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ANÁLISE DAS CONTRADIÇÕES DE UMA EXPERIÊNCIA DE MUDANÇA

DE PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO NO CONTEXTO DE POLÍTICAS


EDUCACIONAIS DE RESPONSABILIZAÇÃO

Sara Badra de Oliveira- UNICAMP


Resumo: Este artigo analisa as potencialidades, contradições e desafios enfrentados por
uma escola pública da cidade de São Paulo que, ao mesmo tempo em que buscou inovar
suas práticas pedagógicas e organizacionais por meio da formulação/implementação de
um Projeto Político Pedagógico diferenciado, encontra-se inserida em um contexto de
uma política educacional na qual operam mecanismos de responsabilização, como o uso
acentuado de avaliações externas e sua vinculação à publicização dos resultados e a
discussões sobre o pagamento por mérito. Uma vez que estas políticas apresentam forte
poder indutor das práticas pedagógicas adotadas pelas escolas, perguntamo-nos quais
contradições ocorrem no percurso de uma escola que empreende um processo de
mudança de Projeto Político Pedagógico que, por um lado, parece questionar alguns
pilares das políticas de responsabilização - à medida que defende a autonomia, o
trabalho coletivo, a formação ampliada, o uso de novos mecanismos de avaliação; e por
outro lado adota práticas coadunadas com alguns pilares destas políticas, como a busca
pela intervenção na escola de ONGs, empresas privadas, fundações e trabalho
voluntário. Abordar as contradições desse processo nos aproxima de um olhar crítico
que não significa invalidar a experiência da escola nem vangloriá-la; significa, antes,
perceber potencialidades e desafios que se colocam para as escolas públicas no atual
contexto, na busca pela conquista de uma qualidade educacional socialmente relevante.
À luz desta problemática, este artigo traz dados de uma pesquisa de mestrado que
descreveu e analisou o processo de construção coletiva do Projeto Político Pedagógico
da escola em questão. Os dados coletados são fruto de entrevistas com diferentes atores
da escola, observação em campo, e análise documental.

Palavras-chave: Projeto Político Pedagógico - Mudança Educacional -


Responsabilização

A “responsabilização” é um dos elementos característicos das propostas dos


“reformadores empresariais” que tomam corpo nas políticas educacionais brasileiras a
partir dos anos 90 (Freitas, 2011). Tais “reformas empresariais” da educação ancoram-
se nos pressupostos de uma lógica proveniente do mundo empresarial segundo a qual os
princípios da objetividade técnica, racionalidade, eficiência e produtividade advogam a
reordenação do processo educativo. Neste contexto, Freitas (2012, p. 383) alerta para a
centralidade que assumem as avaliações externas em larga escala, ou “os ‘standards’,
ou expectativas de aprendizagens medidas em testes padronizados, com ênfase nos
processos de gerenciamento da força de trabalho da escola (controle pelo processo,
bônus e punições)”, à medida que tais avaliações constituem-se como base para a
introdução de políticas de responsabilização que visam focalizar as escolas e os atores
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locais como responsáveis pela melhoria da “qualidade do ensino”, expressa por meio
dos resultados destas avaliações.
As iniciativas sistematizadas de avaliação promovidas pelo Ministério da
Educação nos anos 90 associam-se ao objetivo de promover determinada qualidade
educacional, permitindo estabelecer padrões e critérios que regulam o cumprimento
desta qualidade. É assim que o Estado brasileiro se fortalece em um nível específico de
atuação, como “Estado-avaliador” ou “Estado-regulador” (AFONSO, 2001),
responsável por garantir a conformidade dos currículos (objetivos e conteúdos
previamente definidos), do trabalho dos professores e da gestão das escolas à
determinada concepção de qualidade. Nesse contexto, a elevação das pontuações dos
testes passa a ser o objetivo educacional e a expressão maior da qualidade em educação,
representando a medida da eficiência de professores e escolas, assumindo a função de
estabelecer inquestionavelmente quais escolas são de “boa” ou de “má qualidade”.
Segundo Freitas, essa concepção de qualidade serve aos interesses específicos
das corporações empresariais, que exercem um forte controle ideológico sobre o sistema
educacional, visando “colocá-lo a serviço de interesses de mercado, estreitando as
finalidades educacionais” e reduzindo a educação à tarefa de ensinar o “básico”,
produzindo “o trabalhador que está sendo esperado na porta das empresas” (FREITAS,
2012, p. 387). Segundo essa concepção, uma educação de qualidade é aquela capaz de
formar trabalhadores capacitados, hábeis e competentes para se adaptarem e atuarem
satisfatoriamente de acordo com as demandas do processo produtivo vigente.
Amarrado a essa concepção de qualidade, a reforma empresarial da educação
define novos parâmetros de gestão dos sistemas educacionais, caracterizados pela
descentralização e pela centralidade atribuída às escolas como núcleo do planejamento e
da gestão, com forte acento à “participação” e ao “trabalho coletivo”. Tais parâmetros
concretizam-se com objetivo de promover transparência de operação, maior eficiência
nos gastos, e maior responsabilidade pelos resultados (OLIVEIRA, 2008), e encontram-
se vinculados a interesses de diminuir gastos sociais do Estado e transferir
responsabilidades estatais à sociedade, por exemplo, por meio do voluntariado e da
busca nas escolas por financiamento privado de ONGs e empresas.
No entanto, autores como Shiroma, Garcia, Campos (2011), Libaneo, Oliveira,
Toschi (2007), Oliveira (2008), Carvalho, Costa (2012) pontuam que essa
descentralização e a correspondente defesa da gestão democrática não significaram uma
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real descentralização do poder decisório. Ao contrário, as palavras participação,


descentralização e autonomia assumiram um significado compatível com um processo
de padronização dos processos escolares e de aumento do controle central sobre o
currículo, sobre a normatização e o planejamento de políticas públicas, o que ocorre por
meio dos currículos centralizados, da regularidade dos exames nacionais de avaliação e
da prescrição normativa sobre o trabalho pedagógico, caracterizando um cenário em que
a autonomia conferida às escolas é mitigada à medida que se traduz em maior
responsabilização do professor e no fortalecimento do nível central como condutor da
direção política da reforma.
Bonamino e Souza (2012) ressaltam o forte poder indutor que as avaliações
externas assumem nas fases em que seus resultados vinculam-se ao objetivo de
subsidiar políticas de responsabilização. Segundo as autoras, a partir do momento em
que a avaliação adquire propósitos de responsabilização branda e forte, distanciando-se
do objetivo diagnóstico da primeira fase, ela assume mais veementemente um poder de
indução das práticas pedagógicas adotadas pelas escolas - definindo metas,
estabelecendo rumos, orientando o trabalho pedagógico, direcionando o que, como e
para que ensinar. A introdução da Prova Brasil em 2005 com seu desenho censitário
marca o início da segunda geração, caracterizada por consequências simbólicas
expressas por meio da divulgação de resultados de modo a permitir comparações entre
redes e também entre escolas. Paralelamente e posteriormente a este momento, vários
sistemas estaduais e municipais de ensino básico vêm desenvolvendo propostas próprias
de avaliação, geralmente de caráter censitário, e alguns deles começam a marcar a
introdução da terceira geração, caracterizada por fortes consequências à medida que aos
resultados das avaliações atrelam-se punições e recompensas, a exemplo de programas
que conferem bônus às escolas e seus profissionais.

As políticas de responsabilização da Secretaria Municipal de Educação de São


Paulo - algumas aproximações
Na esteira da segunda geração das avaliações, vinculadas a processos de
responsabilização branda, podemos caracterizar o sistema municipal de educação da
cidade de São Paulo, que passou por um processo intenso de adoção de diversas
avaliações externas. Além da aplicação da Prova Brasil pelo governo federal nas escolas
dessa rede, a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (SME/SP) criou em 2007
uma avaliação própria, a Prova São Paulo, e em 2009 criou mais uma avaliação,
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ocorrida bimestralmente até 2012, a Prova da Cidade, que segundo a SME é “um
instrumento que permite diagnósticos de aprendizagem em períodos menores e que
facilitam ajustes de rumo ainda no decorrer do ano letivo” (SME/SP, 2012, pág. 19).
Na mesma direção, no ano de 2011 a Prefeitura Municipal de São Paulo criou o
INDIQUE (índice da qualidade da educação), que visava compor uma unidade de
medida da qualidade da educação municipal, baseada nos resultados da Prova São Paulo
combinada com outros indicadores (como o “esforço” que é calculado a partir do nível
socioeconômico dos alunos1). Em cima desses critérios, as notas das escolas seriam
usadas para o pagamento de um bônus por resultados aos profissionais da educação.
Esta proposta ainda não foi implementada, ou seja, não podemos identificar nesta rede a
existência de uma bonificação para o professor relacionada ao resultado da avaliação
externa, o que nos faz situar a política de avaliação dessa cidade na fase da segunda
geração acima elencada. No entanto, o fato desta política ainda constar no site da
Secretaria Municipal de Educação, e o fato de no documento Parâmetros e Perspectivas:
Rede Municipal de Ensino de São Paulo (2012) fazer parte de um dos pressupostos
(“premiação por desempenho”) da reorganização da carreira do magistério, leva-nos,
por um lado, a pontuar a força que a bonificação teve naquele momento (2011-2012) a
ponto de a intencionalidade política afetar o “contexto da produção de texto” (BALL,
1998); e por outro lado, leva-nos a pensar em certa fragilidade desta política de
bonificação à medida que o contexto da produção de texto não afetou a prática, ou seja,
não foi implementado, o que pode ser explicado pela mudança de orientação do novo
governo que inicia seu mandato em 2013.
Vale pontuar uma incipiente impressão acerca da orientação deste novo governo,
que nos ajudará a analisar as contradições vivenciadas pela escola objeto de nosso
estudo. Se a partir da não implementação de uma política de bonificação atrelada às
avaliações, o governo de Fernando Haddad parece refrear iniciativas que penderiam
para uma geração de políticas de forte responsabilização, por outro lado, com a adoção
de programas como o “Mais Educação São Paulo” - que resgata a cultura da reprovação,
da realização constante de provas nas escolas e boletins - esse governo pode vir a
reforçar políticas de responsabilização ainda que brandas, à medida que pode fortalecer
determinada cultura de avaliação vinculada ao controle e à publicização.

1Para melhor esclarecimento do Indique consultar o site: http://ww2.prefeitura.sp.gov.br/indique/


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De qualquer forma, se analisaremos as contradições de um processo de


implementação de Projeto Político Pedagógico de uma escola que se iniciou em 2004 e
foi analisado até o ano de 2012, podemos dizer que neste período de tempo as políticas
educacionais da Secretaria Municipal de Educação, tomando como recorte as de
avaliação, podem ser classificadas como políticas de responsabilização de “segunda
geração” (BONAMINO, SOUZA, 2012) devido à cultura das avaliações externas
atreladas a processos de divulgação e classificação dos desempenhos por escola.
Cabe retomar a pergunta que anunciamos no resumo deste artigo: quais
dificuldades e contradições são vivenciadas por uma escola que busca implementar um
Projeto alternativo no contexto de políticas de responsabilização? Em que sentido este
Projeto “alternativo” aproxima-se e distancia-se do modo de operação destas políticas?
Quais potências pode apresentar?

Os pilares do Projeto Político Pedagógico da Escola e suas contradições dentro do


atual contexto de reforma educacional
O Projeto começa a tomar forma em 2003, quando o então estabelecido
Conselho de Escola, com ajuda de uma assessoria externa, inicia uma reflexão
sistemática acerca dos problemas da escola, o que os leva à decisão de empreender uma
mudança estrutural de Projeto Político Pedagógico. Em 2004, inicia-se a aplicação de
um projeto-piloto cujas diretrizes baseavam-se na Escola da Ponte, e cujo marco
emblemático foi a quebra das paredes entre as salas de aula e o surgimento do espaço do
salão. Assim, ao invés da tradicional divisão de turmas, séries e aulas que norteia a
exposição dos conteúdos disciplinares, a escola possui dois grandes salões nos quais
alunos de diferentes anos interagem entre si, sentam-se em pequenos grupos para
realizar, cada qual em seu próprio ritmo, as perguntas e tarefas dos Roteiros Temáticos
de Pesquisa (elaborados pela escola com intenção de organizar a aprendizagem dos
conteúdos disciplinares), enquanto professores formados em diferentes áreas do
conhecimento circulam juntos pelo salão para orientar os alunos na consecução das
tarefas dos Roteiros. Soma-se a isso a diversidade de situações de aprendizagem
pretendida pelo Projeto, sendo que os alunos dividem seu tempo entre os momentos de
realização de Roteiros no salão, momentos de realização de oficinas como as de arte e
cultura brasileira, a momentos de viagens de estudo do meio. Para o recorte deste artigo,
nos interessará discutir três pilares do Projeto da escola: o trabalho coletivo, a formação
ampliada, e o uso de processos de avaliação alternativos.
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A busca da escola pelo primeiro pilar condensa-se a partir de espaços


institucionalizados de reunião, entre eles o horário de trabalho coletivo remunerado pela
Secretaria como parte da Jornada Básica Integral de Formação; a partir de espaços
criados pela própria escola; e também por meio de uma cultura de participação que
impregna os diferentes momentos do trabalho pedagógico cotidiano, como os momentos
em que os professores encontram-se juntos no espaço do salão o que objetiva facilitar
que assumam uma “docência solidária” (OLIVEIRA, 2013).
A apropriação destes espaços por parte dos atores da escola significa que desde o
início de mudança de Projeto eles também se apropriaram da realidade de sua escola
conferindo dinamismo e significado ao Projeto Político Pedagógico. Pode-se dizer que
esta escola está imersa em um exercício de qualificação e aprendizagem, caracterizado
pela constante reflexão e proposição de novos rumos conforme necessidades são
percebidas e discutidas entre a equipe ao longo dos anos, em que se observa um
contínuo aprimoramento do conhecimento e da capacidade dos professores e da
organização escolar para lidar com os problemas e novas demandas surgidas no decorrer
da implementação do Projeto.
A literatura aponta a necessidade de um trabalho coletivo e de participação dos
atores para que se sintam responsáveis e compromissados com a conquista de melhorias
para sua escola e para as aprendizagens dos estudantes, e sintam-se imersos em um
ambiente de responsabilidades mútuas e “amparo social sólido” que lhes permita
realizar processos ambiciosos de mudança e desenvolver-se pessoalmente, enquanto
profissional, e organizacionalmente na conquista de condições internas favoráveis à
busca de inovações no ensino, o que acontece favoravelmente em escolas que
funcionam como “comunidades profissionais de aprendizagem” (FULLAN, 2009).
Sordi e Dalben (2009) e Veiga (2004) completam que o desenvolvimento de processos
de participação nas escolas deve conduzir à execução de tarefas, mas principalmente à
tomada de decisões, envolvendo os atores locais na constante reflexão sobre o tipo de
educação que se quer, de formação humana, de papel social que se pretende para a
escola, de currículo, e de sociedade.
No entanto, a escola, apesar de possuir avanços na constituição de um coletivo
que foi capaz de implementar um Projeto diferenciado e mantê-lo ao longo dos anos,
apresenta algumas dificuldades na consolidação de um tipo de participação que permita
aos atores apropriarem-se profundamente do sentido da mudança. Segundo Fullan
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(2009), para que uma mudança seja significativa, é necessário tocar na “dimensão
profunda” dos princípios e concepções, o que Gandin (2011) chama de tocar nos
“porquês” das práticas pedagógicas. Nesse sentido, analisamos que esta escola, se nos
primeiros anos de implementação do Projeto investiu em discussões sistemáticas sobre
essa dimensão profunda, ao longo da implementação preocupou-se em discutir questões
mais operacionais de ensino, o “como fazer” para por em prática e para aprimorar os
pilares do Projeto. Nesse sentido, professores chegados posteriormente aos primeiros
anos foram inseridos na dinâmica escolar na condição de implementadores de mudanças
que já haviam sido pactuadas, o que pode ter gerado a elevada rotatividade destes
professores.
Essa dificuldade enfrentada pela escola sinaliza para a existência de uma
concepção de trabalho docente voltada à operacionalização de procedimentos e
aplicação de instrumentos, o que nos remete ao significado pró-forma e funcional que a
participação assume como tecnologia de controle e gestão dentro da atual lógica de
responsabilização que embasa as políticas de avaliação em larga escala. Ao invés de
empoderar as escolas e os atores locais para refletir e decidir coletivamente sobre a
“dimensão profunda” das concepções de qualidade, educação e sociedade que
pretendem construir, essas políticas reforçam processos de controle sobre o trabalho
docente, além de corroer a educação pública e perpetuar a lógica excludente e
competitiva baseada nos valores do mercado (RAVITCH, 2011; SOUZA, 2009).
Vale pontuar que a dificuldade em questionar o significado funcional da
participação pode ocorrer devido a múltiplos fatores - como a cultura de participação
predominante na atual organização social e política, que faz com que mesmo que sejam
criados espaços remunerados de participação, muitos atores ainda não sintam
necessidade ou vontade de participar; ou como a cultura de participação desenvolvida
na escola, de formas mais ou menos intencionais, por meio da maneira pela qual os
espaços coletivos são construídos e conduzidos permitindo ou dificultando a abertura
para se tocar na dimensão dos “porquês” das práticas pedagógicas.
Os outros dois pilares que pretendemos analisar estão intimamente interligados.
A escola valoriza uma aprendizagem ampla, para além dos Roteiros e dos conteúdos
disciplinares, buscando trabalhar, além da dimensão acadêmica, valores como
solidariedade e responsabilidade, e as dimensões cultural, física, social, afetiva,
relacional, buscando conferir intencionalidade pedagógica a vários espaços e momentos,
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seja dentro da escola (em que são criados espaços como uma oca construída por índios
guarani) seja no seu entorno, ao promover visitas a museus, exposições, parques,
manifestações políticas etc. Condizentes com isso, nos processos avaliativos dos
estudantes, os professores costumam considerar um conjunto amplo de indicadores de
aprendizado para além do cumprimento dos Roteiros, bem como os diferentes aspectos
a respeito do desenvolvimento global da criança. Os instrumentos de avaliação
aplicados distanciam-se das provas que são comumente aplicadas nas escolas
“tradicionais”, nas quais a divisão em turmas e a organização da transmissão dos
conteúdos disciplinares prioritariamente por meio das aulas expositivas favorecem a
aplicação de provas padronizadas. Respaldada na figura do professor-tutor - responsável
por um olhar mais atento em relação ao percurso de cada aluno pertencente a seu grupo
de tutoria -, a escola utiliza instrumentos não padronizados de avaliação, que são
aplicados individualmente a cada aluno conforme os tutores percebam seus ritmos
próprios de cumprimento dos roteiros e de desenvolvimento mais global.
Assim, a escola procura desenvolver uma cultura de avaliação formativa atenta
ao desenvolvimento de aprendizagens para além do conteúdo formal disciplinar. Nesse
sentido, mostra-se crítica quanto ao tipo de qualidade medido pelas avaliações externas
de larga escala, que consideram apenas aspectos cognitivos ligados a disciplinas
específicas. Além de manter-se distante de práticas de estreitamento curricular, a escola
distancia-se de práticas como o treinamento para testes, ambas comumente adotadas por
muitas escolas inseridas em contextos de responsabilização, conforme ampla literatura
tem documentado (RAVITCH, 2011; BONAMINO, SOUZA, 2012; COSSO, 2013).
Da mesma forma, a escola procura consumir os dados das avaliações externas à
luz de uma avaliação interna a respeito da qualidade que pretende construir localmente.
Muitos atores da escola consideram os resultados da Prova São Paulo um importante
indicador da melhoria da qualidade de ensino oferecida pelo Projeto da escola; no
entanto, vão além deste indicador ao considerar tantos outros que expressam a conquista
da formação ampliada pretendida. Observam-se diversos depoimentos dos pais sobre a
relação tranqüila que o filho adquiriu com o conhecimento; sobre a autonomia que o
filho demonstra conquistar à medida que passa a relacionar assuntos das diversas áreas,
pesquisar na internet, posicionar-se criticamente em relação ao conhecimento; sobre
como a escola estimula a cooperação entre os alunos, a exemplo deste trecho de
entrevista realizada com uma mãe:
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De que serve uma escola ter notas altíssimas de não sei o que lá... Gente! Que
cidadãos são esses? Como que é isso? E essas pessoas, ela ta feliz, ta bem, a
escola é gostosa, o aluno ta feliz nela, os professores estão felizes, é bom, é
um ambiente bom? (OLIVEIRA, 2013)
No entanto, algumas dificuldades se colocam para que a escola consiga
concretizar a contento estes pilares de seu Projeto. Documentamos relatos de casos de
professores desta escola que intervém nos grupos dispersos de alunos com um discurso
semelhante a “vocês só serão aprovados se terminarem todos os roteiros”, o que mostra
a dificuldade em se desprender da crença, bastante arraigada em nossa sociedade, nos
motivadores externos de aprendizagem. Para além da dimensão da crença subjetiva,
Freitas (2002; 2010) pontua que a materialidade da “forma escola” atual, uma vez
amarrada às funções sociais historicamente estabelecidas nos marcos da sociedade
capitalista que colocam a escola distanciada da própria vida e de suas contradições
sociais, necessita de motivadores artificiais para levar o aluno a melhorar seu
desempenho escolar (o que não necessariamente significa melhorar de fato suas
aprendizagens), inserindo-se aí o papel da avaliação como um mecanismo de controle.
A crença nos motivadores externos coloca os Roteiros numa posição crucial,
como condição da aprovação, contribuindo para levar os alunos a desvalorizarem outras
aprendizagens e meios de aquisição de conhecimento, como exemplifica uma professora
da escola em entrevista: “daí ninguém respeita professor de oficina, aí vai lá fora ter
aula de dança e fica pendurado na árvore, ninguém faz nada que o cara manda, porque
‘o cara não é nada aqui’” (OLIVEIRA, 2013).
Além disso, muitos professores opinam que a forma como os Roteiros estão
estruturados contribui para que o conhecime nto seja visto de forma tarefeira, e para que
o objetivo de pesquisa previsto pelo Projeto não seja efetivamente realizado. Isso
porque os Roteiros apresentam objetivos a serem cumpridos na forma de tarefas,
indicando a página do livro e a pergunta a ser respondida. Nesse sentido, seriam
Roteiros de Estudo ao invés de Roteiros de Pesquisa, priorizando principalmente o
objetivo de organizar a transmissão dos conteúdos disciplinares previstos.
Pode-se levantar a hipótese de que os Roteiros têm sido construídos pelos atores
da escola nesta perspectiva devido à pressão que sentem de boa parte dos pais que
desconfiam da maneira alternativa da escola proceder quanto à avaliação da
aprendizagem e à transmissão do conteúdo. Em geral, os pais que possuem essa visão
defendem que a escola exija dos alunos o cumprimento de todos os Roteiros como
critério de aprovação, com base no argumento de que eles representam o conteúdo
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previsto para o Ensino Fundamental. Assim, eles focam nos Roteiros devido à
preocupação de que seus filhos aprendam a maior quantidade de conhecimentos
possível, considerando muitas vezes apenas os conteúdos disciplinares como
conhecimento, e desconsiderando ou conferindo menor importância a outras
aprendizagens relacionadas a posturas, valores, expressão corporal etc.
Além desta pressão por parte da comunidade, vale trazer mais um elemento,
desta vez proveniente das políticas públicas, que ajudam a tencionar o trabalho
pedagógico que essa escola busca desenvolver. Trata-se do programa Mais Educação
São Paulo, que sinaliza como uma das mudanças pretendidas o “resgate de tradições
escolares abandonadas com o modelo de aprovação automática, como a exigência de
realizações de provas bimestrais, boletins com notas de zero a dez, relatórios de
acompanhamento e lição de casa regularmente” (disponível em
www.prefeitura.sp.gov.br, acesso em 26/04/2014). Em setembro de 2013, a escola
realizou uma “conversa livre”, aberta a toda comunidade, sobre essa proposta do
governo, com objetivo de

nos encontrar para melhor conhecer, conversarmos e co-criarmos sobre a


nova proposta para a rede municipal de educação de São Paulo (...) Esta é
uma excelente oportunidade para refletirmos sobre a realidade e caminhos do
projeto pedagógico da escola dentro desse momento de mudança nas
diretrizes da rede municipal de ensino (Disponível no Grupo de Emails da
Comunidade).
Vale ressaltar, no entanto, que a pesquisa de mestrado, que coletou dados sobre a
escola até o ano de 2012, não captou este momento de discussão nem seus
desdobramentos para o processo de organização do trabalho pedagógico desta escola, o
que não invalida a importância de apontarmos este elemento como parte do conjunto de
fatores que ao longo dos anos constantemente tencionaram a implementação deste
Projeto Político Pedagógico, o que sugere possíveis focos de pesquisa que podem
orientar o olhar de futuros pesquisadores interessados em prosseguir nesta discussão.

Apontamentos Finais
Por meio da breve abordagem de três pilares constitutivos do Projeto Político
Pedagógico de uma escola municipal de São Paulo, analisamos que a organização de
seu trabalho pedagógico caminha, até certo ponto, na contramão às tendências de
controle empreendidas pelas políticas de responsabilização verticalizada, à medida que
a escola apresentou ao longo dos anos sinais de amadurecimento de um coletivo que
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tem sido capaz de manter alguns pilares centrais do tipo de qualidade educacional por
ele pretendido, e à medida que tem conseguido desenvolver uma avaliação formativa e
valorizar aprendizagens para além do que é cobrado pelas avaliações externas. No
entanto, sinalizamos as dificuldades vivenciadas nestes aspectos: a dificuldade em
consolidar a participação ativa dos atores locais; em abrir para a discussão da “dimensão
profunda” que permite a real apropriação da mudança pelos atores; a dificuldade em
manter-se distante do uso da avaliação como motivador externo, como mecanismo de
controle e reprovação. Por fim, o foco de nossa análise foi trazer as contradições deste
processo de mudança, pontuando brevemente alguns elementos que podem colaborar
para responder à questão que ainda carece de aprofundamentos: qual é a margem de
poder que a escola pública possui na atual organização social e política para empreender
processos inovadores de gestão democrática, de formação ampliada, de avaliação
formativa, que consigam oferecer alternativa à lógica da participação pró-forma, do
estreitamento curricular, da avaliação como controle que permeia as políticas de
responsabilização vigentes?

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