se, à rancira de cachorrinhos em puxar e rasgar edição, desvinculada da Introdução (Marginália) que a acompanhavá,
os que deles se aproximam..." mas não de seu preliminar aparato crítico, e fazendo-se na otdem que
melhor consultar as conveniências da publicação, visa, sobretudo, à
Ainda que sejamos tentados a evitar a leitura da cidade justa,
correção e à boa apresentação dos textos.
habitada por cidadãos justos, face a distância que os tempos atuaís se
enconttam dela, é útil revisitá-la com um olhar detido e mais cuidadoso
em torno dos princípios,
O diálogo entre Sócrates e Glauco, na forma maiêutica de Benedito Nunes
apteender o mundo, continua presente e útil para toda a humanidade,
Belém, setembro, 2000
A reedição gtadual e completa da obra de Platão marca a
retomada, pela Editora da UFPA, da impressão dos clássicos, cujos '
manuscritos estão em seu poder.
“A coordenação dos trabalhos de edição feita pelo Prof. Benedito
Nunes é motivo de otgulho pata a instituição,

Cristovam Wanderley Picanço Diniz


. Reitor da Universidade Federal do Pará

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1º Epição DAS OBRAS COMPLETAS DE PLATÃO

A 1º edição completa dos Diálogos de Platão foi iniciada em


1973 e concluída em 1980, estruturada em 14 volumes, incorporados à
Coleção Amazônica, Série Farias Brito.

Marginália Platônica — volume introdutório à edição completa dos


Diálogos.
Volume 1-2 — Apologia de Sócrates — Critão — Menão — Hípias Maior
e outros.
Volume 3-4 — Protágoras — Góxgias — O Banquete — Fedão.
Volume 5 — Fedro — Cartas — O 1º Alcibfades.

Volume 6-7 — A República.


Volume 8— Parmênides — Filebo,
Volurne 9 — Teeteto — Crátilo.
Volume 10 — Sofista — Político — Apóctifos Duvidosos.
Volume 11 — Timeu — Crítias — O 2º Alcibfades — Hípias Menos.
Volume 12-13 — Leis e Epínomis.

REEDIÇÕES

“Volume 6-7 — A República, fac-similar


Volume 9.— Teeteto — Crátilo, fac-sismilar.
Volume 11 — Timeu — Crítias — O: 2º Alcibíades — Hlípias Menor.
,
Nora Prévia va 2º Enição

A partir do lançamento desta 22 edição dos Diálogos de Platão,


tradução direta do grego por Carlos Alberto Nunes, a Coleção
Amazônica (Série Farias Brito) será reeditada pela Universidade Federal
do Pará sob a forma de publicação avulsa.
Para melhor enquadrar o conjunto da obra de Platão, é
aconselhável a leitura de Marginália Platônica, de autoria do tradutor,
que serve como Introdução Geral aos Diálogos.

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ArresentTAÇÃO DA 1º Enição

À Universidade Federal do Pará, com o lançamento deste volume,


inicia a publicação, em sua Coleção Amazônica, na Série Farias Brito,
da obra completa de Platão, traduzida do grego pelo Dr. Carlos Alberto
Nunes.
Desejo enfatizar, como Reitor, que o privilégio dessa edição
somente tornou-se possível graças ao gesto nobre, desinteressado &
altruístico do eminente escritor e filósofo, Dr. Carlos Alberto Nunes,
que doou à Universidade Federal do Pará a tradução em língua
portuguesa do Corpus Platonicum, distribuído em quatorze volumes.
Fê-lo espontaneamente, hontando nossa Universidade pela
confiança nela depositada. Tornou-a destinatária de um trabalho
profícuo, erudito e de excelso valor, realizado no silêncio de seu gabinete
ao longo de sua labotiosa. existência. -
Inicia-se com esta publicação ttabalho inédito no Brasil e em
Portugal. Far-se-á, pela primeita vez, a publicação em língua portuguesa
da obra completa de Platão, circunstância —-como assinala Benedito
Nunes — suficiente para revelar a importância e o ineditismo do
empreendimento editorial da Universidade Federal do Pará.
A UFPA, ao dar o nome de Farias Brito à série destinada à
publicação de obras de filosofia e psicologia, dentro da Coleção
Amazônica, desejou homenagear a memória desse eminente professor
que ocupou, a pattir de 1903, logo após a criação da Faculdade de
Direito do Pará, a cadeira de Filosofia do Direito.
— O Dr Raymundo de Farias Brito nasceu em São Benedito, no
Ceará, e gtaduou-se em Direito, em 1884, em Recife.
Dedicou sua vida ao estudo da Filosofia e ao magistério, projetando
seu nome em todo o Brasil com excelentes obras filosóficas que publicou,
a partir de 1894, sob o título geral de Finalidade do Mundo.
No Pará viveu de 1902 a 1909, voltado para o ensino de Lógica,
! no então Liceu, e de Filosofia do Direito, na Faculdade de Direito..
Posteriormente, transferiu-se pata a cidade do Rio de Janeiro onde
teve oportunidade de concorter à cátedra de Filosofia e Lógica do
Colégio Pedro II, juntamente com Euclides da Cunha, que foi nomeado,
Com a moxte prematura deste, foi investido na cátedra e pontificou no
magistério até-ao fim de sua vida. Prerácio DA 1º Eição
“Além de outras obras, Farias Brito publicou estudos filosóficos
que consagraram seu nome: 4 Base Física do Espírito, Belém, 1912; 4
Verdade como Regra das Ações, Pará, 1905, e o Mundo Interior, Rio, 1914.
Este volume, que inaugura a série da Coleção Amazônica para
A Universidade Federal do Pará ao iniciar empreendimento de.
livros de Filosofia — a série Farias Brito —, precede imediatamente: ao
tão alta significação cultural — coerente com os propósitos que
início da publicação gradual da obra de Platão, traduzida do grego por
orientatam sua reestruturação e -diversificando sua atuação em todos os
Carlos Alberto Nunes. É um conjunto de quatorze estudos, o primeiro
campos do conhecimento humano — está persuadida de que passa a
colocar à disposição de alunos e professores obra fundamental ao estudo dos quais uma Introdução Geral, a Marginalia, a qual pretende servir
da Filosofia, situada entre nós, nesta época de obsedante preocupação de roteiro ao conhecimento de Platão e à leitura de seus Diálogos.
A tradução de Carlos Alberto Nunes, que ora apresentamos, tomou
tecnológica, em plano que se não coaduna com'a autêntica vocação da
intelectualidade brasileira. por base textos credenciados do otiginal grego, como as edições de
Burnett (Platonis: Opera, Oxford, 1892-1906), de Friderici Hermann
(Platonis Dialogi, Lipsia, Teubner, 1921-1936), de Hirschigii (Platonis
Belém, maio, 1973.
Opera, Fitmin Didot, 1891) e da Société de Belles Lettres (Paris, 1920
e sgs.). Além dos Diálogos propriamente ditos, estendeu-se às Cartas
do filósofo, abrangendo assim um total de trinta escritos, que fotam
Aloysio da Costa Chaves
distribuídos, os maiores isoladamente e os menores por gtupos de. até
Reitor
seis, em quatorze tomos. Essa distribuição acompanhou, em ptincípio,
a divisão cronológica da obra platônica, tradicionalmente admitida.
Ao primeiro: grupo, que é o dos diálogos soctáticos de juventude,
corresponde o Volume 1 (4pologia, Critão, Laguete, Cármides, Líside,
Eutifrone); ao segundo, relacionados com o período mediano, pertencem
os Volumes II e III (Protágoras Górgias, ão, Menão, Menéxeno, Extidemo),
e IV a VIII, nos quais encontramos, juntamente com as Cartas, os
Diálogos de maiot penetração, como O Banquete, Fedão, Fedro e A
República (este em volume duplo), e quatro outros, menos afortunados:
O Primeiro Alcibíades, O Segundo Alcibíades, Hípias Menor e Hiípias
Maior; o terceiro abarca Crátilo e Teeieto (Volume IX), e os-três pares
famosos — Parmênides e Filebo (Volume X), Sofista e Político (Volume
XD, Timen e Crítias (Volume XII) — que formam, com Leis imponente
- e solitário Diálogo, mais extenso que .4 República,e como este em tomo
duplo (XIII e XIV),.a última parte do legado de Platão. Esses quatorze
livros aparecerão periodicamente, mas numa ordem diferente de sua

DORMIR
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AD ENTE RIOR AS te Ame e PS TIME CEJCULCAINAAOS caes 4 ane enma anta ame sie sema, sure,
seriação numérica, que vatiará para atender a exigências ocasionais, de proveito imediato não mede, e que hão de resultar do processo de
interesse para a difusão dos livros. assimilação e de aprofundamento da.obra platônica.
Deixando de lado os apócrifos, apenas cinco Diálogos (Fliparco, Não nos cabe esboçar aqui a trajetória desta obra que é uma
Rivais, Teages, Ciitofão e Minos), de autenticidade duvidosa, a tradução das fontes essenciais da. tradição filosófica. Whitehead, a quem se..
de Carlos Alberto Nunes é, assim, pela sua máxima abrangência e pela deve, ao lado de Bertrand Russel, um dos sistemas de unificação e
sua envergadura sistemática, a primeira recomposição do Corpus formalização do pensamento lógico-matemático, foi autor de famosa
Platonicum em língua portuguesa. Basta essa circunstância para revelar sentença, verdadeiro aforismo registrado numa das páginas de seu
a importância do trabalho e o ineditismo do empreendimento editorial livro Process and Reality de que a tradição filosófica do Ocidente
que se propôs a difundi-lo. E maior ainda se torna o ineditismo, quando consiste num conjunto de achegas, de notas de pé de página, à obra
empreendimento de tal ordem, que assume a relevância de um fato de Platão. Ainda que isso não seja inteiramente verdadeiro, a.
cultural, é da iniciativa de uma Universidade do Extremo Norte, que esplêndida frase do filósofo e matemático inglês serve para realçar a .
prestará, com isso, preliminarmente, duas contribuições positivas ao magnitude da influência de Platão que, começando por atingir
ensino universitário. Aristóteles e as correntes do final da Antiguidade, estendeu-se às
, ”
A primeira contribuição que a Universidade do Pará dá à teologias hebraica e muçulmana, gerou o caudal do neoplatonismo,
Universidade brasileira, editando a obra de Platão em português, é pôr e continuou, depois de ter fornecidoà teologia cristã o arcabouço
à disposição de estudantes e professores, principalmente no campo das de sua estrutura conceptual, a inseminar a cultura moderna, mas já
ciências humanas, textos fundamentais ao ensino da filosofia, mas quando de há muito se tornara, desde antes do Renascimento,
indispensáveis, qualquer que seja o campo de estudo, à formação de extravasando os limites doutrinários das Escolas, uma tendência
uma cultura getal, hoje finalidade dos cursos básicos em nosso sistema penetrante da história das idéias políticas, jurídicas, motais e
“universitário. O segundo setviço, prestado especialmente aos cursos de econômicas.
filosofia, é não só fornecer-lhes um instrumento de trabalho, mas Assim, traçar a linha de percurso da obra platônica quando a
também suprir a falta, de que se ressentem as bibliografias brasileira e ação dessa obra se confunde com a fertilidade histórica do pensamento
portuguesa, da tradução de determinados Diálogos, agora vertidos pela que produziu, como fonte de uma tradição que, por sucessivas vezes e
primeita vez, juntamente com a totalidade das Cartas, pata o nosso em diferentes fases retomada, interpretada, aprofundada e assimilada,
idioma. Atendendo a essa finalidade foi que se decidiu editar, em deu nascimento à Ciência Política, à Estética e à Pedagogia, dentro da
ptimeiro lugar, do conjunto de quatorze tomos programados, o Volume ampla vertente metafísica. denominada pistonismo que ela formou, seria
IX, contendo o Teetsto e o Crátilo, entre nós acessíveis ao leitor comum nada mais nada menos do que reescrever alguns dos mais importantes
apenas em línguas estrangeiras, e que são, talvez, pelas questões capítulos da história do pensamento ocidental, e, ainda, coligir, do
«específicas de que tratam — a validade do conhecimento enquanto humanismo renascentista ao iluminismo, — passando pelas Meditationes
" episteme e à natureza da linguagem, respectivamente — aqueles que mais de Prima Philosophia de Descartes e pela Crítica da Razão Pura de
urgentemente requerem, em função da inequívoca atualidade desses Kant, — como do Romantismo ao Simbolismo, — passando pela Lógica
problemas, 'os estudiosos
da lingúística, da semiologia, do semanticismo, de Hegel, e entrando na época atual pelas Meditações Cartesianas de
do positivismo lógico, da filosofia analítica e do estruturalismo. Husserl, — os diferentes veios. dessa mesma vertente, desde aqueles que
Mas a decisiva contribuição do empreendimento da Universidade se podem distinguir nas correntes místicas medievais até aqueles que, a
Federal do Patá, e que é certamente a ptimeira na ordem de sua nós mais diretamente ligados, os Humanistas portugueses transferiram
relevância cultural, verifica-sé no plano mesmo da filosofia, onde se da leitura dos Diálogos nas primeiras edições renascentistas à lírica de
produzitão os efeitos mais lentos, porém mais penetrantes e duradouros Camões, 20s sonetos de Anthero de Quental e aos vetsos de Fernando
sobre toda a vida intelectual brasileira, efeitos que a simples bitola do Pessoa.
"O que interessa destacar nesta apresentação é uma outra espécie eminente de fundar, formar e atnalizar, que é o que se verifica através
de trajetória da obra platônica, que transcende, a cada momento e até da aproptiação e da restituição, numa outra língua, das potencialidades
hoje, o traçado de sua fertilidade. histórica, embora dependa dele. de todo um pensamento elaborado na língua original da filosofia. A
Referimo-nos à-ação fecundante da perspectiva reflexiva e crítica dos relevância e a eficácia cultutais da tradução do Corpus Platonicum por
Diálogos sobre a consciência individual, Desse ponto de vista, as fontes Carlos Alberto Nunes, trabalho de quase um decênio, enquadram-se nessa
essenciais que manam dos Diálogos são as fontes otiginárias, vivas e perspectiva. .
atualizáveis da tradição filosófica, que permitem, pela leitura contínua À empresa inédita da Universidade Federal do Pará ao editá-lo
e receptiva, numa retomada do ato de filosofar .que faz de cada leitor poderá permitir que, pata o pensamento brasileiro, chegue algum dia a
um interlocutor de Platão, o aprofundamento e a assimilação das hora de ampliar a verdade do que afirmou Whitehead, começando
possibilidades dialéticas do pensamento que lhe inspitam a obta, e que, também a fazer notas de pé de página a Platão.
guardadas no movimento de sua escrita dramática, reabrem-se pata os
que dela se aproximam e melhor a conhecem. À edição dos Diálogos,
pela Universidade Federal do Pará, destina-se fundamentalmente a . Belém, maio de 1973
incentivar semelhante espécie de leitura, que reencontra a fluência do
ato de filosofar, assumindo a inquietude intelectual do espítito crítico: Benedito Nunes
a inquietude que, segundo diria Karl Jaspers, torna as perguntas mais
essenciais que as respostas e as respostas meios de formular novas
perguntas, e da qual Farias Brito — pattono da série ora iniciada — foi,
em nosso meio, um solitário exemplo.
Não estaria completa esta apresentação se deixássemos de lembtar
que a ação fecundadora dos Diálogos acompanhou, desde o começo da
época moderna, com o início da recomposição do Corpus Platonicum
no século XV, os processos conjugados de sua tradução e de sua edição.
Traduziu-o pela primeira vez integralmente para o Latim e publicou-o,
de 1483 a 1484, Matsilio Fícino, membro da Academia Platônica de
Florença, precedendo à tradução de Henri Estienne, de 1578, aparecida
em Lyon, que se tornou modelo para as edições da obra platônica até
hoje, e à primeira impressão dos textos otiginais por Aldo Manucio, de
Veneza, em 1513. Contihuatam a ttaduzit os Diálogos, Schleiermachet
para. o alemão (1804-1810) e Victor Cousin pata o francês (1821-1840).
E até os nossos dias, quando a França dispõe de pelo menos duas
excelentes traduções (Les Belles Lettres, a partir de 1920, e da Pléiade,
por Léon Robin), a Itália de pelo menos três (a de Ferrari, de 1875;a de
Turolla, de 1954 e a editada por Bari-Latérza, entre 1921 e 1934, a cargo
de vários autores) e a Inglaterta, a de Joweet (1870), um dos monumentos
da língua e da literaturá inglesa, — para não falarmos das que a Alemanha
ganhou após a de Schleiermacher — traduzir Platão tem sido, como
feito de um só ou de vários, um cometimento poético no sentido

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SUMÁRIO

E Inrropução Benedito Nunes. 1


À ReprúBLICA
(ou: sOBRE A Justiça. GÊNERO PoLírico)

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“Começa com Platão algo inteiramente
novo...” — Nietzsche, A Filosofia na
época trágica dos gregos.

Desde a Antiguidade, o extraordinário prestígio de


A República sempre esteve associado ao fascínio de seu plano
do Estado justo — da Cidade ou politeia, regida pelo ideal
de Justiça — que ptroliferou, antes de chegar até nós pela via
generosa do humanismo renascentista, dos estóicos na época
helenística a Plotino na decadência do Império Romano.
Estudada no Renascimento como fonte-do pensamento moral
e político da Antiguidade clássica, A República tornou-se,
por obra dos humanistas, a venerável utopia, modelo da
Amaurotas, de Thomas Morus, e da Cidade do Sol, de
Campanella. No entanto, a sua vasta fortuna histórica correu
à conta de um fenômeno bem mais extensivo e profundo: o
pensamento mesmo de Platão, que trabalhou os alicerces
metafísicos da cultura Ocidental,
* Se A República pôde ser o horizonte moral e político
das utopias, foi porque aí se configurou a concepção do mundo
sob a qual o-pensamento de Platão conquistou identidade
5)
, histórica. No traçado arquitetônico do Estado soberanamente
|à justo, o inteiro perfil do platonismo se desenha. É o platonismo
i
a que responde pela extrema riqueza e pela complexa estrututa
a
j do grande diálogo em dez livros — apenas inferior em tamanho
CEMDAED DO

ao texto inacabado de Leis — em contraste com o at de


familiaridade que envolve não só alguns dos elementos mais
popularizados do Estado platônico (os casamentos coletivos
periódicos, a completa igualdade de direitos entre homens e
mulheres, a supressão do parentesco de sangue), integrantes
de um verdadeiro fabulário da cultura helênica, mas também
as idéias que, nele expostas pela primeita vez, como o
repertório clássico das formas de governo, a pedagogia e a
divisão tripartite das faculdades da alma, passaram a fazer parte
3
Introdução
2 : o . Benedito Nunes

do subsolo “arqueológico” das ciências humanas. reiterado da criação dos diálogos presta-testemunho, a concreção
Originariamente articulados em À República, tais conceitos, que verbal do pensamento especulativo. Os quatro períodos
se ramificaram na História das Idéias, constituem bens de taiz do biográficos em que se costuma agrupar esses diálogos (juventude,
patrimônio científico e filosófico. E tão compenetrados se transição, maturidade e última florescência)-constituem ao mesmo
encontram à terminologia corrente, que perdemos de vista a fonte tempo fases da criação de um pensamento e etapas da realização
histórica de que um dia jorraram — a mesma de onde emetgiram de um vida: de um pensamento que se fez obra e de uma obra
os esquemas ainda ativos, que fornecem ao nosso pensamento, que se fez vida.
como se lhe servissem de lastro interpretativo, um prévio A República apareceu em 375 ou 374 a.C. quando a
enquadramento gnoseológico e ontológico de referência à Academia tinha mais de dez anos de fundada e-Platão já era um
tealidade. quinquagenário. Apesat de pouco provável a hipótese de que ele.
Por mais que muito ousados ou muito severos, os aspectos divulgara uma versão prematura e abteviada desse diálogo, pot
salientes do plano político que Platão edificou — a plena existência volta de 390 a.C., data em que teria 37 anos de idade, é certo,
comunitária equilibrada e estável, o igualitarismo, a propriedade porém, que o Livro 1 de A República, colocado como escrito
coletiva, a produção dos bens ao nível das necessidades, a educação independente, sob o título de “Trasfmaco”, no grupo dos escritos
comum, seletiva e planejada, a pureza dos costumes, o governo “socráticos”, ao lado da Apologia, do Critão, do Laquete, do
dos mais sábios ou dos filósofos, devotados ao conhecimento é Liside, do Carmides e do Ião, foi muito cedo composto, ainda
ao exercício do podet — e que se incorporaram, por meio da na juventude do autor. Absorvida na unidade da obra, a
Filosofia moral do Renascimento, à estrutura típica das utopias discrepância cronológica de sua feitura indica-nos O demorado
modeínas, não esgotam a singularidade do diálogo. O que antes. trabalho de elaboração por que ela passou, atravessando, ao longo
de tudo singulariza-o é que nele Platão erigiu, pot intermédio de de duas décadas, entre a juventude, quando começou a ser
Sócrates,
na intimidade de uma conversa entre jovens amigos, concebida, e a maturidade, quando foi concluída, o período de
concomitantemente à Cidade ideal, as linhas mestras de sua transição, ou seja, a segunda fase dos diálogos, que vai do Górgias
ao Menão”. : o
concepção do mundo. O arcabouço do pensamento platônico,
que sustenta a construção política, ergueu-se por intermédio A República situa-se, portanto, já dentro do período da
dela. E ainda mais se destaca a relevância dessa construção, maturidade, ao qual pertencem o Fedro, além do Crátilo e do
por onde o platonismo veio a furo, em estreita relação com a Eutidemo; mas só apareceu no final dessa fase, depois do Fedão
sociedade da época e com a sua cultura eminentemente política, e de O Banquete, e antes da última florescência, que nos deu, a
começar do Parmênides, a série dos diálogos da velhice, que
ao considerarmos que ela foi soerguida numa obra de maturidade.
Ao escrever À República, Platão se encontrava no meio do finda com Leis. Assim, enquanto seu trabalho de elaboração uniu
caminho da vida — de uma vida sem outra expressão biográfica a juventude à maturidade, a criação definitiva de A República,
senão a da própria atividade intelectual que desenvolveu como no ponto limítrofe de duas fases, univ a matutidade à velhice do
chefe de uma escola — a Academia, fundada após a primeita viagem filósofo. Estamos diante deum escrito retrospectivo e prospectivo,
do filósofo à Sicília, em 387 a.C. — e como escritor excepcional e que encerrou tanto-de passado quanto de futuro: À República
tenaz.
dependeu dos diálogos que a precederam e prepatou o caminho:
Inventando uma forma dramática!, Platão foi, a despeito da aos da etapa seguinte. Desta sorte, pode-se dizer que ela “olha
desconfiança que votou à linguagem escrita, O primeiro filósofo
para trás e não somente na direção do Górgias; mas também na
escritor, isto é, O primeiro a perseguir, num esforço constante direção do Eutidemo é do Crátilo; do Fedão e de O Banquete.
gue se estendeu da juventude à extrema velhice, e do qual o ato Ela se inclina para o Fedro e está cheia de: pensamentos e de
4 . Benedito Nunes
Introdução

imagens, que vão amadurecer no Parmênides, no


Teeteto, no'
Sofista, no Filebo e no Timeu. É a obra central em enriquecida; e das guerras do Peloponeso no fim do século V
que se
opera a síntese do passado e do futuro desse pensa a.C., quando a crise culminou. Mas a fim de compreendermos a
mento
sempre mutável e sempre uno”, Cristalizando as principais importância dos ideais de reforma das instituições e da legislação,
linhas de pensamento que a precederam e que nela convet que serviram de diretriz à atividade intelectual de Platão, e
giram
A República, em que se apóiam e para a qual se particularmente à criação de À República, da qual foram o
voltam,
criticamente, os esctitos da última fase, enfeixatia elemento catalisador, precisaremos de evocar, pelo menos, os
no, seu corpo
doutrinário, síntese de passado e de futuro, a concepção platôn fundamentos políticos da cultufa grega.
ica
do mundo. É, pois, um ciclo da atividade criadora de Platão Política vem de politiké, relacionada com polites, o
que
se completou nesse diálogo. Daí a sua posição privilegiada habitante da Pólis (Cidade-Estado), aquele que possuía, na
como
texto.central, no conjunto das obras do filósofo. Mas conde condição de membro da Cidade, da politeia como espaço de
nsando
a experiência política que condicionou, desde à juventude, convivência delimitado pela autoridade das leis, o preliminar direito
o rumo
do pensamento, o magistério e a atividade de indaga de cidadania. Esse espaço formava o domínio público,
ção
especulativa de seu autor, A República não foi menos o centro sepatado do domínio da família —- o da oikia, da casa, da
da vida de Platão. e o propriedade e da produção, compreendendo a órbita das
Sabemos hoje pela: teveladora Carta Sétima, escrita por relações econômicas. O direito de cidadania. capacitava os
Platão aos 70 anos de idade, que essa experiência política indivíduos a participar direta ou indiretamente da atividade
nasceu
do malogro da intenção que ele firmara, ainda muito jovem, política, isto é, da própria vida da Pólis, na condição de
de
participar da vida pública, seguindo nisso o exemplo homens livres e iguais entre si (isonomia). Não havia Pólis
de ilustres
parentes e ancestrais. Membro de uma família da aristoc sem leis (nomoi) constitutivas, que detinham a força de uma
racia
ateniense, e até descendente de reis, conforme reza legend autoridade impessoal, contrária à autoridade: de um único
ária
tradição*, não era, contudo, excepcional o propósito que homem e colocada no centro (méson) da Cidade”. O poder
acalentou,
segundo confessa na mesma carta, de ingressar na polític excessivo, inclinado à desmesura, era o grande mal a evitar. À
a ão
logo se tornasse independente. No tipo de sociedade escravocrata ele se opunha a diké, a justiça, como função equilibradora
em que viveu, todos os moços que descendiam de cidadãos das forças opostas e dos interesses em conflito.
livres manifestavam igual pretensão para quando chegasse Consolidada entre os séculos VIII e VII a.C., a Pólis, que
a
maioridade. Não era, portanto, a matca de uma vocaçã sutgiu ao fim da época arcaica, após a supressão do poder
o
incomum o propósito do discípulo de Sócrates. Excepcional monárquico, do basileus, “é o marco social para a história da
era sim o momento que a sociedade grega atravessava, na onda “cultura helênica”é, Em seu espaço de convivência foi que atuou,
de uma crise agravada depois das Guetras Médicas. em maior ou menor escala, conforme a natureza da legislação de
As
circunstâncias que desviatam Platão da carreira de homem cada cidade, o poder da palavra dialógica, do discurso persuasivo
público foram as mesmas vicissitudes do período que exetcitado contraditoriamente por meio do debate”. Desconhecido
a
infletiram, após o episódio decisivo da morte de Sócrates. na no mundo Oriental, mais restrito em Esparta e mais amplo em .
direção da Filosofia, 'sublimando-a num ideal de reform Atenas, onde fundava a autoridade das leis que as Assembléias
a das
leis e das instituições:
de toda a Hélade. decidiam, era o exercício da palavra oral que melhor externava o
Não recapitularemos as mudanças estruturais da sociedade vínculo dos cidadãos livres e iguais com a Pólis — a mestra do
Brega, precursoras do esfacelamento da Cidade-Estado, que detam. homem, como a chamou o poeta Simonides de Céus — e a que
origem a tais vicissitudes à época do apogeu de uma Atenas todos deveriam servir. O domínio público representava a esfera
t qualificadora da ação individual — a esfeta de liberdade* —
aa da aah na a io ro
a eee poa o abdo RODA NAL CAM

Introdução
Benedito Nunes

quanto ligados à ordem. da roi


próximos do sabet mítico tanto jetesche
assegurando aos atos e palavras a sua permanência e conferindo socráticos; dos quais
que esse-saber projetou, OS pré-
Estado abe eraram a
ao homem o seu verdadeiro ethos: o seu catáter.e a forma de sua
pôde dizer que pensavam como chefes de Heráclito .e as e as
* humanidade. Não seria outro o sentido da vida pública que s de
e aí estão os fragmentos sibilino aa
Aristóteles captou no século IV a.C., ao definir o homem como s pata comprova. o
teofânicas dos versos de Parmênide nutriz do sistema e
zoon politikon: o ser da Pólis, capaz de palavra”, destinado a mesma font e da palavra mágico-teligiosa,
alcançar a eudaimonia, na medida em que age dentro da cidade eu aos poemas cog ôni co o
representações que se estend
e a favor dela. À relevância ética emprestada pela cultura grega à s épic as € às ragé ias. So nte no
cosmogônicos, às. narraçõe aicização, leisé
esso de
virtudes essencialmente políticas, como a justiça (dikaiosyne) e
século V a.€C., quando, no auge do proc ingressarara opa
a coragem (andreia), que garantitiam a liberdade e à igualdade ea isonomia, tam bém
a justiça, as virtudes se
dos cidadãos, veio do primado hegemônico do domínio público. nado pela aprecaç oca
do pensamento reflexivo condicio
Independentemente do elogio romântico da vida grega, pode-se o mito que à us ao
foi que se completou a ruptura com pe
afirmar, apesar do despotismo que a ascendência da cidade s) iniciata entre os p
(princípio) da Natureza (physi o mes mo oc
personalizada gerou!º, e apesar também do caráter restritivo igualmen te sob
milesianos. À linguagem recaiu enci a
da liberdade — liberdade só dos homens livres, daqueles que instrumenta! e conv
que permitiria descortinat Ocaráter la pra am gago
não eram escravos, e da qual, até o século V a.C., os artesãos,
das palavrasjá descartegadas da potência reve do
os comerciantes e os estrangeiros participaram dé forma ia, ea que se go 5
alcançam no mito e na, poes e Abe rtano
limitada — que a Pólis, onde se estabilizou um domínio público, ão de verdade!
primitivo da alétheia: a noç
distinto do domínio dos interesses pessoais e privados, e onde Sócr ates e de Platão, que a amb ma
século V — a época de
se desenvolveu a isonomia — a idéia de igualdade de direitos o da. otigem das próp
dos sofistas, — a discussão em torn
—, foi a sociedade “que pela primeira vez descobriu a essência as como produto dana
palavras, que podiam ser vist ,
e a esfera do político”!, : levaria a discu
(physei) ou da convenção (hescd o
Constituindo, pois, não uma atividade específica e restrita isma, à otigem das leis.
que reclamava Os títulos
como nas sociedades modernas, mas a forma da atividade
º Na mosfera conflitiva da crise, , o
propriamente humana, qualificadora da ação individual — o
de legitimidade .de novos e de velhos conceitos o i
princípio da vida ativa, da vita actuosa ou negotiosa de Santo a funç ão magi stet ial d a
contraditório da dialogação alcançou to de nquisis o
Agostinho — a política teria que ser, guindada a elemento ertida em obje
— a sua paideia ou educação — conv Plata e
essencial, em que tepousou o hotizonte dos valores morais e em que Sócrates e
crítica. Cena desse conflito con fro nto entr e
lugar de
espirituais da cultura, a preocupação congênita do pensamento
movimentaram, a Pólis foi então.o
grego. as desc ende ntes da palavra dia ógicas
sofística e à Filosofia. Amb
As mudanças culturais da Pólis, até o momento da crise que da vida -pública, a serviço
a ptimeira se colocou próxima
culminou no século V a.C., acompanharam a marcha de um que a segunda se distanciou
atividade política imediata, de a, ou seja, P
outra form
aproximando-se da vida pública sob
processo de laicização das instituições, ativo desde-o século VII,
e que canalizou não só para a Filosofia nascente como investigação ormá-la, o
totul
da Natureza, mas também para a Retórica, a História e o Direito, nou a política pela Filoso da,
incuio dedo de Platão, que abando atitude ado
o uso da palavra dialógica, oposto à palavra mágico-teligiosa", o de vista desse confronto, uma
é, do pont ieade
em torno da qual se articulou o saber mítico e divinatório dos deixa de prestar à esto
experiência de reformador, que com o deve ria: ser,
sábios gnômicos, figuras híbridas de legisladores e de poetas com concebê-la tal
tal como ela se tornara,a fim de
os quais se confundiram os primeiros. pré-socráticos, Ainda muito
“ Benedito Nunes Introdução

rução da
equivale a uma experiência da própria Filosofia, que transfere a partir da discussão do problema da Justiça, a const
essa conce pção do mund o se
possibilidade de ação ao empenho da construção de uma nova nova Pólis, por meio da qual
Pólis, em nome de uma outra política. Afastando-se da ágora, construiu.
dos pleitos dos tribunais e das disputas das assembléias, os filósofos A

afirmam a sua identidade à medida que se apartam dos sofistas. A II


estes caberia o uso da palavra persuasiva em função do poder
é
político; âqueles caberia fundar, afastados dá vida pública, um A cena inicial do diálogo, que precede essa construção,
no tom de
novo poder em função de um novo tipo de petsuasão, Por doméstica e tranquila: o debate sobre a Justiça começa
conseguinte, ao reformar a Cidade, ao substituir a Pólis real pela ngand o o prazer do encon tro acidental
uma conversa íntima, prolo
es e Céfalo , que há muito não se
ideal, Platão, que chegara à' Filosofia “pela política e pata a entre dois velhos amigos, Sócrat
política”!*, abriu o caminho de volta à política por meio da da velhic e, pergu ntand o ao
viam. Sócrates fala da experiência
Filosofia, como suport a à fase da vida
outro, homem de idade já provecta, da
te penosa . Céfalo discor
A demorada elaboração de A República, em que traçou que a maioria considera extremamen
trouxe ra paz e liberd ade.
esse caminho de retorno, formou, na verdade, um atco da opinião corrente, À velhice só lhe sua
biográfico tenso ligando dois períodos da vida do filósofo — a to, não é a
Indivíduo abastado, mas sem apego ao dinhei
conserva O
juventude e a maturidade — e dois aspectos inseparáveis de fortuna mas'o seu modo de vida simples que lhe
que mentiu ou
sua obra — a especulação teórica e o empenho prático — que bom ânimo. Não se dirá dele, quando morter,
lhes devia.
se alternaram, em Platão, de maneira constante, até o extremo que deixou de pagar aos deuses e aos homens o que
da velhice. É um atco que circunscreve a aventura siciliana do retrata a satisfação,
Em tudo e por tudo, a velhice de Céfalo
fundador da Academia, iniciada aos quarenta anos e terminada dos justos.
Vs
Sócrates
aos setenta, junto aos tiranos Dionísio 1, o velho, e Dionísio Depois de louvat as palavras que acabara de ouvir,
a valida de do conce ito
IH, o jovem, de Siracusa, que Platão tentou converter à
interroga o seu interlocutor sobre
rer. Da máxim a do
Filosofia, com o auxílio de Dião. Minuciosamente narrada na
tradicional de justiça que ele usara ao discor —
que lhe é devid o
poeta Simonides de Céus — dar a cada qual o
Carta Sétima, que lhe serviu de epitáfio, a aventura, de trágico
desfecho,a que Platão se abalançou em sua velhice, por ter equívo cas,
que está por trás dessa idéia, decorreriam implicações
acreditado que bastaria persuadir um único homem para ordenavam
porquanto os padrões da moralidade grega corrente
os. Tal como
que se devia fazer bem aos amigos e mal aos intmig
conctetizar a reforma da Cidade, mostta-nos o caráter da
experiência política que se condensou em A República. “Não diálogo, se retira,
propunha Céfalo, que, pondo fim ao exórdio do
cessarão os males para o gênero humano antes de alcançar o Polemarco,
para cumprir um sacrifício religioso, € tal como admite
poder a raça dos verdadeiros e autênticos filósofos ou de discus são, a justiça consis te em
o jovem substituto do pai na
começarem seriamente a filosofar, por algum favor divino, os Firma do o ponto de vista de
beneficiar uns e prejudicar outros. é
dirigentes das cidades”, sentenciou Platão em sua missiva!*, Polem arco conco rda -
que a justiça é uma virtude — com o que
repetindo literalmente a diretriz de A República. que Seja, à idéta
não podendo a virtude prejudicar quem quer
É por uma tal união da Filosofia com a política, que se o para o
tradicional é mais que uma idéia equívoca, descamband
entreabre nesse texto, onde tudo ainda apatece como um .
absurdo.
primeiro movimento de descoberta”, a mais larga via da tando
“Nessa altura, a discussão iniciada se interrompe. Execu
concepção platônica: do mundo. Uma leitura atual de nagem -ator , que desem penha
A República deverá tentar restituí-la, procutando recompor, a o duplo papel de narrador e de perso
misto,
x
do ptincípio ao fim de À República, elaborada no género
'
10
Benedito Nunes Introdução o

- . de nartativa dialogada ou de diál


ogo narrado, Sócrates detém-se emparelhadas a justiça, a sabedoria, a temperança, a
na figura do sofista Trasímaco. De
grande efeito retórico, a rápida coragem e a santidade", A própria sentença de Trasímaco —
descrição que Se segue prolonga
, como num sus jense a justiça como vantagem ou direito do mais forte — retoma o |
interferência de Trasímaco, port
ador de uma idéia nora até ali ponto de vista defendido por Cálicles, no Górgias", posterior
impedido de se manifestar, e que
atacará impetuosamente “à ao Protágoras, em que Sócrates sustenta, tal como faz aqui,
maneira de um animal de rapina”
(336 b). Em poucas linhas e que somente o justo pode ser feliz.
não pela primeira vez na obra de Plat
ão, retrata-se à figura tí ica O quadro conceptual da disputa parece, portanto, uma
do sofista, de cujo perfil moral e
intelectual tornado clássico continuação de anteriores confrontos, nunca decisórios, nos
sobressaem os Mesmos traços de arto
gância, de incontinência chamados diálogos aporéticos da fase soctática, entre as posições
verbal e de cupidez que já tinham
sido fixadas no Protágoras e irredutíveis da Filosofia e da sofística. Além disso, a conclusão
no Górgias. Depois de impertinente
s dilações, que anteçi am o mais explícita a que nesse momento se chega, de que de nenhum
irretorquível valor do que vai dizer, decl
ara finalmente Trasimae modo pode a justiça set prejudicial ao paciente ou desvantajosa
2 rogo dos circunstantes, a
idéia com que pretende sile ao agente, não excede ainda, como bem mostta o ângulo de
do cais nciar o
foto-... O ô justo
ersário: a renão éé maismai nem menos do que a abordagem da virtude, o plano da conduta do indivíduo, e portanto
Vantagem
da moral, no sentido estrito da palavra, muito embora, aqui e ali,
Sócrates aproveita as palavras de certos exemplos e argumentos deixem entrever o plano de natureza
Trasímaco: a justiça é
vantajosa, mas não somente para aque
les a quem o sofistachama política em que se reformulará a questão discutida. Só no Livro II,
de fortes — Os dominadores, aqueles
governantes que a todos depois de uma nova mostra da eficácia da retórica platônica — o
impõem a sua vontade OU Os seus inte
resses. E novamente recorte brilhante e longo intermezzo preenchido pelos discutsos
ão argumento já invocado na primeira
parte do debate, de ue a encadeados dos irmãos Glauco e Ádimanto — verificar-se-á, com
justiça, como virtude, não pode
set mais vantajosa a uos do que a a mudança de ângulo, no exame da Justiça, a passagem do plano
outros, e nem superior à injustiça,
seu oposto como vício. Mas moral ao plano político.
dessa polatidade da virtude e do vício
vale-se agora osofista ara Ao contrário do enquadramento cômico e grotesco que
reforçar a sua tese, mediante a troc
a de posição dos termos, marcou a intervenção de Trasímaco, o efeito das alocuções dos
injustiç
a, praticada à perfeição, tem os atri
seu oposto, a justiça, constitui vício butos da vittude, e o jovens Glauco e Adimanto, nesta segunda ttansição, é de uma alta
e fraqueza próprios dos e séria drasmaticidade. Glauco intima Sócrates a convencê-los, não
indivíduos urbanos e bonachões (349 pelo simples louvor de suas vantagens, de que a justiça é superior
b). Sócrates acompanha
a chasse croisée da argumenta
ção e, dançando conforme a à injustiça, O que ele deseja saber, tal a desotientação diante das |
música, conclui que, nesse caso, o
injusto pode. ser chamado opiniões como a que Trasímaco acabara de expo, e ainda diante
de bom e de inteligente (349 d). Ora, se
jamais se dirá de úm da atitude de menosprezo para com a justiça, não amada “como
indivíduo sábio ou bom que proced um bem mas apenas tolexada” (359 b), e que parece dar razão ao
e de maneira à conseguir
vantagens descabidas, prejudiciais a sofista, é “o que em si mesmo são os dois conceitos do justo e do
outrem, inuito menos se
afirmará isso do justo, que se ass
emelha ao primeiro pelo injusto” (358 b). Hesitatia quem pudesse, a salvo da lei e da
gênero de ações que pratica. censura, perpetrar os atos mais infamantes, desde que disso viesse
“Encaminha-se, pois, a questão para ?
um só problema, o a tirat imediatos benefícios? Os homens aspitam ao poder
da unidade das virtudes e de seu conc
eito respectivo, do qual ilimitado; cada qual gostaria de possuir o legendário anel do pastor
também se ocupara um diálogo da juve
ntude, o Protágoras Giges (359 d). No mesmo tom angustiado fala Adimanto.
do nome de um dos mais famosos sofistas, colocando Ensinaram-lhe que a reputação de justiça é o quanto basta para
12 Benedito Nunes Introdução 15

assegurar a estima dos concidadãos, e que a aparência da funções é regra fundamental nesse exercício de pensamento a
virtude é o meio seguro de conciliar o favor dos deuses. Se que Sócrates convidou os seus amigos, ninguém devendo fazer
assim se comportam e discortem os mais velhos, “que senão aquilo de que for capaz, a necessidade de defesa exigirá
impressão imaginamos possam deixar na alma dos jovens que desde logo o surgimento de um corpo de guardas. À justiça
os escutam?” (365 a). ão
ou a injustiça nascerão, nesse momento, conforme a educaç
* Acuado dessa forma pela inquietação dos jovens, que que se vier a dar aos defensores da Cidade. Eis o que explica
radicalizaram a questão, transformando a matéria do debate num o abandono do tema inicial em troca da exposição do programa
II
problema a ser urgentemente resolvido, restará a Sócrates, uma educativo à eles destinado, e que ocupa o restante do Livro
vida,
vez constatada a insuficiência dos padrões tradicionais e a e todo o Livro III. Trata-se, na verdade, de um regime de
inconsequência da posição sofística, propor, depois de um recuo a expor as
completado no Livro V, e do qual nos limitamos
tático, pata retomar forças, muito a gosto do velho mestre da linhas gerais.
ironia, uma solução radical, “O fato é que não sei como sair em A educação dos guardas visa à realização de um tipo
socorro da justiça, pois não me considero à altura de semelhante humano. É portanto uma paideja, intrinsecamente formadota.
missão” (368 b). Convida então os seus interlocutores pata que Firmada na Música e na Ginástica, conserva, de maneira
juntos repensem o assunto do princípio, isto é, que se vá buscá-lo depurada, o ideal do kalokagathos da antiga aristocracia
e
em seus começos originais. Eis por que, tentando sutpreender a guerreira: o homem valoroso € vigoroso, interior
justiça em estado nascente, o porta-voz de Platão propõe aos exteriormente equilibrado”,
citcunstantes que se exercitem a seguir “em pensamento a Em função desse duplo equilíbrio do corpo e da alma,'a
formação de uma Cidade” (369 a). Ginástica, moderadamente praticada, diferindo da preparação
| Daípor diante, Trasímaco não mais participará dos debates. atlética, inclui um tegime alimentar sóbrio e associa-se à Medicina?.
mesma
É no entanto ao sofista, excluído da cena do diálogo e da A Música, na acepção lata otiginária, rege-se pela
seletiva
construção da cidade, que se endeteçará a solução final do contenção e sobriedade, critério que se aplica, como norma
problema da justiça, exorbit antes da poesia e da arte em
de controle, contra os efeitos
seleção é drástica . Estende -se da
geral sobre os sentimentos. A
restrin gindo o uso dos
Música propriamente dita à poesia,
múltiplas) e
HI instrumentos à lira e à cítara (excluídos os de cordas
, as
excluindo o emprego de modos musicais de caráter patético
do das que inspita m
descrições de cenas desencorajantes — sobretu
— a express ão de
| A Cidade surge da carência dos indivíduos, “quando nenhum o temor da morte e o desapteço aos deuses
de nós se basta a si mesmo e necessita de muitas coisas” (369 b). as narrativas
lamentações e queixumes, atribuída a heróis ilustres,
m aq
Sua origem remonta, portanto, à de nossas próprias necessidades, não edificantes, as representações trágicas, que induze
ao
a-primeita das quais a de subsistência. De simples associação de domínio das paixões violentas, e as cômicas, favoráveis
indivíduos, a princípio ligados entre si pelos nexos de mútua desequilíbrio da conduta.
dependência, que derivam do trabalho e da satisfação das que os
Se o fim imediato da educação é fazer com
necessidades comuns, a Cidade se transforma em agrupamento uatdas se identifiquem com a sua função, para
que, à salvo
ões e
numeroso, territorialmente expansivo. Novas necessidades de desequilíbrios, possa a Cidade perdurat, essas restriç
aparecem: O entretenimento, o luxo, e a defesa do tertitório contra ê-los dos perigo s do
exclusões se destinam a proteg
os inimigos de fora, E como respeitar-se a especificidade das sujeito s à imitaç ão
comportamento imitativo. Estariam
Introdução . “Is
14 Benedito Nunes

(mímesis) caso fossem atores ou espectadores de tragédias e do indivíduo, de que partimos, e O político, da autoridade e do
comédias. À imitação dispersaria cada homem, dividindo-o e poder, a que chegamos. Mas já se pode perceber também uma
colocando-o em conflito consigo mesmo, até torná-lo, em vez outra questão fundamental silhuetada no problema da justiça — a
“de física e mentalmente saudável, inapto para dedicar-se da linguagem e do mito, da arte e da poesia. Com a formação dos
“exclusivamente à liberdade da Cidade” (395 c). A mimesis guardas, que começa quando essa última questão parece já estar
ou servirá à paideia ou será proscrita. À terem de imitar resolvida, começa também o processo do poder político, que
alguma coisa, os nobres guerreiros da República platônica, que legitima o exercício da autoridade e, patalelamente, o regime de
hão de combinar o espírito animoso ao amor do conhecimento, vida decorrente da imitação da virtude.
imitatão as virtudes desde a meninice. Em consequência, o “Inicialmente nenhum (guarda) deverá possuir nada a não
programa educacional que então se define estatui a disciplina ser O estritamente necessário” (417 c). O fim da atividade dos
da produção poética, segundo modelos previamente guerreiros exige que, resguatdados da dissipação hedonística, dos
estabelecidos, e prevê a expulsão honrosa do poeta que ousar “prazeres fáceis”, da ambição e da avareza, prejudiciais à
“transgredi-los. Ungida sua cabeça com mirra e adornada com constituição do indivíduo e da cidade, eles vivam “em comunidade
uma coroa de algodão, será posto “no rumo de qualquer outra como soldados em campanha” (416 c). Outrossim, seria infringir
cidade” (398 a). a regra da especificidade das funções, e contrariara isonomia dos
Mas a educação principia pela música, e a Música pressupõe cidadãos livres, igualados pelos mesmos direitos no desempenho
o uso do logos — da palavra e do discurso. O critério da pertinência da atividade para a qual foram educados, que homens € mulheres
moral, como norma seletiva da arte e da poesia, é apenas a recebessem tratamento desigual. A diferença de sexo só
conseguência de um princípio de maior alcance, assentado no ato aparentemente implica uma diferença de natureza, em nada
de fundação da nova Pólis, antes de começar “a história da prejudicando a execução dos misteres comuns, de que as mulheres,
educação dos nossos homens” (376 e), ainda no Livro II, e que educadas corno os homens, deverão patticipar.
respalda o processo de formação dos cidadãos desde o seu início: Veladamente anunciada no Livro IV, a comunidade sexual
a discriminação entre o verdadeiro (aléthês) e o mentiroso (pseudos) na — assunto delicado que Sócrates ousa abordat no Livto V, alegando,
ordem do discurso. Os discursos “podem ser de duas modalidades: após um prudente circúnlóquio, qué o faz somente para satisfazer
.
verdadeiros e mentirosos” (376 e). Ota, a história (mythos), a à cutiosidade de seus jovens alunos — restringe-se a casamentos
narração mítica, oferece a primeira via da Música, e portanto da coletivos, periodicamente celebrados, e completa à comunhão da
educação. A ação educativa germinal formadora começa pela ação existência-e a propriedade coletiva dos bens na República.
das narrações míticas — das histórias contadas às crianças, em geral Cuidando desde cedo dos rebentos das uniões mattimontais que
mentirosas, contendo potém algo verdadeiro (377 a). É o que autorizou, a Pólis, única mãe comum, poderá assegurar a
autoriza, desde logo — uma vez que a verdade deve ser tida seletividade e a continuidade da educação como meio de formação
dos
em alta consideração (389 b) —, a que se reveja a matéria dos do poder político. Esse poder repousa, de fato, na classe
mitos e que se exerça severa vigilância sobre os criadores de guardas, mas o seu exercício só seria confiado aos perfeitos (414 a),
fábulas (377 c). A diferença dos estilos ou modos de àqueles que, após-revelarem maiores aptidões intelectuais e morais
linguagem, a imitação (mimesis) e a narração (diegesis), feita na aprendizagem da Ginástica e da Música, chegassem ao, fim de
posteriormente (392 .d), complementa e reforça a primeita uma preparação especial, a filosófica, de que trata o Livro VI,
discriminação. prolongada até à maturidade. Estudariam primeiramente O Cálculo,
a Geometria, a Física e a Astronomia, aprendendo a valotizar cada
r

Distinguem-se nitidamente, a partir daqui, os dois planos


da discussão do problema da justiça: o moral, relativo à conduta às demais, e a ver em todas a
uma dessas disciplinas em relação
16 Benedito Nunes
Introdução 17
expressão parcial e incompleta de um mesmo saber superior
buscado por meio delas, a que acedem, já aos trinta anos, por como tegime político, que gera a sua própria fonte da autoridade,
intermédio do estudo da Dialética (537 d). Quem educaria'os primeiros supremos governantes, educadores
Mas não é senão gradualmente que conquistam esse saber, e legisladores da República, senão os próprios filósofos já atuando
ao qual ficarão para sempre ligados depois de o havetem por trás desse processo, que criatam e que os criaa seu tutno? O
conquistado. Pela primeira vez assim definida, como paideía dos ato fundador da Cidade, instaurando a pedagogia, é um ato de
dirigentes, e pela primeira vez organizada como conjunto de
autoridade que emana do conhecimento. Transformado o
disciplinas que formam um único caminho, a preparação filosófica conhecimento em poder, essa autoridade afirma-se pela primeira
prolongar-se-ia, de fato, para além da matutidade cronológica, vez, ao fundar-se a nova Pólis, com a discriminação dos discursos
durando a vida inteira e correspondendo a uma forma de vida verdadeiros e mentirosos. O princípio em que assenta o poder de
autônoma, isolada e ascética. São filósofos os dirigentes que controle — ou o controle do poder — sobre os criadores de fábulas,
adotam essa forma de-vida e de pefisamento. Mais do que um em nome da pertinência moral dos efeitos da poesia e da arte,
gtupo de elite, situados hierarquicamente acima dos auxiliares, deriva da espécie de conhecimento que a preparação filosófica
pois assim passariam a chamar-se os guardas ordinários (414 b), delimitou,
os governantes-filósofos ou filósofos-governantes constituem a Se o Estado assim concebido depende da continuidade da
primeira classe. do fiovo Estado. À custa da paideia filosófica, o educação, que assegura a imitação da virtude, tal continuidade
poder e o:conhecimento se uniriam numa forma perfeita de não dependerá menos do controle da mímesis pelos filósofos,
governo, denominada ota de aristocracia, tendo em vista a “pois em parte alguma as leis da música são alteradas sem que
classe que exerce-o poder, ora de realeza, considerado o concomitantemente se modifiquem as leis fundamentais da
caráter real do conhecimento, que investe, de cada vez, na comunidade...” (424 c). Os maiores riscos à estabilidade da
função de govetnar, aum dos membros dessa classe. Os República provêm desse domínio por onde “mais facilmente se
dirigentes da República, dirigidos pelo conhecimento que o insinua o desrespeito às leis” (424 d)?. º o
saber filosófico atingiu, comandatiam os auxiliarese os À questão da arte torna-se, desse modo, a questão política e
trabalhadores — artesãos, lavradores e comerciantes — membros filosófica fundamental, quer dizer, a questão que, politicamente
da terceira e última classe (415 a). resolvida, continua subjacente ao plano filosófico do diálogo,
Eis o fundamento da Pólis estável e virtuosa — da kallipolis, explicitado da parte final do Livro V ao Livro VII — com um
sábia, valente e temperante (427 e) — onde, integralmente realizada, antecedente isolado no Livro IV — e que passaremos a examinar
não para cada cidadão mas para o conjunto das três classes, a adiante, '
justiça se equipara à felicidade de todos (420 c). Nem rica nem
pobre, porém sóbria, frugal, harmônica e sadia, mantendo sob
rigoroso controle a produção de bens e mercadorias, deixada IV
ao encargo da: terceira eúltima classe, a Cidade, a salvo de
cxises, regulada pelo seu próprio equilíbrio interno, perduraria,
tempo afora, graças à força cogente de sua pedagogia e de O plano filosófico tem por fundo a distinção entre
suas leis. ciência (epistéme) e opinião (doxa), e se desenvolve
O processo pedagógico que acompanhamos fecha-se então diretamente ligado à paideia dos dirigentes, que culmina com
em círculo. Colocado no começo da formação da Cidade, efetiva-se a Dialética como forma do saber filosófico, depois das
como regime.de vida somente no fim, quando se completa Matemáticas e da Astronomia (522 e/528 d). O processo
educativo encadeia num só e único movimento o conteúdo das
Introdução 19
18 . Benedito Nunes

disciplinas ao saber que elas representam. É um saber que se perfaz excedentário, nem maior que o sol nem mais alto que o céu,
para além de uma aprendizagem comum e receptiva, à custa de mas de uma grandeza de outra ordem. Até ali, vítima da ilusão
uma dupla conversão, exemplarmente figurada na Alegoria da sob o império da qual os seus companheiros ainda
Caverna (514 a), e da qual depende o próprio sentido da Dialética. permanecem, o ex-pristoneiro toma consciência, ao passar de
Detenhamo-nos um pouco na aventura do prisioneiro, um lado para outro, que o seu livre trânsito, consequente à
habitante da caverna, que se libertou de suas correntes nativas, queda dos grilhões, equivale a uma mudança de estado. À rigor
passando da região obscura e subterrânea onde nasceu ao lado de o homem que se libertou não ganhou uma nova natureza;
outros companheiros, como ele acorrentados, para a região libertou-se da aparente e entrou na posse da verdadeira —
superior e luminosa da superfície da terra. “De início perceberia daquela mesma que era a sua própria sem que o soubesse e em que
mais facilmente as sombras, ao depois as imagens dos homens e deverá perseverar depois que o sabe. À reconquista da verdadeira
dos outros objetos refletidos na água, por último os objetos e no natureza humana à luz do verdadeiro conhecimento sintetiza a dupla:
rastro deleso que se encontra no céu e o próprio céu, porém conversão em seus dois aspectos intetligados, a paideía e a
sempre enxergando com mais facilidade durante a noite, à luz da alétheia. Luz que rege o jogo das imagens, predominantemente
lua ou das estrelas, do que de dia 20 sol com todo o seu fulgor” visuais, de sombra e de claridade, e as direções, passagens e
(516 b). Habituadoà escuridão desde que nasceu, o olhar ofuscado transições metafóricas da Alegoria da Caverna, a alétheia é, afinal,
pela luz, o trânsfuga sentir-se-á violentado pela claridade;a a próptia origem da analogia que, religando os dois termos dessa
ela terá de acostumat-se pouco a pouco até poder certificar- gtande símile — o visível e o invisível, o ato de ver com a vista e o
se, levantando a vista em pleno dia, de que tudo o que antes ato de ver com a alma— determina a diferença que separa a ciência
percebera nada mais fora do que o desfile das sombras da opinião, O visível está proporcionado ao sol, com o qual os
projetadas nas patedes da caverna por um lume aceso em sua olhos têm mais afinidade (508 b); o invisível, ao Bem, fonte da
parte extetior. luz, sob cujo foco se pode ver intelectualmente as coisas por meio
À situação imóvel e carcerária dos habitantes da caverna — das idéias que as iluminam. À visão intelectual das idéias
símbolo de nossa condição, como adverte Sócrates — resolve-se fundamenta o conhecimento verdadeiro, distinto do
desse modo, dramaticamente, com o livre movimento de um deles, conhecimento de opinião, preso ao baço clarão de imagens e
- seguindo a trajetória que o leva da escuridão à claridade. Mas essa reflexos, análogos aos produzidos pela fogueira exterior à
trajetória é uma translação de sentido, apoiada em metáforas caverna, e que oscila ao sabor da experiência sensível. Luz
cumulativas, como a de saída — do interior ao exterior — a de ' geral do inteligível, a verdade desvela, desoculta a natureza
ascensão — do inferior ao superior — a de passagem— do obscuro das coisas, e o faz segundo as idéias que as aclatam e
ao luminoso — e a de mudança — da imobilidade à mobilidade — conformam.
que perfazem um só trânsito, que vai do ilusório ao real, do De acordo com o significado do vesbo grego theorein
aparente ao verdadeiro. Nesse movimento metafórico reside (alcançar com a vista, manter a visão sobre algo, contemplar),
a dupla conversão de que falávamos, e que é a conversão do a teoria corresponde a um modo de apreensão intelectual,
homem quanto à sua natureza e do conhecimento quanto à apenas semelhante ao da percepção sensível, e dá-se quando
verdade, a alma “se fixa nalgum objeto iluminado pela verdade e pelo ser...”
Depois de uma primeira ruptura — a queda de suas cadeias (508 d). Contemplar é, como atitude constante e firme da alma,
- o homem conquistou, gradualmente, uma nova posição. Dela distanciada do imediato, ver de longe e de cima as próptias idéias
pode ver mais do que o sol no céu, para além da terra. Às coisas imutáveis que escapam à visão próximae rasa da expetiência
já se lhe afiguram coino outras tantas sombras de um lume sensível”.
Introdução 21
20 : Benedito Nunes -

conjectura (ekasia) e a crença (pistis), que correspondem ao


O conhecimento só é ciência quando é teórico, isto é,
quando sujeito à visão intelectual das idéias, e só é vetdadeiro petímetro das sombras e das coisas.
porque se realiza, em última instância, como a contemplação da
A paideíia dos governantes preenche as duas seções do
alma, que se converte ao ser, ao ontos on, àquilo que é. Assim
segundo segmento”, que correspondem, sucessivamente, na
como a contemplação é superior à visão comum e a realidade à ordem que vai das hipóteses aos conceitos puros, às duas espécies
aparência, assim também a ciência é superior à opinião. À doxa, diferenciadas do conhecimento inteligível, a do raciocínio
que se limita ao domínio do sensível sem chegar ao inteligível, (dianoia) e a da intuição intelectual (noesis), que consuma as
está aquém do ser, muito embora, a meio caminho da ignorância possibilidades da teoria como ciência ou epistéme, permitindo
| e do conhecimento (477 b), mais escuta que o conhecimento e discernir o objeto mais alto, o mais inteligível e o mais luminoso. À
simetria delineada entre os dois gêneros do conhecimento reveste-se
mais clara que a ignorância (478 c), não cateça de certa equívoca
realidade. Em tais condições, a doxa subordina-se à epistéme, do caráter de oposição; somente à segunda parte da linha, a do
que desemboca no que é verdadeiramente real. inteligível, que diz respeito ao imutável e ao ser, se pode conferir o
nome de verdadeiro conhecimento, ao conttário da primeira, a do
Mas a própria ciência não é um conhecimento uniforme.
Como o da opinião, a cujo âmbito, correspondente ao primeiro sensível, confinada ao mutável e ao devir (534 a). E é na extremidade
termo do símile da caverna, pertencem, com suas sombras e suas da segunda, em que passa à plena condição de teoria, que o
imagens, os objetos iluminados que a vista apreende, o conhecimento, adquirindo definitivamente o caráter de epistéme,
conhecimento fundamentado também se escalona conforme os integralmente se realiza?.
graus da próptia teoria, no rumo da puta visão intelectual das idéias. Por conseguinte, tanto mais verdadeiro é o conhecimento
À opinião e a ciência se articulam entre si como dois distintos quanto mais aumenta a sua altura contemplativa, quanto maís
domínios, o do visível e o do inteligível ou invisível. É o que nos refina o seu teor de intuição ou de visão intelectual, até chegar ao
mostra a figuração das porções simétricas de uma “linha cortada Bem, a “fonte primitiva do conhecimento e da verdade” (508 e),
em duas partes desiguais, cada segmento dividido na mesma que esplendendo sobre o inteligível, assim, como o sol aclata o
proporção” (509 e), numa relação horizontal, constante do Livro VI. sensível, encerta o máximo de realidade e constitui, por isso, o
O primeiro segmento representa o visível e o segundo o invisível. ser no sentido eminente da palavra.
A Alegoria da Caverna, no começo do Livro VII, ensina-nos a
As imagens e as sombras alinham-se na primeira seção e os
seres e as coisas perceptíveis na segunda do primeiro segmento. colocar a linha segmentada representativa dos graus de
Simetticamente, no segundo segmento, as hipóteses estão pata conhecimento do-Livro VI, em posição vertical — como o vetor
os conceitos assim como as sombras estão para as coisas no de uma trajetória dirigida pata o alto, “para a região inteligível”
primeiro. As hipóteses funcionam como postulados, à maneira (517 b), de quea culminância é o Bem. A formação do governante
de apoios, ainda ligados ao sensível, que facilitam a passagem se ultima nesse “limite extremo da região do cognoscível (517 b),
aos conceitos putos do inteligível, que nada mais figuram ou limite não alcançado por nenhuma das disciplinas,e tão só pela
imitam, Dialética à custa das hipóteses que tomou por base. As
A simetria das duas pattes da linha do conhecimento e a Matemáticas formam a escala inicial do raciocínio, nessa ascensão
divisão proporcional respectiva formam, pois, uma escala em que a alma realiza por sua própria natureza, e que tem o seu último
quatro graus. À divisória do meio coincide com o ponto em que termo na apreensão teorética, na contemplação das idéias. O
começa a aprendizagem do governante-filósofo, quer dizer, o conhecimento matemático é hipotético; a Dialética, firmada nas
movimento de convetsão ou a saída da caverna, à medida que ele hipóteses, mas utilizando exclusivamente a razão, é não hipotética.
começa a afastar-se da doxa, afastando-se de suas espécies, a Porque que.ela explicita aquilo que a alma vê por meio da razão,
22 Benedito Nunes Introdução 23

que é o seu órgão de conhecimento capaz de suportar a vista “da da reminiscência do Menão?, O caráter divino, eterno e imutável
parte mais brilhante do ser” (518 d), a Dialética, ciência superior, advém de.seu parentesco, de sua semelhança com as idéias a que
situada no topo das demais disciplinas, acha-se implícita, desde o tem acesso por via da contemplação. Tão imperecível quanto as
começo, ao movimento de conversão que rompeu com a idéias de que participa, como poderia a alma perecer depois da
experiência sensível. morte? O Fedro ligaria a existência das idéias à existência da alma
O posto elevado da Dialética em A República pressupõe, desta por um laço de origem, Quando a alma decai do-cortejo celeste
sorte, um anterior reconhecimento da superioridade do para a vida terrestre, interrompendo o seu eterno giro, esse nexo
racional — ou da racionalidade da alma — na obra de Platão, com a sua otigem superior conserva-se latente no. toco de suas
paralelamente à admissão das idéias como objeto de visão asas”, capaz de reemplumar-se sob o efeito do amor ao belo. À causa
intelectual. da dialética ascensional exposta em O Banquete ainda é a
soberania do racional que transforma o impulso etótico na paixão
y
do conhecimento?!, os :
São essas as linhas. de pensamento, já perfeitamente
definidas, que sustentam, em À República, ao mesmo tempo que
a natureza da Dialética, pela primeira vez tematizada nesse
A familiaridade dos interlocutores de A República com o escrito?2, os títulos de independência intelectual e de elevação
caráter próprio das idéias como objeto de visão intelectual é moral do filósofo, longamente avaliados no Livro VI. Amigo das
expressamente. mencionada pot Sócrates, que se limita, ao idéias?, o filósofo, tal como é retratado de corpo inteiro, recalca
abordar um assunto já tratado em muitas outras ocasiões, a a figura tradicional do mistagogo, do adivinho, do profeta e do
reavivar a memótia de seus companheiros (507 a). Essa poeta, e opõe-se definitivamente ao sofista, cuja imagem passa.a
referência vale por uma citação bibliográfica a, pelo menos, ser uma deformação ou caticatura da sua.
* quatro diálogos que precederam A República: Menão, Filósofos são aqueles que se comprazem na contemplação
Fedão, Fedro e O Banquete. da verdade (475 e), apreendendo o set eternamente imutável (484 b):
De fato, a teoria das idéias (tese da existência em si e por si o Bem (agathón), termo da ascensão dialéticae objetivo por
das idéias como realidades separadas das coisas de que são a causa excelência da teoria. Já não bastam as idéias do Fedão ou a idéia do
ou a razão necessária), que despontou na douttina do Menão Belo realçada n'O Banquete e no Fedro. Acima delas, A República
(o conhecimento como reconhecimento ou reminiscência), coloca o Bem, que é, como idéia das idéias, superior à própria
aparece desenvolvida no Fedão. Esse diálogo faz o elogio do justiça, e em função do qual, confirmando a soberania da tazão,
filósofo como o aprendiz da morte?. Pelo seu tipo ascético de a Dialética, instrumento legítimo do saber específico do
vida e pela dedicação ao pensamento — que não depende do corpo governante, se tematiza, À soberania da razão vincula-se a
e que será tanto mais puro quanto mais do corpo se desligar — o hierarquia das funções da alma, cuja divisão tripartite ocorre
filósofo se aproxima das idéias, e pode, assim, testemunhar a favor no Livro IV (436 b), e-sem a qual nem a justiça nem a felicidade
da imortalidade da alma, antes de comprová-la por meio do da maioria seriam possíveis. Tal como foi organizada
raciocínio. praticamente, antes que a questão da justiça fosse solucionada
Mais satisfatória do que as suas três provas de imortalidade?, teoricamente, a Cidade reproduz ou imita a natureza da alma
é a certeza da atividade racional soberana da alma — de seu caráter individual, determinada por três princípios: o racional, o
" divino — que o Fedão apresenta, seguindo a tradição órfica, e irascível e o concupiscente (439 a-e). A Pólis compreende,
- escudado na admissão de sua preexistência, já intrínseca à doutrina num regime de competências distintas, as mesmas funções
24 Benedito Nunes Introdução , 25

específicas — a sabedoria, a cotagem e a tempetança — que Pode-se concluir, desse modo, que a solução encontrada para
constituem as virtudes individuais (435 c). Às duas hierarquias, a o problema da justiça foi uma solução política. Não há porém, a
da Cidade e a da alma individual, ligam-se, termo a termo, por despeito disso, dada a paridade do indivíduo com a Pólis (434 e),
uma relação biunívoca. O racional comanda a segunda por meio superioridade do plano político sobre o plano moral do diálogo.
da phronesis — a sabedoria (441 e) — assim como os ditigentes O moral e o político situam-se no mesmo nível, espelhando a
comandam a primeira por meio da epistéme. natureza hierárquica da alma. Limitada em baixo por essa natureza,
Ao estabelecer a hierarquia da alma, Platão reformulava a que se prolonga na constituição ou forma de govetno, e no alto
concepção:pitagórica da psiqué como harmonia?, conservando-lhe pelo Bem, — o ser verdadeiro e real — a Pólis platônica, mantida
as imagens musicais e terapêuticas. Às três partes de que ela se pot meio da técnica superior de cultivo da alma em que implica a
compõe são, “à maneira dos três termos da escala musical: o mais paideía do governante, repousa na verdade eterna”. Em última
alto, o mais-baixo e o médio” (443 d), análogas às três classes, instância, o princípio de autoridade se fundamenta, por meio
acordantes e concordantes entre si na razão comum que mantém do conhecimento teórico, nessa verdade eterna — de que à
o acorde de suas atividades escalonadas. À posição específica da Dialética é a mais alta expressão — e que, transformada em
justiça, que permitirá determinar finalmente o seu conceito, eterna justiça, impõe ao governante tanto a obrigação de usat
buscado desde o início do diálogo, decorre dessa razão comum, a terapêutica do castigo quanto a do controle repressivo da
garantia do funcionamento harmônico da Pólis. produção poética,
“Diremos, portanto, Glauco, que um homem é justo do O domínio dessa eterna justiça, que rege a ordem do
mesmo modo que é justa a cidade” (441 d). Há justiça no indivíduo Universo e estende-se à ordem estável da Pólis, recebe a sua
quando cada uma das partes da alma desempenha a função que consagração apoteótica ao fim do Livro X: a cena escatológica do
lhe é própria, o princípio irascível servindo ao tacional e o tacional mito de Er, que narra o julgamento, o castigo pelas faltas cometidas
dominando o concupiscente, Da mesma maneira, a justiça existe — numa viagem subterrânea de mil anos — e a purificação da alma
eternamente, na Cidade, se as três classes guardam o nexo dos mortos — “exaustas e empoeiradas as que subiam da terra, e
ordenador que assegura o funcionamento harmonioso do conjunto limpas as que baixavam do céu” (614 e) — antes de escolherem
de que participam, não permitindo os governantes a quebra da perante as Moiras, no lugar onde o “fuso da necessidade” faz
especificidade de suas funções hierarquizadas, Além de dissonante, girar o orbe universal (616 e), as novas formas, de vida sob a
o procedimento injusto é um estado anômalo de insalubridade aparência das quais, cumprindo o-ciclo da reencarnação, deverão
(444 c), sanável por meio da terapêutica da tazão, Por isso mesmo, retornar à existência terrena. Por um lado semelhanteà diké do
interiormente equilibrado, o govetnante-filósofo dispensará à famoso fragmento de Anaximandro— que exige reparação” — por
cidade a atenção de um. clínico, e aplicará, confirmando o outro, a eterna justiça, que permite. readmitir, contra-a concepção
entendimento do Górgias”, a justiça como tetapia, que visa a tradicional debatida e tefutada no início da conversa de Sócrates,
tornar melhores aqueles a quem castiga. as vantagens permanentes-do que é justo, inconfundíveis com-as
Longe, pois, de uma simples virtude como a sabedoria, a vantagens transitórias do que é injusto. (613 -d-e), assume um
coragem e a temperança, a justiça é aquilo mesmo “que faz com sentido ético — transmitido à própria idéia de reencarnação — na
que a cidade participe da virtude” (432 b). Consequentemente, medida em que, no, sorteio das vidas, cada indivíduo escolhe
só há uma forma de virtude, a política, que se atém ao modelo do livremente. o seu destino. “Quem escolhe atca com a
Estado moralmente justo e saudável — modelo divino (501 e), responsabilidade” (617 e)...
porque extraído da contemplação do Bem que a paideía filosófica O suporte teórico do sentido ético dessa escolha é a
proporcionou ao governante. imortalidade da alma, categoticamente afirmada e respaldada pelo
26 Benedito Nunes Introdução 27

princípio de sua imperecibilidade, já invocada no Fedão, e que Já resolvido na prática, à semelhança do que sucedeu ao
agota se apresenta sob o invólucro discursivo de um novo problema da justiça; o destino da arte será finalmente decidido,
argumento. À alma não pode dissolver-se pela ação dos males do ponto de vista teórico, dentro dessa perspectiva, que se aplica
que atingem o corpo e que lhe são estranhos; ela permanece à mímesis, como um prévio quadro de referência qualificador
incólume, mas afetada moralmente pelos seus próprios males, que do real. Enquadra-se a imitação, como nexo da arte com a realidade
a tornam justiçável (611 a). — e não por acaso no início do mesmo Livro X, antes do mito de
Assim, foi consolidando a solução política dada ao problema Ex, que sanciona escatologicamente a organização da Cidade, —
da justiça que a idéia de imortalidade da alma, implantada por Platão sob a mesma relação entre as idéias e as coisas..
“no próprio coração da Filosofia”, consolidou-se em A República. Se as coisas naturais refletem os modelos eternos a que estão
Mas uma sementeira ainda mais fértil seria plantada nesse subsumidas — modelos que só da verdade dependem — à téchne,
diálogo, em que se ultimou a cristalização do pensamento a arte, consegue apenas, imitando aquilo que já é imitação,
platônico. Todas as partes essenciais da doutrina de Platão se produzir cópias de cópias. À mímesis aumentaria ainda mais a
acham aqui interligadas de maneira coerente. Claro está, em distância do supta-sensível ao sensível. Presa ao sensível, muito
que pese a aparência arquitetônica da doutrina, que não se abaixo do ser, que é, como idéia das idéias, o ente dos entes, e
trata da coerência de um sistema, tal como esta palavra viria a do conhecimento, sob a égide da verdade, ela se aproxima da
ser aplicada na época moderna. À coerência da construção doxa, e tende, como esta, ao não-ser. Mas por uma estranha
platônica, no plano filosófico de A República — a sua ordem reversão, o produto mimético reforça a aparência do ser pela
lógica como concepção do mundo — corresponde à congtuência simulação de realidade que introduz em tudo quanto alcança.
da construção da Pólis — a sua ordem axiológica, no plano moral Nem verdadeira do ponto de vista do set de que. se afasta,
e político do diálogo. . nem falsa do ponto de vista do não-ser a que se sobrepõe, a
Ao mesmo tempo em que fixava o saber filosófico no uso mimesis oscila do real para o irreal e do irreal para O real, criando.
exclusivo da razão, como mola do dinamismo ascensional da uma espécie diferente de ilusão — o simulacro, a mentira —
Dialética, foi nesse seu escrito de maturidade que Platão atribuiu irredutível às imagens dos sentidos e aos conceitos da razão!
sem hesitação às idéias o caráter de paradigmas, de formas Segundo o engenhoso paradigma dos três leitos (596 e), o artista
modelares (eidos), e às coisas, o de cópias ou de imagens (eikôn) e O poeta trápico estariam três graus abaixo do rei e da verdade —
dessas formas”, de que se distanciam como o menos real do mais do Bem e da alétheia. A discriminação da República à arte de
real — distância e separação entre o inferior e o superior, entre um imitar, “muito afastada da verdade, sendo que por isso mesmo dá
mundo sensível de inteligibilidade mínima e um mundo supra- a impressão de fazer tudo, por só atingir patte mínima de cada
sensível de inteligibilidade máxima. coisa, simples simulacro” (598 b), é uma derivação consequente
Às três linhas mestras provenientes dos diálogos anteriores do primado do Bem como ente supremo a que se elevou o saber
—a racionalidade dominante da alma, a Dialética e o mundo filosófico, ao construit-se na construção do Estado ideal.
supta-sensível das idéias — interligam-se em A República, O filósofoé amante da verdade. Sua função ética, acima da de um
formando a estrutura da concepção platônica do mundo, simples juiz: que faz cumprir a lei, é a de um terapeuta, de um
“condicionadas, porém, àperspectiva aberta pela verdade, e unidas pharmakeus”, que dáà lei, por ele próprio feita, a sua destinação de
à sua cortelata compreensão do ser como ente. À luz das idéias, veículo da virtude para o cultivo da alma. O ofício de censor perfeito,
sob o foco superior do agathón, do Bem, firma a distância entre decorrência de sua ação terapêutica, provém da mesma fonte, uma vez
os dois mundos que o movimento de conversão do filósofo que é a verdade por ele amada ou possuída que o autorizou a separar os
mantém. discursos verdadeiros dos discursos mentitosos, e a atribuir a essa
28 Benedito Nunes Introdução 29

discriminação, como partilha radical, o alcance de um princípio ou - Fitmou-se o platonismo, que responde pela identidade
fundamento (arché) da paideía, marcando o limiar da formação do histórica do pensamento de Platão, e cujo perfil metafísico
indivíduo e da Cidade. Mas já vimos que a preparação filosófica equivale A República revela, sobre a dominância do supra-sensível ou
a um movimento de conversão, de que a alétheia e a paideía são os da verdade como nexo do pensamento com o que é eterno e
aspectos fundamentais. O filósofo, que recalcou o vidente e o imutável. Vincando o destino da Filosofia, essa perspectiva
profeta, também recalcando dentro e fora de si mesmo o poeta, é metafísica projetou-se na cultura ocidental com a força
a figura de um novo mestre da verdade, de um novo terapeuta, a despercebida dos acontecimentos decisivos, historificantes:
que se concede, em lugar do sofista, o primeiro posto da República daqueles que marcham silentes com pés de pomba”, abrindo
platônica, ao pensamento o seu horizonte temporal de possibilidades
Significando uma mudança de rumo do pensamento, a interpretativas.
conversão do homem em filósofo — do prisioneiro da caverna em
homem liberado — estadeia a conversão mais profunda do sentido
da alétheia*, no âmago da cultura grega em crise, e que trouxe à VI
tona da concepção do mundo de Platão, por onde emergiu, a
compreensão do ser como ente.
Antes aplicadaà potência reveladora do mito e da poesia, Inseparável da concepção do mundo articulada em A República
a alétheia passava a significar, de conformidade com a e da perspectiva metafísica que acompanhou a irradiação do
compreensão do ser como ente, a evidência da idéia, a certeza platonismo, a construção da nova Pólis manteve estreitas
do pensamento não-contraditório — a orthotes”, a que se relações com o estado da cultura política da sociedade grega da
ajusta a natureza racional da alma. O filósofo e o objeto de época em que sutgiu,
sua atividade intelectual autônoma abrigam-se no âmbito da Forma perfeita de vida virtuosa ou de governo justo para o
evidência da idéia ou do domínio da razão já pertencente ao indivíduo e para a Cidade, a realeza ou aristocracia serviu, como
supra-sensível. paradigma, de pedra de toque no reconhecimento das condições
“Fora da caverna, a sofia é Filosofia”. Fora da caverna, o normais ou anormais — de saúde ou de doença— das organizações
saber é contemplação das idéias, conhecimento do supta-sensível, políticas existentes no momento. É um confronto praticado nos
conformado à interpretação do ser como ente e à verdade Livros VIII e IX — repositório clássico das cinco formas de
como orthotes. Fora da caverna, o saber converte-se governo— graças ao artifício do deslocamento cronológico, que
definitivamente em Filosofia, ao termo do processo de marca a estrutura dramática da obra, tecurso também empregado
conversão do qual a Dialética recebeu a sua direção em outros diálogos.
ascendente. Ao mesmo tempo em que o filósofo recebe o - À julgar-se pela ambiência festiva de seu intróito, e pela
estatuto de sua conduta, configura-se o regime intelectual da, segurança com que.o velho Céfalo colhe os frutos da prosperidade, a
Filosofia, misto de conhecimento e de atitude diante da vida, ação de À República recua ao período da paz de Nicias (421 a.C)”,
regido por um ideal de formação do homem ou paideía. Só quando já atingia o auge, dez anos após a morte de Péricles, o
então se preenche aquela sabedoria, de que a tradição pitagórica imperialismo de Atenas, causa das guerras do Peloponeso para
fizera muito antes um objeto de aspiração e de amor ou de filia. Tucídides, e quando a crise que se desencadeatia no fim do
É nesse sentido que a Filosofia começa efetivâmente em Platão, século V a.C. ainda lavrava a fogo lento, encoberta no prestígio '
e, começando nele, “adquire daí por diante o caráter daquilo que da riqueza e na força dos atenienses. À época fictícia da cena;
se chamará mais tarde de metafísica”. de fermentação, de trégua e não de paz, prenunciando os

CANINA Titta te pr mirra tado amador aro rs mr. mo


30 . Benedito Nunes Introdução 31

desastres que decidiram do destino político de Platão (a tirania que produzira, com a sua massa de indigentes à busca de
dos Trinta e a morte de Sócrates), contrasta com a fase da protetores, o fácil caminho da tirania. o
democracia restabelecida, durante a qual o diálogo foi -- Dir-se-á que a aventura siciliana comprometeu Platão
concebido e elaborado. O contraste entre esses dois momentos com a tirania. O governante-filósofo tomaria o lugar do tirano;
da vida de Atenas, não muito distantes um do outro, prepara antecipação do “déspota esclarecido”, seria ele afinal o bom
o efeito de confrontação crítica do modelo da realeza, de tirano depois de convertido à Filosofia. Fora mais justo afirmar
- âmbito geral, com o conjunto das instituições da Hélade. A a respeito, em vez da secreta aspitação à tirania dos
Pólis tal como deveria ser rebate-se sobre a imagem da Pólis dionysiokolakes, atribuída por Epicuro a Platão?, que o
tal qual ela se tornara. filósofo esperava abolir essa forma de governo pela conversão
Numa operação inversa àquela que guiou, do real para o do senhor da força e do poder. As formas de governo se
ideal — das condições empíricas decorrentes das necessidades sucederiam regulat e necessariamente na ordem em que são
comuns a satisfazer às condições racionais da existência política a estudadas, pot efeito de uma lei eterna”, Ultimo elo de uma
instaurar — passa-se, seguindo o caminho descendente que vai do cadeia causal, a tirania estava fadada a reabrir o ciclo,
ideal para o real, ao estudo das quatro formas imperfeitas, viciosas desembocando na realeza.
ou anômalas de governo: timocracia ou timarquia, oligarquia, Não se pode pôr em dúvida a repulsa de Platão ao tirano, À
democracia e tirania (444 e /545 a). sua linguagem atinge o grau máximo de ironia quando, depois de
Correspondentes a quatro estados de desequilíbrio, essas haver examinado o governo democrático, apresenta o tirânico, que
formas, que corroboram a validade do paradigma, estão para a condenará em seguida por essencialmente vicioso e injusto, como
vida política assim como os vícios para a virtude, na relação sendo o mais feliz (562 a). Atacado do mal da licantropia (565 e) — o
hierárquica das funções da alma!, determinantes do caráter homem transformado em lobo — o tirano é, como caráter, o homem
individual. Limite dessa teratologia, que respeita a paridade do do desejo desenfreado, estranho à sophrosyne. Esse desenfreio, soltas
indivíduo e da Pólis, o governo tirânico é o mais injusto, e o seu -as rédeas da razão, serve para conceituar, no Livro IX, a servidão ao
tipo ou caráter humano respectivo, em que a concupiscência desejo (573 a). À tirania se origina da violência dos: desejos
liberada atinge o desenfreio, o mais afastado da razão e da virtude, desencadeados. Escravo dos desejos, o perfeito titano, que escraviza
Muito embora severo, não é tão sombrio o retrato do homem a cidade, injusta e infeliz sob o seu arbítrio criminoso, e pata quem as
democrático, tipo fronteiriço, no qual a cupidez do oligarca se piores penas estão reservadas no Hades, nasce quando o indivíduo
investe, e que está a um passo da destmesura do titano. O que se se torna “ébrio, amoroso ou louco” (573 c)..
diz do caráter vale mutatis mutandis da espécie correlata de Ainda que dispostas como elos de uma cadeia causal, cuja
poder político. Mas o pleno alcance crítico desses perfis em duas tecortência pode ser considerada o efeito de uma lei eterna,
dimensões, de que sobressai o semblante turbulento e conflitivo necessariamente imposta pela transgressão do paradigma, as
da democracia (555 d), que dará origem ao poder do tirano (562 a), formas anômalas de governo são, antes de tudo, aqueles regimes
só se revela quando consideramos a experiência histórica concreta ' históricos da Grécia — a Timocracia de Esparta e de Creta (544 c), a
que neles se projetou. Oligarquia” ea Democracia, de Atenas, que se alternaram, por
Platão descreve uma democracia já decadente, no estado de toda parte, na Hélade, com períodos de tirania.
antagonismo das facções opostas em luta pela conquista do poder, Vista por semelhante ângulo, À República não informa
que mais tarde Aristóteles chamou de demagogia em sua Política”, menos sobre a situação real da Grécia do que outros projetos
A frente dessas facções se encontravam os discursadores, e por políticos precursores, que propugnaram, numa diteção oposta à
trás deles o conflito entre ricos e pobres, numa Atenas enriquecida, da aristocracia, por reformas radicais. Antes de Platão, Faleas de
32 , ' Benedito Nunes Introdução | 35

“Calcedônia e Hipódamo de Mileto, que não foram legisladores e Montesquieu — as leis da educação estão-de conformidade com as
nem participaram da administração dos negócios públicos, leis do poder”. .
também imaginaram formas ideais de organização política. Paleas Como analista, Platão também alcançou, num trecho do
estabeleceu o nivelamento econômico dos cidadãos num Estado Livro II, que merece releitura, o nexo do fenômeno político com
igualitário. Hipódamo, arquiteto da época de Péricles, a cultura, que Rousseau iria divisar novamente no século XVIII.
contemporâneo do sofista Górgias, antecipou o controle do Trata-se da passagem muito rápida, que focaliza a diferença
crescimento da população e a estrutura trinitária das classes da entre a cidade sadia e a cidade pletótica, e que faz parte do
República de Platão. No entanto, em lugar dos governarites- preâmbulo da formação da Pólis imaginária, antes que se inicie o
filósofos, eram os artesãos que encabeçavam a República do programa educativo, e onde se constata que as cidades se formam
urbanista e arquiteto grego; abaixo deles vinham os agricultores e “quando nenhum de nós se basta à si mesmo e necessita de muitas
em último lugar, os guerreiros. Não havendo governantes- coisas” (369 b).
filósofos, as leis seriam elaboradas pelo conjunto dos cidadãos, “Tal exórdio circunscreve uma possibilidade empítica — a
sem distinção de classe, “igualmente elegíveis e eleitores para todos satisfação das necessidades de cada qual e de todos — e nada tem
os cargos públicos”*”, As reformas de sentido econômico e de normativo. Pela satisfação das necessidades comuns, como
demográfico que compõem esses dois modelos, ambos diferindo princípio de organização política, chegatíamos à cidade sadia,
pela sua inspiração democrática do platônico — sobretudo o de descrita com traços de verdadeiro bucolismo (372 a-e). Entretanto,
Hipódamo, que reservou os primeiros lugares em sua República por força de outras necessidades, logo sutge a cidade pletórica,
âqueles que seriam os últimos na de Platão — visavam, contudo, com o lastro supérfluo “de caçadores e de imitadores”, “ou de
ao mesmo fim a que se destinou a terapia política do filósofo: fabricantes de artigos de toda espécie” (373 b), suscitando então,
manter, diante de novas realidades, tais como o ctescimento da e já findo o preâmbulo, pois que a ela se destina O corretivo
ptodução, o aumento das populações e a concentração da riqueza, do projeto político,o ato de formação imaginária da Pólis tal
que solapariam as bases da cultura antiga, os limites e o equilíbrio como deve ser. A diferença entre as duas cidades não é menos
interno da Pólis. | a transição de um estado social a outro, mais próximo o.
Nesse sentido pode-se falar da “modernidade” de Platão. ptimeiro e mais afastado o segundo da Natureza pela mediação
Pensador da crise, ele soube captat a latitude e a novidade desses da Cultura.
fenômenos e tentou corrigi-los*, Daí a preocupação, no seu A cidade sadia de Platão antecipa a sociedade nascente,
projeto político, que preservava, quanto à educação dos guardas, anterior à propriedade privada, sem desigualdade, para a qual
na parte da Música e da Ginástica, os fundamentos da paideía Rousseau se voltou. É a ela que ainda se vincula a forma da
tradicional, não só com o controle da natalidade obtido por meio aristocracia ou realeza, sem propriedade privada, e que o tardio e
dos casamentos periódicos —- mas igualmente com a disciplina da - minucioso rigotismo institucional de Leis manteve como o Es tado
produção, colocada ao nível das necessidades, e da. riqueza, de primeiro grau, em relação ao qual qualquer outra otganização
distribuída e contida pelo regime da propriedade coletiva. política seria provisória.
Mas o reformador foi também o arguto analista que O projeto de Platão também alcançou a “modernidade
descobriu aspectos essenciais do fenômeno político. Ao erigir o histórica” por esses aspectos de análise ou de intuição dos
seu modelo, o diagnóstico acompanha o prognóstico e o traço fenômenos. No entanto, justificada à guisa de um circunlóguio, a
essencial à prescrição normativa, como se vê a propósito do fim de que Sócrates pudesse responder à questão sobte a natureza
programa educativo que formulou. À pedagogia gatante a da justiça, e nascida como um ato de pensamento que é exercício
estabilidade da Pólis porque — redescobri-lo-ia mais tarde de imaginação, a construção da kallipolis consubstanciou-se num
Introdução , 35
34 Benedito Nunes

projeto político para a sociedade grega do século IV a.C, a ela Cidade, exercendo sem apego o poder pelo qual não aspirou; em
destinado tanto quanto os de Hipódamo e Faleas um século antes. nome e por causa de um bem maior que se situa, excedentárioà
Encarada na função que teve como projeto político, a República política, acima dos interesses deste mundo. É muito significativo,
platônica não foi uma utopia, palavra de origem grega, mas criada pois, que ao surgir a teoria ou ciência política, no âmbito da
no Renascimento, com o significado que tomou à época Metafísica, também tenha se manifestado a oscilação entre os pólos
moderna”, Modelo ideal, já portanto realizado no nível das da contemplação e da ação, do theorein e do prattein, que
catactetriza, historicamente, até os dias de hoje, a conduta
idéias, esse projeto possui a seu favor a verdade da essência,
A realização teórica do paradigma responde pela sua intelectual ambígua do filósofo, tentado pelo poder que rejeita.
exeguibilidade prática, indefinidamente suspensa até que O encontro da Filosofia com a política será desde então um
surgissem as circunstâncias favoráveis de concretizá-lo. O encontto polêmico e de resultados equívocos”
paradigma” seria falso se fosse inexeqiuível. E como pode ser Mas passaria por esse encontro da Filosofia com a política
falso o discurso sobre a Cidade vetdadeirar “Parece, portanto, — e desta vez equivale dizer da ciência política da Antiguidade
arremata Sócrates, que de tudo isso temos o direito de concluir com o sabet filosófico metafisicamente moldado — o eixo de tmaior
a respeito de nossa legislação que seria a melhor no caso de penetração do platonismo, que condicionou, em suas projeções
ser realizável, e que o plano, embora de execução difícil, não mais decisivas, a fortuna histórica de À República.
é inexequível” (502 c). Lida pelos humanistas do Renascimento, a obra converteu-se
O projeto da República é, portanto, ideal como objeto de no modelo: das utopias, para as quais se transferiu, juntamente
um juízo verdadeiro, muito embora sejam hipotéticas as condições com a-concepção da kallipolis, a compreensão do set e da verdade
de sua concretização efetiva. Assim, opera-se no diálogo a que a sustevé, Fora do espaço, as utopias nascem à margem do
transferência do conhecimento das idéias, da ciência ou epistéme tempo; são ucronias que participam da verdade eterna, de que
ao fundamento da legislação e do governo das cidades. A extraem o princípio de sua estabilidade.
contemplação do ser e da verdade transformava- -se em teoria ou A leitura política de A República no Renascimento tinha
ciência política. sido, potém, precedida pela leitura teológica de Platão. Na
à transformação da teoria puta numa teoria da Pólis, autora da sistematização doutrinária do cristianismo, ao
conduzindoà prática por intermédio da arte de governar nela encontto do mais cristão dos filósofos pagãos, a Patrística
inspitada, e que Platão abordou depois no Político”, assinala, traduziu a idéia de Deus do Velho Testamento pela idéia do
como parte complementar da trajetória do prisioneiro da caverna, Bem; o ens realissimum foi a versão latina de agathón“. A cidade
o retorno do filósofo, ao fim do processo de conversão, de Deus, intemporal e transistórica de Santo Agostinho,
interrompida a atividade contemplativa em que se detinha, para a ergueu-se nesse limite ontológico, onde antes se erguera o
óxbita dos negócios humanos. Como o prisioneiro liberado que, modelo divino da cidade imperecível dos filósofos. À luz
compadecidó da situação de seus antigos companheiros de dessas duas leituras, que explicitaram possibilidades
infortúnio, voltou ao convívio deles (519 d), a fim de convencê-los a interpretativas da compreensão metafísica inerente ao
se libertarem, assim também procede o filósofo-governante, platonismo, À República tevelaria pata a, modernidade as
movido pelo intuito de esclarecer e salvar os seus concidadãos. dimensões de um tratado teológico- políticos.
Assumida em condições de sacrifício, a nova atitude do pensador, Os esquemas onto-gnoseológicos da Filosofia moderna
ditada pela missão que se impôs, não poderá deixar de ser dúbia, incorporaram a distância do sensível em relação ao supra-sensível,
O princípio de sua autoridade funda-se no conhecimento que o que o Livro X reiterou, ao determinar, a partir do ente supremo,
manteria afastado do governo. E deverá atuar para o bem da numa espécie de anticlímax do diálogo, que precede a apoteose
36 , Benedito Nunes Introdução 37

da justiça, o alcance inferior das criações miméticas no Mas esse desvio pragmatista da mímesis, como um recurso
conjunto da realidade hierarquizada. O princípio aderido a essa do poder político — ato da má-fé a que se expõe a boa consciência
diferença — o da discriminação entre os discursos verdadeiros filosófica — já nos mostra que a República tira proveito de um
e os discursos mentirosos —, que vinha claramente à tona no outro podet mais otiginário com o qual transaciona: o poder da
momento da formação da Pólis, conservou-se, de Baumgarten poesia, da póiesis na acepção ampla de energeia da linguagem,
a Kant, e de Kant a Hegel, na posição de princípio subjacente até onde realmente se estendeu o alcance da vigilância sobre os
da Estética“. criadores de fábulas firmada no Livro II, pois é desse poder que
A Estética fez do belo, da poesia ou da obra de arte ora relevam as muitas criações e recriações míticas na obra de Platão,
uma forma de conciliação ou de aproximação, ora um meio de que integram organicamente, sem falar das metáforas e imagens“,
superação da distância gnoseológica, que é também distância a doutrina do filósofo, eque, aderidas 20 platonismo, difunditam-se
ontológica, entre o conhecimento do sensível e o conhecimento juntamente com ele. Basta-nos mencionar, a propósito, o mito de
do inteligível. Tentou abrandar o impétio da razão, consegiiente Er, já citado. As paragens descotrtinadas pelo varão armênio, que.
ao domínio da alétheia como verdade objetiva, domínio que deu voltou do outro mundo, projetatam-se na topografia do universo
à partilha entre os discursos verdadeiros e os discursos mentirosos da Divina Comédia de Dante”, depois de retraduzidas pelo
o sentido de uma ordem hierárquica institucionalizada, em que a Sonho de Cipião de Cícero, não sem terem deixado de contribuir
separação do sensível e do supra-sensível se estabilizou. Mas não para a concepção do aparato judiciário-penal do inferno da
tocou na solução platônica à velha pendência da Filosofia com a teologia cristã”?,
Poesia (607 a-d) — de Sócrates contra Homero — que veio a Recalcado pela disciplina da razão, o poder da póiesis se
transformar-se, sob a disciplina da razão, num conflito irtedento infiltra nos alicerces da República e na estrutura do próprio
da própria cultura ocidental. Confinando-o a rubricas específicas diálogo. O jogo da imaginaçãoe da linguagem sobe até o alto
- “a questão do Belo” ou “a questão da arte” — que o delimitaram, nível das idéias, introduzindo a mímesis pottas adentro da
a Estética seria — e esta foi a grande descoberta de Nietzsche — o “doutrina da alma, até comprometer o império da razão contta ela
permanente sangradouro desse antagonismo. fundado. Que é o nexo de participação que liga as coisas ao eidos
Tal conflito, que se constituiu no problema mesmo do senão uma relação de semelhança? Cópia das idéias, as coisas
pensamento, é, aos olhos de Nietzsche, fruto da vontade de existem imitando os seus modelos. À existência da Pólis é a
verdade, que estabelecera, gerando o movimento de conversão miímesis da alma; a prática da virtude é a mímesis da perfeição
do filósofo, a equivalência da razão com a virtude é com a contemplada. .
felicidade”, esposada pelo modelo da República de Platão. À O gesto de Platão expulsando os poetas de sua República
mesma vontade de verdade que lhe inspirou o missionarismo, adquire, dentro do mesmo quadro de referência da compreensão
levava o governante-filósofo a utilizar, em proveito de sua do ser paralela à mutação da alétheia, o significado de um gesto
autoridade, os mitos com os quais a Filosofia rompera, À mentira historicamente decisório assumido e repetido pela Filosofia: o
por meio da palavra, a “fábula honesta” (414 c), podem ser úteis, esconjuro, o ocultamento interno da linguagem, de que o controle
Assim os governantes detêm e exploram o segredo da mimesis, externo da poesia e da atte é o aspecto exterior normativo,
posta sob o seu controle, À fim de coúsolidarem a ordem da Acumulando todos esses compromissos, a consciência filosófica,
República, contam aos educandos, como mito de origem das três que consetvará o mito em sua fímbria, recalcou o poder poético
classes — governantes, guardas e trabalhadores— a fábula das três | da linguagem no poder do conhecimento objetivo.
taças — a de ouro, a de prata e a de bronze (415 a), que não podem Platão, que assinalou à arte uma função mimética sem
misturar-se porque possuem naturezas diferentes. precedentes”, tanto mais procurou racionalizar esse poder, quanto

emana cicero,
38 Introdução 39
Benedito Nunes

mais lhe reconheceu a força, canalizada à sua própria doutrina encontro ao sofista, marcado por uma última abdicação, que já
pelas condições em que ela se efetivou como obra escrita. O. era uma destituição dentro da Pólis real que o rejeitava. O
retorno, no Livro X, à arte e à poesia nivelando, pot sinal, toda governo da razão, que destituía o poeta, instaurava-se, à margem
miímesis a uma só espécie de téchne, a do pintor — depois de da Cidade, fascinado pelo poder que o destituíra.
terem sido julgadas nos Livros II e III — é a primeira volta do Reduzida à sua autêntica dimensão, a resposta que à
pensamento, como um ato filosófico que será contínua e autoridade do conhecimento deu a esse desapossamento,
dramaticamente repetido, a uma questão não resolvida e jamais preservado pela consciência filosófica, e que entrou na gênese do
solúvel: a questão da linguagem poética, que problematiza o regime da Filosofia, é o poder da palavra dialógica, que
“conhecimento e o poder ao mesmo tempo. Às reservas utópicas problematiza a vontade de verdade e de poder. no
do diálogo sobressaem desse ângulo conflitivo, que mantém o Uma leitura atual de A República deverá restituir ainda,
fascínio e a fecundidade de A República. do ponto em que nos detemos, desconstruindo o que antes se
À noção de utopia não é por certo contempotânea da obra construiu — o comum arcabouço metafísico da Pólis e da doutrina
de Platão; mas o caráter intemporal da Cidade idealizada pelo latônica — a força dramática irredutível dos problemas
filósofo grego e de suas congêneres do humanismo renascentista, entrelaçados da poesia, do conhecimento e do poder, que, à
precursoras de outras tantas idealizações da vida política entre os margem das soluções morais e políticas encontradas pelo diálogo,
séculos XVI e XIX, não esgota o fenômeno mais amplo da são, aquém e para além de seu plano filosófico, os verdadeiros
projeção imaginária que lhes deu origem. Se como forma de vida agentes do drama do pensamento e da cultura que ele representa.
a utopia é estática, a projeção do imaginário político que a mobiliza A República continua sendo a primeira cena desse drama
nutre-se da mesma inquietude da póiesis, que burla a disciplina inconcluso que nos concerne,
da razão e entrega o homem à errância de seu destino temporal”,
Dessa forma, a primeira descoberta de A República — o
reencontro da Filosofia com a política pela regência dos filósofos- Benedito Nunes
governantes ou dos governantes-filósofos — extrai a sua força
latente daquilo que a construção da Pólis e a construção do
pensamento doutrinário de Platão tentaram em vão encobrir.
| A idéia do filósofo-governante — o governo da razão — foi
tão decisiva pata a Filosofia Ocidental quanto para a tradição
política”. Mas deve-se reconhecer também que não o foi menos,
por ter sido o caminho pot onde essa idéia ascendeu, a renúncia
de Platão, na sua obra de matutidade, da potência reveladora da
linguagem — renúncia a duras penas, tanto manifestou ele na
juventude — lembremo-nos do Ião, do Fedro e de O Banquete
— O apreço aos dons do poeta e do vidente. Mas não podem
ser poetas, dizia Sócrates a Glauco, os fundadotes de cidades
(378 e/379 a). eo
Ainda mais dramática parecerá tal renúncia quando
consideramos que ela acompanhou a outra renúncia de Platão à
atividade política direta e imediatista. O filósofo surpira então de
40 Benedito Nunes Introdução 41

NOTAS (crença) e Peithó (persuasão). A pré-história dessa palavra conduz para o sistenha
de pensamento do adivinho e do poeta. Ver Marcel Detienne. op. cit.
15 Auguste Diês, Introduction, La Republique. Platon, Oeuvres Complétes, Tome
VI, pag. V, ed. cit. :
10 próprio diálogo platônico, mistura de todos os estilos e formas precedentes. CE, 16 Sétima Carta, 326 b, in Diálogos, volume V (Fedro-Cartas - O Primeiro Aleibia-
Nietzsche, À origem da tragédia, Werke, 1, pág. 79, Carl Hanser Verlag, des), Piatão, Trad. de Carlos Alberto Nunes, Col, Amazônica, Série Farias Brito,
2 Platão teria começado a trabalhar em A República antes de 388, Cf. Auguste Diês, Universidade Federal do Pará, 1975.
Introduction, La République, Platon, Oeuvres Complêtes, Tome VI, pág. 17 Heidegger, Nietzsche, I, pág. 156, Editions Gallimard, 1971,
CXXXVII, Les Belles Lettres, Paris, 1932. 18 Protágoras, 349 b. .
3 Auguste Diês, op. cit, pág. CEXVII, 19 Górgias, 488 b.
4 Vide, a respeito, Carlos Alberto Nunes, Marginália Platônica, Introdução, pág. 17 e 20 “A ptincípio, esta educação estava reservada só a uma pequena classe da sociedade;
segs. Coleção Amazônica, Série Farias Brito, Universidade Federal do Pará, 1973, a nobreza. O Kalos Kagatthos grego dos tempos clássicos revela essa origem de
5 “Deponho, pois, o poder no centro e proclamo-vos à isonomia. . ”, declarava um modo tão claro quanto o gentleman inglês.” Werner Jaeger, Paidéia, 1º vol.
Maiândrio aos cidadãos de Samos, em 550, renunciando à herança do cetro de pág. 20, ed. cit.
Policrates. Cf. Jean-Pierre Vernant, Estrutura Geométrica e noções políticas na 21 Haverá uma relação tanto da Medicina com a Ginástica quanto da justiça com à
Cosmologia de Anaximandro, Mito e Pensamento entre os Gregos, pág. 169, legislação. Górgias, 464 b-c.
Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1973, : 22 Isso implica reconhecer que a questão política se decide no terteno da mimesis. Sendo
6 Wezner Jaeger, Paideía, Os Ideais da Cultura Grega, I, pág. 96, Fondo de Cultura, assim, à arte não é uma questão entre outras. “C'est diré que la question de "artestla
1946, - “A Pólis é o centro dominante a partir do qual se organiza historicamente o question centrale de la Republique — ou de la république” — Ph, Lacoue — Labarthe,
período mais importante da evolução grega, Acha-se, portanto, no centro de toda Typografie, Mimesis des Articulations, pág; 227, Aubier-Flammarion, 1975.
consideração histózica” — op. cit. idem. . 23 “Qui dit theoria dit vue. Cette vue a pour objet Vintelligible, le noetón. Elle exige
7 A palavra torna-se proeminente, como “chave de toda a autoridade no Estado, o done un organe approprié qui appréhende cet objet. Vidéê même de contemplation
meio de comando e de domínio sobre outrem” — Jean-Pierre Vernant, As origens inclut en son essence un oeil spirituel, un nous” — A. ), Festugiêre, Contemplation
do pensamento grego, pág. 34. Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1972, Lembra et vie contemplative selon Platon, pág. 105, J. Vrin, 1950.
Vernant a divinização de Peithó, a força da persuasão. À palavra deixara, porém, de 24 Cf. Werner Jaeger, Paidefa, 3.º vol., pág. 353, ed. cit.
ser um termo ritual; é “o debate contraditório, a discussão, a argumentação” e é 25 Como objeto de teoria, ou seja, de intuição ou visão intelectual do imutável, a
também o prestígio da arte oratória e da Retórica. Cf. op. Cit. págs. 34/35. - ciência platônica é contemplativa, Cf. Festugiêre, op. cit. págs. 232/233, idem.
8 Cf. Hannah Arendt, The Human condition, À study of the central dilemmas facing 26 A Dialética, explica Taylor, usa os postulados ou hipóteses das disciplinas como
modern man, págs. 27 e segs. (The Pélis and the householdl), Anchor Book. 1959. “starting-points” na descoberta de princípios auto-evidentes que em mais nada
9 A conceituação aristotélica do zoon politikon completa-se pela idéia do homem apelam para.o auxílio sensível da imaginação — Vide Taylor Plato, The Man and his
como zoon logon ekhon (um ser vivo capaz de palavra). Cf. Hannah Arendt, op. wosk, pág. 291, Methuen, 1960.
cit. pág. 26 — Além da Praxis (ação, a lexis (dição) é constitutiva do “animal político”. 27 Fedão, 64 a.
Idem, op. cit. pág. 25. 28 Pela complementariedade dos opostos (vida/morte) (70 c-72 e); pela reminiscência
10 A cidade-estado liberta o indivíduo do circulo das relações domésticas, ao preço de (72 e-77 d); pela natureza divina da alma (78 b-84 b).
uma nova servidão e.de um -noyó culto:o culto do “poder humano coletivo”, Vide 29 Menão, 85-86 b. : .
Toynbee, Helenismo, História de'uma Civilização, pág, 58, Zahar Editores. Rio, 1963. 30 Fedro, 251 c.
11 Hannah Arendt; Que éLiberdade? Entre o passado e o futuro, páp. 201, Editora. 31 O Banquete, 210 a-d.
Perspectiva, São Paulo, 1972, 32 No sentido de que a Dialética se especifica, ocupando a segunda seção do segundo
12 Marcel Datienne, Les Maitres de la vérité dans la Grêce Archaique. pág. 100, François segmento da linha do conhecimento, correspondente à noesis, como movimento
Maspero, Paris, 1973, , da razão que se eleva das hipóteses aos princípios não-hipotéticos em suas duas
13 “A filosofia grega arcaica não é senão uma filosofia de homens de Estado operações sucessivas: a que sobe até o gênero supremo (Bem) e a que, unicamente
(Staatsmânnern)” - Nietzsche, A ciência e a sabedoria em conflito (1875), Le por efeito da potência da razão, sem recorrer à experiência, desenvolve as
Livre du Philosophe (Das Philosophenbuch), Bilingue, Aubier, Flammarion 1969. consequências dos princípios, reconstruindo a série das Idéias. CÊ. Georges Rodier,
14 Originariamente, a palavra “alétheia” vincula-se ao pensamento mágico-religioso Sur Pévolution de la dialectique de Platon, Études de phitosophie grecque, pág.
dentro de uma constelação semântica da qual fazem parte Diké (justiça), Pistis 56, J. Vtin, 1969.
ds o

42 Benedito Nunes Introdução 43

33 Amigo das idéias ou das essências inteligíveis, conforme expressão de O Sofista, pensamento racional. Da constelação semântica da palavra alétheia (conforme
248 a. nota 14), a Filosofia retém a diké e retira da peithó a sedução, o encantamento
34 Platão é guiado pela analogia pitagórica entre o instrumento musical afinado e a saúde mágico (apaté). “Num sistema de pensamento que, se não se separa-das formas
do corpo e da alma. Cf. Taylot, Plato, The man and his work, pág. 269, ed. cit, míticas, se separa da lógica do mito, alétheia se torna uma' potência mais
35 “Sócrates: já não dissemos que receber castigo é libertar-se do maior mal, a maldade? estritamente definida e mais abstratamente concebida: ela simboliza ainda um plano
— Polo: Realmente. — Sócrates: É que o castigo nos deixa mais prudentes e justos, do real, mas um plano-do real que toma a forma de uma realidade intemporal, que
* atuando a justiça como a Medicina da maldade.” Górgias, 478 d. se afirma como o ser imutável e estável na medida, mesmo, em que alétheia se
36 Para Lachiéze-Rey, a ordem da República, a sua justiça, é divisada como “facteur opõe radicalmente a um outro plano de realidade, aquele-que o tempo,a morte e
necessaire de la création et de la conservation d'une cité envisagée comme un Léthé (o esquecimento) definem.” Marcel Detienne, Les maitres de vérité dans la
systéme ayant, dans son essence et dans sa fonction, une vêrité eternelle” pág. 52 Grêce archaique. pág. 136, ed. cit. :
— À organização do Estado “tentre inevitablement dans la sphêre de la technique 44 Exprimindo essa conversão, a “alegoria da caverna”, que contém a doutrina de
supéricure de Pâme. . > pág. 105 — Lachiêze-Rey, Les idées morales, sociales et Platão sobre a verdade, traduz uma mudança ou mutação da'alétheia, Cf. Heideg-
politiques de Platon, J. Veio, 1951, ger, Doctrine de Platon sur la vérité (Platon's Lehre von der Wahrheit), Questions
37 “As coisas voltam ao princípio de que saíram, conforme está prescrito; pois que há JN, Gallimard.
entre elas reparação e satisfação de sua injustiça recíproca, segundo a ordem do 45 “A verdade se torna orthótes, a exatidão da percepção e dalinguagem”. Heidegger,
tempo.” Cf. John Burnet, L'aurore de la philosophie grecque, Pág. 55, Payot, 1919. op. cit, pág. 153.
38 Erwin Rohde, Psyché, pág. 241, Fondo de Cultura. 46 Heidegger, op. cit., pág. 159.
39É n'A República que Platão começa a falar regularmente de “cópias”, “imagens” 47 “Platão nos apresenta a figura da Metafísica em suas grandes linhas ptecisamente
ou “semelhança” das formas. Cf, Norman Gulley, Plato's Theory of knowledge, nessa história que constitui o “mito da Caverna” — Heidegger, op. cit. pág. 159.
pág. 53, London, Methuen, 1962, 48 Sem que a isso se reduza o pensamento de Platão, na unidade de cada diálogo,
40 A mímesis, assim circunscrita pelos eidos, é o ato de produzir (poieín) algo que principalmente quando se considera a importância crítica de escritos da velhice,
mostra ou dá a ver a idéia em seu aspecto, Esse produzir é um fabricar, como como o Parmênides, O Sofista, o Filebo, que se voltam para a concepção do
atividade de um demiourgos. O “artista” seria deminrgo de um pênero particular mundo de A República, questionando, de: certo modo, do ponto de vista da
na medida em que as suas criações não mostram o aspecto da idéia, mas Dialética, a ousía, o ontos on, como Idéia.
phainômena, aparências. “À imitação é aqui um produzir subordinado. O objeto 49 “Os pensamentos que vêm com pés de pombo (Taubenfiissen) dirigem o mundo.”
mimético (mimetés) determina-se em sua essência, a partir do posto que ocupa na Nietzsche, Also Spracht Zarathustra, Die Stiliste Stunde, Zweiter Teil,
hierarquia dos modos de reprodução, escalonada de acordo com o puro aspecto 50 O Sócrates do diálogo é um hormem de meia idade. Cf. Taylor, Plato: The man and
do Ser, relativamente ao qual a mimesis é o mais distante” - Heidegger, Nietzsche, his work, pág. 263, ed. cit.
1, págs. 156/171, ed. cit, 51 À República define a virtude como função das faculdades, princípios ou potências
41 A ilusão decorre da distância irredutível entre a coisa tal qual é (a ousia, a quidditas), da alma, Afasta-se, portanto, do socratismo dos diálogos anteriores em torno desse
o modelo, e a “cópia” sempre inadequada, como distância antológica. Ver a conceito. CE Victor Brochard, La Moral de Platon, Estudios sobre Socrates y Platón,
propósito, Gadamer, À Experiência da arte, Verdade e Método (Wahrkeit und pág: 171, Losada,
Methode, pág. 109/110, Dritte Auflage, J.C.B. Mohr, 1972). Mas essa ilusão 52 Aristóteles, À Política, Livro VI, Cap. Iv, $ 3-7.
persistente não é a simples falsidade, O simulacro, a mentira, têm algo de verdadeiro, 53 Nietzsche, Jenseits von Gut und-Bôse (Para além do Bem e do Mal), Werke, pág.
como se viu a propósito das narrações míticas (377 2), no capítulo III deste estudo. 572, ed. cit.
42 O filósofo é o novo pharmakeus, dispondo da verdade contra o encantamento da 54 Lachiêze-Rey, Les Idêes morales, sociales et politiques de Platon, pág. 196, ed. cit.
elogiência persuasiva (peithó) dos sofistas, O eidos, a verdade, a lei ou a epistéme, 55 A Timocracia, resultante da dissolução da realeza, ainda conserva certos aspectos
a Dialética, a Filosofia — tais são os nomes do remédio (pharmakon) que ele traz. do regime anterior, como o adestramento da classe guerreira; a Ginástica, entretanto,
Mas com isso torna-se o filósofo também um pharmakos, isto é, um feiticeiro e prima sobre a Música (548 c). A ambição prevalece, levando à oligarquia, em que
um mago. .. Ver Jacques Derrida, La Phatmacie de Platon, La Dissemination, só os ricos mandam (550 d). Na caracterização da oligarquia fundem-se a experiência
págs. 132, 142, 146, Seuil, 1972. do governo dos Trinta (404 a.C.) e informações a respeito do governo dos
43 À ascensão do filósofo como novo mestre da verdade é inseparável do processo de Quatrocentos (411 a.C.). Mas também não se pode excluir Esparta, que apresentava
laicização da palavta, de que se tratou no capítulo I deste estudo, e portanto, da à época de Platão as características de uma oligarquia, Cf. Jean Luccioni, La pensée
ruptura com o mito — o que importa dizer também, da passagem do sistema-mítico, politique de Platon, págs. 12-19. Presses Universitaires de France, 1958.
-teligioso de pensamento — a que se vincula o sentido originário da alétheia — ao 56 Aristóteles, À Política, Cap. IV; Livro II.
44 Benedito Nunes Introdução 45

57 Angel G. Cappelletti, La Republica Pre-Platonica: Hipodamo de Míleto y 65 Werner Jaeger, Paideía, II, pág. 363, ed, cit.
Faleas de Calcedonia, Revista Venezolana de Filosofia, 1, 1973, pág. 22. 66 E conservou-se na distância preservada que vai do sensível inferior ao intelipível
58 “Moderno” para a sua época, a igual distância do novo e do antigo, entre inovação superior, Para Baumgarten, a poesia é o discurso sensível perfeito: aquele que tende
e tradição, arrostando a grande onda de uma crise — crise da linguagem (logos), da ao conhecimento de representações sensíveis, “recebidas pela parte inferior da
ciência (epistéme), e da cidade (Pólis), — Platão revelou-se um especialista de faculdade cognoscitiva”, e que constituem o objeto da Estética. (Ver, de Baumgarten,
atualidades, quando visou remediar a economia hipertrofiada, e a divisão entre Reflexões filosóficas acerca da poesia, Aguilar).
ticos e pobres que o êxodo rural à época da guerra do Peloponeso agravou, Além 67 Vernunft = Tugend = Gliick, Por essa equivalência, o governo, a disciplina e o
disso, a democracia ateniense decadente oferecia-lhe o espetáculo, que descreve império da razão tornam-se tirânicos. Cf, Nietzsche, O problema de Sócrates,
em À República, de uma cidade de ociosos e de parasitas, onde imperava a prática Crepúsculo dos Ídolos, Werke, II, 951/956, ed, cit.
da delação, da chicana e do sicofantismo. Cf. Henri Joly, Le renversement platonicien 68 Ver a propósito das metáforas e imajgens que suportam a concepção platônica do
(Logos, Episteme, Pólis), J. Vtin, 1974. mundo, e consequentemente a Teoria das Idéias, Aloys de Marignac, Imagination
59 Montesquieu, L'esprit des lois, Livro IV. et Dialectique, Essai sur Pexpression du spirituel par Pimage dans les dialogues de
60 “A la limite, Putopie est le residu de la théorie politique ancienne, lorsque la lecture - Piaton, Les Belles Lettres, 1951,
laisse échapper Phistoire des instituitions et la philosophie des constituitions”. Henry 69 O Mito de Er dá-nos o esquema da Divina Comédia, com as suas três partes —
Joly, Le Renversement Platonicien, pág. 326, ed. cit. Inferno, Purgatório e Paraíso. Cf. J À. Stewart, The mytho of Plato, pág. 168,
61 O modelo da cidade como idéiaé um paradigma — o paradigma da justiça, que se Centaur Press, Condor, 1960.
realiza pela ordenação hierárquica das funções. Sobre o alcance e o estabelecimento 70 Ver, a respeito, o capítulo V do importante ensaio de Hannah Arendt, Que é
dos paradigmas mediante exemplos e como exercício dialético, ver, de Victor autoridade? In: Entre o passado e o futuro, ed. Cit.
Goldschmidt, Le Paradigme dans la dialectique platonicienne, Presses Universitaires 71 Ver Henri Joly, Le renversement platonicien, pág. 45, ed. Cit.
de France, 1947, 72 Pode-se encontrar no diálogo Critias uma projeção desse imaginário político, mas
62 A arte política tem por fim cuidar de um determinado rebanho (267 d). Além dessa recuando ao passado remoto da Ática, quando, revestidos das virtudes cívicas dos
metáfora do pastor e das ovelhas, outras imagens, como a do piloto do barco, em guardas da kallipolis, os atenienses puderam derrotar os Atlântidas.
relação aos passageiros e a do médico em relação ao paciente, de descendência 73 Consulte-se Hannah Arendt, op. cit. pág. 145.
platônica, subsidiarão o nexo governante/governado na Filosofia política da
Antiguidade.
63 Seria também o momento de se considerar certos juízos equívocos acerca de
A República do ângulo político: o de Cassiter em O Mito do Estado e o de
Popper em À Sociedade Demoçrática e seus inimigos. Não se terá determinado
a contribuição de Platão, afirmando-se, como faz Cassirer, que o filósofo ateniense
foi o primeiro a introduzir uma teoria do Estado e o primeiro defensor da teoria
do Estado legal: O Estado legal da República platônica reafirmava o espírito da
Pólis, e é uma abstração sem a paideía. (Ver Ernst Cassiter, O Mito do Estado,
Publicações Europa-América, Lisboa). Lançando-se contra o historicismo, Popper
comete uma falácia histórica. Quando fala do'Estado platônico, de que o indivíduo
é a cópia, introduz subrepticiamente na Pólis a imagem do Estado moderno. A harmonia
da politéia do filósofo das Idéias está longe da autonomia organicista « do Estado como
totalidade, que o pensamento do.romantismo nos legou. O processo que Popper move
contra Platão adquiriria sentido se voltado para o domínio da Metafisiça, Mas nesse
- caso estaria julgando, numa outra dimensão que não a de um processo “judicial” para
. definir responsabilidades — separando os “amigos” dos “inimigos” da democracia -, a
figura do nosso próprio destino histórico, Ver, de Karl Popper, À Sociedade Democrática
e seus inimigos, Itatiaia, Belo Horizonte, 1959.
64 “Thus it is exactly what is meant in Christian philosophy by the eng sealissimum, and
is rightly regarded as distinct from and transcendent of the whole system of its effects
or manifestations”. Taylor, Plato: The man and his work, pág. 289, ed. cit.
A REPÚBLICA
(Ou: Sobre a Justiça. Gênero político)

PERSONAGENS:

Sócrates - Glauco - Polemarco


Trasímaco - Adimanto - Céfalo
Livro 1
St. Il

327 a 1 — Desci ontem ao Pireu juntamente com Glauco,


filho de Aristão, para fazer minhas orações à deusa e
também porque desejava ver como haviam organizado
o festival, que pela primeira vez era celebrado. Achei
belo o cortejo dos naturais do lugar, mas o dos Trácios
em nada me pareceu inferior. Depois de terminarmos
as orações e de assistimos às cetimônias, retomamos
o caminho da cidade. Porém, ao perceber, de longe,
Polemarco, filho de Céfalo, que voltávamos para casa,
mandou a correr um seu escravozinho, com recado
pata que o esperássemos. Puxando-me o manto por
detrás, disse o menino: Polemarco pede que o espereis.
Virei-me e perguntei onde ele se encontrava. Vem já;
está ali atrás, foi a sua resposta. Nesse caso, esperemo-lo,
disse Glauco.
Pouco depois, chegou Polemarco em companhia
de Adimanto, irmão de Glauco, de Nicerato, filho de
Nícias, e de mais alguns. Vinham todos da festa.
Logo falou Polemarco: Ao que parece, Sócrates,
vais já de volta pata a cidade?
Não foi errada a conjectura, respondi.
Mas, não estás vendo quantos somos?
Por que não?
Então, prosseguiu, se não fores mais forte do que
todos nós, resigna-te a ficar.
Ainda remanesce, objetei, outra alternativa:
convencer-vos de que precisais deixar-nos partir.
E de que modo, respondeu, conseguirás convencer
quem não quer ouvir?
Fora impossível, observou Glauco.
Podeis ficar certos, então, de que não vos ouvimos.
328a Foi quando falou Adimanto: Ignorais, sem dúvida,
que à tarde vai haver corrida a cavalo, com tochas, em
homenagem à deusa?

UE Mean a near
e A ana
PRACA
CR AGO PACLMec tas 0) mr deem ans canincnio ca cota tAsgat a eram ni em ntenadedos

50 Platão - A República 51

À cavalo? perguntei; grande novidade! Empunhando Sempre achei que me podem dizer como é o caminho
tochas, cavaleiros as passarão uns para os outros, durante por eles percorrido e que nós:também talvez tenhamos
a competição, não é assim? de vencer; irregular e penoso, ou fácil e cômodo de
Exatamente, respondeu Polemarco. Além disso, palmilhar? Teria muito prazer em ouvir-te discorrer a
haverá festival noturno muito digno de se ver. Depois esse respeito, uma vez que já atingiste a-idade que os
da ceia iremos assistir ao espetáculo; virão também poetas denominam soleira da velhice: é a fase mais
muitos jovens, com os quais teremos oportunidade de difícil da vida, > ou como a consideras?
conversar. Ficai, portanto; não nos causeis esse
“desgosto. 329a HI — Sim, por Zeus, replicou-me; vou expor-te,
Então Glauco observou: Ao que parece, teremos Sócrates, a minha maneira de pensar. Por vátias vezes,
de ficar. já me tenho encontrado na companhia de alguns velhos
Se pensas desse modo, lhe falei, precisaremos fazer mais ou menos da minha idade, confirmando, com
isso mesmo. isso, antigo brocardo. Quase todos, durante a
conversação, não paravam de lamentar-se, de lastimar
IX - Dirigimo-nos, pois, para a casa de Polematco, a perda dos prazeres da mocidade e de evocar à
onde encontramos Líside e Eutidemo, irmãos de memória as delícias do amor, da mesa, as comezainas
Polemarco, Trasímaco de Calcedônia, o peaniense e outras de igual espécie, mostrando-se acabrunhados
Carmantides, e Clitofonte, filho de Aristônimo. "ante a perda de tão preciosos bens. Aquilo é que era
Céfalo, pai de Polematco, também se achava em casa. vida, comparada com a de agora! Alguns se queixam
Pateceu-me bastante envelhecido, pois fazia muito dos familiares, acusados por eles de não tratatem os
tempo que o não via. Ainda ostentava a coroa, sentado, velhos com o devido respeito,e não cessam de entoar
com a cabeça recostada numa almofada, visto haver a trenodia da velhice e dos transtornos que: esta lhes
acabado naquele momento de sacrificar no pátio. Por acarretou. Mas, a meu vet, Sócrates, eles não insistem
-isso, sentamo-nos perto dele, nas cadeitas que ali havia, na verdadeita causa. Se a causa fosse a velhice, eu
dispostas em círculo. Ao perceber-me, Céfalo saudou-me e também teria de passar por tudo aquilo, como tantas
disse: É muito raro, Sócrates, baixares ao Pireu para outtas pessoas que alcançaram a minha idade. Ota,
visitar-nos. Mas, precisavas fazê-lo. Se eu ainda tivesse nesse particular já tenho encontrado muitos velhos
vigor suficiente pata ir à cidade sem cansar- me, com os quais nada disso aconteceu. De uma feita,
poupar-te-ia o trabalho de vites até aqui; nós mesmos mesmo, estando eu. na companhia do poeta Sófocles,
te visitaríamos. Porém agora, tué que terás de vir com alguém lhe perguntou: Como te achas, Sófocles, no Eu
ya
mais frequência. É bom saberes que quanto mais me que respeita aos prazeres do amor? Ainda consegues NO us
a
abandonam os prazeres do corpo, tanto mais sinto crescer unir-te a mulheres? ÀÃo que. ele respondeu: Cala-te,
a necessidade de conversar e a alegria que esses colóquios amigo! Estou mais do que satisfeito por me haver
proporcionam. Dispõe as coisas de modo que possas vir libertado disso, como quem conseguiu escapar de um
mais vezes, para conversar com Os tapazes; estás em casa senhor despótico e violento! Suas palavras, então, me
de amigos que muito te apreciam. pareceram muito belas, e até agora não as: considero
Eu também me comprazo bastante, Céfalo, lhe de outra maneira. De fato; de todo -modo, a velhice
respóndi, em conversar com pessoas de idade avançada. traz consigo paz e liberdade;' quando as paixões
52 Platão - A República Livro T 53

aftouxam o seu domínio e deixam de se fazer sentir, neste momento, soube aumentá-lo muitas vezes; meu
confirma-se plenamente o dito de Sófocles: livramo-nos pai, Lisânias, o reduziu a menos do que tenho agora.
de uma turba de titanos enfurecidos. Sobte isso e as Dar-me-ei pot satisfeito se não deixar menos para meus
- queixas relativas aos familiares, a causa é uma só: a filhos, porém um pouquinho mais do que o que recebi
velhice não tem culpa, Sócrates, mas o temperamento de herança.
de cada um. Para quem sempre viveu com ordem e Por isso mesmo te fiz essa petgunta, continuei;
* simplicidade, a velhice é um fardo suportável; de outto por me dates a impressão de não seres apegado ao
modo, Sócrates, tanto a velhice como a mocidade são dinheiro, o que de regra acontece com os que não o
penosas. para qualquer pessoa, “ganharam por esforço próptio; os que souberam
adquiri-lo, pelo contrário, são-lhe duplamente
IV — Agradaram- me .sobtemodo aquelas palavras, afeiçoados: do mesmo-modo que os poetas amam suas
e, desejoso de continuar a ouvi-lo falar, estimulei-o criações, e os pais, os próprios filhos, agartam-se a seus
nesse sentido com obsetvar-lhe o seguinte: Está bem, havetes como obra sua' os que souberam acumulá-los,
Céfalo; porém receio. que a maioria dos homens não e também, como as demais pessoas, pela utilidade que
concorde com o que acabaste de dizer, por pensarem delas sabem tirar. À companhia dessa gente chega a
que suportas facilmente a velhice menos pelo teu
temperamento do que-pot dispores de recursos. A
Eaivi set molesta, pois só falam em dinheiro.
É muito certo, respondeu.
riqueza, é o que alegam, enseja muitas compensações.
É. certo. o que dizes, respondeu; não podem V — Sem dúvida, lhe repliquei. Porém dize-me
concordar, É possível, até, que tenham razão, porém agota apenas uma coisa: No teu modo de pensar, qual
“não tanta como imaginam. Aplicam-se-lhes as palavras foi a maior vantagem que te proporcionou tua fortuna?
de. Temístocles, quando. certo indivíduo de Serifo, com Oh! replicou-me; se o declarat, é certeza não
330a -O intuito de diminuí-lo, lhe disse que ele não eta convencer muita gente. Sabes perfeitamente, Sócrates,
- famoso por merecimento próprio, mas por causa de prosseguiu, que quando alguém imagina estar próximo
Atenas; ao que Temístocles respondeu: É verdade; de morrer, fica tomado. de temor e de inquietação a
porque se eu fosse de Serifo não seria conhecido; como respeito de coisas que antes o deixavam indiferente.
tu também não o serias, se fosses de Atenas. Igual Até então, zombava das conhecidas fábulas sobre o
resposta poderia ser dada aos que não são ricos e não que ocotre no Hades, os castigos infligidos aos que na
"cessam de queixar-se da velhice:/que nem pode o terta praticam malfeitorias; porém, depois passam elas
homem moderado suportar com facilidade a velhice a atormentar-lhe a alma; pela possibilidade de serem '
quando é-pobre, nem deixar o intemperante rico de verdadeiras, ou aconteça isso como decorrência da
- desagradar-se ;dela..: fraqueza da idade,.ou por já se encontrar ele mais perto
Dize-me uma coisa, Céfalo, lhe perguntei: a maior do outro mundo e distinguir, assim, com maiot clateza
parte do que possuís foi herdada ou adquirida? O que por lá se passa; e, tomado de suspeitas e de temor,
Se o adquiri; Sócrates? Como construtor da põe-se a refletir, procurando recordar-se das injustiças
fortuna própria, represento um meio termo entre meu que tivesse praticado. Quem encontra no seu passado
avô e meu pai; pois meu avô, de quem tomei o nome, muitas faltas, acorda, por vezes, sobressaltado, como
. havendo herdado: um patrimônio equivalente ao meu 33la criança, cheia de medo, e passa a viver na mais sombria

PraarTEEaP rasa arrimo vs PU NPNL DAS META RR 2 Do copme mt coma acesse po caio, coceno vs tnto coma qa CELA BICATIS ro TD RMC Ga Dear dm enem no one tm e mega
55
Platão - À República

expectativa. À quem a consciência nada acusa, esse Sendo assim, não cabe definir a justiça como
tem sempre: por companheiraa doce Esperança, consistindo em falar verdade e restituir o que se recebe.
Não, Sócrates! Está muito certo, interferiu
como bondosa guardiã da velhice; no dizer de
“Polemarco, se tivermos de dar crédito a Simônides.
Píndaro. E muito gracioso, Sócrates, em verdade, o
Realmente, confirmou Céfalo; mas, neste ponto,
modo por que o poeta se refere aos que sabem viver
-transmito-vos a conversa; está na hora de ocupar-me
justa e santamente:-
com o sactifício.
E não é verdade, lhe perguntei, que Polemarco fica
Marcha-lhe ao lado a Esperança, guardiã da velhice,
como teu herdeiro?
' embalando-lhe
Sem dúvida, respondeu sorrindo.
o coração, Ella é que a alma dos homens,
E com isso retirou-se para ir sacrificar.
sempre volúvel, dirige.
VI — Então me dize, herdeiro da discussão,
Palavras admiráveis! Com o pensamento nisso,
interpelei-o: em que te baseias pata afirmat que
acrescentarei que a riqueza é de grande vantagem,
porém não para todos; apenas pata as pessoas Simônides está certo quando fala da justiça?
Por ser justo, respondeu, dar à cada um o que lhe
equilibradas. Ela é que enseja a possibilidade de deixar
a vida sem receio de haver mentido, embora
é devido, máxima que se me afigura bem enunciada.
Realmente, observei, não é fácil deixar de dat cré-
involuntariamente, e de não tet ficado devendo
sacrifício a nenhum dos deuses nem dinheiro a dito a Simônides; é vatão sábio e divino. Mas, sem
dúvida, Polemarco, entendes o que ele quer dizer;
ninguém. Para tudo isso a riqueza contribui em grande
quanto a mim, não o compreendo; é mais do que certo
parte. Muitas vantagens mais ela ainda apresenta;
não querer com isso significar o que dissemos agora
porém, umas pelas outras, não vacilo em declarar que
mesmo: devolver o que nos foi dado para guardar, se,
não é a de menor importância, Sócrates, para o homem
ao pedi-lo, o dono se encontra perturbado das idéias.
de bom-senso o fato de ser tico. de uma dívida,
3324 No entanto, tratar-se-ia do pagamento
Falaste admitavelmente, Céfalo. Porém, com
não é verdade?
relação a essa mesma justiça, bastará defini-la como o
fizeste, e dizer que consiste apenas em falar verdade e devemos restituir nada, quando o”
Então, não
restituir o que recebemos de outrem, ou é fato que em.
qualquer caso podemos proceder com justiça ou reclamante não estiver no seu juízo perfeito.
Exatamente, respondeu.
injustamente, conforme as circunstâncias? O que digo
É, portanto, evidente que Simônides se refere a
é o seguinte: na hipótese de alguém receber para
outra coisa, não a isso, quando diz ser de justiça dar a
guardar a arma de um amigo que se encontre são do -
cada um o que lhe é devido.
juízo, e este, depois, com manifesta perturbação de
Sim, à outra coisa, pot Zeus, teplicou, pois eta de
espírito, exigir que lha restitua, todo o mundo
opinião que os amigos só devem fazer bem aos amigos,
concordará que não se deve devolvê-la e que não
nunca mal. '
andaria direito quem lhe fizesse a vontade ou tudo a falar; não será pagamento
Compreendo, voltei
contasse a um indivíduo em semelhantes condições.
de dívida a devolução de outo dado para guardar, no
Tens razão, respondeu.
56 Platão - A República Livro F 57

caso de vir a ser prejudicial a devolução e o recebimento, O médico.


e de serem amigos o credor e o devedor, Não é isso E para os navegantes nos perigos do mar?
que Simônides afirma? O piloto,
Perfeitamente. E com relação ao homem justo: em que atividade
E. então? E pata os inimigos? Teremos de devolver e com vistas a que fim ele é mais capaz de beneficiar
o que lhes devemos? os amigos e prejudicar os inimigos?
Sem dúvida, respondeu; o que lhes devemos; mas, Na guerta, para, desfechar ataques ou firmar
Ro
“A

segundo o meu modo de pensar, qualquer pessoa só deve


&

alianças, é o que me parece.


3

ao seu inimigo o que lhe convém, a saber, algum mal. Que seja! Mas, meu caro Polemarco, para quem
es
md?

não está doente não é inútil o médico?


VII — ÀÃo que parece, observei, Simônides Sem dúvida.
apresentou-nos um enigma poético com a sua Como inútil, também, é-o piloto para quem não
definição de justiça. Tudo indica que para ele é justo está navegando.
dar a cada um o que lhe convém; a isso é que ele Sim.
chamava dívida, Então, pata os que não se acham em guerta, O
E como te parece? perguntou. homem justo não é de utilidade?
Por. Zeus, lhe respondi; se alguém o interpelasse Estou longe de pensat dessa maneita.
desta maneira: Escuta aqui, Simônides, a quem uma 333a Sendo assim, a justiça também é útil em tempo de paz?
determinada arte terá de dar alguma coisa que lhe seja Sem dúvida.
devida ou lhe convenha, e de que natureza deve ser Como. também a agricultura? Ou não será?
ela para ter o nome de Medicina? como te parece que Sim,
nos responderia? o Para a produção de frutos?
Evidentemente, replicou, terá que ministrar Sim. -
temédios ao corpo, alimentos e bebidas, O mesmo acontecendo com a arte do sapateiro?
E ao que dá o que lhe é devido ou lhe convém a Sim.
arte denominada Culinária, e que é o que ela dá? Para a confecção de sapatos, sem dúvida, é o que
Tempero para os alimentos. pretendias dizer.
Muito bem. E agora: a quem e o que terá de dar Perfeitamente.
uma arte que tenha o nome de justiça? E agora: a teu parecer, para que uso ou para que,
Se quisermos ser coerentes, Sócrates, com o que aquisição é útil a justiça em tempo de paz?
dissemos antes, 20s amigos e aos inimigos ela terá de dar Nos conttatos, Sócrates.
o que lhes aproveite ou prejudique, respectivamente. Pot conttato entendes sociedade; ou não é isso?
Justiça, então, é fazer bem: aos amigos e mal aos Sociedade, evidentemente.
inimigos? E para mexer com as pedras do gamão, será melhor
Penso que sim. e mais útil o homem justo ou o conhecedor desse jogo?
E quem é mais capaz de fazer bem aos amigos O conhecedor desse jogo.
doentes, ou mal aos inimigos, com respeito à doença e E para a colocação de tijolos e pedras, o homem
à saúde? justo será mais útil e eficiente do que o pedreiro?

—emesaero cr
ema tie oa Lid

Platão - A República 59

De forma alguma. VIII — Nesse caso, amigo, não é lá muito importante


Então, em que espécie de sociedade o homem justo a justiça, se só fot útil para as coisas inúteis, Consideremos
é melhor sócio do que o tocador de cítara, tanto quanto também o seguinte: o indivíduo mais apto pata atacar,
O citarista é superiot ao homem justo no manejo da seja no pugilato, seja em qualquer outra modalidade de
cítara? luta, não é também o mais capaz de defender-se?
Em negócios de dinheiro, quero crer. Perfeitamente.
Exceto, Polemarco, segundo penso, na aplicação E quem for hábil em evitar alguma doença ou em
do dinheiro, quando for preciso comprar ou vender fugir dela, não será também o mais capaz de provocá-la
de sociedade algum cavalo. A meu vet, nesses casos, o nos outros?
conhecedor de cavalos é mais útil. Ou não? Parece que sim.
Parece-me também que sim. 334a E no acampamento militar, não será o melhor
Como o será, também, na compra de algum navio guarda quem souber roubar as deliberações ou
o piloto ou o construtor naval? qualquer passo do inimigo?
Sem dúvida. Perfeitamente. o
Em que emprego, portanto, de prata ou de outo é Logo, quem sabe guardar, também sabe roubar.
o homem justo mais útil do que as demais pessoas? o que patece.
Quando precisar ser guardado o depósito com toda Se o homem justo, portanto, serve pata guardar
a segurança, Sócrates. dinheiro, também servirá para roubá-lo,
Queres dizer: quando tiver de ficar parado, sem Pelo menos, observou, é o que se conclui de nosso
ninguém lançar mão dele? argumento.
Precisamente. Decerto aptendeste isso com Homero. Era muito
Logo, quando estiver inútil o dinheiro, ser-lhe-á afeiçoado a Autólico, avô materno de Odisseu, e a seu
de utilidade a justiça? respeito declara ser ele conhecido entre os homens pelos
E possível. perjúrios e roubos. Assim, de acordo com tua opinião,
Quando se trata, por conseguinte, de guardar um de Homero e Simônides, a justiça é uma espécie de atte
podão, a justiça é útil tanto pata o indivíduo como de furtar. Naturalmente: para: beneficiar os amigos e
para a comunidade, porém no caso de precisar ser ele prejudicar os inimigos. Não foi isso que disseste?
usado, vale mais a arte do vinhateiro? Não, não foi isso, respondeu; porém agora já não
Parece que sim. sei O que afirmei antes. Todavia, ainda sou de parecer
Dirás também que quando for preciso guardar um que a justiça consiste em favorecer os amigos e
escudo ou uma lira, a justiça é útil; porém, quando prejudicar os inimigos.
tiverem de ser utilizados, é de mais valia a arte do Por amigos entendes os que parecem ser bem
armeiro ou a do músico? intencionados com telação a outras pessoas, ou Os que
Necessariamente., o são de fato, embora não o pateçam? E por inimigos,
E assim com todas as coisas: no uso de qualquer a mesma coisa?
delas a justiça é inútil, passando a ser útil quando não Qualquer pessoa, respondeu, terá naturalmente de
for utilizada? amar a quem considera bom e de odiar a quem tem na
E o que se conclui. conta de desonesto.
60 Platão - A República Livro 1º 61

“E porventuta não se enganam os homens nisso, Justamente.


justamente, patrecendo-lhes boa muita 2 gente. que não Sugeres, portanto, que ampliemos um-pouquinho
o é, e vice-versa? o que no começo dissemos acerca: da justiça, quando
t
Enganam-se. afirmamos ser justo fazet bem aos amigos e danat os
“Esses enganados, por conseguinte, terão os bons inimigos. Agora, teremos de acrescentar a isso que é
como inimigos e os maus como amigos? justo fazer bem ao amigo, por ser ele bom,e danat o,
Perfeitamente. inimigo, por ser
Então, para eles consistirá a justiça em beneficiar Perfeito, tespondeu; desse jeito, afigura- se-me
os maus e prejudicar os bons. muito bem formulada a. proposição.
É isso mesmo.
Porém, de acordo com o que disseste, seria justo IX — Porém cabe ao homem justo, perguntei,
fazer mal a quem não praticou nenhuma injustiça. prejudicar quem quer que seja?
De forma alguma, Sócrates, replicou; é insustentável Naturalmente, replicou; é preciso causar dano aos
semelhante proposição! maus que forem nossos inimigos.
Sendo assim, justo é prejudicar os inimigos e Quando causamos dano aos cavalos, eles se tornam
beneficiar os amigos? melhores ou piotes?
Essa, agora, me parece mais razoável do que a anterior. Piores. .
Com muita gente, então; Polemarco, pelo fato Com relaçãoà virtude dos cães ou à dos cavalos?
mesmo de erratem os homens, aconteceria vir a ser À dos cavalos.
justo e prejudicar os amigos, pot serem eles realmente E os cães, pelo mesmo modo, quando lhes
ruins, e beneficiar os inimigos, por serem bons. Mas, causamos dano, ficam prejudicados em sua virtude
com isso, afirmaremos precisamente o contrário do específica, não na dos cavalos.
que levamos Simônides a declarar. Necessariamente.
É, de fato, respondeu, o que se daria. Porém E a respeito dos homens, companheiro, não será
modifiquemos algum tanto a definição. Talvez não lícito afirmar que, se os prejudicarmos, eles se tornam
tenhamos. formulado com. precisão os conceitos. de piores na .vittude especificamente humana?
amigo e de inimigo. Sem dúvida,
Como foi que os' definimos, Polemarco? E a justiça, não é uma virtude humana?
- Dissemos. que amigo é quem parece ser homem Isso, também, é mais do que certo.
de bem. . Nesse caso, amigo, será forçoso que se tornem
E agora, perguntei, como queres que a injustos os indivíduos a quem causgimos dano.
dano.
modifiquemos? Ro E o que parece,
Assim, respondeu: amigo é quem parece e, Mas, poderá a arte da Música deixar qualquer
tealmente, é homem de bem; quem patece sê-lo, porém músico ignorante do seu mister?
335a não o é, só é amigo na aparência. E a respeito dos Impossível.
inimígos, a mesma coisa. Ou a arte da equitação, os cavaleiros incapazes de
- Segundo essa proposição, por' conseguinte, os bons montar?
é que são amigos, e os maus são inimigos? Também não.

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Juba nas Leona diara AM AWINÍ 4


62 Platão - A República Livro 1 jrumaua q draai Os tapa AT grodqo
astrunto 63

o qu tpo rir
| E por meio da justiça, será possível deixar injusto Sou inclinado a acreditar. que foi Periandro, ou
o indivíduo justo? Ou, para falarmos em tese: por meio Perdicas, ou Xerxes, ou o tebano Ismênias, ou qualquer |
da virtude poderão os bons deixar ruins outras outro ricaço que se tenha na: conta de poderoso.
pessoas? ' E muito certo o que dizes, respondeu.
Não é possível. Muito bem, lhe repliquei; mas, se ficou
Esfriar, segundo penso, não é efeito do calor, demonstrado que a justiça ou o justo não consiste nisso,
porém o contrário disso. que diremos que seja ela? .
Certo.
Como não é efeito do seco produzir umidade, X — Por várias vezes; no decurso do diálogo, tentara
porém o seu oposto, Trasímaco intrometer-se nele .e emitir opinião, porém
Perfeitamente. . seus vizinhos o continham, desejosos de ouvit-nos até
Nem de quem é bom prejudicar, mas o inverso. ao fim. Mas, depois de haver eu dito a última palavra,
Parece. não pôde reprimir-se, concentrando-se, à maneira de um
E o homem justo não é bom? animal de rapina, saltou para cima de nós como se fosse
Sem dúvida. o dilacerar-nos. Eu e Polemarco ficamos tomados de pavor.
o parto Et Nesse caso, Polemarco, não é próprio do homem Dirigindo-se a todos os presentes, Trasfmaco explodiu:

a
vs To”
ua
justo causar-dano nem aos amigos nem a quem quer Há quanto tempo, Sócrates, se apoderou de ambos vós
que seja, porém do seu, contrário, o homem injusto. semelhante desatino, para vos mimoseardes com tantas
Quer parecer-me, Sócrates, que estás com toda a futilidades e trocardes esses salamaleques? Nãol Se desejas,
e tazão no que acabas de dizer. de fato, saber o que é a justiça, não te limites a formular
- Por conseguinte, quando alguém declara que é perguntas nem faças cabedal de refutar o que os outros
justo dar a cada um o que lhe é devido, entendendo disserem, pôis sabes tmuito bem que: é mais fácil, sempre,
por isso que o indivíduo justo deve causar dano aos perguntar do que responder; passa, portanto, a responder,
inimigos e fazer bem aos amigos, não falou como sábio; e declara-nos como defines a justiça. Porém não me
faltou com a: verdade. Como vimos, em nenhuina venhas dizer que justiçaé dever, ou utilidade, ou
circunstância será justo causar dano a qualquer pessoa. vantagem, ou interesse. Não! Exprime com clareza e
De acordo, respondeu. precisão o que te parece que seja, pois não admitirei que
'Oponhamo-nos, portanto, decididamente, lhe - me impinjas semelhantes banalidades. -
declatei, eu e tu, num só corpo, a quem disser que Ao ouvi-lo falar dessa maneira, fiquei atarantado;
Simônides, ou Biante, ou Pítaco afirmaram semelhante ' só de olhá-lo tive medo, estando agora convencido de
barbaridade, ou qualquer outro sábio e varão de alto que se me não houvesse antecipado e olhado primeiro
conceito. para ele, teria ficado sem. voz. Mas, eu tinha sido o
Declato-me, respondeu, decidido a participar primeiro a dirigir a vista para o seu lado, logo que ele
contigo dessa luta. começara a acalorar-se, de forma que me achei em
Saberás, por acaso, lhe perguntei, quem, no meu condições de responder-lhe, o que fiz ainda com voz
336a modo de entender, é o autor da máxima de que é justo - um tanto trêmula. E disse-lhe: Não te zangues,
beneficiar os amigos e causar dano aos inimigos? “Trasímaco; se erramos em nossa. argumentação, eu e
Quem é? perguntou. Polemarco aqui presente, podes ter a certeza de que
64 Platão - A República Livro 65

foi sem querer. Acteditas, mesmo, que se estivéssemos pessoa interrogada, achas mesmo que ele deixaria de
à procuta de ouro, ficaríamos por gosto a fazer mesutas responder de acordo com sua: maneira de pensar,
- um para o outro, deixando, assim, passat a porque o proibimos ou não o ptroibimos de falar?
oportunidade de apanhá-lo do chão? E agora, que E tu, voltou a manifestar-se, procederias desse modo?
estamos empenhados em encontrar a justiça, coisa de Darias alguma das respostas tecusadas por mim? .
muito mais valor do que montões de peças de outo, Não seria de admitar, lhe respondi, se, depois de
haveríamos de ser tão insensatos que empregássemos refletir, me parecesse certa.
o nosso tempo com cortesias de parte a parte, e assim E no caso, prosseguiu, de eu dar uma resposta
deixássemos passar a oportunidade de descobri-la? Não sobre a justiça, diferente de qualquer outra e muito
ponhas em dúvida, amigo, nossa boa vontade, mas o superior a todas essas? À teu ver, que castigo mereceras?
cetto é que nos tevelamos incapazes. Somos mais Qual poderia ser, lhe objetei, além do que convém
337a merecedores da comiseração dos sábios como tu do aos ignorantes? Merecem aprender com os que sabem.
que. de repreensões, Essa é a penalidade que imponho a mim mesmo.
És engraçadinho, disse; terás de pagar para
XI.— Ouvindo-me falar dessa maneira, com uma aptrendet.
tisada sardônica, Trasímaco explodiu: Ó Héracles! Eis Sim, quando tiver com quê, foi a minha resposta.
mais uma amostra da conhecida ironia de Sócrates! Já tens, interveio Glauco, Por falta de pagamento,
Eu sabia, e disso mesmo tinha avisado.os presentes, Trasímaco, não deixes de falar; todos nós
que ele não haveria de dialogar, pois preferes recorrer conttribuiremos no lugar de Sócrates. -
à ironia e a toda sorte de estratagemas, a responder ao É isso mesmo, voltou a falar, pata que Sócrates
que eu te perguntasse. os faça como de costume: ele mesmo não tesponde nunca;
Es sábio, Trasímaco, lhe falei. Deves conhecer, pot porém, quando alguém diz alguma coisa, apanha o
isso, que se perguntasses a alguém quanto é doze, argumento e o refuta.
porém antes lhe observasses: Contanto, homem, que Como poderá responder, amigo, quem não sabe e,
- não me venhas dizer que doze é duas vezes seis, ou depois, ainda mesmo que tivesse opinião própria neste
três vezes quatro, iou seis vezes dois, ou quatro vezes caso, está. proibido de manifestá-la por pessóa de não
três, pois não admitirei que me saias com semelhantes pequena autoridade? E muito mais razoável que tu
banalidades! é claro, quero crer, que nada responderia 338a mesmo fales, pois acabas de declarar que sabes e que podes
quem fosse interrogado dessa maneira, E se essa pessoa dizer algo a esse respeito. Não te esquives, portanto, da
te interpelasse: Que queres dizer, Trasímaco? Não resposta; faze-me esse favor e não prives Glauco e os
posso dar-te nenhuma das respostas que acabaste de demais presentes desta oportunidade de aprender.
enumerar? Ainda mesmo, varão admirável, que uma
delas esteja certa? Terei de dizer coisa diferente da XII — Depois de eu assim falar, Glauco e os outros
verdade? E assim que pensas? Como lhe-responderias? instatam com ele para que fizesse isso mesmo. Era mais
- Deixa disso, replicou. Como se os casos fossem do que visível que Trasímaco ardia em desejos de falar,
iguais! . para receber elogios. Estava certo de que dispunha de
- Como não--haverão de ser? interpelei-o; porém, uma resposta deslumbrante, porém, compottava-se
ainda que não fossem e apenas assim parecessem à como se fizesse empenho em que fosse eu quem devia

menmarencoer cera erro


Platão - A República 67

responder. Por fim cedeu e falou desta maneira: Eis Cada governo promulga leis com. vistás à vantagem
em que consiste a sabedoria de Sócrates! Ele mesmo própria: a democracia, leis democráticas; a tirania, leis
nada ensina, porém vai por toda parte e aprende com - tirânicas, e assim com-as demais formas de governo. Uma
os outros, sem dizer muito obrigado a ninguém. vez promulgadas as leis, declaram ser de justiça: fazerem
Dizeres que eu aprendo com os outros, lhe os governados o que é vantajoso pata-os outros e punem
repliquei, é pura verdade; porém, quando afirmas que os que as. violam, como transgressores da lei e praticantes
não pago a ninguém a minha dívida de agradecimento, de ato injusto. Eis a razão, meu cato, de eu afirmar que
estás mentindo. Pago de acordo com as minhas posses; 339a em todas as cidades o ptincípio da justica: é sempre o
e só posso contribuir com aplausos. Dinheiro é o que mesmo: o que é vantajoso para O governo constituído.
não tenho. Porém agora mesmo, depois de responderes, Este, porém, detém o poder, de forma que, bem
verás como aplaudo os outros de bom grado, sempre considerado, será certo concluir que o justo é sempre e
que me parece bem o que alguém diz. Tenho certeza em toda parte a mesma coisa: a vantagem do mais forte.
de que vais falar otimamente. Agora, sim, repliquei; compreendi o que queres
Então, ouve, me falou; o que afitmo é que o iusto dizer. Porém, se está ou não certo, é o que vou tentar
não é mais nem menos do que a vantagem do mais descobrir. “Tu mesmo, Traásímaco, respondeste que o
) vota
a e “po
forte. Mas, que é isso? Onde ficatam os aplausos?
Demoras em elogiar-me?
justo é vantajoso, conquanto me houvesses proibido
od empregar essa expressão em minha resposta. À única
Preciso primeiro, respondi, compreender o diferença é o acréscimo: Do mais forte.
sentido de tuas palavras. Por enquanto, ainda não sei Acréscimo insignificante, observou. ,
“o de que se trata. O justo, disseste, é o que é de Se.é ou nãosinsignificante, ainda não ficou
Vantagem para o mais forte. Mas, que entendes por esclarecido; mas que precisamos investigar se disseste
isso, Trasímaco? Decerto não queres dizer o seguinte: a verdade, sobre isso não há dúvida nenhuma, Eu
se o pancratiasta Polidamante é mais forte do que nós, também admito que o justo é vantajoso; tu amplias o
e carne de vaca é de vantagem para sua constituição, -conceito e declaras que o é para os fortes. Essa parte
para nós outros, também, que-somos mais fracos do eu aínda ignoro; logo, precisamos investigar,
que ele, essa qualidade de alimento terá de ser a um Então, investiga, respondeu.
tempo justa e vantajosa. o
s abominável, Sócrates, explodiu. Tomas minhas XII — É o que vou fazer. Dize-me uma coisa: não
palavtas no sentido mais prejudicial para o argumento. te parece justo obedecer aos governantes?
De forma alguma, cato amigo, lhe objetei; sê mais -.. Sem dúvida. o ota
claro em: tua maneira de falar. E serão . infalíveis os governantes em suas
Ignoras, potventura, continuou, que as cidades ora respectivas cidades, ou também estão sujeitos a ertatr?
são governadas por tiranos, ora pelo povo e ota por É evidente, disse, que eles também podem ertar.
aristocratas? i o Sendo assim, quando se põem a legislar, tanto
Como. poderei ignorar isso? podem promulgar leis boas como tuins?
E que em cada cidade quem tem o poder é o Acho que sim. e
governo? Boas, quando são vantajosas: para eles próprios, e
Perfeitamente. ruins quando lhes são prejudiciais? Ou- como te parece?
68 Platão - A República Livrol 69

É isso mesmo. .:
mandam os inferiores e governados fazerem o que não
E todas as leis que eles promulgam terão de ser
é do seu interesse deles. Donde se colhe que a justiça|
obedecidas pelos governados, por consistir nisso a
consiste tanto em faz .é prejud is:
justiça? - DS o Í
“fortes como o que os beneficia. ,
Como não?:
-Mas, observou -Clitofonte, por interesse do mais
Logo, de acordo como teu postulado, não é justo
forte ele entendia o que o mais forte realmente
d apenas o que for de vantagem para o mais forte, mas
considera como tal, Isso é que os inferiores terão de
x» também o contrário disso, o que lheé prejudicial. -
executar, e foi o que ele definiu como justiça.
Ed Que 'estás a dizer! exclamou.
é Não, não foi isso que ele disse, exclamou
O que tu mesmo afirmaste, segundo me parece.
E Polemarco. Vo
Investiguemos melhor. Não admitimos acima que ao
x” we Tanto faz, Polemarco, observei; se é isso que
legislarem os governantes para os governados, por vezes
' É à. — Se enganam com relação aos seus verdadeiros interesses,
Trasímaco diz agora, aceitemos o que ele nos quet dar.
E - € que é justo fazerem os súditos o'que os primeiros
XIV — Então, declara-nos, Trasímaco, se o que
o determinam? Sobre isso não ficamos de acotdo?
So entendes por justiça é o seguinte: o que o mais forte
Parece que ficamos, tespondeu: o julga ser do seu próprio interesse, quer lhe seja de
e Nesse caso, tepliquei, também admitiste que é
vantagem, quer não seja. Diremos ser essa a tua
justo fazer o que for lesivo aos governantes e aos mais
maneira de pensar?
fortes, quando estes, sem 0 quererem, legislarem contra
. De forma alguma, disse, Achas mesmo que eu dou
seus próprios' interesses, uma vez que afirmaste ser
o nome de forte a quem erta, no momento em que
justo fazer o que aqueles determinam. E; com isso não
erra? o o
concluímos, sapientíssimo Trasímaco, que justo é fazer
Foi o que pensei, lhe disse, pot haveres admitido
precisamente o contrário do que disseste? Pois foi
que os governantes não são infalíveis, mas podem
- determinado a0s' mais fracos agirem em detrimento
algumas vezes enganat-se. o
dos mais fortes. 4
340 a Nas tuas discussões, Sócrates, teplicou, procedes
Sim, por Zeus, Sócrates, exclamou Polemarco; é
como verdadeiro sicofanta. Porventura dás o nome de
mais do que claro. médico a quem se engana com relação a seus clientes,
o Principalmente se lhe servires de testemunha, naquilo mesmo em que se engana? Ou o de calculista
interveio Clitofonte.
- ao que erra no cálculo, precisamente quando erra e
Sócrates não precisa de testemunha, disse em relação ao erro? Não; o que penso é que só dizemos
Polemarco.:O próprio -Trasímaco admitiu que, pot por dizer que o médico errou, ou o calculista errou,
vezes, Os governantes dão ordens em prejuízo deles
ou o gtamático, quando a verdade é que cada um deles,
mesmos e que é justo aos governados obedecer-lhes.
enquanto é, de fato, o que designamos por seu nome,
Não, Polemarco; Trasímaco asseverou que é justo
jamais. poderá errar. Por isso, no sentido rigoroso da
fazer O que os governantes determinam. .
expressão —.pois tu, também, és exigente neste
Sim, Clitofonte, porém explicou ser justo o que é
de vantagem para o mais forte, e depois de firmar esses particular — nenhum profissional pode errar. Só
b. dois itens, admitiu u conhecimento o-abandona é ete al
que, por vezes, os mais fortes erro quetn se engana, com o que deixa, exatamente,
ereta nd

70 Platão - A República Livrold 7

profissi
de ser onal. Nenhum mestre, nenhum sábio e -- É tratador de doentes; disse. -
nenhum governante poderá errar, enquanto governar E o: piloto?: O verdadeito piloto é É ditigente de :
de fato, muito embora se diga comumente que o “matinheirós oi é tmatinheiro? '
médico ertou ou que o governante também ertou. É «. d;: «Dirigente de marinheiros:
nesse sentido que deves aceitar minha resposta de há Não deve sér levado em.consideração « o fato de ele
34la pouco: o governante, na acepção exata do termo, viajar no: navio; só. por isso não: será denominado
enquanto governante, jamais erta, e, não errando, só marinheito; não tecebeu o nome. de piloto porque
legisla em vantagem própria, sendo isso o que os . viaja, mas em- virtude de sua arte e. de ditigit
súditos terão de executar. Essa a razão de havet eu “marinheitos. o :
afirmado no começo que o justo consiste em fazer o É muito certo, disse.. no
que é útil ao mais forte. E não há, perguntei, para- cada uma dessas classes
de pessoas o que lhes seja vantajoso?-
XV — Está bem, Trasímaco, lhe falei; achas mes- Perfeitamente.
mo que procedo de má-fé? E não tem a arte, voltei a falar, pot finalidade
E muito! respondeu. natural procutar alcançar o que é de vantagem para
E acreditas que te preparei uma cilada de caso cada um? ,
pensado, só para prejudicar-te com minhas perguntas? Esse é, precisamente, disse, o seu fim.
Tenho mais do que certeza, retorquiu, porém nada 1 E pata cada arte em si mesma, não haverá o que |
ganharás com isso; uma vez desmascarado por mim, lhe seja vantajoso, ou lhe bastará ser tão perfeita quanto
não poderás dobrar-me aos teus argumentos. possível?
Nem tentaria fazê-lo, meu caro, lhe objetei. Mas, e Que queres dizer com isso? -
para que tal coisa não torne a acontecer, explica o que É o seguinte, tespondi: Nó caso de perguntar-me
entendes por governante e por mais forte, se é no alguém se basta para o corpo ser'corpo ou se lhe falta
sentido comum ou no rigoroso da expressão, a que há alguma coisa, responderia: Sem dúvida! falta-lhe
pouco te referiste, quando afirmaste ser dever dos alguma coisa; por isso mesmo foi inventada a arte de
inferiores trabalhar em proveito dos mais fortes. cutar presentemente em uso, potque.o corpo em si
Sim, voltou a falar: governante, no mais tigoroso sentido mesmo é insuficiente e não lhe basta ser o que é; para
da expressão. Agora deturpa ou denigte minha assertiva, se dar-lhe o de que ele necessita é que foi criada aquela
puderes; não peço complacência. Porém nada conseguirás. arte. Não achas, lhe perguntei, que eu estaria certo 20 .
Imaginas mesmo, lhe falei, que eu seja louco a ponto - falar dessa maneira? Ou não?
de atrever-me a tosat o leão ou a caluniar Trasímaco? 342 a - Muito certo, respondeu.
Agora, pelo menos, disse, tentaste fazê-lo; mas não E então? E a arte-da Medicina, não será, por sua
és gente para isso. vez, deficiente? Não necessitará de alguma outra arte
Bem, observei-lhe; chega dessa conversa. Porém “ou qualidade, como os olhos necessitam de vista, e de.
dize-me o seguinte: o médico, no sentido rigoroso da audição os ouvidos? Isso implica uma nova arte, que
expressão, a que há pouco te refetiste, é homem de se incumba de procurar e de conseguir o que lhe for
negócios ou é tratador de doentes? Mas, só me fales -- . de vantagem, a qual, por sua vez, necessitará de outra,
do médico vetdadeiramente médico. Db e assim ao infinito. Ou-a'cada uma compete investigar
72 - A República
Platão Livrod o 73

o que é de sua vantagem? .Ou não necessitará nem de si De.acordo,


mesma riem de outra arte, pata à investigação do queé | 1º Não compete, por conseguinte, a esse piloto dirigente
de vantagem para-sua deficiência? As falhas-e-os erros. - - de marinheiros investigar e prescrever o que é útil ao
não são inerentes a todas as artes? E só compete, | “piloto, porém aos marinheitos seus subordinados.
potventura, a qualquer arte procurar o que é de interesse vs À custo concordou.:
- para o objeto de sua atividade, ao passo que a próptia És e” - Sendo assim, “Ttasímaco, lhe obsetvei;não há chefe
arte, sendo verdadeira, se manterá sem defeitos e pura, Wo» ge em nenhuma posição de comando, enquanto chefe, que
enquanto continuar sendo integralmente o que é em si IPEN investigue e determine o que é de vantagem para si
mesma, no sentido rigoroso da expressão? Agora aplica BY” mesmo, porém para O seu subordinado, em benefício de
o teu critério de rigorismo e declara se-é assim mesmo Pl +». quem ele exerce sua arte. É em vista desse e considerando
ou de outro modo. 4? apenas o que lhe poderá ser vantajoso ou conveniente
Sim, é assim mesmo, respondeu, que ele diz tudo o que diz e faz o que faz.
Logo, lhe tetruquei, a Medicina não procura o
c interesse da Medicina, porém o do corpo. 343a - XVI:-= Havíamos chegado até aí em nossa
Sim, foi a sua resposta. ' discussão, percebendo todos claramente que a definição
Nem a Equitação o interesse da equitação, porém - de justiça passata a ser precisamente o contrário, quando
. Trasímaco, em vez de responder, me perguntou: Dize-me
o do cavalo; nenhuma arte se ocupa nesse ponto
uma coisa, Sócrates: não tens ama?. :
- consigo mesma — não tem necessidade disso — mas com
Como assim? interpelei-o; não seria preferível
€rº do objeto a que se aplica.
É A Se É evidente, disse, que é desse modo. responderes, a fazeres semelhante pergunta?
x” | Sendo assim, Trasímaco, as artes governam e Porque, vendo-te com o -hariz a escorter, continuou,
o ” “dominam os objetos sobre que se exercem. ela não trata de limpá-lo, o de que tanto necessitas, já .
Ra Concordou também a esse respeito, com visível que não. sabes distinguir entre o pastor € suas ovelhas.
o o . E a que vem isso? perguntei. o
og telutância.
AR op -. Por conseguinte, nenhuma ciência procura ou b |: Porimaginares que os pastores ou os vaqueitos se
a determina o que é de vantagem para o-mais forte, mas preocupam com o bem das ovelhas ou dos bois, e deles
vo ” d | para o mais fraco e pot ele governado. - cuidam e-os engordam com objetivo diferente do bem
Y : Sobre isso, também, ele acabou pot concordar, de seus senhores e deles próprios. Da mesma forma,
muito embora ainda procurasse discutir. Depois de - com'respeito aos ditigentes das cidades —.refiro-me aos
“haver cedido, volteia falar: Não é verdade, também, -verdadeitos ditigentes — és de "parecer que: pensam de
que nenhum médico, enquanto médico, nada investiga- seus. súditos: diferentemente do.que pensa de suas
ou prescreve de. proveito para o médico, porém o que “ovelhas o pastor, e que noite e dia se ocupam de outra
"é de'vantagem para o doente? Já admitiste que o médico coisa que.hão-seja a vantagem própria. E tão extraviado
' no sentido rigoroso:
da expressão é senhor do corpo, “€ - «te encontras. da:vetdadeira meta nessa questão do justo
" não homem de negócios. Ou não admitiste? e da justiça, ou do injusto e-da-injustiça, que ignoras
Concotdou. o . “quão estranho bem, de fato, é a justiça e o justo, a
E o piloto, no sentido próprio da expressão, é - saber: a-vantagem do mais forte e-do governante, O
€ comandante: de matinheiros, não.um matinheiro comum. ir vi». que redunda em detrimento inevitável dos que
REDEa PSA ente ae teg DERA 0 ea neto ra an ta ana

74 Platão - A República Livro Í 75

obedecem e trabalham. A injustiçaé exatamente o e coberto de baldões, recebendo os mais infamantes


contrário disso: impera sobre os indivíduos epítetos: sacrílego, traficante de homens, arrombador,
verdadeiramente ingênuos e justos, só fazendo os trapaceiro, ladrão, conforme a modalidade de sua
dominados o que é de vantagem para o forte, 2 quem malfeitoria. Mas o indivíduo que, além de tirar o
deixam feliz com seu trabalho, sem cuidarem no dinheiro de seus concidadãos, os reduz à condição de,
mínimo de si próprios. O que precisas considerar, meu escravos, em vez desses nomes feios, é chamado
Sócrates simplacheirão,é que pot toda a parte o ventutoso e abençoado, e isso não apenas por parte de
homem justo perde do injusto. Em primeiro lugar, nos seus concidadãos, mas pot todos os que ouvem
contratos particulares, quando dois indivíduos se qualquer referência à enormidade de seus crimes. Os
associam, nunca viste na- dissolução da sociedade levar "que censuram a injustiça não o fazem com o propósito
o justo nenhuma vantagem sobre o injusto, porém de não praticá-la, mas de medo de virem a set vítimas

Ca
semptre o inverso: de todo jeito ele perde. Ao depois, dela. Fica, assim, demonstrado, Sócrates, que a
nas relações com a cidade, quando está em causa algum “injustiça, quando praticada em alto grau, é mais forte
imposto, com igualdade de bens o justo paga mais é o e mais livre e dominadora do que a justiça, e também,
injusto menos, e quando se trata de receber, um fica conforme no começo o demonstramos, que a justiça é
de mãos vazias e o outro lucra enormemente. Na o interesse do mais forte e que a injustiça só trabalha
hipótese de ambos ocuparem cargos públicos, se outto para ptoveito e benefício próprio.
prejuízo não tiver o homem justo, pelo menos deixará
periclitar seus próprios interesses, dos quais se XVII - Depois de assim falar e de nos ter, à
“descuidara, sem que venha a tirar nenhum proveito maneira de um banhista hábil, inundado os ouvidos
dos negócios públicos, exatamente pot .ser justo, além com aquele jorto de palavras, tencionava Trasímaco
de chamar contta si a inimizade dos familiares e retirar-se. Porém os circunstantes não o permitiram;
parentes, pot se haver recusado a favorecê-los contra obrigaram-no a esperar e a defender o que acabata de
os ditames da justiça. Com o injusto se dá, em tudo expor. Eu, também, instei muito com ele nesse sentido,
isso, precisamente o contrário. Por injusto tenho em e lhe falei: Trasímaco demoníaco, depois de nos teres |
mente o que disse há pouco: quem sabe. obter pata si jogado um discurso desse porte, pensas em retirar-te,
as maiores vantagens. Este é que precisas examinar, “sem primeito nos apresentáres uma demonstração
para te convenceres de quanto é mais proveitoso na cabal, ou sem ficares convencido, por teu lado, de que
vida comum ser injusto do que justo. Isso mesmo ele é falso ou verdadeiro? Acreditas, porventura, que
perceberás facilmente se considerares a forma mais te empenhaste em definit uma coisinha de somenos
acabada da injustiça, que deixa. felicíssimo o homem importância e não uma norma de conduta, que cada
injusto e no mais alto grau de miséria o que foi vítima um de nós deverá seguir para viver a mais conveniente
de injustiça e que se recuse a praticá-la. Está nesse caso vida imaginável?
a tirania, que não age à formiga e a ocultas para privar E és de opinião, perguntou-me Trasímaco, que seja
os outros de seus bens, mas pot violência e às claras, diferente a minha maneira de pensar?
de todas as maneiras, nas coisas sagradas e profanas É o que parece, lhe repliquei; pelo menos não te
tão bem como nas públicas e particulares. Pois, se for preocupas conosco nem te incomodas se passamos a
apanhado na menor opetação desonesta, será castigado viver mais felizes ou menos felizes por ignotarmos o
Livro F 7
76 Platão - À República

pastor. Daí ter-me mostrado convencido de que era


que declaras conhecer. Não, meu caro! Resigna-te a
forçoso admitir que todo governo, enquanto for governo
345 a esclarecer-nos a matétia.. Somos tantos aqui! Não ficará
de verdade, não cuida de outra coisa a não ser o bem dos
perdida tua gentileza. Para ser sincero, não posso
súditos a seu cargo, tanto nas organizações públicas como
convencer-me, nem mesmo acteditar, que a injustiça seja
nas particulares. Imaginas, porventura, que os dirigentes
de maior vantagem do que a justiça, ainda mesmo que lhe
das cidades — refiro-me aos verdadeiros dirigentes —
dêem inteira liberdade e não a impeçam de fazer o que exercem de bom grado suas funções?
quiser, De forma alguma, meu valente amigo! Embora
Não imagino, por Zeus! tenho absoluta certeza,
admitamos que um indivíduo pudesse cometer
- impunemente injustiças, ou seja com fraude ou seja
— XVIII - Como assim, Trasímaco? perguntei; então
abertamente, jamais chegarei a convencer-me de que isso
não sabes que não há quem aceite voluntariamente
lhe seria de mais proveito do que proceder. com justiça em
qualquer posto de comando? Todos exigem
todos os seus atos. E quem sabe, até, se não há mais alguém
remuneração, pois nunca é em benefício próprio que
entre os presentes, não eu simplesmente, que pensa do
346a trabalham, mas no dos seus administrados. Responde-me
mesmo modo? Demonstra-nos, portanto, homem feliz,
apenas ao seguinte: não consideramos como distintas
com argumentos convincentes, que nos equivocamos ao
entre si as artes em gexal, pot ter cada uma delas função
colocar a justiça muito acima da injustiça.
diferente das demais? Porém não me venhas com
Como poderei convencer-te? perguntou. Se com o que
evasivas, caro amigo, para podermos chegar a alguma
acabei de dizer não o consegui, que mais poderei fazer?
conclusão,
Queres que te enfie os atgumentos pela alma adentro? Sim, são distintas, respondeu.
Isso não, por Zeus! objetei-lhe; porém, antes de
E não é verdade que cada uma delas nos enseja
tudo, atém-te às tuas próprias palavras, e se quiseres
“alguma vantagem particular, não todas uma única e
introduzir alguma modificação, que seja isso às claras
getal, como se observa, por exemplo, com, a Medicina
e sem usares de subterfúgios. Como estás vendo,
- Trasímáco — para refletirmos um pouco mais sobre o
e a saúde, a arte da navegação e a segutança nas viagens,
e assim com relação às demais?
que já ficou dito — depois da definição que do Petfeitamente.
“verdadeiro médico deste no início, não te julgaste na
E a atte do metcenário, não nos proporciona salário?
obrigação de observar o mesmo tigorismo com
Pois nisso consiste a sua peculiaridade. Dirás que é a
teferência à do verdadeiro pastor. Pensas que, na
mesma coisa a arte da Medicina e a do piloto? Até mesmo
qualidade de pastor, este cuida do rebanho, sem ter
no caso de setes rigoroso em tuas definições, conforme
em vista o bem de suas ovelhas, mas só com o
declaraste, se alguém, na atividade de piloto, readquitir a
pensamento na pitança, à maneira dos comilões e
saúde por dar-se bem com viagens pot mar, não irás dizer
frequentadores de banquetes, ou, tal como os homens
que sua atte é a medicina?
de negócio, no preço do mercado, jamais como pastor?
Não, evidentemente, respondeu.
No entanto, a arte do pastor deve ter como
Nem darás o nome de Medicina à arte do
preocupação máxima alcançar o maior bem possível
mercenário, no caso de adquirir alguém saúde pelo
daquilo em que ela se exerce. Pois, no que respeita à
fato de exercê-la.
sua eficiência, acha-se muito bem apatelhada, uma vez
que nada lhe venha a faltar para ser, realmente, arte do
É certo.

UNO RA NA ame mm a macaaesca vos cars ras


78 Platão - A República Livro 1 79

E então? Chamarás à Medicina arte do mercenário, do provimento das necessidades dos outros, porém
por fazer-se pagar quem cura alguma pessoa? exige remuneração pelo seu trabalho, porque, no
Não, respondeu, 347 a desempenho correto de suas funções, quem quer
Já não chegamos a um acordo sobre a ttabalhar e tomar decisões de acordo com os elevados
especificidade das vantagens de cada arte? preceitos de sua arte, jamais trabalha e determina com
Pode ser, foi a sua resposta. vistas ao seu próprio interesse, mas ao dos
Ora, se todos os profissionais auferem em comum comandados. E por isso, me parece, que todos os que:
alguma vantagem, é evidente que. esta só poderá ptovir -se dispõem a governar precisam receber remuneração
de um elemento comum a que cada profissional recorre em dinheiro ou em hontarias, ou mesmo castigo, no
em sua atividade particular. caso de recusa.
Parece que sim, respondeu.
Estaremos, portanto, justificados, se attibuitmos XIX —- Que queres dizer com isso, Sócrates?
a vantagem do salário que toca a cada um desses perguntou Glauco. As duas modalidades de
profissionais ao acréscimo adicional da arte do remunetação, eu entendo bem o que sejam; mas em
mercenário a cada arte particular. que consista a punição a que te referes e que incluis na
Concordou, com alguma relutância. categotia de recompensa, é o que não chego a
Não é, por conseguinte, de suas respectivas artes compreender.
que cada profissional obtém essa vantagem, a saber, Queres dizer que não conheces, lhe repliquei, o
salário. Não; bem considerada, a Medicina que recebem em pagamento as pessoas de bem, quando
proporciona saúde, a arte do mercenário, salário; a do se decidem a aceitar cargos de direção? Não sabes que
construtor, casas; a do mercenário que se lhe agrega, passa por ser vergonhoso, como realmente o é, o amor
salário novamente, e assim com todas: cada arte executa às honrarias e ao dinheiro?
o trabalho que lhe é próprio e beneficia os que estão Sem dúvida, respondeu.
sob a influência de sua atividade. Se não se lhe agregar Eis a razão, continuei, de não se decidirem a
o salário, tirará o profissional alguma vantagem de sua governar os homens de bem nem por dinheiro nem
arte? por honrarias. Não desejam ser denominados
Parece que não, respondeu. mercenários com' se fazerem pagar abertamente por
Então, ele não presta nenhum serviço quando suas atividades, nem ladrões, com se beneficiarem a
trabalha de graça? ocultas em suas funções públicas. As honrarias,
Acho que presta, respondeu. também, não os attaem, por não serem ambiciosos. É
Por conseguinte, Trasímaco, é mais.do que claro preciso, por conseguinte, impor-lhes algum castigo
. que nenhuma atte ou governo cuida do interesse pata que se decidam a governar. Daí poder ser
próprio, porém, conforme há muito o demonsttamos, ; considerado desonroso pleitear alguém algum, cargo,
providencia e determina o que é de utilidade para o “em vez de ser compelido a aceitá-lo. Crimaior Castigo
súdito, considerando apenas o interesse dos mais fracos, | EE quém-se-furta-a Pobtigação,. de governar. vir à ser
nunca o dos: mais fortes. Por isso mesmo, meu caro góvetnado pôr: alguém: pior doque. ele;'O medo disso,
Trasímaco, há pouco eu declarei que ninguém se segundo creio, é que leva os homens de bem a aceitar
apresenta voluntariamente para governar e incumbit-se o governo, quando governam, e a se decidirem a dar
Platão - À República Livro É 81

esse passo, não no. pressuposto de que os espera algo bom Qual dos dois métodos preferes? perguntei.
ou que vão dar-se admiravelmente bem no cargo, mas O segundo, respondeu.
por necessidade e por não lhes ser possível porem-se sob
- à direção de. alguém melhor do que eles, ou, pelo menos, XX - Então, vamos, Ttasímaco, lhe. falei;
igual. Porque, se fosse concebível uma cidade só de responde-nos do começo: a perfeita injustiça, conforme
homens de bem, nasceriam tantas brigas pata se sustentas, é mais vantajosa do que a perfeita justiça?
esquivarem todos dos postos de governança, como há Foi o que afitmei, de fato, respondeu; e apresentei
presentemente para governar, com o que se totnaria minhas tazões.
patente que não é da natuteza do verdadeiro dirigente Muito bem. E a respeito da seguinte alternativa,
pensar no Interesse próprio, porém no de seus súditos. de que maneira te manifestas: a uma delas dás o nome
Por isso, todo homem de senso prefere ser beneficiado de virtude, e a outra o de vício?
por outros a ter trabalho para beneficiar terceiros. À esse Como não?
respeito não faço a mínima concessão a Trasímaco, de Nesse caso, a justiça é virtude, sendo vício a injustiça?
que o justo consiste na: vantagem do mais forte. Mas Era só o que faltava, meu carol Pois afirmei que à
podemos deixar esse ponto para depois. Muito maior injustiça é dé vantagem, o que a justiça não é!
importância parece ter o que disse Trasírmaco sobre ser Então, que é
melhor a vida do injusto do que a do justo, Dize-me, O contrário, justamente, respondeu. jure Drqendos
Glauco, continuei, qual delas escolherias? E com quem Nesse caso, a justiça é vício?
te parece estar a verdade? Isso não, potém generosa ingenuidade.
No meu modo de julgar, respondeu, é mais Dirás, então que a injustiça é malignidade? dps:
vantajosa a vida do justo. No, Não; chamo-lhe discrição. gr
Ouviste bem, lhe perguntei, tudo o que Trasímaco E os indivíduos injustos, Trasífmaco, és também
enumerou há pouco como vantagens do homem injusto? de opinião que sejam prudentes e sábios?
Ouvi, teplicou, porém não fiquei convencido. Sim, replicou; os que podem cometer injustiças com
E não quetes que o convençamos — se nos for perfeição, quando conseguem submeter ao seu alvedrio
possível achar o caminho para isso — de que ele não cidades e povos inteiros. Decerto imaginavas que me referia
tem razão? a ladrões de bolsas? Aliás, continuou, essa atividade
Como não haveria de querer? perguntou. também é lucrativa, contanto que não sejam descobertos
Por conseguinte, lhe disse, se ao seu discurso seus autores. Porém não merece ser mencionada, ao lado
opusermos o nosso; com a enumeração de todas as das outtas a que acabei de referir-me.
vantagens da vida justa, e à sua réplica treplicarmos, Quer patecer-me, respondi, que não deixei de
será preciso contar essas vantagens e medit tudo o que apanhar o sentido do que disseste; potém fico
cada uma das partes apresentou em sua exposição, admirado de classificates a injustiça como virtude e.
impondo-se-nos, afinal, um juiz para decidir. A sabedoria, e a justiça como o oposto disso.
continuarmos como até agora, para chegarmos a algum Exatamente; é desse modo que as classifico.
acordo, fatemos a um só tempo o papel de juízes e de, Nesses termos, companheiro, lhe repliquei, a
advogados. proposição é muito dura; não é fácil levantar contra
Isso mesmo, disse, ela objeção alguma. Se tivesses afirmado que a injustiça

DAPCUA tar PE re PRE a noeemas Ca MEO, CAES DSL SPT ea cria agora
82 Platão - A República Livro 1. 83

é vantajosa, mas admitisses, como o fazem muitos, que Por. que não? respondeu; deseja ganhar de todo o
é vício ou algo vergonhoso, saberíamos como rebater-te, mundo.
de acordo com princípios de aceitação geral. Porém, Assim, com relação ao homem injusto.e suas ações,
estou vendo que vais denominá-la bela e forte e atribuir-lhe o indivíduo injusto quer levar vantagem & esforçar-se
os qualificativos que de regra aplicamos à justiça, uma para obter mais do que todos...
vez que não hesitaste em emparelhá-la com a virtude -.. Isso mesmo,
e a sabedoria.
Adivinhaste, respondeu, com bastante aproximação. XXI - Então, lhe observei; formulemos a
Apesar disso, observei, não devemos desistir de proposição do seguinte modo: o homem:justo não quer
levar avante nosso raciocínio, enquanto eu conti- obter vantagem sobre-seu semelhante, porém sobre
nuar persuadido de que falas com convicção. Pois seu contrário; o injusto quer obtê-la tanto sobre os
O que me parece, Trasímaco, é que não estás semelhantes como sobre seus contrários, '
gtacejando, mas expões com franqueza o que se te - Otimamente formulado, respondeu.
afigura ser a verdade. " Ademais, continuei, O injusto é inteligente e bom,
E a ti que importa, perguntou, se eu estou convencido e o justo nem uma coisa nem outra.
do que falo, e por que não refutas. simplesmente minha - Isso, também, está muito bem dito, respondeu.
proposição? - Sendo assim, prossegui,o injusto se parece com o
A mim, nada, foi o que eu disse. Mas procura inteligente e bom, o que não se dá com. o justo.
responder a mais uma questãozinha: és de parecer que Como não haverá de parecer-se, disse, quem for
o homem justo queita obter alguma vantagem sobre de determinado jeito, com: os que se.lhe. assemelham,
outro justo? e não parecer quem revelar outra; formação?
* Nunca, respondeu; se assim procedesse, deixaria Muito bem. Então, cada- um é: como fot o seu
de ser o que é: urbano e bonachão. semelhante,
E agora, mais esta: também não o quereria nas Por que não? perguntou.
ações justas? . Está bem, Trasímaco; e não admites que este ou
Nem nas justas, respondeu. aquele indivíduo possa ter temperamento musical e
Mas quereria levar vantagem sobre o homem outro não? ,
injusto? E como consideraria semelhante prática: justa Sem dúvida.
ou injusta? Qual deles é o sabido, e qual o ignorante?
Consideraria justa, respondeu; desejaria beneficiar-se; Evidentemente, o músico é o sabido, e. o não músico,
porém não tem capacidade para tanto. ignorante. “ e
Não é isso que desejo saber, lhe objetei, mas apenas E não será bom esse indivíduo no que for entendido,
se o indivíduo justo não deseja nem considera legítimo como dirás que:é mau no que. for ignorante?
alcançar alguma vantagem sobre outro justo, mas “Sim o o no
admite isso mesmo com telação ao injusto? E comrelação ao médico, não se passa a mesma coisa?
E, assim, de fato, respondeu. Sem dúvida. cs
E o injusto? Quereria alcançar alguma vantagem - "E serás. de parecer, meu, caro, que ao encordoar
sobre o justo e a ação justa? sua lira queira algum músico ultrapassar outro músico
Platão - A República: 85

- ou alcançar sobre ele alguma vantagem no que respeita Pesfeitamente.. eo


à tensão ou ao relaxamento das cordas? "Logo, continuei, 'o:justo se assemelha ao: bom e ao
- Penso que não. no sábio, e-o injusto ao mau e ignorante.
Porém-sobre quem não: for músico? É bem. possível,
Necessariamente. : Vos Porém, já ficamos de acordo que: cada um setá O
E que me dizes do médico? Na prosceição do que “que for o seu semelhante.
for para comer ou beber, desejará ultrapassar outro . Ficamos, de fato:
médico ou as. determinações da Medicina? Nesse caso, O justo se nos tevelou, por fim, como
' De forma alguma. 5 sendo bom e sábio, e O injusto, ignorante e mau.
Porém: os- leigos em Medicina?
- Perfeitamente, XXI — Trasímaco admitiu todos esses itens, porém
Considera agora em todas as modalidades de não com a facilidade com que acabo de enunciá-los: a
conhecimento ou de ignorância, se'és: de parecer que duras penas e suando em bagas, tanto mais que
- qualquer conhecedor especializado deseja ultrapassar, por- estávamos no verão. Nesse momento, vi o que nunca
atos ou pot palavras, seu colega de especialidade ou, de vira antes: Trasímaco entubescer. Depois de havermos
- preferência, fazer o mesmo que ele em casos semelhantes? admitido que a justiça é virtude e sabedoria, e a
Sou de parecer, respondeu; que. necéssatiamente injustiça vício e ignorância, lhe disse: Está ótimo; esta
- terá derser assim como dizes.' parte já ficou resolvida. Mas afirmamos também que
E a ignorância, não deseja sobrepor-se, a um a injustiça é poderosa. Não te recordas, Trasífmaco?
' tempo, ao conhecedor e ao leigo? Recordo-me, respondeu; porém não me agtada o que '
É. bem: provável. acabas de dizer e contra isso teria muito que objetar. Mas, "'
E. o conhecedor, não será sábio? se começasse a falar, tenho certeza de que me acusarias
De acordo. de fazer demagogia. Será preciso, portanto, que me deixes
Logo, o bom e sábio não deseja ultrapassar seu falar como me aprouvet; ou, no caso de prefetires
semelhante, porém o que não se lhe assemelha e é seu perguntar, fotmula tuas perguntas. De minha parte,
contrário. comportar-me-ei como diante de uma velha contadora
É o que patece, respondeu. de histórias, limitando-me a dizer “Está bem”, e a acenar
Ao passo que o indivíduo. ruim e ignorante quer sim ou não com a cabeça.
vencer nesse particular tanto o semelhante como o seu Desse. jeito não, observei; nada contra tuas próprias
- contrários no : convicções:
Isso mesmo. : Responderei como for do teuu agrado, disse, uma
' Por' conseguinte, Trasímaco, observei, o homem vez que não me deixas falar. Que mais queres?
injusto tevelou-se-nos como :desejoso de alcançar Nada, por Zeus, foi a minha resposta. Faze como
vantagem tanto à custa dos seus semelhantes como dos bem te parecer. Vou interrogar-te.
- que qão-se lhe assemelham. Não foi isso à que disseste? Então, interroga.
Exatamente, respondeu. e ne Vou repetir a questão que apresentei antes, para.
Enquanto o justo não deseja ter vantagem sobte o levar com método até o fim a argumentação: que é a
seu semelhante, mas sobre-o injusto? justiça com relação à injustiça? Há pouco foi declarado
MM ORSE CARL Deca taum emas cancro ama romomatiaaemtitases 200 ano rcanicana

86 Platão - A República Livro 1 87

que a-injustiçaé mais poderosa,e mais forte do que a Sem dúvida nenhuma,
justiça, Agora, porém, uma:vez-que a justiça é virtude E não se dá isso, justamente, Trasímaco, porque a
e sabedoria; quer parecer-me que ficou demonstrado injustiça faz nascer ódio entre os homens, lutas e
com muita facilidade ser também. mais forte do que a dissensões, enquanto a justiça gera amizade e
injustiça. Ninguém contestará' semelhante proposição. concórdia? Não é assim mesmo?
Contudo, Trasímaco, não. lançarei - -mão de um Pois que seja, respondeu; "para não discordar de ti.
argumento, tão simplista, mas encatarei o problema És muito amável, amigo. Agora, responde-me ao
“do seguinte modo: Admites, certamente, que haja seguinte: se é consequência inevitável da injustiça
. alguma cidade injusta, e. que queira escravizar injustamente insuflar ódio onde quer que se encontte, não
outras cidades, ou que já as tenha escravizado e ocasionará- também ódio recíproco e dissensões em
mantenha: muitas delas na escravidão?- cidadãos livres ou em escravos a que porventuta se
Como não? respondeu; é o que não deixará de agregue, deixando-os, por isso mesmo, incapazes de
fazer a melhor cidade,.visto set a mais injusta no seu levar a cabo qualquer ação. conjunta?
gênero. . Perfeitamente.
'- Compreendo, lhe falei; éé.a tese que defendes. E no caso de manifestar-se em duas pessoas: não
' Porém, a esse respeito; considera. o seguinte: a cidade ficarão elas divididas e com aversão recíproca,
- que: submeter outra exercerá o seu domínio: sobre ela tornando-se inimigas uma da outta, como inimigas já
sem O emprego da: justiça, ou: terá necessariamente de são dos indivíduos justos?
- recorrer à justiça para esse fim”, ' Ficarão, disse.
No caso, disse, de ser como afirimaste agora mesmo, E se a injustiça, vatão admirável, -se implantar numa
- que a justiça é sabedoria, será com o emprego da justiça; única pessoa, não ficará esta com a sua “capacidade
se eu:estiver certo no que sustento, com injustiça. destruída? Qu achas que a conservatá intacta?
- Estou verdadeiramente encantado, Trasímaco, lhe Creio que.a conservará intacta, respondeu.
disse, por não te liímitares a acenar sim ou não com a Mas, não é fora de dúvida que a injustiça tem a pro-
cabeça, porém de me responderes. desse modo. priedade, onde quer que se encontre, seja cidade, família,
E só para te ser agradável, disse.' 352a acampamento militar, de, inicialmente, deixar qualquer
. pessoa incapáz de agir com harmonia de vistas, em
- XXUI — É muita gentileza de tua parte. Então, virtude das dissensões e inimizades que suscita, e, ao
faze-me também o obséquio de responder ao seguinte: depois, inimiga de si própria e de quantos lhe sejam
És de parecer que uma cidade, ou um acampamento, contrários, como também dos justos? Não é isso mesmo?
um bando de salteadores ou de ladrões, ou qualquer - Perfeitamente.
outra malta do. mesmo .tipo, de associados na Encontrando-se num único indivíduo, me patece,
consecução de determinada malfeitoria, conseguiriam - produzirá os mesmos efeitos que é próptio de sua
levar a bom termo.o que quer que .empreendessem, se natureza produzir: inicialmente, deixá-lo-á incapaz de
entre eles só cometessem injustiças? qualquer ação, pela dissensão provocada no seu íntimo,
Não, evidentemente, respondeu. e em desarmonia consigo mesmo; depois, fá-lo-á
E se se abstivessem de cometer injustiças, não inimigo de si próprio e das pessoas justas. Não é assim?
alcançariam melhor êxito? .
89
88 Platão - À República

E os deuses, amigo, também não -são justos? Não compreendo, disse.


- Admitamos que o. sejam, respondeu: É o seguinte: Consegues ver, a não ser por meio
dos olhos? . o Va
- Nesse caso; Trasímaco, o homem injusto será a
inimigo dos deuses, como amigo deles será o justo. - Não, evidentemente.
Regala-te.à vontade, disse, com tua argumentação; É então? E ouves, a não ser por meio dos ouvidos?
não farei objeção alguma, para não desgostar os presentes. De forma alguma.
Está bem, lhe tettuquei; então, serve-me o resto Assim, temos o direito de dizer que são essas as
do banquete, respondendá como o fizeste até agora. atividades ptóprias de cada um desses órgãos.
- Já demonsttamos que os justos são mais sábios, Perfeitamente.
melhores e mais eficientes, enquanto os injustos são E agora: Não te será possível cortar sarmentos de
incapazes. de qualquer ação conjunta, e que quando videira com espada, ou faca ou com outtos instrumentos?
“dizemos .que com toda a sua injustiça eles agiram em Como não?
conjunto e com energia, de forma alguma corresponde Porém nenhum deles, quero ctet, fará semelhante
isso à verdade, pois não se: teriam poupado trabalho tão bem como o podão fabricado para esse
- mutuamente:
se fossem injustos:
de todo, sendo mais fim.
É verdade. |
do que claro que permanecia neles algum resquício de é sua
- justiça que os impedia de se prejudicarem reciprocamente, Podemos, por conseguinte, afirmar que essa
quando causavam dano-a seus adversários e lhes função específica.
permitiu terminar com êxito o que haviam iniciado. Podemos.
Ao tomar a peito aquela empresa injusta, eram
malfeitores: só pela metade, porque os indivíduos XXIV — Agora, tenho certeza, compreendes
injustos:se tornam absolutamente inaptos para a ação. melhor o que eu queria dizer, quando te perguntei se
Assim eu compreendo que seja, não como disseste no a atividade de uma coisa não é o que ela faz sozinha
ou com mais perfeição do que as outras. =
começo. Quanto a.sabermos se os justos levam melhor fato, à
Sim, compreendo, e creio set essa, de
vida do que os injustos e se são mais felizes — questão
- que deixamos para tratar na ocasião conveniente — é o atividade de cada coisa.
Muito bem, lhe disse; e não te parece também que
“ que 'precisamos. examinar.. Aliás, isso me parece sua
indiscutível, por tudo o que consideramos até agora. cada uma tenha uma virtude correspondente à

Todavia, será. de proveito aprofundarmos o. problema, “função peculiar? Voltemos ao exemplo anterior:
pois não estamos falando de um assunto sem uma função própria dos olhos?
Há. |
importância, mas de que modo será preciso viver. dos
Por conseguinte, també m há uma virtude
Então, examina, disse. o
- É o que vou fazer, lhe observei. E agora responde: olhos?
. Não ditás que o cavalo tem uma atividade específica? Também uma virtude.
Perfeitamente. E agora: Não há uma função dos ouvidos?
-- E não definitás a atividade do cavalo ou a do que Sim.
-queé que seja: como: o que não pode ser realizado a E também uma vittude correspondente?
não ser por seu intermédio? Uma virtude, também.
EN BSS CONACALAR PSLTAE decida onde nda te CERTREIN
DIDI Sra SCI GRITA CER TEUS ARTS A ARCANO Catia mera

=
90 Platão - A República Livro T 91

E com tudo o mais não se dá o mesmo? Forçoso é que assim seja.


Dá-se, E já não admitimos que a virtude da alma é a
Pára aí. Podetiam, potventura, os olhos exercer justiça, e seu defeito, a injustiça?
bem suas funções, se, em vez da virtude que lhes é Admitimos, realmente.
própria, só tivessem ruindade? . Assim sendo, a alma e o homem justo viverão bem,
Como fora possível? Perguntou; decerto, referes-te à como viverá mal O injusto.
cegueira, em lugar da vista. Parece que sim, de acordo com tua atgumentação.
Pouco importa qual seja a virtude, observei; não 354a Logo, quem vive bem é feliz e. abençoado; € quem
perguntei isso, mas apenas se os órgãos desempenham não vive bem, o contrário disso..
bem suas funções com as vittudes peculiares, e mal Certamente. o o -
com os vícios contrários. O justo, portanto, será feliz, e o injusto,
Nesse ponto tens toda a razão, respondeu. desgraçado.
Sendo assim, os ouvidos, também, privados da Pode ser, foi a sua sespoita. o
virtude própria, exercerão mal suas funções. Mas, não há nenhuma, vantagem em ser
Perfeitamente. desgraçado; só em ser feliz.
E não nos seria possível estudar tudo o mais às Como não?
luzes desse mesmo princípio? Então, meu abençoado Trasímaco, nunca à
Penso que sim. injustiça poderá ser mais vantajosa do que a justiça,
Muito bem. E agora considera o seguinte: há alguma E com isto, Sócrates, te banqueteaste no festival
atividade da alma que nada no mundo possa realizar em da déusa Bêndis.
lugar dela, como dirigir, comandar, aconselhar e tudo o Fui servido por ti, Trasímaco, por teres ficado
mais do mesmo gênero? Teremos o direito de atribuir amável e deixado de respondet-me mal. É verdade que
todas essas funções a outra coisa que não seja à alma, e não me regalei; mas a culpa foi minha, não tua. Do
não devemos afirmar que lhe são peculiares? “mesmo modo que os gulosos tiram um pouquinho de
Áela, exclusivamente. cada prato que vai sendo setvido, sem saborearem
E com relaçãoà vida, não ditemos que seja função suficientemente o anterior, eu também, quer parecer-me,
da alma? antes de encontrar o que procurávamos primeiro, ou
Seguramente, disse. seja, a natureza da justiça, deixei-isso de lado e passei
Como poderemos afirmar, outrossim, que há uma a considerar se ela é vício e ignorância ou sabedoria e
virtude privativa da alma. - virtude. De seguida, mal havia caído sobre nós a
certo. o proposição de que a injustiça é mais vantajosa do que
E porventura, Trasímaco, poderá a alma exetcer a justiça, não pude evitar de passar daquela para esta,
bem suas funções, se vier a ficar privada da virtude O resultadoé que nada aptendi em toda a nossa discussão. ce
própria, ou será isso impossível? Pois, se eu não souber o que é a justiça, de modo :
É impossível. nenhum poderei saber se é ou não uma virtude e se
Uma alma ruim, por conseguinte, terá necessatia- quem a possuí é feliz ou desgraçado.
mente de governar e dirigir mal, ao passo que a alma ma
autismo pç “pe
boa fará bem tudo isso. tm, pormaliul, AMÃ,
MA trtloço
qu E po E up e
Ata gê dvd vo qubero .
7
Se
aq o Ueatigao
do a vala

ÃO a.
Livro II

. 357a I — Pensei que depois dessas palavtas eu estivesse


dispensado de prosseguir; mas tudo aquilo, pelo que.
se viu, não passara de simples proêmio. Glauco, sempre
tão decidido em todas as ocasiões, não aceitou,
também, naquela conjuntura, a retitada de Trasímaco,
e se manifestou: Sócrates, disse, queres apenas deixar
a impressão de que nos convenceste, ou desejas, de fato,
b capacitar-nos de que a justiça, de qualquer forma, é.
sempre superior à injustiça?
' Em verdade, lhe falei, desejaria convencer-vos, se
tal coisa estivesse em meu poder.
Nesse caso, replicou, não fazes o que queres. Dize-me
o seguinte: acreditas que possa haver alguma espécie de
bem que almejássemos possuir, não por suas
- consequências, mas por apreciarmos em si mesmo, tal
& - como a alegria e Os prazeres inocentes, que não deixam rasto
é algum no tempo, se não for o próprio fato de alegrar-nos?
” £ Penso, respondi, que há uma classe de bens dessa
a” q” natuteza
5 ê XRC E então? E não haverá também os de que nos
ço E ” “agradamos tanto por eles mesmos como pot suas
s “ y consequências, tal como o conhecimento, a vista, a
S ME Sé saúde? Desejamos todos eles por ambos os motivos.
DS," Sem dúvida, respondi.
6 Es Não vês também, continuou, uma terceira classe,
” y » na qual se incluí a Ginástica, o tratamento de doenças,
e ve A o exercício da Medicina e, de modo geral, as profissões
lucrativas? De todos esses bens podemos dizer que são
d penosos, mas sempre trazem consigo alguma utilidade,
e que não os desejamos eles mesmos, mas pelas
vantagens monetárias ou de qualquer outra natureza
que nos possam proporcionar.
Há, de fato, lhe respondi, essa terceira classe de bens.
E em qual delas, perguntou, colocas a justiça?
o asa ndig amo cins bia oe cmanaio ends teto co nqacanco de and e TS fat Pa Ta ST pI RECaRáT DIS TALTTO NADA IDO NDAS Cosa dida Sarto! dart leme tina nero cuminqmtiio et att

94 Platão - A República Livro HH. 95

358a A meu parecer, lhe disse, na mais bela, a que tanto não encontrei nada que me satisfizesse. Desejaria ouvir a
por ela mesma como por suas; consequências terá de -exaltação da justiça em si mesma, e de ti, sobretudo, é que
amat quem quiser ser feliz. espeto esse elogio. Por isso, vou esforçar-me ao máximo
Etsy Porém, não é essa a opinião da maioria, que inclui no louvor da vida do homem injusto, pata mostrar-te como
Ya
Cy É a justiça na classe dos bens incômodos,
precisam ser alcançados com o fim lucrativo
os que
e do bom
desejo ouvir-te condenar a injustiça e exaltar a justiça.
Declara se estás de acordo com essa proposta.
nome e para salvaguarda da reputação, mas dos quais De inteiro acordo, respondi. Com que melhor
em si mesmos devemos fugir como de algo molesto, tema poderá ocupar-se com agrado qualquer pessoa
sensata ou seja como expositor ou como ouvinte?
Il — Sei perfeitamente, lhe repliquei, que assim Belas palavras, respondeu; então, escuta o que me
pensam quase todos, e.disso mesmo Trasímaco a acusa proponho falar desde logo sobre a natureza e a origem
há muito tempo, reservando seus elogios só pata a da justiça.
injustiça. Mas, como se vê, tenho cabeça duta. Dizem que, por natureza, praticar injustiça é um
"* Então, continuou, ouve também o meu parecer; bem e ser vítima de injustiça, um mal, porém que há
quem sabe se pensas como eu. Tenho a impressão de mais mal em ser vítima de injustiça do-que bem em
que Trasímaco se deixou amansar mais depressa do praticá- -Ja. Por isso, quando os homens cometem
que fora razoável, encantado por ti como sob a ação reciprocamenteente injusti a víti
de uma serpente; mas, a meu ver, os atgumentos de portanto, a “experimentar as as coisas, Os
um e de outro lado não foram suficientemente po dem, esquivar-s se de uma nem alcançat a outra
desenvolvidos. Desejo ouvir o que em si mesmos são consideram mais vantajoso fitt
firmar um acordo pata não
| Os dois conceitos — a justiça e a injustiça — e que força “mais serem vitimas de injustiça nem virem a cometê-la.
tem cada uma, quando presente na alma, sem levarmos Desse ponto foi que nasceram
as leis e os contratos
em consideração nem o salário nem qualquer outra entre os homens, passando, então, o queé determinado
vantagem delas decorrentes. Vou proceder da seguinte por lei a ser chamado legalidade.e justiça. Tal é a
maneira; vê se aprovas meu plano. Recapitularei a origem e a essência da justiça: uma espécie de
argumentação de Trasímaco, a começar por definir o compromisso entre o maior bem, ou seja, a
que, na opinião geral, é a justiça, e por-dizer de onde impunidade para todas as malfeitorias, e o maior mal,
se origina; de seguida, mostrarei como todas as pessoas isto é, a impotência de vingar-se quem foi vítima de
que a praticam o fazem a contragosto e por obrigação, injustiça. Na qualidade de um meio termo entre ambas
como se não se tratasse de algum bem, mas de um mal não é amada a justiça como um bem, mas apenas
necessário; terceiro, que, essas pessoas se comportam tolerada, por serem impotentes os homens pata,
com coerência, pois. é muito melhor, segundo dizem, - cometer injustiça. Pois quem pudesse cometê-la,
no
a vida do homem injusto
i do que a do justo, conquanto, caso de-set homem na verdadeira acepção do vocábulo,
Sócrates, não seja essa a minha maneira de pensar. Mas em nenhum tempo iria firmar com ninguém um
o certo é que fico desorientado, quando me zunem contrato, pata não ser vítima de injustiça nem vir a
nos ouvidos os discursos de Trasímaco e de tantos praticá-la, a menos que fosse louco. Eis aí, Sócrates, a
outros; porém com relação à defesa da justiça e a - natureza da justiça, como é em si mesma, segundo
superioridade que ela deve ter sobre' a injustiça, ainda dizem, e como se originou: :
96 Platão - À República Livro H 97.

HI — Para provar que só procedem a contragosto dotado de tão extraordinária virtude, e sempre com o
os que se afanam na prática da justiça e pela mesmo resultado: tornava-se invisível quando a pedra
impossibilidade de cometer injustiça, mais facilmente era virada pata dentro, voltando .a aparecer quando a
o perceberemos:com as seguintes considerações: demos dirigia pata fora. De posse desse conhecimento,
a ambos, ao homem justo e ao injusto, o. poder de trabalhou para ser um dos mensageiros para O rei, e,
fazerem o que bem lhes parecer, e acompanhemo-los chegado à corte, seduziu a rainha, com a sua ajuda
depois para ver aonde vai conduzi-losa paixão. Na atacou o rei, assassinou-o e apoderou-se do trono. Na
mesma hora, fora certeza surpreender o homem . justo hipótese, portanto, de haver dois anéis iguais a esse,
a trilhar o caminho do injusto, no propósito de obter sendo um deles usado pelo homem justo e o outro
vantagens, o que todos, por conformação natural, pelo injusto, ninguém, absolutamente, segundo tudo
consideram um bem, pois é apenas a força da lei que o indica, revelaria resistência de diamante para conservar-se
os obriga a respeitar a igualdade. A melhor maneira fiel à justiça e não se apoderar dos bens alheios ou não.
de alcançar a liberdade a que me refiro seria dar-lhes o tocar neles, muito embora tivesse a possibilidade
de. tirar
poder que outtora teve Giges, segundo contam, do mercado, com toda a segurança, tudo o que quises e,
genearca do Lido. Giges era um pastor a serviço do tei penetrar em qualquer casa e deitar-se com quem lhe.
da Lídia. Por ocasião de um grande temporal apetecesse, matat ou libertar da prisão quem bem,
UP acompanhado de tremor de terra, o solo se abriu, entendesse, e fazer tudo o mais,
tal qual um deus entre
formando-se uma fenda no lugar em que ele levara a os humanos, Assim procedendo, nenhum diferiria do
pastar'o seu rebanho. Ao ver isso, tomado de outro; ambos percorretiam o mesmíssimo caminho,
admiração, penetrou na abertuta, tendo percebido, prova mais do que certa, com a qual todos terão de
segundo contam, entte outras maravilhas, um cavalo concordar, de que ninguém é justo pot livre iniciativa,
de bronze, oco e provido de pequenas janelas, através mas .por coação, pois não há quem considere a justiça
das quais, enfiando a cabeça, notou um cadáver que se em si como um bem; onde quer que possa praticar alguma
lhe afigutou de proporções mais do que humanas: injustiça, não deixará de fazê-lo. Todos os homens são
inteiramente despido, deixava apenas ver um anel de de parecer que a injustiça lhes é de muito mais proveito
outo numa das mãos. Retitando-o, voltou Giges para do que a justiça, no que estão certos, como o dirá o
cima. Na reunião habitual dos pastores, pata defensor da presente proposição. Pois o indivíduo com
apresentatem ao rei o relatório mensal do estado do semelhante poder, que não se decidisse a praticar
+ebanho, compareceu também Giges com o anel no nenhuma injustiça nem a tocar nos bens alheios, seria
dedo. Como estivesse sentado no meio dos outros, tido na conta de infelicíssimo pelos observadores, e
aconteceu vitar casualmente a pedra do anel pata a inteiramente destituído de senso, muito embora uns para
360 a palma da mão, com o que imediatamente se totnou os outros o elogiassem, enganando-se mutuamente, de
invisível para os circunstantes, que passaram a referir-se medo de vitem a ser vítimas de alguma tramóia de
a ele como se já não se encontrasse ali presente. qualquer deles. Sobre esse tópico é quanto basta.
Cheio de admiração, tornou a mexer no anel e virou
o engaste para o lado de fora, depois do que voltou IV — Para podermos, agora, forimar juízo seguto
-“a-ficar visível, Tendo percebido o que se dera, fez sobre a vida desses dois tipos de que falamos, o justo €
várias experiências para ver se, de fato, era o anel o injusto no grau mais elevado, será preciso isolá-los

MegRa erre
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Platão - A República Livro 99


completamente. Sem isso, nada conseguiremos. E exceção da justiça, para que venha a formar perfeito
como poderá ser feita semelhante separação? Da contraste com o anteriormente concebido: sem haver
seguinte maneira: nada tiremos da injustiça do homem cometido a menor falta, passa por ser o tipo acabado do
injusto, nem da justiça do justo, e imaginemos cada criminoso. Posta, assim, à prova sua justiça, vejamos se
um deles como perfeito na sua maneira de viver. Para se deixa abalar da má reputação e de suas consegiências.
começar, façamos do homem injusto um profissional Mostre-se firme até à morte; sendo justo, pareça injusto
completo em sua atividade. Um hábil piloto ou um -enquanto viver, para que, tendo ambos atingido a meta
médico sabem distinguir perfeitamente o que é ou não extrema, um da justiça e o outro da injustiça, seja possível
36l a possível nas respectivas profissões, empreendendo decidirmos qual deles foi o mais feliz.
aquilo e abandonando o testo. No caso de cometerem
algum engano, são suficientemente hábeis para repará-lo. V — Deuses, meu cato Glauco, exclamei; com que
Da mesma forma deverá proceder o homem injusto, vigor soubeste polir esses dois tiposl Para nosso.
que ptaticará com todas as regras da arte as suas julgamento, são verdadeiras estátuas.
malfeitorias, sem nunca se deixar colher em flagrante, Faço o que posso, respondeu. Uma vez assim
caso queira, de fato, apresentar-se como mestre constituídos, não será difícil, segundo penso, descrever
consumado de injustiça; quem é apanhado em alguma a espécie de vida que aguarda a cada um. É o que vou
falta é tido na conta de incapaz, pois a mais consumada fazer; se achares de algum modo grosseira a descrição,
; injustiça é parecer alguém justo sem o ser. Precisaremos, considera que não sou eu quem falo, mas os que
, À portanto, prover o homem injusto da mais acabada exaltam a injustiça em detrimento da justiça. Dizem

E
e: b
injustiça, sem de nada privá-lo. Mais, ainda: consintamos
que à prática dos piotes crimes alie a mais elevada
que, nessas circunstâncias, o justo será -vergastado,
torturado e amarrado; queimar-lhe-ão os olhos e, por

SE
reputação de justiça; se chegar a dar algum passo em 362a último, depois de passar por todos esses tormentos,
falso, seja capaz de corrigi-lo; no caso de vit a ser será empalado, para compreender, facilmente, que o
AY conhecido algum dos seus atos, terá de dispor de dotes que importa não é ser, porém patecer justo, Aquele

.
CÊ & Nr
otatórios pata justificar-se, além de poder decidir-se
pela violência, sempre que esta se fizer necessária, ora
dito de Esquilo se aplicatia
propriedade ao injusto; este, dirão, é que se esforça
com muito maior

af ” A com o emptrego da coragem pessoal e da força, ora com pot alcançar o que realmente existe; não vive de acordo
EX os recursos materiais e a influência de amigos que tenha
sabido angatiar. Concebido desse modo em .nosso
com as aparências: deseja ser injusto, de verdade; não
simplesmente patecer:. -
discurso o homem injusto, coloquemos o justo 20 seu
lado, o homem simples e generoso, que não deseja, Cultivando da mente o fundo sulco:
como diz Ésquilo, apenas parecer bom, mas ser de de-onde conselhos fúlgidos germinam.
verdade homem de bem. Suprimamos a aparência; se b
c parecer justo, no mesmo instante se verá cumulado de Para começar, por ter fama de justo, ocupará cargos
hontarias e de presentes, por causa, precisamente, da de direção na cidade; depois, casar-se-á na família que
aparência, tornando-se-nos incerto, por conseguinte, quiser e dará seus filhos em casamento para quem bem
se ele é justo por amor à justiça ou por causa dos lhe parecer; tratará ou se aliará com quem entender,
presentes e honrarias. Despojemo-lo de tudo, com sem falarmos que de tudo colherá vantagens, pois não
100 Platão - A República Livro 101

se deterá diante de qualquer injustiça. Vendo-se às O que importa é que o indivíduo de apatência justa,
voltas com algum pleito, seja público ou particular, por força mesmo do que parece ser, venha a alcançar
sempre se sobreporá ao adversário e ganhará à sua cargos, casamento e tudo o mais que neste momento
custa; e porque sabe tirar partido de tudo, enriquecerá Glauco enumerou e que é conferido àquele pela
É» depressa, ficando em condições de fazer bem aos simples reputação de justiça. Muito mais numerosas,
RE e ainda, na opinião de todos, são as vantagens do bom
as
RE
amigos e mal aos inimigos; oferece sactifício às
divindades, dádivas frequentes e magníficas, tornando-se, nome, pois não têm conta, também, as dádivas que os

Ss assim, capaz de obter, com muito melhor resultado deuses conferem aos indivíduos piedosos, segundo
& S que o justo, as graças dos deuses ou dos homens que afirmam. E o que nos diz o honesto Hesíodo e
«> entender, donde podermos concluir ser ele, pot direito, Homero o confirma. O primeiro declara que os deuses
muito mais amado dos deuses do que o justo. Vem fazem crescer os carvalhos dos justos
A
'N daí, Sócrates, dizerem que os deuses e os homens
cooperam para deixar mais feliz a vida do homem Cheios de glandes no tope e de enxames de abelhas
injusto do que a do justo. nos troncos,
acrescentando:
VI — Depois dessas considerações de Glauco, eu
tencionava dizer alguma coisa; porém. nisso tomou a Nédias ovelhas, também,' sob o peso do velo se
palavra seu irmão Adimanto, para perguntar: Decerto curvar.
não vais dizer-nos, Sócrates, que o atgumento foi
suficientemente desenvolvido? Homero diz mais ou menos a mesma coisa, quando
Que mais poderá faltar? lhe perguntei, se refere à glória de um
“Não houve referência ao que sobretudo importava
ser tratado. Rei sem defeito e aos deuses temente,
Então, observei, de acordo com o provérbio, um que sobre muitos e fortes vassalos domínio tivesse
irmão que socorra o outro. Por isso, se, de fato, ele se e distribuísse justiça. O chão negro produx-lhe
esqueceu de alguma coisa, corre em seu auxílio. Mas o. abundante
que ele disse já é bastante para lançar-me ao solo e trigo e cevada, vergadas de Frutos as árvores
deixar-me inteiramente incapaz de sait em socorro da grandes;
justiça, constantemente he dá peixe. o mar, as ovelhas dão
e Ao que ele respondeu: O que disseste de nada cria.

adianta; ouve mais o seguinte: é necessário desenvolver


também a tese contrária, a dos que exaltam a justiça e Mais infantis, ainda, são os bens que Museu e seu filho
censuram a injustiça, pata que ressalte ainda mais O concedem aos justos como dádivas dos deuses; na
que, a meu ver, é o pensamento de Glauco. O certo é descrição. de ambos conduzem os betn-aventurados
que os pais falam aos filhos e os aconselham, e, com pata o Hades, fazem-nos assentar-se à mesa com
eles, todos os que têm a seu cargo outras pessoas, que guitlandas na fronte e lhes aprestam banquetes onde
363a é preciso ser justo, porém nenhum elogia a justiça em eles passam todo o tempo a beber, no-pressuposto de
si mesma, mas apenas o bom nome que ela proporciona. que a mais bela tecompensa da virtude é uma bebedeira
a
Lp RARE RREO Pe e RDIS REI CRRVO pia aa ER CITAR SO Sta
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Platão - A República
Livro IF 103

sem fim, Outros espicham ainda mais as dádivas será fácil prejudicar indiferentemente o bom e o mau;
divinas; sobrevivem os filhos dos filhos, dizem, e toda com encantações e fórmulas mágicas conseguem,
a posteridade do homem santo e de palavra, Essas e segundo afirmam, convencer os deuses a servi-los, Em
muito mais coisas do mesmo teor é que dizem em reforço de suas pretensões trazem o testemunho dos
louvor da justiça. Os indivíduos ímpios e injustos, pelo poetas, que deixam cômodo o caminho do vício:

e.
contrário, eles os entetram na lama do Hades e
condenam a carregar água num crivo, além de assinalá-los Para chegares aos vícios, por mais numerosos, é
em vida com a pecha de infames e de lhes infligir os . muito
castigos atribuídos por Glauco aos justos com fama fácil: macio é o caminho; bem perto eles todos
de injustos, À respeito dos injustos é só o que sabem demoram.
dizer; não inventaram nada de novo. Desse modo é “Ante a virtude, porém, o suor colocaram os
que elogiam ou censutam a ambas. denses
N -
VII — Além dessa concepção, Sócrates, considera e uma esttada comprida e íngreme. Aduzem também
outro tipo de discurso sobre a justiça e a injustiça, o testemunho de Homero sobre a possibilidade de
364a muito do gosto dos poetas e de pessoas do povo. À influítem os homens nas divindades, com fazê-lo dizer
uma voz, todos entoam o hino da tempetança e da que os próprios deuses se deixam dobrar,
justiça, para dizerem que são belas, mas, a um tempo,
penosas e difíceis, enquanto são doces e de fácil acesso ,
Com terem mais dignidade, poder superior e
a intemperança e a injustiça, que apenas a lei e a opi- virtude.
nião geral consideram censuráveis. À injustiça é muito «Apesar disso, conseguem os homens obter-lhes as
mais vantajosa do que a justiça — é o que todos afirmam graças,
— mostrando-se inclinados a considerar felizes e a acatar com tebações e gordura queimada, com preces e
particularmente e em público os indivíduos maus, víbimas,
porém ricos ou de qualquer forma poderosos, e a se, porventura, cométem qualquer infração ou pecado.
desprezar e não fazer caso dos obscuros e pobres,
conquanto admitam que estes são melhores do que os Trazem, também, livros aos montes, de Museu €
outros. Sobremodo estranho, porém, é o que dizem Orfeu, filhos de Selene e das Musas, conforme
dos deuses e da virtude: que para muitos homens de alegam, e com cujas regras organizam o ritual dos
bem os deuses aprestam uma vida de dissabores e sacrifícios, o que lhes permite convencer não apenas
misérias, enquanto pata os diferentes destes só particulares, como até mesmo cidades inteiras, de que
concedem venturas. Por outro lado, adivinhos e é possível a reparação e purificação de qualquer crime
charlatães postam-se à porta dos ricos e os convencem por meio de sacrifícios e folguedos puetis, tanto em
de que alcançaram dos deuses, por meio de sacrifícios 365 a vida como depois de morto. À essas cerimônias dão
e encantamentos, o poder de delir com folguedos e o nome de expiação, atribuindo-lhes o poder de
festas as faltas que eles ou seus antepassados tivessem livrar-nos dos tormentos do outro mundo. À
cometido. No caso de querer alguém causar dano aos negligência de tais práticas acarreta terríveis
seus desafetos, mediante remuneração insignificante sofrimentos.
104 Platão - À República 105

VIII — Todos esses discursos, meu caro Sóctates, incortermos em nenhuma penalidade. Porém, aos
continuou, em tantas vatiações, acerca da justiça e da deuses nada escapa, não nos sendo possível violentá-los.
maldade, e da estima em que são tidas pelos homens e Muito bem; mas, e se eles não existirem
ou não derem.
pelos deuses, que impressão imaginamos possam a mínima atenção aos negócios humanos, pot que essa,
deixar na alma dos jovens que os escutam? Refiro-me preocupação de nos escondermos? Se existem, de fato,
aos bem-dotados e capazes, por assim dizer, de e se preocupam conosco, tudo o que sabemos deles é
apanhar, do que ouvem, de passagem e como num vôo, por ouvir dizer ou o que nos contam os poetas em
a conclusão de como devem ser e qual o caminho a suas genealogias. Ora, esses mesmos poetas afirmam
percorrer para atravessarem a vida do melhor modo que eles são sensíveis a sacrifícios e oferendas, como a
possível. Não faltará quem repita pata si mesmo preces piedosas, e que se deixam dobrar pelos homens.
aqueles versos de Píndato: E preciso acreditar em ambas as coisas ou em
nenhuma. Se lhes dermos crédito, poderemos ser
Como escalar o muro intransponível: injustos e oferecer sacrifícios com o próprio ftuto de
pelo direito ou por caminhos tortos, nossa atividade. E certo que, se formos justos,
escapamos do castigo dos deuses, mas, por outro lado,
a fim de passat seguto o resto da vida? Estou cansado renunciaremos às vantagens da injustiça. Se formos
de ouvir dizer que a justiça não me será de nenhuma injustos, pelo contrário, guardamos o ganho e pot meio
vantagem e, ao contrário, só me ocasionará trabalhos de preces convenceremos os deuses a relevar nossas
e dissabores, se, além de ser realmente justo, eu não faltas e transgressões, do que resulta, afinal, escapatmos
patecer que o sou; porém se for injusto e souber ao castigo. Sim, mas no Hades ser-nos-ão impostas
aparentar justiça, prometam-me uma vida somente penas pelos crimes aqui praticados, ou aos filhos de
c [comparável à dos deuses. Por conseguinte, visto nossos filhos. Ora, meu caro, contestará quem souber
| proclamarem os sábios que a aparência manda na fazer as contas, muito podem as expiações e os deuses
verdade e dirige a felicidade, é para esse lado que libertadores, conforme declaram as grandes cidades e
deverei voltat-me. À guisa de vestíbulo e fachada, vou os filhos dos deuses, os quais, como poetas é na
“traçar ao tedor de mim mesmo um simulacro da qualidade de intérpretes dos pensamentos divinos,
virtude, porém arrastarei atrás de mim a sutil e nos asseguram que tudo, realmente, se passa dessa
astuciosa raposa do sapientíssimo Arquíloco. Porém, maneita.
já ouço alguém observar não ser fácil ao malvado ficar
despercebido muito tempo. Sim, lhe responderemos, IX — Em que outros princípios, então, nos
o que é grande não é fácil; o certo é que, se quisermos basearemos: para prefetir a justiça e não a extrema
ser felizes, teremos de entrar pelo caminho a que vão injustiça, se é bastante escondermos esta sob aparência
dar os rastos do discurso, Para não sermos descobertos, enganadota, para que tanto da parte dos deuses como
fundaremos sociedades secretas e confrarias, sem da dos homens tudo nos corra segundo nossos desejos,
contar com o recurso dos professores de persuasão, assim em vida como depois de mortos, de acordo com
que nos comunicarão a sabedoria demagópica e a a opinião dos grandes e dos pequenos? Depois do que
tribunícia, e ora à custa de argumentos, ora com o ficou dito, Sócrates, como será possível decidit-se a
emprego da força, saberemos tirar partido de tudo sem cultuar a justiça quem dispuser de algum vigor da alma *

ARDEM
RTP Car rio mg COMPNCIRANNGES AT to A pa quai Ta SA ot reta ais atear ema meme mo Res cama veem emas agr am att itaa CAPS as DTUNDL Ua2 E ter custo o
Platão - A República Livro IF 107

ou do corpo, ou de qualquer superioridade conferida respeito da justiça e da injustiça, modificando, a meu


pela riqueza ou pela origem, em vez de tir quando parecer, por maneira imprópria, a natureza- de ambas.
ouve alguém elogiá-la? Sim, até mesmo quem pode Eu, porém, não vejo necessidade .de ocultar-té ter sido
demonstrar a falsidade do- que dissemos e esteja apenas o desejo-de ouvir-te desenvolver a tese contrária
plenamente convencido da superioridade da justiça que me levou a expressar-me com toda essa veemência.
- desculpa os delinguentes e não se zanga com eles; sabe Assim, não te limites a mostrar-nos em tua exposição
perfeitamente que, com exceção de quem for dotado que a justiça é superior à injustiça, porém como atua
de capacidade divina para sentir aversão à injustiça, cada uma delas na alma dos homens, para que, em si
ou se tenha tornado esclarecido pelo conhecimento, mesmas, uma seja boa e a outra, má. Ponhamos de
ninguém é voluntariamente justo e só condena a lado a reputação, conforme Glauco recomendou,
injustiça por pusilanimidade ou velhice ou qualquer porque, se não despojares ambas as partes da verdadeira
outra debilidade, isto é, pela própria incapacidade de “reputação e acrescentares a falsa, diremos: que não
praticá-la, É mais do que claro! Mal alcança qualquer elogias a justiça nem censuras a injustiça, senão sua
essoa o poder, imediatamente torna-se injusto, na aparência, e que nos aconselhas a praticar a ocultas a
medida
das opormmidades
que se lhe nfacecem, E cido injustiça e estás de acordo com Trasímaco em
isso não tem outra causa além da que deu origem à considerar a justiça um bem estranho, a saber, a
discussão que eu e Glauco travamos contigo, Sócrates, vantagem do mais forte, vindo a ser a injustiça útil e
para dizer-te: Meu admirável amigo, todos vós que vos vantajosa para si mesma, conquanto nociva para o mais
apresentais como paladinos da justiça, desde os heróis fraco. Uma vez que admitiste ser a justiça um dos
da antiguidade, cujos escritos nos foram transmitidos, maiores bens, cuja posse é desejada tanto pelo que delá
até os homens de nossos dias, ninguém condenou até decorre como, € principalmente, por ela mesma, como
hoje a injustiça ou fez o elogio da justiça a não ser por a vista, o ouvido, a razão, a saúde e os demais bens
causa da reputação, das honrarias e dos benefícios dela que são operantes por sua própria natureza, não pela
decorrentes. Mas, a maneita por que atua a justiça ou opinião. que os homens fazem deles, então elogia
a injustiça na alma em que se encontrem, graças à também na justiça o que nela é de vantagem pata o
virtude própria, sem que os deuses e os homens o seu possuidor, e na injustiça o que nele prejudica; deixa .
saibam, ninguém ainda, nem em verso nem em prosa, ao cuidado de terceiros o elogio das recompensas e da
fez a demonstração convincente de -que uma é o maior opinião. Na boca de outras pessoas, eu ainda poderia
mal que a alma possa tet em si mesma, e a outra, a tolerar essa maneira de elogiar a justiça ou de reprovar
367 a justiça, o maior bem. Se assim nos tivésseis falado do a injustiça em que são exaltados ou condenados o
começo e procurado desde a infância convencet-nos prestígio ou as vantagens de uma e de outra, Porém de
de semelhante verdade, não teríamos precisão de nos ti, que dedicaste a vida exclusivamente ao estudo dessa
vigiarmos reciprocamente para não cometermos questão, espero coisa muito diferente, a menos que
injustiça, pois cada um seria o melhor guarda de si decidas o contrário. Não te limites, portanto, a declarar
mesmo, por medo de, com a prática de alguma que a justiça é superior à injustiça, mas mostra-nos
maldade, agasalhar o maior mal. “como cada uma atua por si mesma
no seu possuidor e
Tudo isso, Sócrates, e muito. mais ainda, o que faz de uma um bem e de outra um mal, quer.
certamente, Trasímaco e outros poderiam dizer a seja vista ou não seja pelos deuses e pelos homens.
,
108 Platão - A República Livro 109

X — Ouvindo-os, admirador como sempre fora da Uma vez que não somos suficientemente idôneos, lhes
natureza de: Glauco e de Ádimanto, fiquei disse, para levar avante uma investigação nessa base,
368a satisfeitíssimo e lhes falei: Tinha todo o direito, filhos proponho procedermos como alguém a quem
' daquele varão, o apaixonado de Glauco, de iniciar deste mandassem ler de longe letras pequeninas e. ocorresse
modo a glegia em que exalta vossos feitos na batalha a outta pessoa que havia algures letras iguais âquelas,
de Mégara: porém em caracteres maiores e numa superfície mais
larga; seria resolução felicíssima começar a leituta por .
ó filhos de Aristão, raça divina estas e depois passar para as menotes, para ver se eram,
de um ilustre genearca! realmente, iguais.
Muito bem, disse Adimanto; mas, que relação
À meu parecer, amigos, é muito justo o elogio. Forçoso “descobres entre isso, Sócrates, e O problema da justiça?
é que vos tenha tocado algum influxo divino, para não Vou dizer-te, repliquei. À justiça pode referir-se
ficardes convencidos da superioridade da injustiça tanto a um indivíduo como a uma cidade inteira.
sobre a justiça, depois de falardes a seu respeito como Perfeitamente, tespondeu.
o fizestes. Minha impressão é de que o não estais. E não é maior a cidade do que o indivíduo?
Deduzo isso do vosso caráter, pois só pelos discursos Maior, disse.
de agora teria de mostrar-me um tanto desconfiado. Sendo assim, é possível haver no que é de
Porém, quanto mais acredito em vós, tanto maior é a dimensões mais amplas uma justiça maior e mais fácil
dificuldade em que me vejo para tomar qualquer 369. de conhecer. Caso estejais de acordo, investiguemos
resolução. O fato é que não sei como sair em socorro de início como é a justiça na cidade, pata depois a
da justiça, pois não me considero à altura de
semelhante missão. E a prova é que não vos satisfez, os traços fundamentais “do maior conceito com a as
conforme me pareceu, o que eu disse a Trasímaco, pata formas mais pequenas.
demonstrar que a justiça era superior à injustiça. Por A idéia se me afigura excelente, respondeu.
outro lado, não me é possível deixar de defendê-la; E então? perguntei: no caso de acompanharmos
receio que seja impiedade desanimar quando a atacam em pensamento a formação de uma cidade, não
na minha presença e não sair em sua defesa enquanto assistiremos, no mesmo passo, a0 processo do nascimento
dispuser de algum alento e estiver em condições de da justiça e da injustiça?
falar. O melhor partido, portanto, será socortê-la como É possível, respondeu.
me for possível. E, uma vez nesse ponto, não haverá probabilidade
Glauco e os demais circunstantes insístiram de encontrarmos facilmente o que estamos procurando?
comigo pata que a defendesse de qualquer jeito e não Muito mais facilmente, respondeu.
deixasse morter a discussão, porém estudasse ambas, E achas de bom aviso tentar a experiência? Parece-me
a justiça e a injustiça, em sua essência, e dissesse o que que o trabalho não vai ser pequeno. Reflete bem.
há de verdade a respeito das vantagens de uma e de Já trefleti, disse Adimanto; não mudes de resolução.
outra: Falei-lhes; então, como de fato pensava, não ser
nada fácil a investigação que nos propúnhamos, e que XI — Segundo o meu modo de pensar, principiei,
esse estudo, a meu parecer, exigia vista penettante. forma-se. uma cidade quando nenhum de nós se basta

rToqnarpeça o PERNA DA a MERAS e RO TANTO ANTT A pa ES PITA T Sent a


Cale PAT PREPAREM
RS CI AEE STUART SMART cm alo ea RT tar quantia DESA
TE SC NBITEIN SS SRS Lat e tran prabacenato centers carntea ocre cena ma taN oo

Platão - A República Livro 111

a si mesmo e necessita de muitas coisas. Ou admites quatro, gastando quatro vezes mais tempo no esforço
outra causa para o nascimento das cidades? de assegurar a alimentação dos outtos, ou, de
De fortna alguma, disse. preferência, sem preocupar-se com estes, só cuidará
Assim, quando um indivíduo chama outro para 370 a de obter para si mesmo um quarto desse alimento na
ajudá-lo nalgum empreendimento, e mais um terceiro quarta parte do tempo, empregando as outras três
pata outra precisão, desse modo, por serem múltiplas partes na construção de sua casa, ou no preparo de
- as necessidades de cada um, vários indivíduos se vestes e de sapatos, sem se incomodar de trabalhar para
reúnem no mesmo local, para reciprocamente se os outros e suptindo sozinho a todas as suas
auxiliarem. Damos o nome de cidade a semelhante necessidades?
ajuntamento, não é verdade?. Nessa altura, Adimanto observou: Talvez, Sócrates,
Perfeitamente. a primeira hipótese seja mais cômoda do que a outra.
Mas, alguém só entrega alguma coisa a quem quer Sim, por Zeus, voltei a falar, e não seria nada de
que seja, no caso de ter o que dat ou de receber também admirar; pata começar, enquanto falavas, ocorreu-me
algo, de que espera auferir alguma vantagem. que não somos iguais por natureza, mas nascemos com
Isso mesmo. disposições diferentes, cada um com mais jeito para
Muito bem, lhe disse; façamos, então, surgit em determinado trabalho, não te parece?
pensamento uma cidade desde o seu começo. Em sua É também o que eu pênso.
origem, ao que parece, estão nossas necessidades. E então? Como fará alguém trabalho mais perfeito:
Que mais poderia ser? aplicando-se ao mesmo tempo a muitas atividades ou
Mas a primeira e maior necessidade é encontrar dedicando-se apenas a uma?
alimentos, base imprescindível da existência e da vida. Apenas a uma, respondeu.
Sem dúvida nenhuma, Outro ponto, lhe disse, se me afigura evidente:
A segunda é a moradia; a terceira, vestes e coisas todo o trabalho que não é feito no tempo certo acaba
semelhantes, por perder-se,
Isso mesmo. Sem dúvida.
Vejamos agora, continuei, de que modo a cidade Porque, a meu ver, lhe falei, o que tem de ser feito
se atranjatá para suptir tantas necessidades. Alguém não espera pela disposição do trabalhador, sendo de |
não terá de ser lavrador, um outro, pedreiro, e um necessidade que este se dedique seriamente ao seu
terceiro, tecelão? E não será bom acrescentarmos a ofício, em vez de considerá-lo mero passatempo.
esses um sapateito ou mais algum artesão pata outras É fato. o
necessidades do corpo?- Por conseguinte, tudo se fará em maior
Perfeitamente. , quantidade, mais facilmente e melhor quando cada
Sendo assim, a cidade mais rudimentar deverá pessoa puder trabalhar de acordo com suas aptidões e
constar no mínimo de quatro ou cinco pessoas. no tempo certo, e deixar tudo o mais de lado.
Parece que sim. Sem dúvida,
E então? Deverá cada um pôr à disposição dos Então, Adimanto, precisaremos de muito mais de
demais o resultado do seu trabalho, como o lavrador quatro cidadãos para as necessidades que enumetamos.
que, sendo um somente, produzirá alimento para Pelo que vemos, o agricultor não irá preparar seu
Livro IT 13
112 Platão - À República

próprio arado, se tiver este de sair bem feito, nem sua Precisamos, de fato.
enxada e os demais utensílios para trabalhar a terra; o E também o dos incumbidos de importar ou de
exportar as mercadorias, a saber: os comerciantes, não
pedreiro, também, não fabricará seus instrumentos de
trabalho, e são vários os de que ele necessita, o mesmo é verdade”
acontecendo com o tecelão e o sapateiro. Sem dúvida.
É muito certo. Sendo assim, vamos precisar também de comerciantes?
Sendo assim, passarão a fazer parte de nossa Perfeitamente.
E se o comércio se fizer por mar, precisaremos
pequena cidade carpinteiros, ferreiros e muitos outtos
profissionais que a deixarão consideravelmente ainda de um número maior de trabalhadores,
aumentada. justamente dos que têm prática da vida do mar.
- Exato. Muito maiot, sem dúvida.
Porém ainda não ficará muito grande, se a esses
agregarmos boieiros e pastores de ovelhas e de outros XII — E com respeito à própria cidade, de que
animais, pata que os agricultores disponham de bois modo será feita a permutação do que cada um produzir
com seu trabalho? Foi pata isso, precisamente, que se
para o arado, e de bestas os construtores para os
transportarem com os lavradores, e tenham peles e lãs congregaram e fundaram a cidade.
É evidente, respondeu, que será por meio de
os tecelões e os sapateiros,
“Deixaria de ser, observou, uma cidade pequena a compta e venda.
- que congregasse tanta gente. Daí, então, terá de surgir um mercado e a moeda
Porém, objetei, seria quase impossível fundar uma
representativa do valor das trocas.
cidade num local em que não fosse necessário importar Perfeitamente.
Mas, se O lavrador ou qualquer outro trabalhador
nada,
Impossível, realmente. especializado levar para o mercado o que ele produzit
Precisará, portanto, de novos cidadãos que lhe e lá não chegar juntamente com os que desejam
permutar com ele os seus produtos, não terá de
tragam de outras cidades o de que ela necessita.
descurat-se de suas ocupações pata deixat-se ficar
É fato.
Mas, se o emissário for de mãos vazias, sem levar
sentado no local?
De forma alguma, respondeu; há pessoas que,
nada do que precisam os que devem suprir as
37la necessidades de seus concidadãos, voltará também de percebendo esse inconveniente, se oferecem para
mãos abanando, não te parece? semelhante serviço, o que se observa, de regra, nas
Penso que sim. cidades bem constituídas, indivíduos
Sam fracos 0! Cananit —
fisicamente e incapazes de qualquer outra ocupação. VA +
Não deverão, portanto, produzir em casa apenas
pata o gasto, mas tudo em quantidade e variedade Esses passam o tempo no mercado trocando por
suficientes para atender aos pedidos dos que lhe suprem dinheiro os produtos que outros querem vender, e
as necessidades. convertendo estes, novamente, em dinheiro com os que
É isso mesmo. têm necessidade de comprá-los.
Essa necessidade, então, lhe observei, é que em
Precisamos, pot isso, aumentar o número dos
trabalhadores agrícolas e dos artesãos de nossa cidade. nossa cidade dá origem à classe dos comerciantes. Pois

RED Mastro cet co cerco


114 Platão - A República Livro H 115

não damos o nome de tendeiros às pessoas que se plantam - deuses, em amigável convívio uns com os outros,
no mercado prestando serviços nessa atividade de compra regulando o número dos filhos de acordo com os
e venda e não reservamos o de viajantes pata Os que saem recursos próprios, de medo da pobreza e da guerra.
a negociar de cidade em cidade?
Perfeitamente. XIII — Nessa altura Glauco me interrompeu. para
Há outra classe de trabalhadores, segundo penso, dizer: Pelo que vejo, tua gente passa apenas a pão seco?
' que, intelectualmente, não são dignos membros da Lembraste a tempo, lhe respondi; esqueci-me de
|; comunidade, mas que, em virtude do vigor físico, são que eles têm de prover-se do restante: sal, azeitonas e
capazes de realizar trabalhos pesados. Esses vendem o queijo, bem como de cebolas e legumes, que é o que
emprego da força física e ao preço dão o nome de comem no campo e eles terão também de prepatá-los.
salário; por isso mesmo, quero crer, são chamados Até sobremesa lhes daremos: figos, ervilhas e favas,
assalatiados, não é verdade? e também bagas de mirto e castanhas, que assarão no
Perfeitamente. borralho, com acompanhamento moderado de vinho.
Logo, os assalariados, no meu modo de ver, -Passando dessa maneira a existência, em paz e com saúde,
constituem um complemento indispensável da cidade, chegarão à velhice, como é de esperar, e transmititão o
É também o que eu penso. mesmo modo de vida a seus descendentes.
E agora, Adimanto, em crescimento já terá a cidade Nesse ponto, ele observou: Se tivesses, Sócrates,
alcançado a petfeição? de organizar uma cidade de porcos, disse, de.que outro. -
bem possível. modo poderias alimentá-los?. .
Em que lugar, então, se encontra a justiça e à injustiça? Então, que precisarei fazer, Glaucô? perguntei.
E com qual das coisas examinadas elas surgiram? Como é de uso, disse: para não levarem vida
o que não percebo muito bem, Sócrates, miserável, segundo penso, recostados em leitos,
372 a respondeu; a menos que tenham nascido das relações disporão de mesa para as comidas ea sobremesa que -
recíprocas entre os cidadãos. - atualmente servem.
Ê possível que estejas com a razão, lhe observei. Que seja, lhe falei; compreendo. Não estamos
Levemos avante, pot conseguinte, sem desanimar, considerando apenas como se. forma uma cidade
nossa investigação. Inicialmente, vejamos de que qualquer, porém uma cidade farta. Talvez não haja mal
maneira passarão a viver as pessoas que se otganizaram nisso; estudando uma cidade nessas condições, é possível
desse modo. Produzirão trigo e vinho, não é verdade? que venhamos a surpreender a justiça e a injustiça no
E vestes e calçados. Levantarão casas, descalços e momento preciso em que se originam.À meu ver, a
despidos, em sua maioria, durante o verão, e, no inverno, verdadeira cidade é como a que descrevemos: sadia. Mas,
vestidos e calçados como convém. Alimentar-se-ão de se quiserdes considerar também outro tipo de
farinha de cevada ou de trigo, por eles mesmos comunidade, a pletórica, nada nos impedirá de fazê-lo.
amassada ou assada, para o prepato de pães e bolos 373 a Muita gente, ao que parece, não se.agrada da primeira
saborosos, que serão servidos em esteiras ou em folhas nem de seu regime de vida; acrescentam-lhe mesas,
limpas; reclinados em leitos juncados de teixo e murta, leitos e móveis de vária. natureza, iguatias, perfumes,
regalar-se-ão ao lado dos filhos, a beber vinho, com a - incenso, cottesãs, bolos, tudo com variedade e
fronte engrinaldada, e cantarão hinos em louvor dos abundância. Sim, teremos de ir além do necessário a
Livro iq 17
16 Platão - A República

que nos referimos 'acima: casas, vestes, calçados, para de fazet a mesma coisa com o nosso, logo que.
movimentar também as pintutas e os bordados e transpuserem os lindes do necessário e, também como
"adquirir outro e marfim e tudo o mais da mesma € nós, se empenharem na corrida para a aquisição de bens.
espécie, não é verdade? Será inevitável, Sócrates, tespondeu.
Sim, respondeu.
Nesse caso, seremos forçados a aumentar nr
, Então, daí por diante, Glauco, teremos de guer-
rear. Ou como faremos?
” Isso mesmo, tettucou.
considetavelmente a cidade; a primeira, a sadia, já se
nos tevelou insuficiente; teremos de sobrecarregá-la
Não nos alatguemos agora, observei, em
com o lastro de pessoas cuja presença não é exigida considerações sobre sabermos se a guerra tem boas ou
mãs consequências; limitemo-nos a dizer que .
“por nenhuma necessidade, como toda a classe de
caçadores e de imitadores, muitos dos quais se ocupam
descobrimos a otigem da guerra, fonte das mais
com figuras e cores, muitos, também, com música: são terríveis calamidades, assim públicas como
os poetas e seus servidores, rapsodos, atores, particulares, onde. quer que se manifeste.
-dançatinos, empresários e também os fabricantes de Perfeitamente.
Sendo assim, caro amigo, nossa cidade terá de
“artigos de toda a espécie, principalmente de uso
ampliar-se mais ainda; e não se tratará desta vez de.
Sa O

feminino. O número de auxiliates, outrossim, terá de


set consideravelmente aumentado; ou não te parece 374a algo insignificante, mas de um exército inteiro que terá
“de sait ao encontro dosi invasores, em defesa dos nossos
"que necéssitamos de pedagogos, amas, camareiras,
haveres e de tudo o que enumeramos há pouco.
E:

modistas, além de cozinheiros e açougueiros? Teremos


também de arranjar porqueiros, para os quais não havia Como assim? perguntou; os próprios cidadãos não
lugar em nossa primeira cidade, pois ninguém, então, poderão incumbit-se disso?
necessitava deles. Nesta, porém, totnaram-se Não, lhe respondi, se estávamos certos nos
indispensáveis; precisaremos, ainda, prover-nos de
princípios sobre que ficamos de acordo, quando
guardadores de muitas outras espécies de animais, pois formamos a cidade. O que assentamos, como deves
haverá quem queira alimentar-se deles, não é verdade? estar lembrado, é que é impossível a qualquer pessoa
Como não? exetcer com perfeição muitas atividades.
Mas, com semelhante regime, vamos ter muito Tens razão, disse.
. maior necessidade de médicos do que antes, não é, E então, lhe perguntei: não te parece que a
verdade?-
competição bélica é uma arte?
Sem dúvida.
Sem dúvida, respondeu.
E a arte do sapateiro, voltei a falar, deverá exigir
XIV — E a terra, suficiente até então para alimentar
maior atenção de nossa parte do que a do guerreiro?
os primeiros moradores, passará a ser pequena e De forma alguma.
inadequada. Ou que diremos? Não deixamos o sapateiro trabalhar ao mesmo
tempo como lavrador, tecelão ou pedreiro, mas apenas
É assim mesmo, respondeu.
' Logo, teremos de cortar uma fatia do território como sapateito, para que sua arte nos fornecesse
dos nossos vizinhos, se quisermos ter chão bastante produtos bem acabados. Da mesma forma procedemos
para a lavoura e O pasto, como aqueles também terão com os outros, indicando para todos uma única
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118 Platão - À República 119

atividade e mais de acordo com sua inclinação, com Decerto, respondeu.


inteira folga das demais, a que deveriam dedicar-se toda No teu modo de pensar, perguntei, a natuteza de
a vida, para não perderem a oportunidade de um cachorto de boa taça di : ente da
aperfeiçoar-se nas respectivas profissões. Não é verdade um jovem bem nascido, quando x igiar?
que as atividades relativasà guerra devem ser Que quetes dizer com isso?
desempenhadas com a maior eficiência possível? Ou É que ambos devem ser incisivos para descobrir e
serão tão fáceis, que qualquer lavrador poderá ser ao velozes para: perseguir o inimigo, bem como
mesmo tempo guerteiro ou sapateiro ou oficial de suficientemente fortes para lutar com ele quando
qualquer outro mister, quando vemos que ninguém capturado,
chega a ser bom jogador de gamão ou de dados, se não Sim, precisarão possuir todas essas qualidades.
se dedicar a esses jogos desde criança, em vez de só se E também coragem para lutar bem.
ocupar ocasionalmente com eles? Bastará pegar do “Como não?
escudo ou de qualquer outra peça ou arma de guerra Mas, um cavalo, um cão ou qualquer outro animal
para no mesmo dia tornar-se alguém ótimo soldado, poderá manifestar coragem, se não for dotado de brio?
tanto nos encontros da infantaria pesada como nas Já não observaste como o brio é algo indomável e
demais tropas de campanha? No entanto, é certo que invencível, e que com ele a alma se torna intrépida e
ninguém se torna profissional nem atleta apenas com irresistível?
o manejo, ocasional dos respectivos instrumentos, os Observei.
quais não serão de nenhuma utilidade para quem não Desse modo, tornou-se-nos manifesto como deve
adquiriu o conhecimento técnico de cada arte "ser fisicamente o guarda.
particular e não se exercitou suficientemente nelas. Sim.
Nesse caso, disse, os instrumentos teriam muito E também com relação àà alma, isto é, brioso.
mais valor, o Isso também,
E de que modo, Glauco, lhe observei, com
XV — Logo, continuei, quanto mais impottante semelhante temperamento poderão deixar de praticar
for a função dos guardas, mais exigirá dele tempo livre, violências tanto contra eles mesmos como contra
habilidade e aplicação. outros cidadãos?
Esse, também, é o meu modo de pensar, respondeu. Por Zeus, replicou; não será fácil absterem-se de
E não requer essa função aptidões naturais para O tal coisa.
seu desempenho? Terão, portanto, de ser mansos s para seus familiares
Como não? e agressivos apenas para os inimigos, sem o que não
Consistirá, portanto, nossa tarefa, se formos capazes esperatão que os inimigos os destruam; eles mesmos
de levá-la a bom termo, em escolher as pessoas indicadas os anteciparão nesse mister.
por natuteza para à função de guardas da cidade. E muito ceíto, disse.
Consistitá nisso, realmente. Nesse caso; que faremos? perguntei, Onde encontrar
Por Zeusl observei; não é carga pequena a que , “temperamentos mansos.a um tempo e violentos? À
pusemos sobre os ombros; porém, não devemos natuteza branda é precisamente O oposto da impulsiva.
“desanimar enquanto nos sobtar alguma força. É evidente.
120 * Platão - A República Livro 121

No. entanto, vindo a faltar uma dessas qualidades, Antes, não havia prestado atenção nisso; mas é
não poderá haver bom guarda; mas parece impossível evidente que eles procedem dessa maneita, '
a combinação das duas, donde set lícito concluir que Realmente, trata-se de uma manifestação
jamais conseguiremos encontrar um bom guarda nessas admirável de sua natureza e, sobretudo, filosófica.
condições. Como assim? «
Receio que-seja assim mesmo, disse. É que o cão só faz diferença entre a fisionomia amiga |
Perplexo, pus-me a meditar no que havíamos até da inimiga pot conhecer uma e-não conhecer a quita.
então considerado, e lhe falei: Justifica-se, amigo, nosso - Ota, como deixar de set imento O
enleamento, pois não nos mantivemos coerentes com animal que distingue entre conhecidos e estranhos pelo
"a imagem pot nós mesmos proposta no começo. fato de reconhecer uns € desconhecer outros? |
Como assim? eo Não pode ser de outta maneira, respondeu.
Pois não refletimos que há, de fato, temperamentos Como não ignotas, o desejoso de saber e o filósofo
em que esses opostos se reúnem, e declaramos ser se equivalem, lhe falei.
impossível coexistirem. Sim, equivalem-se, tespondeu.
Onde os encontramos? Assentamos, portanto, com toda à confiança, que
Em muitos: animais, e não em menot gtau no que o homem, também, se tiver de mosttat-se manso pata
apresentamos como paradigma. Como sabes, os cães de seus familiares e conhecidos, terá de ser naturalmente
boa taça são, por natureza, de temperamento tão manso filósofo e ávido de saber.
quanto possível para os conhecidos e pessoas da família, Assentemos, respondeu.
e o contrário disso, precisamente, pata os estranhos. Logo, filósofo, brioso, rápido de movimentos e
E muito certo. forte é como precisatá ser o indivíduo destinado a
Logo, a coisa é possível, continuei; e não iremos tornat-se um bom guarda da cidade.
contra a natureza se procutarmos um guarda nessas É muito certo, respondeu. .
condições.: Que seja, portanto, assim constituído . Mas de que
É claro que não. maneita criaremos e educatemo s esses homens? E
poderão contribuir de algum modo semelhantes
XVI — E não te parece, também, que o futuro considerações para resolver a: questão de onde
guarda necessita demais alguma coisa: além de espírito partimos, a saber: de que modo surgem na cidade a
animoso, disposição filosófica? justiça e a-injustiça? Precisamos ter cuidado para não
Como assim? perguntou; não compreendo. omitirmos nenhum aspecto importante do problema
E o que, poderás observar nos cães, lhe disse, nem-nos estitarmos em divagações desnecessátias.
qualidade muito digna de admiração num animal, Nesta altura, o irmão de Glauco observou: De
De que se trata? todo jeito, espero que nos seja de grande proveito
Rosna ao vet um desconhecido, ainda mesmo que semelhante estudo. '
antes não tivesse sido maltratado por ele, 20 passo que Pot Zeus, meu cato Adimanto, retruquei; não
manifesta alegtia para os conhecidos, embora sem podemos deixar de levar adiante o exame, por mais
nenhum carinho da parte destes. Nunca te causou “longo que prometa ser.
admitação semelhante fato? - Não podemos, de fato.
| 122 Platão - A República
Livro II 123

por quem for e, assim, recebam na alma noções na


- Então, façamos de conta que temos vagar para
inventar histórias e orientemos em pensamento a maioria das vezes contrárias às que desejaríamos que
história da: educação dos nossos homens. venham a possuir quando crescerem?
E o que precisamos fazer. De nenhum jeito o permitiremos.
Pot conseguinte, teremos de começar pela vigilância vos nes
tedeo O
sobre os criadores de fábulas, pata aceitarmos as boas e
h q duca ço qo
XVII — Que educação lhes daremos? Será difícil
achar outra melhor do que a que já foi encontrada no rejeitarmos as tuins. De seguida, recomendaremos às ido
aa dave

decurso dotempo,
a saber: Ginástica patao corpo e. amas e às mães que contem a seus filhos somente as que
do Música pata a alma, lhes indicarmos e procurem amoldar por meio delas as gua,

Isso mesmo. almas das crianças com mais carinho do que por meio
E não devemos começar a educação pela Música e das mãos fazem com o corpo. À maioria das que estão
não pela Ginástica? presentemente em voga deve ser rejeitada.
Por que não? Quais são? perguntou.
Porém, quando falas em Música, subentendes Pelas histórias grandes podemos julgar as pequenas;
também o discurso, não é verdade? importa que ambas, as grandes e as pequenas, sejam de
um só tipo e produzam o mesmo efeito, não te parece?
Perfeitamente.
Mas os discursos podem ser de duas modalidades: Sim, respondeu; porém não compreendo quais
verdadeiros ou mentirosos. sejam essas histórias grandes a que te referes.
Às qué Hesíodo e Homero nos deixaram, lhe falei, e
É certo.
377 a Ambos devem fazer parte da educação, porém em outros poetas, pois são eles os autores das fábulas mentirosas
primeiro lugar os mentirosos, não é assim? que então contavam aos homens e aínda contam. .
Não compreendo, respondeu, o que quetes dizer. Quais são, perguntou, e o que nelas te parece
Não compreendes, lhe falei, que começamos pot censurável?
contar histórias às crianças? Ora, essas histórias, de
É o que será preciso condenar desde o início com
modo geral, são mentirosas, potém contêm algo todo o empenho, principalmente quando a mentira
verdadeiro. Sendo assim, antes de iniciarmos as não for bem contada.
crianças em Ginástica, lhes contaremos histórias. Por exemplo? -
Isso mesmo. Quando fazem uma descrição errônea da natureza
Esse o motivo de haver eu dito que devíamos dos deuses e dos heróis,à maneira do mau pintor, cujo
- ensinar Música antes de Ginástica.
trabalho em nada se parece com o original que se
É muito acertado, disse. - propusera retratar.
Mas, como sabes, o mais importante em tudo é o Realmente, disse; tudo isso merece, de fato, franca
repulsa. Mas, como e em que se tornam passíveis de
começo, máxime se se tratar de seres novos e delicados.
b Nessa fase, justamente, é que se formam e aptofundam os nossa condenação?
traços que pretendermos imprimir em qualquer pessoa. Para começar, lhe disse, foi ruim inventor quem
É mais do que claro. forjou a mais deslavada mentira, e sobre assunto de
E levaremos nossa negligência a ponto de permitir grande relevância, no que respeita às atrocidades que
que os meninos ouçam qualquer fábula inventada seja Hesíodo atribui a Urano e à vingança que deste tomou
124 Platão - À República Livro dI / quero 125

378a Crono. Os atos, também, de Crono e tudo o que lhe mãe quando esta apanhava daquele, e bem assim todas as
infligiu seu filho, ainda que fossem verdadeiros, a meu batalhas entre os deuses imaginadas por Homero, éo
» patecer não deveriam ser contados com tanta que será terminantemente proibido contar em nossa
me « 1

que
a
te qine Rd
leviandade a jovens de pensamento imaturo. Teria sido cidade, quer encerrem, quer não ercertem sentido
m
” melhor silenciat; mas, se houvesse mesmo necessidade alegórico. Os moços não têm capacidade pata decidir
(ot? de mencioná-los, que fosse isso, então, dito em segredo
e ao menor número possível de pessoas, depois do
sobre a presença ou ausência de idéias ocultas; as
ão 1 xeis..e.
O ia impressões tecebidas nessa 1
ad sactifício, não de um potco, mas de alguma vítima importa , antes

Ah
, dificilmente extadicáveis. Por isso mesmo, icas por
grande e difícil de encontrar, para que ratos ouvintes as criaçõe s mitológ
ad viessem a ter conhecimento do episódio.
de mais nada, que as ptimeir
eles ouvidas sejam compostas com vistas à morali dade.
Sem dúvida, disse; trata-se de fábulas perigosas.
Que não devem ser, Adimanto, observei, repetidas XVIII — É muito tazoável, disse, o que afirmaste;
b em nossa cidade, como também não devemos dizer a mas, e se alguém voltasse a interrogar-nos a tespeito
um jovem que não fará nada de mais se praticar as do que disseste, e perguntasse que mitos são esses, que
maiotes barbaridades, ainda mesmo que chegue a lhe responderíamos?
ponto de castigar o pai pot alguma falta cometida, e Ao que lhe obsetvei: Ota, Adimanto, neste
que, se assim- proceder, seguirá tão-somente o exemplo 379 a motnento nem eu nem tu somos poetas, potem
das primeiras e maiores divindades, . fundadores de cidade, O que cumpre a fundadores é
Sim, por Zeus, replicou; a mim também parece conhecer os modelos segundo os quais os poetas
que essas histórias são impróprias. plasmaram suas concepções e não permitir que se
Como também, continuei, não deve ser dito, em afastem deles. A nós não compete plasmá-las.
absoluto, que os deuses declaram guerra a outros deuses, Está certo, respondeu; mas, que modelos são esses
armam ciladas uns pata os outros e se combatem entre a serem seguidos no domínio particular das lendas dos
c sí, O que, aliás, não é verdade, caso nos empenhemos em deuses? .
que os futuros guardas de nosso burgo considerem O que eu penso é o seguinte, respondi: tal como
desontoso criar inimizades recíprocas por motivos fúteis, for o deus em sua essência, assim terá de ser
Muito menos devemos falar-lhes em batalhas de gigantes representado, pouco importando o gênero de poesia
ou apresentá-las em pinturas, nem nas brigas de toda em que apareça: épico, lírico ou trágico.
espécie dos deuses e dos heróis contra seus parentes e E realmente como deve set.
familiares. O contrário disso é que será preciso fazer, se E não é certo que. a divindade é essencialmente
quisermos convencê-los, de fato, de que nunca, até ao boa e, como tal, deverá set apresentada?
presente, houve inimizade entre os cidadãos, o que Como não?
constituiria impiedade, Isso, sim, é o que desde cedo E não é também certo que o bem nunca prejudica?
d velhos e velhas deverão dizer às ctianças; e quando estas Penso também dessa maneita.
se totnatem grandes, não deverão os poetas fazer para Pois não pode ptejudicar o que não for prejudicial.
todos suas composições senão de acordo com tais É impossível, e .
princípios. Hera, posta a ferros pot seu próprio filho e Como não pode ser causa de nenhum mal o que é
Hefesto, precipitado pelo pai, por ter querido defender a inócuo. ,

OO RL EA US ADE C LAR TOUR


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CARLA O eta mica uno anan apyrmea preso nr
MSPRECEIPLC
126
Platão - A República Livro H 127

* Como o poderia? BIX — Mais, ainda: se alguém disser que foi obta
E agora: o bem não será vantajoso? de Atena e de Zeus a ruptura dos juramentos e tratados
Sim. ocasionada por Pândaro, não terá nossa aprovação,
E, por conseguinte, causa de bem-estar? estando no mesmo caso o julgamento. e a batalha dos
Certo. 380 a deuses. De igual modo; não permitiremos que os
Sendo assim, o bem não é causa de tudo, porém moços ouçam o que diz Esquilo:
apenas do que é bom; não poderá ocasionar males.
Seguramente, disse. Deus entre os homens faz nascer o crime
Logo, sendo boa a divindade, não é causa de tudo quando arruinar deseja alguma casa.
como geralmente se acredita, mas de muito pouco do
que se passa com os homens; na maioria das coisas ela Se algum poeta tratar dos sofrimentos de Níobe, onde
não tem ingerência. É muito menor o número de coisas se enconttam esses versos jâmbicos, os dos Pelópidas,
boas que nos acontecem do que tuins. O bem não terá ou do destino de Tróia, ou qualquer outro assunto do
causa diferente; potém os males, qualquer outra, com mesmo gênero, não permitiremos que assevere ter sido
exclusão da divindade. tudo obra dos deuses, a menos que procure explicar o
Afigura-se-me muito certo o que disseste, fato como vamos tentar fazer neste momento, para
respondeu. dizer que Deus só fez o que era justo e bom e que os
Não podemos, por conseguinte, aceitar culpados lucraram com o castigo; porém que, com o
determinados erros nem de Homero nem de qualquer castigo, os: mortais se. tornaram: infelizes e que Deus
outro poeta com relação à divindade, como ao afirmar foi o autor de sua desgraça, é o que não permitiremos
aquele por maneira insensata que aos poetas afirmar. No caso, todavia, de quererem dizer
que o castigo dos maus se impunha por sua própria
Sobre os umbrais do palácio de Zeus dois tonéis se infelicidadee que com a punição foram ajudados por
o acham postos, Deus: isso lhes será concedido. Mas, afirmar que Deus,
de suas dádivas: um só de males; de bens o outro sendo bom, é causador da desgraça de qualquer pessoa,
cheio; é o que por todos os meios teremos de combater;
ninguém deverá dizer semelhante coisa em qualquer
ea quem Zeus dá uma mistura dos dois, cidade que se preze de sua legislação, como não será
permitido ouvir isso nem a moços nem a velhos, quer
Quem o recebe ora goza, ora males por sorte lhe tocam. sejam histórias em. prosa, quer em verso, porque, além
caso contrário, se receber dádivas de um tonel apenas, de impiedosas, não lhes trariam nenhuma vantagem,
sem mistura, sobre serem todas elas contraditórias. entre si.
Votarei contigo, disse, uma lei nesse sentido;
Esse, em extrema miséria, na terra divina agrada-me bastante,
é condenado a vagar. Seria essa, lhe falei, uma das leis relativas aos
E que também deuses e à norma dos discursose das criações poéticas:
que Deus não é causa de tudo, mas apenas do bem,
De bens e males é Zeus para nós o doador. Será mais do que suficiente, disse.
128 Platão - A República Livro IF 129

E com relação ao segundo princípio? Acreditas, Por isso mesmo, Deus está menos sujeito a
- porventuta,: que Deus seja algum mágico capaz de modificar-se por qualquer influência exterior.
- insidiosamente aparecer-nos sob formas diferentes e É evidente.
de esconder, assim, sua imagem real por trás de aparên-
cias enganosas, levando-nos com esses subterfúgios a XX — Mas, quem sabe se ele mesmo não se
formar juízo errôneo a seu respeito? Ou julgas que ele transforma e modifica?
setá, de preferência, muito simples e o ser menos capaz Sem dúvida, respondeu; isto é, no caso de,
de sair da forma que lhe é própria? realmente, modificar-se.
À esse respeito, disse, não sei responder de pronto. Mas, modificar-se-á para melhor e mais belo, ou
Considera apenas o seguinte: se alguma coisa muda para pior e mais feio do que ele é em si mesmo?
de forma, não será inevitável que essa mudança seja Para pior, necessatiamente, respondeu, se tiver de
feita ou por-ela mesma ou por outra coisa? modificar-se, pois não podemos admitir que Deus
Necessariamente. revele carência de beleza ou de virtude.
E não serão as coisas de conformação perfeita as -Falaste muito bem, lhe disse. Mas, se é assim,
menos sujeitas a setem modificadas e abaladas por Adimanto, achas mesmo que possa haver quem queira
influências: estranhas? Como o corpo, com relação aos tornar-se pior sob qualquer aspecto, ou se trate de
alimentos, às bebidas. e à fadiga, e as plantas, com deuses ou de homens? .
referência ao-.calot do sol, aos ventos e a outros Impossível, respondeu.
fenômenos naturais: os mais robustos e sadios não Fiça, então, afastada a hipótese de querer qualquer
38la serão os menos passíveis de. modificação? um dos deuses modificar-se. Não! Sendo cada um deles,
Sem dúvida. como tudo o indica, o mais belo e o melhor possível,
E a alma mais corajosa, justamente, e esclarecida, manterá sempre a forma que lhe é própria.
não setá a que menos se deixará abalar e modificar Tudo isso, respondeu, se me afigura irretorquível.
por acidentes externos? Por conseguinte, caro amigo, nenhum poeta nos
Exato. - venha dizer que
Assim, também, as coisas compostas, os móveis e
as vestes, de:acordo com essas mesmas considerações, Os próprios deuses, tomando as feições de um viajor
quanto mais bem trabalhadas e em bom estado se estrangeiro,
encontrarem, 'ménos virão a alterar-se sob a ação do sob os mais vários aspectos percorrem cidades e
tempo e. de outras influências. Campos,
- Isso. mesmo.
Tudo o que for perfeito, quer seja por natuteza, nem se ponham a espalhar mentiras a respeito de
quer seja pot arte, ou por ambas as causas, é menos Proteu e de Tétis, nem façam aparecer Hera em
exposto à ação de agentes estranhos. tragédias ou qualquer outra modalidade de poesia, sob
Acho que sim. a forma de sacerdotisa a mendigat para
Ora, é fato que Deus é perfeito sob todos os
aspectos, como tudo o que é divino. as dadivosas filhas
Como não? do Rio Ínaco, de Argos,
130 Platão - A República Livro 131

nem nos impinjam mil outras patranhas do mesmo mencionar, a saber: a ignorância que se encontra na
gênero. E que as imães, por seu lado, doutrinadas pelos alma da pessoa enganada, porque a mentira veiculada
poetas, deixem de pôr medo nos filhos com essas pela palavra não passa de imitação de uma experiência,
histórias da pior espécie, a respeito de certos deuses um simulacro de nascimento retardado, não uma
que andariam por aí, durante a noite, como mentita absolutamente pura, não é verdade?
estrangeiros, sob as mais variadas aparências, pois, Perfeitamente.
- assim procedendo, elas mesmas deixarão de blasfemar
contra os deuses e não contribuirão para que os filhos XXI — Assim, a verdadeira mentira é odiada tanto
venhama ficar pusilânimes. pelos deuses como pelos homens.
E muito certo, respondeu. É também o que eu penso.
Mas quem sabe, observei, se, sendo os deuses inca- E a mentira por meio da palavra, quando e para
pazes de modificar-se, levam-nos por meio de embustes quem pode ser útil, de forma que não mereça ser
e feitiçarias a acreditar que são vistos sob as mais odiada? Com relação aos inimigos, porventura, ou a
diversas aparências? algum dos denominados amigos, quando estes, num
É possível, disse. acesso de loucura ou de irreflexão, tentam praticar
Como? perguntei: dispor-se-á algum deus a mentir, algum ato lesivo, poderá ser útil como medida
382a por atos ou por palavras, e a apresentar-nos uma preventiva? E nas fábulas da mitologia a que nós
imagem falsa de si mesmo? referimos há pouco, por não sabermos como
Não saberei dizê-lo, respondeu. realmente se passaram os acontecimentos da
Não sabes, lhe perguntei, que a verdadeira mentita, antiguidade, acomodando do melhor modo possível
se nos for lícito usar essa expressão, é odiada pelos a mentira com a verdade, faremos que aquela se torne
deuses e pelos homens? útil?
Que queres dizer com isso? perguntou. É bem possível, respondeu.
O que digo, respondi, é que ninguém deseja mentir Mas, pot qual desses motivos a mentira pode ser
por gosto, no que há nele de mais alto e a respeito das útil a Deus? Quiçá por desconhecer ele a antiguidade
coisas de maior valor; nesse passoé onde mais se teme e imaginá-la falsamente?
vir a dar guaridaà falsidade. Fora ridículo, respondeu.
Esse ponto, disse, também não consigo Na divindade não há lugar para um poeta
compreender. mentiroso.
É que imaginas, lhe repliquei, que eu enunciei um Penso que não.
pensamento muito profundo. O que digo é que enganar E poderia levá-lo a mentir o medo dos inimigos?
ou ser enganado com todas as veras da alma a respeito Pior, ainda.
da verdade das coisas, e permanecer na ignotância e Ou a loucura e a irreflexão dos familiares?
ter e acalentar na alma a mentira é o que ninguém Nunca foram os deuses amigos de maníacos e de
deseja e todos odeiam acima de tudo. insensatos, respondeu.
Sim, e muito, respondeu. Também não há o que possa levar Deus a
Com todo o direito, disse, poderíamos definir mentir.
como verdadeira mentira o que acabamos de Não há.
132, Platão - A República Livro HH 133

Tudo o que for de natureza demoníaca e divina é não permitiremos que os professores empreguem suas
estreme de: falsidade. composições na educação dos moços, caso queiramos
Tudo, sem dúvida, respondeu. que nossos guardas fiquem piedosos e — tanto quanto
Logo, Deus é perfeitamente simples e vetaz, tanto o permitir a natureza humana — semelhantes aos
em atos-como em palavras, e não só não muda-de forma deuses. -
como não engana os outros por meios ilusórios ou Aprovo, disse, inteiramente, essas tegras e me
por discursos, nem pot sinais de sua parte dutante o disponho a adotá-las como lei,
sono ou na vigília.
383 a É o que também me parece, disse, ao ouvir- te
discorrer sobre a matéria,
Confessas-te, portanto, de acordo, continuei, com
o-segundo modelo de como se deve falar ou poetar a
respeito dos deuses: não são feiticeiros capazes de
mudar de forma, nem nos enganam de nenhum jeito,
por atos ou por palavras,
De acordo.
Assim, conquanto elogiemos muita coisa em
Homero, não louvamos nele o sonho enviado a
Agamémnone por Zeus, como não louvamos Ésquilo
na passagem em que Tétis diz que Apolo cantara no
seu casamento, prometendo-lhe

= feliz maternidade,
filhos sadios e de vida longa.
* Essas palavras foram reforçadas
pelo peã por ele decantado
para me encorajar, e em. que exaltava
meu destino abençoado pelos denses.
Pensei que sua boca fosse estreme
de qualquer inverdade, porque manam
sempre dela os oráculos. No entanto,
muito embora ele próprio assim falasse,
autor, como era; do hino, e no banquete
se encontrasse presente, ele, ele próprio,
foi quem matou meu filho.

c Censuraremos o poeta que se referir aos deuses por


esse modo e não lhe concederemos coto; outrossim,
386 a I — Tais são, continuei, os modelos de discussão a
respeito dos deuses que, 4 meu ver, desde a infância,
devem ou não devem ser ouvidos pelos moços destinados
a honrar as divindades e os próprios pais e a ter em alta
estima a amizade entre os cidadãos.
E eu penso, respondeu, que é muito acertada a
conclusão.
E depois? Se quisermos que sejam corajosos, não
devemos ministrar-lhes os ensinamentos apropriados para
" libertá-los, tanto quanto possível, do temor da morte?
Ou imaginas que possa revelar coragem quem dá guarida
a semelhante sentimento?
Por Zeus, respondeu; creio que não pode.
E então? Quem acredita na existência do Hades e o
considera pavoroso poderá mostrar-se destemido diante
da morte e, nos combates, preferirá morrer a ser vencido
ou a totnat-se escravo?
De forma alguma.
Precisaremos, pot conseguinte, estender nossa
vigilância aos que se aventuram a tratar também desse
gênero de fábulas e insistir com eles para que não
adulterem tão nesciamente as coisas do inferno; pelo
contrário, deverão elogiá-las, pois não apenas é falso tudo |
o que contam, como de todo inútil para os futuros
combatentes.
Sim, é o que precisamos fazer, respondeu.
Sendo assim, lhe observei, apaguemos, a partir do
seguinte verso, todos os que se lhe assemelharem:

Pois preferira viver empregado em trabalhos do


campo,
sob um senhor sem recursos, ou mesmo de parcos
haveres,
a dominar deste jeito nos mortos aqui consumidos.
136 | Platão - A República Livro HI . “137

- AJ .
E o seguinte, com referência ao. receio de Edoneu, de b Pediremos a Homero e aos demais poetas que não nos
que Posido levem a mal ziscarmos todas essas passagens e outras do
lo . mesmo tipo; não procedemos desse modo por considerá-las é
d Escancarasse à visão dos mortais e dos deuses pouco poéticas ou desagradáveis para o ouvido do povo, * ,
seu tenebroso palácio, que até pelos numes é Ao contrário! Quanto mais belas fotem poeticamente, Ru sup
odiado, menos indicadas serão pata rapazes e homens que pio
o tenham de viver livres e recear mais a escravidão do | e”
E também: | que a motte.
o Sem dúvida nenhuma.
Ora a certexa adquiri de que no Hades, realmente,
o Se encontraria LI — Precisamos, outrossim, rejeitar todos esses
almas e imagens dos vivos, privados, contudo, de nomes terríveis e apavorantes: cocito, estige, espectros,
alento, c áparições e outras denominações do mesmo tipo, que,
só com serem enunciadas, deixam atrepiados os ouvintes.
E este: É possível. que semelhantes contos sejam de alguma
, . utilidade noutras conexões; mas temos receio de que os
A ele, somente, Perséfone deu conservar o intelecto, nossos guardas se tornem efeminados com tais abalos e
mesmo depois de ser morto; as mais almas esvoaçam mais excitáveis do que convém.
quais sombras. Justifica-se semelhante receio, disse.
Então, teremos de suprimi-los?
B; Sem dúvida.
. . E apresentar nomes de formação diferente, tanto
A alma, dos membros saindo, para o Hades baixou, na conversação geral como nas composições
lastimando poéticas?
a mocidade e o vigor que perdera nessa hora funesta. Claro que sim.
o. Como eliminaremos, também, as queixas e
Como também: d lamentações dos varões famosos.
o Forçosamente, disse, uma vez que vamos titar tudo
387 a Com um sibilo, qual fumo, na terra aquilo.
desaparece logo a alma. Considera agora, continuei, se fazemos bem em .
eliminá-los. O que asseveramos foi que um|. q”
E estes: indivíduo dotado de senso nunca poderá ter na Ra
conta de algo terrível a morte de algum amigo tão pé
Como morcegos que pendem do fundo da gruta sensato quanto ele. |
sagrada, voam, fazendo chiado, se um deles, acaso, da Foi o que asseveramos, realmente.
rocha cai, desprendendo-se de onde se achava seguro no
Não se lamentará, por conseguinte, sobre seu
cacho; cotpo, como se lhe tivesse acontecido uma grande
da. mesma forma, gumbindo, esvoaçavam as almas. desgraça.
Livro IH
139
138 Platão - A República

Sem dúvida. A rebolear-se no esterco, fazia insistentes pedidos, por


entre fundos lamentos, chamando um aum pelo
Mas afirmamos, também, que uma pessoa nessas
nome.
condições é o melhor agente de sua própria felicidade e
que, por isso mesmo, se distingue dos demais homens, não
por não precisar da ajuda de ninguém. Com maiot insistência, ainda, lhes pediremos que
E muito certo, disse. façam os deuses lamentar-se e dizer:
Jamais considerará calamidade a perda de algum filho
Que sina,
ou de irmão e de bens materiais ou coisas da mesma
natureza. ter dado à luz o maior dos heróis, para um fado
tão triste!
Nunca!
Muito menos se lamentará quando lhe ocorrer algo
desse gênero, mas suportará tudo com moderação. E se representarem os deuses desse jeito, pelo menos
E como, realmente, se comportará, disse. não se atrevam a desfigurar a tal. ponto o maior deles,
Fazemos bem, por conseguinte, em titar dos com fazê-lo exclamat:
varões ilustres as lamentações, para dá-las às mulheres
Que lastimoso espetac'lo! Um varão que me é caro,
388a — excluídas, aliás, as de maior merecimento — e aos
o mens olhos
homens de pouco préstimo, para que possam
vêem perseguido ao redor das. muralhas! O peito
envergonhar-se de assim proceder os que educamos
Ra confrange-se-me.
pata guardas da cidade.
Muito bem, disse. E:
Pedireimos, outrossim, a Homero e aos demais poetas
que não nos apresentem Aquiles, filho de uma deusa, Pobre de mim! O destino asselou que o mais caro
dos homens,
Sem posição permanente encontrar: já de um lado, já o men Sarpédone, tombe hoje aos golpes de Pátrocio
exímio!
de outro,
ou ressupino ou de borco, se deita. Por fim,
o tevantando-se, “III — Se os nossos jovens, meu caro Adimanto,
anda ao comprido da praia do mar. “ouvissem, compenettados, todas essas. fábulas, em vez de
tirem delas, por não merecer nenhuma ser contada, simples
Nem digam homens como são, dificilmente algum deles as consideraria
indignas de si próprio e não bateria no peito.quando sentisse
Que, tendo terra anegrada tomado das mãos, a desejos de dizer ou fazer a mesma coisa; 20 contrário: sem
derrama “revelar acanhamento nem procurat dominar-se, à menor
pela cabeça, contratiedade se entregaria a suspiros e lamentações.
O que dizes é a pura verdade, observou.
nem que chogou e se lamentou de tantas maneitas, como E é o que não pode ser, conforme. o demonstrou
descreve Homero, ou que Príamo, parente tão próximo nosso atgumento, que precisamos aceitar, enquanto não
dos deuses, nos apresentarem coisa melhor.
Livro HI 141
Platão - À República

Sim, precisamos. É muito certo, disse.


Por conseguinte, se o ditigente apanhar mentindo
Por outro lado, importa que não sejam inclinados a
tir, de regra, muito riso provoca violentas reações. um desses que aos povos são úteis: áugutres ou
E assim também que eu penso. carpinteiros ou médicos para os doentes, deverá puni-lo,
Não devemos, por conseguinte, admitir que poeta por estar introduzindo na cidade uma prática que
algum nos apresente homens respeitáveis dominados pelo tanto leva um navio como uma cidade à sublevação e
389a tiso, e muito menos deuses. à ruína,
Sim, respondeu, no caso de.confirmar com atos o
Esses, menos ainda.
Logo, não poderemos admitir que Homero se refira que disser.
às divindades da seguinte maneira: E agora: Não precisam nossos moços também ser
temperantes? ne judoas” Tempo ANÇÃ
Em gargalhada infinita rebentam os deuses beatos ao Como não”.
perceberem Flefesto solícito, assim, pela sala. E com respeito à generalidade dos homens, não consiste
a temperança principalmente na obediência aos governantes
Sim, é o que não poderá ser, de acordo com o teu e, para quem sabe governar-se, no autodomínio com relação
taciocínio, aos prazetes do vinho, do amor e da mesa?
Se me atribuis o raciocínio, não o poderemos, de fato;
Parece-me que sim.
A verdade, também, deve-ser tida em alta Por isso mesmo, teremos de considerar muito boas
consideração. Se estávamos certos no que dissemos há as palavtas que Homero põe na boca de Diomedes:
pouco e a mentira é, realmente, inútil para os deuses,
porém de alguma utilidade para os homens, à guisa de Cala-te! Fica quieto e obedece ao que digo,
medicamento, é evidente que seu uso deve ser reservado
aos médicos, sem que os leigos nem de leve ponham a bem como a passagem que se lhe segue:
mão em cima dela.
É evidente, disse.
Silenciosos, furor respirando, os Argivos avançam.
Nenhum som se ouvia, que aos chefes temiam,
Se houver, portanto, quem tenha permissão de
mentir, sertão os ditigentes da cidade, tanto pata enganar
Os inimigos como os ptróptios cidadãos, sempre que isso e todas as passagens do mesmo tipo.
Muito boas, realmente.
redundar em vantagem da comunidade; a ninguém mais
E a seguinte:
será concedido semelhante privilégio. No caso, porém,
de quetet um particular enganar os governantes,
-declaramos constituir tal procedimento
falta igual, e até Bébedo, que tens a vista do cão e a coragem do
veado!
mesmo mais grave, à do doente ou do aluno de Ginástica
que não dissesse ao médico ou ao pedótriba a verdade
390 a e o mais que se lhe segue, metecetá louvores?
sobre as suas condições físicas, ou à do marinheiro que
não revelasse ao piloto o estado do navio ou da tripulação E todas as expressões insolentes que escritores ou poetas
e não lhe relatasse o que ele e seus companheitos fazem o homem comum dirigir a seus superiores?
estivessem realizando. Não são pata louvar.
Platão - A República Livro HI 143

Como não acredito que, ouvindo-as, possam Bate, indignado, no peito e a si próprio desta arte se
totnat-se mais tempetrantes os moços. Não é de : ' Voto “exprime:
admirar que algum prazer encontrem eles nisso. Como sê, coração, páciente; pois vida: mais “baixa e
te parece? mesquinha
Estou de pleno acordo, respondeu. já suportaste.

IV — Comol Quando o poeta faz o mais sábio dos Tens toda a razão, disse. eo
homens dizer que para ele nada é mais belo do que ter Como não admitiremos que os nossos homens sejam
subornáveis e ávidos de dinheiro. +.
+. mesas na frente, repletas e De forma alguma.
de pão e carne; no tempo em que o vinho nas grandes Nem ouçam contar que
, crateras
deita o escanção, para os copos de todos encher até Dádivas podem aos deuses dobrar, aos monarcas
às bordas, potentes.

não deve sex Etna


és de parecer que essas palavras sirvam para incrementar Fenice, també receptor de Aquiles, putendo
a temperança no jovem que as escuta? Ou o seguinte: elogiado, como se tivesse aconselhado sabiamente seu
pupilo a só defender os Aquivos mediante o recebimento.
Nada, porém, mais terrível que à fome acabar a de presentes, sem o que não devetia ceder em sua cólera.
: existência? - E com relação a Aquiles, de igual modo, não: podemos
admitir nem confessar que fosse ávido de dinheiro a
Ou quando Zeus, a única divindade que se encontrava ponto de aceitar os presentes de Agamémnone e de não
acordada enquanto dormiam os outros deuses e os 391 a entregar o cadáver sem o tecebimento prévio do resgate,
homens, esquecido de seus desígnios, pela simples na falta do qual nada se faria.
concupiscência, de tal modo ficou abalado à vista de Sem dúvida, tespondeu; passagens desse tipo não
Hera, que nem mesmo se decidiu a ir pata o quarto, por são recomendáveis.
querer unir-se-lhe ali mesmo, no chão, e lhe declarou que Tenho escrúpulos, prossegui, por amor de Homero,
nunca se sentira dominado daquele modo pelo desejo, de dizer que é verdadeira impiedade atribuir semelhantes
nem mesmo quando se deu o primeiro encontro de sentimentos a Aquiles ou de acreditar nos que lhos
ambos às escondidas dos pais amoráveis? Ou quando “attibuem, como é impiedade dizer Aquiles para Apolo:
Ades e Afrodite, por motivo idêntico, foram acorrentados
por Hefesto? Asseteador, és o deus mais funesto!: Por que me
Não, por Zeus, respondeu, parece-me que não o enganaste?
servem. Pronta vingança tomara, se em: mim estivesse
Porém as mostras, continuei, de tesistência contta fazé-lo,
tudo, em palavras ou fatos, atribuídas a varões ilustres,
merecem sex vistas e ouvidas, como a seguinte b E por mostrar-se desobediente ao tio, que- era uma
passagem: . divindade, afinal, e-declarar-se disposto a-combatê-lo,
144 Platão - À República Livro HF ' 145

-como, também, o que disse a outro rio, o Esperqueio, - Parentes próximos de Zeus, que no alto
ao qual seus cabelos estavam dedicados, resolvido, do Ida, envolto pelo éter, o paterno
“agota; a Oferecê-los a Pátroclo, pata que os leve altar ainda conservam,
consigo, já sendo Pátroclo, como eta, cadáver: Não é
de acreditar que houvesse feito semelhante coisa. e que neles, até hoje,
Quanto ater arrastado Heitor à volta da sepultura de
Pátroclo e o esgorjamento dos prisioneiros na sua pita, não se esgotou o sangue das deidades,
“afirmamos:
que nada. disso
é verdade, como não
permitiremos que os nossos venham a acreditar que Daí precisarmos acabar com essas histórias que podem
Aquiles, filho de uma deusa e de Peleu, varão 392a deixar nossos jovens levianos e maus. .-
prudentíssimo e descendente de Zeus em terceiro Evidentemente, respondeu.
grau, e mais: educado: pelo sábio Quirão, tão E agora, continuei, que outta forma de discurso
: + perturbado se encontrasse, a ponto de abrigar no imo ainda falta analisar, para vermos como deve ou não deve
-. peito duas doenças antagônicas: mesquinharia aliada ser enunciado? Já assentamos como precisam ser tratados
à avareza, de par com desptezo soberano dos deuses os deuses, os demônios, os heróis e os que demoram no
“e dos homens: Hades.
- Tens razão, disse. Perfeitamente.
Então, o que ainda falta diz respeito aos homens,
V — Outrossim, continuei, não devemos acreditar, não é verdade?
:. nem permitir que. outros afirmem haver Teseu, filho de Sem dúvida.
Posido,e Pirítoo, filho de Zeus, praticado raptos tão Mas não nos setá possível, amigo, pôt isso
condenáveis, nem que qualquer. outro herói ou filho de presentemente em ordem.
Zeus tenha ousado cometer os atos sacrílegos e tão graves Por quê?
que falsamente lhes attibuem; obriguemos, isso sim, os Porque seríamos obrigados a dizer, segundo creio,
poetas a declarar ou que semelhantes feitos não foram que a respeito dos homens tanto os poetas como os
praticados pot eles, ou que eles não eram filhos de deuses. b oradores cometem os mais graves erros, quando afitmam
- Às duas afirmativas é que não poderão fazer, como não terem sido felizes muitos homens injustos, e infelizes
lhes será permitido tentar convencer os moços de que muitos justos; que a injustiça é-proveitosa, quando não
os deuses são. os causadores do mal-e que os heróis em descoberta, e que a justiça, por sua' vez, implica dano
nada se mostram melhores do que os homens. Pois, como próprio e-vantagem alheia. Teríamos de proibit-lhes tudo
vimos antes, semelhantes proposições nem são piedosas isso e recomendatr-lhes que cantem e digam.) justamente
nem verdadeiras. Já demonstramos que nenhum mal pode o contrário, não te parece?
originar-se dos deuses. É assim mesmo que penso, disse.
Como fora possível? Mas, uma vez que. admites estar eu com a razão
Tudo isso é altamente prejudicial aos ouvintes. Não neste ponto, terei de concluir que ficaste também de
há quem não justifique sua própria maldade, convencido, acordo comigo a respeito do que há muito
“ como deverá estar, de que assim procederam e procedem procuramos.
- Os descendentes dos deuses, Conclusão muito certa, acrescentou.
146' Platão - A República Livro HH 147

Se devemos ou não falar dessa maneira a respeito quem fala é o poeta, o qual não procura levar nossa
dos homens, é o que só decidiremos quando atenção para outra parte nem se esforça pot parecer que
descobritmos o que seja a justiça e como pode ela set não é ele, mas outra pessoa que está com a palavra.
naturalmente útil a quem a possui, pouco importando a Porém, logo a seguit, discorre como se ele fosse o próprio
conta em que é tida essa pessoa. Crises, e lança mão de todos os meios para:convencer-nos
É muito verdadeiro, disse. de que não é Homero que parece falar, mas o velho
sacerdote. Do mesmo modo procedeu em quase todo o
VI— A respeito do assunto, é quanto basta. Agora, - xesto de sua nattrativa, ao contat-nos o que se passou em
acho que devemos considerar o estilo, para Ílio e em Ítaca, como também em toda a Odisséia.
determinarmos por maneira completa como deve ser O Isso mesmo, disse.
conteúdo e a forma. Há nartação, por conseguinte, nos dois casos: tanto
Então, falou Adimanto: Não entendo o que queres na reprodução das falas das personagens como nas partes
dizer com isso. intermédias.
Mas é preciso que entendas, lhe repliquei. Talvez me Como não?
faça compreender melhor da seguinte maneira: tudo O - Mas, quando nos dirige qualquer fala como sendo
que os mitólogos e os poetas contam não é um relato de de outra pessoa, não poderemos dizer que se esforça para
fatos passados, presentes ou futuros? deixar sua linguagem, tanto quanto possível, parecida com
Que mais poderia ser? perguntou. a da pessoa por ele mesmo anunciada antes que nos iria
E não conseguem esse desiderato ou por simples falar?
exposição, ou por imitação, ou por ambos os modos ao Êo que diremos, sem dúvida.
mesmo tempo? Ora, imitar alguém, ou pela palavra ou pelo gesto,
A tal respeito, respondeu, precisaria explicação mais não é representar a pessoa imitada?
particulatizada, Sem dúvida.
Pelo que vejo, lhe falei, sou um professor caticato e Sendo assim, num caso como esse, ao que parece,
nada claro. Vou proceder-como os indivíduos que não tanto Homero como os demais poetas procedem em suas
sabem falar: em vez de considerar a questão em seu narrativas por imitação.
conjunto, tomarei apenas uma parte, para mostrar-te o Perfeitamente.”
que pretendo. Dize-me uma coisa: não sabes como Mas, se o poeta nunca se ocultasse, toda a sua
começa a Ilíada, os versos em que o poeta conta como narrativa dispensaria a imitação. E para que não nos
Crises pediu a Agamémnone que lhe libertasse a filha e venhas dizer mais uma vez que não compreendes como
como este se zangou, e o outro, por não haver alcançado possa ser isso, vou explicat-te. Se depois de haver contado
393 a o que desejava, apelou para o deus contra os Aquivos? que Crises vieta com o resgate da filha e suplicara aos
Perfeitamente. Aquivos, principalmente aos dois Atridas, continuasse
Sabes, portanto, que até ao verso: Homero a falar, não como se ele fosse Crises, porém
sempre como Homero, fica sabendo que não se trataria
“Implora aos Aquivos presentes, de imitação, mas de uma exposição simples. Seria mais
sem exceção, mas mormente aos Atridas, que . povos ou menos deste modo; não vou falar em verso, pois não
conduzem, sou poeta: Ão chegar o sacerdote, fez votos para que os
Livro HI 149
148 Platão - A República

deuses lhes concedessem tomar, incólumes, Tróia e Entendo, agora, perfeitamente, disse, o que querias
suplicou que lhe entregassem a filha a troco de resgate e significar. ,
em atenção aos deuses. À essas palavras, todos os Aquivos Procura, então, recordar-te também do que
assentiram com demonstração de reverência; apenas afitmamos antes, que o conteúdo já estava esclarecido,
Agamémnone se encolerizou e lhe deu ordem para retirar-se e mas faltava examinar a maneita de tratá-lo.
não mais voltar à sua presença, pois não lhe serviriam de Sim, recordo-me,
amparo nem o cetro nem as ínfulas sagradas do deus. Isso, justamente, é o que eu dizia, que precisávamos
Antes de ser-lhe a filha libertada, declarou, envelhecetia decidir: se permitiríamos ao poeta apresentar-nos as suas
com ele em Argos. Mandou que se fosse embora e narrativas só por meio da imitação, ou se poderia imitar
394a deixasse de importuná-lo, caso quisesse voltar salvo para numas partes e deixar de fazê-lo noutras, e quais seriam
casa. Ão ouvir essas palavras, o velho atemotizou-se e se elas; ou se qualquer modalidade de imitação lhe seria
afastou sem dizer nada. Mas, quando se achou longe do ptoibida?
acampamento, orou instantemente a Apolo, invocando-o Palpita-me, respondeu, que desejas esclarecer se
por todos os seus nomes e pedindo que, se alguma vez devemos ou não permitir em nossa cidade a tragédia e a
se agtadara dos templos por ele construídos e das gtatas comédia.
vítimas que lhe sacrificara, lembrado agora disso, vingasse Talvez, lhe respondi; talvez até mesmo mais do que
nos Aquivos as lágrimas por ele derramadas. Deste modo, isso. Por enquanto, eu ptóptio o ignoro. Teremos de
meu caro, sem nenhuma imitação, é que se faz uma caminhar para onde soprar a brisa do argumento.
natração simples. É muito certo o que dizes, observou.
Compreendo, disse. Considera também, Adimanto, se nossos guardas
devem ou não devem ser imitadores. Não faz parte do
VII — Então; continuei, deves também compreender que foi dito antes, que cada um só pode sair-se bem em
que segue precisamente o processo oposto quem omite uma única profissão, não em muitas, e que se
as palavras insettas pelo poeta entre os discursos e deixa expetimentar as forças em várias a um só tempo,
apenas o diálogo. . : fracassará totalmente e não se distinguirá em nenhuma?
Compreendo também isso, respondeu; é assim que Quem o duvidará?
se passa na tragédia. : E não é também o que se observa com a imitação?
Apanhaste bem a questão, lhe repliquei, estando eu Poderá a mesma pessoa imitar muitas coisas tão bem
certo de que vou mostrar-te agora o que antes não me como uma só?
fora possível, a saber: que a poesia e a mitologia podem É claro que não.
constar inteiramente de imitação, tal como se dá na 395 a Dificilmente, portanto, conseguitá alguém exercer
tragédia e na comédia, conforme disseste, ou apenas da ao mesmo tempo, com eficiência, funções importantes
exposição do poeta. Os melhores exemplos desse tipo ou ser um bom imitadot de muitas coisas, pois nem
de composição encontrarás nos-ditirambos; há uma mesmo as duas imitações que tão próximas parecem uma
terceira modalidade, em que se dá a combinação dos da outra podem ser praticadas com êxito por uma só
pessoa; é o exemplo dos autores de comédias e de
dois processos: é o que se verifica na epopéia e em
muitas outras formas de poesia, se é que me fiz - tragédias. Não disseste neste. momento que ambas eram
compreender. imitação?
tono
mano emmeed bmdos

150 Platão - A República Livro JT. 151,

Disse; e tens razão em achar que a mesma pessoa quando estão felizes; ou, na infelicidade, quando se
não pode sair-se bem nas duas. entregam ao choro e a lamentações. Uma mulher doente,
Como não poderá ser ao mesmo tempo rapsodo e ou amotosa, ou em trabalho:de parto, é o que: nunca lhes
ator. permitiremos. ns
Exato. Tens toda a tazão, disse. :
E também não são os mesmos os atores de tragédias Nem escravos e escravas, que realizam ocupações
b e de comédias. Tudo isso é imitação, não te parece? servis.
Imitação. Isso também não.
À natureza humana, Ádimanto, se me afigura Nem, ainda, indivíduos maus e pusilênimes, que
dividida em pedacinhos ainda menores, de forma que é fazem precisamente o contrário do que determinamos:
impossível a qualquer pessoa imitar bem muitas coisas troca de insultos, zombariasde uns para os. outros e
ou fazer as próprias coisas que a imitação reproduz. palavras obscenas, quer quando sóbrios, quer, quando
E muito certo, observou. 396 embriagados, e tudo.o mais com que por. atos ou
palavras a si mesmos degtadam ou a0s. companheiros.
* VII - Se quisermos, portanto, manter de pé a ' Quer parecer-me, também, que não devem habituar-se a
memso

primeira proposição, a saber: que os nossos guardas, imitar a linguagem ou as ações dos loucos. É evidente
Di dispensados de qualquer outra ocupação, se dedicariam que terão de conhecer pessoas más e insanas de ambos
e vs | exclusivamente à liberdade da cidade, sem os sexos, porém não devem: fazer nem imitar o que
à aa Ago | empreenderem senão o que tendesse para esse fim, será elas fazem.
a o a. - | preciso que não façam nada mais nem imitem coisa É muito certo, disse.
o Ty | alguma. No caso, porém, de imitarem, deverão fazê-lo Mais um exemplo, continuei: o trabalho de
tdo Ra desde a meninice o que lhes convier para se tornarem ferreiro ou de qualquer outro artífice, de remadores
PSC A corajosos, temperantes, santos, livtes e tudo o mais do de ttirremes ou de seus comandantes, e tudo o mais
Cat Ed mesmo gênero, não devendo praticar nem procutar que se relaciona com essas atividades, não deverá
ME vt imitar O que não for nobre nem qualquer modalidade também ser imitado...
o W de torpeza, para que por meio da imitação não venham “Como fora possível, respondeu, se não lhes é
Ea dia encontrar prazer na realidade. Já não observaste que permitido ocupar-se com qualquet-outra profissão?
” e a imitação, quando começada em tenta idade e E o seguinte: cavalos a relinchar, touros a mugir, tios
'o : prolongada por muito tempo, se transforma em hábito mutmurantes, e o ruído do mar ou o barulho do trovão,
e se torna uma segunda natureza, passando para o corpo, e tudo o mais do mesmo gênero, será. para imitar?
para a voz e até para a própria inteligência? Foi-lhes proibido ser loutos ou imitar as ações dos
“Sem dúvida, respondeu. loucos. .
Não admitiremos, portanto, continuei, que os jovens Se bem compreendo, prossegui, o que queres dizer,
de que cuidamos com o propósito de fazer deles cidadãos há uma modalidade de estilo narrativo em que poderá
de bem, por isso mesmo que são homens, imitem as exprimir-se o indivíduo.de verdadeiro valor, sempre que
mulheres, tanto novas como velhas, ou seja no ato de tiver o que dizer, como há outra que difere inteiramente
insultar qualquer delas o matido, ou quando alguma se dela e a que se atém em sua exposição quem, por dotes,
ponha a rivalizar com os deuses, pot pura jactância; isso, natutais e educação, for o oposto do primeiro.
Livro HT 153
Platão - A República

Quais são? perguntou, instrumentos, a voz dos cães, das ovelhas e dos pássaros.
“'Souw-de'parecer, continuei, que quando o indivíduo Desse modo, toda a sua exposição constará simplesmente
equilibrado tem de reproduzir no decurso de sua da imitação de vozes e de gestos, com o mínimo possível
exposição algum dito ou gesto de homem de bem, de narração,
esforça-se por falar como se fosse essa mesma pessoa e Necessariamente terá de ser assim.
“não se'envergonha-de imitá-la, principalmente quando a Daí ter eu dito que há duas maneitas de nartar.
imitação disser respeito a algum ato de firmeza e Sem dúvida.
sabedoria que lhe seja atribuído; com menor disposição Uma delas só em gtau muito teduzido permite
e mais raramente o imitará quando o vir cambaleante modificações; uma vez alcançada a harmonia e o ritmo
por efeito de doença ou do. amor, ou mesmo por convenientes, o bom expositor manterá sempre o mesmo
'embriáguez ou qualquer outra infelicidade. Quando tiver estilo da harmonia inicial, que, aliás, não admite variações
| dehaver-se com queim não for digno dele, não se de vulto. Vale o mesmo com relação ao ritmo. .
|-tesolverá a imitar seriamente uma pessoa inferior, ou só É muito certo o que disseste, respondeu.,
o fará de passagem, núma ou noutra ação meritória. Sim, E com respeito à outra modalidade? Ao conttátio
“terá de envergonhar-se, a uma, pot não ter o hábito de da primeira, não exigirá todas as harmonias e todos os
imitar gênte dessa-laia; à outra, porque lhe repugna forçar titmos, 'se tiver de ser feita a exposição como é preciso
a sua natureza em moldes inferiores; despreza do fundo que o seja, pot isso mesmo que abrange toda sorte de
“da alma semelhante procedimento, a não ser como modificações?
brinquedo. Exatamente.
E natural, replicou. Ora, os poetas e, de modo geral, as pessoas que
“expõem alguma coisa por meio da palavta, não se valem
IX— Sendo assim, adotará um modo de narração de um ou outro'desses modos de. expressão ou da
semelhante 20 que há pouco nos referimos, quando combinação. de ambos? .
tratamos dos versos de Homero, vindo a participar Necessariamente, disse.
sua exposição dos dois: processos, a imitação e a Então, como: fatemos? perguntei. Admititemos na
narração simples, porém a primeira-como parte cidade todos os gêneros, ou um só dos gêneros putos,
mínima numa nartativa longa. Ou não terá sentido o ou a mistura dos dois?
" que eu disse? - Se prevalecer minha maneira de pensar, disse, apenas
“Tem muito, até; assim éé que precisará set o expositor um dos putos, o que imita as pessoas moderadas.
por nós idealizado. No entanto, Adimanto, o estilo misto é bem
397 a Nessas condições, continuei, quanto mais aquém interessante e. muito do gosto das ctianças e de seus
desse ideal ficar o narrador, maior quantidade de coisas preceptores, o que também se observa com a grande
imitará, sem nada considerar indigno de si próprio, de maiotia. do povo.
forma que procurará imitar tudo cóm o maior empenho É muito interessante, realmente,
e na presença de todo o mundo, não apenas o a que há Mas, sem dúvida, observei, irás dizer que esse estilo
-momentos rios refetimos: o trovão,o batulho dos ventos não convém.à nossa cidade, por não. haver entre nós
- e da saraiva, o chiar dos eixos e das polias, como também homens duplos nem múltiplos, visto ter cada pessoa
o som das trombetas, das flautas, das gaitase dos demais apenas uma ocupação. .

em aver Pi ceja mt Marea


pa crer a tepraccado SADO do CE a TEREM RAL
ENEO O RS na SD AT CANTADA eia meg rep eecaa o ennniom
A VABaEP ALE TUCA
Dt RR STAN pen encena ao arara cena

154 Platão - A República Livro IH 155

Não convém, de fato. Pondo-se a tir, falou Glauco: Receio muito, Sócrates,
Eis a razão de somente nessa cidade verificarmos que esse todo o mundo-não me abranja. Neste momento,
que o sapateiro é exclusivamente sapateiro, não piloto - pelo menos, não saberei dizér como ambos devem ser,
com o conhecimento de sapateiro; o lavrador é só apesar de fazer minhas conjecturas.
lavrador, não juiz com conhecimento de agricultura; De qualquer forma, lhe disse, desde já. podes afirmar
como é apenas combatente o guerreiro, sem ser com segurança que uma canção se compõe de três partes:
comerciante que entenda de arte bélica, e assim com tudo texto, melodia e ritmo.
o thais, : Isso é verdade, respondeu.
É muito certo, disse. Com relação às palavras, não há diferença entre elas
Nessas condições, se viesseà nossa cidade algum e as que não são cantadas, pois, de qualquet modo, todas
398a indivíduo dotado. da habilidade de assumir várias terão de ser enunciadas segundo os princípios de que já
formas e de imitar todas as coisas, e se propusesse a tratamos, não é verdade?
+
quo nai fazer uma À demonstração pessoal com seu poema, nós Exato.
puanndo
Sé Oteverenciatíamos
o como a um ser sagrado admitável O ritmo e a melodia terão de acompanhar as
dede pledério e divertido, mas lhe diríamos que em nossa cidade palavras.
não há ninguém. como ele nem é convenientehaver; Sem dúvida,
de ungit-lhe à cabeça com mistae de adorná-lo
e,depois Mas já dissemos que não temos necessidade de
com fitas. de lã, o poríamos no rumo.de qualquer qutta queixas e lamentações em nosso texto,
cidade. Para nosso uso, teremos de recortet a um É fato.
poeta ou contador de histórias mais austero e menos Quais são as harmonias nistes? És músico; achas-te,
“divertido, que corresponda aos nossos desígnios, só portanto, em condições de enumerá-las.
“imite o estilo moderado e se restrinja na sua exposição A lidiana mista, disse, a lidiana aguda e outras do
a copiar os modelos que desde o início estabelecemos mesmo estilo.
pot lei, quando nos dispusemosa educar nossos Essas, então, lhe falei, serão excluídas, por inúteis
soldados. até mesmo para mulheres, que terão de ser moderadas;
Sim, respondeu; é o que faríamos, se tivéssemos quanto mais para homens!
poder pata tanto. Perfeitamente.
E com isso, meu caro, continuei, quer parecer-me A embriaguez, também, é imprópria pata os guatdas;
que esgotamos a parte da Música relativa aos discursos e " a moleza e a indolência.
às fábulas, pois já tratamos do conteúdo e da forma. Como não?
É também o que eu penso, disse. E quais são as harmonias moles e usadas nos
banquetes? e +
*. — Agora, prossegui, só nos réstá tratar do canto e São denominadas moles, disse, a ioniana e uma
da melodia. vatiedade lidiana..
Sem dúvida. 399 a E essas, amigo, poderão ser -de alguma utilidade para
A"esse respeito, por coerência com o que ficou guerreiros?
exposto, todo o mundo descobrirá, de pronto, o que é De jeito nenhum, respondeu. Mas, ão que parece,
preciso dizer e como devem ser ambos. só te sobraram a dórica e a frígica.
156 Platão
- A República Livro HI 157

: «si Deharnitonianada entendo, lhe falei;imas resta-nos Restam-te, por conseguinte, observei, pata uso na
corta modálidade-indicada para:imitaricomo- convém a voz cidade, apenas.a lira e a cítata, e, para os pastores do
ze Srrexpressão: do:indivíduo .que.se comporta-virilmente campo, uma espécie de flauta de Pan.
na guerra ourem: qualquer: situação. difícil, e que, ao Pelo menos, é.a conclusão a que nos leva nosso
1er:tis, cpergebebem perigo-sua causa, .sejá-para ir de encontro - argumento,
corta; ras férimentos e «à: morte; seja: quando:se vê .a braços -e - Aliás, meu caro amigo, lhe repliquei, não faremos
b com qualquer outra infelicidade, :persevera no seu nada de extraordinário preferindo Apolo e os instrumentos
posto e enfrenta:vesoluto:a sorte.adversa, Reservemos de Apolo a Mátsias com os dele,
» sur aroutra! para sér: por elerusada em: tempo de paz, na Não, por Zeus, me disse; essa, também, é a minha
“o “ex cução de: qualquer'atosespontâneo;:não, porém, maneita de pensar. no
“4 si “bvdolento;imas nas atividades:cotidiana quando
s, insiste Pelo cão! continuei; sem o percebermos, expungimos
junto de alguém ou procura convencê-lo; nas súplicas outta vez nossa cidade das delícias de que há momentos
dirigidas a Deus ou na doutrinação esadmoestação de a acusávamos.- ”
“rn qualquer:pessoa; ou; pelo.contrário, quando se mostra E o fizemos com sabedoria, observou.
sensível a pedidos, lições ou advertências de terceiros,
de acordo com os quais pautao.seu proceder, sem BI — Então, lhe falei , prossigamos e em nosso trabalho
vt cisinrevelar-orgulhó:-e:em «todas: as circunstâncias se de expurgo.. Depois das “narmonias, segue-se
Cc comporta'com:modéstiae.sabedoria, sempre satisfeito naturalmente o que diz respeito aos ritmos; não devemos
com os resultados obtidos. Essas duas modalidades procurar ritmos variados nem metros de toda a espécie,
v: de;harmonias:acviolenta e a voluntária, são as mais mas apenas determinar quais são.os ritmos próprios para
adequadas: para:imitar.a linguagem da infelicidade e exprimir a vida bem regulada e corajosa e, uma vez
da felicidade, dá sabedoria e da bravurá; com essas é 400a descobertos, adaptar o metto e a- melodia às palavras,
que precisamos ficar. não o contrário, o texto ao metro e à melodia, Como
Pepe Rae -As-que tesolveste conservar, me disse, são justamente fizeste com as harmonias, a-ti é que compete dizer quais
ie cuir astduas:a que-hápouco:me.refer). to: são esses ritmos.
Por isso mesmo, observei, não precisaremos Por Zeus, teplicou, não sei o que diga. O que por
empregar em nossas canções: e melodias! instrumentos observação própria poderei adiantar é que há três
“Etr uy demuitascordas e capazes: de. todas as tonalidades. formas fundamentais na composição dos metros, como
Acho também gue não. han natas há quatro na dos sons, de que se originam todas as
Sendo assim, não precisaremos. sustentare fabricantes harmonias..Mas quais sejam-as que imitam estas ou
dede triângulos e-de:harpas ou de instrumentos outtos de aquelas formas. particulares da vida, é o:que não saberei
muitas cordas, capazes de todas as harmonias. dizer. e
pio :: Parece-me que não. Petar b À esse respeito, observei, depois consultaremos
E agora: admitirás na cidade: fabricantes ou tocadores Damão, para saber quais movimentos são indicados à
7 Não
di: idenflau é: a
ta?: flauta oinsttumento da maior baixeza, à insolência, à insânia e a outras variedades, e
A de sons, não passando de simples imitação que ritmos devem ser reservados pára as qualidades
“> vi; dela os instrumentos de muitas: harmonias? contrárias. Tenho vaga idéia de que certa vez ele me falou
É evidente; tespondeui ES ess irounras de um ritmo composto, a que deu o nome de enóplio, de

DETTTRDER
TE E PETER E Da LN CAMERAS AGUILA DO a ua DANADOS CA PETS
NINA EANCE ORA MO PLONE A PRC NAO irem quan nenem
ma queriam Car
emma na
Aga ASI I TA LISAS TELA TU CAMEE DENTALOSA CELA LESS ale asact cotas to ctaicom area md tetapalm dan dtsto o tar tania TULIP ELO Data a
DeaNT CARINA
RAS Rms tan ANDAR AO REAIS eta aa, ama emitia cio

158 Platão - A República Livro HI. 159

um dáctilo;'de um heróico, que dispunha não sei como, o É o que terão, sem dúvida; de fazer.”
:'igualando-as. subidas e as iquedas, para termirrarem em 40l a Cheia delas está a pintuta e todos os:trabalhos
longas e curtás; falow-também,;-se não 'me engano, de um dessa natureza, a arte do:tecelão, a:ido bordador e a
“ico e jambo:e
de um taktroqueu; 20s.quais atribuía quantidades do arquiteto, bem como a: manufatura:de:objetos em
Cc longase curtas. Se mal não me lembro, em alguns desses “ geral, a estrutura dos corpos e oconjuntó-das plantas:
tivé metros ele-criticava'ou elogiava tanto a medida comoO em tudo se nota proporção ou-despraciosidade. A falta
"ut titmo; ou-talvez' mesmo; a combinação -dos dois. Mas, de graça, de titmo ou de harmoniaé:parente próxima
como disse, deixemos essa: parte para Damão; destrinçar da linguagem .viciosa:e. dos maus-costumes, assim
euro - semelhante assunto: é matéria. que exige muito tempo, “.como-seus contrários:o. são-das qualidades opostas: a .
não te parece? due “ponderação ea a retidão de: conduta;'irmãs: e cópias
cesar Muito; porZeus.'- voo . fiéis. pa To Ti DEDO a e To
Vade "Uma coisa;'no entanto, 'saberás distinguir: que a Muitíssimo: certo;o; tesponden. peertine o
aparência graciosa ou desgraciosa é.sempre decorrência TR
: do ritmo ou: de'sua' falta, '-: “XII — Mas, teremos
t de restringir nossa vigilância
Como não? b apenas aos poetas, para óbrigá-los.a só. apresentar em
“de. Masaptresençaea falta de ritmo resultam da boa ou suas composições modelos de:bons costumes, sem o que
“: da ruim maneira de falat,: respectivamente, valendo o deverão abster-se de compor entre nós,.ou precisaremos
“imesmo pata-a:harmonia-e.a
falta de harmonia, a estar estender aos demais artistás essa, fiscalização; para impedi-los
eia|| certo oque dissemos há pouco, que ritmo e a harmonia - de representar o vício, aintemperança,:a baixeza, a
neo é que'têm de: tegular-se pelas palavras, não o inverso, as indecência, tanto na.pintura da vida-como na das
— palavras pelo ritmo e pela harmonia. construções:e. em todos os-trabalhos dos artesãos,
: * Sem dúvida; respondeu; estes' é que. terão de ficando proibido de-exercér sua»atividade entre nós
er “acompanhar o discurso: quem não puder obedecer a-essas determinações? É
poco Ba respeito da maneira de falar, perguntei, e do "de temer que venham a-crescer os“guardas: no meio
seu próprio conteúdo, não dependem da disposição de imagens do vício, como nuím pasto. nocivo, em que
| : da alma? co c-- :colham é ingiram pequenas; porém reiteradas doses
É evidente, for Pos -de veneno das mais variadas:espécies, do que resulta
est ot rc Etudo O 7 mais, não. depende do discurso? -causarem naalma;. impetceptivelmente, dano
ufa “Sime e irreparável. Não; só devemos procurar os artistas
” ns » Desse. modo, a: beleza. do estilo, a harmonia, a graça felizmente:dotados e capazes-de descobrir por toda a
:4: “€:| e o:ritmo decorrem: da simplicidade ida alma, não no - parte o rastro do belo e.do gracioso, pata que nossos
K | sentido com que eufemisticamente designamos a tolice, jovens;:à maneira: dos moradores de lugares sadios,
É; “o bmasno' verdadeiro, 'do caráter: ornado de beleza e tirem vantagem de tudo e que-apenas às impressões
“e Pbondide: MERO arg toe trai dd "de coisas belas lhes: possam atingir os: olhos ou os
--Ermuito'certo, disse. Poti nt “ouvidos, tal. como-se:dá com:a brisa-benéfica-que sopra
“ “Assim, de todos os modos, “deverão os moços « d «de uma região-salubre, e os levem; desde a infância,
ésforçarise por. adquirir essas: qualidades, se: quiserem “e: Jhsensivelmente, a'amat:e a-imitaf.os belos. discursos
“ocumprit bem suã missão. tores e a se harmonizarem com eles. DERERNTRE TA
160 Platão - A República Livro HI dl 161

Não: poderiam ser- educados, disse,: por maneira Exatamente. ereranão een ;
mais bela, : 1: Ota bein! dormesmo modo; pélos “deuses! o que
Y " E não é nisso, precisamente, Glauco, continuei, que digo é'que-nunca: poderemos"tornar-nos*músicos, nem
«consiste a superioridade da educação musical, por calatem - nós nem-osguardas cuja educação vai ficar'a nosso cargo,
. fundo: na alma o ritmo e a hatmonia e aderirem nela antes de sabermos: distinguir. as formas 'da:temperança,
& E:
*e “fortemente? E 'porque servem de veículo ao decoro, não da coragem, da liberdade, da'generosidadé e de todas as
“deixam-honesta'a alma, sempre que for bem-otientada a "outras vittudes:suas-.itmãs;: bem como as de seus
educação? Caso contrário, o oposto é o que se observa. contrários, onde quer que nos: surjam;re 'de'teconhecer
E também. pelo 'fato de perceber com acuidade quem que são elas mesmas que ali se encontram;elas e suas
nesse domínio desfruta de educação. adequada, o que é imagens, sem desprezar nenhuma, nem nas pequenas nem
falho ou menos belo nas obras de arte ou nas da natureza, - nas grandes manifestações; pot admititmos que todas elas
e com mal-estar justificado, pot esse fato, passa a elogiar fazem parte-da'mesma:arte e do mesmo. estudo.
as coisas belas e a acolhê-las alegremente na alma, Necessariamente, observou, x .tuimii vem
402a - para delas alimentar-se e tornar-se nobre e bom, e a Continuemos, lhe falei, Quando se der a ocorrência
censurar, com toda a justiça, O feio, dedicando-lhe ' de belos traços da: alma :que correspondame se
ódio-nos anos em que ainda careça de entendimento harmonizem comum: exterior impecável, por
para compreender: a-razão do fato; mas, uma vez participarem do-mesmo: modelo. fundamental, não
chegada. a tazão, dar-lhe-á as boas-vindas com tanto constituirá isso o mais belo espetáculo para “quem tiver
- maior alegria, por se lhe ter tornado familiar em todo olhos de ver? . ns
o processo de sua educação. O mais belo, sem divida. a
Eu; pelo menos, disse, considero essas, precisamente, Porém, o mais: belo éé: também o mais amável, não é
as vantagens da educação musical. vetdade?. . co o pi
-O mesmo acontece, continuei, quando Como não? E e
aprendemos a ler, pois só nos tornamos fortes depois “Logo, os indivíduos-mais perfeitos sob: esseje aspecto
de sabermos distinguir as letras, apesar de serem terão de-ser amados do “músico, .não:o sendo, pot seu
-poucas, em: todas as combinações em que elas lado, os dissonantes.. Pot do es
ocorrem, sem desprezá-las por insignificantes, quer Não o-serão, cesporideu; máxime se se tratar de algum
ocupem grande, quer pequeno espaço, como se não defeito: da alma; porque; se for:aápenas do corpo, essa
fossem dignas de consideração, e nos esforçamos por pessoa saberá dar o devido desconto ese esforçará pot
compreendê-las: onde quer-que: apareçam, visto não amá-lo, mio Post er
"haver jeito de. chegarmos a ser bons leitores sem “e -Compreendo, lhe disse; é quetens,'ou já tiveste,
passarmos por essa fase inicial do estudo. algum: amádo nessas côndições; com o que :só posso
É muito certo. o “concordar: contigo. Mas; dize-me uma coisa: haverá
E.não é também vetdade que não reconheceremos alguma afinidade entre ai | temperança «eo:abuso do
as imagens: das letras, quer nos apareçam na água, quer prazer? seis Pao
x
“no espelho,; se não-conhecermos antes as próptias letras, Como poderia haver, responde, seoo prazer perturba”
"por-seí tudoiisso objeto da mesmaarte e do mesmo “r "a-alma: tanto iquanto a. dor?: «x
estudo? Poa : E com relaçãoà virtude em: geral? Panos
a

ARENA O CAI tentam e ato nt Neo et


WALLIS Lestaniics mariano nota Sta RD OP aii va iba RR o Liar PRI PSA SUDO CML DDR Sena ceacroste to ut cam ocaana Lo UE Ter Petiteas

162 Platão - A República Livro HH! 163

403 a De forma alguma. É fato.


Não? E coma artogância e a incontinência? À essa matéria, também, terão de. dedicar-se durante
Sim, com essas, muitfssima afinidade. toda a vida, desde os mais tentos anos. No meu modo
E setias capaz de citat um prazer maior e mais de pensar, as coisas se passam da seguinte maneira; «
violento do que o prazer do amot? taciocina comigo. À meu ver, não é o corpo, muito | de
Não, respondeu; nem mais furioso. embota bem-dotado, que com sua virtude particular deixa
Ao passo que o verdadeiro amor é amante da boa a alma, mas o inverso: a alma, pela virtude que.lhe é | mutdo ?
sabedotia e da beleza, temperante e-músico ao mesmo róptia, é que amolda o.corpo. da m f
tempo: ' possível. Que dizes a isso.
Sem dúvida, respondeu. Penso também desse mesmo modo, respondeu.
Assim, não deverá aproximar-se do verdadeiro amor Logo, se dermos à alma devidamente educada a
nem a loucura nem o que tiver afinidade com a incumbência de cuidar de tudo o que se relaciona com o
incontinência. corpo, limitando-nos a indicar-lhe as linhas gerais, para
É muito certo. não nos alongarmos, procederíamos com acerto?
Logo, esse prazer, também, não deverá aproximar-se Sem dúvida,
do amor, como. não devem ter o menor contato com Já observamos- que os nossos-guardas não poderão
aquele o amante e o amado ligados por legítima ser dados à embriaguez. À qualquer pessoa pode-se
afeição. desculpar, menos a um guarda, não saber em gue lugar
Sim, por Zeus, disse; não deverá aproximar-se. do mundo se encontra, por achar-se embriagado,
De tudo isso podemos concluir que terás de Seria ridículo, replicou, umm guarda ; necessitar de
estabelecer -por lei, na cidade por nós fundada, que o guarda.
ea prados amante só deverá beijar o amado, conviver com ele ou E com relação aos-alimentos? Nossos guardas são
mu use tocar nele como se se tratasse de um filho, por amor ao atletas que se preparam para a mais importante
EN ode belo, e assim: mesmo somente depois de alcançar o seu competição, não te parece?
aa - | consentimento; em.tudo o mais, as relações com o jovem Sim.
a quem se afeiçoou nunca devem dar azo à suspeita de E o regime de vida dos atletas, seria também indicado
c | que foram além desse limite; caso contrário, será tido na 404a pata eles?
-conta de indivíduo grosseito e carecente de educação É possível.
musical. Porém trata-se, observei, de prática essencialmente
= De inteiro acordo, tespondeu. “dorminhoca e bastante prejudicial à saúde. Ou ainda
E agora, perguntei, não te parece que chegamos ao não percebeste que os atletas passam a-vida-a dormir
fim de nossa exposição sobre a Música? Pelo menos, e que quando se afastam, pot pouco que seja, do
terminou onde deveria terminar, pois a Música deve regime prescrito, ficam sujeitos a doenças graves e
acabar no amor 20 belo. violentas?
É também o que eu penso, respondeu. Percebi.
Logo, continuei, faz-se mister. de regime mais
XII — Depois da Música, terão os nossos jovens de condizente com a vida de atletas guerreiros, que terão
aprender Ginástica. de ficar como cães, em vigília permanente,e possuir vista
164 Platão - A República Livro JH 165

e ouvido agudos; e, pot isso mesmo que estarão expostos Poderíamos muito bem comparar essás vatiedades
b .nas campanhas a mudanças contínuas de bebidas e de de alimentos e o regime em geral com as mencionadas
alimentos, no verão abrasador como no frio dos invernos, melodias e o canto, em que entram todas as harmonias e
-não devem set de saúde muito delicada. ritmos, não te parece?
É também o que eu penso. Como não?
E a Ginástica ideal não é, de algum modo, irmã Ali, a variedade produz destegramento; aqui,
gêmea da Música de que acabamos de tratar? doenças, ao passo que a simplicidade da Música deixa a
Que queres dizer com isso? alma temperante e, na Ginástica, o corpo em boas
Uma Ginástica simples e adequada, principalmente condições de saúde, não é isso mesmo?
para os que se destinamà guerra. E muito certo, tespondeu.
De que modo a concebes? 405 a Porém, no caso de multiplicatem-se na cidade a
- Qualquer pessoa, lhe falei, poderá aprender com intemperança e as doenças, não será forçoso abrirem-se
v Homeo qual seja ela. Como terás observado, durante as tribunais eclínicas, tomando impulso, na mesma proporção,
” v ” campanhas, nos banquetes de seus heróis, Homero não as profissões de juiz e de médico, visto despertarem grande
SP yf € c lhesserve peixe, muito embora eles se encontrassem nas interesse até mesmo entre homens livres?
E margens do Helesponto, nem carne cozida, mas Sem dúvida,
somente assada, por ser esse o alimento mais
conveniente para soldados, em qualquer parte, pois XIV — E em qualquer cidade poderias encontrar mais
é mais
sempre fácil, pot assim dizer, atranjar fogo do segura prova de educação viciosa e condenável do que
que cattegar panelas. | fazer-se sentir a necessidade de médicos e de juízes hábeis,
É muito certo. tanto entre o povo baixo e os artesãos como entre os
A tempero, também, se não me engano, Hometo não que fazem ptaça de educação liberal? Ou não consideras
faz referência alguma. Ignorarão, porventura, os demais vergonhoso e prova de falta de educação set-se obrigado,
atletas, que para conservarem o corpo em boas condições a trazer de fora dirigentes e juízes e a aceitar O jugo
é preciso absterem-se de todas essas coisas? estranho, por escassez deles em casa?
Sabem-no muito bém; tespondeu, e por isso mesmo É o que há de mais vergonhoso, respondeu,
se abstêm de tudo. E não te patece, lhe perguntei, ainda mais deprimente
d Assim, caro amigo, não aprovarás, segundo penso, passar alguém a maior parte da vida nas salas dos
nem a comida siracusana nem as.vatiedades da cozinha tribunais, ou seja no papel de acusador ou no de acusado,
“siciliana, caso estejas de acordo com o-que expusemos e também, por falta de gosto, chegar a vangloriar-se de
até + agora set mestre no ctime e suficientemente hábil para vitar-se
* .. Realmente, não aprovarei. de todos os lados, esgueirar-se pelos menores buracos e
. Como teprovarás que abuse de raparigas de Cozinto dobrar-se que nem vime para escapar ao castigo, e tudo
quem quiser ficar com o corpo em boas condições. isso por coisinhas sem valor, visto não:saber-como é mais
Sem dúvida nenhuma. belo e vantajoso organizar a vida de modo que dispense
Nem. que sejam muito aficionados aos famosos juízes dorminhocos?
produtos da pastelaria ática? - Sim, tespondeu; isso me parece ainda mais
Necessariamente. vergonhoso.

—mepra parede Ra op DOG TBNPSLTRA CADA 00 and, A ie Rr So ERA


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166 Platão - A República Livro HI 167

E recorrer à Medicina, continuei, não por causa de nem pot falta de experiência que Asclépio deixou de
algum ferimento eventual ou por essas doenças que todos comunicar a seus descendentes esse método de
os anos nos visitam, mas por indolência ou pelo regime tratamento, mas pot saber que, em qualquer
de vida como o que descrevemos há pouco, repleto o comunidade bem organizada, todo cidadão recebe
organismo de umidade e de vapores, como um pântano, determinada incumbência que é obrigado a executar,
o que obriga os engenhosos Asclepíades a aumentar os sem que lhe sobre tempo em toda a vida pata ficar
nomes das doenças com flatulências e catartos, não se te doente e submeter-se a tratamentos. O ridículo de
afigura vergonhoso? tudo isso é percebermos a verdade desse fato, quando
Realmente, respondeu; são nomes absurdos e de se trata de artesãos e não aplicarmos o mesmo critério
recente formação. com relação aos ricos e, de modo geral, às pessoas
Que, com toda a probabilidade, prossegui, não tidas na conta de felizes.
existiam no tempo de Asclépio. Digo isso, porque seus Como assim? perguntou.
filhos, na guerta de Tróia, nada observaram à escrava
que deu a Eurípilo, quando ferido em combate, vinho XV — Quando um carpinteiro cai doente, prossegui,
râmnio com bastante farinha e queijo ralado, de pede ao médico um remédio para vomitar a doença ou
=

406 a conhecido efeito inflamatório, nem censuraram Pátroclo para evacuá-la por baixo, ou cautério ou incisão pata ver-se
por prescrever ao ferido essa bebida. livre dela. E se algum médico lhe prescreve regime
De fato, observou; é uma bebida muito estranha pata complicado ou lhe envolve a cabeça com atadutas e coisas
qualquer pessoa em tais condições. de tal jaez, declara imediatamente não ter tempo para
“Não é tanto assim, lhe objetei; bastará considerares ficar doente e que a vida carecerá de sentido se não fizer
que os discípulos de Asclépio, segundo consta, não outra coisa senão cuidar da doença, com prejuízo de suas .
passaram a aplicar o método de tratamento presentemente obrigações diárias. Depois dessa declaração, diz adeus a
em uso depois do tempo de Heródico. Heródico, porém, esse tipo de médico e volta para o trabalho de rotina,
por ser professor de Ginástica e viver sempre achacado, recupera a saúde e continua a cumprir suas obrigações.
mistutou Ginástica com Medicina, com o que começou No caso de não resistir o corpo ao impacto da doença,
por atormentat a si-mesmo em'grau maior, e depois dele vem a morrer, com o que fica livre das canseitas.
a muitos Outros. .. e -Para gente desse feitio, observou, só serve mesmo.
“Como assim? perguntou. - semelhante Medicina.
Por prolongar sua própria morte e acompanhat a E não será, lhe perguntei, por terem profissão, que,
-doença mortal de que sofria, sem nunca conseguir curaf-se, 407 a se não for exercida, de nada lhes valerá viver?
- passou a vida a cuidar apenas disso, em função do É evidente, respondeu,
- tratamento, para suplício próprio, desde que se afastasse “Ao passo que os ricos, como dissemos, não têm
um tantinho.do regime prescrito. Desse modo, sem parar - profissão que os impeça de viver no caso de não ser ela
- de morrer, sua sabedoria conseguiu fazê-lo chegarà exercida.
velhice. . : : . É o que dizem, de.fato. quem,

Belo prêmio, disse, sua arte lhe conferiu. Não conheces o dito de Focílides, de que é preciso
Não merecia outra coisa, continuei, quem nunca praticar a virtude, quando se tem de que viver? —
chegou a compreender que não foi nem por ignorância A meu pensar, até mesmo antes, foia sua resposta.
168 Platão - A República Livro III 169

Bem; mas não briguemos com ele por isso. Fazes de Asclépio, disse, um verdadeiro estadista.
Perguntemos apenas a nós mesmos se o rico deve praticar a Sem dúvida, tepliquei; nem foi outra coisa.
virtude, ou se de outra forma não lhe é possível viver, e se a Observaste como seus filhos se comportavam
mania de alimentar doenças, que impede o carpinteiro ou valentemente nos combates diante das muralhas de Tróia,
qualquer outro artista de aplicar-se ao seu trabalho, não 408a ao mesmo tempo em que praticavam a Medicina a que
impede o tico de seguir o preceito de Focílides. há pouco me referi? Deves estar lembrado da passagem
Sim, por Zeus, respondeu; é o que se observa em que Menelau foi vulnerado por Pândaro:
principalmente com esse cuídado excessivo do corpo, que
vai muito além dos exercícios usuais de Ginástica. Chupam-lhe o sangue, cobrindo-a depois habilmente
Prejudica até mesmo os trabalhos de casa, o serviço com bálsamo,
nas campanhas militares e as obrigações civis em
tempo de paz. É sem determinar o que ele deveria comer ou beber depois'
E o que é pior: esse medo constante de forçat a disso, o que também não fez Eurípilo, pela certeza de
c cabeça e de ser acometido de vertigem, de que a Filosofia É que as drogas empregadas eram bastante idôneas pata
“seriaa única culpada, perturba oestudo, a observação e curat quem antes de ser ferido gozava saúde e adotava
reflexão.
à Assim, onde quer que se manifeste, é b regime ftugal, ainda mesmo que chegasse a beber aquela
absolutamente impossível exercitar-se ou conservar-se a mistura; mas os indivíduos de constituição doentia e vida
virtude; leva as pessoas a se imaginarem permanentemente destegrada achavam que não erá de vantagem viver, tanto
doentes ea não pararem de queixar-se de perturbações para eles como pata a comunidade, e que nem a arte da
somáticas: Medicina fora ctiada para isso, nem havia necessidade
É o que acontece, realmente, observou. de tratar de nenhum, ainda que fossem todos mais ricos
Podemos, pot conseguinte, afirmar que foi por saber do que Midas.
disso que Asclépio só pensou naqueles que pór natureza Muito sagazes, disse, segundo os descreves, foram
e pelo regime de vida mantêm saudável o corpo e que os filhos de Asclépio.
apenas são acometidos de doenças bem definidas; para
indivíduos assim constituídos foi que ele revelou a sua XVI — Só lhes faço justiça, repliquei. Não obstante,
Medicina; com poções ou incisões debelava-lhes os os trágicos e Píndaro, em desacordo conosco, se, por um
incômodos; permitia-lhes os exercícios das ocupações lado, dizem que Asclépio foi filho de Apolo, afitmam
habituais para não prejudicar os interesses da c também que se deixou seduzir por dinheiro para curar
comunidade, porém, não punha a mão nos organismos um indivíduo tico, já no ponto de morrer, motivo de ter
minados por doenças, com prescrever-lhes qualquer sido atingido por um raio. Porém nós, coerentes com o
regime de pequenas purgações ou infusões fracas e não que dissemos antes, não damos crédito a nenhuma dessas
lhes prolongar com isso a vida miserável nem contribuir assertivas. Se ele era filho de um deus, é o que afirmamos,
para que gerassem filhos, como seria de esperar, não podia ser ávido de dinheiro mal-adquirido, e se visava
inteiramente iguais aos país. Era de parecer que não valia a algum lucro sórdido, não podia ser filho de nenhuma
a pena tratar de quem se revelava incapaz de viver o divindade.
tempo fixado pela natureza, o que não seria de proveito É muito certo, replicou. Mas, que pensas do seguinte,
nem pata ele nem para a comunidade. Sócrates? Não é preciso que na cidade haja bons médicos?
ECA G RAP ARA RE pane per o termica e can do tom coca me a hrama dba ca ot CALLERASSTO.
entrem FORMSI IGT VA OGÊNIZO ENes Ch E LE TCA ETA dam came
me nomes 0 cr um

Livro HH 171
170 Platão - A República

E não serão os melhores médicos, justamente, os que Por isso mesmo, .prossegui, um bom juiz não pode
ser moço, potém já avançado em anos, só devendo
já tiveram sob seus cuidados grande número de
aprender muito tarde O que é propriamentea injustiça,
- pessoas sãs e de doentes, como são também os
não por haver tomado conhecimento dela como de algo
melhores juízes os que já tiveram. de tratar com as
mais variadas naturezas? que residisse em sua própria alma, mas pot observação.
Não há dúvida, respondi: bons médicos e bons juízes. demorada e como vício estranho na alma dos outros, para
Mas não sabes quem eu considero desse modo? alcançar o conhecimento de sua natureza por melo do
Se o disseres, ficarei sabendo, foi a sua resposta. estudo, não da experiência pessoal.
Um juiz nessas condições, disse, seria o ideal.
Vou tentar defini-los, respondi; porém reuniste coisas
heterogêneas na mesma proposição. Fora o juiz de acordo com os teus desejos; quem
Como assim? perguntou. tem alma boa é bom. O outro, porém, astucioso e
Formam-se os mais hábeis médicos, obtemperei,.
suspicaz, autor de um sem-númeto de injustiças e que se
quando, além de começarem o estudo desde moços, tem na conta de experiente e sábio, faz sempre boa figura
examinam o maior número possível de corpos da mais no trato com os que se lhe assemelham, porque reconhece
precária constituição, e que, ao lado de compleição malsã,
nos outros os traços de sua própria consciência. Quando,
tenham sofrido toda espécie de doenças. Sim, porque porém, entra em contato com pessoas direitas e de mais
não é com o cotpo, segundo penso, que eles tratam do idade, patenteia a sua incapacidade pela desconfiança
corpo; caso contrário, não lhes seria permitido cair doente
intempestiva que lhe é própria e por desconhecer a
ou serem de constituição fraca. É com a alma que tratam honestidade, visto não trazer no-seu íntimo o
do corpo, não podendo aquela cuidar bem de nada, se paradigma adequado; contudo, por tratar com número
for doentia ou se vier a adoecer. maior de velhacos que de pessoas de bem, pot si
E muito certo, disse. mesmo e pelos outros é tido mais na conta de sábio
Mas, no caso do juiz, meu caro, a alma governa a do que de ignorante.
409 a alma. Por isso mesmo, não se concebe que, desde os É muito certo tudo isso, observou.
mais tenros anos, seja ela educada e viva entre almas
tuins, nem que tenha experiência de toda sorte de XVII — Logo, prossegui, o juiz bom e sábio que

sé crimes, no pressuposto
conhecer e julgar.
de que dessa maneira poderá
com segurança os crimes dos outtos,
devemos procurar não é o indivíduo nessas condições,
mas o primeiro. A maldade jamais poderá reconhecer
p X y como do próptio corpo ela conclui para as doenças. simultaneamente 2 si mesma:e a vittude, ao passo que a
Ao contrário: é preciso que desde a mocidade se virtude, educada pelo tempo, adquirirá o conhecimento
conserve puta e estreme de. vícios, para que decida do vício e de si mesma. À meu pensar, úm indivíduo
com critério sadio sobre os casos concretos, partindo nessas condições é que se torna sábio, não Oo outro.
de sua própria honestidade. Esta é a razão de É também o que me parece, respondeu.
parecerem simplórias na mocidade as pessoas justas Dessa maneira, depois de uma legislação nos moldes
ereto
io

descritos, estabelecerás na cidade uma Medicina como a


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e de serem fáceis vítimas dos espertalhões: é que, no


íntimo, não carregam modelos do que se passa na alma que definimos, para que ambas cuidem do corpo e da
Ee

alma dos cidadãos bem constituídos; dos outros, não:


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dos perversos. 40 a
deixarão perecer os que apresentarem defeito físico e
Goticas

E precisamente, disse, o que se dá com eles.


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172

determinarão a morte dos que se revelatem com alma


Platão - À República
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173
|
dedicamà Música ficam demasiado moles, o que não é
viciosa e itremediável. bonito para eles.
Ea melhor solução, observou, tanto para os doentes No entanto, observei, essa brutalidade se osigina de
como para a cidade. um tempetamento arrebatado, que com boa educação
Sem dúvida, continuei; pois os jovens terão - pode dar origem à coragem; mas, quando forçado além
escrúpulos de recorrer à justiça, pelo próprio hábito . de certo limite, fica intratável e duro.
- daquela música simples, que louvamos como inspiradora É também o que eu penso, disse.
da temperança. Continuemos: e a doçura, não é- de natuteza
É muito certo, respondeu, filosófica? E, no caso de ser relaxada em excesso, não se
E seguindo essa mesma pista, na aprendizagem da torna mais mole do que fora razoável, como, se for bem
Ginástica não conseguirá o músico, se assim o quiser, dirigida, branda e moderada?
dispensar de todo a Medicina, a não ser nos casos de Isso mesmo.
extrema necessidade” Mas também afirmamos que nossos guardas
Penso que sim. terão de ser dotados naturalmente de ambas as
Fará seus exercícios e trabalhos mais com.o fito de qualidades.
despertar e fortalecer a coragem inata do que a força É fato.
física, diferentemente dos demais atletas, que só por amor Logo, setá preciso deixá-las harmônicas entre si.
da força bruta se sobrecarregam de alimentos e exercícios. Como não?
É muito certo, respondeu. A alma assim harmonizada será a um 1 tempo sábia e
E as pessoas, Glauco, lhe perguntei, que 4lla cotajosa.
estabeleceram a Música e a Ginástica como base da Perfeitamente.
educação, não teriam em vista, com isso, como muitos E a desarmônica, covarde e grosseira?
pensam, formar o corpo por meio desta, e por meio da Muito!.
outra a alma?
Que mais poderia ser? perguntou. XVIII — Logo, quando alguém se dedica à Música e
Pode-se dat o caso, obsetvei, de haverem sido ambas derrama na alma pelo canal dos ouvidos; como por um
estabelecidas. principalmente pata a alma. funil, as harmonias doces, brandas-e melancólicas a que
Como assim?
há pouco nos referimos, e passa a vida a gotjear e a
Ainda não observaste, lhe falei, como é constituído deleitar-se com a beleza do canto, inicialmente o elemento
' O caráter.das pessoas que a vida-inteira se ocupam com
irascível de sua alma se torna-brando, tal como se dá
Ginástica, sem tocar em Música, eo das que procedem com o ferro que, de imprestável.e quebradiço, fica
ao contrário disso? maleável e útil, Mas, se não se detém nesse processo de
À:que te referes? perguntou. amolecimento e continua a cultivar a: Música, chegará a
De um lado, brutalidade e dureza, lhe disse; do outro, ponto de derreter-se e de fundit-se, até que a coragem se
maciez e doçuta: lhe dissolva de todo e ele, com:os nervos da alma
- Sim, respondeu; sei muito bem que os que praticam cortados, se degrade à condição de combatente sem
“com exagero à Ginástica tornam-se mais grosseiros do
ptéstimo.
que. fora
de desejar, e, por outro lado, os que só se E muito certo, respondeu,
. Jéie iba Judo tº Alda e

Mem dé perto o O6
pede nda psiprebria em Esso

Fong «ha Als GOIS

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0 a PERA DTM SCSI CCE ral a MET EVERIG ALA Perante a too 0 ceon ator nar trem dera Eaadatosas tomo pia
cracarte dr cr nata aentdimictê
Met to to tas Rb

Livro HI 175
174 Platão - À República

No caso, continuei, de ser ele de espírito fraco por 412a reciprocamente, por meio da tensão e do relaxamento,
natureza, essa modificação se processa rapidamente; O conforme as circunstâncias.
indivíduo de alma decidida perde em pouco tempo a Parece que é isso mesmo, disse.
c coragem e se torna impressionável, pronto para explodir Quem reúne por maneira perfeita a Música e a
à menor provocação e a acalmat-se de repente. De Ginástica e as aplica à alma na mais justa proporção, com
animosos que eram, tornam-se violentos, irascíveis e todo o direito diremos ser muito mais músico e mais
absolutamente imprestáveis. bem harmonizado do que o afinados de cordas de
Seguramente. qualquer instrumento.
E na hipótese contrária: no caso de ptaticar Com toda a tazão, Sócrates, respondeu.
alguém exercícios físicos em excesso e de comet em “Em nossa cidade, também, Glauco, precisaremos
demasia, sem tocar nem de leve na Música e na sempre de um dirigente nessas condições, se quisermos
Filosofia, a boa disposição física não o deixará, no “que a constituição seja preservada.
começo, orgulhoso e animado, mostrando-se mais E tão hábil quanto possível, respondeu.
corajoso do que era antes?
XIX
— Tal é, em traços gerais, nosso plano de ensino
Sem dúvida.
E daí? No caso de não fazer outta coisa e de não tet e de educação, Para que descrever com particularidades
nenhum comércio com as Musas? Ainda mesmo que as danças dos educandos, as caçadas com matilha ou sem
d abrigue nna alma certa cu: josidade de sal
saber, pelo fato de cães, as competições a pé ou a cavalo? É mais do que
claro que tudo isso deverá obedecer aos mesmos
AA nunca provar nenhuma espécie de conhecimento ou de
Pesquisa nem de participar de discursos ou de qualquer princípios, não havendo nenhuma dificuldade em
descobri-los.
outra maniféstação de cultura, não acabará aquela
pr curiosidade por enftaquecer- see ficar s surda e cega pela, Talvez não haja mesmo, disse.
Muito bem, continuei; e agora, que precisaremos
falta de estímulos e de ali entos c por não. serem
ram fondo a
purificadas s suas sensações? determinar? Não será, porventura, quais dentre os
“É muito certo, observou. cidadãos têm de mandar e quais obedecer?
Um indivíduo nessas condições torna-se inimigo do Como não? oo
pensamento e e ddas Musas; para persuadir,j jamais recorrerá É evidente, outrossim, qué compete aos velhos |
e là palavra, e tudo realizará brutalmente, por meio da força, mandar, e aos moços obedecer.
como um animal feroz, vivendo como ignorante nas mais E claro.
grosseiras práticas e alheio de todo à graça e ao sentido E que devem ser escolhidos os melhores.
do equilíbrio. Isso também,
Tudo isso é muito certo, disse, Ora, entre os agricultores, os melhores não serão os
E foi provavelmente visando a esses dois princípios, mais dedicados aos trabalhos do campo?
segundo penso, que alguma divindade deu aos homens São.
as artes da Música e da Ginástica, pata o elemento da E como os nossos guardas terão de ser os melhores
coragem e a sede do saber, não pata a alma e o cotpo, a no seu gênero, não será preciso que sejam também os
não ser apenas como acessórios, mas tendo em vista mais bem dotados para guardar a-cidade?
aqueles dois princípios, a fim de se harmonizarem Exato.
176 ! Platão - À República Livro IH 177

Mas todo mundo só cuida bem daquilo a que dedica b E não é certo que isso só se dá por meio de roubo,
amot.
encantamento ou violência?
Forçosamente.
Isso também, disse, não chego a compreender.
Como só se apega ao que considera como tendo Pelo que vejo, estou falando a linguagem dos
interesses iguais aos seus, e cujo bom êxito ou mau tesultado trágicos. Digo que um indivíduo é roubado, quando
- andarão de pat com a felicidade próptia ou com-a desgraça.
Isso mesmo, respondeu.
se esquece ou quando é trabalhado pela persuasão;
num caso influí o tempo; noutto, a razão, para privá-lo, sem
Nessas condições, tetemos de escolher os guardas que o perceba, da opinião própria. Compreendeste
que à nossa observação se nos tenham sempre revelado agora?
dispostos a promover o que se lhes afigura vantajoso para Compteendi.
a cidade e que de nenhum modó consentitiam em fazer Os violentados a mudar de
o contrário disso; opinião sob a influência da ttisteza ou da dot,
São esses, realmente, os indicados, respondeu. Compreendo isso também, disse; é muito certo.
A meu parecer, devemos observá-los em todas as Quanto aos encantados, creio que dirás comigo
idades, para ver se se mantêm fiéis aquele princípio, e tratar-se dos que mudam de sentimento, ou. pelas
que nem por força de encantamentos nem por violência blandícias dos prazeres ou pela ação terrificante do
de nenhuma espécie serão levados a jogar fora-a máxima medo.
de que lhes cumpre fazer sempre o que visar ao maior Realmente, observou; a tudo o que engana pode-se
bem da cidade. atribuir efeito mágico.
Que entendes por essa expressão: jogar fora?
Vou dizer-te, lhe repliquei, No meu modo de pensar,
KX — Assim, como acabei de dizer, será preciso
de duas maneiras uma opinião sai do espírito: com o procurar entte os guardas os que mais fielmente
nosso assentimento ou contra a nossa vontade: Com o
observarem a máxima comum de que em qualquer
43a nosso assentimento, quando se ttata de opinião falsa, ou citcunstância deverão fazer o que for considerado de mais
quando nos convencemos-do contrário; contra a nossa vantagem pata a cidade. Desde crianças-devem ser postos
vontade, sempre que for verdadeira. à prova com lhes passarmos tarefas apropriadas para fazê-los
Com o assentimento, “compreendo o que venha a esquecidos daquela máxima e serem induzidos a erro,
ser; porém, essa perda involuntária, peditia que me depois do que escolheremos os-de boa memória e que
explicasses. não se deixaram enganar, e rejeitaremos osc que falharam,
Como». perguritei-lhe; não és também de parecer que não é verdade?
os homens só a conttagosto se privam do bem, mas Perfeitamente.
voluntariamente, do mal? E não será um mal a petda da
Devemos, ainda, impor-lhes trabalhos, sofrimentos
verdade, e um bem a sua posse? É não te parece estar € lutas em que essas mesmas condições sejam observadas.
com a verdade quem concebe as coisas como elas Tens razão, disse.
realmente são? E não os submeteremos, porventura, perguntei, à
Tens razão, replicou; eu também sou de parecer que prova do encantamento — seria a terceira do nosso
é sempre a contragosto que os homens se vêem privados esquema — com promover competições e observar como
da opinião verdadeira. se comportam? Do mesmo modo por que procedem os
NB. Platão - À República Livro HI 179

» : tratadotres de pottos, que os levam pata o meio de barulho Que mentiras? perguntou,
e de tumulto, a fim de vetificar se são medtosos; assim Não se trata. de nenhuma novidade, lhe repliquei,
também, de ambientes aterrorantes passaremos nossos mas de uma de origem fenícia que antigamente era muito
moços para as delícias do prazer, pondo-os à prova com frequente, conforme declaram os poetas e o fazem crer
mais cuidado do que fazemos com o outo levado ao fogo, aos outros, mas-que nunca ocorreu entre nós, nem me
a fim de sabermos se estão aptos para resistir às seduções parece que algum dia possa vir a acontecer e que
e se se comportam decentemente em todas as dificilmente será crido.
circunstâncias, como bons guardas deles mesmos e da Observo, me falou, que hesitas bastante em dizer o
música aprendida, e se revelam ritmo e harmonia em que pensas.
todos os atos, para que a si próprios e à cidade sejam da Depois do que eu disser, observei, dar-me-ás razão
maior utilidade possível. Os que na infância, na mocidade por hesitar dessa maneira.
4l4a e na idade madura forem submetidos a essas provas e se Então fala sem medo, respondeu.:
saírem delas puros e vitoriosos, serão colocados como E o que vou fazer, conquanto não saiba onde

| todo&
dirigentes e guardas da cidade e receberão honrarias tanto buscar coragem ou as expressões convenientes. O fato
em vida como depois de mortos, além de lhes erigirmos é que procuratei convencer em primeiro lugar os Inolon bonaA
túmulos outros
€ monumentos em sua memória, Os ditigentes e os guerreiros, e depois todo o resto dal
“maiores ncno seu gênero, Serão excluídos os que falharem cidade, de que a educação ea ins tução que receberam.
nessas provas. E assim, Glauco, como-eu imagino que de nós deve ser considerada pot eles como um sonho
deve ser a escolha e a nomeação dos dirigentes e guardas em que imaginassem ter ocorrido tudo aguilo, mas
da cidade, exposto o plano em traços gerais, sem que, de fato, todos eles se encontravam embaixo da
descermos a particularidades. terra, onde foram formados e educados, e com eles
Eu também, disse, penso mais ou menos desse as atmas e todo o seu equipamento. Depois de completada
jeito. neles a obra da ctiação, a terta, mãe comum, os dera
E não seria mais exato dar o nome de guardas à luz, tazão por que deveriam considerar a terra em
perfeitos aos que tanto nos asseguram contta os que ora habitam como mãe e ama de todos eles,
inimigos de fora como contra os amigos de dentro, defendendo-a no caso de ser atacada, e considerar
frustrando a vontade de uns e, dos outros, a itmãos os demais cidadãos, visto terem nascido, como
possibilidade de prejudicar-nos de qualquer maneira, eles, do seio da tetra.
para atribuir aos moços, que há momentos Não foi sem motivo; disse, que vacilaste tanto tempo,
denominamos guardas, o nome de auxiliares dos antes de contar essa ficção. '
chefes e executores de suas decisões? 415a Não é assim mesmo? perguntei. Mas, escuta o testo
Acho que sim, foi a sua resposta. da mito. Todos vós que morais nesta cidade sois.tmãos,
qu
ar
lhes diremos, em prosseguimento ao nosso conto, mas à
XXI — E agora, perguntei, de que meio lançaremos - divindade que vos fez mistutou outo ao nascimento dos
mão para contar as mentiras a que há pouco nos que revelavam capaci idade: de comando, pata que se. parmdt
£
referimos, alguma fábula honesta, capaz de enganar os tornassem mais preciosos; nos auxiliares: acrescentou

próprios dirigentes, ou, na pior hipótese, os outros prata, bem como ferro e bronze nos s agricultores e demais
cidadãos? artesãos. Porém, como todos vós tendes-uma otigem
180 Platão - À República Livro HI 181

comum, na maioria das vezes dateis nascimento a e os inimigos de fora, no caso de caírem como lobos
filhos que se vos assemelhem, conquanto possa sobre o rebanho. E depois de acampados, farão os
. acontecer que de pais de ouro nasça um filho de prata, sacrifícios convenientes e passarão a prepatar as tendas.
- ou o inverso:um filho de ouro provenha de pais de Ou como será?
- ptata, e assim por diante, em diferentes combinações. Assim mesmo, disse.
Antes e acima de tudo, determinou a divindade aos E tendas, justamente, que tanto sirvam para protegê-los
dirigentes que sobre nada exerçam suas obtigações no inverno como no vetão, não é verdade?
de guardas e zelem: com: mais cuidado do que a Como não? Quer parecer-me que te referes a
respeito dos nascimentos e da qualidade do elemento casas.
que entra na composição da alma de cada um, e, no Isso mesmo, observei; porém casas de soldados, não
caso de seus próprios filhos trazerem mistura de ferro de negociantes.
ou de bronze, de nenhum modo deverão apiedar-se 4léa E que diferença fazes entre umas e outras?
-deles; mas, como prova de respeito à natureza deles
mesmos, serão transferidos para a.classe dos attesãos
Tentarei explicar-te, respondi. O que de mais terrível
e vergonhoso poderia acontecer para os pastores, seria
o4 empp
ou para a dos agricultores, como também o inverso: criarem cães para guarda do rebanho; de modo que, por quedas
os filhos de qualquer destes que revelatem traços de intempetança ou. fome, ou qualquer: outro mau hábito,
ouro ou de prata, em homenagem ao seu valor, terão se atrevessem a causar dano ao rebanho e.em.yez
de a utada
de ser. promovidos para a classe dos guardas ou dos cães, se tornassem verdadeiros lobos, -'
guerreiros, conforme O caso, em obediência às Horroroso, disse; como não?-
determinações do oráculo, quando ameaça de Logo, teremos de envidar esforços para que nossos
“destruição a cidade que chegar a ser guardada por auxiliares não se comportem desse modo em relação aos
ferto ou bronze, Tens alguma idéia de como seja cidadãos, visto serem muito mais fortes do. que estes, e
possível levá-los a acreditar em semelhante mito? em vez de companheiros benévolos pareçam déspotas
Nenhuma, disse, para-a presente geração; sim pata furiosos.
Iuriosos.,
seus filhos e ulteriores descendentes € para os homens E o que precisamos evitar, disse,
- do porvir. . E a melhor maneira de deixá-los prevenidos nesse
Já seria grande vantagem; lhe falei, para se particular não será dar-lhes educação modelar?
dedicarem com maior devotamento à cidade e Mas, se todos já receberam essa educação! observou.
-cuidarem uns dos outros. Creio ter compreendido teu Ao que lhe objetei: não podemos ser tão categóricos
pensamento. nesse ponto, meu caro Glauco. O que eu disse há pouco
foi apenas que eles precisam receber educação acertada,
XXII — Deixemos que nossa fábula se estenda por seja ela qual for, se tiverem de adquirir a maior disposição
- onde a Fama a conduzir. De nossa parte, armemos esses possível de brandura, tanto com referência a eles mesmos
filhos da terta.e entreguemo-los ags cuidados dos -como aos que eles terão de proteger.
dirigentes. Uma vez todos juntos, procutem o ponto da É muito certo, disse.
cidade mais aproptiado pata assentarem o acampamento, Além dessa educação, diria qualquer pessoa de senso,
-«de onde possam dominar com mais facilidade os cidadãos suas motadias e os demais pertences devem set .
de dentro que, potventura, se recusem a obedecer à lei, confeccionados de tal modo, que não os prejudiquem
Aces irLtod, APT EALOE LEALDISAR O CE ter ta CERESIRAC
So sand amnto ca aro o rnman
cre renata tamo

182 Platão - A República Livro HI 183

no exercício de suas funções de guardas ideais, nem os essas tazões, arrematei, que explicamos como devem ser
induzam a causar malefícios aos outros cidadãos, organizadas as moradias dos-nossos guardas e tudo o
E o diria com toda a razão. mais que lhes.diz respeito, o que passará a ser regulado
Agora vê, continuei, se eles precisarão, realmente, por lei. Não é assim mesmo?
viver e morar dessa maneira, para-chegarem a ser o que Perfeitâmente, respondeu Glauco.
dissemos. Inicialmente, nenhum deverá possuir nada, a
não ser o estritamente necessário. Depois, ninguém terá
. moradia própria nem celeiro, onde qualquer pessoa não
possa entrar quando quiser. No que respeita à provisão
de boca de que necessitam guerreiros exercitados,
temperantes e corajosos, receberão dos outros cidadãos
a quantidade certa de cada vez, à guisa de recompensa
pelos serviços prestados, a conta exata para um ano, de
forma que nem-sobre nem venha a faltar nada. Tomarão
parte nas refeições públicas e viverão em comunidade,
como soldados em campanha. Dir-lhes-emos que
abrigam ouro e prata na alma, permanentemente, como
dádiva superior da divindade, razão por que não têm
necessidade dos de origem humana, além de constituir
impiedade macular a dádiva divina com a mistura do ouro
terreno, pois um sem-número de ações ímpias já foram
417a praticadas por causa do ouro amoedado do vulgo,
enquanto o deles se conserva sempre puro. De todos os
cidadãos de nossa comunidade, serão eles os únicos à
quem não é permitido lidar com outo nem prata, ou
sequer tocar neles, nem permanecer sob o mesmo teto,
trazê-los como enfeite nas vestes ou beber em vasos de
outro ou de prata. Desse modo, não somente se
conservarão salvos, como promoverão a salvação da
cidade. Desde que passem a adquirir particularmente
terras e casas ou a possuir dinheiro, tornar-se-ão
ecônomos ou lavradores em vez de guardas, titanos
violentos em lugar de companheiros dos demais cidadãos;
odientos e odiados ao mesmo tempo, sempre a suspeitar
dos outros e objeto permanente de suspeita. Assim
passarão a vida, com mais medo dos inimigos de dentro
do que dos de fora, e sempre a corter para a perdição
iminente, todos eles juntamente com a cidade. Foi por
Livro IV -

419a I — Nesta altura, Adimanto tomou a palavra para


| dizer: De que maneira, Sócrates; perguntou, te
justificarias, se alguém observasse que teus homens não
são muito felizes? A culpa, aliás, é deles mesmos, pois
embora sejam, de fato, donos da cidade, não tiram disso
proveito algum, como se dá com os demais cidadãos,
que possuem terras, constroem moradias belas e
espaçosas, mobiladas por eles com capricho, oferecem
sactifícios aos deuses no próprio nome e tecebem
hóspedes, além de possuírem os bens a que há pouco te
referiste: ouro e prata-e tudo o mais de que em geral
dispõem os mimosos da fortuna. De fato, poder-se-ia
objetar que a função daqueles é de simples mercenários
420 a assalartados, pois outra coisa não fazem senão montar
guarda.
É isso mesmo, observei; e ainda por cima só recebem
a comida, sem nenhum soldo de crescença, ao contrário
do que se dá com os outros, de forma que nem mesmo
poderão viajar, se assim o desejarem, presentear as
taparigas ou gastar com o que bem lhes parecet, tal como
fazem os que se têm na conta de felizes. Tudo isso e
alguma coisa mais deixaste de incluir em tua acusação.
Pois incluamos também isso, respondeu.
Queres saber como faremos nossa defesa?
Quero.
Se prosseguirmos no caminho iniciado, continuei,
sou de opinião que acabaremos por encontrar o que é
preciso responder. O que diremos é que não seria de
admitar se, apesar de tudo, fossem os nossos guardas os
mais felizes dos homens. Quando constituímos a cidade,
não tínhamos por escopo deixat uma classe mais feliz
do que as outras, porém promover a felicidade máxima
da cidade, Éramos de parecer que numa cidade desse
tipo é que haveria maior probabilidade de encontrarmos
186 Platão - A República Livro IV 187

a justiça, tal como se daria com a injustiça, na mais fato não constituiria nada grave para a cidade; quando,
desorganizada; isso nos permitiria, após o competente porém, os guardas das leis e da cidade deixam de ser
exame, resolver a questão com que há muito nos verdadeiros guardas, para o serem apenas na apatência,
ocupamos. Presentemente, segundo creio, o que estamos bem vês que com isso ocasionam a perda total da
formando é a cidade mais feliz, não no sentido de separar comunidade, cuja felicidade e boa organização dependem
uns poucos cidadãos para tal fim, mas no conjunto, De exclusivamente deles, Por consequência, se formarmos
seguida, examinaremos a cidade contrária a esta. Se verdadeiros guardas, estes serão absolutamente incapazes
estivéssemos pintando uma estátua, e alguém se de fazer mal à cidade; quem pretende o conttário e os
aproximasse para criticar, com a observação de que não transforma em lavradores ocupados apenas com festanças
empregamos as cores mais bonitas nas partes mais belas e alheios à função de felizes hospedeiros do burgo, falará
do corpo, como os olhos, que, sendo os mais belos, de tudo, menos da nossa cidade. Precisamos, portanto,
deveriam ser pretos, não pintados de púrpura, considerar se, ao instituirmos os guardas, temos em mira
poderíamos defender-nos com muita propriedade, da concedet-lhes o maior gtau possível de felicidade, como
seguinte maneira: Ó crítico admirável! não exijas que indivíduos, ou se, de preferência, devemos olhar para a
q pintemos tão belamente os olhos, a ponto de acabatem cidade como a um todo, para que ela alcance: esse

Si por não parecerem olhos, e do mesmo modo os demais


membros; considera apenas se, dando a cada parte o que
lhe convém, deixamos apresentável o conjunto. À mesma
desiderato, e também obrigar pela força ou pela persuasão
os auxiliares e os guardas, e assim os demais concidadãos,
a cumprirem suas obrigações
da melhor maneira possível,
fE coisa acontece agora: não nos forces a attibuir aos nossos e, uma-vez bem organizada e florescente-a cidade, deixar
guardas uma felicidade que fará deles tudo, menos que cada classe participe da felicidade a que pot natureza
e verdadeiros guardas. Sabemos muito bem de que jeito tem direito. a

poderíamos vestir os lavradores com roupagens solenes


e enfeitá-los com ouro, e determinar que só lavrassem a II — É fato, observou; acho que tens razão no que
terra como e quando melhor lhes parecesse; como disseste.
também nos fora possível permitir que os oleiros se É porventura também concordarás, lhe perguntei,
deitassem do lado direito à volta do fogo, a se com esta outta observação, que tanto see parece com a
banqueteatem, tendoà mão-a roda de oleiro para fazê-la anterior?
girar só quando lhes aprouvesse. Dessa maneira Qual é?
poderíamos deixar venturosas todas as classes, para que Observa os demais trabalhadores, e dize-me se essas
a cidade inteira vivesse na mais completa felicidade. Mas condições os estragam, a ponto de deixá-los ruins.
não insistas conosco nesse sentido, porque se te - Quais serão?
42la obedecêssemos; nem o lavrador continuatia sendo À riqueza, lhe falei, e a pobreza.
lavrador, nem o oleiro, oleiro, nem ninguém mais Como assim?
preencheria as condições que tornam possível a E o seguinte: se o oleiro fica rico, achas que ainda
sobrevivência da cidade. Nas outras profissões nada disso - Queira ocupar-se com sua profissão?
teria graves consequências; se os remendões de sapatos De modo nenhum, respondeu.
degenerassem.e se tornassem maus profissionais, e na Porém de dia em dia se tornaria mais preguiçoso e
sua arrogância imaginassem ser o que não são, semelhante descuidado?
188 Platão - A República
Livro IV 189

Muito. Tenho dúvidas, respondeu, se o atacarem ao mesmo


E passaria a ser um mau oleiro? tempo.
Cada vez pior. Nem mesmo, continuei, se conseguisse fugir dos
Por outro lado, se por causa da pobreza não inimigos e depois se virasse para derrubar com um murro
pudesse adquirir os instrumentos de sua profissão e o mais próximo, repetindo por diversas vezes o mesmo
tudo o mais que se relacione com ela, não apenas ardil sob o calor sufocante do sol? Um lutador nessas
fabricaria produtos inferióres, como ensinatia mal aos condições não venceria um grande número de adversários
de igual tipo?
filhos seu próprio ofício ou a quem quer que tomasse
Sem dúvida, respondeu, o que não seria de admirar.
como discípulo.
Nem poderia ser de outta maneira. E não és de parecer que os ticos conhecem mais a
Logo, ambas as causas, a riqueza e a pobreza, fazem arte do pugilista e dela têm maior experiência do que a
da guerra?
que degenere não apenas o produto do trabalho como
os próprios artesãos?
Acho que sim, respondeu.
É o que parece. Nesse caso, com toda a probabilidade os nossos
Encontramos, por conseguinte, segundo penso, nova atletas levarão facilmente a melhor contra adversários
ocupação para nossos guardas: impedir, de todos os duas ou três vezes mais numerosos do que eles.
modos, que esses males se insinuem na cidade,
Declaro-me de acordo contigo nesse ponto, me
falou; acho que tens razão.
De que se trata?
À riqueza, tespondi, e a pobreza; pois uma gera a E no caso de enviarem uma embaixada a outta
luxúria, a indolência e o gosto de novidades; e a outra, cidade, para dizer-lhes, de acordo com a verdade dos
além desse mesmo gosto de novidades, deixa os homens fatos: Não fazemos uso algum de ouro nem de prata,
com alma de escravos e propensos ao vício. pot ser-nos isso proibido, o que não acontece convosco;
Perfeitamente, disse. E agora, Sócrates, considera O se vos aliardes conosco nas campanhas militares, ficareis
seguinte: de que modo poderá guerrear nossa cidade, se com os espólios do adversário comum. Acreditas que
não dispõe de recursos, no caso de vir a enfrentar alguma
depois de uma proposta nesses termos eles prefeririam
cidade rica e poderosa? brigar com cães magros e resistentes a aliar-se com estes
- Não há dúvida, lhe respondi; nessas condições, é
para enfrentar carneiros pingues e amolentados?
muito difícil enfrentar qualquer cidade; porém facílimo, Creio que não. Mas, se uma única cidade teunisse
se forem duas. no seu âmbito todos os bens das outras, que perigo não
Que queres dizer com isso? perguntou.
passaria a constituir para a cidade pobre.
Em primeiro lugar, lhe falei, se for preciso lutar, não Como é ênuo, lh aginare
terão. nossos guerreiros — atletas comprovados — de nome de cidade possa ser?
seraplicado aqulguer outra al
combater contra um exétcito de gente rica? da que estamos or a
E por que não? perguntou.
Sem dúvida.
Ora, Adimanto, continuei, não achas que um único ' As outras, lhe disse, terão de receber designações
mais amplas; cada uma delas não é uma cidade, como se
pugilista bem adestrado no seu mister vence com
facilidade dois adversários sem prática, máxime se forem
diz no jogo, porém muitas. De duas, pelo menos todas
ricos e enxundiosos?
423 a são constituídas, e inimigas entre si: a dos pobres e a dos
190 Platão - À República
Livro IV 191

ricos, as quais, por sua vez, se subdividem em muitas


referência aos demais cidadãos será preciso que cada
outras. Se tratares com elas como se cada uma fosse um exerça uma única atividade, aquela para que for
uma unidade, ertarias de ponta a ponta; mas se as naturalmente indicado; é só dessa maneira que o
considerares múltiplas, e a uma deres os bens e o cidadão permanece único, não múltiplo, com o que
poder das outras, ou seus próprios moradores, lucra a própria cidade, que não se multiplica, porém,
contarás sempre com muitos aliados e poucos se mantém indivisa.
adversários. Enquanto a tua cidade se mantiver Realmente, observou; essa determinação é ainda
temperante como foi constituída, será sempre a maior, menos importante do que a outra.
não apenas na aparência, mas a maior, de fato, ainda Sim, meu caro Adimanto, continuei; todas as
mesmo que só conte com um milhar de combatentes. prescrições por nós apresentadas não são, como se
Não te será fácil encontrar uma cidade grande nesse poderia crer, de maior importância, porém, secundárias,
sentido, nem entre os helenos nem entre os bárbaros, uma vez que seja devidamente observada a que é
embora muitas pareçam ser maiores ainda do que a verdadeiramente grande... Não; em vez de grande,
nossa. Ou pensas de maneira diferente? digamos suficiente. |
De forma alguma, respondeu. Qual é? perguntou.
À instrução, lhe disse, e a educação: porque, se
III — Assim, continuei, seria esse o mais belo limite nossos guardas forem bem educados e se totnarem
para os nossos governantes: determinar até que ponto homens esclarecidos, todos esses problemas serão por
precisa crescer a cidade e que porção de território lhe
eles percebidos com facilidade, e muita coisa mais de
- deve ser adjudicada, sem que ela se preocupe com que não vamos tratar agora, como a posse das mulheres,
ulteriores anexações.
Que limite? perguntou, o casamento e a procriação de filhos, coisas essas que
entre amigos, como diz o provérbio, devem ser comuns,
Minha idéia, lhe disse, é a seguinte: deixar a cidade "tanto O,
A
:
crescer enquanto se mantiver una; além desse limite,
Assim ficará muito bem determinado, observou.
não. Porque a cidade com bom começo, prossegui,
Muito bem, falou. " continua a crescer à maneira de um cítculo. À educação
Sendo assim, continuei, teremos de atribuir aos e a instrução bem dirigidas formam constituições boas;
nossos guardas mais uma tarefa: zelar de todos os modos por outro lado, as boas constituições, sob a influência de
para que a cidade nem pareça muito pequena nem grande “semelhante educação, tornam-se ainda melhores do que
em demasia, porém suficiente e una. as das gerações anteriores, sob todos os aspectos, mas
Aliás, determinação de importância muito relativa,
principalmente nd que entende com a procriação, tal
observou. como se observa nos outros animais.
Menos importante, ainda, lhe disse, é a de que E muito possível, observou.
falamos há pouco, ao afirmar que seria preciso transferir
Para tudo dizer numa só palavra: o que mais importa
pata outras classes-os filhos dos guardas que porventura aos guardas da cidade é evitar que ela venha
se revelassem inferiores, e O inverso: passar para a classe imperceptivelmente a corromper-se, devendo eles, por
dos guardas os filhos bem gerados das outras duas. Com conseguinte, antes de mais nada, imp edir que se
isso tinha em mira demonstrar que também com introduzam na Ginástica e na Música inovações contra à
192 Platão - À República Livro IV 193

ordem esta ida, e esforçat-se ao máximo para que Então, como dissemos antes, desde o princípio
esta seja preservada, de medo, quando se-ouve dizer os próprios jogos das crianças ficarão regulados por
que lei, por não ser concebível que de crianças rebeldes e
425a jogos ilegais saiam cidadãos obedientes e de conduta
pois entre o povo recebem mais altos louvores os exemplar.
o cantos Como fora possível? perguntou.
que para o ouvinte mais novos lhe soam, de fatos Desse modo, se os meninos começarem bem desde
recentes os jogos infantis, e adquirirem, por intermédio da música,
o hábito de otdem, esta, por sua vez, em vez do que
possa alguém, por vezes, imaginar que o poeta não se acontece com os demais, os acompanhará por toda a parte
refere a canções tecentes, mas a novas maneiras de cantar, no seu desenvolvimento, restabelecendo o que
e passe a elogiar a inovação. É o que não se pode nem porventura houvesse decaído na cidade.
louvar nem interpretar dessa maneira. À introdução de De inteiro acordo, disse.
um novo gênero de música deve ser evitada com o maior E por si mesmos descobrirão as determinações
empenho, como particularmente perigosa para o todo, consideradas de somenos importância e de que,
ai” pois em parte alguma as leis da: Música são alteradas sem descuidaram as gerações anteriores,
prt que concomitantemente
fundamentais da: comunidade,
se modifiquem as
como afirma Damão e eu
leis Quais são?
Às seguintes: calarem os moços quando na
o creio, presença de pessoas idosas, como O exige o respeito,
“Inclui-me também, disse-Adimanto, entre os que levantatem-se e ceder-lhes o lugar, honrar pale mãe,
estão convencidos dessa vetdade. a maneira de trazer os cabelos, a qualidade das vestes.
e do calçado, o cuidado em geral com a aparência
IV— É neste ponto, por conseguinte, continuei, exterior, e tudo o mais do mesmo gêneto, não te
como. se vê, que os nossos pupilos devem assentar O parece?
corpo da guarda: na música. Sem dúvida.
Sim; observou; por ser onde mais facilmente se Seria dar prova de simplicidade legislar sobre essas
“insinua o desrespeito às leis. coisas; em parte alguma o fazem, nem duratiam muito
É isso mesmo, acrescentei; como se se tratasse de tempo determinações orais ou escritas a esse respeito.
simples brincadeira sem nenhuma consequência. Como o poderiam?
Não há consequências, replicou, se não for instalar-se Pelo menos parece, Adimanto, continuei, que, de
ali aos poucos e depois coar de mansinho para os acotdo com o impulso inicial da educação, otienta-se
costumes e instituições; desse-ponto, cada vez mais forte, tudo o mais. O semelhante não atrai sempre o
passa para os contratos dos cidadãos, e dos contratos semelhante?
salta para as leis e a constituição, com a maior desfaçatez, Como não?
Sócrates, até a completa ruína, tanto da vida particular Finalmente, segundo penso, podemos dizer que tudo
como da pública, acaba pot alcançar perfeição e robustez, quer se trate de
Hum! Será assim mesmo? perguntei. algo bom, quer do contrário disso.
Acho que sim, foi a sua resposta. É fora de dúvida, respondeu.
en mma pers
a atol

194 Platão - A República Livro IV 195

Por tal razão, prossegui, eu, pelo menos, não tentarei -Pelo que observo, lhe falei, não aprecias esse tipo de
legislar sobre essa matéria. gente.
É natural, observou. Não, por Zeus!

%
E agora — pelos deuses! — lhe perguntei, com é
relação à vida do mercado e o comércio entre os cidadãos, V — Nesse caso, não aprovatás também a cidade, se
ou, se quiseres, os contratos dos artesãos, insultos, brigas, a toda ela, como dissemos há pouco, se comportasse desse
queixas em justiça, e a designação de juízes, a taxação ou modo. Ou não te parece que se dá a mesma coisa com as
cobrança de impostos no próprio mercado ou nos portos cidades mal organizadas, que proíbem aos cidadãos, sob
e, de modo geral, a regulamentação
do policiamento da
rd c pena de morte, bulir na constituição? No entanto, quem
ágora, da cidade e dos portos, e tudo o mais do mesmo trata bem os que vivem em semelhante regime e os adula
gênero: ousaremos legislar a respeito dessas coisas? servilmente, procurando adivinhar-lhes os desejos para
Não ficaria bem, me disse, impor determinações . satisfazer todos eles com antecipação, esse é tido na conta
dessa índole a indivíduos de boa estirpe; eles mesmos de prócer, conhecedor dos grandes problemas e é
facilmente descobrirão o que precisa. ser regulamentado cumulado de honrarias.
a esse respeito. É exatamente assim que procedem, observou, o que
Sem dúvida, amigo, se Deus lhes conceder consetvar estou. longe de aplaudir.
as leis a que nos referimos há pouco. d E os que se dispõem, lhe perguntei, a servir a uma
Caso conttário, passarão o tempo todo a legislar e a cidade nessas condições, não os admiras pela coragem e
apresentar emendas acerca de mil particularidades, boa vontade de que dão prova?
convencidos de que poderão atingir a perfeição. Admiro, disse, com exceção: dos que se deixam
Comparas a vida dessa gente, lhe falei, à dos doentes enganar por eles e se têm na conta de grandes estadistas,
que, por intemperança, não se decidem a abandonar um só porque recebem aplausos das multidões.
* mau regime, Como assim? lhe perguntei; não desculpas essa
Perfeitamente. . gente? Imaginemos um indivíduo que não saiba medir.
426a E que boa vida a deles! Com tantos tratamentos, só Se outras pessoas, de ignorância igual à sua, lhe disserem
conseguem complicar e prolongar as doenças, certos, que elé tem quatro côvados de altura, não admites que
sempte, de que se tomarem o último remédio aconselhado e. acabará convencido do que dizem a seu respeito?
por alguém, com esse ficarão curados. Acho que não, foi a sua resposta:
É isso mesmo, disse, o que se passa com tais doentes. Não te agastes; essa gente é muito divertida; outra
E então? lhe perguntei; não é engraçado terem coisa não fazem senão legislar, no sentido a que há pouco
na conta de seu maior inimigo quem lhes fala a nos referimos, e apresentar emendas, com a esperança
verdade, a saber: que de nada lhes valerão remédios, de porem fim às fraudes dos contratos e aos demais
cáusticos, incisões, fórmulas mágicas, amuletos e tudo abusos a que nos referimos, sem saberem que outra coisa
o mais do mesmo gênero, a menos que deixem de não fazem a não ser cortar cabeças à hidra..
beber e de comer em excesso e não se entreguem à 427 a Realmente, disse, não fazem outra coisa.
luxúria e à indolência? Pot minha parte, lhe falei, sou de opínião que nem
Engraçado é que não é, tespondeu; abotrecer-se com na cidade bem organizada nem na que o não for, o
quem dá um bom conselho não tem graça nenhuma: verdadeiro legislador deverá dar-se ao trabalho de redigir
196 Platão - À República Livro IV 197

leis a respeito dessas particularidades; nalguns casos, por socorro da justiça com o máximo empenho e de todos
serem de todo inúteis e não aproveitarem a ninguém; os modos possíveis.
* noutros, pot poder qualquer pessoa descobri-las com É verdade o que lembras, retruquei; isso mesmo é '
facilidade, pois decorrem naturalmente das instituições que será preciso fazer, mas tereis de ajudar-me.
em curso. É o que faremos, sem dúvida.
- Que nos resta ainda para fazer, perguntou, em Espero encontrá-la, continuei, da seguinte maneira:
matéria de legislação? inicialmente, teremos de admitir que nossa cidade é
-Ao que lhe respondi: a nós, nada; à Apolo de Delfos erfeita, uma vez.que foi constituí o devia set,
é que compete ditar 'as mais importantes; as mais belas e Forçosamente, disse.
as primeiras determinações. Terá de ser, por conseguinte, sábia, valente,
Quais são? perguntou. temperante
e justa.
As que dizem respeito. à instituição dos templos e É claro.
sacrifícios, e ao culto dos deuses em geral, dos demônios Sendo assim, a virtude que não se achar entre as
e dos heróis, bem como ao sepultamento dos mortos e positivadas em nossa cidade, sejam estas quais forem,
aos titos a setem observados com relação aos do além, 428a será justamente a que procuramos,
pata que se nos tornem propícios. São assuntos de Sem dúvida.
que nada entendemos; como fundadores da cidade, Por exemplo: ficaríamos satisfeitos se, estando nós
não podemos confiar em ninguém, se formos dotados em qualquer parte à procura de uma de quatro coisas,
de senso, nem aceitar outros intérpretes além da logo de saída a encontrássemos; mas, no caso, também,
divindade pátria. Nesses assuntos é a divindade o de primeiro acharmos as outras ttês, só com isso teríamos
intérprete tradicional da religião; de sua sede, centro identificado a que procurávamos, por ser evidente que
e umbigo da terta, envia suas determinações para os não pode set outra, senão a que nos faltava.
homens. É muito certo o que dizes, confirmou.
Tens tazão, disse; precisamos proceder assim E com respeito a essas virtudes, pot serem
mesmo. , precisamente quatro, não devemos proceder do mesmo
modo?
VI — Nesta altura, lhe falei, já podes, filho de Aristão, É clato.
considerat fundada tua cidade. Depois disso, cumpre-te À primeira que se me patenteia parece ser a
examiná-la bem: mune-te, como te for possível, de luz sabedoria, sendo que percebo nela algo estranho.
suficiente e pede o auxílio de teu irmão Polemarco e Que é? perguntou..
de outros, para ver se desse modo descobrimos onde À cidade por nós descrita, afiguta-se-me, realmente,
se encontra a justiça e onde a injustiça, em que diferem sábia, por set dotada de prudência, não é verdade?
entre si; e qual delas deverá adquirir quem quiser ser Sim.
feliz, quer se furte quer não aos olhares dos deuses e - Mas isso mesmo, a prudência, é uma espécie de
dos homens. conhecimento; não é graças à ignorância, mas ao
- Essas afirmações de nada valem, interpôs Glauco; conhecimento que emitimos bons conselhos.
afirmaste no começo que irias investigar o assunto, e É claro,
declaraste ser prova de impiedade não sairmos em Há muitos-e variados conhecimentos na cidade.

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198 Platão - A República Livro IV 199

Como não? Logo, é praças à classe menos numetosa e à menor


Mas será por causa do conhecimento especial do orção esma e ao conhecimento que existe
catpinteiro que a cidade merece ser denominada sábia e a sabet: à classe dos presidentes e governantes, que no
prudente em seus conselhos? seu todo é sábia a cidade constituída segundo a natureza,
De forma alguma, disse; esse conhecimento só lhe Tudo indica. que essa classe, naturalmente pouco
ensejatia a reputação de hábil na arte da carpintaria. 429a numerosa,é que detém o único conhecimento digno de
Como não o é, também, pot causa do conhecimento ser denominado sabedoria.
de como faturar objetos de madeira, quando aconselha E muito certo, respondeu..
sobre o melhor meio de produzi-los. Assim, já encontramos uma das quatro virtudes —
Não, evidentemente. : de que modo, não saberei dizê-lo — como também ela
E então? Nem, ainda, pelo conhecimento relativo própria e o lugar que lhe compete na cidade.
aos objetos de bronze ou a outros da mesma natureza. Eu, pelo menos, observou, considero satisfatório
Nem por esse, foi a sua resposta. semelhante achado.
Ou pelo conhecimento da colheita dos frutos da
terra; com isso só lhe adviria a fama de cidade VII — Quanto à coragem e à porção da cidade em
* agricultora. que se encontre, de onde vem esta:a ser denominada
É também o que eu penso. corajosa, não é difícil acertar.
E então? perguntei: haverá em algum dos componentes Como assim?
da cidade fundada por nós um conhecimento próprio À que mais, perguntei, teremos de olhar, para
para aconselhar, não a respeito deste ou daquele assunto dizer que uma cidade é valente ou pusilânime, se não
peculiar à vida pública, mas ao conjunto dela própria, for para a porção que combate e-sai à guerra por sua
sobre a melhor maneira de ditigir-se a si mesma e de causa?
tratar com as demais comunidades? Ninguém pensaria noutra coisa, observou.
Há, sem dúvida. Pois quer parecer-me, lhe disse, que não depende de
Qual é, perguntei, e em quem se encontra? serém os demais cidadãos fracos ou corajosos, pata que
O conhecimento dos guardas, me disse, que se seja a cidade qualificada deste ou daquele modo.
encontra nos governantes por nós qualificados como Com efeito.
guardas perfeitos. A cidade será corajosa em virtude de uma parte
E de que modo denominas a cidade que possui de si mesma, por ser nessa parte que reside o poder
semelhante conhecimento?” ' que em todas as circunstâncias mantéma opinião
Prudente, me falou, e verdadeiramente sábia. relativa às coisas que são para temer, e que devem ser
E que achas? perguntei: haverá na cidade maior as mesmas e da mesma natureza das que o legislador
número de ferreiros ou de verdadeiros guardas? indicou no seu plano educativo. Não é a isso que dás
Muito mais ferreiros, tespondeu. o nome de valentia?
E entre os profissionais, continuei, que titam o nome Não apanhei bem o-sentido de tuas palavras,
dos respectivos ofícios, não te parece que estes sempte replicou; torna a falar.
constituem minoria? O que digo, observei, é que a coragem é uma espécie
Minoria acentuada, respondeu. de salvação.
200 Platão - A República Livro IV 201

Salvação de quê? Não tenho, respondeu, pois quer parecer-me que não
Da opinião criada pela lei por meio da educação, a consideras legítima a opinião verdadeira a tespeito dessas
respeito do que sejam as coisas para se temerem e de sua mesmas coisas, sempre-que não forem produto da
natureza. Com a expressão em todas as circunstâncias, educação, como no caso dos animais e dos escravos, e
pretendi indicar que ela a conserva nas tristezas, nos lhe dás nome diferente.
prazeres, e também nas paixões e no temor, sem jamais Falaste com muita precisão, lhe disse.
vir a perdê-la, Se quiseres, vou ilustrar meu pensamento Por isso mesmo admito tua concepção de coragem.
com uma compatação. Admite também, lhe falei, que se trata de uma virtude
Quero, como não? -política e terás acertado. Mais para diante, se estiveres de
Como sabes, continuei, quando os tintureiros acordo, conversaremos melhor a esse tespeito; mas o que
desejam tingit de púrpura a lã, começam por eleger dentre procuramos neste momento não é a coragem, porém a
as cores uma única: a branca, e depois de variadas e justiça. Acerca da coragem, me parece, já falamos o
pacientes manipulações deixam a lã em condições de suficiente. -
receber a púrpura. Só depois disso é que a tingem. É Tens razão, replicou.
indelével a tintura feita por esse processo, sem que a cor
desapareça com a lavagem, quet seja com água simples VIII — Restam-nos duas virtudes, lhe disse, que
quer com sabão. Se não fizer assim, bem sabes o que precisam ser consideradas na cidade: a tempetança e a
acontece, tanto com a lã de outra cor como com a branca, que constitui o objeto propriamente dito de nosso estudo:
uma vez omitido aquele tratamento prévio. a justiça, o
' Sei que desbotam logo e se tornam horrorosas. Perfeitamente.
Coisa mais ou menos parecida, lhe falei, deves Como será possível encontrar a justiça, se antes não
admitir, foi o que pusemos por obra, com todo o nos ocuparmos com a temperança?
empenho, quando escolhemos nossos soldados e os Não sei o que responda, replicou; como não desejo
educamos com Música e Ginástica. Podes ficar certo de que a justiça seja tratada primeiro, se isso prejudicar nosso
que não tínhamos outra intenção a não ser a de prepará-los estudo sobre a temperança, Caso queiras fazer-me um
pata absorverem as leis do melhor modo possível, como obséquio, ptincipia por esta.
se deu com a cor, no exemplo apresentado há pouco, a - Pois não, lhe disse; não seria justo recusar-te o que
fim de que se tornem indeléveis suas convicções a me pedes.
respeito das coisas de temer e de muitas outtas, por isso Então começa, me falou,
mesmo que são todos de boa natureza e receberam É o que vou fazer, lhe disse. Pelo que vi até agora, o
educação adequada, e.para que a tinta resista a esses certo é que a temperança se assemelha mais a acorde e
sabões descotantes de ação tão.violenta — refiro-me aos harmonia do que a anterior
prazeres — muito mais ativos do que a cinza.e todas as' Como assim?. o E
lixívias, e à dor, e ao medo, e às paixões, barrelas de ação Por ser uma espécie de ordem, continuei, e domínio
mais rápida do que qualquer lavagem. Essa força sobre os prazeres, o que em geral-se define pela expressão
salvadora da opinião verdadeira e legítima a respeito do Ser senhor de si mesmo, que se me afigura um tanto estranha,
que é ou não é de-temer é que denomino coragem, se e outras mais que são como traços deixados por essa
não tiveres nada que obietar, virtude, não é verdade?
Ceruepr ae a str
ana ta PVE CAMARA rd ociendsa dorme camem
e rid ada

202 Platão - À República 203

E muito certo, respondeu. pelas paixões e pela inteligência de-uma minoria de


Mas não é ridícula essa expressão Ser superior a si cidadãos prestantes?
- mesmo? Quem for superior a si mesmo será também Vejo, respondeu.
43la inferior a si mesmo, passando o inferior a ser superior,
pois em ambas as maneiras de falar trata-se de uma só IX — Portanto, se tivermos de dizer de alguma cidade
pessoa. que é senhora dos prazeres e das paixões, e também
Certamente. senhora de si mesma, terá de ser da nossa.
O que me parece pretender significar essa expressão, Sem dúvida, respondeu.
continuei, é que na própria alma do homem há um E, por todos esses motivos, será também
princípio melhor e outro pior, e que, quando o de denominada temperante?
natureza melhor assume o domínio sobre o outto, Perfeitamente, disse.
dizemos que é superior a si mesmo; é um elogio. E se há cidade em que os governantes e os
Quando, porém, por defeito de educação ou pelo trato governados estejam de acordo sobre quem deva governar,
com a turba dos elementos piores é dominado o terá de ser esta mesma, não te parece?
princípio melhor e mais fraco, diz-se, como censuta, É muito certo, respondeu.
de um indivíduo nessas condições, que é intemperante E em qual dos grupos de cidadãos dirás que reside a
e inferior a si mesmo. temperança, quando eles se comportam reciprocamente
É o que parece, de fato, respondeu: desse modo: nos que governam ou nos que são
Se olhares agora, continuei, para nossa cidade recém- governados? .
formada, irás encontrar nela um desses dois princípios, Em ambos, quero crer, foi sua resposta.
o que te levará à convicção de ser'ela com justiça Como deves ter notado, não fomos adívinhos de
denominada superior a si mesma, pois tudo aquilo em todo desprezíveis, quando comparamos a temperança a
que a melhor parte exerce poder sobre a pior recebe o uma espécie de harmonia.
nome de temperante e de superior a si mesmo. Como assim?
Sim, vejo isso mesmo, tespondeu; tens razão. Porque a temperança. não é como a coragem e a
sabedoria tram em partes diferentes da
Realmente, a multiplicidade e variedade das paixões,
os prazeres e as dores, encontram-se, de regra, nas 432a cidade e a deixam valente ou sábia, conforme o caso.
Com a temperança não se dá isso; estende-se por toda a
tr
crianças, nas mulheres e nos escravos, como também na
maioria menos prestimosa dos homens denominados cidade e, segundo as leis da mais perfeita harmonia,
livres. promove acordo entre as-cidadãos: os fracos, os fortes e
Perfeitamente. os mediano: s, seja com telação à inteligência, se o quiseres,
Porém os desejos simples e moderados, sempre ou com, a. força, seja, também quanto ao número e à
dirigidos pela razão e pela opinião justa, é o que tiqueza ou com qualquer vantagem do mesmo gênero,
encontrarás em muito poucas pessoas, precisamente as Daí, estarmos plenamente justificados por termos dado
de natureza superior e de melhor educação. o nome de temperança a essa concordância, a saber, a
É certo, observou. harmonia entre as pessoas superiores e as de natureza
E agora, não vês o que se passa em nossa cidade, inferior, para decidir quem deve governar na cidade e
em que as paixões das multidões inferiores são dominadas nos indivíduos.
204 Platão - À República Livro IV 205
e

Declaro-me de inteiro acordo, respondeu. justiça, sem percebermos que, de algum modo, estávamos
Desse modo, continuei, se não estou enganado, já a tratar dela.
identificamos três qualidades. E a que ainda falta e que Eis um preâmbulo muito longo para quem está
faz com que a cidade participe da virtude, qual poderá ansioso de ouvir.
ser? Trata-se, evidentemente, da justiça.
É claro. 433a X - Então, lhe disse, vê se tenho razão. O que
Daqui por diante, Glauco, precisaremos proceder estabelecemos desde o começo, quando assentamos os
como os caçadores: cercar o bosque e abrir os olhos, fundamentos de nossa cidade, como princípio de
pata que a justiça não nos escape e desapareça de nossa obediência universal, isso, precisamente, ou alguma forma
vista. E fora de dúvida que ela se encontra em alguma desse princípio, é a justiça. Se estás lembrado, o que
parte; esforça-te do teu lado por descobri-la, e se a enxergares afirmamos insistentemente foi que cada indivíduo não
primeiro, avisa-me. poderá exercer na cidade senão uma única ocupação, a
Quem dera que pudesse fazê-lo! Mas em tudo isto deves que por natuteza se encontre mais habilitado.
considerar-me simples acompanhante, com olhos apenas Foi o que dissemos, de fato.
para o que mostrares; mais do que isso não me será possível, E que a justiça consisteem fazercada um
o que. lhe.
Então, lhe disse, depois de orarmos, acompanha-me, compete € não entregar-se a múltiplas ocupações, não.
É o que farei, me respondeu; contanto que sigas na somente. DANDO.
frente. ouvimos de outras pessoas.
O certo, prossegui, é que o bosque p:parece impenetrável Foi, tealmente, o que dissemos.
e muito espesso; pelo menos, é escuto e difícil de explorar. s Então, amigo, continuei, pode muito bem dar-se
Mas precisamos penetrar nele.
Penetremos, disse. he A que nisso, precisamente, consiste a justiça: cuidar cada
um do que lhe diz respeito, Sabes de onde tiro essa
E eu, depois de firmat a vista: lá, iá, Glauco! lhe conclusão?
falei; parece que encontramos a pista! Tudo indica que a Não, podes falar, observou:
justiça não nos escapará. À meu parecer, lhe disse, a restante virtude da cidade
Boas notícias, observou. por nós planejada, afora as três mencionadas acima:
Porém fizemos figura muito grotesca. temperança, coragem e sabedoria, tem de ser a que
De que jeito? o empresta força para que as outras surjam e, uma vez
Rd Há muito meu caro, pa inha existentes, pelo simples feito de sua presença, subsistam
ES rolando na nossa frente, sem que o percebêssemos, por quanto tempo ela durar. Afirmamos, também, que
xidículos
nn a conta inteira, Procedemos como as pessoas
aaa Anna depois de encontrarmos as outras três virtudes, setia a
e que, por vezes, se põem à procura do objeto que têm nas que sobrasse.
mãos. Foi o que se deu conosco: sem olharmos para o Necessariamente, disse.
seu lado lançávamos a vista para longe. Talvez tivesse Há outro ponto, continuei; se tivéssemos de dizer
sido por isso que não a percebemos. qual dessas virtudes é a que mais contribui com sua
Como assim? perguntou. presença para a perfeição da.cidade, difícil fora decidir
O que digo, tepliquei, é que tenho a impressão de se é a conformidade de opinião entre governantes e
que há muito tempo falávamos e ouvíamos falar da governados, ou a conservação, entre os guerreiros, da

DEMBASLISEO ro ci ato rr came


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pacecio — bene toNpta fatia rot ESTUISRRITO af Tama 0M atra inot do FRIA rca anntamathda
tado

Livro IV 207
206 Platão - A República

noção legal do que deve ou não deve ser considerado Não muito, respondeu.
Porém no meu modo de pensar, quando algum
perigoso, ou a prudência e vigilância nos chefes, ou, ainda,
se a principal causa de:tal excelência é a presença em artesão ou qualquer indivíduo criado pela natureza para
ser comerciante, envaidecido pela riqueza ou o poderio,
crianças, mulheres, escravos e homens livres, artesãos,
pelo número de suas relações ou por qualquer outra
governantes e governados, dessa virtude que leva todos
vantagem do mesmo gênero, insiste em entrar pata a
a cumptir exclusivamente seu dever, sem dispersar-se em
classe dos guerreiros, ou algum dos guerreiros para O
múltiplas ocupações.
grupo dos conselheiros ou dos guardas, para O que não
Fora muito difícil, sem dúvida, respondeu.
Ao que parece, portanto, é que O princípio de revela capacidade alguma, e depois troquem as obrigações
e os respectivos instrumentos de trabalho, ou se o mesmo
cumprir cada um sua obrigação entra em competição com
indivíduo se abalançasse a exercer todos esses ofícios ao
as demais virtudes para o aperfeiçoamento da cidade: a
mesmo tempo, estou convencido de que para ti também,
sabedoria, a temperança e a coragem.
semelhante baralhamento e tamanha multiplicidade de.
Sem dúvida, respondeu.
profissões provocaria a ruína da cidade.
E não admitirás que seja a justiça essa competidora
para a virtude da cidade? Sem dúvida.
Sendo assim, a mistura dessas três classes e o
Perfeitamente.
Considera agora se também estás de acordo com este exercício simultâneo das respectivas profissões ocasionam
outro aspecto do problema: não incumbirás os prejuízo vultoso para a cidade, o que, com todo o acerto,
governantes da cidade de julgar os processos? pode ser denominado crime.
É evidente.
Como não?
E em suas decisões, não deverão esforçar-se
E ao mais grave crime contra sua própria cidade,
principalmente para que ninguém se apodere do que não dás o nome de injustiça?
pertence a outras pessoas nem venha a perder o que Como não?
possui?
XI — Aí temos, portanto, a injustiça. Como,
Disso, principalmente, é que cuidarão.
inversamente, diremos: quando nas classes dos
Por ser justo?
comerciantes, dos auxiliares e dos guardas cada um
Sim.
cumpre aponto suas atribuições de cidadãos, haverá o
Uma tazão a mais, por conseguinte, para definimos
oposto do que
descrevemos neste momento, saber:
a
Ajustiça como consistindo em conservar cada um o que
434a é seu e fazer o que lhe compete. justiça eo que faz justa a cidade.
Não me parece, disse, que seja por outra forma.
Exato.
Não manifestemos, observei, excesso de confiança;
Vê se estás de acordo comigo. No caso de pretender
só poderemos concluir dessa maneira depois de
o carpinteiro realizar o trabalho do sapateiro, ou o
sapateiro o do carpinteiro, ou de ambos trocarem os verificarmos que esse conceito é válido para cada
'insttumentos de trabalho e as respectivas profissões, ou indivíduo em particular e que em todos eles também se -
encontra à justiça. Que mais poderíamos acrescentar?
dedicar-se um deles aos dois misteres, e tudo o mais
desorganizado desse modo, és de opinião que a cidade Caso contrário, mudemos o campo de nosso estudo. Por
agora, encerremos a investigação iniciada com a
viria a sofrer muito coin isso?
208 Platão - A República Livro IV 209

esperança de que nos tornaria mais fácil descobrir a Eis, meu admirável amigo, que se nos apresenta uma
justiça em cada indivíduo, se nos aplicássemos primeiro questão fácil: saber se a alma possui ou não essas três
em algo maior em que ela se encontrasse. Quis parecer-nos qualidades. ,
que essa qualquer coisa devia ser a cidade, razão de Não me parece fácil, observou. É bem possível,
-havermos fundado uma cidade tão perfeita quanto Sócrates, que fale certo o provérbio: O belo é difícil.
possível, pois tínhamos a certeza de que a justiça deveria É evidente, repliquei; e fica sabendo, Glauco, que, a
estar presente numa cidade assim constituída. O que meu ver, com o método seguido na presente investigação,
nela descobrirmos, transportemos pata o indivíduo; jamais chegaremos a uma conclusão rigorosa. O caminho
se houver paridade, muito bem; mas se notarmos que aí vai ter é mais longo e mais difícil. Mas talvez seja
alguma diferença no indivíduo, voltaremos à cidade esse o método, tealmente, indicado para o que expusemos
para teexaminar nossas conclusões. Desse modo, com e analisamos até agota. :
435a o confronto de ambos e, pot assim dizer, pelo atrito E-não te satisfaz? perguntou. À mim, pelo menos,
de um com o outro brilhará para nós a justiça, como por enquanto ele parece bom.
do pedernal salta a faísca, que saberemos segurar, Muito bem, lhe falei; nesse caso, eu também me
desde que se nos torne manifesta. declaro satisfeito.
E excelente o teu método, observou; assim mesmo Então, não desanimes, observou; continua a
é que devemos proceder. investigar. mena

Quando de duas coisas, lhe falei, uma grande e uma Porventura, prossegui, não seremos fotçados a
pequena, dizemos que são iguais, queremos significar com admitit que em cada um de nós existem os mesmos
,

isso que são dissemelhantes, por serem a mesma coisa; princípios e hábitos que se encontram na cidade? De
ou serão semelhantes? nenhuma outra fonte lhe poderiam ter vindo. Seria, de
Semelhantes, respondeu. fato, sumamente tidículo imaginar que o caráter violento.
Assim, o homem justo em nada difexirá da cidade não passa das pessoas pata as cidades que apresentam
justa, no que diz respeito ao conceito da justiça, mas terá iguais características, tal como se obsetva, por exemplo,
de
semelhante
ser a ela. com os trácios e os citas e, de modo geral, com os povos
Semelhante, respondeu. do norte, ou o amor ao estudo, que atribuem
E a cidade se nos afigurou justa quando as três classes arme
à nossa região,
particul cupidez, que
e, ainda, a nte
que a compõem, diferentes por natureza, desempenham 436a podemos considerar característica dos fenícios e das
independentemente suas atividades: será temperante,
gentes do Beira.
corajosa e sábia, graças a certas disposições e qualidades Sem dúvida, respondeu.
correspondentes a essas mesmas classes. E é realmente o que acontece, lhe falei; não há
É certo, me falou. dificuldade em reconhecê-lo.
Do mesmo modo, caro amigo, teremos de considerar Nenhuma.
o indivíduo: deve ter na alma precisamente esses três
gêneros de qualidades, razão de merecer o mesmo nome XII — O difícil será sabermos se fazemos tudo apenas
que a cidade, visto comportarem-se ambos do mesmo pot meio de um único princípio ou se cada um deles tem
modo. função diferente, a saber: se aprendemos com um,
Necessariamente, disse. encolerizamo-nos com outto e procuramos satisfazer
BANCA INDO SORT DITO E NC ASR ED Vaio TAMPI EA CATIA
ENTER dear nem emma Do DO ii eram D CARO ART PATA ONT AL SS e A
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A A SD A SAUNAS Ut ta sroça no o ME 1 aa RR

. Platão - A República Livro IV 211


210

nossos desejos pot meio de um terceiro, o da alimentação, objetos que a um só tempo se encontram em repouso e
b da procriação e outros da mesma natureza, ou se será e em movimento; o que diríamos é que esses objetos se
com toda a alma que realizamos cada um desses atos, compõem de uma parte reta e de partes curvas, e que
quando nos dispomos a isso? Eis o que se me afigura com relação à primeira se encontram em repouso, sem
difícil decidir por maneira satisfatória. apresentar desvio para nenhum lado, mas que se
É também o que eu penso, disse. movimentam em círculo com relação às partes curvas,
Tentemos resolver por esse caminho se se trata de salvo no caso de inclinar-se a porção reta para 2 direita
um único princípio ou se são distintos. ou para a esquerda, pata diante ou para trás, enquanto se
De que forma? processa aquele movimento circular, nessa hipótese, de
in E muito certo que o mesmo sujeito não pode fazer nenhum jeito haverá repouso.
E & e sofrer ao mesmo tempo coisas contrárias na mesma Tudo isso está muito certo, observou.
E SH parte de si mesmo e com relação aó mesmo objeto. Por Objeções desse tipo, continuei, não nos atrapalham
$ isso, onde quer que verifiquemos semelhante fato, nem bastam pata convencer-nos de que a mesma coisa
c podemos concluir que não se trata de um único princípio, possa ao mesmo tempo e na mesma parte de si mesma e
porém de vários, 437a com telação aos mesmos objetos sofrer ou produzir
Exato. influências contrárias.
Reflete agora no que passo a dizer. À. mim, pelo menos, não convencem, observou.
Podes falar. Todavia, lhe falei, para que não sejamos obrigados a
Será possível, continuei, que a mesma coisa fique apreciar todas essas objeções só com o fito de demonstrar
parada e em movimento ao mesmo tempo e na mesma sua falsidade, com o que malbarataremos nosso tempo,
parte? aceitemos, de uma vez por todas, essa conclusão e
De forma alguma. passemos adiante, com a única ressalva de que, na
Ponhamo-nos aínda mais de acordo, a fim de não hipótese de se nos apresentar um caso diferente, ficará
dissentirmos para adiante. Se, de um indivíduo parado sem valor tudo o que assentamos até o presente
que movimente as mãos ou a cabeça, afirmar alguém que momento.
se encontta ao mesmo tempo em repouso e em É o que precisamos fazer, me disse.
movimento, é maneira de falar, segundo penso, que não

Ao
d podemos admitir, mas a seguinte: que uma parte dessa b XIII — E agora, continuei, não admitirás que a

pe
pessoa está em movimento e outra em repouso, não é confirmação e a recusa, o desejo e a aversão, à atração e
verdade? a repulsão e todas as demais coisas do mesmo gênero
Perfeitamente. devem ser consideradas como opostas entre si, quer selam.
E no caso de pretender nosso interlocutor levar ativas, quer sejam passivas? À diferença, neste passo,
adiante a brincadeira e afirmar com espíxito que toda a carece de importância.
tupia está a um só tempo em repouso e em movimento, São opostos, de fato, respondeu.
sempre que gira em torno de si mesma com o eixo fixo E o seguinte, voltei a falar: a fome e a sede, bem
em determinado ponto, ou qualquer outro objeto que como os apetites em geral, a vontade e o desejo, tudo
ande em círculo sem sair do lugar, é também o que não isso não incluis na mesma classe a que acabamos de
aceitaremos, pot não serem as mesmas porções desses Cc | teferir-nos? Por exemplo, não dirás sempre que a alma
212 Platão - A República Livro IV 213

de quem deseja tende para o objeto desejado ou que a sede um desejo, terá de ser desejo do que é bom, pouco
“atrai para si o que desejaria possuir, ou, ainda, ao importando o objeto do desejo, bebida ou outro qualquer,
queter que lhe seja trazida alguma coisa, faz a si valendo o mesmo pata os demais desejos.
mesma sinal afirmativo, como se alguém lhe houvesse Talvez essa objeção tenha sua razão de ser, me
interrogado a esse respeito, pela ânsia de ver realizado disse.
seu desejo? De qualquer forma, continuei, tudo o que se
Sem dúvida. relaciona com alguma coisa determinada, o faz desta ou
E então? E não querer, não desejar, nada “daquela maneira, segundo penso, 20 passo que cada coisa
pretender, não equivale a afastar ou repelir algo para considerada em si mesma só se relaciona com seu objeto
longe de si mesmo, justificando-se, desse modo, que próprio.
os incluamos na classe contrária de tudo o que Não compreendi, observou.
enumeramos antes? Não comptreendes, lhe perguntei, que uma coisa
Como não? grande só pode ser grande em relação a outra?
Sendo assim, precisaremos admitir que há uma classe Perfeitamente.
particular de desejos, aos mais imperiosos dos quais Que terá de ser algo pequeno?
damos o nome de sede e de fome? Sim.
"Admitiremos, sem dúvida, respondeu, Assim como a muito grande se relaciona com a muito
Um é o desejo de beber, e o outro, de comer? pequena? Ou não?
Sim. E certo.
- E agora: a sede, enquanto sede, será alguma coisa E a que antes eta maior, só o foi em relação com o
mais do que aquele desejo na alma, a que nos referimos? que era menor, e a que terá de ser maior, com o que terá
Por exemplo: a sede poderá ser sede de alguma bebida de ser menor,
quente ou fria, em grande ou pequena quantidade, numa Não poderá ser de outra maneira, respondeu.
palavra, de uma determinada bebida? Ou, ainda: no caso E que da mesma forma se relaciona o mais com o
de associar-se-lhe o calor, surgirá o desejo de frescor, e menos, o duplo com a metade de todas as coisas do
no caso do frio, o desejo de calor? E com a presença da mesmo gênero, como também o mais pesado com o mais
quantidade, será grande a sede e o desejo de beber muito, leve, o mais rápido com o mais vagaroso, o mesmo se
e se ela for pequena, de beber pouco? O que eu acho é dando com o quente e o frio e com tudo o que se
que a sede, pura e simples, não poderá deixar de ser senão comporta do mesmo modo.
o desejo de seu objeto natural, a próptia bebida, como o Perfeitamente.
da fome é o alimento. E com relação à ciência, não se observa a mesma
É assim, de fato, respondeu; cada desejo em si coisa? À ciência: 1 é e ecimento
mesmo só se ditige para o. seu objeto natural; o desejo do conhecimento, ou como quer que denominemos o
disto ou daquilo não passa de acidente. com que se relaciona o conhecimento, um particular e
438a Não nos deixemos confundir, continuei, se alguém determinado conhecimento de um objeto particular e
- nos objetar que ninguém apetece apenas bebida, mas uma determinado? O que digo é o seguinte: quando se criou
boa bebida, nem tão-somente comida, porém, boa a ciência de construir casas, não se diferençou ela das
comida, pois todo o mundo só deseja o que é bom. Sendo outras ciências, a ponto de ser denominada Arquitetura?

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214 Platão - À República Livro IV 215

Sem dúvida. Não; a sede em si só se relaciona-naturalmente com a


E não foi isso por tratar-se de uma espécie bebida em si mesma.
determinada de conhecimento, diferente das demais? Exato.
Foi. Por conseguinte, a alma de quem está com sede,
E por ser conhecimento de um determinado objeto, enquanto tiver sede outra coisa não deseja senão beber;
tornou-se uma determinada ciência? E o mesmo não isso, apenas, é o que almeja e para isso tende.
valerá para todas as artes e todas as ciências? É mais do que claro.
Exato. Assim, no caso de alguma coisa puxar para outra
direção a alma que tem sede, terá de ser diferente do
XIV — Era isso, continuei, o que há pouco eu princípio que tem sede e que a arrasta como a um animal
queria significar. Talvez já tenhas compreendido que para beber? Pois, como já vimos, não é possível que o
todas as coisas, quando em relação com algum objeto, mesmo princípio produza ao mesmo tempo e na mesma
consideradas em si mesmas só se relacionam com parte dele mesmo efeitos contrários.
outras coisas em si mesmas, mas se o fizerem com É evidente.
determinados objetos, passarão também a ser Como não fora certo, segundo penso, dizer do
qualificadas. Com isso, no entanto, não pretendo dizer mesmo arqueiro que a um só tempo com as mãos tepele
que sejam exatamente como os objetos com que se e atrai o arco, mas que com uma das mãos o2 afasta e com
relacionam, como, por exemplo, que o conhecimento a outta O puxa para si.
do que é sadio ou doente seja, pot sua vez, doente ou É muito certo, disse.
sadio, ou também que seja bom ou mau o E não poderemos afirmar, por vezes, que há quem
conhecimento do bem e do mal; o que afirmo é que não queira beber, muito embora esteja com sede?
esse conhecimento não se tornou, de modo geral, o Sem dúvida, respondeu; isso ocorre frequentemente
conhecimento do conhecimento, mas um com muita gente,
conhecimento determinado, no presente caso, da E que ditemos, perguntei, num caso desses? Não
saúde e da doença;.por isso acabou, por sua vez, será que na alma dessa pessoa há um princípio que lhe
ficando um conhecimento determinado, do que ordena beber e outro que lho proíbe, diferente do
decorre já não ser chamado apenas conhecimento, por primeiro e mais forte do que ele?
se lhe ter ajuntado um objeto particular, o da ciência E o que parece, respondeu.
médica. E esse princípio que proíbe tal coisa, quando
Compreendo, me disse, e acho que tens razão. presente, não o faz por meio da razão, ao passo que o
439a E com relação à sede, lhe perguntei, não a incluis que arrasta e impulsiona, por meio de paixões ou de
entre as coisas que só são o que são em relação a um doenças?
objeto? É fora de dúvida que só pode haver sede de... Parece-me que sim.
É cetto, me interrompeu, de bebida. “Logo, não será fora de propósito, observei, admitir
Sendo assim, de acordo com a qualidade da bebida que se trata de dois princípios diferentes; um deles, com
será a natureza da sede? Porém, a sede em si não é nem oqual o homem raciocina, poderá ser denominado o
sede de muito nem de pouco, nem do que é tuim nem ptincípio racional da alma; o outro, com.o que ele ama e
do que é bom, numa palavra: de uma determinada bebida. tem fome ou sede, e é arrastado por todas as paixões,
216 Platão - À República Livro IV 217

receberá o qualificativo de irracional e concupiscente, E então, lhe perguntei: quando alguém julga ter
amigo dos mais variados prazeres e satisfações cometido alguma injustiça, não é certo que quanto mais
Não é fora de propósito, respondeu, senão muito nobre for, menos se insutgirá contta os tormentos da.
certo pensarmos como disseste. fome, do frio ou de qualquer violência que sobre ele,
Desse modo, continuei, conseguimos isolar na exerça com justiça a pessoa injuriada e, como dizia, não
alma dois princípios distintos. E quanto à cólera e quererá sua cólera levantar-se contra ele mesmo?
aquilo com que nos encolerizamos, tratar-se-á de um É verdade, respondeu.
terceiro princípio, ou terá afinidade com algum dos E no caso de considerar-se vítima de injustiça? Não
anteriores? fica fervente por dentto, indignado, e não se alia com o
Talvez tenha, observou, com o concupiscente. que se lhe afigura justo, ainda que tenha de sofrer fome,
Mas, lhe disse, lembro-me de ter ouvido certa vez frio e tudo o mais do mesmo gênero, esforçando-se por
uma anedota a que dou inteira fé. É o seguinte: sait vencedor, sem jamais ceder do seu nobre propósito,
Leôncio, filho de Aglaião, de uma feita, ao subir do até conseguir esse desiderato ou vit a mortet no
Pireu, quando passava pelo lado de fora do muto - empreendimento, ou, ainda, como se dá com o cão, ao
setentrional, notando a presença de cadáveres no lugar chamá-lo o pastor, até ser acalmado pela razão?
das execuções, foi tomado a um tempo do desejo de Essa compatação, observou, é muito justa, tanto mais
contemplá-los e da repugnância que o levava a afastar-se que pusemos os auxiliates em nossa cidade como
440 a dali. Durante alguns instantes lutou consigo mesmo verdadeiros cães, submissos aos dirigentes, que são os
e tapou o rosto, até que, dominado pelo desejo, pastores da comunidade, -
arregalando os olhos e correndo para os cadáveres, Verifico, respondi, que apreendeste muito bem o meu
gritou: Eis aí, miseráveis; saciai-vos desse belo pensamento. Mas considera também o seguinte...
espetáculo! Que será? :
nm
Conheço a anedota, observou. À cólera se nos revelou agora como sendo o oposto,
O que essa história vem provar, lhe disse, é que, por justamente, do que há pouco havíamos assentado. Antes,
vezes, a cólera entra em conflito com as paixões e que admitimos tratar-se de-uma modalidade do desejo,
difere dela. enquanto agora estamos longe de confirmar semelhante
Prova-o, realmente, respondeu. proposição, para dizer que nos conflitos da alma ela toma
as armas em defesa da razão.
XV — Por outro lado, lhe falei, não observamos É muito certo, disse.
também, com bastante frequência, sempre que em alguém E será ela, porventura, difetente da razão, ou uma
b predominam os desejos sobre a razão, que essa pessoa simples variedade? Nesse caso não haveria na alma três
se injutia e se insurge contra a porção de si mesma que a princípios, porém dois: o racional e o concupiscente, Ou
violenta, e que em tal modalidade de duelo sai a cólera será como na cidade, em que três classes se congregam:
em ajuda da razão? Mas que saía em ajuda das paixões, a dos cometciantes, a dos auxiliares e a dos conselheiros?
quando a razão diz que não pode ser feito, é o que nunca, Nesse caso, ocorterá também na alma um terceiro
quero crer, poderás dizer que.já observaste em ti mesmo elemento, o colérico, auxiliar natural da razão, na hipótese,
ou em quem quer que seja. bem entendido, de não ter sido esta cortompida pot uma
Não, de fato, por Zeus, foi sua resposta, | educação viciosa?

Loo ema mta nana ira


218 Platão - A República Livro IV 219

Sim, respondeu; forçoso é que” haja um terceiro É o que também necessariamente se conclui.
elemento. Porém, ainda não nos esquecemos de que aquela só
É certo, observei; no caso de revelar-se diferente da é justa pelo fato de exercer sua função específica cada
razão, como se nos patenteou diferente do desejo. uma das três partes de que é constituída.
O que não será difícil demonstrar, me disse, pois isso Não me consta que nos tenhamos esquecido dessa
mesmo observamos até nas crianças, que se revelam particularidade.
coléricas desde que nascem; algumas nem chegam a adquirir Precisamos, por conseguinte, relembrar que cada um
o uso da tazão, e a maioria só muito tarde o consegue. de nós será justo e realizará sua função própria, quando
Por Zeus! exclamei; é muito certo o que dizes. Nos realizarem as suas cada uma das partes de que somos
próprios animais é possível confirmar o que acabas de compostos.
expor, se não quisermos mais uma vez invocar o Sim, respondeu; é o que precisamos ter sempre em
testemunho de Homero, a que já recorremos há pouco: mente. ;
E não compete o comando ao princípio racional,
o coração se dirige, batendo, indignado, no peito. por ser sábio e cuidar de toda a alma, e à cólera, obedecer
eauxiliá-la?
É fora de dúvida que nessa passagem Homero Perfeitamente.
considera como perfeitamente distintas a porção racional E não poderá acontecer, conforme dissemos antes,
que reflete sobre o bem e o mal, e a colérica, destituída que a mistura acertada de Música e Ginástica é que as
de razão e que é admoestada por aquela. põe de acordo, esticando a razão e alimentando-a com
E muito certo o que dizes, observou. 442 a belos discursos e ensinamentos, ou aftouxando algum
tanto a outra, moderando-a e deixando-a mais branda
XVI — Com muito trabalho, voltei a falar, por meio da harmonia e do ritmo?
conseguimos vencer a nado esse pequeno trecho; mas, Sem dúvida alguma, respondeu.
afinal concordamos plenamente em que os mesmos Logo, quando esses dois princípios: forem
princípios que ocorrem na cidade existem na alma dos educados como disseimos, e tiverem, de fato,
indivíduos, em número igual tanto nuína como na outra. aprendido o que lhes compete fazer, dirigitão a parte
Isso mesmo. concupiscente que em todos nós ocupa a maior porção
E não setá, então, forçoso que,
c sendo sábia a cidade da alma e é por índole insaciável de riqueza. Terão de
pot deteiminada causa, pela mesma razão seja também vigiá-la para que não venha a abusar dos denominados
sábio o indivíduo? prazeres do corpo, tornando-se; com isso, cada vez
Sem dúvida. maior e mais forte, e em lugar de exercer suas funções
E, sendo corajoso de qualquer maneira O particulas, naturais, procure escravizar e governar os que não lhes
será também, -pela mesma causa, corajosa a cidade, estão naturalmente sujeitos, com o que acabará pot
havendo entre ambos relação idêntica em tudo o que diz destruir a vida.
respeito à virtude? Perfeitamente, respondeu.
Necessariamente. - "E com relação aos inimigos de fora, continuei, não serão
Diremos, portanto, Glauco, que um homem é justo ' essas duas partes os melhores defensores da alma e do corpo,
do mesmo modó que é justa a cidade: uma delas aconselhando e a outra defendendo, e ambas

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