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• 1
-·· ROSELI FONTANA
••1:- NAZARÉ CRUZ

série Educador em Construção é voltada para a for­


mação de professores. Os volumes que a compõem têm
autonomia uns em relação aos outros, podendo ser adotados se­
paradamente. Todos eles oferecem aos futuros professores mate­
rial de qualidade, acessível ao público do ensino médio, consi­
derando sempre a complexa realidade social de nosso país.
Escritos por professores atuantes no Magistério, os volumes
apresentam contribuições recentes nos diversos campos da edu­
cação, tornando-se, assim, um valioso i'r.istrumento de trabalho e
reflexão.

m Psicologia e trabalho pedagógico, as autoras -


militantes na prática e na teoria-, a partir da exposição de
um quadro das principais correntes da psicologia da educação,

'H(OlOGIA �
apresentam temas centrais do desenvolvimento e da aprendiza­
gem da criança, enfocando especialmente a brincadeira, o dese­
nho e a escrita. Privilegiando as concepções de Piaget e Vygotsky,
e confrontando-as, o livro aborda tanto fundamentos teóricos

lRAIAllO
como situações concretas e cotidianas do trabalho com crianças
na sua fase inicial da vida escolar.

'

ISBN 978-85-7056-902-8
'�DAGOGl(O
@ATUA.L
EDITORA
1 .. ,,. '69028

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@ATUA.L
EDITORA
© Roseli A. C. Fontana
Maria Nazaré da Cruz

Apresentação
Copyright desta edição:
SARAIVA S.A. Livreiros Editores, São Paulo, 2007.
Av. Marquês de São Vicente, 1697 -Barra Funda
01139-904 -São Paulo-SP
Fone: (Oxxl 1) 3613-3000
Fax: (Oxx11) 3611-3308 -Fax vendas: (Oxxl 1) 3611-3268
www.editorasaraiva.com.br
Todos os direitos reservados.

Catalogação na fonte do Todos os momentos do dia de todos os dias da vida eram para aprender e en­
Departamento Nacional do Livro sinar e de novo ensinar e aprender, vivendo e brincando, trabalhando e sendo...
F679p
(Carlos Rodrigues Brandão, Lutar com a palavra.)
Fontana. Roseli
Psicologia e trabalho pedagógico / Roseli Fontana. Maria Nazaré
da Cruz. -São Paulo : Atual, 1997.
240p. cm. -(Formação do educador).

ISBN 978-85-7056-902-8
Suplementado por manual do professor.
Inclui bibliografia.

1. Psicologia educacional. 2. Psicologia da aprendizagem. I. Cruz,


Maria Nazaré da. II. Título. III. Série.

Psicologia e Trabalho Pedagógico


CDD-370.15
E. ..
ntendemos assim a educação: algo sempre presente em nossas vidas,
mesmo quando não a percebemos no amontoado de fazeres e saberes
corriqueiros do cotidiano. ·

Ela está na voz da mãe que acalanta e na mão do avô que ajuda a criança a
Desenvolvimento de produto segurar a colher e levá-la à boca. Está na birra e na palmada, no traço marcado na
Gerente: Wilson Roberto Gambeta
Editora: Vitória Rodrigues e Silva
areia ou no papel, no cabo de vassoura que se transforma em cavalinho.
Assessora editorial: Oscarina Camillo Não é coisa só da escola... Ela se faz também na escola.
Editor de texto: Noé G. Ribeiro Está na amarelinha riscada no pátio, na letra escrita na lousa, na dobradura, no
Preparação de texto: Célia Tavares
Editora de arte: Thafs de BruYn Ferraz
problema de matemática, no livro de histórias, nas conversas do recreio.
Pesquisa iconográfica: Cristina Akisino E assim é porque a prática do fazer-se homem dá-se pelo gesto, pelo jogo, pela
Projeto gráfico: Irineu Sanches palavra, pela mediação de outros homens, entre risos e choros, silêncios, cumplicida­
Projeto de capa: Glair Alonso Arruda
Imagem de capa: Criança brincando, 1876, Thomas Eakins
des, desigualdades. A educação é expressão do humano.
Como vida que vem sendo tecida e transformada de geração em geração, a edu­
Produção editorial
cação é o lugar da psicologia - prática humana de teorização sobre o que somos.
Gerente:
Coordenador:
Cláudio Espósito Godoy
Milton M. Ishino
Somos nós a matéria sobre a qual a educação e a psicologia se debruçam. A primeira
Assistente: Márcia Regina Novaes no esforço do fazer, do "lavrar e plantar no campo do nosso próprio corpo", como diz
Revisão: Maria Luiza Xavier Souto (coord.) Carlos Rodrigues Brandão. A segunda, na busca do entender e do explicar esse fazer­
Vera Lúcia P. Della Rosa
Editor de arte: Celson Scotton
se humano.
Chefe de arte: lrineu Sanches Orientadas por essas concepções, encaramos o desafio de escrever este livro.
Diagramação: Renata Susana Rechberger Um livro carregado do desejo de manter vivos e próximos os sons e o movimento das
Sílvia Regina E. Almeida (coord.)/Grace Alves
Editoração eletrônica:
Digitação: Rosangela de Oliveira Vargas/Wagner 1. Pin
atividades e das relações entre as pessoas, para que, assim sendo, pudesse nos ajudar,
Produção gráfica
como professores em atuação e em formação, a estudar a criança, descobrindo a
Gerente: Antonio Cabello Q. Filho
beleza dos seus modos de dizer e de compreender o mundo.
Coordenador: José Rogerio L. de Simone Um livro em que as teorias não ficassem desgarradas dos fazeres e saberes coti­
Filmes (D.T.P.): Binhos dianos e em que os psicólogos e seu trabalho não se convertessem num amontoado
maçante de nomes e idéias que a gente não sabe bem por que teve de aprender.
Visite nosso site: www.atualeditora.com.br
Para isso, procuramos partir sempre das práticas educativas, tal qual se desen­
Central de atendimento ao professor: (Oxxl l) 3613-3030
volvem na escola, e de sua problematização: Como se processam? Que concepções ·

acerca do homem e de seu desenvolvimento as sustentam?


IMPRESSÃO E ACABAMENTO
Yongraf Gráfica e Edi1ora Lrda.
Delineadas as questões, voltamo-nos para as explicações e análises desenvolvi­
das pelos estudos em psicologia, buscando aí elementos para discutir e refletir so­
bre elas.
Procuramos também entretecer as análises e discussões com episódios escolares
Sumário
e não escolares, envolvendo as relações entre adultos e crianças e entre crianças,
trazendo, através deles, seus dizeres e sua produção gráfica.
Assim, cada uma das unidades deste livro começa na escola, dialoga em seguida
com os psicólogos, olha para as práticas educativas não escolares constitutivas do Unidade 1 Desenvolvimento e aprendizagem: as abordagens da psicologia
desenvolvimento da criança e volta à escola numa tentativa de releitura do trabalho -

pedagógico em seus limites e possibilidades. Introdução .... ... .... ..... ....... ..... .. ................ .......... ..... .... .... ......................, ................... 2
Na primeira unidade, a relação entre as práticas pedagógicas e as teorias da Capítulo 1 - A psicologia na escola .................................... ...... ............ .............. 3
psicologia é tematizada a partir das quatro vertentes teórico-metodológicas que mar­ Escola é lugar de aprender. E de ensinar ...... .................. ......................... ..... ............ 3
cam as discussões sobre a especificidade do humano no nosso século: o inatismo­ A psicologia e a educação escolar ............................... ...................... .. ..................... 4
maturacionismo, o comportamentalismo, o construtivismo piagetiano e a abordagem O que é ensinar?Como a criança aprende? .. ...................... ....... ..... ............. ... .......... 5
histórico-cultural. O estudo científico da criança: um pouco de história ......................... ...................... 6
Nas três unidades seguintes, privilegiamos como foco de discussão e de análise Sugestão de atividades ..... .. .... .................. .. ... ................................ .... ......... ... ........... . 9
o desenvolvimento da atividade da criança, tal qual acontece na escola e fora dela. .
Sugestão de leituras .................... . ...... .......... ... .. ... ......... .. .. ... .............. .......... ... .. ....... 10

Nessas unidades, nossos interlocutores no campo da psicologia são Piaget e Capítulo 2 -A abordagem inatista-maturacionista .......... ..... ..... ........ ............... 11
Vygotsky, em cujas explicações nos baseamos para examinar as relações da criança A questão das diferenças individuais e a hereditariedade da
com a palavra, com o jogo, com o desenho e com a escrita. inteligência: "filho de peixe, peixinho é ?" . ..... ............. .................. ...... ..... ... .... ......... 12
Ao final de cada capítulo, você encontrará sugestões de atividades e de leituras Padrões de desenvolvimento: o que é próprio de cada idade?....... ... .. ............ ........ .. 14
variadas, que poderão auxiliá-lo a retomar o estudo do texto e a realizar pequenos Pesquisando a criança: a construção dos testes de inteligência .......... ..... ....... ..... ..... 16
trabalhos de iniciação à pesquisa, constituídos por observações, levantamento de Pesquis�ndo a criança: a elabora�ã? das escalas de desenvolvimento ............... ..... . 17
dados e análise das práticas educativas e da produção cultural relativa ao desenvolvi­ A questao dos comportamentos tip1cos ....................................................... ............. 18
mento infantil. As relações entre desenvolvimento e aprendizagem e as influências do
inatismo-maturacionismo na escola ............ .................... ............ ...... .... ... ............. .... 20
Se conseguimos estar próximos de vencer o desafio a que nos propusemos, Sugestão de atividades ........ ....... ................. .................. ........... ................ ... ........... .. . 22
você, leitor, é quem nos dirá... Sugestão de leituras .......... ........ .. ................... .... ........ . . ..... . ............ ............. .............. 23

Roseli e Nazaré. Capítulo 3 -A abordagem comportamentalista .......... ................. .. ........... ........ 24


Mas o que é comportamento?........ ... ......................... ......... ................ ....... ...... ......... 25
Comportamento e aprendizagem ....... ..... ,................................................................. 26
Pesquisando a criança: condicionamento e modelagem do comportamento ............ 28
A aprendizagem de comportamentos emocionais: uma pesquisa de Watson ...... 28
Model.agem do comportamento: as pesquisas de Skinner .......... ........................ . 29
Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a influência do
comportamentalismo na escola ................................ . . . ........................ ... .................. . 31
Sugestão de atividades .................... .............. ...... ............................. ......................... 32
Sugestão de leituras ......................... ........... .............................................................. 42

Capítulo 4-A abordagem piagetiana ... . ......................... .... ............................. ... 43


Conhecimento e adaptação: os processos de assimilação e acomodação ............. _.... 45
A noção de esquema ......................... .......... .................. ............................................ 46
A noção de equilibração . ... ......................... .. ....................... . .. ........................... ..... .. 47
A con�e�ção sobre estági?s de desenv_o_lvimento ...................................... .......... ..... 48
Os estag1?s do des�nvolv1mento cogmt1vo . . .............................................. . .............. 48
.

g �:���� ��������������.::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: 1�
O período das operações concretas ...................... ............................................... 51
O período das operações formais .................. ...... ........ ...... ...................... ............ 52
Pesquisando a criança: o método clínico ....................................... ... ...... .. ................ 53 Sugestão de atividades .............................................................................................. 104
Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a influência da abordagem Sugestão de leituras ............................. ................. .............. ........ .......... .................... 106
piagetiana na escola .................................................................................................. 54
Sugestão de atividades .. ............................................ ........................... ............ ......... 55
Capítulo 9 - O papel da escola .
. ..... ..... ... .. ........ ................... .... ..... .. ... ..... ......... .. 107
. .
Sugestão de leituras .................................................................................................. 56
Filme recomendado ............................................................................ ................. 56 Escola é lugar de aprender a aprender, lugar de aprender pensando............... .......... 109
Escola é lugar de compartilhar conhecimentos........... ......... ............... ...................... 110
Sugestão de atividades..................... ...... ........................................ .................. ..... .... 116
Capítulo 5 -A abordagem histórico-cultural .................... ................................. 57
A transformação do biológico em histórico-cultural ................................................ 58
O uso de instrumentos............................................................... .......................... 58
Unidade 3 -A brincadeira e o desenho da criança
O uso de signos ................................................................................................... 59
O papel do outro e a internalização . ......... ........................................................... 60
Introdução ............................................................................................................... 118
Pesquisando a criança: o papel do signo no desenvolvimento ................................. 61
Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a influência da Capítulo 10 - O papel da brincadeira no desenvolvimento da criança............ 119
abordagem histórico-cultural na escola .................................................................... 63 Por que as crianças brincam? ........ ... ............ ........................ .................................... . 120
O papel da escolarização ............................................................................... ........... 65 A assimilação do real ao eu: a concepção de Piaget ........ ... ............... ................ . 120
Sugestão de atividades ................... ..... .................................................... ....... ... .... .. .. 67 As relações sociais com o mundo adulto: a concepção de Vygotsky ········'········· 121
Sugestão de leituras .................................................................................................. 68 Brincando de estação de trem .................................................... ............................... 123
Filmes recomendados ............................................................ .. ..... ..... .................. 68 A�rende�do ,ª olhar
.
��
rincadeira ................................................. ..... ...................... . 124
Brmcade1ra e coisa sena ....... ...... ... .. .... ......... .................... .. ......... .. ...................... ..... 125
Capítulo 6 - As ab�r�agens so�re desenvolvimento e aprendizagem Objetos e significados na brincadeira ............................... ................. ...................... . 126
. O papel da brincadeira no desenvolvimento da criança............................................ 127
e a pratica pedagog1ca .................................................................... 69
A brincadeira e a função simbólica .................................. ............... .......... .......... 127
Os diferentes modos de olhar ................................................................... ................ 70
Cada uma das abordagens explica um pouco?....... ................................................... 71 A criação de zonas de desenvolvimento proximal .............................................. 128
A atividade da criança como foco de análise ............................................................ 72 Sugestão de atividades .... ......................................................................................... . 130
Sugestão de atividades ........................... ,.................................................................. 73 Sugestão de leituras .... ....................... ...... ........................................ ........................ . 131
Sugestão de leitura .................................................................................................... 74
Filme recomendado ................................................................ ............................. 74 Capítulo 11 -,-A brincadeira na vida e na escola ............................................... . 132
A perspectiva de Piaget sobre o desenvolvimento da brincadeira ............................ 132
A perspectiva dé Vygotsky sobre o desenvolvimento da brincadeira ....................... 134
Unidade 2 -A elaboração conceituai Brincando, aprendendo e sendo ................................................................................ 136
Brincando na escola ............................................................................................ 137
.
Introdução ...... ........................................................................................................ 76
O lugar da brincadeira na escola ................... ...................................................... 139
-A relação entre pensamento e linguagem......................................
���� �:�� �::i5!�� �.�.����.:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::·::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
Capítulo 7 77 n 141
O que a psicologia nos diz .................. ................ .. ................... .. ............................... 80 Sug i 143
!
A l nguagem como com�orta�ent? ·:·····: ···························································· 80 Sugestão de leitura ............................................ ........................................................ 143
A lmguagem como funçao da mtehgencia ......................................... ...... .. .... ..... 81
A linguagem como atividade simbólica constitutiva .......................................... 83 Capítulo 12 - O desenho infantil ......................................................................... 144
Sugestão de atividades .............................................................................................. 87 Quando o traço no papel recebe um nome................................................................ 145
Sugestão de leituras .... .............................................................................................. 88 A criança desenha o que sabe e não o que vê . .................... ......... .............. .. ......... .... 147
O realismo do desenho infantil: a perspectiva de Luquet ......................................... 148
Capítulo 8 - A criança e a palavra .. ...... ....... .............................. ............. ............ 89 A criança é realista na intenção: a perspectiva de Piaget ..... .. ................... ............. ... 150
Piaget e o papel da linguagem no desenvolvimento do pensamento O realismo visual é aprendido: a perspectiva de Vygotsky ................ ....................... 151
lógico: do símbolo individual aos conceitos ............................................................. 89 Sugestão de atividades ................. ..... ...�..... ........ ....................................................... 153
O desenv?lvimento da funçã� simbólica ............................................................ 90 Sugestão de leituras ..... .... ........................ ...... .. ..... .................................................... 154
.
Os pnme1ros esquemas verbais ............. ..... .... .................... ...... ........................... 90
O desenvolvimento da elaboração conceituai das palavras ........................... .. ... 94 Capítulo 13 - Desenhando na escola . .................................................................. 155
Vygotsky e a elaboração conceituai - o desenvolvimento do significado da
Analisando o processo de elaboração do desenho ....................... ... ...................... .... 157
palavra na criança ........................................................................ ............................. 95
E a criatividade, onde fica?....... .................... ............................................................ 158
As primeiras palavras ................... .. ..................................................................... 96
Desenhando e aprendendo .. .......... ........................................ .................................... 159
A elaboração das funções analítica e generalizadora da palavra......................... 97
A escola e o desenho....................... .................................................................... 161
O pensamento por complexos e os conceitos potenciais..................................... 99
"O lápis é o melhor dos olhos... " ..................................................................: ..... 162
O papel do outro no desenvolvimento da elaboração conceitua! ........................ 101
Sugestão de atividades .... .. .. ........... . ..... .. ............ .... .... ........ .. ... ..... ....... .. ..... .... .... ...... . 165
Sugestão de leituras ...... .. ......... ...... .. ...... ....... ... ......... ....... .. ........ .. .... . .... .... . .......... .... . 166

Unidade 4 - O desenvolvimento da escrita na criança


Introdução ..................................... .... ...... ...... .......................................... ..... ..... .... .. 168
Capítulo 14-A escrita e a alfabetização . .. .. ... .. .................. .. ............. ..... ..... ....... 169
Escrita e poder .. .. .. ............ ............ ..... ....... ..... .... .. ... .. ... .......... .... ........... ... ..... ..... .. ... .. 170
Alfabetização e desenvolvimento da escrita .. ......... ....... ... ... .................... ..... ..... ....... 171
Sugestão de atividades .. .... ... ...... ... ....... ... ............... ..... ............................. ..... ............ 174
Sugestão de leituras ..... ...... .. ...... ....... ..... ...... .. .. .. ..................... ........ ....... ....... ..... ....... 175
Filme recomendado... ..... ..................................................................................... 175

Capítulo 15 -As relações da criança com a escrita ........................................... 176


A criança constrói a escrita................................... ......... ............... ................ .. .......... 177
A criança integra-se às práticas sociais de escrita... ................ .. .................... ......... ... 180
Sugestão de atividades ...... . ......... . .. ..................... .. ......... ...... ....... .................. .. .. ..... ... 185
Sugestão de leituras .................................................................................................. 187
Filme recomendado .... ......................................................................................... 187

Capítulo 16 - O estudo experimental da construção da escrita pela criança .. 188


A metodologia da pesquisa ..... .................................................................................. 189
As fases do processo de construção da escrita pela criança.................................. .... 190
A construção das primeiras formas de diferenciação: o período pré-silábico . .... 190
A fonetização da escrita: do período silábico ao período alfabético .... .. ..... .... .... 193
Sugestão de atividades . ..... ........ ............. ............. ...... ..... ..... .... ........... ... . ..... .......... .... 195
Sugestão de leituras ..... ... .. ....... ........ ...... ... .. ..... ......................... .... .. .... ... ........... .... .. .. 195

Capítulo 17 - Da atividade simbólica à simbolização na escrita ...................... 196


O estudo experimental do simbolismo na escrita ........ ..... ...... .. ..... ..... ........ .... ...... .... 197
O procedimento metodológico............................................................... ............. 197
A elaboração pré-instrumental da escrita: dos rabiscos mecânicos
às marcas topográficas ...... .................................................................................. 198
A elaboração da função instrumental da escrita: o processo de
diferenciação das marcas utilizadas ...... ..... ............. ........ ... .. ....... .. .. . ..... .............. 199
O processo de alfabetização - a relação entre a escrita primitiva
da criança e a escrita convencional .. ..... ........................ .. ..................... ...... ...... ... 205
Sugestão de atividades ......... ........... ........ .... . ..... .. ............. ..... ............. ....... ....... ..... .. .. 206
Sugestão de leituras .. .. ... .. ......... ...... .. ... .. ..... ... ... ... ... .... ... .. ......... ........ .. ... ...... ...... .. .. ... 207

Capítulo 18 - Escrevendo e lendo na escola . .... ..... .. ....... .................................... 208


Por que o fracasso da escola em ensinar a escrita e a leitura? . ............... ....... .... .. ... .. 208
Como o convencional tem sido ensinado? .... ... .. . .... .... .. .... ..... .. ... ...... ..... .. .... ....... ..... . 210
E as crianças? ............................................................................................................ 211
Pra quem, o que e por que escrevo? . ..... ........ .... ....... ...... ....... ... .. ........... ....... .... .. ... ... 212
O que é o erro? Os erros são todos iguais? . ......... .... .... ..... ....... .... ..... .... .. ... ..... ...... . ... 215
Mas como corrigir?................................................................................................... 219
Sugestão de atividades .... ...... .... ...... . . ..... .. ............... .... ... .... ...... .. ........... .... ..... .... ...... . 221
Sugestão de leituras .. .... ................... .................................................................. ..... .. 225

Bibliografia ....................................... ...... ................................................................. 226


Introdução Capítulo 1

A psicologia na escola

T anta coisa acontece na escola. Professores e crianças


aprendem e ensinam, participando de uma rede de re­
lações: históricas, sociais, econômicas, pedagógicas, Escola é lugar de aprender. E de ensinar
afetivas, intelectuais ... São múltiplos os olhares possíveis na tentativa
de apreender a complexidade dessa instituição. É também lugar de tomar merenda, de jogar futebol, de fazer fila,
A psicologia é apenas um deles. Tematizando os processos de de­ de ficar triste ou se alegrar. As crianças escrevem, somam ou subtraem,
senvolvimento e de aprendizagem, analisando a atividade da criança, copiam, perguntam. Elas brigam, choram, se machucam. Fazem gran­
ela vem produzindo conhecimentos que nos possibilitam ler e interpre­ des amigos. O professor explica a lição, lê histórias, pega na mão da
tar certos aspectos do ensinar e aprender. criança que começa a escrever. Ele também grita, fica bravo, perde a Escola: espaço
Mas a psicologia não é única. É múltipla. No decorrer deste século, calma. Tem que fazer chamada, corrigir prova, preparar aula, preencher de aprender e de
importantes vertentes teóricas foram construídas e deixaram suas mar­ papelada. As crianças às vezes têm fome, às vezes estão doentes, às brincar.
-
cas na educação. São elas que abordaremos, nesta primeira unidade, vezes estão sadias
tematizando, ainda, a relação entre as teorias e a prática pedagógica. e felizes. De onde
No capítulo l , apresentaremos um modo de conceber as relações elas vêm? Do bairro
entre psicologia e educação, trazendo também um pouco da história ao lado, da favela
social da criança e do estudo científico existente sobre ela. ali em cima, do ou­
No capítulo 2, trataremos da abordagem inatista-maturacionista. tro lado da avenida,
No capítulo 3, da abordagem comportamentalista. do sítio a alguns
No capítulo 4, da abordagem piagetiana. quilômetros. Falta
No capítulo 5, da abordagem histórico-cultural. lápis e, por vezes,
Nesses quatro capítulos, enfocaremos os conceitos fundamentais até o sapato. Trinta
relacionados a cada uma dessas abordagens, apresentando seus princi­ (ou quarenta?) em
pais teóricos e uma amostra das pesquisas que as fundamentam, e apon­ cada sala. Lousa
taremos as influências que exerceram e ainda exercem na escola e no nova, lousa gasta.
trabalho pedagógico. Carteiras meio que­
No capítulo 6, discutiremos as relações entre teoria e prática. bradas. O diretor se
preocupa com a re­
forma do prédio,
orienta e fiscaliza
os professores, tem um monte de papel para assinar, é homenageado na
formatura. Na escola tem mais gente: merendeira, servente, secretário,
inspetor.. . O salário está baixo. A vida está dura. Mas escola é lugar de 3 .
,:__ · . - ·
ensinar e de aprender.
, _ _ ·
Quando pensamos na complexidade de tudo o que ocorre na esco­ Considerando que o papel social da escola é essencialmente defini­
la, percebemos a multiplicidade de relações em que está envolvido o do pelo processo de transmissão/assimilação do conhecimento, enten­
"ensinar e aprender". Relações econômicas e materiais, relações sociais demos que as contribuições fundamentais da psicologia à prática peda­
e institucionais, relações entre conteúdos e métodos de ensino, crenças, gógica são aquelas que podem lançar luz sobre alguns aspectos do "en­
concepções, teorias. O cotidiano da escola é sempre permeado por tudo sinar e aprender".
isso e, dessa forma, não é tarefa simples procurar apreendê-lo, analisá­
lo, compreendê-lo.
O que é ensinar? Como a criança aprende?

Essas são questões importantes quando se objetiva construir uma


prática pedagógica que possa garantir a todas as crianças um processo
de aprendizagem significativo.
Todos nós já temos,
em alguma medida, res­
postas a essas questões.
Se nos perguntarmos,
Fonte: Nova Escola, maio/9 1 . por exemplo, como se •

aprende a fazer bolo, :� •

A escola tem uma longa história. Em cada período histórico ela uma infinidade de res- u
assume novas características quanto a funções, funcionamento, idéias e postas pode aparecer: a
concepções que embasam suas práticas. As transformações dessas ca­ gente aprende fazendo,
racterísticas sempre se relacionaram a mudanças da sociedade: mudan­ seguindo uma receita,
ças econômicas, políticas, sociais e ideológicas. vendo outra pessoa fa­
O que acontece na escola é, assim, determinado por uma diversida­ zer, seguindo as orienta­
de de fatores, o que faz com que a educação escolar seja objeto do inte­ ções de alguém. Quan­
resse e de pesquisas de várias ciências: a psicologia, a economia, a so­ do o primeiro bolo não
ciologia, a história, entre outras. dá certo, podemos ainda
Cada uma delas, de acordo com suas especificidades, produz análi­ dizer que "errando é que
ses de aspectos determinados da educação escolar, sem que nenhuma se aprende".
consiga (ou mesmo pretenda) isoladamente dar conta da complexidade E ensinar, o que é? Como se ensina? Novamente uma série de res­
A escola é um
da prática pedagógica. postas acaba emergindo: ensinar é transmitir conhecimentos, técnicas, espaça esse11cial­
valores, é deixar o outro fazer, orientando, explicando, "dando a recei­ me111e de
ta", fazendo junto... relações sociais
Quando se trata de criança, as idéias que temos sobre aprendiza­ de trocas.
A psicologia e a educação escolar gem quase sempre se relacionam ao seu desenvolvimento, já que habi­
tualmente admitimos que aprendizagem e desenvolvimento são proces­
A psicologia é apenas uma entre as ciências que concorrem para a sos, de alguma forma, inter-relacionados.
reflexão sobre a educação escolar. Sendo uma das ciências que estudam Quando dizemos, por exemplo, que, para ensinar à criança uma
o homem, a psicologia tem se ocupado de uma grande variedade de coisa determinada, é preciso esperar que ela amadureça ou atinja uma
temas: a afetividade, o desenvolvimento da criança, a velhice, a apren­ certa idade, estamos subordinando a aprendizagem ao desenvolvimen­
dizagem, as relações sociais e institucionais, a deficiência mental, as to. Ou seja, admitimos que para aprender é necessário determinado ní­
relações de trabalho, a saúde mental, entre outros. vel de desenvolvimento. Por outro lado, sempre ouvimos dizer que o
Muitas das pesquisas e teorias psicológicas que têm servido à prá­ ensino deve promover o desenvolvimento da criança.
tica pedagógica não foram elaboradas com esse objetivo. Assim, as Embora a gente conheça, em decorrência de nossa própria expe­
questões e interesses dos psicólogos são às vezes mais abrangentes e às riência, muita coisa sobre o ensinar, sobre o aprender e suas relações
vezes mais restritos do que aqueles colocados pelos agentes do proces­ com o desenvolvimento, quando se trata de desenvolver uma ação
so educacional. Esses dois âmbitos, o psicológico e o pedagógico, rara­ educativa intencional, de escolher os métodos, um grande número de 5
4 questões acaba aparecendo.
mente coincidem; portanto, não podem ser confundidos.
Será que, se o professor explicar direitinho, a criança aprende? tempo todo. Participava das atividades do adulto, compartilhando com
Como explicar as coisas para uma criança? E se a deixarmos agir, mon­ ele o trabalho nos campos ou nos mercados, os jogos e as festas.
tar quebra-cabeça, brincar com pedrinhas, estará aprendendo? O que ela O avanço das descobertas científicas tomou possível o prolonga­
estará aprendendo? E, se a criança não aprende, será sinal de algum mento da vida e a diminuição da mortalidade infantil. A partir do século
distúrbio? Com quantos anos uma criança pode ser ensinada a ler? XVII, gradativamente passou-se a admitir a idéia de que a criança era
Quais são os pré-requisitos para aprender a adição? diferente do adulto não apenas fisicamente. Começou-se então a con­
É sobre esse tipo de questões que a psicologia pode ajudar a refletir, siderá-la como não preparada para a vida, cabendo aos pais, além da
uma vez que, no decorrer de sua história, ela tem enfocado como obje­ garantia de sua sobrevivência, a responsabilidade por sua formação, en­
tos de estudo o desenvolvimento humano, os processos de aprendiza­ tendida principalmente como espiritual e moral. Nessa época foi que se
gem e a própria criança, além de ter produzido conhecimentos que cer­ iniciou o costume de enviar crianças às escolas, as quais se ocupavam
tamente contribuem para a compreensão do processo de apropriação/ basicamente com o ensino da religião e da moral e de algumas habilida­
elaboração do conhecimento. des, como a leitura e a aritmética.
Se antes a socialização da criança acontecia em meio à convivência
direta com os adultos - ajudando os mais velhos ela aprendia valores,
O estudo científico da criança: um pouco de história costumes e habilidades -, a partir do século XVII, ela foi afastada do con­
vívio constante com eles e sua formação passou a ser responsabilidade da
Representaçõ es
A preocupação com o estudo da criança é bastante recente na histó­ família e da escola. Repare, na ilustração a seguir, um quadro do século
de crianças na
Roma a 11 tiga ria da humanidade. Aliás, a própria idéia de criança, tal como a conce­ XVII, como a representação da criança se transformou: seu corpo, suas
(século li). bemos hoje (como um ser que tem necessidades, interesses, motivos e proporções, seus movimentos
modos de pensar específicos), não existia antes do século XVII. ganharam contornos que per­
Até então, as crianças eram consideradas adultos em mi­ mitem diferenciá-la claramente
dos adultos (compare com a re­
:" \�,(1--��.,J?r/:!'1f1- niatura. Esse modo de conceber a criança pode ser percebido
nas suas representações em pinturas. Nas ilustrações desta pá­ presentação do século II, a do
gina, por exemplo, vê-se a representação de um jogo de bolas menino 'aprendendo a andar).
entre meninos e de um menino aprendendo a andar em um Repare também como ela é co­
andador, feitas em uma tumba subterrânea, em Roma, no sécu­ locada como centro do interes­
lo II. Repare como os meninos são representados: as propor­ se, da atenção e dos cuidados
ções e formas do corpo se assemelham às de uma pessoa adul­ dos adultos: seus primeiros
ta, de tal modo que passos são acompanhados a­
não encontramos ne­ tentamente pela mãe, pela ama
nhum traço que indi­ e pela avó.
que qualquer especifi­ O historiador Phillippe
cidade da criança em Aries cita um texto de 1602, que
relação ao adulto. fala da preocupação dos pais
A convivência com a educação das crianças:
com um índice de Os pais que se preocupam com a educação de suas crianças O primeiro passo
mortalidade infantil merecem mais respeito do que aqueles que se contentam em p6-las da infância,
extremamente alto fa­ no mundo. Eles lhes dão não apenas a vida, mas uma. vida boa e quadro de
zia com que a morte santa. Por esse motivo, esses pais têm razão em enviar seus filhos, M a rguerite
das crianças fosse desde a mais tenra idade, ao mercado da verdadeira sabedoria [o Gérard.

considerada natural e colégio], onde eles se tomarão os artífices de sua própria fortuna...
que a duração da in­
fância fosse limitada a (Aries, 198 1 : 277.J

um período muito cur- Mas a atuação da escola era ainda bastante limitada, tanto no que se
to na vida dos indivíduos. Ela correspondia ao período em que, para so­ refere aos objetivos que ela assumia quanto em relação aos métodos que
breviver, a criança necessitava de cuidados físicos. Quando sobrevivia, utilizava e ao pequeno número de crianças que atendia.
6.
com 6 ou 7 anos, após o desmame tardio, a criança "tomava-se a compa­ A retirada da criança do mundo adulto teve repercussões no modo de
nheira natural do adulto" (Aries, 1981 ), com quem passava a conviver o pensar sobre elas. No século XVIII, os filósofos começaram a apontar a
existência de um mundo próprio e autônomo da criança. Rousseau,
Pestalozzi e outros consideraram que a mente infantil opera diferentemente
da dos adultos. Isso possibilitou o estudo científico da criança e seu desen­
Sugestão de atividades
volvimento em suas formas próprias de organização (Charlot, 1979).
Mas foi apenas no começo do século XX que se iniciou efetiva­
mente o estudo científico da criança e do comportamento infantil. Des­ Trabalho de campo
de então vem sendo desenvolvida uma série de pesquisas sobre diferen­
tes aspectos da vida psíquica da criança. Importantes sistemas teóricos Escolha uma classe da l� à 4� série para observar durante um pe­
foram construídos e têm servido de base às reflexões sobre seu desen­ ríodo de aula. Anote, em folhas de papel, a série observada, a data, o
volvimento, sua afetividade e sua educação. horário do início e ·do término da observação, o número de alunos pre­
Além disso, diversas abordagens sobre os processos de aprendizagem sentes à aula, como está organizada a sala, que móveis e outros objetos
e desenvolvimento foram elaboradas, a partirde questões e interesses espe­ há nela (por exemplo, se as carteiras estão dispostas em círculos, grupos
cíficos e com base em diferentes métodos de investigação. Enfocando te­ ou fileiras; a posição da mesa do professor; se há armários, prateleiras,
mas como a inteligência e as diferenças individuais, a maturação, a aprendi­
zagem, a construção do conhecimento e o desenvolvimento da criança, al­ murais, etc.).
gumas dessas abordagens têm exercido considerável influência nos meios Em seguida, vá anotando bem rapidamente tudo o que se passa na
educacionais e levado a reflexões sobre as metodologias e conteúdos do sala de aula, prestando atenção aos seguintes aspectos:
ensino escolar. Entre elas destacam-se a inatista-maturacionista, o
comportamentalismo, a piagetiana e a histórico-cultural. • os conteúdos trabalhados;
É sobre essas abordagens que trataremos nos próximos capítulos, • os recursos utilizados pela professora;
destacando os autores mais representativos, os conceitos fundamentais
ligados a cada uma e as relações entre elas. Apresentaremos também • as atividades realizadas pelas crianças;
algumas das pesquisas que as embasaram, suas concepções quanto à • a movimentação das crianças e da professora;
relação desenvolvimento-aprendizagem e sua influência na escola. • acontecimentos "não previstos":
a) interrupções da aula;
b) situações de briga, choro, doença, falta de material;
O início da psicologia da criança 1zo Brasil
c) situações em que a professora perdeu a paciência;
No Brasil, as principais pesquisas psicológicas sobre a criança d) assuntos sobre os quais a professora e os alunos falaram que vo­
datam do início do século. Foram educadores, geralmente vincula­
dos às Escolas Nonnais, que implantaram a psicologia do desenvol­
cê considera não pertinentes aos conteúdos trabalhados;
vimento infantil, realizando pesquisas e experimentos com crianças • reação das crianças à sua presença.
em idade escolar.
Alguns fatos que marcaram o início da psicologia da criança no Depois, organize o seu registro, agrupando as situações semelhan­
Brasil foram: tes, de acordo com os aspectos sugeridos acima. Lembre-se de redigir
1) O estabelecimento, em 1914, de um laboratório de pedagogia seus registros de maneira clara, para que possam ser compreendidos
experimental junto à Escola Nonnal de São Paulo, onde crianças eram facilmente por outras pessoas.
submetidas a exames destinados a medir suas reações psicofísicas Comente, por escrito, as situações observadas, considerando a
(como, por exemplo, discriminações visuais, auditivas, etc). questão da complexidade do ensinar e do aprender.
2) A criação, em 1916, de um laboratório de psicologia pedagó­
gica, por uma academia de pedagogos do Rio de Janeiro. Esse labo­
ratório foi planejado por Alfred Binet (ver boxe no próximo tópico) Problematizando a observação
e, através dele, introduziram-se os testes psicológicos no Brasil, es­
pecialmente aqueles destinados a medir e avaliar as capacidades e
Destaque um comportamento ou um episódio observado ao desen­
habilidades infantis. volver a atividade acima que, a seu ver, a psicologia poderia ajudar a
3) Os estudos sobre a maturidade para a leitura em escolares, analisar. Justifique sua escolha. Enumere as perguntas que você faria,
pensando em encontrar respostas na psicologia. 9
8 realizados por Lourenço Filho na Escola Normal de Piracicaba/SP.
Aprofundando as informações do texto

Conforme vimos, os sentimentos que temos atualmente em relação


à criança e as formas de nos comportarmos em relação a ela não são os Capítulo 2
mesmos que se viam antes do século XVII. Para conhecer um pouco das
práticas sociais de educação da criança até então, leia um dos dois tex­
tos sugeridos a seguir, anotando seus pontos principais:

• P. Aries, A história social dafamília e da criança ('Conclusão', p.


275-279).
• J. Gélis, A individualização da criança (História da vida privada, A abordagem
inatista-maturacionista
V. 3).

Sugestão de leituras

ARIES, P. História social dafamília e da criança. Rio de Janeiro: Zahar, Todos nós já ouvimos ou dissemos coisas como: "Ele ainda não
1 978. tem maturidade para aprender a ler"; "Meu filho tem uma aptidão incrí­
GÉLIS, J. A individualização da criança. ln: ARIEs, P., CHARTIER, R. Histó­ vel para a matemática"; "A Marina é tão inteligente! Puxou ao pai!".
ria da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. v. 3 . Maturidade, aptidão, inteligência são temas tradicionalmente abor­
KoRCZAK, J. Quando eu voltar a ser criança. São Paulo: Summus. dados pela psicologia numa perspectiva que atribui um papel central a
MIRANDA, M. G. O processo de socialização da criança: a evolução da fatores biológicos no desenvolvimento da criança. Essa perspectiva,
condição social da criança ln: LANE, S. T. M., Cooo, W. Psicologia que estamos denominando inatista-maturacionista, parte do princípio
social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 1984. de que fatores hereditários ou de maturação são mais importantes para o
desenvolvimento da criança e para a determinação de suas capacidades
do que os fatores relacionados à aprendizagem e à experiência.
Mas o que são esses fatores hereditários ou de maturação?
A hereditariedade pode ser entendida como um conjunto de quali­
dades ou características que estão fixadas na criança, já ao nascimento.
Ou seja, quando falamos em hereditariedade estamos nos referindo à
herança genética individual que a criança recebe de seus pais. Todos
sabemos que traços como, por exemplo, a cor dos olhos e do cabelo, o
tipo sanguíneo, o formato da orelha e da boca já estão determinados
geneticamente quando nascemos.
A idéia de maturação refere-se a um padrão de mudanças comum a
todos os membros de determinada espécie, que se verifica durante a
vida de cada indivíduo. O crescimento do feto dentro do útero da mãe,
por exemplo, segue um padrão de mudanças biologicamente determi­
nado. As transformações do corpo, o crescimento dos órgãos, etc. acon­
tecem de acordo com uma seqüência predeterminada, que, a princípio,
não dependeria de fatores externos.
Você pode estar se perguntando o que essa história de cor dos olhos
ou do desenvolvimento do feto tem a ver com uma abordagem psicoló­
gica da maturidade, das aptidões e da inteligência.
É que, na psicologia, teóricos da perspectiva inatista-maturacio- ·

nista supõem que, do mesmo modo que a cor dos olhos, aptidões indivi- 11
duais e inteligência são características herdadas dos pais e, portanto, já ensinada. Do mesmo modo, crianças brancas e negras apresentam dife­
estão determinadas biologicamente quando a criança nasce. Ou então renças no desempenho de determinadas tarefas em razão da herança ge­
que, à maneira do crescimento das partes do corpo, o desenvolvimento nética de suas raças, e não de diferenças culturais ou de oportunidades.
do comportamento e das habilidades da criança é governado por um Foi nessa linha da preocupação com as diferenças individuais que
processo de maturação biológica, independentemente da aprendizagem se desenvolveram os primeiros estudos psicológicos com o objetivo de
e da experiência. avaliar a inteligência. Um dos pioneiros desses estudos, o pesquisador
São essas concepções que estudaremos no decorrer deste capítulo. francês Alfred Binet, interessou-se especialmente pela mensuração da
inteligência através de testes.

A questão das diferenças individuais e a hereditariedade


da inteligência: ''filho de peixe, peixinho é?" Quem foi Binet?

Por que as pessoas são diferentes umas das outras? Por que algu­ Alfred Binet nasceu em 1857 e viveu até 1911. Formou-se em
mas crianças parecem mais inclinadas para atividades artísticas, en­ Medicina, mas desde cedo interessou-se pela psicologia da crian­
quanto outras se saem melhor com os nú­ ça e do deficiente, área em que se tornou conhecido.
meros? Foram perguntas desse tipo que Em 1904, quando era diretor do Labora­
orientaram, no começo do século, as pri­ tório de Psicologia Fisiológica da Universi­
meiras investigações psicológicas sobre o dade de Sorbonne, participou de uma comis­
problema da natureza hereditária das apti­ são de médicos, educadores e cientistas, no­
dões e da inteligência. meados pelo ministro da Instrução Pública da
Interessados em saber por que uma pes­ França, que tinha como objetivo estabelecer
soa é diferente da outra -quanto a traços de métodos e formular recomendações para o
personalidade, de habilidades, de desempe­ ensino de crianças deficientes mentais. Binet
nho intelectual, etc. -, pesquisadores pro­ foi incumbido da tarefa de desenvolver um
curaram obter dados que permitissem esta­ instrumento que pennitisse identificar as crian­
belecer comparações entre pessoas. ças mentalmente deficientes.
Eles constataram, então, que pessoas Como resultado de seu trabalho nessa
com uma aptidão especial (um artista, por comissão e de suas pesquisas anteriores, ele
exemplo) normalmente tinham familiares publicou em 1905, com a colaboração de
que apresentavam o mesmo tipo de aptidão. Théodore Simon, a primeira escala para a
Ou, ainda, que gêmeos idênticos apresenta­ medida da inteligência geral. Essa escala,
vam aptidões e nível intelectual com um que se tornou conhecida como escala Binet­
grau de semelhança maior do que o encon­ Simon, passou por duas revisões: a primeira,
trado entre irmãos não gêmeos. Por outro em 1908, e a segunda, em 1911, pouco antes da morte de Binet.
lado, identificaram diferenças de aptidões e Pode-se dizer que o desenvolvimento dessa escala marcou o
de traços mentais entre homens e mulheres início da medida da inteligência, tal como a conhecemos hoje.
ou entre raças diferentes. Os testes de Binet e Simon foram traduzidos e utilizados também
Essas constatações foram interpretadas como indicadoras de que os em muitos outros países e deram origem a inúmeras revisões,
Gêmeos: ce11tro
de interesse nos
fatores inatos são mais poderosos na determinação das aptidões indivi­ realizadas por outros pesquisadores, bem como inspiraram a
eswdos sobre duais e do grau em que estas podem se desenvolver do que a experiên­ elaboração de outros testes de inteligência.
hereditariedade. cia, o meio social e a educação. O papel do meio social, segundo essa No Brasil, seus estudos e testes foram introduzidos em 1916
perspectiva inatista, se restringe a impedir ou a permitir que essas apti­ por educadores ligados ao Laboratório de Psicologia Pedagógi­
dões se manifestem. ca do Rio de Janeiro.
Assim, uma criança - filha, neta ou sobrinha de músicos - apre­
senta inclinação e facilidade para aprender música porque herdou de
seus familiares a aptidão, o "dom" para a música, e não porque foi Binet concebia a inteligêncié! como uma aptidão geral que não de­ 13
12
educada num ambiente em que, provavelmente, a música é valorizada e pende das informações ou das experiências adquiridas no decorrer da
vida do indivíduo. Segundo ele, as principais características da inteli­ Quem foi Gesell?
gência seriam as capacidades de atenção, de julgamento e de adaptação
do comportamento a objetivos: Pesquisador norte-americano que viveu entre 1880 e 1961,
Gesell foi o principal expoente das teorias do desenvolvimento
Parece-nos que na inteligência há uma faculdade fundamen­ que dão maior ênfase ao papel da maturação. Desde
tal... Esta faculdade é o julgamento, também chamado bom senso muito cedo, logo queformado na Escola Normal (Ma­
prático, iniciativa, a faculdade de adaptar-se às circunstâncias. Jul­ gistério), dedicou-se à carreira de professor. Foi dire­
gar, compreender e raciocinar bem; estas são as atividades essen­ tor de colégio e escreveu sua primeira tese sobre um
ciais da inteligência. assunto ligado à pedagogia. Depois de doutorar-se
em psicologia, Gesell retomou o seu trabalho como
(Binet e Simon, O desem•ofrime1110 da imeUgência nas crianças. professor em uma escola primária. Alguns anos de­
Apud Bee. H.)
pois, decidiu-se porfazer o curso de Medicina e assim
que o concluiu foi nomeado professor de Higiene da
É importante compreender que, nessa perspectiva, a idéia de inteli­ Criança na Escola de Medicina de Yale, cargo que
gência não se confunde com os conhecimentos adquiridos pelo indiví­ ocupou até a sua aposentadoria.
duo durante sua vida. Habitualmente, consideramos como muito inteli­ Em 1915, Gesell passou a empregar a psicologia
gente uma pessoa que demonstra ter um vasto conhecimento; ou seja, com vistas a proporcionar ajuda pedagógica às
dizemos que os mais inteligentes (entre nossos colegas, por exemplo) crianças desadaptadas. Ele é, por isso, considerado
são os que sabem mais. o primeiro psicólogo escolar norte-americano.
No entanto, o que define a inteligência de um indivíduo não é a quan­ Preocupado com a criação de uma ciência do desenvolvimento
tidade de conhecimentos que ele possui, mas sua capacidade de julgar, humano que integrasse todos os recursos da psicologia experimen­
compreender e raciocinar. Essas capacidades, segundo Binet, não podem tal, da biologia evolutiva e da neuro.fisiologia, de 1920a 1961 Gesell
ser aprendidas, mas, ao contrário, são biologicamente determinadas. As­ dedicou-se à pesquisa cientfjica e à publicação de livros e artigos.
sim, a inteligência é vista como um atributo do indivíduo fixado pela he­
reditariedade e, como tal, variável de uma pessoa para outra. Pode-se dizer que Gesell foi o primeiro teórico da maturação, uma vez
que defendia a prioridade dos fatores de maturação sobre os fatores de
aprendizagem, ou de experiência, na evolução do comportamento da
Padrões de desenvolvimento: o que é próprio de criança. Para ele, o que explica a existência de um padrão de desenvolvi­
mento comum à maioria das crianças é o processo de maturação biológica
cada idade? inerente às transformações por que passa o comportamento da criança.
Assim, a evolução psicológica da criança seria determinada biolo­
Mas, se as pessoas são diferentes umas das outras nas suas apti­ gicamente, do mesmo modo que o crescimento do feto no útero mater­
dões, traços de personalidade ou de inteligência, existem também mui­ no. Seus comportamentos e formas de pensar tornam-se mais comple­
tas semelhanças entre elas. A maioria dos bebês, por exemplo, torna-se xos à medida que ela cresce, que seu sistema nervoso, sua estrutura
capaz de se sentar antes que possa se arrastar, engatinhar e depois andar. muscular, etc. se desenvolvem. O ambiente social e as influências exter­
Do mesmo modo, quando começa a falar, a criança primeiro diz apenas nas, de modo geral, limitam-se a facilitar ou dificultar o processo de
palavras isoladas, e só depois junta duas ou mais palavras, formando maturação. Por exemplo, uma criança que raramente é tirada do berço e
frases. Ou, então, antes de desenhar casas, animais ou carros, a criança deixada à vontade no chão, certamente vai demorar mais para,enga­
rabisca traços e círculos. tinhar ou andar. Em condições adequadas, seu desenvolvimento se pro­
cessaria no ritmo e na seqüência determinados pela maturação.
Essas seqüências parecem se repetir sempre em relação à maioria TantoBinetquantoGesell, acreditandoqueainteligênciaeodesenvolvi­
das crianças, o que sugere a existência de certo padrão de desenvolvi­ mento psíquico da criança são biologicamente determinados, preocuparam­
mento humano. Esse fato tem chamado a atenção de muitos pesquisa­ se em descrever comportamentos e habilidades típicos de cada faixa etária.
dores desde as primeiras décadas deste século. Um dos primeiros psicó­ Binet estava interessado, como já dissemos, em medir e comparar a
logos a se interessarem por essa questão foi Arnold Gesell, nos Estados inteligência das pessoas. Mas, se podemos medir a altura ou o tamanho
Unidos. Ele se preocupou com a evolução da criança, do nascimento do dedo de uma criança simplesmente usando uma fita métrica, medir a
aos 1 6 anos, e estudou as formas que seu comportamento vai tomando inteligência é bem mais complicado. Enquanto aptidão geral do indiví­ 15
no decorrer dessa evolução. duo, a inteligência não pode ser medida diretamente, mas apenas atra-
vés de algumas de suas realizações. Por isso, para construir um teste de
inteligência, Binet precisava conhecer o que crianças são capazes de Você sabe o que é o QI?
fazer em cada idade.
Essa também foi uma necessidade experimentada por Gesell. Preo­ Embora confundido por muita gente com a própria inteligên­
cupado em compreender a evolução da criança, ele procurou estabele­ cia, o QI (quociente intelectual) é basicamente uma comparação
cer escalas de desenvolvimento que permitissem comparar os compor­ entre a idade mental e a idade real da criança (idade cronológica).
tamentos de uma criança com aqueles que eram esperados, ou conside­ A idade mental é determinada pelo número de tarefas de um tes­
rados "normais", para sua faixa etária. te que a criança consegue resolver corretamente. Por exemplo, se ela
Mas como foram criados os testes de inteligência e estabelecidas as acerta todas as tarefas atribuídas ao grupo de 1 O anos, diz-se que ela
escalas de desenvolvimento? tem idade mental de 1 0 anos, seja qualfor sua idade cronológica.
Essa é uma pergunta importante, porque sua resposta nos mostra um O QI é obtido quando se divide a idade mental de uma criança
pouco como o conhecimento é produzido na área da psicologia. Partindo pela sua idade cronológica. Suponhamos que uma criança de 8
do princípio de que a hereditariedade e a maturação são os fatores mais anos consiga resolver todos os problemas propostos para a idade
decisivos na determinação da inteligência e na evolução do comporta­ de I O anos, mas nada além desse nível. Diremos que sua idade men­
mento da criança, tanto Binet quanto Gesell dedicaram-se a pesquisas. tal é de 10 anos e, para calcular o seu QI, dividiremos 10 por 8, o
que dá um resultado de 1,25. Por convenção, esse resultado é mul­
Pesquisando a criança: a construção dos testes de tiplicado por 100, para que o QI possa ser expresso em números
inteiros: Isso significa qúe, em nosso exemplo, a criança tem um QI
inteligência de 125, que é considerado acima da média.

Binet partiu da experimentação e da observação do que as crianças


eram capazes de fazer em idades variadas. Ele procurou selecionar proble­ QI = idade mental x 1 00
idade cronológica
mas ou questões cuja solução envolvesse os efeitos combinados da aten­
ção, do juízo e do raciocínio e não dependesse de aprendizagens anteriores. Assim, quando a idade mental e a idade cronológica forem
Essas questões eram organizadas em grupos por idade, de acordo
as mesmas, o QI será sempre 100. Se a idade mental for inferior
com o seguinte critério: se um teste era resolvido satisfatoriamente por
60% a 90% das crianças de determinada idade estudadas, ele era consi­ à idade cronológica, os resultados serão sempre inferiores a 100,
derado adequado para aquela idade. o que indicará um QI abaixo da média. Se, ao contrário, a idade
Um exemplo: se todas ou quase todas as crianças de 6 anos fossem mental for superior à idade cronológica, o QI será sempre supe­
capazes de comparar dois pesos, essa tarefa era considerada muito fácil rior a 100, ou acima da média.
para essa idade; se 60% a 90% das crianças de 5 anos estudadas resol­
vessem o problema de maneira correta, ele era aceito como adequado
para essa faixa etária. Do mesmo modo, se quase nenhuma das crianças
de 4 anos estudadas conseguisse copiar um quadrado, essa tarefa era Pesquisando a criança: a elaboração das escalas de
considerada difícil demais para essa idade. desenvolvimento
Seguindo esse procedimento, Binet selecionava um número deter­
minado de tarefas, em ordem crescente de dificuldade, para cada idade.
Assim, o seu teste de inteligência geral, destinado a avaliar pessoas dos À semelhança de Binet, Gesell também se utilizou da observação e
3 anos até a idade adulta, era composto por vários conjuntos de proble­ da experimentação com crianças para elaborar suas escalas de desen­
mas: um para as crianças de 3 anos, outro para as de 4 anos, outro para volvimento. No entanto, ele introduziu uma importante inovação técni­
as de 5 anos, e assim sucessivamente. ca na observação e no registro do comportamento da criança: as câme­
Por meio desses testes, a inteligência é avaliada pelo desempenho ras cinematográficas.
nas tarefas. O número de testes que a criança consegue resolver detenni­ Na Clínica do Desenvolvimento da Criança, criada por ele em
na a sua idade mental ou o seu quociente de inteligência (QI). Se ela con­ 1 930 na Universidade de Yale, Gesell montou um observatório fotográ­
seguir resolver todos os testes propostos para a sua idade, sua inteligên­ fico, que era um hemisfério de 4 metros de diâmetro e 2,5 metros de
cia será considerada normal. Se ela também resolver corretamente al­ altura, equipado no alto e nas paredes laterais com câmeras cinemato­
guns dos testes propostos para crianças mais velhas, seu QI estará acima gráficas. Enquanto Gesell submetia as crianças a vários testes - sem­
16
da média. E se, ao contrário, ela acertar apenas questões propostas para pre voltados a descobrir o que são capazes de fazer em cada idade - as
crianças mais novas, sua inteligência será considerada abaixo da média. câmeras rodavam, registrando todas as reações que elas apresentavam. 17
Os filmes obtidos eram posteriormente analisados. Gesell procura­ aumento do controle da cabeça: gradativamente as costas do bebê (que,
va, então, destacar diversos aspectos da evolução do comportamento no recém-nascido, são arredondadas) ficam mais alinhadas, e a criança
da criança. A postura, a locomoção, a ação de agarrar, os jogos, as con­ toma-se capaz de manter a cabeça levantada, podendo, então, permane­
dutas sociais, etc. eram minuciosamente analisados e descritos com o cer sentada sem apoio.
objetivo de captar as formas que esses com­
portamentos tomam no decorrer do desenvol­
vimento da criança. --�
A partir dessas análises, tomava-se possí­
vel estabelecer que comportamentos eram típi­ .,.
�<
Primeiras 4
cos de cada faixa etária, como, por exemplo, semanas de vida: Entre 4 e 6
começar a engatinhar, colocar-se de pé e andar o dorso do bebê semanas o bebê
com apoio, subir em cadeiras ou sofás e cami­ é uniformemente tem o dorso
nhar sozinha. arredondado,
hayendofalta de
arredondado e a
cabeça é erguida
comrole da por alguns
cabeça. momentos.

Binet, por sua vez, preocupava-se


com aqueles comportamentos que, numa
determinada idade, pudessem ser tomados Entre 8 e 12
como indicadores do nível de inteligência semanas o dorso
da criança. A evolução ou o desenvolvi­ ainda é
mento dos comportamentos considerados arredondado e a
cabeçajá se
típicos não o interessaram de modo espe­ levanta mais,
cial, mas sim a capacidade da criança de porém o bebê
Engatinhar e andar sozinho: estágios realizá-los na idade tida como adequada. ainda tende a
diferentes do desenvolvimento infantil. Mas, apesar das diferenças, podemos pender o corpo
para a frente.
dizer que Binet e Gesell estabeleceram pa­
drões de comportamento com a finalidade
Essas pesquisas, baseadas na análise dos filmes, foram denomina­ de avaliar a inteligência ou o desenvolvi­
das por Gesell pesquisas normativas, já que visavam à apreensão do mento da criança. O pressuposto de que os
ritmo e da seqüência "normais" do desenvolvimento. Assim, ao enume­ fatores biológicos (hereditariedade e
rar os comportamentos considerados típicos de cada faixa etária, é esse maturação) são os mais decisivos na deter­
ritmo e essa seqüência que as escalas de desenvolvimento· expressam. minação da inteligência e do desenvolvi­
mento leva a supor que tais padrões de Entre 16 e 20
comportamento são independentes de fa­ semanas o bebê
tem o dorso mais
A questão dos comportamentos típicos tores externos ou do contexto social em alinhado e a
que as crianças vivem. Desse modo, não cabeça é mantidã
Tanto Binet quanto Gesell ocuparam-se em definir os comportamen­ importa o lugar e a época em que a criança ereta sem

tos típicos de cada faixa etária, embora a partir de perspectivas diferentes. viva ou as condições materiais e as possi­ vacilação.

Como já apontamos, Gesell não apenas destacava quais são os bilidades educacionais a que tenha acesso:
comportamentos infantis comuns a determinada idade, mas também a criança "normal" deve apresentar tais
procurava retratar a maneira como esses comportamentos evoluem, comportamentos.
transformam-se. É o caso, por exemplo, da capacidade da criança de No entanto, é importante lembrar que eles chegaram à definição
manter-se sentada sem apoio. dos padrões de comportamento de cada faixa etária a partir de pesqui­
18
É possível observar, nas figuras a seguir, que a evolução desse sas realizadas nas primeiras décadas do século, com determinados gru­
19
comportamento deve-se ao progresso do alinhamento das costas e do pos de crianças (francesas e norte-americanas). Logo, os comporta-
mentos considerados típicos foram aqueles apresentados pela maioria A idéia de que a criança é portadora dos atributos universais (bioló­
das crianças que eles estudaram, e foi a partir daí que se definiu o que gicos) do gênero humano produz ou justifica a crença de que caberia à
é normal ou não. educação· fazer aflorar esses atributos naturais, desenvolvendo as
Esse procedimento é bastante coerente com os princípios teóricos potencialidades do educando de modo harmonioso. Tal concepção teve
pelos quais Binet e Gesell se orientaram. Se o ritmo e a seqüência do o mérito de chamar a atenção para as especificidades da criança, para as
desenvolvimento são biologicamente determinados, espera-se que cer­ características, habilidades e capacidades dos educandos, colocando
tos comportamentos apareçam sempre na mesma seqüência e na mesma em destaque noções como prontidão, maturidade, aptidão.
idade, quer se trate de crianças européias de classe média, quer de crian­ Mas, ao mesmo tempo que atribuem à escola o papel de "cultivar"
ças do interior do Nordeste brasileiro. o indivíduo, de possibilitar o seu desenvolvimento harmonioso, as pro­
postas pedagógicas orientadas por essa perspectiva consideram que
para aprender os conteúdos escolares a criança precisaria já ter desen­
As relações entre desenvolvimento e aprendizagem e volvido determinadas capacidades. Isso acaba gerando a idéia de que
existe uma idade bem precisa para aprender certos conteúdos. Ou, ain­
as influências do inatismo-maturacionismo na escola da, que o proveito que a criança tira das situações de aprendizagem
depende de seu nível de prontidão ou maturidade.
Se o ritmo e a seqüência do desenvolvimento são biologicamente Essas noções, além de circularem entre os agentes do processo
determinados, qual a sua relação com os processos de aprendizagem? educacional, influenciando, muitas vezes, o cotidiano da escola, tam­
Antes de responder a essa pergunta, é importante lembrar que os pes­ bém dão sustentação à prática de utilização de testes psicológicos para
quisadores da abordagem inatista-maturacionista não tinham como ob­ avaliar as possibilidades educacionais da criança.
jetivo o estudo da aprendizagem. No entanto, ao destacar o papel de É fato bem conhecido que testes de prontidão (para a leitura, por
fatores internos na determinação da inteligência e do desenvolvimento, exemplo) e testes de inteligência têm sido amplamente utilizados para a
essa abordagem considera que aquilo que a criança aprende no decorrer avaliação de crianças em idade escolar, penalizando muitas delas. Os
da vida não interfere no processo de desenvolvimento. resultados de tais testes têm, historicamente, impedido que inúmeras
De acordo com a perspectiva inatista-maturacionista, a aprendiza­ crianças tenham acesso ao conhecimento e à própria escolarização, ao
gem é que depende do desenvolvimento. Ou seja, o que a criança é fornecerem indicadores de sua "imaturidade" ou de seus "déficits" de
capaz ou não de aprender é determinado pelo nível de maturação de inteligência. Há crianças, por exemplo, que são retidas na pré-escola ou
suas habilidades e do seu pensamento ou, ainda, pelo seu nível de permanecem nos exercícios preparatórios, às vezes um ano inteiro, por­
inteligência. que "não estão prontas" para aprender a ler e escrever; outras são envi­
Essa concepção tem tido bastante influência na escola, desde sua adas às classes especiais porque "não têm condições" intelectuais de
elaboração. Pode-se dizer que o inatismo-maturacionismo marca o co­ seguir o curso normal da escolaridade.
meço da relação entre a psicologia científica e a educação. Como vi­
mos, a construção dos primeiros testes de inteligência de Binet e
Simon foi resultado de uma necessidade emergente nos meios educa­
cionais franceses da época: a de identificar as crianças mentalmente
deficientes e estabelecer métodos que tomassem o ensino acessível a
elas. O trabalho de Gesell também foi orientado por fins ligados à
educação, especialmente a de crianças consideradas desadaptadas.
No Brasil, as principais pesquisas psicológicas sobre crianças da­
tam do início do século. Educadores, geralmente vinculados às Escolas
Normais (antigo nome dos cursos de Magistério), implantaram na déca­
da de 20, em suas escolas, laboratórios de Psicologia Experimental e de
Psicologia Pedagógica. Nesses laboratórios, as crianças eram submeti­
das a exames destinados a medir suas reações psicofísicas (discrimina­
ções visuais, auditivas, etc.), e foi através deles que se introduziram no
país os primeiros testes psicológicos. O primeiro teste para avaliar a
prontidão de crianças para a alfabetização foi desenvolvido por um edu­
20 21
cador, Lourenço Filho.
obtidas. Caso a pessoa queira lhe mostrar fotos da criança ou ano­
Sugestão de atividades tações sobre ela, observe-as atentamente e sintetize as informa­
ções proporcionadas por esses materiais.
• Pergunte à professora quais são as situações a que ela presta aten­
Organizando as informações do texto ção para analisar o desenvolvimento de seus alunos. Procure saber
o que a encanta e o que a preocupa em seus alunos. Peça a ela que
1. Organize um quadro explicando, resumidamente, o que é: descreva algumas situações ou experiências que foram marcantes
• hereditariedade; em seu trabalho com as crianças. Registre as respostas obtidas.
• maturação.
2. Em grupo, organizem os dados obtidos, reunindo as respostas seme­
2. Monte um quadro que apresente um resumo de como se explica, na lhantes. Destaquem nas respostas dadas pelos pais e professoras os
abordagem inatista-maturacionista: aspectos que as associam à visão inatista-maturacionista do desen­
volvimento.
• inteligência; Concluído o trabalho, convém guardar os registros das entrevistas e o
• desenvolvimento. resultado da organização dos dados estabelecida pelo grupo, pois
eles serão utilizados em atividades referentes aos próximos capí­
3. Explique a relação existente entre desenvolvimento e aprendizagem, tulos.
de acordo com es�a abordagem.
Exercitando a análise
Refletindo sobre o texto
Leia o livro A Terra dos Meninos Pelados, de Graciliano Ramos
1. Dividam-se em dois grupos, para discutir a seguinte frase: "Algumas (Editora Record). Nesse livro, o autor conta a estória de Raimundo, um
pessoas são mais inteligentes que outras em razão de sua herança menino considerado "diferente" ...
genética". Após a leitura, responda:
2. O grupo 1 deve se reunir e pensar em argumentos a favor dessa frase • De que tipos são as diferenças de Raimundo? .
(durante dez minutos). • Quais as conseqüências dessas diferenÇas na vida do menino?
3. O grupo 2 pensará em argumentos contra essa frase (durante dez mi­
nutos). Em grupo, discutam essas questões, relacionando-as com as idéias
4. Organizem o debate entre os grupos. Mas lembrem-se: quem é do apresentadas no capítulo a respeito do desenvolvimento humano.
grupo 1 só pode falar "a favor" da frase e quem é do grupo 2 deve
falar "contra".
5. Registre em seu caderno suas opiniões sobre os aspectos favoráveis e
Sugestão de leituras
desfavoráveis da abordagem analisada.
A curva do sino. Folha de S. Paulo, 30 de outubro de 1994, p. 6-4 a 6-6;
Trabalho de campo BEE, H. A criança em desenvolvimento. São Paulo: Harper e Row do
Brasil, 1977.
1. Para realizar esta pesquisa, cada aluno deverá entrevistar uma pessoa
que tenha filhos (mãe ou pai) e uma professora (de pré-escola ou de
1� a 4� série). Explique à pessoa que você está realizando um trabalho
escolar e precisa da ajuda dela.
• Pergunte à mãe (ou ao pai) sobre o que se lembra a respeito do
desenvolvimento dos filhos. O que mais lhe chamou a atenção
nesse processo? O que foi motivo de encantamento e o que foi
22 motivo de preocupação? Por quê? Registre ou grave as respostas 23
O fato de incluir a psicologia entre as ciências naturais deve-se à
crença na existência de uma continuidade entre o animal e o homem.
Capítulo 3 Ou seja, para os comportamentalistas, embora o comportamento do ho­
mem difira do dos animais em razão de um maior refinamento e com­
plexidade, ambos podem ser explicados pelos mesmos princípios. Des­
se modo, o comportamento humano não é privilegiado como objeto de
pesquisa: no comportamentalismo, estudam-se tanto o comportamento
humano quanto o comportamento animal.

A abordagem Mas o que é comportamento?

comportamentalista Na perspectiva de Watson, podemos dizer que o comportamento é


sempre uma resposta do organismo (humano ou animal) a algum estí­
mulo presente no meio ambiente.
Por estímulo, Watson entende toda modificação do ambiente que
pode ser captada pelo organismo por meio dos sentidos. Assim, as res­
Ao contrário do inatismo-maturacionismo, a abordagem compor­ postas são modificações que ocorrem no organismo em decorrência
tamentalista destaca a importância da influência de fatores externos, do desses estímulos, como, por exemplo, alterações na expressão facial,
ambiente e da experiência sobre o comportamento da criança. mudanças na posição do corpo, ações ou movimentos de qualquer tipo.
Enquanto aquela abordagem enfatiza o papel de fatores biológicos Imaginemos um pequeno animal silvestre bebendo água na beira
internos, como a l}t;!reditariedade e a maturação, o comportamentalismo de um riacho. Ao captar um ruído de passos de animal no mato, ele sai
parte do princípio de que as ações e as habilidades dos indivíduos são correndo. Na linguagem comportamentalista, diremos que o ruído (estí­
determinadas por suas relações com o meio em que se encontram. mulo) provocou, no animal, uma resposta: o ato de correr.
John B. Watson foi o fundador do movimento comportamentalista O que interessa à psicologia, entendida como lima ciência natural
(ou behaviorista, do inglês behavior, que significa "comportamento") e objetiva, é a relação entre estímulos e respostas - fatos exteriores
na psicologia. Ele definiu a psicologia como a ciência do comportamen­ que podem ser empiricamente observados. O que ocorre no interior do
to, como um ramo objetivo e experimental das ciências naturais. organismo entre um dado estímulo e uma dada resposta não pode ser
observado e, portanto, não interessa aos psicólogos comporta­
mentalistas. No exemplo do animal silvestre bebendo água, o compor­
tamento do animal é explicado pela relação entre o estímulo (o ruído) e
Quem foi Watson? a resposta desencadeada por ele (correr), e não a partir de determinado
estado interno do organismo.
John Broadus Watson nasceu em 1878, nos Veja bem: isso não significa que Watson descarte a existência de pro­
EUA, e viveu até 1958. Formou-se em Filosofia, cessos internos no organismo. Ele aP.enas considera que tais processos
pela Universidade de Furmam, aos 22 anos, mas devem ser estudados pela fisiologia. À psicologia, segundo sua concep­
logo interessou-se pela psicologia animal, área em ção, cabe o estudo das respostas do organismo aos estímulos do meio.
que desenvolveu sua tese de doutoramento. Assim, os problemas de que se ocupa o comportamentalismo são:
Em 1908, assumiu o cargo de professor de Psi­ prever a resposta, quando se conhece o estímulo, e identificar o estímu­
cologia na Universidade Johns Hopkins, onde conti­ lo, quando se conhece a resposta. Ou seja, o estudo do comportamento
nuou suas pesquisas com animais. deve possibilitar o conhecimento das relações estímuto-resposta, das
Após algumas tentativas de formulação de prin­ quais ele é o resultado. Assim, cabe ao comportamentalista descobrir
cípios que considerava mais objetivos para o estudo quais são os estímulos que provocam determinado comportamento.
da psicologia - desestimuladas pelas críticas -, De acordo com essa concepção, o comportamento animal ou huma­
Watson publicou, em 1913, um artigo intitulado "A no é sempre uma adaptação, uma reação aos estímulos, às alterações que
psicologia como um behaviorista a vê", considera­ se processam no ambiente. Essa postura ambientalista opõe-se a qual­
do o lançamento oficial da escola behaviorista. quer tipo de inatismo. Para Watson, não existem aptidões, disposições
24 intelectuais ou temperamentos inatos ou hereditários. O que existe é certa 25
propensão para responder a certos estímulos de uma forma determinada.
Comportamento e aprendizagem Em relação à primeira parte do nosso exemplo, podemos dizer que
. .· �,
o sopro é o estímulo que provoca a reação de piscar. Essa reação, como
Para o comportamentalismo, a aprendizagem é um tema central. já dissemos, é um tipo de resposta não aprendida, é um reflexo do orga­
Ao enfatizar a influência dos fatores externos e ambientais, essa con­ nismo. À medida que o sopro é associado a um som determinado, esse
cepção teórica afirma que o mais importante na determinação do com­ som passará a servir como um estímulo que também provoca a resposta
portamento do indivíduo são as suas experiências, aquilo que ele apren­ de piscar. Nesse caso, o som é chamado pelos comportamentalistas de
de durante a vida. Aliás, podemos dizer que o comportamentalismo estímulo condicionado, porque, por si mesmo, ele não provoca a reação
confunde-se com uma teoria da aprendizagem, uma vez que sua preo­ de piscar, mas apenas quando é associado a outro tipo de estímulo (o
cupação básica é explicar como os comportamentos são aprendidos. sopro) que automaticamente desencadeia tal reação.
Skinner, outro importante comportamentalista, cujo trabalho deu Esse é um exemplo de aprendizagem por condicionamento clássi­
continuidade a algumas das formulações de Watson, distingue dois ti­ co, em que estão envolvidos um estímulo condicionado e uma resposta
pos de aprendizagem: por condicionamento clássico e por condiciona­ que é simplesmente uma reação do organismo. Esse tipo de aprendiza­ Para Skinne1; a
mento operante. gem não implica nenhuma iniciativa por parte de quem aprende. Ou birra é um
seja, a pessoa aprende a piscar quando ouve um som determinado por­ comporta111ento
que se aprende.
que sua reação original acabou se associando a um novo estímulo.
Quem foi Skimier? Já a aprendizagem por condiciona­
Burrhus Frederic Skinner; psicólogo norte-americano, nascido mento operante se dá de forma bastante
em 1904, foi o criador do que ele denominou "análise experimental diferente, apoiando-se não em reações
do comportamento ", método que pennite prever e con­ provocadas por estímulos, mas em
trolar cientificamente o comportamento humano. comportamentos emitidos pelo próprio
Doutorou-se em Harvard, em 1 931, e depois de organismo que são seguidos por algum
alguns anos lecionou na Universidade de Minnesota tipo de conseqüência.
e na Universidade de Indiana, da qual foi presidente. Se o comportamento é seguido
Regressou a Harvard como professor e pesquisador por uma conseqüência agradável, ele
em 1 947. tende a se repetir. Ao contrário, se a
Skinner interessou-se pela análise da aprendiza­ conseqüência for desagradável, o com­
gem verbal, pelo adestramento de pombos, pelas má­ portamento tem menos probabilidade
quinas de ensinar e pelo controle do comportamento de se repetir. Essas conseqüências,
mediante reforço positivo. chamadas pelos comportamentalistas
Até a sua morte, em 1980, desenvolveu trabalhos de reforçadores, "modelam" o compor­
de aplicação tecnológica dos princípios da análise ex­ tamento dos indivíduos, sendo respon­
perimental do comportamento no campo do ensino e no
sáveis pela criação dos hábitos.
trabalho psicoterapêutico. Além disso, dedicou-se à
elaboração de umafilosofia, o behaviorismo, que se vincula ao mo­
Segundo a concepção de Skinner,
vimento de análise experimental do comportamento.
a grande maioria dos comportamentos
das pessoas é aprendida por condicio­
namento operante. A birra de uma crian­
A aprendizagem por condicionamento clássico envolve um tipo de ça, por exemplo, é um comportamento
comportamento determinado, que é sempre provocado por um estímulo aprendido. Se a criança chora e
também determinado. Ela envolve uma reação do organismo ao meio e esperneia e a mãe (ou outro adulto) lhe
não uma ação do organismo sobre o meio. dá algo que ela deseja (como um doce,
Digamos que alguém dê um sopro em seus olhos. Você automatica­ um brinquedo, um refrigerante), o
mente irá piscar. Piscar é uma reação, uma resposta a um estímulo. Não comportamento da criança é reforçado e tende a se repetir em outras
se pode dizer que tenha sido uma resposta aprendida. No entanto, se ocasiões. Da mesma forma, uma criança pequena que sozinha leva o
toda vez que alguém sopra em seus olhos soa uma campainha, pode copo de água à boca, tende a repetir esse comportamento se for elogia­
chegar um momento em que você piscará ao ouvir tal campainha, mes­ da e beijada pela mãe. Mas, se a mãe a repreender todas as vezes (te­
26
mo na ausência do sopro. Dizemos, então, que você aprendeu a piscar merosa de que a água seja derramada), ela provavelmente deixará de
quando ouve determinado som. 27
ter esse comportamento.
Pesquisando a criança: condicionamento e Como explicar o medo de tanta coisa que muitas crianças mais ve­
lhas e até mesmo adultos sentem? Watson afirma que medo de cachor­
modelagem do comportamento ro, de escuridão, de insetos, e outros tipos de medo, é um sentimento
aprendido através de condicionamento. Ele resolveu verificar se era
A idéia de que os comportamentos e as habilidades do indivíduo possível produzir, em laboratório, uma reação de medo.
são sempre aprendidos a partir da influência do ambiente serviu de base O sujeito da experiência foi uma criança de 1 1 meses que original­
para pesquisas psicológicas que tinham como objetivo estabelecer um mente não demonstrava medo a animais peludos, como o coelho e o
método que permitisse prever e controlar cientificamente o comporta­ rato branco. Quando, no laboratório, era apresentado à criança um rato
mento humano ou animal. branco e ela o tocava, um ruído forte - de uma barra de aço golpeada
Para que você saiba um pouco sobre as pesquisas que auxiliaram a com um martelo - era produzido. A criança manifestava então reações
produção de conhecimentos relativos a como os comportamentos são de medo: estremecia e começava a chorar.
aprendidos, destacaremos aqui as pesquisas mais conhecidas de Watson Após várias repetições desse procedimento, a criança passou a
e Skinner. apresentar reações de medo diante do rato branco quando este lhe era
apresentado sozinho (sem o ruído). Watson verificou, ainda, que tal rea­
ção estendia-se a outros animais ou objetos que lembravam o rato bran­
A aprendizagem de comportamentos emocionais: uma co: um coelho, um cão, um casaco de peles ou um chumaço de algodão.
pesquisa de Watson Você pode reconhecer nessa experiência uma situação experimen­
tal de aprendizagem por condicion'amento clássico. Um estímulo que
Interessado em saber como as crianças aprendiam comportamen­ originalmente não provocava a resposta de medo (o rato branco) foi
. tos emocionais, Watson realizou uma pesquisa com crianças de 4 meses associado a outro que naturalmente a provocava (um ruído forte), tor­
a 1 ano de idade que haviam sido criadas em hospitais e nunca tinham nando-se, assim, um estímulo condicionado. A reação de medo a ani­
visto nenhum dos animais ou objetos utilizados no experimento. mais peludos foi, portanto, aprendida pela criança.
Vários animais foram apresentados às crianças no laboratório e em Com esse experimento, Watson procurava comprovar a sua tese de
um jardim zoológico. Suas reações eram todas anotadas pelo pesquisa­ que a maioria das reações emocionais das pessoas é aprendida a partir da
dor. O resultado dessas situações foi sempre o mesmo: não se verificou influência do ambiente. Procurava também explicar "como as pessoas
nenhuma manifestação de medo nas crianças. aprendem'', explicitando os princípios do condicionamento clássico.

Modelagem do comportamento: as pesquisas de Skinner

Skinner, por sua vez, interessou-se fundamentalmente pela apren­


dizagem por condicionamento operante, realizando pesquisas inicial­

,
mente com ratos, depois com pombos e, por último, com pessoas.

. Yt.'. G
'. �' '.,� : ..r- __/,,,.- ·-
.
Para estudar o problema da programação do reforço no condiciona­
mento operante, Skinner utilizava em suas pesquisas com ratos uma
caixa em cujo interior havia
um dispositivo (uma pequena
.. . " ' - -� · ..'
. · . . '11' ", ' ·�1 ;·
y,_
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.. ,; ( ',f'' \; ', . ''�f " '' ,;� ,-�
barra de metal) que, quando
acionado, liberava água ou
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.a
As crianças, a
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.....�R'!: .:i ��/


princípio. não comida. Essas caixas, com Caixa de Ski1111ei:
têm medo dos r. . isolamento contra ruídos e
animais.
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.
i ' .ífi?...
.
.
....
·
· it�i
' · · · .
controle rigoroso de tempera­
tura e iluminação (para evitar
. •
l;. & ,
Watson já havia verificado que situações
(\ como exposição a um que sons, a luz ou o calor in­
ruído forte, perda do equilíbrio ou sensação de dor provocavam rea­ terferissem em seus experi­
ções de medo nas crianças. Para ele, essas seriam as situações originais mentos), ficaram conhecidas
28 29
que suscitariam medo. como "caixas de Skinner".
Os experimentos consistiam em programar de modos diferentes a
liberação de reforçadores e estudar como cada programação afetava o Desenvolvimento, aprendizagem e educação:
comportamento do animal (qual era mais eficiente para levar à aprendi­ a influência do comportamentalismo na escola
zagem de um comportamento novo; qual era mais adequado para man­
ter esse comportamento por mais tempo; qual representava a melhor A ênfase dada pelos comportamentalistas à questão da aprendiza­
forma de extinguir um dado comportamento, etc.). gem é resultado do pressuposto de que o ambiente e a exp�riência são
Uma das formas utilizadas, para obter a aprendizagem de um novo determinantes do comportamento. Os processos e fatores mtemos ao
comportamento (no caso, pressionar a barra de metal), era colocar o indivíduo não são levados em conta, e o próprio desenvolvimento é
rato na caixa de Skinner após ter sido privado de água por certo tempo. explicado como decorrente da aprendizagem.
Supunha-se que a privação faria da água um excelente reforçador, já Melhor dizendo, para os comportamentalistas, desenvolvimento e
que obtê-la resultaria para o rato na satisfação de uma necessidade. aprendizagem são processos coincidentes. Aquilo que chama?1os de
Adotava-se, então, o seguinte procedimento: inicialmente, toda desenvolvimento nada mais é do que o resultado das aprendizagens
vez que o rato se aproximava da barra de metal, o pesquisador liberava­ acumuladas no decorrer da vida do indivíduo. Por isso, os dois proces­
lhe, por meio de um dispositivo, um pouco de água. Após determinado sos não se distinguem.
tempo, estando o rato próximo à barra, a água só era liberada se ele a A · idéia de que os comportamentos humanos são aprendidos em
tocasse com o focinho ou a pata. Em seguida, reforçava-se (pela libera­ decorrência de contingências ambientais e a noção de modelagem do
ção da água) apenas o comportamento de tocar a barra com a pata e, comportamento têm influenciado as práticas educativas. De acordo
depois, o de pressioná-Ia para baixo. Após várias sessões, verificava-se com Sk.inner, ensinar é planejar/organizar essas contingências de modo
que o rato tinha aprendido a pressionar a barra de metal para obter água. a tomar mais eficiente a aprendizagem de determinados conteúdos e
Esse procedimento é conhecido como modelagem do comporta­ habilidades. A utilização de reforçadores e a organização da aprendiza­
mento. A modelagem é obtida proporcionando-se reforçadores após gem por pequenos passos são princípios decorrentes dessa abordage�.
respostas que gradativamente se aproximam da resposta que se deseja Uma das marcas deixadas pelo comportamentahsmo _ na educaçao
obter do animal (no caso, a pressão na barra). escolar foi a valorização do planejamento do ensino, tendo chamado a
Tal método envolve os princípios do condicionamento operante (o atenção para a necessidade de se definirem com clareza e operacional­
comportamento emitido pelo animal, se reforçado, tende a se repetir) e mente os objetivos que se pretende atingir, para a organização das ��­
tem sido utilizado pelos comportamentalistas em uma série de situa­ qüências de atividades e para a definição dos reforçadores a serem ut1h­
ções, tanto na prática terapêutica clínica quanto no campo do ensino. zados (elogios, notas, pontos positivos, prêmios, etc.).
O que há em comum nos experimentos de Watson e Skinner é a O próprio Skinner interessou-se pelo processo de ensino-aprendi­
tentativa de controlar o comportamento pela manipulação de elementos zagem (reveja o boxe 'Quem foi Skinner?'). Nas suas "máquinas de
do ambiente que precedem (os estímulos) ou sucedem (os reforçadores) ensinar", o aluno é colocado diante de um painel onde aparece uma
ao comportamento. Além disso, os experimentos de um e de outro vi­ questão relativa a algo que ele já conhece e, ao mesmo tempo, uma nov�
sam conhecer os princípios pelos quais o comportamento humano é informação concernente ao mesmo tema. O aluno deve responder a
aprendido durante a vida. questão apresentada e, se acertar, a máquina passará automaticam�nte


Assim, os princípios descobertos ou sistematizados mediante si­
tuações experimentalmente controladas são os mesmos que explicam para a questão seguinte, que será referente à informação dada imediata­
os comportamentos aprendidos em situações cotidianas. Conforme a mente antes. Se não acertar, não poderá prosseguir, devendo retomar a
perspectiva comportamentalista, pode-se dizer que pais e educadores, algum passo anterior. .--:"
por exemplo, modelam o comportamento da criança por meio de proce­ Por meio desse procedimento, organiza-se a aprendizagem d
.

dimentos que·correspondem ao condicionamento operante. criança "passo a passo", em ordem crescente de dificuldade, seguindo
os princípios da modelagem do comportamento, e cada resposta certa
da criança constitui um reforço para a aprendizagem.
A chamada "instrução programada" derivou das máquinas de
Skinner. As questões apresentadas às crianças são impressas e as res­
postas corretas aparecem em outra página, em um gabarito. As ques�ões
são intercaladas por pequenos textos informativos sobre os quais a .
criança deverá responder no passo seguinte. De acordo com o compor­
tamentalismo, esse procedimento permite que o ensino tenha uma pro­
30 gressão gradual, que respeita o ritmo de cada aluno e toma o processo
31
Fonte: Nossm crianças. Abril Cultural, 1 970. v. 5. de ensino-aprendizagem mais eficiente.
Em seguida, analisem o material, procurando identificar os pressu­
Sugestão de atividades postos e princípios do comportamentalismo nele presentes. Após
comparação e discussão das análises feitas pela classe, cada aluno
deverá escrever um pequeno texto sobre a instrução programada
como alternativa metodológica, destacando, de maneira fundamenta­
Organizando as informações do texto da, seus aspectos positivos e negativos.

1. Segundo o texto, defina: 2. A seguir você tem reproduzido o 'Módulo instrucional 1 de um pro­
'

jeto de ensino de Didática de Ciências para o curso de formação de


• estímulo; professores desenvolvido na década de 70 pelas professoras Wanda
• resposta; Mafra e Vera Joullié, no Instituto de Educação do Rio de Janeiro.
• condicionamento clássico; Leia o módulo e resolva os exercícios. Observe atentamente as ins­
• condicionamento operante. truções, os objetivos, os fluxogramas das atividades, os textos e exer­
cícios propostos.
2. Elabore um texto sucinto sobre as diferenças e semelhanças existen­ Em seguida, analise-o, procurando identificar os pressupostos e prin­
tes entre as abordagens inatista-maturacionista e comportamentalis­ cípios do comportamentalismo nele presentes.
ta. Depois, troque seu texto com um colega e, juntos, discutam sobre Compare e discuta a sua análise com a análise feita pelos colegas e
essas abordagens. escreva um pequeno texto sobre a instrução programada como alter­
nativa metodológica, destacando, de maneira fundamentada, aspec­
tos positivos e negativos desse procedimento.
Exercitando a análise
Módulo lnstrucional 1
1. A classe, orientada pela professora, deverá fazer um levantamento de
materiais de ensino organizados segundo os princípios da instrução A criança, a ciência, a tecnologia
programada. Há vários projetos desenvolvidos nessa linha, tanto
para a instrução das crianças nas séries iniciais quanto para a instru­ Introdução
ção de professores em formação. Sugerimos alguns títulos.
Este é o módulo instrucional 1 , de Didática de Ciências, isto é, um
JouLLIÉ, V.,MAFRA, W. Didática de Ciências através de módulos esquema de trabalho que lhe proporcionará o domínio de vários conhe­
instrucionais. 2� ed. Petrópolis: Vozes, 1980. cimentos com relação ao assunto aqui tratado.
PoPHAM, W. J., BAKER, E. L. Como estabelecer metas de ensino. Porto Este módulo apresenta o conteúdo "A Criança, a Ciência e a
Alegre: Globo. Tecnologia", em sua parte fundamental. Ele lhe oferecerá oportunida­
____ . Sistematização do ensino. Porto Alegre: Globo, 1 976. des de aprendizagem dos seguintes aspectos:
____ . Como ampliar as dimensões dos objetivos de ensino. Por­ a) curiosidade científica natural da criança;
to Alegre: Globo, I 976. b) base de experiências que precede o conhecimento científico;
____ . Como planejar a seqüência de ensino. Porto Alegre: Glo­ c) ciência e tecnologia.
bo, 1976.
____ . Táticas de ensino em sala de aula. Porto Alegre: Globo. Os referidos aspectos são importantes em sua formação profissio­
____ . Como avaliar o ensino. Porto Alegre: Globo. nal porque se constituem em embasamento para a compreensão das rea­
ções e interesses infantis em relação ao estudo de Ciências nas séries
iniciais do 1? Grau.
O material conseguido deve ser distribuído à classe para um trabalho Sem conhecê-los, você não poderá planejar conscientemente suas
de análise, feito em grupos. Cada grupo deve realizar as propostas de atividades didáticas. Este é o objetivo final deste módulo e, ao concluí­
auto-instrução apresentadas. Observem atentamente as instruções, os lo, você terá que demonstrar sua competência. Para que o objetivo
objetivos, os fluxogramas das atividades, os textos e os exercícios final seja alcançado você terá que atingir os objetivos intermediários.
32 propostos. Todos eles são importantes para que você trabalhe gradativamente e
com segurança.
A "Visão geral", que vem a seguir, lhe dará uma idéia objetiva do Objetivo 1, Módulo 1
trabalho a ser realizado.
Atenção: Se você tiver acertado a questão I da pré-avaliação, está
dispensado deste objetivo. Siga para o objetivo 2, na página 37. Caso
Visão geral do módulo instrucional 1 contrário, siga o fluxograma abaixo.
Fluxograma das atividades
Objetivos
Atividades Avaliação
intermediários

1. Conceituar Ciência e 1. Procure o significado Resolva o exercício


Tecnologia, estabe­ de Ciência e Tecno­ n? 1 , do Módulo 1 . 1.
lecendo sua interli­ logia em BUARQUE Leia o obj etivo intermediário n? 1 ,
gação. DE HOLLANDA FER­ ao final da página.
REIRA, Aurélio, No­
vo Dicionário Auré­ 2.
lio, Editora Nova Procure o significado de Ciênci a e Tecnologia em
Fronteira, RJ, 1975. BUARQUE DE HOLLANDA FERREIRA, Aurélio.
2. Estude o texto n? 1: Novo Dicionário Aurélio. Editora Nova Fronteira, Rio
"Ciência e Tecnolo­ de J aneiro, 1975.
gia" ou discuta com
um colega sobre Ciên­ 3.
cia e Tecnologia: con­ Discuta c o m uma colega
ceitos, diferenças, in­ Estude o texto n? l : sobre Ciência e Tecnologia:
terligação. Ciência e Tecnologia.
Ou
conceitos, diferenças,
interligações.

2. Distinguir a curiosi­ 1. Estude o texto n? 2: Resolva o exercício 4.


dade científica das "Curiosidade infan­ n? 2, do Módulo 1. Resolva o exercício l ,
crianças de sua cu­ til" ou analise a ficha do Módulo 1.
riosidade geral. de consulta n? 1.
Consulte seu professor.

3. Constatar a existên­ 1. Estude o texto n? 3 : Resolva o exercício


cia de uma base de "Base de experiên­ n? 3, do Módulo 1.
experiências cientí­ cias científicas e tec­ NÃO
ficas e tecnológicas nológicas" ou entre­
que precede o estu­ viste seu professor:
do de Ciências. fenômenos científi­ SIM
cos e aspectos tecno­
lógicos que cei:cam a
criança: a influência
da Tecnologia na vida
atual. Objetivo intermediário n � 1: "Conceituar Ciência
e Tecnologia, estabelecendo sua interligação".
Texto n? 1, Módulo 1 2. Tecnologia cuida
Ciência e Tecnologia (a) da aplicabilidade dos fenômenos físicos, biológicos e químicos.
(b) dos estudos dos fenômenos físicos, biológicos e químicos.
Já não se pode viver sem Ciência. Dia a dia, ela progride e se expande, (c) da evolução do homem através dos tempos.
ampliando produções, criando medicamentos, processando dados, (d) dos principais fenômenos físicos.
palmilhando o espaço, aperfeiçoando a comunicação, estudando o cére­
bro humano, extraindo e beneficiando os recursos naturais, planejan­ 3. A Tecnologia é essencialmente utilitária porque
do... prevendo... pesquisando... (a) depende do resultado das pesquisas científicas.
Cada vez mais a sociedade necessita de cientistas, e o homem, de (b) estimula a pesquisa dos fenômenos científicos.
conhecimentos científicos para progredir e manter-se vivo. (c) completa o estudo dos fenômenos científicos.
A ciência estuda os mais diferentes fenômenos, sejam de natureza (d) aplica os resultados das pesquisas científicas.
física, sejam de natureza química, sejam de natureza biológica. Ela busca .
o conhecimento puro, através de pesquisas, experiências, observações. Objetivo 2, Módulo 1
Por outro lado, a Tecnologia aplica os fenômenos científicos, colo­
ca-os em prática, para uso humano. Ela é essencialmente utilitária, Atenção: Se você tiver acertado a questão II da pré-avaliação, está dis­
como o provam o ferro a carvão evoluindo para o ferro elétrico, a ilumi­ pensado deste objetivo. Siga para o objetivo 3, na página 40. Caso con­
nação de velas evoluindo para a iluminação elétrica, a comunicação à trário, siga o fluxograma abaixo.
base de sinais evoluindo para os satélites retransmissores, a cura pelo
uso de ervas evoluindo para os mais sofisticados produtos farmacêuti­ Fluxograma das atividades
cos, o transporte animal evoluindo para as naves espaciais. Assim sen­
do, a Tecnologia progride paralelamente às novas descobertas da Ciên­
cia, oferecendo mesmo, aos estudiosos, recursos para aperfeiçoar e am­
pliar as verdades científicas.
l.
Estamos em plena era tecnológica. Atualmente toda a vida social
depende de uma tecnologia que nasce da Ciência. Leia o objetivo intermediário n? 2, ao final da página.

As oportunidades do futuro estão reservadas às pessoas que desen­


volverem uma atitude científica. Prepare-se. 2.
Estude o texto n? 2: Analise a ficha
Texto elaborado por Curiosidade infantil.
ou
de consulta n? 1.
Edith Costa
Marília Lessa 3.
Vera Joullié
Resolva o exercício n? 2, do Módulo 2.
Wanda Mafra
4.
Exercício n? 1, Módulo 1 fo�


Coo,ulto reu pro

Isto é uma avaliação. Você deverá realizar o exercício proposto


e, a seguir; verificar suas respostas no gabarito, ao final deste
módulo. O desempenho desejado é o acerto de todas as questões.
Boa sorte!

Marque o que melhor completa cada afirmação: SIM

1. Ciência cuida
(a) da aplicabilidade dos fenômenos físicos, biológicos e químicos.
(b) do estudo dos fenômenos físicos, biológicos e químicos. Objetivo intermediário n '.'2: "Distinguir a curiosidade
(e) da evolução do homem através dos tempos.
científica das crianças de sua curiosidade geral".
(d) dos principais fenômenos físicos.
Texto n? 2, Módulo 1
PERGUNTAS RESPOSTAS EXEMPLOS
Curiosidade infantil De sentido limitado Imediata • Quando foi que o ho-
mem ch egou à lua?
A criança, desde cedo, manifesta intensa curiosidade por tudo que vê, • Por que o homem não
ouve, sente e pensa. É a fase geralmente conhecida como "idade do voa?
POR QUÊ?". As inúmeras perguntas que as crianças fazem incessante­
mente refletem uma grande necessida�e de explorar, conhecer, entender De sentido amplo Através do desenvolvi-
mento de uma série de
• Como é que o peixe
não se afoga?
a si própria e ao mundo que a cerca. E o caso de perguntas como: ativ idades. • Por que existem fo-
- Por que a gente tem que dizer "obrigado" quando ganha alguma lhas v ermelhas?
coisa?
- Por que eu não posso ir à escola sem uniforme?
- Por que o papai vai trabalhar todos os dias? Exercício n? 2, Módulo 1
Grande parte das perguntas das crianças, no entanto, é de natureza Isto é uma avaliação. Você deverá realizar o exercício proposto
científica. Através delas, nota-se que os interesses são muitos e diversi­ e, a seguil; verificar suas respostas no gabarito, ao final deste
ficados. Elas demonstram isto quando perguntam: módulo. O desempenho desejado é o acerto de todas as questões.
- O que é que segura a lua para ela não cair do céu? Boa sorte!
- Por que é que eu tenho que tomar vacina? 1. Marque apenas as afirmações corretas:
- Por que é que a mamãe rega as plantas todo dia? (a) A curiosidade da criança se manifesta a partir de seu ingresso na
- De onde vem a água da chuva? escola.
Podemos assim constatar que Ciências constitui uma disciplina (b) As perguntas infantis demonstram interesse da criança por si pró-
automotivada. O próprio conteúdo do estudo responde às indagações pria e pelo mundo que a cerca. .
infantis. (c) Dentre as inúmeras perguntas infantis, grande parte reflete cuno­
É imprescindível que o professor aproveite esta vontade de saber. sidade eminentemente científica.
As perguntas, porém, devem ser selecionadas: umas respondidas de (d) A curiosidade científica infantil se limita aos fenômenos da natureza.
imediato - aquelas que apresentam sentido limitado; outras - aquelas 2. Marque o que melhor completa a afirmação:
que oportunizam um estudo mais profundo, seja por se incluírem na Ciências é uma disciplina automotivada porque:
programação do professor, seja por se ligarem à realidade de vida dos (a) desperta a curiosidade infantil.
alunos - deverão ser respondidas através do desenvolvimento de ativi­ (b) aumenta a curiosidade infantil.
dades variadas. (c) opõe-se à curiosidade infantil.
(d) responde à curiosidade infantil.
Ficha de consulta n? 1, Módulo 1
3. Coloque C ou G conforme as perguntas reflitam curiosidade científi­
Curiosidade infantil ca ou geral da criança.
( ) Por que você está de vestido novo?
CARACTERÍSTICAS DA ( ) Por que a água do mar é salgada?
CONSEQÜÊNCIA
CRIANÇA DE 6 A 12 ANOS
( ) Afinal, de onde vêm os bebês?
• Necessidade de conhecer a si mesma • Curiosidade intensa e extensa. ( ) Para que as pessoas pintam o cabelo?
Necessidade de explorar, conhecer G rande incidência de perguntas.

e entender o mundo que a cerca.



( ) Por que eu tenho que lavar as mãos tantas vezes?
Fase do "por quê".

( ) Quando é que começam as férias?
CURIOSIDADE GERAL CURIOSIDADE CIENTÍFICA 4. Faça a correspondência:
• Por que tenho que agradecer quan- • a
O que é que segura lua no céu pra (a) perguntas de resposta imediata
do ganho um presente? ela não cair? (b) perguntas que favorecem estudos mais profundos
Por que o papai trabalha todo dia? Por que a mamãe rega as plantas
• •

todo dia?
( ) quantas patas tem a mosca?
Por que eu tenho que tomar vacina?

Por que não posso ir à escola sem


( ) o que é esturjão?
·.· 3a:· ( ) por que as folhas são verdes?

uniforme?
( ) é verdade que a baleia é mamífero?
Objetivo n? 3, Módulo 1 mentação, mas também através de todas as aplicações tecnológicas que
envolvem a vida atual: luz elétrica, elevador, transportes, materiais uti­
Atenção: Se você tiver acertado as questões III e IV da pré-avalia­
lizados em casa e na escola, brinquedos os mais diversos, medicamen­
ção, está dispensado deste objetivo. Consulte seu professor. Caso con­
tos, geladeira, liqüidificador...
trário, siga o fluxograma abaixo.
Disto resulta uma soma de madurezas que se constitui em rica base
de experiências precedendo o conhecimento científico que as explica e
Fluxograma das atividades
que somente o estudo trará.

Isto se caracteriza quando a criança diz:

1.
-Trago o meu suco na garrafa térmica porque ele ficabem geladinho.
-Mamãe, só vou naquele dentista que tem motor ajato, porque não dói.
Leia o objetivo intermediário n? 3, ao final da página.
- Bota uma lâmpada de 1 00 velas no meu quarto pra ele ficar mais
claro.
2.
- Meu carrinho não anda mais porque a pilha gastou.
Entreviste seu professor:
Estude o texto n? 3: fenômenos científicos e aspectos
Tecnologia e Ciência, nas séries iniciais do 1? Grau, se forjam no
Base de experiências OU tecnológicos que cercam ambiente em que a criança vive, em suas condições de percepção, em
científicas e tecnológicas. a criança; a influência seu interesse próximo e imediato.
da tecnologia na vida atual. A escola deve aproveitar esta curiosidade, bem como aquela soma
anterior de vivências, a prontidão para o estudo e a compreensão da
3. Ciência e da Tecnologia em seus estágios iniciais.

Resolva o exercício 3, do Módulo 1 .


Exercício n? 3, Módulo 1
4.
isto é uma avaliação. Você deverá realizar o exercício proposto
rof�
1
eº"'"'" "" p e, a seguir, verificar suas respostas no gabarito, ao final deste
módulo. o desempenho desejado é o acerto de todas as questões.


Boa sorte!
1. Marque o que melhor completa a afirmação:

SIM A criança, ao entrar na escola, já apresenta uma base de experiên-


cias científicas e tecnológicas. Isto acontece porque:

(a) as crianças possuem curiosidade científica.


(b) os interesses infantis são muitos e diversificados.
(c) desde que nasce, a criança está em contato com Ciências e Tecno­
Objetivo intermediário n !'3: "Constatar a existência de logia.
uma base de experiências científicas e tecnológicas que (d) toda a vida social depende, atualmente, da Ciência e da Tecnologia.
precede o estudo de Ciências".
2. Marque as afirmações que refletem a base de experiências científicas
e tecnológicas que precede o estudo de Ciências:
Texto n? 3, Módulo 1
(a) Bota a roupa no sol que ela seca depressa.
(b) Estou cansado de tanto correr!
Base de expedências científicas e tecnológicas
(c) Mamãe, bate as claras na batedeira que é mais rápido e você não
É importante reconhecer que, pelas coisas que dizem, as crianças se cansa.
demonstram muito do que percebem, antes mesmo de estudar Ciências. (d) Vou abrir a gaiola pro passarinho ficar livre.
(e) Papai, me compra uma bicicleta de corrida?
40 Basta lembrar que elas "vivem" Ciências vinte e quatro horas por dia,
não apenas nos hábitos higiênicos, na preservação da saúde, na ali- (f) Não preciso dar corda no meu relógio porque ele é automático.
Gabarito dos exercícios, Módulo 1

Exercício n� 1
Capítulo 4
1-b
2-a
3-d

Exercício n �2

1- b, c
2-
3-
d
(G), (C), (C), (G), (C), (G)
A abordagem piagetiana
4- (b), (a), (b), (b)

Exercício n �3
"Papai, por favor, corte este pinheiro - ele faz o vento. Depois que
1-C você cortar ele, o tempo vaificar bom e a mamãe me leva para um passeio. "
2 - a, c, f.
"Mamãe, quem nasceu primeiro, você ou eu ? "

(Joullié, V. & Mafra, W. Didática de Ciências através de módulos (Helen Bee, A criança em desenvolvimell/o.)
instrucionais. 2� ed. Petrópolis: Vozes, 1980.)

Ouvir crianças pequenas dizerem coisas como essas do trecho trans­


Trabalho de campo crito acima normalmente nos desconcerta, ao mesmo tempo que nos en­
canta e diverte. Nossa atenção se volta então para o modo peculiar que a
1. Retome os dados das entrevistas com pais e professores realizadas
criança tem de pensar sobre as coisas e de estabelecer relações entre elas.
após o estudo do capítulo anterior. Destaque, agora, nas respostas
As peculiaridades do pensamento e da lógica das crianças desper­
fornecidas por pais e professores, os aspectos que as associam a uma
taram o interesse de Jean Piaget, que se preocupou principalmente com
visão comportamentalista do processo de desenvolvimento e apren­
a questão de como o ser humano elabora seus conhecimentos sobre a
dizagem da criança.
realidade, chegando a construir, no decorrer de sua história, sistemas
científicos complexos e com alto nível de abstração. Ele acreditava que
muito da resposta a essa indagação poderia ser encontrado no estudo do
Sugestão de leituras
desenvolvimento do pensamento da criança.
NERI, A. L. O modelo comportamental aplicado ao ensino. ln: PENTEA­
DO, N. M. A. (org.). Psicologia e ensino. São Paulo: Papelivros, Quem foi Piaget?
1980.
Jean Piaget nasceu em 1896, em Neuchâtel, na Suíça, e fale­
SKINNER, B. F. Sobre o behaviorismo. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1982.
ceu em 1980, aos 84 anos de idade.
Desde menino Piaget interessoucse por questões científicas,
estudando moluscos, pássaros, conchas marinhas e mecânica.
Aos 10 anos, publicou as observações que fez sobre um pardal
parcialmente albino e, aos 11 anos, começou a trabalhar como
assistente do diretor do Museu de História Natural de sua cidade.
Concluiu seus estudos em Ciências Naturais em 1915 e, em
1918, doutorou-se nessa mesma área.
Interessado também por filosofia, encontrou na leitura da
obra de Bergson, A evolução criadora, elementos que o ajudaram
a formular a questão à qual se dedicaria por toda a vida: explicar
a fonna pela qual o homem atinge o conhecimento lógico-abstrato
Na década de 70, já trabalhando exclusivamente nas pesqui­
que o distingue das outras espécies animais. sas do Centro de Epistemologia, Piaget dedicou-se à investigação
Embora se tratasse de uma questão tipicamente filosófica, a dos mecanismos de transição que impulsionam e explicam a evo­
Piaget interessava abordá-la cientificamente. Ao longo de seu traba­ lução do desenvolvimento cognitivo.
lho, assumiu, então, o desafio de construir uma teoria do conheci­ Sua vasta produção é um marco de enorme importância para
mento baseada na biologia e em que as especulaçõesfilosóficas esti­ a psicologia e para os estudos do homem no século XX.
vessem ancoradas na pesquisa empírica. O elo que Piaget encontrou
entre a filosofia e a biologiafoi a psicologia do desenvolvimento. Procurando compreender como o homem elabora o conhecimento,
A elaboração da teoria explicativa da gêne­ Piaget desenvolveu o que chamou de psicologia genética. A palavra gené­
se do conhecimento no homem levou Piaget a tica, que ele próprio aplicou à sua psicologia, refere-se à busca das origens
formular propostas teóricas e metodológicas e dos processos de fonnação do pensamento e do conhecimento.
inovadoras quanto à natureza dos processos de A infância é considerada como um período particular do processo
desenvolvimento da criança e que contrariavam de formação do pensamento, que só se completa na idade adulta. É im­
as teses do inatismo-maturacionismo e do com­ portante, então, não confundir as contribuições dadas por Piaget à com­
portamentalismo. preensão do desenvolvimento cognitivo da criança com uma "psicolo­
O fundamento básico de sua concepção do gia da criança". Ele não se dedicou a estudar o pensamento infantil
funcionamento intelectual e do desenvolvimento motivado por um interesse pela infância em si e também não elaborou
cognitivo é o de que as relações entre o organismo sua psicologia genética movido pelo interesse por questões propria­
e o meio são relações de troca, pelas quais o orga­ mente psicológicas. O centro de seu trabalho e de todos os seus estudos
nismo adapta-se ao meio e, ao mesmo tempo, o é o desenvolvimento do conhecimento.
assimila, de acordo com suas estruturas, num pro­ A fonnação de Piaget em Ciências Naturais levou-o a buscar com­
cesso de equilibrações sucessivas. Determinar as preender o conhecimento com base na biologia. Em sua concepção,
contribuições das atividades do indivíduo e das conhecer é organizar, estruturar e explicar a realidade a partir daquilo
restrições do ambiente na aquisição do conheci­ que se vivencia nas experiências com os objetos do conhecimento.
mento foi o foco do seu trabalho experimental. No entanto, experiência não é a mesma coisa que conhecimento. Este
No período de 1921 a 1925, Piaget concentrou-se na coleta pressupõe a organização da experiência num sistema de relações. Por
de dados que permitissem esboçar os princípios e os fundamen­ exemplo, "a humanidade atravessou alguns milênios sem perceber a rela­
tos de sua teoria do conhecimento. Abordou temas gerais, como ção entre vida e calor do sol; conhecer algo a respeito do calor solar seria
a relação entre pensamento e linguagem (1923), o desenvolvi­ inserir o calor sentido na pele num sistema de relações que pennite
mento, na criança, do julgamento e do raciocínio ( 1 924), da re­ compreendê-lo como condição de existência da vida" (Chiarottino, 1 988).
presentação do mundo ( 1 926), da causalidade física ( 1927) e do
julgamento moral (1 927). Esses estudos foram retomados, revis­
tos e aprofundados ao longo das décadas seguintes. Conhecimento e adaptação: os processos de
No período de 1925 a 1931, com o nascimento de seus três
filhos, Piaget dedicou-se à observação meticulosa do desenvolvi­
assimilação e acomodação
mento dos bebês, elaborando análises sobre a construção do real
e o desenvolvimento da inteligência. Mas como se dá a inserção de um objeto de conhecimento num
Na década de 30, ajudado por seus colaboradores, concentrou sistema de relações? Segundo Piaget, isso ocorre fundamentalmente
a pesquisa na gênese das noções de quantidade, número, tempo, por meio da ação do indivíduo sobre o objeto. Ao agir sobre o meio, o
espaço, velocidade, movimento, mensuração, lógica e probabili­ indivíduo incorpora a si elementos que pertencem ao meio. Através des­
dade. Na década de 40, abordou o desenvolvimento da percepção. se processo de incorporação, chamado por Piaget de assimilação, as
A partir dos anos 50, Piaget voltou-se para a sistematização coisas e os fatos do meio são inseridos em um sistema de relações e
adquirem significação para o indivíduo.
teórica da epistemologia genética, deixando a seus colaboradores
Ao ler estas páginas, por exemplo, você está assimilando o que está
os estudos em psicologia. Em 1955 fundou o Centro Internacional
escrito (objeto de conhecimento), confonne vai estabelecendo relações
de Epistemologia Genética, onde reuniu cientistas de diferentes
com as idéias e os conhecimentos que já possui. As idéias e os conceitos
áreas (matemáticos, biólogos, psicólogos, lógicos) interessados
do texto são organizados e estruturados a partir do que você já conhece.
em pesquisar problemas epistemológicos.
Só assim o texto tem algum sentido para você.
Mas, ao mesmo tempo que as idéias e os conceitos do texto são das características que permitem chamá-la de pegar e que a diferenciam
incorporados ao sistema de idéias e conceitos que você possui, essas de outras ações, como puxar, balançar ou empurrar. O esquema de ação
idéias e conceitos já existentes são modificados por aquilo que você leu é, justamente, o que é generalizável em uma ação, o que permite
(assimilou). Esse processo de modificação que se opera nas estruturas reconhecê-la e diferenciá-la de outras ações, independentemente do
de pensamento do indivíduo é chamado por Piaget de acomodação. objeto a que se aplica.
Tal modo de conceber o funcionamento cognitivo é decorrente do É por meio dos es- :;
modelo biológico em que Piaget se baseou. Segundo esse modelo, a quemas de ação que a ã
inteligência é um caso particular de adaptação biológica. Um organis­ criança começa a co- �
mo adaptado ao meio é aquele que mantém um equilíbrio em suas tro­

nhecer a realidade, assi-
cas com o meio. Ou seja, é aquele que interage com o ambiente manten­ milando-a e atribuindo- i
lhe significações. Quan- ]
do um equilíbrio entre suas necessidades de sobrevivência e as dificul­
dades e restrições impostas pelo meio. Essa adaptação torna-se possível
do pega a mamadeira,
graças aos processos de assimilação e de acomodação (que, juntos,
ela a relaciona a seu es­
constituem o mecanismo adaptativo), comum a todos os seres vivos.
quema "pegar" e atribui-
Assim, a inteligência é assill}ilação por permitir ao indivíduo incor­
lhe o sentido de um obje­
porar os dados da experiência. E também acomodação, pois os novos
to "que se pega". Mas a
dados incorporados acabam por produzir modificações no funciona­
criança também aplica à
mento cognitivo da pessoa. Logo, "a adaptação intelectual, como qual­
mamadeira o esquema
quer adaptação, é exatamente o equilíbrio progressivo entre o mecanis­
mo assimilador e a acomodação complementar" (Azenha, 1994: 26). "sugar". Essas assimila­
Segundo Piaget, Ao mesmo tempo que, por meio do processo de assimilação/acomoda­ ções provocam transfor­
os reflexos, como ção, o indivíduo adapta-se ao meio (elaborando seu conhecimento sobre mações nos esquemas
o de preensão,
ele), o seu próprio funcionamento cognitivo vai se estruturando, se organi­ "pegar" e "sugar", à medida que eles são acomodados ao objeto mamadei­
possibilitam ao A organização do
bebê lidar com zando. Uma das primeiras formas de organização cognitiva é o esquema. ra. Os esquemas "pegar" e "sugar" acabam então por se coordenar.
real, por meio da
elementos do Vê-se que, mediante sucessivas assimilações e acomodações, o ação, marca o
ambiente, bebê vai conhecendo os objetos de seu mundo imediato. Eles são orga­ inicio do
assimilando-os. A noção de esquema nizados em objetos "para olhar", "para pegar", "para sugar", "para em­ desenvolvimento
cognitivo da
_ purrar", "para morder", "para olhar e pegar", "para pegar e sugar",
criança.
A criança, ao nascer, é dotada de reflexos que são "para pegar e morder", e assim por diante.
JM'.ZliB!�
reações automáticas desencadeadas por certos estímu­ A organização do real por meio da ação marca o início do desenvolvi­
los. Esses reflexos (como o de sucção e o de preensão) mento cognitivo da criança. De acordo com Piaget, os esquemas de ação
possibilitam ao bebê lidar com o ambiente. É através ampliam-se, coordenam-se entre si, diferenciam-se e acabam por se
deles que elementos do meio ambiente (como a chupeta, interiorizar, transformando-se em esquemas mentais e dando origem ao
o seio materno, a mamadeira, o patinho de borracha, pensamento. Esse desenvolvimento contínuo dos esquemas se dá no sen­
etc.) vão sendo assimilados pela criança. A assimilação, tido de uma adaptação cada vez mais complexa e diferenciada à realidade.
como vimos, provoca uma transformação dos reflexos,
que gradativamente vão se diferenciando e se tornando
mais complexos e flexíveis, deixando de ser simples res­ A noção de equilibração
postas estereotipadas a estímulos determinados. Esse
processo dá origem a esquemas de ação, tais como pe­
O processo de desenvolvimento depende, na perspectiva piage­
gar, puxar, sugar, empurrar, etc.
tiana, de fatores internos ligados à maturação, da experiência adquirida
Para entender o que é um esquema de ação, pense­
pela criança em seu contato com o ambiente e, principalmente, de um
mos no esquema de preensão. Um bebê pode pegar,
processo de auto-regulação que ele denomina equilibração.
por exemplo, um pequeno cubo de madeira, uma bola,
Para Piaget, a equilibração é uma propriedade intrínseca e consti­
a mamadeira ou o dedo de alguém. Relativamente a
tutiva da vida mental. Por meio dela é que se mantém um estado de
cada um desses objetos, a ação de pegar apresenta pe­
equilíbrio ou de adaptação em relação ao meio. Toda vez que, em nossa
quenas diferenças quanto aos movimentos que a criança realiza. No en­
relação com o meio, surgem conflitos, contradições ou outros tipos de
tanto, em todas essas situações a ação da criança apresenta determina-
dificuldade, nossa capacidade de auto-regulação ou equilibração entra
em ação, no sentido de superá-los. Quando, por exemplo, um bebê tenta anos de idade, aproximadamente, a criança passa do nível neonatal, mar­
pegar um objeto pendurado sobre o berço, o objeto pode oferecer algu­ cado pelo funcionamento dos reflexos inatos, para outro em que ela já é
ma resistência a seu esquema de pegar, que, em desequilíbrio, obriga-o capaz de uma organização perceptiva e motora dos fenômenos do meio.
a modificá-lo ou a coordená-lo com outro esquema, como o de puxar. De início, reflexos inatos respondem aos estímulos do meio. Luz,
Essa atividade da criança - a acomodação ou coordenação de seus sons, contrações faciais. A cabeça volta-se para a direção de onde vêm
esquemas de ação - é desencadeada graças à sua capacidade de auto­ os sons. Calor, frio, fome, cheiros, choros ... O corpo reflete o mundo e
regulação, com o objetivo de compensar a resistência oferecida pelo ainda não se diferencia dele.
objeto e alcançar um novo estado de equilíbrio. A criança age sobre o mundo. Ela repetidamente chupa o dedo,
Quando falamos em alcançar um novo estado de equilíbrio, quere­ suga a pontinha da manga da roupa: movimentos não intencionais, cen­
mos destacar que o processo de equilibração não consiste numa volta ao tralizados no seu próprio corpo, se repetem sempre. O reflexo inato de
estado anterior, mas leva a um estado superior em relação ao inicial. No sugar assimila, incorpora novos elementos do meio (o dedo, a roupa) e
caso de nosso exemplo, o fato de a criança não conseguir pegar o objeto ao mesmo tempo vai sendo transformado por eles (acomodação), pois
já indica que seus esquemas precisam ser aperfeiçoados. A reequilibra­ sugar o seio é diferente de chupar o dedo, que também é diferente de
ção, por meio da acomodação ou da coordenação de seus esquemas, sugar a própria roupa.
implica uma ultrapassagem da situação anterior, uma abertura para no­ "Para conhecer os objetos, o sujeito tem que agir sobre eles e, por
vas possibilidades de ação. conseguinte, transformá-los: tem que deslocá-los, agrupá-los, com­
biná-los, separá-los e juntá-los", afirma Piaget ( 1 983: 1 4). A consciên­
cia da criança sobre o meio ex-
A concepção sobre estágios de desenvolvimento terno se expande lentamente, 8

Poderíamos dizer, então, que o desenvolvimento, na concepção


·

piagetiana, é fundamentalmente um processo de equilibrações sucessi­


conforme suas ações se deslo-
cam de seu próprio corpo para
os obj etos. A mão agarra, ache- �
!i
vas que conduzem a maneiras de agir e de pensar cada vez mais comple­
ga o objeto ao corpo, à boca que
xas e elaboradas. Esse processo apresenta períodos ou estágios definidos,
experimenta, empurra-o para
caracterizados pelo surgimento de novas formas de organização mental.
longe de si. As pernas agitam-se
Os estágios se sucedem numa ordem fixa de desenvolvimento, sendo
em espemeios. Puxar, empur­
um estágio sempre integrado ao seguinte. Além disso, cada estágio se ca­
rar, contrair, distender, apanhar,
racteriza por uma maneira típica de agir e de pensar e constitui uma forma
largar, juntar, espalhar, apertar,
particular de equilíbrio em relação ao meio. A passagem de um estágio a
afrouxar, são ações que também
outro se dá através de uma equilibração cada vez mais completa. Ou seja,
se repetem. Os olhos acompa­
a criança passa de um estágio a outro de seu desenvolvimento cognitivo
quando seus modos de agir e pensar mostram-se insuficientes ou inade­ nham os movimentos.
quados para enfrentar os novos problemas que surgem em sua relação O centro não é mais o corpo da criança, já que por intermédio des­
com o meio. Essa insuficiência é compensada pela atividade da criança, sas ações a criança manipula os elementos do meio. As ações agora são A cria11ça repete
repetidas devido aos efeitos interessantes que produzem, analisa Piaget. seus aros, devido
que acaba por engendrar modos mais elaborados de ação e pensamento. a seus efeitos
O modelo de desenvolvimento cognitivo de Piaget destaca quatro Aos poucos, meios e fins vão sendo diferenciados e as ações começam illleres.rnntes,
períodos principais: o sensório-motor (do nascimento até aproximada­ a ganhar intencionalidade. A descoberta casual de que a argola agarrada que ga11ha111
mente os 2 anos de idade), o pré-operatório (dos 2 aos 7 anos), o operatório produz movimentos e sons num brinquedo suspenso acima do berço intencionalidade.

concreto (dos 7 aos 1 1 anos) e o operatório formal (dos 11 aos 15 anos). leva a criança a repetir o movimento. Ela age para atingir um propósito.
Os movimentos ficam mais complexos, mais amplos, como engatinhar,
pôr-se de pé, andar.
Nesse percurso o eu e o mundo tornam-se progressivamente dis­
Os estágios do desenvolvimento cognitivo
tintos. O indivíduo e os objetos diferenciam-se e organizam-se no pla­
no das ações exteriores, e a permanência dos objetos vai sendo
O período sensório-motor construída. O brinquedo, que ao ser retirado da criança deixava de
existir para ela, passa a ser procurado. A criança começa a perceber
· · 4a O desenvolvimento cognitivo se inicia a partir dos reflexos que gra­ que os objetos, as pessoas, continuam existindo mesmo quando estão 49
dualmente se transformam em esquemas de ação. Do nascimento até os 2 fora do seu campo de visão.
Formam-se as primeiras imagens mentais dos objetos ausentes do Como a noção de permanência dos objetos, que leva muito tempo
meio imediato. São elas que possibilitam o desenvolvimento da função para ser elaborada no nível sensório-motor, os processos de raciocínio
simbólica, mecanismo comum aos diferentes sistemas de representação lógico e os conceitos demoram também um longo tempo para se desen­
Uogo, imitação, imagens interiores, simbolização). Com o desenvolvi­ v�lver, a partir desses primeiros raciocínios (pré-lógicos) de que a
mento da função simbólica, a partir do segundo ano de vida, o eu e o cnança se toma capaz com a representação. Ao final do
mundo reorganizam-se num novo plano: o plano representativo. período pré­
A ctjança reproduz, ou imita, utilizando gestos ou onomatopéias, o O período das operações concretas operatório, o
pensamento da
comportamento e os sons de um modelo ausente, representando-o de
É . apenas ao final do período pré-operatório, após equilibrações
criança começa
alguma forma simbólica no jogo do faz-de-conta. Por meio de uma ima­ a assumir a
gem mental, um símbolo, começa a imaginar fatos, objetos, pessoas, �ucess1va�, que o pensamento da criança assume a forma de operações forma de
acontecimentos que ocorreram em outras ocasiões, procurando re­ mtelectua1s. As operações são ações mentais voltadas para a cons­ operações

lembrá-los. O espaço e o tempo se ampliam, à medida que o desenvol­ tatação e a explicação. A classificação e a seriação, por exemplo, são intelect1wis.

vimento da função simbólica a libera de agir somente em situações do ações mentais. Essas ações
meio imediato. Ela toma-se capaz de imaginar ações ou fatos sem são sempre reversíveis, ou
praticá-los efetivamente. seja, têm a propriedade de
voltar ao ponto de partida.
A criança toma-se capaz
O período pré-operatório de compreender o ponto de
vista de outra pessoa e de
Representando mentalmente o mundo externo e suas próprias conceitualizar algumas rela­
ações, a criança os ii:iterioriza. É nesse período que ela se toma capaz de ções. Portanto, é nessa fase
tratar os objetos como símbolos de outras coisas. O desenvolvimento da que são estabelecidas as bases
representação cria as condições para a aquisição da linguagem, pois a para o pensamento lógico,
capacidade de construir símbolos possibilita a aquisição dos significa­ próprio do período final do de­
dos sociais (das palavras) existentes no contexto em que ela vive. senvolvimento cognitivo.
Nesse momento, a criança deverá reconstruir no plano da repre­
sentação aquilo que já havia conquistado no plano da ação prática. MANDOU VÃR105 AUJN0S
Assim, a diferenciação entre o eu e o mundo, que já tinha se completa­ />D QUADQO-NEGRO PAQA
SOMAREM ' DOIS MAIS
do no plano da ação, deverá ser elaborada no plano da representação. 0015 IGUAL A QUATOO.

Centrada no seu próprio ponto de vista, a criança ainda não é capaz de


se colocar no lugar do outro nem de avaliar seu próprio pensamento.
Ela não considera mais de um aspecto de um problema ao mesmo tem­
po, fixando-se sempre em apenas um deles.
Ao repartir o refrigerante com o irmão, a criança só considera a
partilha justa se o líquido ficar em altura igual nos dois copos, mesmo
que um deles seja visivelmente mais estreito. Ela considera apenas uma
dimensão do problema (a altura do líquido no copo), a mais evidente em Fonte: Nossas criaflças. Abril Cultural, 1 970. v. 4.
termos perceptivos. Não é ainda capaz de raciocinar levando em conta
as relações entre as várias dimensões envolvidas (a largura e o formato A reversibilidade do pensamento possibilita à criança construir
do copo), e o tipo de percepção que tem dos objetos determina o tipo de noções de conservação de massa, volume, etc. O pensamento reversível
raciocínio que faz sobre eles. pode ser definido como a capacidade de levar em consideração uma
Nas explicações que dá, o seu ponto de vista prevalece sobre as série de operações que, revertidas, conduzem ao estado iniciaL É o que
relações lógicas. Ela diz coisas como "Ficou de noite porque o sol foi ocorre, por exemplo, com a noção de conservação de líquidos: uma
dormir", "Quem fez aquele rio foram os homens que moravam ali". criança, num nível operatório, é capaz de compreender que a quantida­
Ações humanas explicam os fenômenos naturais, elementos da nature­ de de refrigerante contida em um copo permanece a mesma quando
za praticam ações humanas, são dotados de intencionalidade e quali­ _ em outro mais alto e mais estreito, embora o nível do líquido
despejada
50 dades humanas. 51
se tome mais elevado. Essa capacidade está relacionada à possibilidade
de ela representar mentalmente a operação inversa - o líquido
retomando ao copo original - e, desse modo, compreender que a quan­ Pesquisando a criança: o método clínico
tidade se mantém invariável, a despeito das alterações perceptíveis. As­
sim, se for repartir o refrigerante com o irmão, despejando-o em dois Em 1 9 1 9, trabalhando com Simon na padronização dos testes de
copos de formatos diferentes, essa criança terá condições (diferente­ inteligência, Piaget voltou sua atenção para as respostas tidas como er­
mente de uma criança menor) de considerar as múltiplas dimensões en­ radas dadas pelas crianças que participavam dos testes. Começou a se
volvidas no problema, estabelecendo relações entre altura e largura do preocupar com quais seriam as razões das falhas das crianças em com­
copo e quantidade de líquido. preender determinadas coisas, com qual seria o tipo de raciocínio implí­
Assim, por meio das operações - inicialmente só aplicáveis a ob­ cito em suas respostas.
jetos concretos e presentes no ambiente - os conhecimentos cons­ Indagando-se sobre os processos de pensamento que estariam por
truídos anteriormente pela criança vão se transformando em conceitos. trás das respostas erradas, Piaget desenvolveu um "método de obser­
vação que consiste em deixar a criança falar, anotando-se a maneira
O período das operações formais pela qual ela desenvolve o seu pensamento. A novidade consiste em
deixar a criança falar, seguindo suas respostas: guiada por elas, a crian­
Apenas na adolescência é que o indivíduo se toma capaz de pensar ça é encorajada a falar cada vez mais livremente. Dessa forma, é pos­
abstratamente, refletindo sobre situações hipotéticas de maneira lógica. sível obter em cada domínio da inteligência um procedimento clínico
As operações mentais que aplicava só a objetos podem ser aplicadas, de exame que é análogo ao que os psiquiatras adotaram como meio
agora, também a hipóteses formuladas em palavras. para a elaboração do diagnóstico. É a resposta da criança que deter­
O pensamento sobre possibilidades, sobre acontecimentos futuros, mina parcialmente o próximo passo do experimentador" (Azenha,
sobre conceitos abstratos apresenta-se cada vez mais articulado. O adoles­ 1 994: 1 05).
cente não tem mais necessidade de estar diante dos objetos concretos ou de
Piaget chamou esse tipo de procedimento de método clínico. Em
operar sobre eles para relacioná-los. Ele transforma os dados da experiên­
algumas investigações, a criança era incentivada a agir sobre objetos e
cia em formulações organizadas e desenvolve conexões lógicas entre elas.
depois a falar sobre o que havia feito.
O adolescente toma-se, enfim, capaz de pensar sobre o seu próprio
Uma das situações mais famosas utilizadas por Piaget começava
pensamento, ficando cada vez mais consciente das operações mentais
com duas bolas iguais feitas com massa de modelar. Pedia-se à criança
que realiza ou que pode ou deve realizar diante dos mais variados pro­
que as segurasse e perguntava-se se havia ou não a mesma quantidade
blemas. Essa consciência a propósito do próprio pensamento "pode ser
presumida pelo seguinte tipo, muito citado, de perguntas de adolescen­ de massa nas duas bolas.
tes: 'Eu me surpreendi pensando acerca do meu futuro e então comecei Quando a criança respondia afirmativamente, mudava-se a forma
a pensar por que estava pensando no futuro, e aí comecei a pensar por de uma das bolas, passando-a para a forma de uma salsicha, por
que eu estava pensando sobre por que eu estava pensando no meu futu­ exemplo, e novamente se perguntava à criança se havia na salsicha a
ro"' (Evans, 1 980: 1 1 6). mesma quantidade de massa que na bola. Algumas crianças diziam
que sim, explicando que havia a mesma quantidade porque se se fi­
zesse de novo uma bola, esta seria igual à primeira. Outras, mais
Somente na novas, davam explicações como "esta tem mais porque é mais com­
adolescência nos
tornamos
prida", referindo-se à salsicha.
capa:es de Por meio de situações desse tipo, Piaget procurava compreender a
-,,:
pensar sobre o maneira de pensar da criança em diferentes idades. Para ele, não inte­
nosso próprio ressava se a criança acertava ou errava ao responder, mas sim a maneira
pensamellfo.
como pensava no problema proposto. Seu objetivo era apreender o tipo
de operação mental que a criança realizava (no caso desse exemplo, ele
investigava as noções de conservação e a reversibilidade do pensamen­
to da criança).
Assim, com base nas pesquisas realizadas através do método clíni­
co e também na observação direta de seus próprios filhos, especialmen­
te nos dezoito primeiros meses de vida, Piaget, auxiliado por inúmeros
52 colaboradores, foi gradativamente elaborando sua teoria sobre o desen­
53
volvimento cognitivo da criança.
Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a
influência da abordagem piagetiana na escola Sugestão de atividades
Vimos que, na concepção piagetiana, o desenvolvimento da crian­
ça é um processo que depende essencialmente da equilibração, que é a Organizando as informações do texto
capacidade natural de auto-regulação do indivíduo. As estruturas cog­
nitivas da criança são elaboradas e reelaboradas continuamente a partir 1. Abaixo estão relacionados os principais conceitos da teoria pia­
da sua ação (física ou mental) sobre o meio. getiana. Dê o significado de cada um deles.
De acordo com esse quadro teórico, a aprendizagem praticamente
• adaptação;
não interfere no curso do desenvolvimento. A ênfase nos processos
internos e na atividade construtiva da própria criança resulta em uma • assimilação;
concepção que considera a aprendizagem como dependente do pro­ • acomodação;
cesso de desenvolvimento. Ou seja, aquilo que a criança pode ou não • equilibração;
aprender é determinado pelo nível de desenvolvimento de suas estru­ • esquema;
turas cognitivas. estágio de desenvolvimento.
Segundo Piaget, tudo o que é transmitido à criança sem que seja
compatível com seu estágio de desenvolvimento cognitivo não é de 2. S intetize as principais idéias de Piaget acerca do processo de desen­
fato incorporado por ela. A criança pode imitar mecânica e externa­ volvimento.
mente o adulto, mas não compreende (e, portanto, não conhece) o que 3. Faça uma comparação, apontando as semelhanças e diferenças, entre
está fazendo. as maneiras como o desenvolvimento é visto pelas abordagens pia­
As formulações de Piaget têm tido grande influência sobre a práti­ getiana, inatista-maturacionista e comportamentalista. Compare sua
ca pedagógica, inclusive no Brasil. Ao destacarem o papel ativo da resposta com as de seus colegas, num debate que envolva a classe toda.
criança no processo de elaboração do conhecimento, têm sido responsá­
veis por idéias como: o papel fundamental da escola é dar à criança
Refletindo sobre as informações do texto
oportunidades de agir sobre os objetos de conhecimento; o professor
não deve ser aquele que transmite conhecimentos à criança, mas sim
Comente uma das afirmações abaixo:
um agente facilitador e desafiador de seus processos de elaboração; a
criança é quem constrói o seu próprio conhecimento. • "Pelo próprio fato de todo conhecimento ser, ao mesmo tempo,
acomodação ao objeto e assimilação do sujeito, o progresso da
inteligência (desenvolvimento psicológico) opera no duplo senti­
do da exteriorização e da interiorização, e seus dois pólos serão o
domínio da experiência física e a conscientização do próprio fun­
cionamento intelectual" (Piaget, A construção do real na criança).

• "Para conhecer os objetos, o sujeito tem que agir sobre eles e, por con­
seguinte, transformá-los: tem que deslocá-los, agrupá-los, combiná­
los, separá-los e juntá-los. Nesse sentido, o conhecimento não é nem
uma cópia interior dos objetos ou acontecimentos do real, nem o mero
reflexo desses objetos e acontecimentos que se imporiam ao sujeito.
Ele é uma compreensão do real, construída a partir de modos de ação
do sujeito sobre o meio, dependendo dos dois- sujeito e objeto - ao
mesmo tempo" (Piaget, A epistemologia genética).

• "Cinqüenta anos de experiência ensinaram-nos que não existem


conhecimentos resultantes de um simples registro de observações,
sem uma estruturação devida às atividades do indivíduo. Mas,
54 tampouco, existem estruturas cognitivas a priori ou inatas: só o 55
funcionamento da inteligência é hereditário, e só gera estruturas
mediante uma organização de ações sucessivas, exercidas sobre os
objetos" (Piaget. Apud: Piatelli-Palmarini, Teorias da linguagem,
teorias da aprendizagem).
Capítulo 5
Pesquisa de campo

Você já deve ter ouvido falar em construtivismo. Essa palavra, que


vem ganhando destaque entre os educadores brasileiros desde a década
de 70, origina-se na teoria piagetiana: A abordagem
" Uma concepção construtivista da inteligência, como acentua
Piaget, incluiria a descrição e a explicação de como se constroem as histórico-cultural
operações intelectuais e as estruturas da inteligência, que, mesmo
não determinadas por ocasião do nascimento, são gradativamente
elaboradas pela própria necessidade lógica " (Azenha, M. G.
O interesse em explicar como se formaram, ao longo da história do
Construtivismo: de Piaget a Emilia Ferreiro).
homem, as características tipicamente humanas de seu comportamento
Converse com alguns professores da 1 � à 4� série e da pré-escola. � como elas se desenvolvem em cada i ndivíduo constitui a base da abor­
Pergunte-lhes como definem o construtivismo e o que pensam de sua . · dagem histórico-cultural em psicologia, desenvolvida por um grupo de
relação com a educação. Anote suas respostas. psicólogos soviéticos liderado por L. S. Vygotsky.
Confronte as respostas dos professores com a definição acima. Ela­ O princípio orientador da abordagem de Vygotsky
bore, a partir desse confronto, três conclusões a respeito da relação en­ é a dimensão sócio-histórica do psiquismo. Segundo
tre as teorias psicológicas e a prática dos professores. esse princípio, tudo o que é especificamente huma­
no e distingue o homem de outras espécies origi­
Exercitando a análise na-se de sua vida em sociedade. Seus modos de
perceber, de representar, de explicar e de atuar
Retome os dados das entrevistas com pais e professores realizadas sobre o meio, seus sentimentos em relação ao
ao final do estudo do segundo capítulo. Destaque agora nas respostas mundo, ao outro e a si mesmo, enfim, seu fun­
dadas por pais e professores aspectos que as associam a uma visão pia­ cionamento psicológico, vão se constituindo
getiana de desenvolvimento. nas suas relações sociais. -.� .
A criança, analisam Vygotsky e seus cola-
:, · -

boradores, não nasce e m u m mundo "natural''. \ ·


Sugestão de leituras
Ela nasce em um mundo humano. Começa sua
AZENHA, M. G. Construtivismo: de Piaget a Emilia Ferreiro. São Paulo: vida em meio a objetos e fenômenos criados pe­
Ática, 1 994. las gerações que a precederam e vai se aproprian­
CASTRO, A. D. Piaget e a pré-escola. São Paulo: Pioneira, 1 986. do deles conforme se relaciona socialmente e parti­
EVANS, R. 1. Jean Piaget: o homem e suas idéias. Rio de Janeiro: Fo­ cipa das atividades e práticas culturais.
rense-Universitária, 1 980. Desde o nascimento, a criança está em constante
PlAGET, J., lNHELDER, B. Psicologia da criança. Rio de Janeiro: Bertrand interação com os adultos, que compartilham com ela seus
Brasil, 1 989. modos de viver, de fazer as coisas, de dizer e de pensar, integrando-a L S. Vygotskx
RAMOZZI-CHIAROTTINO, Z. A teoria de Jean Piaget e a educação. ln: PEN­ aos significados que foram sendo produzidos e acumulados historica­
TEADO, W. A. P. Psicologia e ensino. São Paulo: Papelivros, 1 986. mente. As atividades que ela realiza, interpretadas pelos adultos, ad­
quirem significado no sistema de comportamento social do grupo a
Filme recomendado que pertence.
Nesse processo interativo, as reações naturais - herdadas biologi­
Os transformadores, documentário apresentado P,ela TV Cultura (epi­ camente - de resposta aos estímulos do meio (tais como a percepção, a
56 memória, as ações reflexas, as reações automáticas e as associações
57
sódio Piaget).
simples) entrelaçam-se aos processos cultu­
ralmente organizados e vão se transforman­ Quem foi Vygotsky?
do em modos de ação, de relação e de repre­ Lev Semenovich Vygotsky nasceu em 1 896 em Orsha, Bielo­
sentação caracteristicamente humanos. Rússia, e faleceu prematuramente, aos 38 anos, em 1934, vítima
"Podemos dizer que cada indivíduo de tuberculose. Concluiu seus estudos em Direito e Filologia na
aprende a ser homem", escreveu Leontiev, Universidade de Moscou, em 1917. Posteriormente estudou Me­
um dos psicólogos que integravam o grupo dicina. Lecionou literatura e psicologia em Gome!, de 191 7 a
de Vygotsky. 1 924, quando se mudou novamente para Moscou, trabalhando,
Assim, de acordo com a perspectiva his­ de início, no Instituto de Psicologia e, mais tarde, no Instituto de
tórico-cultural, a relação entre o homem e o Defectologia, por ele fundado. Dirigiu, ainda, um Departamen­
melo físico e social não é natural, total e dire­ to de Educação para deficientes físicos e retardados mentais. De
tamente determinada pela estimulação am­ 1 925 a 1934, Vygotsky lecionou psicologia e pedagogia em Mos­
biental. E também não é uma relação de cou e Leningrado. Nessa ocasião, iniciou estudo sobre a crise
adaptação do organismo ao meio. da psicologia, buscando uma alternativa dentro do mate­
Questionando as teorias psicológicas rialismo dialético para o conflito entre as concepções idealista e
de seu tempo, entre as quais aquelas que se mecanicista. Tal estudo levou Vygotsky e seu grupo - entre eles
apoiavam em modelos biológicos para expli­ A. R. Luria e A. N. Leontiev - a propostas teóricas inovadoras
car o desenvolvimento humano (como as sobre temas como: relação entre pensamento e linguagem, natu­
que já estudamos até aqui), Vygotsky desta­ reza do processo de desenvolvimento da criança e o papel da
cava que, diferentemente das outras espé­ instrução no desenvolvimento.
cies, o homem, pelo trabalho, transforma o Vygotsky foi ignorado no Ocidente e teve a publicação de
meio produzindo cultura. suas obras suspensa na União Soviética de 1 936 a 1 956. Hoje, no
entanto, a partir da divulgação feita, seu trabalho vem sendo pro­
�·-·­
fundamente estudado e valorizado.
Para iygotsky, a A morte prematura de Vygotsky interrompeu uma carreira
criança nasce em A transformação do biológico em histórico-cultural
um mundo
brilhante, da qual podemos resgatar hoje importantes contribui­
ções. A atualidade dos temas tratados por ele é o sinal mais evi­
humano.
O uso de instrumentos
dente de que estamos diante de uma obra da maior significação.
O fundamento básico de suas hipóteses de que os processos
Quando sente fome, um animal procura comida na natureza, e seu psicológicos superiores humanos são mediados pela linguagem e
comportamento, nesse caso, é orientado exclusivamente pelas suas pos­ estruturados não em localizações anatômicas fixas no cérebro,
sibilidades e características biológicas (um predador age diferentemen­ mas em sistemas funcionais, dinâmica e historicamente mutáveis,
te de um herbívoro) e pelas resistências ou facilidades que o ambiente levou-o, juntamente com Luria, por volta de 1930, a se interessar
lhe impõe (abundância ou escassez de alimento, por exemplo). pelo fenômeno da instalação, perda e recuperação de funções ao
Já o homem cria instrumentos. Pode-se considerar instrumento nível do sistema nervoso central. Estes estudosforam continuados
tudo aquilo que se interpõe entre o homem e o ambiente, ampliando e por Luria, após sua morte.
modificando suas formas de ação. São instrumentos, por exemplo, a (Extraído de Vygotsky, Luria. Lcontiev. linguagem, desenvol­
enxada, a serra, o arado, as máquinas, usados no trabalho. Criados pelo vimento e aprendizagem. São Paulo: fconc/Edusp, 1988.)
homem para lhe facilitarem a ação sobre a natureza (o arado, para arar a
terra; a serra, para cortar as árvores e transformá-las em madeira, etc.),
os instrumentos acabam transformando o próprio comportamento hu­ O uso de signos
mano, que deixa de ser uma ação direta sobre o meio, controlada apenas O signo é comparado por Vygotsky ao instrumento e denominado
pela relação entre as necessidades de sobrevivência e o ambiente. O por ele "instrumento psicológico". Tudo o que é utilizado pelo hom��
instrumento amplia os modos de ação naturais do homem e seu alcance. para representar, evocar ou tomar presente o que esta, ausente const1tm
Assim, da mesma forma que atua sobre a natureza, transformando-a, o um signo: a palavra, o desenho, os símbolos (como a bandeira ou o
homem atua sobre si próprio, transformando suas formas de agir. emblema de um time de futebol), etc.
Segundo a abordagem histórico-cultural, a relação entre hm:nem e Enquanto o instrumento está orientado externamente, ou seja, para
meio é sempre mediada por produtos culturais humanos, como o mstru­
58 mento e o signo, e pelo "outro".
a modificação do ambiente, o signo é internamente orientado, modifi­ 59
cando o funcionamento psicológico do homem.
Utilizamos os signos para desempe­ Aos poucos a criança aprende a falar e passa a utilizar a própria lin­
nhar diversas atividades. Anotar um guagem para regular suas ações, conferir sentido às coisas. Ela pode, ao
compromisso na agenda, fazer uma lista mexer no botão da televisão, por exemplo, dizer "Não pode !". Ou, quan­
de convidados, colocar rótulos em obje­ do tr�peça, falar "Caiu!". Ou, quando vê um prato de sopa, falar "Papá!".
tos, usar palitos para fazer contas, contar E na sua relação com o outro que a criança vai se apropriando das
uma história, seguir uma partitura musi­ significações socialmente construídas. Desse modo, é o grupo social
cal, fazer a planta de uma construção, que, por meio da linguagem e das significações, possibilita o acesso a
são formas de utilização de signos que formas culturais de perceber e estruturar a realidade.
ampliam nossas possibilidades de me­ A partir de suas relações
mória, raciocínio, planejamento, imagi­ com o outro, a criança recons­
nação, etc. trói internamente as formas
De acordo com a concepção históri­ culturais de ação e pensamen­
co-cultural, é importante considerar que to, assim como as significações
a utilização dos instrumentos e dos sig­ e os usos da palavra que foram
nos não se limita à experiência pessoal com ela compartilhados. A esse
de um indivíduo. processo interno de reconstru­
Quando utilizamos um martelo, por ção de uma operação externa,
exemplo, estamos i ncorporando a nossas Vygotsky dá o nome de inter­
ações as experiências das gerações pre­ nalização.
cedentes, uma vez que o próprio martelo, Na internalização, a ativi­
o modo de manipulá-lo e a finalidade de dade interpessoal transforma­
seu uso nos são transmitidos nas nossas se para constituir o funciona­
relações com o outro. mento interno (intrapessoal)
O acesso à escrita, às notações musicais, às convenções gráficas e à (Góes, 1 99 1 ).
É através dos palavra, por sua vez, também se faz na interação com outras pessoas,
signos que Desse modo, a abordagem histórico-cultural considera que toda
sendo uma incorporação de experiências anteriores de determinado A criança
realizamos função psicológica se desenvolve em dois planos: primeiro, no da rela­
muitas de nossas grupo cultural. No caso da linguagem, que é o sistema de signos mais conhece o mundo
ção entre indivíduos e, depois, no próprio indivíduo. O processo de de­
ações. importante para o homem, os significados das palavras são produto das por meio de suas
senvolvimento vai do social para o individual, ou seja, as nossas manei­ relações com os
relações históricas entre os homens. .
ras de pensar e agir são resultado da apropriação de formas culturais de outros.
ação e de pensamento.
O papel do outro e a internalização
Logo, para Vygotsky as origens e as explicações do funcionamento
psicológico do homem devem ser buscadas nas interações sociais. É
A apropriação dos instrumentos e dos signos pelo indivíduo ocorre
aí que o indivíduo tem acesso aos instrumentos e aos sistemas de signos
sempre na interação com o outro.
que possibilitam o desenvolvimento de formas culturais de atividade e
"O caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa atra­
permitem estruturar a realidade e o próprio pensamento.
vés de uma outra pessoa", escreveu Vygotsky. "Essa estrutura humana
complexa é o produto de um processo de desenvolvimento profunda­
mente enraizado nas ligações entre história individ!Jal e história social"
( 1984: 37). Pesquisando a criança: o papel do signo no
Desde o nascimento, a criança tem com o mundo uma relação desenvolvimento
mediada pelo outro e pela linguagem. O adulto ensina a criança a utili­
zar os objetos - ele agita o chocalho diante dela, ajuda-a a pegá-lo, Ao estudar o desenvolvimento da criança, as patologias e a defi­
ensina-a a chutar a bola, a comer com talheres, a tomar banho, a vestir­ ciência mental, Vygotsky baseou-se em observações e experimentação
se, a falar ao telefone. O adulto aponta, nomeia, destaca, indica os obje­ em situações variadas. Ele defendia a idéia de que o trabalho experi­
tos do mundo para a criança, ao mesmo tempo que atribui significações mental não devia limitar-se a modelos de laboratório divorciados das
aos seus comportamentos. Quem já viu um adulto lidando com um situações naturais da vida, podendo ser realizado em situações de brin­
bebê, sabe que o adulto fala o tempo todo, dando nomes para os objetos, cadeira, de aprendizado, nas conversações informais, na escola, na fa­
60 61
dirigindo a atenção da criança e interpretando tudo o que ela faz. mília ou em um ambiente clínico.
Nas situações experimentais por ele criadas, seu objetivo fundamen­ Ao dirigirmos deliberadamente nossa atenção para estímulos do
tal era o de estudar o processo de constituição da atividade mediada. Ou meio que consideramos relevantes, transformamos aquele mecanismo
seja, para Vygotsky interessava investigar os modos como a criança utili­ biológico de atenção involuntária em um mecanismo de atenção volun­
zava os signos para executar tarefas envolvendo, por exemplo, a atenção, tária, em uma atividade psicológica controlada por nós mesmos. Essa
a memória, a percepção; os modos de participação do outro na resolução transformação, segundo Vygotsky, está relacionada ao significado dos
dessas tarefas; e os modos como a própria situação estimuladora ia sendo estímulos, o qual vai sendo produzido em nossas relações sociais e nas
ativamente modificada no processo de resposta a ela. práticas culturais dos grupos a que pertencemos.
Nessas condições, os dados fundamentais do experimento não Assim, para estudar como um elemento auxiliar externo pode con­
eram as respostas dadas pelas crianças, e sim os modos pelos quais elas trolar e direcionar a atenção da criança, Leontiev utilizou um jogo in­
chegavam às respostas e as condições em que elas as elabor�vam. As­ fantil tradicional na Europa, o das palavras proibidas, equivalente ao
sim, as questões centrais a que o experimentador voltava sua atenção nosso jogo do "sim, não e porquê".
eram: O que a criança está fazendo? Como ela tenta satisfazer às exi­ O pesquisador participava do jogo fazendo perguntas às crianças,
gências da tarefa que lhe foi proposta? De que recursos lança mão? Que que deveriam responder sem utilizar determinadas palavras, como, por
tipo de ajuda solicita, e a quem? O que é um obstáculo, uma dificuldade exemplo, azul e vermelho.
para ela na situação? Como ela utiliza as pistas e as ajudas que lhe são Num primeiro momento, o pesquisador formulava perguntas como
oferecidas durante a realização da atividade experimental? "Qual a cor de sua blusa?", "Qual a cor do céu?", "Qual a cor da
Nos estudos desenvolvidos por Vygotsky e seu grupo, o observa­ maçã?", e as crianças respondiam a elas. Num segundo momento, ele
dor desempenhava um papel diferente do exercido nos outros estudos fa2:ia as mesmas perguntas mas entregava às crianças cartões coloridos
que vimos até aqui. Como mediador da elaboração da criança, o experi­ que elas poderiam utilizar, se quisessem e como quisessem.
mentador era mais que um mero observador. Sua participação consti­ Com a introdução dos cartões (como recurso auxiliar para a execu­
tuía um dos dados da pesquisa. Ele interagia com a criança, falando ção da tarefa), procurava-se verificar se as crianças os utilizavam ou
com ela, acolhendo suas dúvidas e comentários, propondo a ela cami­ não como suportes para sua atenção e memória e de que modos o fa­
nhos alternativos para a solução da situação-problema, oferecendo-lhe, ziam. Algumas crianças não utilizavam os cartões, outras separavam os
inclusive, materiais que pudessem ser utilizados de modos diversos que apresentavam as cores proibidas e os consultavam antes de respon­
para o cumprimento da tarefa. Ele também conversava com a criança der à pergunta, cometendo assim um número menor de erros.
sobre as soluções encontradas, procurando ouvir dela própria a explica­ Esse resultado foi interpretado como um indicador de que elemen­
ção de como tinha chegado à solução das tarefas. tos mediadores externos, os cartões, incorporados à atividade da crian­
Um experimento desenvolvido por Leontiev para estudar o papel ça, ampliavam sua capacidade de atenção e memória, possibilitando a
desempenhado pelos signos mediadores no desenvolvimento da aten­ ela ter maior controle voluntário de sua própria atividade.
ção voluntária pode ilustrar a forma como trabalhava o grupo de pesqui­
sa de Vygotsky.
A atenção, assim como a percepção e a memória, é uma atividade Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a
psicológica com a qual nascemos. Como o de outras espécies, nosso
organismo é dotado de mecanismos neurológicos inatos que permitem influência da abordagem histórico-cultural na escola
selecionar estímulos do ambiente apropriados à sobrevivência. Nasce­
mos com mecanismos de atenção involuntária, que nos permitem per­ Como vimos, o desenvolvimento é entendido por Vygotsky como ·

ceber e responder automaticamente a ruídos fortes, objetos em movi­ um processo de intemalização de modos culturais de pensar e agir. Esse
mento e mudanças bruscas do ambiente. processo de intemalização inicia-se nas relações sociais, nas quais os
No entanto, ao longo de nosso desenvolvimento, tomamo-nos ca­ adultos ou as crianças mais velhas, por meio da linguagem, do jogo, do
pazes de dirigir a atenção não só para os estímulos ligados a nossa so­ "fazer junto" ou do "fazer para", compartilham com a criança seus sis­
brevivência, mas também para situações ou elementos que nos interes­ temas de pensamento e ação.
sam. Por exemplo, ao lermos determinado livro, dizemos que ele "pren­ Embora aponte diferenças entre aprendizado e desenvolvimento,
de nossa atenção'', quando somos capazes de ignorar, durante a leitura, Vygotsky considera que esses dois processos caminham juntos desde o
os ruídos do ambiente ou o movimento das pessoas em tomo de nós. E, primeiro dia da vida da criança e que o primeiro - o aprendizado -
na escola, uma criança pode permanecer alheia a tudo o que a professo­ suscita e impulsiona o segundo - o desenvolvimento. Ou seja, tudo
ra está explicando ou escrevendo na lousa, a despeito da sua movimen­ aquilo que a criança aprende com o adulto ou com outra criança mais
tação pela classe, do som da sua voz ou do fato de ser diretamente soli­ velha vai sendo elaborado por ela, vai se incorporando a ela, transfor­
62 63
citada a prestar atenção. mando seus modos de agir e pensar.
Assim, segundo Vygotsky, o conhecimento do mundo passa pelo Além disso, o desenvolvimento proximal como desenvolvimento
outro, sendo a educação "o traço distintivo fundamental da história do em elaboração possibilita a participação do adulto no processo de
pequeno ser humano. A educação pode ser definida como sendo o de­ aprendizagem da criança. Para consolidar e dominar autonomamente as
senvolvimento artificial da criança. Ela é o controle artificial dos pro­ atividades e operações culturais, a criança necessita da mediação do
cessos de desenvolvimento natural. A educação faz mais do que exercer outro. O mero contato da criança com os objetos de conhecimento ou
influência sobre um certo número de processos evolutivos: ela rees­ mesmo sua imersão em ambientes informadores e estimuladores não
trutura de modo fundamental todas as funções do comportamento" garahte a aprendizagem nem promove necessariamente o desenvolvi­
( 1 985: 45). mento, uma vez que ela não tem, como indivíduo, instrumental para
Os processos de aprendizado transformam-se em processos de de­ organizar ou recriar sozinha o processo cultural (Oliveira, 1 995).
senvolvimento, modificando os mecanismos biológicos da espécie. Portanto, é no campo do desenvolvimento em elaboração que a
Sendo um processo constituído culturalmente, o desenvolvimento psi­ participação do adulto, como pai, professor, parceiro social, se faz ne­
cológico depende das condições sociais em que é produzido, dos modos cessária. Conforme alertava Vygotsky, "o bom aprendizado é somente
como as relações sociais cotidianas são organizadas e vividas e do aces­ aquele que se adianta ao desenvolvimento" ( 1 984: 1 0 1 ).
so às práticas culturais.
Em razão de privilegiar o aprendizado e as suas condições sociais
de produção no processo de desenvolvimento, Vygotsky colocou em O papel da escolarização
discussão os indicadores de desenvolvimento utilizados pela psicologia
da época. O modo como Vygotsky concebia e analisava o desenvolvimento
Para avaliar o desenvolvimento de uma criança, os psicólogos con­ humano levou-o a discutir explicitamente o papel da escolarização. Di­
sideravam apenas as tarefas e as atividades que ela era capaz de realizar ferentemente de outros psicólogos, vygotsky considerou as espe­
sozinha, sem a ajuda de outras pessoas. Procedendo assim, os psicólo­ cificidades das relações de conhecimento produzidas na escola, distin­
gos, segundo Vygotsky, apreendiam apenas seu nível de desenvolvi­ guindo-as das relações de conhecimento cotidianas.
mento real, isto é, "o nível de desenvolvimento das funções mentais da Em nossas sociedades, a escola é uma instituição encarregada de
criança que se estabeleceram como resultado de certos ciclos de desen- possibilitar o contato sistemático e intenso das crianças com o sistema
volvimento já completados" (Vygotsky, 1 984). . de leitura e de escrita, com os sistemas de contagem e de mensuração,
Ao considerarem apenas o desenvolvimento real, problematizava com os conhecimentos acumulados e organizados pelas diversas disci­
Vygotsky, os psicólogos voltavam-se para o passado da criança. Ou plinas científicas, com os modos como esse tipo de conhecimento é
seja, apreendiam processos de desenvolvimento já concluídos. elaborado e com alguns dos variados instrumentos de que essas ciências
No entanto, destacava ele, nas situações de vida diária e mesmq na se utilizam (mapas, dicionários, réguas, transferidores, máquinas de
·
escola, era possível perceber que as atividades que a criança realizava calcular, etc.).
sozinha, por exemplo, comer com a colher, amarrar os sapatos, montar
uma torre com peças de tamanhos diversos, escrever, foram antes com­
partilhadas com outras pessoas.
Sua proposta, então, era a de que se trabalhasse também com os
indicadores de desenvolvimento proximal, que revelariam os modos de
agir e de pensar ainda em elaboração e que requerem a ajuda do outro
para serem realizados. Os indicadores do desenvolvi '!1ento proximal
As relações de
seriam as soluções que a criança consegue atingir com a orientação e a
cola�w:açãe-de-um a<iulto ou de outra �tiança. - - . -·-\ conhecimento

� )
· ·
travadas na
./,..Segundo sua análise, () ãprendizado (a atividade interpessoal) pr - escola têm uma
.tede e impulsiona o desenvolvimento, criando zonas de desenvolvi- / natllreza distinta
, das demais.
: mento proximal, ou seja, processos de elaboração compartilhada..---/
'""- Observar a atividade compartilhada da criança possibil Íta olhar
,,,,

para o seu futuro, pois "o que é o desenvolvimento proximal hoje será o
nível de desenvolvimento real amanhã - ou seja, aquilo que a criança é
capaz de fazer com assistência hoje ela será capaz de fazer sozinha ama­
64
nhã" (Vygotsky, 1 985). 65
Embora chegue à escola já dominando inúmeros conhecimentos e
modos de funcionamento intelectual necessários à elaboração dos co­
nhecimentos científicos sistematizados, durante o processo de educa­ Sugestão de atividades
ção escolar a criança realiza a reelaboração desses conhecimentos me­
diante o estabelecimento de uma nova relação cognitiva com o mundo e
com o seu próprio pensamento.
O estudo da aritmética, por exemplo, não começa do zero. Ao che­ Organizando as informações do texto
gar à escola a criança já passou por experiências anteriores relativas a
quantidades, determinação de tamanho, operações de divisão, adição, 1. Faça um resumo do que você compreendeu sobre o papel do signo e
etc. O mesmo acontece quanto à escrita e às operações mentais utiliza­ das interações sociais na formação do funcionamento psicológico
das em situações do cotidiano. Nas brincadeiras, nas tarefas da casa, nas humano.
compras que faz para a mãe, a criança, imitando os mais velhos, "escre­
ve", classifica, compara, seria, estabelece relações entre os elementos 2. Conceitue mediação e intemalização.
de uma situação, etc. Nessas situações, sem que ela própria e seus par­
ceiros sociais percebam, os conhecimentos vão sendo elaborados ao rit­ 3. Compare a abordagem histórico-cultural do desenvolvimento hu­
mo da própria vida, entrelaçados às emoções, às necessidades e interes- mano com as abordagens apresentadas pelo inatismo-matura­
ses imediatos da atividade em que está envolvida. . cionismo, pelo comportamentalismo e pela teoria piagetiana. Enu­
Na escola, as condições se modificam. Ali as relações de conheci­ mere as semelhanças e diferenças entre essas abordagens e confron­
mento são intencionais e planejadas. A criança sabe que está ali para te-as com as relacionadas por seus colegas, numa discussão envol­
apropriar-se de determinado tipo de conhecimentos e de modos de pen­ vendo a classe.
sar e de explicar o mundo, organizados segundo uma lógica que ela
deverá apreender.
Pesquisa de campo
A professora acompanha a criança: orienta sua atenção, destacan­
do elementos das situações em estudo considerados relevantes à com­
Converse com alguns professores da 1 � à 4� série e da pré-escola.
preensão dos conhecimentos nelas implicados; analisa as situações
Pergunte-lhes como vêem o papel da escola e seu papel de professores
para e com a criança e leva-a a comparar, classificar, estabelecer rela­
no desenvolvimento da criança. Anote suas respostas.
ções lógicas; demonstra como usar determinados procedimentos da
Confronte o que pensam os professores com as reflexões de Vygotsky
matemática e da escrita; ensina a utilizar o mapa, os equipamentos de
acerca da relação entre escolarização e desenvolvimento.
laboratório, etc.
A seguir, apresente três conclusões a respeito da influência das teo­
A criança, por sua vez, raciocina com a professora. Segue suas ex­
rias psicológicas do desenvolvimento na prática dos professores.
plicações e instruções, reproduz as operações lógicas realizadas por ela,
mesmo sem entendê-las completamente. Nessas situações compartilha­
das com a professora, a criança aprende significados, modos de agir e Exercitando a análise
de pensar, e começa a elaborá-los. Ela também re-significa e reestrutura
significados, modos de agir e de pensar, e começa a se dar conta das 1. Retome os dados das entrevistas com pais e professores realizadas ao
atividades mentais que realiza e do conhecimento que está elaborando. final do segundo capítulo. Destaque agora nas respostas dadas pelos
Nesse sentido, destaca Vygotsky, a educação escolarizada e o pro­ dois grupos aspectos que as associam a uma visão histórico-cultural
fessor têm um papel singular no desenvolvimento dos indivíduos. de desenvolvimento.
Fazendo junto, demonstrando, fornecendo pistas, instruindo, dan­
do assistência, o professor interfere no desenvolvimento proximal de 2. Leia o texto 'O renascimento de Josela' , de Silvia Adoue, publicado
seus alunos, contribuindo para a emergência de processos de elabora­ na revista Ande, n? 7, 1 984.
ção e de desenvolvimento que não ocorreriam espontaneamente. Em pequenos grupos, discutam o papel da professora no processo
A escola, possibilitando o contato sistemático e intenso dos indi­ vivido por Josela.
víduos com os sistemas organizados de conhecimento e fornecendo a
Num debate da classe, apresentem a análise elaborada pelo grupo.
eles instrumentos para elaborá-los, mediatiza seu processo de desen­
volvimento.
66 67
Sugestão de leituras

GóEs, Maria C. R. de. A natureza social do desenvolvimento psicológi­


co. Cadernos Cedes, n? 24. Campinas: Papiros, 1 99 1 .
Capítulo 6
LEITE, Luci B . As dimensões interacionista e constrotivista em Vygotsky
e Piaget. Cadernos Cedes, n? 24. Campinas: Papiros, 1 99 1 .
OLIVEIRA, M . K . Vygotsky - Aprendizado e desenvolvimento: um pro­
cesso sócio-histórico. São Paulo: Scipione, 1 993.
. O pensamento de Vygotsky como fonte de reflexão sobre a
As abordagens sobre
____

educação. Cadernos Cedes, n? 35. Campinas: Papiros, 1 995.


VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fon­
tes, 1 984.
desenvolvimento e aprendiza­
Filmes recomendados gem e a prática pedagógica
O enigma de Kaspar Hauser, dirigido por Werner Herzog.
'As borboletas de Zagorsky ' , episódio do documentário Os transforma­
dores, apresentado pela TV Cultura de São Paulo. Quando estudamos as principais abordagens teóricas acerca do de­
senvolvimento e da aprendizagem, logo emerge a questão da relação
entre a psicologia e a prática pedagógica. Afinal, para que servem as
teorias psicológicas, nos perguntamos.
É muito comum ouvir dizer que certo professor é construtivista,
outro é vygotskyano, outro behaviorista. Mas o que isso significa? O
que é adotar determinada perspectiva teórica?
Essas questões fazem pensar na necessidade de compreender e
explicitar a relação entre a teoria e a prática. O.que é uma teoria? Para
que ela serve?
Nos capítulos anteriores, mostramos que a abordagem inatista, por
exemplo, foi construída a partir do interesse pelo problema das diferen­
ças individuais. E que Piaget elaborou sua psicologia genética a partir de
suas preocupações com a gênese e o desenvolvimento do conhecimento.
Considerando esses dois exemplos, podemos dizer que as teorias
foram elaboradas para descrever, explicar, interpretar, compreender
certos aspectos da realidade (nesses casos, as diferenças individuais e o
conhecimento). E, ainda, que as teorias constituem um corpo de conhe­
cimentos sistematizados sobre a realidade, uma espécie de lentes atra­
vés das quais se olha o mundo.
E a prática, o que é? É a aplicação de uma teoria? Caso fosse, pode­
ríamos dizer, por exemplo, que um pai, quando elogia o filho para
incentivá-lo a se comportar da forma que ele considera adequada, está
aplicando a teoria comportamentalista. No entanto, a maioria dos pais
que têm esse tipo de conduta nunca ouviram falar em compor­
tamentalismo. Como poderiam, então, estar aplicando essa teoria?
Mesmo no meio escolar, onde provavelmente as teorias são mais
conhecidas, não nos parece correto afirmar que a prática seja aplicação
da teoria. Começamos este livro falando da complexidade das relações
que ocorrem na escola, da diversidade de fatores presentes no seu coti­ para explicar o pensamento humano, que teria sua origem nas relações
diano. Crianças que brigam, choram, inventam, aprendem, perdem o sociais mediadas pela linguagem.
lápis, faltam à aula; professores que perdem a paciência, riem, expli­ As abordagens maturacionista e piagetiana priorizam o processo de
cam, passam tarefas, contam história, recebem ou não recebem salários. desenvolvimento como objeto de estudo e enfatizam o papel de fatores
Todas essas ações são formas de atividade humana, são práticas cultu­ internos, como a maturação ou a equilibração, na determinação desse pro­
rais cotidianas, e não aplicações de alguma teoria. São parte da realida­ cesso. Já os comportamentalistas, considerando que comportamentos,
de e, assim, tão complexas e multifacetadas quanto a própria realidade. habilidades e pensamentos são aprendidos, destacam a preponderância de
Vivemos as práticas cotidianas em geral irrefletidamente, só paran­ fatores externos, como os estímulos e os reforçadores, no processo de
do para pensar sobre elas quando algum problema ou algum descom­ aprendizagem. Para Vygotsky, tanto o desenvolvimento quanto a aprendi­
passo se manifesta. Os problemas e descompassas suscitam questões zagem decorrem das condições sociais em que o indivíduo está imerso.
que requerem explicações. Cada uma dessas perspectivas prioriza, em suas investigações e
Quando nos debruçamos sobre a realidade tentando compreendê-la reflexões, aspectos distintos da vida psíquica e apresenta explicações
e explicá-la, estabelecemos um novo modo de relação com nossas prá­ bastante diferentes sobre os processos de desenvolvimento e de apren­
ticas cotidianas. Olhamos para o que fazemos e somos, analisamos e dizagem.
refletimos sobre o vivido, procurando organizá-lo. Qual delas seria, então, a "certa" ou a "melhor"? Você talvez até já
Nesse processo de busca de compreensão, vivemos outra prática tenha simpatizado mais com uma delas, em razão de seu próprio modo
cultural, a "prática da teorização", e produzimos um conhecimento de de pensar sobre o homem e a criança. Ou, o que é muito provável, estará
natureza distinta do conhecimento baseado na vivência cotidiana. No supondo que cada uma explica certo aspecto do desenvolvimento e da
esforço para explicar as questões e problemas surgidos no cotidiano, aprendizagem.
nos obrigamos a "parar para pensar", a olhar de longe as situações vivi­ Com base em sua experiência, você pode achar que algumas crian­
das, tentando apreender seus aspectos essenciais, suas contradições, o ças são mesmo mais inteligentes que outras ("Pode ser hereditário! :');
modo como seus elementos se articulam, as transformações por que que, de fato, as crianças da mesma idade são muito parecidas ("E a
passam. Procuramos organizar as nossas vivências e nosso próprio pro­ maturação"); ou, ainda, que às vezes "esse negócio de reforço funcio­
cesso de reflexão sobre elas em um sistema explicativo coerente. na"; e, também, que as interações sociais são fundamentais.
Por tudo isso, não dá para considerar a prática como aplicação da
teoria, nem a teoria como algo que se aplica à prática. A prática é a base
da teoria (que também é uma prática humana de produção de conhecimen­ Cada uma das abordagens explica um pouco?
to). E a teoria elaborada é uma reflexão organizada e sistematizada sobre
aspectos da prática que nos ajudam a analisá-la, problematizá-la e De fato, podemos dizer que cada abordagem apresenta contribui­
redefini-la. Nesse sentido, teoria e prática articulam-se dinamicamente. ções diferentes e importantes em relação aos aspectos da vida mental.
Considerando desse modo a relação entre teoria e prática, podemos No entanto, adotar o ponto de vista de que cada uma explica um pouco
dizer que as teorias psicológicas são lentes através das quais olhamos a do processo de aprendizagem e desenvolvimento não é algo tão simples
prática pedagógica e que nos ajudam a compreendê-la. como pode parecer.
Certamente o modo como o professor lida com a complexidade da Pensemos, por exemplo, no problema do erro na escola. Todos nós
prática é determinado pela compreensão que ele tem sobre ela, podendo sabemos que as crianças cometem erros em relação à escrita, aos con­
essa compreensão ser instrumentalizada e mediada pela teoria. Nesse sen­ ceitos, etc. Como interpretá-los?
tido, dizemos que o professor não aplica teorias, mas articula teoria e prá­ Na perspectiva comportamentalista, o erro é tomado como um
tica, à medida que seus conhecimentos teóricos o ajudam a compreender comportamento inadequado, portanto a ser eliminado. Logo, o profes­
o que ocorre em sala de aula, marcando suas decisões e seus modos de agir. sor deve se empenhar para não reforçá-lo positivamente, evitando, as­
sim, que o erro, ou o comportamento inadequado, se fixe.
Já na perspectiva piagetiana, o erro é considerado como parte do
Os diferentes modos de olhar processo de construção do conhecimento. O erro que a criança comete
(como no caso da conservação, de que falamos no capítulo 4) pode ser
Das quatro principais abordagens existentes na psicologia sobre o resultado de sua própria atividade assimilativa, da aplicação dos seus
desenvolvimento e a aprendizagem, três delas, como vimos, se apóiam esquemas mentais (ou de ação) a determinado objeto ou conteúdo.
de alguma forma em modelos biológicos: a inatista-maturacionista, a Quando a atividade assimilativa resulta em erro, e principalmente se de
comportamentalista e a piagetiana. A outra, a abordagem histórico-cul­ forma repetida, ocorre uma desequilibração das estruturas cognitivas da
70 71
tural, questiona os modelos biológicos, considerando-os inadequados criança. Isso faz com que ela, por meio de sua atividade cognitiva, mo-
difique (acomode) seus esquemas, o que resulta em uma reequilibração
e, portanto, no aperfeiçoamento de sua maneira de agir e de pensar e em
um nível mais complexo de conhecimento sobre o objeto. Logo, o erro Sugestão de atividades
deve ser respeitado como um momento do processo de elaboração do
conhecimento.
As "dificuldades de aprendizagem" apontadas pelos professores Organizando as informações do texto
também têm diferentes interpretações. Na abordagem maturacionista,
"as dificuldades de aprendizagem" são consideradas a partir da relação Reproduza o quadro a seguir em seu caderno e preencha-o:
de dependência do aprendizado ao desenvolvimento. Assim, se uma
criança encontra dificuldade em aprender o que é ensinado na escola, Abordagem Abordagem Abordagem
isso talvez se deva à falta de "maturidade" da criança ou a algum atraso inatista-maturacionista comportamentalista piagetiana
em seu desenvolvimento. Papel dos fatores
A abordagem histórico-cultural, por sua vez, considerando que a internos e externos
aprendizagem produz desenvolvimento, vê as "dificuldades de aprendi­ no desenvolvimento

zagem" como relativas às condições em que a relação de ensino é pro­ Relação entre
duzida. Uma vez que tanto o desenvolvimento quanto a aprendizagem desenvolvimento e
são processos que ocorrem no plano das interações sociais, as "dificul­ aprendizagem
dades de aprendizagem" são enfocadas não como algo inerente à crian­ Principais
ça, mas às suas condições de produção no contexto interativo em que representantes
ela se insere.
Contribuições para
a prática pedagógica

A atividade da criança como foco de análise


Os exemplos considerados acima indicam que as abordagens teóri­ Refletindo sobre o texto
cas da psicologia são, muitas vezes, opostas ou contraditórias. Proble­ Neste capítulo, fizemos algumas considerações sobre como as teo­
mas como o erro e as dificuldades de aprendizagem são interpretados de rias psicológicas se relacionam com a prática pedagógica. Agora, em
modos bastante diferentes, dependendo da perspectiva teórica que se
adote. Isso porque cada uma delas apresenta princípios explicativos de pequenos grupos, sintetizem o que foi visto até o momento, orientando­
natureza distinta, como a maturação e a hereditariedade, o condiciona­ se pelos itens do quadro acima.
mento, a equilibração e a mediação por signos, decorrentes, por sua vez,
de diferentes concepções a propósito do ser humano e da criança. Exercitando a análise
Desse modo, a análise da atividade da criança a partir de diferentes 1. Reveja as situações que você observou na escola (atividade do capí­
abordagens teóricas nos parece ser o caminho mais adequado para apu­
rar nossa compreensão sobre suas especificidades. tulo 1 ) e desta9ue uma que, do seu ponto de vista, pode ser explicada
Por isso, na segunda parte deste livro, você será convidado a olhar sob a perspe�tiva de u�a das �bordagens teóricas estudadas até ago­
para a atividade da criança - seus processos de elaboração conceituai, ra. Esboce a mterpretaçao da situação com base na perspectiva teóri­
suas brincadeiras, desenhos e escrita - na situação de produção na es­ ca escolhida e justifique-a.
cola e em outros contextos, a partir das contribuições de Piâget e de
Vygotsky. Guiados pelas indicações de ambos, vamos nos aproximar do 2. Reveja as perguntas que você enumerou (também como atividade do
desenvolvimento da atividade da criança, prestando atenção ao que ela capítulo 1 ) e tente responder a elas com base nas quatro abordagens
faz e diz e às relações que estabelece com outras crianças e com os estudadas.
adultos.
Seminários e debates

. Apresentamos a seguir uma relação de textos que abordam, sob


diferentes perspectivas, questões relativas ao desenvolvimento e à
72 aprendizagem, tais como a inteligência da criança, as dificuldades
73
de aprendizagem e os atrasos no desenvolvimento.
CARRAHER, T. N. et alii. Cultura, escola, ideologia e cognição - Conti­

Unidade 2
nuando um debate. Cadernos de Pesquisa, n? 57, maio/86. São Pau­
lo: Fundação Carlos Chagas.
FREITAG, B. Piagetianos brasileiros em desacordo? Contribuições para
um debate. Cadernos de Pesquisa, n? 53, maio/85. São Paulo: Fun­
dação Carlos Chagas.
MoRO, M. L. A construção da inteligência e a aprendizagem escolar de
crianças de baixa renda - Uma contribuição para o debate. Cader­
nos de Pesquisa, n? 56, fev./86. São Paulo: Fundação Carlos Chagas.
PATIO, M. H. S. Criança da escola pública: deficiente, diferente ou mal
trabalhada?. Revendo a proposta de alfabetização. Projeto Ipê. São
Paulo: SE/CENP, 1 985.
____ . A criança marginalizada para os piagetianos brasileiros; de­
ficiente ou não?. Cadernos de Pesquisa, n? 5 1 , nov./84. São Paulo:
Fundação Carlos Chagas.
SMOLKA, A. L. B. O trabalho pedagógico na diversidade (adversidade)
da sala de aula. Cadernos Cedes, n? 23. São Paulo: Cortez, .1989.
____ et alii. A questão dos indicadores de desenvolvimento:
apontamentos para discussão. Caderno de Desenvolvimento Infan­
til, n? 1 , 1 994. Curitiba: Centro Regional de Desenvolvimento In­
fantil da Pastoral da Criança/CNBB .

Com a classe organizada em grupos, cada u m deles deve ficar res­


ponsável pela leitura, estudo e apresentação de um dos textos.
Procure destacar os pontos mais importantes do texto e identificar,
com base nesta primeira parte do livro, a abordagem teórica adotada ou
criticada pelos diversos autores.
Depois da apresentação de cada grupo (que pode ser feita em mais
de uma aula), faça com os colegas um debate sobre as questões tratadas
nos textos e sobre os diferentes modos de ver a criança e o trabalho
pedagógico presentes na psicologia.

Sugestão de leitura

SMOLKA, A. L. B., LAPLANE, A. F. O trabalho em sala de aula: teorias para


quê? Cadernos ESE, n? 1 , nov./93. Rio de Janeiro: Faculdade de
Educação da Universidade Federal Fluminense.

Filme recomendado
Crescer e aprender - Um guia para pais, documentário realizado pelo
Unicef e apresentado pela TV Cultura de São Paulo.
A e1·
74
Introdução Capítulo 7

A palavra integra nossas relações com a criança já a


partir de seu nascimento. Falamos com a criança
A relação entre pensamento
muito antes que ela comece a falar ou, mesmo, a nos
entender. Como pais, tios, avós, irmãos, sabemos que em certo momen­ e linguagem
to ela vai começar a falar e encaramos esse fato como algo natural e
próprio do ser humano.
Em nossas relações cotidianas, vamos compartilhando com a
criança em crescimento as palavras que conhecemos e por meio das Campinas, agosto de 1 987.
quais nomeamos, organizamos e participamos do mundo em que vive­ Numa sala de aula da 3� série de uma escola pública da periferia, a
.
mos. Esse compartilhamento também nos parece corriqueiro e natural, d1retora entra e comunica à professora e aos alunos que, na semana se­
.
e muitas vezes divertido, pois acabamos nos surpreendendo com algu­ gumte, a escola toda deverá comemorar a Semana da Pátria.
mas das coisas que as crianças nos dizem.
Quando a criança chega à escola, nós, educadores, continuamos - "Todas as manhãs vamos hastear a bandeira cantar o'

ensinando-lhe novas palavras, como adição, subtração, fração, substan­ Hino e um dos professores falará sobre a data. "
tivo, verbo, sílaba, ponto final, pátria, cultura, monarquia, república, Voltando-se para a professora:
escravidão, sistema circulatório, célula, oxigênio, atmosfera, energia, � "Prepare as crianças. "
clima, relevo, etc. Essas palavras expressam relações complexas que os A saída da diretora, têm início os comentários.
homens, ao longo de sua história, foram estabelecendo entre os elemen­
Juliana (para Fabiana) - "A tia vai dar desenho pra gente
tos do mundo, no seu esforço para conhecê-los e explicá-lÔs. Por tudo
isso, consideramos necessário que a criança as conheça e saiba utilizá­ pintar; né?!"
las adequadamente. Esforçamo-nos, então, para que ela as aprenda. E Eli (para o colega ao lado) - "Que negócio que ela falou da
esse aprendizado também nos parece natural. bandeira ? "
Assim, como adultos, ou membros mais velhos dos grupos sociais Eli (para a professora) - "A gente vai enfeitar a classe com
de que a criança faz parte, não temos o hábito de nos interrogar acerca bandeirinha verde e amarela? Foi isso que ela falou ? "
dos modos pelos quais ela, criança, se relaciona com as palavras. O que Cláudio (comentando com Sérgio) - "A gente vai ter que
é a palavra para a criança? Como é que ela se apropria das palavras e cantar o hino... "

como elabora seus significados? Que papel, afinal, nós, adultos, desem­ Sérgio - "Mas é láfora. Dá praficar de olho nas meninas da
penhamos nesse processo? 4�série, meu! "
Entretanto essas questões têm, há muito tempo, preocupado filóso­ Elaine (para a professora) - "É sete de setembro, né, tia?!"
fos, lingüistas, psicólogos, educadores, que têm se voltado, cada um em
João (para Sérgio) - "Éferiado... "
seu campo de estudo, para a busca de explicações e respostas a elas.
Nesta segunda unidade, vamos tematizá-las a partir das perspecti­ A professora, diante dos comentários suscitados pelo comuni­
vas de Piaget e de Vygotsky. cado, e procurando identificar de que modo atender à solicitada
No capítulo 7, vamos problematizar as funções da palavra e nos "preparação das crianças " para o evento, escreve na lousa -
aproximar dos modos como esses dois autores analisam e explicam SEMANA DA PÁ TRIA - e pergunta para a classe:
suas relações com o pensamento. - " O que significa Semana da Pátria ? "
No capítulo 8, focalizaremos como cada um deles descreve e expli­ Sérgio - ·:semana é semana. Segunda, terça, quarta. . . "
ca o processo de elaboração da palavra pela/na criança. Prop- "E isso mesmo. E Pátria? O que é Pátria ? "

��;7:�� �Z�� :Z ��:��':��;�J;'::


No capítulo 9, vamos discutir o papel da escola na elaboração da pala­ stas firmeza.
[��Bi�}fo�:{���
ª
vra pela criança, tendo em vista essas duas importantes contribuições. .. r c
Ronaldo - "É isso que eu iafalar. É coisa de polícia, de bom­ ções que relacionam com aquilo que foi dito pela diretora: "É sete de
beiro. Eles desfilam lá na cidade. Passa na TV também. " setembro, né, tia?!". Outras, ainda, procuram esclarecer aspectos do
Juliana - "A gente sempre pinta o desenho do soldadinho comunicado que não conseguiram entender: "Que negócio que ela fa­
com a bandeirinha e escreve em cima - Semana da Pátria. " lou da bandeira?".
Prof:' - "Então Pátria é coisa de soldado? Quem aqui tem Os dizeres das crianças se cruzam e trazem para a interlocução ou­
Pátria ? " tros elementos e outras possibilidades de significação do comunicado
Sérgio - "Povão não tem Pátria, dona. " da diretora. Por exemplo, João, ouvindo de Elaine a referência ao 7 de
Prof:'- "Por quê ? " Setembro, fala do feriado, desencadeando para seus colegas outras pos­
Sérgio - "A gente não tem casa, não tem dinheiro, o pai vira sibilidades de leitura da fala da diretora. Cláudio, ao ouvir a referência
e mexe tá desempregado... A gente não tem nada. Não tem Pátria ao Hino, enfatiza "o cantar lá fora", que é "lido" por Sérgio como a
também. " possibilidade de paquerar.
(Episódio cxtrnído do Projeto de Pesquisa sobre os Processos de
No processo de elaboração das palavras pelas crianças, o evento
Elaboração Conceituai na Escola, elaborado e desenvolvido por comunicado pela diretora vai se revestindo de nuances e sentidos diver­
Roseli A. C. Fontana de 1987 a 1991.) sos daqueles destacados por ela. Desenhos, bandeirinhas, feriado,
paquera ... tudo isso é Semana da Pátria também.
Situações como essa acontecem nas salas de aula. E, ao acontece­ Ao perguntar "o que é pátria?", a professora apresenta às crianças
rem, surpreendem, porque levantam questões acerca de nossas relações outro modo de relação com a palavra. Ela desloca as crianças da relação
com a palavra ... de uso da palavra para uma relação de reflexão sobre a palavra.
O que dizemos, o que queremos dizer ao enunciar a palavra pátria? Para responderem à professora, as crianças precisam refletir sobre
O que o outro quer dizer quando enuncia pátria? o que pensam que a palavra pátria significa. Precisam explicitar o seu
Na situação que inicia o capítulo, podemos perceber que a palavra
·
Para as crianças, modo de pensar.
o 7 de Setembro pátria não tem um sentido só. Na fala da diretora, na fala da professora,
tem diversos
O dizer da professora imprime uma direção à atividade intelectiva
na fala das crianças, ela assume nuances distintas, que são marcadas das crianças. Pela palavra ela age sobre suas elaborações. Ela destaca a
significados.
pela situação em que foi enunciada. palavra pátria, transformando-a no foco da atividade das crianças. Ela
Sobre o que fala a dire­ pergunta sobre seu significado, questiona o significado apresentado pe­
tora? Para quê? A quem se las crianças pedindo que justifiquem as· relações que estabelecem entre
dirige? a palavra pátria e outras palavras, como soldado e povão.
Ela comunica um even­ É em resposta a ela que as crianças selecionam e articulam os frag­
to às crianças, determina a mentos de suas experiências, orientadas pela palavra pátria. Na respos­
presença delas e da profes­ ta a ela, organizam a compreensão da palavra a partir do lugar social
sora nesse evento, revela ex­ que ocupam: alunos na escola, espectadores nos desfiles, marginaliza­
pectativas com relação a ta­ dos no processo de produção e circulação dos bens culturais na socieda­
refas a serem assumidas pela de em que vivem.
professora (preparação) e Ao prestarmos atenção à linguagem em funcionamento nas
pelas crianças (afinal, são interlocuções, vamos nos dando conta da complexidade da palavra.
elas as pessoas que devem Ela é múltipla e diversa, conforme diz o poeta:
ser preparadas para o even­
to). É nesse contexto e na si­ Chega mais perto e contempla as palavras.
tuação de autoridade escolar Cada uma
que ela diz a palavra pátria. tem mil faces secretas sob a face neutra
Sobre o que falam as crianças? A quem se dirigem? Para que dizem e te pergunta, sem interesse pela resposta
o que dizem? pobre ou terrível, que lhe deres:
Elas compartilham entre si e com a professora os modos como se Trouxeste a chave ?
relacionam com as palavras da diretora. Algumas procuram obter mais (Carlos Drummond de Andrade)
esclarecimentos, levantando suposições e pedindo confirmações acerca
do que pode vir a acontecer na escola: "A tia vai dar desenho pra gente Pela palavra nomeamos o mundo e somos nomeados. Objetos, co­
pintar, né! ?"; "A gente vai enfeitar a classe com bandeirinha verde e res e formas, modos de ser, de dizer e de fazer, o que existe e o que
78 79
amarela?". Outras procuram confirmar com a professora as informa- poderá existir, tudo tem nome, tudo pode ser nomeado. Pátria também é
Com? t�do comportamento, as palavras são respostas aprendidas
nome. Nome de quê? "Pátria é coisa de soldado", dizem as crianças por associaçao e reforçamento. A palavra e seu significado se unem a
("... mil faces secretas..."). partir de relações externas. O elo entre a palavra e seu significado se
Nomeados nos tomamos Ana, João, Marina, Mariana, Beto ou Rafael, forma pela reiterada percepção simultânea de determinado som e de
pai, filho, irmão, a professora, a "tia", a criança impossível, o herói. ser­ determinado objeto. Assim, a palavra tem significado conforme remete
Mas a mesma palavra que serve para nomear, instituir, também a ao objeto a que foi associada.
ve para negar: "Você não é mais a minha mãe!", resmunga ou grita A conexão entre palavra e significado pode fortalecer-se, enfraque­
criança contrariada. "Povão não tem pátria", diz Sérgio. cer, ser extinta ou ampliada em razão das contingências reforçadoras
As palavras nos permitem compartilhar experiências, pensamen­ que acompanham as respostas dadas pelo indivíduo. Por exemplo, a
tos, sentimentos, e também ocultá-los, pois é pela palavra que menti­ uma cri�nça que já relaciona a palavra fruta ao elemento laranja, pode­
mos, que "desconversamos" ("Trouxeste a chave?"). mos ensmar o emprego generalizado dessa palavra, associando-a a ou­
Por elas e com elas agimos com o outro e sobre o outro: apontamos, tros elementos, como maçã, pêra, mamão, banana, por meio da modela­
dirigimos a atenção, pedimos, prometemos, damos ordens, negocia­ gem d� suas respostas. Do mesmo modo, também podemos extinguir
mos, discutimos, polemizamos, trapaceamos. conexoes entre palavra e significado consideradas inadequadas pelo
"... mil faces secretas sob a face neutra..." processo de controle das respostas por contingências externas.
Por elas e com elas nos aproximamos do outro. Acolhemos sua Nesse quadro de referências, as palavras sofrem mudanças pura­
palavra, ouvimos e reconhecemos nos seus modos de dizer os fragmen­ mente externas e quantitativas. Elas são associadas a outros elementos e
tos da realidade a que dirige sua atenção, os modos como apreende a eventos do meio ou têm parte de suas conexões extinta.
realidade e como a organiza. Aprendemos. Como as conexões entre palavra e significado são externas (são
Por elas e com elas nos opomos ao outro. Recusamos sua palavra. objeti-:_as, no dizer dos comportamentalistas), podemos aferir o grau de
Lutamos com elas e contra elas. E também aprendemos. correçao, de adequação com que a criança utiliza a palavra.
Por entre elas nos perdemos do outro e o buscamos por entre os
caminhos nos quais procura ocultar-se. A linguagem como função da inteligência
Por entre elas e com elas vamos nos apropriando da história ou
sendo colocados à sua margem; vamos nos apossando das crenças, dos Segundo Piaget, "a linguagem só é acessível à criança em função
gostos, dos valores, enfim, dos modos de viver, de pensar e de conhecer dos progressos de seu pensamento" ( 1 975: 345) .
do nosso tempo. A�é ?s � anos de idade, aproximadamente, a linguagem tem um
No jogo das palavras, construímos a nossa própria identidade, di­
zemos o mundo e nos dizemos no mundo. "Povão não tem pátria, papel ms1g�1ficante no desenvolvimento da criança, porque suas for­
dona!" Mas também é pela palavra que interrogamos essa mesma iden­ mas de aglf sobre o mundo e de compreendê-lo são individuais e
tidade e suspeitamos dela: "Eu, quem eu era? De que lado eu era?" construídas no plano da ação imediata. A criança se relaciona com o
(João Guimarães Rosa). mundo e o elabora por meio dos seus sentidos e de seus movimentos
Afirmação e negação, encontro e desencontro, verdade e trapaça, (período sensório-motor).
centro e margem. Como as palavras chegam a ser palavras? Como seus J?a �ntel�gência sensório-motora deriva a função simbólica, que
significados e sentidos se produzem e circulam nas interlocuções? P.erm�t� a c�1ança desprender-se do seu contexto imediato. A função
Como elas se tomam parte de nós? s1.rnbohca, vista corno possibilidade de representação, é analisada por
Essas questões são intrigantes e tão grandes quanto o homem. Des­ P1aget como um processo individual que cria condições para a aquisi­
de os gregos elas vêm sendo formuladas e discutidas, e rediscutidas, e ção e o desenvolvimento da linguagem.
novamente formuladas. "A função simbólica", afirma Piaget, "é um mecanismo individual
Na psicologia, como em outras áreas do conhecimento, essas ques­ cuja existência prévia é necessária para tomar possível [ .. ] a constitui­
.

tões têm sido respondidas de modos diversos. ção ou aquisição das significações coletivas" ( 1 975: 14).
Nessa a.firmação �e Piaget, fica evidenciada sua concepção de lin­
guagem. A lmguagem mtegra-se à função simbólica. Ela não é sua cau­
O que a psicologia nos diz sa e sim seu resultado. Ela também é apenas um caso particular das
formas de simbolização.
A linguagem como comportamento "A linguagem é certamente um caso particular, especialmente im­
portante, não o nego, mas um caso limitado no conjunto das manifesta­
Watson e Skinner consideram a linguagem como comportamento: ções da função simbólica" (Piatelli-Palmarini, 1 979: 248). Ela diz res­ 81
80 o comportamento verbal. peito aos sistemas de signos coletivos que transmitem ao indivíduo urna
série de conceitos, um sistema pronto de classificações e de relações, formalização dessas idéias não se limita à palavra. Para apreender e
que vão sendo apreendidos e elaborados por ele de acordo com seus elaborar de maneira lógica os conceitos que estamos utilizando, seu
esquemas de ação e de pensamento. psiquismo está trabalhando intensamente. Você está realizando várias
Assim, no processo de aquisição da linguagem, os significados das operações de pensamento. São essas operações que lhe possibilitam
palavras não são diretamente incorporados pela criança. As palavras apreender a lógica do que estamos informando. Ou seja, a lógica depen­
não se imprimem nela como se se tratasse de uma placa fotográfica. Ela de do modo de pensar construído e não da palavra em si, embora esta
elabora ativamente as palavras com base em seus esquemas de assimi­ seja uma condição necessária à elaboração desse tipo de conhecimento.
lação, construindo significados que nem sempre correspondem aos sig­ "O progresso da linguagem não traz em si um correspondente
nificados utilizados por nós, adultos. progresso em operações, ao passo que o inverso é uma realidade'',
Se atentarmos, por exemplo, nas definições que as crianças deram afirma Piaget.
de pátria, na situação descrita no início deste capítulo, vamos perceber No processo de desenvolvimento psicológico dos indivíduos a pa­
que elas diferem da definição que um adulto em geral lhe dá (pátria =
lavra passa, então, da condição de um mero apêndice das estruturas de
país onde nascemos), ou da que aparece num dicionário, em que é pensamento para a condição de parte integrante do pensamento abstrato
enfatizado o sentido genérico de terra natal, país onde nascemos, lugar (Freitag, 1 986).
de origem, nação, além do sentido afetivo de comunidade moral e histó­ Uma vez que a linguagem segue o desenvolvimento do pensamen­
rica. Na fala das crianças, o sentido da palavra pátria está relacionado a to até tomar-se parte dele, as formas como as palavras são usadas e os
suas experiências anteriores, na escola e fora dela (desenhos para colo­ significados atribuídos a elas refletem os níveis de desenvolvimento
rir, classe enfeitada, os desfiles, os soldados), a suas condições imedia­ cognitivo, permitindo-nos considerá-la como um mapa do pensamento.
tas de vida (falta de moradia, falta de dinheiro, desemprego) e até mes­
mo a interesses pessoais projetados na comemoração escolar (a pa­ A linguagem como atividade simbólica constitutiva
quera, o feriado).
Essas diferentes formas de entendimento entre crianças e professo­ Na abordagem histórico-cultural, a palavra não é analisada como
ra, segundo Piaget, resultam das diferenças qualitativas entre o pensa­ uma das nossas funções simbólicas, mas como nosso sistema simbólico
mento infantil e o pensamento adulto.
básico, produzido a partir da necessidade de intercâmbio entre os indiví­
Somente o desenvolvimento do pensamento operatório (tratado no duos durante o trabalho, atividade especificamente humana. Para agir co­
capítulo 4) é que vai possibilitar ao sujeito �preender a� rel�ções lógi­ letivamente o homem teve que criar um sistema de signos que permitisse
cas, de abstração (atividade mental por me10 da qual 1dent1fica�os e a troca de informações específicas e a ação conjunta sobre o mundo, com
separamos os elementos que compõem um todo) � de generahza9ão
_ base em significados compartilhados pelos indivíduos (Kohl: 1993).
(processo mental inverso e complementar da abstraçao que nos poss1b1-
Vista dessa perspectiva, a linguagem é um produto histórico e
lita agrupar vários objetos singulares de acordo com os caracteres co­
significante da atividade mental dos homens, mobilizada a serviço da
muns que neles reconhecemos), contidas nas palavras.
comunicação, do conhecimento e da resolução de problemas.
Como no pensamento operatório o conhecimento não se constrói
Não se trata de algo que se acrescenta às representações, ações e
!
mais a partir de operações sobre o objeto imediato, e, sim, sobre propos ­
desenvolvimento individuais, como considera Piaget. Ela é constitutiva
ções e hipóteses enunciadas verbalmente, a palavra toma-se uma condi­
(é a base) da atividade mental humana, sendo, ao mesmo tempo, um
ção necessária, embora não suficiente, do conhecimento lógico-ab�trato.
processo pessoal e social: tem origem e se realiza nas relações entre
Para termos uma idéia mais clara das relações entre o conhecimen­
indivíduos organizados socialmente, é meio de comunicação entre eles,
to lógico-abstrato e as palavras, tal com� vistas por Piaget, vamos pen­
mas também constitui a reflexão, a compreensão e a elaboração das
sar no processo de elaboração de conhecimento que, ao longo da leitura
próprias experiências e da consciência de si mesmo.
deste texto, você está vivendo.
Como produção cultural humana, a palavra não se desenvolve em
Todas as explicações e suposições elaboradas por Piaget estão sen­
do apresentadas a você através de conceitos (assimilação, acomod�ção, nós naturalmente. É nas nossas relações com o outro, nas nossas
pensamento operatório, etc.). Mesmo quando procuramos exemplificar interações, que ela vai sendo incorporada a nossas funções biológicas, a
com algumas situações o que estamos expondo, é por meio das palavras nossos modos de perceber e de organizar (conhecer) o mundo.
que o fazemos. Durante a leitura você não está observando cri�nças, Nascida num mundo humano repleto de símbolos e de signos, a
nem está em interação direta com elas. Você está elaborando as infor­ criança, desde seus primeiros momentos de vida, está mergulhada em
<?
mações que damos num plano inteiramente abstrato. orno des�aca o um sistema de significações sociais. Os adultos procuram ativamente
próprio Piaget, é difícil imaginar como se desenvolvenam relaçoes de fazer com que a criança incorpore os significados, objetos e modos de
82
conhecimento dessa natureza sem o emprego da palavra. No entanto, a agir criados pelas gerações precedentes. 83 .
Mesmo sabendo que a criança ain­ tudo o que se faz, tudo o que se é e também o que não se é, tudo o que se
da não a entende, a mãe fala com ela, deseja e imagina, tem nome, pode ter nome, é dito, pode ser dito ...
"envolvendo-a em um colo de pala­ Nesse sentido, a linguagem não é algo estranho à criança que ain­
vras temas e quentes", observa poeti­ da não fala. Seu desenvolvimento não depende apenas de fatores in­
camente Giani Rodari, jornalista e trínsecos à criança ou de seus modos de ação sobre o objeto. Depende
educador italiano. A mãe fala à criança das possibilidades que essa criança tem (ou não), nas suas relações
dando significado a seus movimentos, sociais, de se aproximar, de compartilhar e de elaborar os conteúdos e
choros e risos. as formas de organização do conhecimento histórica e culturalmente
Pela palavra da mãe, o choro trans­ desenvolvidos e materializados nas palavras.
forma-se em chamado, e o movimento A elaboração do mundo tem como intermediário o outro. Por sua
frustrado de agarrar, inscrito no ar pe­ mediação, revestida de gestos, atos e palavras, vamos nos integrando à
las mãos de um bebê voltadas para um cultura, vamos aprendendo a ser humanos. Pela palavra do outro, por
objeto qualquer, transforma-se em ges­ sua presença, pelo seu reconhecimento e encorajamento a cada pequeno
to de apontar. evento que indica nossa progressiva humanização, nos reconhecemos.
A mãe, observando as tentativas da criança para agarrar o objeto, Somos nomeados e nomeamos...
A cria11ça ai11da entrega-o a ela, interpretando seu movimento: "Ela quer esta bola". A palavra, portanto, não é apenas adquirida por nós no curso do
niío entende, mas Nesse momento um significado é atribuído pela mãe ao movimento _ do
a mãe fala
desenvolvimento. Ela nos constitui e nos transforma. Com suas fun­
com ela,
bebê, transformando-o em gesto. A transformação do movimento em ções designativa e conceituai, a palavra é mediadora de todo nosso
apresentando-the gesto produzida pelas pessoas que cercam a criança vai sendo incorpo­ processo de elaboração do mundo e de nós mesmos. Ela objetiva esse
o mu11do. rada por ela ao longo de experiências semelhantes. �esse processo, a processo, integra-o e direciona a atividade mental por nós desenvolvi­
criança passa a utilizar o movimento de pegar não mais como uma ten­ da. "O desenvolvimento intelectual da criança'', diz Vygotsky, expres­
tativa de agarrar o objeto, mas como um gesto dirigido às pessoas qu� a sando um ponto de vista contrário ao defendido por Piaget, "depende
cercam. O movimento de agarrar suaviza-se e tem agora outro s1gmfi­ _
do seu domínio dos meios sociais de pensamento, ou seja, da lingua­
cado, "Quero aquela bo�a", e outro destinatário, o adulto. . gem" ( 1 979: 73).
. · E pela interpretação e nomeação feitas pelo ou- Nesse processo, palavra e pensamento fundem-se. Uma palavra
l tro que os movimentos do corpo convertem-se em sem significado é um som vazio, afirma Vygotsky, da mesma forma que
gestos, apuram-se e tomam-se mais complexos. Os um pensamento que não se materializa em palavras se perde. A palavra
movimentos transformados em gestos são meios de não é apenas exwessão ou comunicação do pensamento.· Ela é um ato
comunicação, modos de manifestar e apreender de­ de pensamento. E por meio das palavras que o pensamento passa a exis­
sejos, intenções, emoções, informações, formas de tir. Nas palavras ele encontra sua realidade e sua forma. "Esqueci a pa­
direcionar e controlar (reciprocamente) os compor­ lavra que pretendia dizer, e meu pensamento, privado de sua substância,
tamentos dos sujeitos envolvidos na interação. Pela volta ao reino das sombras", reflete Vygotsky, citando o poeta russo
imitação, pela repetição, no ritual das relações so­ Mandelshtam.
ciais cotidianas, a criança aprende a dizer o que quer Não se trata, portanto, de vestir as palavras com o pensamento,
e a entender o outro pelo gesto. considera Vygotsky, nem de vestir o pensamento com palavras. Pen­
O mesmo acontece com o balbucio, que se samento e palavra se articulam dinamicamente na prática social da
transforma em esboço de fala. É a mãe ou alguém linguagem.
mais velho do que a criança e em interação com ela Nesse sentido, as palavras não são formas isoladas e imutáveis.
que atribui inicialmente significados a eles. Elas são produzidas na dinâmica social, seus significados não são es­
O universo da linguagem chega à criança me­ táticos. Uma palavra que nasce para designar um conceito vai sofren­
diado pelos outros membros de seu grupo social. A do modificações, vai sendo reelaborada no jogo das práticas e das
A cria11ça apre11de a dizer o que quer e a
mãe fala à criança nomeando o mundo. Ela nomeia, forças sociais.
aponta, compartilha s1gm ·
· · fi1cados com a cnança.
e11re11der 0 outro pelo gesto. Por exemplo, a palavra cultura (do latim colere, "cultivar") inicial­
Nessas relações, o mundo vai-se povoando de obje­ mente estava ligada às práticas agrícolas, significando o cuidado com
tos, de cores e de formas, de gente diversa, com no­ plantas e animais. Pensadores romanos ampliaram esse significado,
84
mes e modos de ser, de dizer e de fazer também diversos. O mundo passando a palavra a designar também o cultivo pessoal, o refinamento
povoa-se de palavras, pois tudo o que se percebe, tudo o que se sente, dos costumes, a educação elaborada de uma pessoa. Na Idade Moderna, 85
com novas experiências incorporadas ao seu significado, a palavra cul­
tura passou a designar tanto uma classificação geral das artes, da reli­
gião, dos valores de uma sociedade como a idéia de civilização ou, ain­
Sugestão de atividades
da, a totalidade da vida social dos povos, englobando suas práticas ma­
teriais e simbólicas.
De modo similar ao que acontece na história social, o significado Organizando as informações do texto
das palavras e das relações e generalizações nelas contidas também se
transforma no processo de desenvolvimento das crianças. Releia o texto considerando as relações entre pensamento e lingua­
"Quando uma palavra nova é aprendida por uma criança, o seu de­ gem vistas por Piaget e por Vygotsky.
senvolvimento mal começou ... ", destaca Vygotsky ( 1 987: 7 1 ). Acom­ Reflita sobre as seguintes questões:
panhar esse desenvolvimento foi uma tarefa fascinante a que Vygotsky,
tal como Piaget, também se propôs. • Como a linguagem é concebida por eles?
Enquanto Piaget procurou mapear o desenvolvimento do pensa­ • Que funções da palavra são enfatizadas em seus trabalhos?
mento por meio da linguagem, descrevendo minuciosamente o papel • De que modo cada um deles explica o desenvolvimento da palavra
desempenhado pela palavra em cada um dos estágios da formação do nos indivíduos?
pensamento lógico, Vygotsky procurou retratar o movimento de articu­
lação entre palavra e pensamento nas situações e tarefas com que as
crianças defrontam nas suas relações sociais. Refletindo sobre as informações do texto
-

A relação entre o pensamento e a palavra, analisa Vygotsky, "não é


Segundo Piaget, a linguagem reflete o pensamento. A partir da con­
uma coisa mas um processo, um movimento contínuo de vaivém do
cepção de Vygotsky, essa relação é verdadeira ou não? Justifique sua
pensamento para a palavra, e vice-versa. Nesse processo, a relação en­
resposta com base nos dados do texto.
tre o pensamento e a palavra passa por transformações ..." ( 1 987: 104).
No capítulo seguinte, vamos tratar das relações entre pensamento
e linguagem ao longo do desenvolvimento da criança. Exercitando a análise

Você conhece o livro Palavras, palavrinhas e palavrões, de Ana


Maria Machado (Editora Codecri)? Nele, essa escritora brasileira, auto­
ra de fascinantes obras de literatura infantil, conta, com muita sensibili­
dade e humor, a história de uma menina que gostava muito de palavras
e estava sempre querendo aprender palavras novas ...
Leia o livro e escreva um comentário sobre ele, tendo em vista as
seguintes questões:

• Como as crianças se relacionam com as palavras?


• Como os adultos participam dessas relações?

Trabalho de campo

Após a leitura do livro de Ana Maria Machado, comece a escutar


com atenção falas de crianças, observando seus modos de dizer. Nos
seus estágios, nas suas relações familiares, em contato com a vizinhan­
ça, aproxime-se das crianças, ouça-as e converse com elas. Registre
esses momentos, anotando a situação em que a interlocução (a relação
verbal) aconteceu, quais as pessoas envolvidas e as falas de cada uma
delas. Não se esqueça de registrar as idades das crianças e as datas das
86 observações. 87
Sugestão de leituras

Vamos apurar nossa sensibilidade e nossa relação com a palavra.


Capítulo 8
Só assim poderemos entrar em sintonia com a palavra da criança, com
seu aparente nonsense. Para isso vamos ler, ler muito... Poesias (Drum­
mond Cecília Meireles, Mário Quintana, Fernando Pessoa, etc.), con­

tos, r mances, novelas, crônicas (Clarice Lispector, Drummond, Mário
de Andrade, Machado de Assis, Graciliano Ramos, etc.), literatura in­
fantil (Ana Maria Machado, Sylvia Orthof, Lygia Bojunga Nunes, B ar­
tolomeu de Queiroz, etc.).
O humor nos mostra especialmente a ambigüidade da palavra. Fi­ A criança e a palavra
que atento aos quadrinhos e charges dos jornais. Leia, entre outras, pro­
duções como as de Quino (Toda Mafalda. Lisboa, Edições D. Quixote,
1 978), Ziraldo (As anedotinhas do bichinho da maçã, Ed. Melhoramen­
tos), Eva Furnari, a criadora da Bruxinha. Como a criança elabora a palavra ao longo de seu desenvolvi­
Para ajustar a sensibilidade aos modos de ser e de dizer da criança e mento?
à sua fantasia, leia A gramática da fantasia, de Giani Rodari (Editorial Tanto Piaget quanto Vygotsky consideram que os modos de elabo­
Summus), e a maravilhosa História sem fim, de Michael Ende (Editora ração da palavra não permanecem imutáveis ao longo do desenvolvi­
Martins Fontes), que também foi filmada e existe disponível em vídeo mento infantil.
(o filme tem o mesmo título do livro). Sendo a linguagem para Piaget uma função do pensamento, seu
trabalho trata das formas que ela assume e do papel que ela desempenha
em cada um dos estágios do desenvolvimento do pensamento lógico. A
fala da criança é, assim, enfocada a partir do processo do pensamento.
Para Vygotsky, a palavra e o pensamento articulam-se na atividade
de compreensão e comunicação envolvida nas relações sociais. O foco
da análise é, então, colocado no processo como um todo, interessando
apreender as atividades intelectuais envolvidas, os modos como a pala­
vra dirige essas atividades e as condições de interação em que elas vão
sendo produzidas.

Piaget e o papel da linguagem no desenvolvimento do


pensamento lógico: do símbolo individual aos conceitos

Até os 2 anos aproximadamente, a criança passa por uma série de


transformações que a dotam dos pré-requisitos para a aquisição e elabo­
ração da linguagem.
Nesse período, o desenvolvimento da criança passa do nível
neonatal, marcado pelo funcionamento dos reflexos, para o de uma or­
ganização perceptiva e motora dos fenômenos do meio. A consciência
que a criança tem do meio externo se expande lentamente, tornando-se
o eu e o mundo progressivamente diferenciados.
É no curso dessas relações que a permanência dos objetos vai sen­
do construída pela criança. O brinquedo, que ao ser retirado da criança
88 89
deixava de existir para ela, passa a ser procurado. A criança começa a
perceber que os objetos, as pessoas, continuam existindo mesmo quan­ acontecer com a palavra mamã, utilizada para designar a própria mãe,
do estão fora do seu campo de visão. Formam-se as primeiras imagens as roupas da mãe no armário, qualquer mulher acompanhada de uma
mentais dos objetos ausentes do meio imediato, as quais possibilitam o criança, ou mesmo para externar o desejo que sente de algo.
desenvolvimento da função simbólica, mecanismo comum aos diferen­ Essas primeiras palavras, que Piaget chama de primeiros esquemas
tes sistemas de representação (jogo, imitação, imagens interiores, sim­ verbais, têm um forte caráter imitativo (elas são onomatopéias ou imita­
bolização, linguagem verbal). ção de palavras usadas na linguagem adulta) e não têm um significado
fixo (seu significado oscila, conforme as situações com que a criança
O desenvolvimento da função simbólica defronta).
Tais características, segundo Piaget, são indicadores do tipo de
Com o desenvolvimento da função simbólica, a partir do segundo pensamento dominante na criança nesse período, o pensamento sin­
ano de vida, o eu e o mundo da criança reorganizam-se num novo pla­ crético. Ela agrupa vários acontecimentos e objetos numa mesma de­
no: o plano representativo. signação, independentemente das relações lógicas existentes entre eles.
A criança reproduz, imita por meio de gestos ou de sons Para formar esses agrupamentos, ela leva em consideração apenas seu
-
(onomatopéias) o comportamento de um modelo ausente. Ela represen­ próprio ponto de vista, suas experiências.
ta simbolicamente um objeto por outro no jogo do faz-de-conta. Assim, a criança pode reunir na expressão bó
Empregando uma imagem mental, um símbolo, a criança relembra tanto a bola quanto um cubo com o qual ela brinca
fatos, objetos, pessoas, acontecimentos que ocorreram em outras oca­ ou o tapete da sala onde ela brinca com a bola,
siões. O espaço e o tempo dilatam-se. O desenvolvimento da função sim­ sendo o elo entre os significantes apenas sua ex­
bólica exime-a de agir somente em situações do meio imediato. Ela passa periência pessoal em relação a eles.
a se relacionar com ações ou fatos sem praticá-los efetivamente. Pela re­ A criança, nessa fase, também não considera
presentação mental do mundo externo e de suas próprias ações, a criança simultaneamente as múltiplas dimensões de um
os interioriza. Ela começa a distinguir significantes (imagens que repre­ objeto ou de um acontecimento. Aspectos particu­
sentam fatos, pessoas ou objetos) e significados (fatos, objetos ou pes­ lares são tomados pelo todo, enquanto dimensões
soas ausentes à percepção imediata, aos quais as imagens se referem). relevantes são esquecidas ou negligenciadas, do
O desenvolvimento da representação cria as condições para a aqui­ mesmo modo que cada aspecto ou dimensão es­
sição da linguagem. A capacidade de construir símbolos, desenvolvida pecífica dos objetos ou dos fatos é enfocada sepa­
na representação, possibilita a aquisição das significações coletivas (a radamente. Por exemplo, a criança pode utilizar a
linguagem social). As palavras da linguagem social, que vão sendo ad­ mesma designação para um cachorrinho de pelú­
quiridas pela criança, passam a acompanhar as imagens mentais e os cia com olhos de vidro verdes e para o botão re­
símbolos que ela utiliza inicialmente. dondo e verde de uma roupa.
As relações da criança com as palavras se processam gradual­ De posse desses primeiros esquemas verbais,
mente, da mesma forma que a passagem da ação motora para a ação ela aprende rapidamente a falar palavras-frases,
interiorizada. como Papá (Quero comer, Vou comer), frases de
A criança não consegue de imediato utilizar as palavras em toda a duas palavras, como Nenê dá (para pedir algo), e
sua complexidade lógica. Ela utiliza a linguagem de forma imitativa, frases completas, que, inicialmente, são ordens ou expressões de dese­
Os primeiros
simbólica e pré-conceituai. jo, enunciando uma ação possível, ligada ao ato imediato e presente. esquemas verbais
Vejamos como isso acontece. Dessas frases, a criança passa para a construção de representa­ ncio têm um
ções verbais, evocando e reconstituindo acontecimentos não mais li­ sig11ificodo fixo,

Os primeiros esquemas verbais gados ao ato imediato. Por exemplo, ela enumera, para si mesma ou osci/a11do
conforme a
para uma outra pessoa, coisas que viu ou utilizou para brincar, os situação 1•ivida.
As primeiras palavras usadas pela criança reúnem sob uma mesma alimentos que consumiu numa das refeições, algum tempo depois de
denominação vários objetos e situações que a interessam ou que fazem ter vivido tais situações. Ela conta fatos vividos ou presenciados por
parte de sua experiência. Ela pode, por exemplo, usar uma onomatopéia ela, como um gafanhoto pulando no jardim (Fanhoto, fanhoto sal­
clássica, como bruuuuu, para designar o carro que passa pela rua, qual­ tar.. ) ou a saída da tia (Ti Madena no automove, parti no automove),
.

quer meio de transporte que apareça em sua frente, pessoas ou animais como exemplifica Piaget.
que se movimentam na rua, brinquedos que se movimentam, assim A construção das primeiras representações verbais se dá por meio
90 da narrativa. Na narrativa, a linguagem deixa de acompanhar simples-
como para manifestar o desejo de andar de carro, etc. O mesmo pode
mente o ato para reconstituir uma ação passada. A palavra deixa de ser experiência particular: "um senhor que tem Luciennes e Jacquelines".
parte do ato para tomar-se um signo, uma evocação do ato, passando a A classe, analisa Piaget, é uma espécie de indivíduo-tipo que se repete
ter a função de representação (no sentido de nova apresentação) e tam­ em vários exemplares.
bém de comunicação - a criança dirige essas narrativas a si mesma ou Do mesmo modo, o indivíduo particular, convertido em indivíduo­
a outra pessoa. tipo, tem menos individualidade. Isso se evidencia na maneira como
Da narrativa, a criança Jacqueline define "o que são Luciennes". Ela não enfatiza a singulari­
passa para a descrição, que é, dade da própria irmã, nem a relação particular de parentesco que as liga.
nas palavras de Piaget, "uma Ela refere-se à irmã como um exemplo típico de uma categoria genérica
narrativa que se prolonga até - a das meninas pequenas.
atualizar-se". Na descrição, a O mesmo acontece no episódio a seguir.
palavra acompanha a ação em
curso, mas não faz parte dela, Rafael, 3 anos, ao ganhar do pai a camiseta da Seleção Brasi­
como na linguagem inicial. A leira de Futebol, exclama: "Oba, pai! O Romário! ".
palavra descreve, reapresenta o E, ao encontrar na escola várias crianças com a camiseta da
que foi percebido na situação; seleção, comenta com a mãe: " Viu quanto Romário ? ".
não mais enuncia ações possí­
(Episódio extraído da experiência familiar de uma das autoras.)
veis, mas denomina os elemen­
tos envolvidos na situação. A
A criança pensa por imagens, e são as imagens que marcam a signi­
criança nomeia, para si mesma
ficação que ela atribui às palavras. O nome do indivíduo-tipo - um jo­
ou para outras pessoas, objetos
gador específico - é utilizado por ela para denominar um grupo de
A narrativa ou pessoas que a cercam (boneco, pedra, gato, papai, mamãe, vovó),
jogadores e as camisetas utilizadas por eles.
torna-se um partes desses objetos ou dessas pessoas (nariz, boca, etc.), ações, etc.
Como a criança generaliza com base na percepção imediata de se­
recurso de Piaget destaca como indicador relevante das transformações da
comunicação melhanças e não a partir de considerações lógicas ou relacionais, suas
relação da criança com a palavra o aparecimento da pergunta O que
para a criança. categorias oscilam entre a generalização e a individualização.
é?, que se relaciona ao mesmo tempo com o nome de objetos ou pes­
Os ensaios de generalização e individualização também aparecem
soas particulares e com o conceito ou a classe do objeto designado
em relação às estruturas da língua.
(isto é, o conjunto composto por todos os elementos referidos pela
palavra).
Beto, aos 5 anos, utiliza a expressão "tavo " por estava, em
A nomeação, nessa fase, oscila entre a generalidade (conceito) e a
frases como "Eu tavo com fome", "Eu tavo com sono ", em que ele
individualidade. Piaget relata um episódio envolvendo sua filha mais
próprio é o sujeito. Corrigido pela mãe, ele resiste: "Não, mãe. Eu
velha, Jacqueline, quando tinha 3 anos e 2 meses.
sou menino. Menina é que fala tava ".
Ao cruzar com um homem na rua, a criança pergunta ao pai: Regina, 7 anos, ao aprender na escola a classificação das pa­
- "Este senhor é um papai? " lavras segundo o gênero, pergunta à mãe ao fazer um exercício
- "Que é que é um papai ? " escolar: "Mamãe, eu sou feminina porque sou menina, e mamãe...
Jacqueline responde: éfemulher?"
- "É um senhor. Ele tem muitas Luciennes (nome de sua irmã (Episódios extraídos da experiência familiar d e uma das autoras.)
mais nova) e muitas Jacquelines. "
- "Que é que são Luciennes? " A criança também considera expressões relacionais, como mais
- "São meninas pequenas e as Jacquelines são meninas escuro ou maior, como atributos absolutos e não comparativos. Assim,
grandes. " para ela mais escuro significa "muito escuro", do mesmo modo que
maior significa "muito grande" .
<Episódio extraído do livro A formCl�'lio do sim/mio 110 criança.
p. 289.) O caráter imitativo e sincrético das primeiras palavras da criança, a
não-generalização e a não-individualidade das primeiras representa­
Ao nomear o senhor como "um papai", a criança o inclui em uma ções verbais estão mais próximos dos símbolos individuais do que dos
classe genérica - a classe dos pais, composta por homens que têm fi­ conceitos utilizados na linguagem adulta. Daí Piaget considerar os mo­
92 lhos. No entanto, ao explicitar o conceito de pai, define-o a partir da sua dos de elaboração da palavra pela criança como pré-conceitos. 93
O desenvolvimento da elaboração conceituai das palavras A ausência de critérios lógicos na elaboração conceituai na criança
está exemplificada na situação de sala de aula que descrevemos e anali­
Nós, adultos, utilizamos a linguagem conceitualmente. Os concei­ samos no capítulo 7. Naquela situação, observamos como as crianças
tos supõem uma definição fixa, que depende de uma convenção social construíam o significado da palavra pátria: a partir das suas experiên­
estável. Ou seja, nossas palavras não se restringem a designar determi­ cias e das imagens delas resultantes, sem considerar elementos logica­
nado objeto ou acontecimento. A:plicando-se a um conjunto de elemen­ mente pertinentes ao conceito estabelecido. Vimos também como esses
tos da realidade, elas generalizam a informação sobre o objeto, incluin­ elementos flutuavam ao sabor da experiência pessoal imediata a que
do-o em uma categoria. eram relacionados. Por exemplo, o soldado é o elemento que define a
Como essa generalização se baseia numa correspondência lógica, palavra pátria em razão de sua presença nos desfiles de 7 de Setembro
ela não muda ao sabor das situações. Os traços comuns definidores de ou dos desenhos feitos na escola.
uma categoria de objetos tomam-se estáveis. O caráter generalizante e O desenvolvimento da capacidade de apreender conceitualmente a
estável da palavra nos possibilita transmitir o pensamento a outra pes­ linguagem social depende do desenvolvimento das operações de pensa­
soa e sermos por ela compreendidos, bem como considerar o ponto de mento, considera Piaget. As operações são ações interiorizadas que vi­
vista do outro e sua experiência. sam à explicação e à constatação. Nelas, as ações são coordenadas e
Por exemplo, ao dizer a palavra relógio, não temos em mente ape­ reversíveis (conforme vimos no capítulo 4).
nas determinado relógio, e sim um tipo, uma categoria de objetos a que Inicialmente, as operações desenvolvem-se em relação a situações
essa palavra se aplica. Do mesmo modo, aqueles que nos escutam não imediatas. A criança ainda necessita do suporte perceptivo para apreen­
têm em mente um relógio específico, e sim esse tipo de objeto, que é o der as relações lógicas, para considerar as relações de inclusão entre
que lhes permite compreender o sentido generalizante dessa palavra. parte e todo (classificação), para apreender outros pontos de vista além
Entre os significados das palavras que utilizamos, há graus de da própria experiência individual (descentração). Ela elabora generali­
generalização distintos, que nos permitem estabelecer relações lógicas zações a partir de exemplos concretos.
entre os objetos e eventos do meio, incluindo uma categoria em outra. As características dos modos de pensar da criança nesse período
Podemos nos referir, por exemplo, ao cachorro que temos em casa não derivam das categorias lógicas da linguagem. A linguagem facilita,
como bassê, animal doméstico, ser vivo. Ao utilizarmos tais palavras, segundo Piaget, a generalização do pensamento, mas não é sua fonte.
estamos incluindo o objeto dado - o cachorro - em um sistema de Piaget relata que diversos estudos possibilitaram perceber que as
categorias, hierarquicamente organizadas, de contraposições abstra­ crianças resolvem vários problemas, embora tenham dificuldade para
tas: um cão bassê não é um buldogue, nem um cachorro vira-lata; um explicar verbalmente o raciocínio que lhes permite chegar à solução, ou
cachorro, como alguns outros animais, é um animal doméstico, em seja, elas não conseguem transpor em palavras toda a atividade mental
oposição a outros animais que são selvagens; como animal, o cachor­ que já sabem colocar em atos.
ro é um ser vivo e não um ser inanimado, etc. As expressões bassê, Somente na adolescência, o indivíduo toma-se dotado do raciocí­
animal doméstico e ser vivo mantêm entre si relações lógico-verbais nio dedutivo-hipotético, que lhe permite fazer considerações e racio­
que independem das características particulares de cada objeto ou cinar apenas no plano representativo, atingindo plenamente o pensa­
evento em si. mento operatório. Nesse estágio, no qual as operações não se cons­
troem mais sobre os objetos, sobre as situações imediatas, mas sobre
proposições, a linguagem toma-se uma condição necessária do pensa­
vivo inanimado
mento, passando a fazer parte dele. É nessa fase que os indivíduos tor­
nam-se capazes de apreender conceitualmente a linguagem social.
animal vegetal

animal animal Vygotsky e a elaboração conceituai -


doméstico selvagem
o desenvolvimento do significado da palavra na criança
omlo gato
Diferentemente de Piaget, Vygotsky considera que a elaboração
conceituai pela palavra, desenvolvida culturalmente pelos indivíduos
bassê ovelheiro como forma de refletirem cognitivamente suas experiências, não ocorre
naturalmente na criança. Ela começa nas fases mais precoces da infân­
"Roy" "Chiquinho" cia, por meio do emprego da fu nção mais simples da palavra - a no- 95. ·.
meação -, e seu desenvolvimento depende das possibilidades que cada A função designativa da palavra, por mais simples que pareça, é
indivíduo tem (ou não) de compartilhar e elaborar em suas interações os produto de um longo desenvolvimento. Inicialmente, a palavra está vin­
conteúdos e as formas de organização dos conceitos. culada à situação em que é ouvida e utilizada. Ela passa a ter uma referên­
cia estável, embora conserve ainda sua ligação com a ação prática, so­
As primeiras palavras mente quando a criança atinge mais ou menos os 3 anos (Luria: 1 987).

Segundo pesquisas conduzidas por vários psi­ A elaboração das funções analítica e generalizadora
cólogos e apresentadas por Luria no livro Pensa­ da palavra
mento e linguagem ( 1 987: capítulo 3), a função
denotativa (função de nomeação) da palavra de­ Quando a palavra adquire uma referência estável, o desenvolvi­
senvolve-se gradualmente na criança desde seus
mento de seu significado ainda não está concluído. Embora sua função
primeiros meses de vida, entrelaçada com fatores
designadora pareça ser constante e a mesma para um adulto e uma
não-verbais.
criança, permitindo que ambos se comuniquem, suas funções analítica
Pouco a pouco, a criança responde ao que os
e generalizadora sofrem profundas transformações à medida que o indi­
adultos dizem a ela voltando o olhar para os obje­
víduo avança no domínio das operações intelectuais culturalmente de­
tos nomeados ou tentando alcançá-los. Inicialmen­
senvolvidas.
te o significado da palavra depende da situação em
Vejamos uma situação que nos ajuda a perceber essas diferenças de
que a criança se encontra ao ouvi-la, da pessoa que
elaboração.
a pronuncia, da entonação de voz utilizada, do em­
prego (ou não) de gestos, etc. Gradualmente, cada Voltando da escola, a mãe conversava com Eduardo, seu filho
um desses fatores situacionais enumerados vai dei­ de 3 anos.
xando de ter influência decisiva na compreensão Mãe: Quando a gente chegar em casa, vamos brincar?! Em um diálogo,
da palavra. Por volta dos 3 anos de idade, ela reage Filho (emburrado): Não quero... mãe e filho
. 4 .. �>., .
de modo seletivo ao objeto nomeado, independen- Mãe: Ah..., vamos jogar bingo! expressam
_
---.,.�� temente da situação. diferentes grallS
Filho: Não quero!
O mesmo processo acontece quanto à utilização da palavra. Dife­ Mãe: Ih, bobinho. Bingo é uma delícia!
de generaliwção
A palavra rentemente dos primeiros sons que a criança emite, que são manifesta­ Filho (olhando espantado para a mãe): É de comer?
de uma mesma
palavra.
desenvolve-se ções de seu estado emocional, suas primeiras palavras são tentativas de
gradualmente "ª -
reprodução dos sons assimilados da fala do adulto. Essas primeiras pa- (Episódio narrado pela mãe a uma das autoras.)
criança, desde os
lavras estão fortemente vinculadas a at1v1·d ade em que a cnança esta
· '
' ·
seus primeiros
O adjetivo delícia, utili­
meses de vida. envolvida. Seu significado é difuso, uma vez que seu referente (o objeto
ou a pessoa que a palavra nomeia) muda conforme a situação em que zado pela mãe, tem uma re­
elas são pronunciadas. ferência estável tanto para
ela quanto para a criança:
Rafael, aos 8 meses, utilizava a expressão bá, para nomear o ambos revelam, na interlo­
irmão (Beto), a mãe e o pai sempre que estes se aproximavam dele, cução, que aplicam esse qua­
e também para chamá-los quando estavam distantes, mas dentro de lificativo a determinados ti­
seu campo visual. A expressão bá, acompanhada do gesto de apon­ ros de situação da realidade.
tar; era utilizada também com afinalidade de indicar; para qualquer É possível perceber também,
pessoa, algum objeto que ele desejava que alcançassem para ele. na dinâmica enunciativa, que
Gradativamente, Rafael passou a utilizar a expressão bá ape­ os dois elaboram a palavra
nas para referir-se ao irmão. Bá se diferenciou de mã e pá, que ele delícia de forma generali­
começou a empregar para designar o pai e a mãe (e há que se des­ zante: para a mãe, delícia é
tacar; nesse caso, a persistência do irmão em ensinar Rafael a dizer um qualificativo que se apli­
as palavras mamãe e papai). Depois, novas palavras passaram a ca a coisas ou situações que produzem deleite; para a criança, delícia é
indicar aquilo que ele desejava, até que, quando Rafael chegou aos um qualificativo que se aplica a alimentos gostosos. A diferença está no
3 anos, o próprio irmão deixou de ser bá, passando a ser Beto. grau de generalização que a palavra tem para cada um dos
96
(Episódio extraído da experiência familinr de uma das autoras.) interlocutores: mais amplo para a mãe e mais restrito para a criança.
Como destaca Vygotsky, o conceito ligado a uma palavra sempre começando a ter uma idéia vaga do significado da palavra. Sente neces­
representa um ato de generalização, qualquer que seja a idade da pes­ sidade de usá-la, e, ao fazê-lo, o grupo confirma a adequação do signifi­
soa. Mas essa generalização se amplia à medida que os contextos vão cado esboçado, fortalecendo-o. A palavra agora lhe pertence: "Daí,
sendo diversificados e as funções intelectuais complexas, como a abs­ mãe, eu vi que eu tinha aprendido".
tração e a generalização, vão sendo elaboradas e consolidadas. Nesse Funções intelectuais básicas - atenção, formação de imagens, as­
sentido, diz-nos Vygotsky, "quando uma palavra nova é aprendida pela sociação, comparação, inferências - participam da elaboração do sig­
criança, o seu desenvolvimento mal começou" ( 1 987: 7 1 ). nificado da palavra, associadas a ela. A palavra funciona como meio
para centrar ativamente a atenção, para abstrair e selecionar os traços
Gustavo, de 6 anos, era o garoto menor da turma defutebol da relevantes na situação considerada (análise), para estabelecer relações
rua. Apesar da diferença de idade, os garotos de 8 a 1 0 anos o entre esses traços e sintetizá-los (generalização).
aceitavam, porque era bom de bola e se enquadrava às exigências Por pressupor a articulação entre funções intelectuais complexas,
da turma: não reclamava e esperava sua vez de jogar. como a generalização e a análise, que não podem ser dominadas na
Um dia, ele contou para a mãe a grande dificuldade por que aprendizagem inicial, o processo de elaboração conceituai desenvolve­
passara para descobrir o significado de uma palavra muito utiliza­ se na infância por meio do pensamento por complexos e dos conceitos
da pelos meninos durante o jogo. A palavra era frangueiro. Ela lhe potenciais.
causava estranheza porque ele a associava apenas a frangos ( "Eu
pensava que era o lugar de venderfrango"), e não ao futebol. Ele O pensamento por complexos e os conceitos potenciais
não podia perguntar aos meninos o que eles queriam dizer com
aquela palavra, pois seria alvo de gozações. O pensamento por complexos cria as bases para a generalização.
Assim, decidiu ficar atento às situações do jogo para tentar Nesse tipo de pensamento a criança busca estabelecer relações entre os
entender em que momentos a palavra era usada. O que acontecia elementos da realidade, unificar impressões dispersas. Por exemplo, !!la
durante as jogadas para que alguém a pronunciasse ? pode definir a palavra supermercado como o lugar onde a mãe compra
Depois de observar por vários dias, Gustavo chegou à conclu­ doces, bolachas, iogurte, sucos. Nesse caso, a palavra é elaborada com
são de que a palavra estava relacionada ao goleiro que deixava base no sentido afetivo que o supermercado tem para a criança. Ela tam­
passar a bola e, na primeira oportunidade que teve, berrou: bém pode definir a palavra como um lugar grande e movimentado aon­
"Frangueiro! ". de vai com os pais para fazer compras. Nessa situação, a palavra super­
- Daí, mãe, eu vi que eu tinha aprendido. Sabe por quê? Por­ mercado é elaborada com base na imagem direta do supermercado con­
que eles viraram pra mim e disseram "Aí, Gutão! ". creto e na situação real de compra.
(Episódio lembrado e relatado por Estela. mãe de Guto. a uma das No pensamento por complexos, a palavra evoca e agrupa uma série
autoras.) de elementos e situações da realidade não apenas em razão das impres­
sões subjetivas da criança, mas também das relações que de fato exis­
No processo de elaboração do significado, o indivíduo explora o tem entre esses elementos nos seus contextos de uso (os supermercados
material sensorial e opera intelectualmente sobre ele, orientado pela são realmente lugares de compra, onde doces, bolachas, iogurte e sucos
palavra em funcionamento nas interações. A palavra aprendida, fran­ são encontrados).
gueiro, suscita imagens (frango) e associações (lugar de vender frango) Segundo Vygotsky, a diferença principal entre um pensamento por
das quais a criança lança mão para apreender seu sentido. Como o con­ complexos e um conceito está no tipo de relação que une os elementos
texto não comporta essas primeiras tentativas de significação, a palavra numa palavra. No pensamento por complexos as relações estabelecidas
passa a dirigir as observações da criança, que centra ativamente sua são concretas, factuais e tão diversas quanto os contatos e as relações
atenção nas situações do jogo e nas enunciações nele envolvidas. que de fato existem entre os elementos da realidade. Diferentemente, o
As situações não revelam por si mesmas os possíveis significados conceito ancora-se em relações lógicas, cujo grau de generalização ul­
da palavra frangueiro. É preciso analisá-las, compará-las. O que dife­ trapassa as relações imediatas.
rencia as situações em que a palavra é empregada daquelas em que não Voltando ao exemplo do supermercado, ao procurarmos no dicio­
é? Qual a semelhança entre todas as situações em que a palavra é utili­ nário essa palavra, encontramos uma definição como esta: "Loja de
zada? Nesse processo de observação e análise, algumas peculiaridades auto-serviço, onde em ampla área se expõe à venda grande variedade de
se fazem notar: frangueiro é uma palavra dirigida ao goleiro, e não a mercadorias, particularmente gêneros alimentícios, bebidas, artigos de
outros jogadores; frangueiro é uma palavra dirigida ao goleiro em de­ limpeza doméstica e perfumaria popular" (Aurélio Buarque de Holanda
terminadas situações, e não em outras. A criança analisa e generaliza, Ferreira. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Nova Fronteira: Rio
de Janeiro, 1 986). A definição conceituai da palavra supermercado sintetizados novamente, e a síntese abstrata daí resultante torna-se o
comporta o complexo elaborado pela criança, mas o ultrapassa em mui­ principal instrumento de pensamento" (Vygotsky, 1 987 : 68). A palavra
to. Ela remete a um tipo de sistema de compra (auto-serviço), que é passa a ser usada com referência a categorias abstratas. Sua nova função
parte de um sistema social de troca (o comércio), que é parte de um torna-se codificar a experiência, os objetos e situações do mundo em
sistema econômico (modo socialmente organizado de produção e distri­ esquemas conceituais.
buição). Na elaboração conceituai da palavra, as relações imediatas e Para exemplificar essas características dos conceitos, basta recor­
parciais integram-se e subordinam-se a relações lógico-verbais, que darmos as definições dicionarizadas de supermercado e de pátria já
abarcam muito mais elementos da palavra, generalizando-a. apresentadas neste capítulo. Elas envolvem as experiências que as crian­
Embora a busca de ligações seja o traço distintivo do pensamento ças destacam em suas elaborações, mas as superam em generalidade.
por complexos, para chegar a elas a criança dá seus primeiros passos na
análise: ela destaca alguns elementos na totalidade da experiência com O papel do outro no desenvolvimento da
base no grau máximo de semelhança entre eles. Ela isola essa seme­ elaboração conceituai
lhança, tomando-a como atributo para definir a palavra.
No caso da palavra supermercado, por exemplo, um traço distinti­ As mudanças nas formas de utilização e de compreensão das pala­
vo que costuma aparecer nas elaborações das crianças é a função social vras ao longo do desenvolvimento da criança são produzidas nas suas
de lugar de compra, ainda que por trás dessa idéia estejam relações interações verbais com os adultos, crianças mais velhas e produtos cul­
afetivas e a imagem imediata do próprio supermercado. turais (livros, revistas, jornais, TV, propagandas, etc.). Nessas relações,
Podemos encontrar outro exemplo desse processo de elaboração a criança integra-se· ao fluxo da comunicação verbal, adquirindo novas
conceituai na situação de sala de aula descrita no início do capítulo 7. palavras e ampliando as possibilidades de significação daquelas que já
Ao definirem pátria como "coisa de soldado'', as crianças elaboram um conhece.
pensamento por complexos com base em elementos comumente pre­
sentes em eventos e situações da vida real (os desfiles, os desenhos) por Beto, aos 7 anos, perguntou um dia à mãe:
elas agrupados na palavra. - Frágil é perigoso ?
O trabalho mental de destacar um elemento da totalidade e tomá-lo A mãe, sem entender a indagação da criança, quis saber o mo­
como critério para conferir o significado à palavra é uma característica tivo da pergunta.
do pensamento analítico e também a marca distintiva dos conceitos po­ - Por que você está me perguntando isso?
tenciais. Eles resultam de "uma espécie de abstração isolante", segundo - É porque aqui nesta caixa está escrito CUIDADO, FRÁGIL
as palavras de Vygotsky ( 1 987: 67), uma vez que as características dos
elementos e situações da realidade não são consideradas em conjunto. (Episódio extraido da experiência familiar de uma das autoras.)

A palavra é elaborada com base em apenas uma semelhança perce­


A criança lê ou ouve palavras desconhecidas em contextos com­
bida. Além disso, o elemento que foi privilegiado num dado momento
preensíveis e vai formando uma idéia vaga do seu significado, vai ajus­
para dar significado à palavra não é estável, podendo ser substituído por
tando os significados elaborados de modo a aproximá-los dos conceitos
outro. Na elaboração da palavra pátria como um pensamento por com­
predominantes no grupo cultural e lingüístico de que faz parte.
plexos, por exemplo, o elemento destacado foi soldado, mas poderia ser
a bandeira, que também é um elemento recorrente nas atividades come­ Em suas relações, crianças e adultos compartilham palavras que
morativas relativas à Semana da Pátria e aparece com freqüência nos em termos práticos significam a mesma coisa para ambos. Ou seja, há
enunciados das crianças. uma coincidência de conteúdo (aspecto da realidade ao qual a palavra
A diferença entre um conceito e os conceitos potenciais está no se· aplica) entre as palavras utilizadas pela criança e pelo adulto. No
modo como o atributo (o critério) que os define é estabelecido. Num entanto, quanto à generalização e à abstração contidas na palavra, essa
conceito potencial, um atributo único é estabelecido com base na máxi­ coincidência não se verifica.
ma semelhança entre os elementos ou situações designados pela pala­
vra. Num conceito, distintos elementos são agrupados de acordo com Mariana, de 7 anos, vinha encontrando grandes dificuldades
um conjunto de atributos comuns a todos os elementos que podem ser para resolver os problemas de Matemática na escola. A mãe, pro­
reunidos sob sua denominação. fessora, dispôs-se a ajudá-la. Leram juntas o primeiro problema
No conceito, a abstração - que caracteriza os conceitos potenciais da tarefa: "Mamãefoi ao supermercado e comprou 1 quilo de car­
- e a generalização - que caracteriza o pensamento por complexos - ne por 4 reais, 10 pães por 1 real e 2 litros de leite por 2 reais.
combinam-se. "Um conceito só aparece quando os traços abstraídos são Quanto mamãe gastou ? ".
Após a leitura, a mãe perguntou à menina: As palavras não são apenas lógicas, do rriesmo modo que a
- Então, Mari, qual a continha que nós temos que fazer? interlocução não é apenas troca de informações. Nas relações sociais há
- De menos, mãe. interesses em jogo. As palavras não são neutras, elas apenas têm uma
A mãe, surpresa, contestou: face neutra, conforme nos ensina o poeta. Com elas negociamos senti­
- De menos... Por que de menos? Olha bem, a pergunta do dos ("trouxeste a chave?").
problema é: quanto a mamãe gastou... É no movimento interativo, assumindo ou recusando a palavra do
- Então, mãe!!! Quando a gente gasta a gente não fica com outro, que a criança (e não só ela, mas qualquer um de nós) organiza e
menos dinheiro? transforma seus processos de elaboração do significado das palavras,
desenvolvendo-se. Nesse processo, ela apreende e começa a elaborar as
(Episódio relatado pela mãe de Mariana num curso para profes­
sores, ministrado pelas autoras.) operações intelectuais complexas presentes na palavra, praticando o
pensamento conceituai antes de ter uma consciência clara da natureza
Se, por um lado, a coincidência de con­ dessas operações.
teúdo da palavra permite a comunicação entre O desenvolvimento da elaboração conceituai da palavra não é re­
adulto e criança, por outro, a diferença na ela­ sultado de um processo individual e estritamente intelectual (cogni­
boração do significado possibilita que a crian­ tivo). Ele é resultado da prática social da criança nas diferentes institui­
ça desenvolva seus conceitos. ções sociais.
Ao interagir com a criança, os adultos ou Nesse sentido, aponta Vygotsky, o aprendizado precede o desen­
as crianças mais velhas apresentam a ela, de volvimento.
forma deliberada ou não, significados estáveis Esse modo de conceber a relação entre desenvolvimento e aprendi­
ou sentidos possíveis de determinada palavra zado é oposto ao adotado por Piaget, que;! considera o desenvolvimento
no seu grupo social. Embora não transmitam à condição para o aprendizado. Segundo Piaget, tudo o que a criança re­
criança seu próprio modo de pensar, nem pos­ cebe do exterior, por transmissão familiar, escolar, educativa em geral,
sam "controlar" o modo de pensar dela, sua constitui o aspecto psicossocial do desenvolvimento. Este só pode ser
alocução verbal interfere na atividade da cri­ explicado pelo desenvolvimento espontâneo (ou psicológico) da crian­
ança de diferentes formas. ça, que corresponde a tudo que ela aprende por si mesma, sem que lhe
A palavra do outro ajuda a criança a ela­ seja ensinado, ao que ela descobre sozinha.
borar o significado de novas palavras (como Vygotsky e Piaget apresentam dois modos distintos de olhar o hu­
nos episódios envolvendo Beto e Guto). Ao se mano em suas relações e transformações. Que facetas a prática pedagó­
encontrar com aquelas que a criança já tem gica nos revela, quando a olhamos através de uma ou outra dessas duas
elaboradas, explicita-as, confirma-as ou colo­ concepções? É o que veremos no próximo capítulo.
Aduttos e ca-as em questão (como no caso de Mari e da criança do episódio do
crianças podem bingo). A criança pode assumir a palavra do outro, imitando-a, utilizan­
empregar a do-a com sua ajuda, ou pode recusá-la.
mesma palavra
mas com
difere/l/es Rafael, aos 5 anos, conversando sobre o que gostaria de co-
significados. mer no almoço, contesta da seguinte forma a sugestão da mãe:
- Sopa, não.' Eu quero comida/
- Mas a sopa é uma comida, Rafa!
- Tá bom, a sopa é uma comida, mas é uma sopa também!
(Episódio extraído da experiência familiar de uma das autoras.)

Comida e sopa são palavras que nomeiam coisas distintas para a


criança. Ela não estabelece entre as coisas nomeadas e as palavras utili­
zadas nenhuma relação de inclusão. Na situação descrita, na qual se
decidia sobre o que comer no almoço, Rafael recusa a inclusão apresen­
tada pela mãe: a sopa pode ser uma comida, mas é uma sopa também. A
sopa não perde a sua peculiaridade, a sua condição de sopa.
,
- Sou eu, porque ela (a mamãe) diz: "vem cá, minha fia , ·.
A professora, desconcertada, intervém:
Sugestão de atividades - Não, afia é amola a faca!
(A criança na/ase inicial da escrita. Ana L. 8. Smolka. São Paulo:
Conez; Campinas: Ed. da Unicamp, 1988.)

Organizando as informações do texto


Em pequenos grupos, discutam as análises feitas. Depois, confron­
1. Sintetize o desenvolvimento da linguagem na criança segundo a con­ tem as análises dos grupos, complementando e apurando a argumentação.
cepção de Piaget, destacando as características da linguagem e o pa­
pel desempenhado por ela ao longo do desenvolvimento da inteli­ Trabalho de campo
gência.
Os episódios descritos na atividade anterior apontam um caminho
2. Sintetize o desenvolvimento da linguagem na criança segundo a con­ interessante para um trabalho de observação e registro.
cepção de Vygotsky, caracterizando os seguintes pontos: o papel da As práticas cotidianas dos adultos que trabalham com crianças são
palavra, o papel do outro e o papel do sujeito. marcadas pelas concepções que eles têm tanto a respeito do processo de
elaboração do conhecimento e da palavra como do seu próprio papel
nesse processo. Essas concepções determinam as condições de elabora­
3. Enumere as semelhanças e as diferenças básicas entre o pensamento
ção que eles possibilitam à criança e os modos como participam de suas
de Piaget e o de Vygotsky acerca do desenvolvimento do significa­
elaborações.
do da palavra na criança. Faça um resumo comparativo do processo
de elaboração de conceitos pelo qual, segundo esses dois autores, a Com a classe dividida em três grandes grupos, observem como as
criança passa. crianças elaboram as palavras em suas relações com os adultos e com
outras crianças, nas creches e nas escolas.
Exercitàndo a análise

O grupo 1 se encarregará de observar bebês e crianças de até 2 anos
A seguir são descritos dois momentos de relação da criança com de idade. Deverá ser observado como os adultos interagem com es­
a palavra. Procure analisá-los prestando atenção aos modos como a sas crianças e em que momentos; o que falam com elas e como falam
criança elabora a palavra e aos modos de participação do outro na a elas. E também os comportamentos da criança, suas reações não­
situação. verbais, as suas primeiras palavras.
Será interessante, ainda, dar atenção às relações entre as érianças
Situação n? 1 que já brincam juntas, as que disputam espaço e a atenção do adulto.
Como se dão essas relações?
Livro de Matemática da 1 � série, página de problemas. •
O grupo 2 observará as crianças dos diferentes ciclos da pré-escola.
Mamãe está pendurando roupa no varal. Para cada peça ela Deverá estar atento às condições de interação verbal, aos modos de
usa dois prendedores. Ela já pendurou seis peças de roupa. participação do adulto e da criança. O trabalho ficará mais interessan­
Quantos prendedores usou? te se diferentes momentos da rotina escolar (as atividades de roda, os
Resposta: 12 (resposta da criança). brinquedos, os jogos ou desenhos, o lanche, a hora do parque, contar
Por quê? "Pra roupa não voar" (resposta da criança). e. ouvir histórias, etc.) forem observados, assim como os momentos de
interação entre as crianças.
Situação n? 2 As questões que podem direcionar a atenção do grupo são as mesmas.

O grupo 3 observará as quatro séries iniciais do l? grau. O trabalho
A professora escreve na lou;a "A mamãe afia a faca " e pede de observação deverá ser do mesmo tipo do desenvolvido pelos ou­
para uma criança ler. A criança lê corretamente. tros grupos.
Um adulto pergunta à criança:
- Quem é a mamãe ? Observação:
- É a minha mãe, né? Para facilitar o trabalho de coleta de dados, cada grupopoderá organi-
· · l 05. ·
- E o que é "afia " ? zar, com base nas informações contidas no texto e com a orientação do pro-
.
. ,.>
. ·.
. \' ' '.) . , A criança pensa, hesita e responde: fessor, um roteiro com questões ou itens aos quais deverão estar atentos.
As fonnas de registro poderão ser várias: em diário de campo, gra­
vação em vídeo e gravação em áudio. O material gravado, depois de
ouvido e visto atentamente, deverá, pelo menos em parte, ser transcrito.
Capítulo 9
Organizando e analisando os dados

À fase de observação e registro segue-se a de organização e análise


dos dados obtidos pelo grupo.
Lembrem-se de que o trabalho de análise envolve a comparação
dos dados, observando-se o que há de comum entre eles, sua classifi­
cação, o estabelecimento de relações (inferências e generalizações).
Isso sempre à luz dos princípios teóricos e dos objetivos que nortearam O papel da escola
a observação (nesse caso, os modos de elaboração da palavra pela
criança, as condições em que eles se processam e a participação que
neles tem o outro).
Convém que todo esse trabalho seja documentado num relatório Certamente você já ouviu mais de uma vez a afirmação "Escola é
socializado com os outros grupos. lugar de aprender". Crianças, jovens e adultos aprenderam, na escola, a
Havendo tempo, seria interessante organizar sessões de apresen­ ler, a escrever, a contar e tiveram acesso a muitas infonnações e concei­
tação e debate do trabalho de cada grupo, sendo conveniente uma leitura tos sobre o homem, a natureza, a sociedade, a língua que falamos. Os
anterior do relatório do grupo que vai fazer a apresentação, anotações de conceitos que aprendemos na escola, nas diferentes disciplina11, são par­
dúvidas, pontos a serem esclarecidos e questionamentos a serem feitos. tes de teorias que buscam explicar e comprovar os fenômenos da natu­
reza e os fatos sociais. Eles são organizados conforme uma lógica que
procura garantir-lhes coerência interna, e sua elaboração requer a utili­
Há diferentes
Sugestão de leituras zação de operações complexas (como a comparação, a classificação, a
fom1as de se
dedução, etc.) de transição de uma generalização para outras. apresentarem os
LuRIA, A. Pensamento e linguagem - As últimas conferências. Porto Na pedagogia tradicional, que herdamos do século XIX, considera­ conceitos
Alegre: Artes Médicas, 1 987. va-se que os conceitos científicos não tinham nenhuma história interna, cielll(jicos.

OLIVEIRA, M. K. de. Vygotsky. São Paulo: Scipione, 1 993. (Em especial sendo transmitidos prontos à criança e memorizados tal qual por ela.
os capítulos 3, Pensamento e linguagem, e 4, Desenvolvimento e Grande parte dos méto­
dos de ensino ainda utilizados
aprendizado.)
em nossas escolas baseia-se
PIAGET, J. A construção do real na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1 975.
nessa concepção. Ensinam-se
A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro: Zahar,
às crianças os conceitos cien­
____ ..

1 975. tíficos, transmitindo-se a elas


VYGOTSKY, L. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, seu significado por meio de
1 987. (Em especial os capítulos 5 e 6.) definições. Essas definições
são, então, utilizadas em uma
série de exercícios para trei­
namento e memorização. Pela
repetição dos exercícios, a de­
finição é fixada (memoriza­
da) e utilizada (reproduzida)
pela criança, além de reco­
nhecida na fala de seus interlocutores. Nas séries iniciais, a quantidade
de informações e detalhes fornecida é menor. A cada etapa da esco­
larização, o mesmo conjunto de informações vai sendo retomado e
complementado. Conhecimento e desenvolvimento são processos cu­
mulativos: acumulamos informações e significados.
tradicional: os conceitos têm história interna, eles se desenvolvem na
criança. Por isso, seu ensino direto é impossível e infrutífero
(Vygotsky, 1 987: 72).
Apesar dessa concordância, os dois focalizam e explicam de modo
.
diverso o que acontece com os processos de elaboração conceituai
quando a criança defronta com os conceitos científicos que lhe são
apresentados na escola.
. .
� iaget, c?n�iderando a construção do conhecimento um processo
md!Vldual, pnoi:iza o ponto de vista da criança. Ele diz, por exemplo,
que, quando ensmamos alguma coisa à criança, a impedimos de realizar
Fonte: Nossas crianças. São Paulo: Abril Cultural, 1 970. v. 2.
uma descoberta por si mesma. Vygotsky enfatiza a participação do ou­
tro no processo de conhecimento, que define como "internalização das
Nesse modo de considerar o ensino, está contida uma concepção de
formas culturais de pensamento", e, de acordo com o conceito de zona
linguagem segundo a qual os significados das palavras estão fixados na
de desenvolvimento proximal, que elaborou, afirma que a criança fará
língua e se impõem ao indivíduo. Daí a importância atribuída à exposi­
sozinha amanhã o que hoje faz em cooperação.
ção das informações pelo professor (ou pelo livro didático), considera­
da determinante para o aprender. A expressão da criança e suas elabora­
ções próprias não são levadas em conta. A história dos conceitos, as
transformações por que passam, os sentidos que eyocam e provocam Escola é lugar de aprender a aprender, lugar de
nos alunos, as experiências anteriores dos alunos com essas palavras, aprender pensando...
também não são tidos como questões relevantes, porque os atos de
compreensão e de expressão (fala) que não seguem a norma vigente são A expressão do subtítulo acima, muito provavelmente, você tam­
considerados deformações da língua, erros. bém já ouviu. Ela reflete o deslocamento do foco do ensino, que se
Assim, o modo pelo qual a criança responde às questões escolares, transfere para a aprendizagem. Seu centro passa a ser a criança, em vez
como a relativa à definição de pátria, por exemplo, revela se ela apren­ do professor, e o processo de elaboração ativa do conhecimento, no
deu (reconhece) ou não, se "entendeu" ou não a exposição do professor. lugar da acumulação da informação pronta.
Alguns professores, ao ouvirem as crianças definindo pátria como
Embora Piaget não tenha formulado nenhuma proposta meto­
"coisa de soldado" e considerando que elas não entenderam o conceito,
dológica, nem tenha se proposto a estudar os aspectos psicossociais
podem achar graça dos seus dizeres, que passam a compor o anedotário
do desenvolvimento - aqueles conhecimentos que a criança rece­
escolar. Outros vêem na resposta a revelação de que as crianças não
be do exterior, por transmissão familiar, escolar, educativa em ge­
aprenderam aquilo que se esperava que tivessem aprendido, pois, sendo
ral -, suas idéias acerca do desenvolvimento infantil têm influen­
alunos da 3� série, seguramente, nos anos anteriores, ouviram falar so­
bre o tema, tiveram acesso àquele conceito e, no entanto, não respon­ ciado as chamadas propostas ativas de ensino, servindo como fu n­
dem de modo adequado à expectativa escolar. damento para uma série de procedimentos metodológicos adotados
Os dizeres das crianças julgados como "falta de entendimento" le­ pelos professores.
vam a conseqüências: criança que não entende e não aprende precisa Partindo do pressuposto que os conceitos científicos são objetos de
estudar mais, precisa prestar mais atenção, ou então "repete o ano". �
con ecimento que o sujeito constrói de acordo com o estágio de desen­
No entanto, como procuramos destacar no capítulo 7, a palavra não volvimento em .que se encontra, Piaget considera que os conceitos não
é transparente, nem tem um único significado. "Ela tem mil faces secre­ se ensinam. Tudo o que se pode fazer é criar situações para que a criança
tas sob a face neutra...", como disse Drummond. possa formulá-los (Dienes-Golding, 1 972). Essas situações deverão
Sua multiplicidade se deixa entrever nos dizeres espontâneos das possibilitar-lhe atuar sobre os objetos de conhecimento, e, pela ativida­
crianças (algo que acontece em todas as salas de aula, quer os professo­ de cognitiva, levá-la a estabelecer as relações de análise e de generaliza­
res queiram e reconheçam, quer não). Eles nos revelam como as crian­ ção, por meio das quais irá elaborar a palavra.
ças procuram ativamente apreender o sentido da fala do adulto relacio­ Nesse sentido, o ensino depende do desenvolvimento espontâneo
nando com suas experiências o que foi dito, evocando sentidos nem da criança, acompanhando-o. Apesar dos esforços que ·os professores
sempre esperados ou reconhecidos por nós. fazem para explicar os conceitos, a criança recebe as informações e ati­
Piaget e Vygotsky, dando importância à atividade do indivíduo no vamente as transforma. "O processo de aprendizagem não é conduzido
processo de conhecimento, refutam os pressupostos da pedagogia pelo professor, mas pela criança" (Ferreiro, 1 982: 1 3 1 ) .
De acordo com es­ em que estão envolvidos, aplicando-as a elementos nelas presentes. A
ses princípios, o ensino atenção de ambos está centrada na própria situação e não na atividade
calcado na verbaliza­ intelectual que estão desenvolvendo enquanto a vivenciam.
ção é visto como uma Assim, pai e filho, por exemplo, podem utilizar a palavraferramen ­
atividade mecânica, que ta numa situação de trabalho, sem que se explicite, para ambos, os sen­
deve ser substituída pe­ tidos que atribuem a ela. Para a criança, a palavra ferramenta pode de­
.
la elaboração espontâ­ signar apenas o martelo, não incluindo a chave de fenda ou o serrote.
nea dos conceitos, con­ No entanto, como nesse contexto vivencial a palavra e a situação se
dição determinante da entrelaçam, e a maioria das palavras utilizadas pelo adulto e pela crian­
construção conceituai ça designa os mesmos objetos ou eventos, equivalendo-se funcional­
da palavra. Deixa-se de mente, são raras as vezes em que ambos se dão conta das diferenças de
esperar. da criança a generalização e de abstração entre seus modos de elaborar as palavras.
postura de ouvinte, va­ Essas diferenças aparecem ocasionalmente, quando a criança acaba
lorizando-se sua ação e revelando, por um motivo ou outro, o modo pelo qual "compreende" a
sua expressão. Possibi­ palavra. Exemplos desse tipo de situação foram apresentados no capítulo 8.
litar à criança situações em que ela possa agir e ouvi-la expressar suas Já nas interações escolarizadas, que têm uma orientação deliberada
Segundo Emilia
elaborações passam a ser princípios básicos da atuação do professor. e explícita no sentido da aquisição de conhecimentos sistematizados
Ferreiro, "o
Apoiado nesse referencial teórico, o professor não vê como pela criança, as condições de produção da elaboração conceituai modi­
processo de
aprendizagem desinformação ou falta de compreensão a diferença entre os significa­ ficam-se sob vários aspectos.
não é conduzido dos elaborados pela criança e o conceito sistematizado. A diferença re­ Na escola, a criança e o adulto interagem numa relação social espe­
pelo professor.
vela um erro construtivo, que é indicativo do desenvolvimento da crian­ cífica - a relação de ensino. Sua finalidade imediata, a de ensinar e
mas pela
ça, uma vez que suas palavras e ações mapeiam a especificidade do seu aprender, é explícita para seus participantes, que nela ocupam lugares
criança".
pensamento. sociais diferentes: a criança, no papel de aluno, é colocada diante da
Ao definirem pátria como "coisa de soldado", por exemplo, as tarefa de "compreender" as bases dos conceitos sistematizados ou cien­
crianças revelam a especificidade de seu pensamento pouco tíficos; o professor é encarregado de orientá-la.
generalizante, preso a imagens e experiências vividas. A fala de Sérgio Nessas condições, a participação do adulto é deliberada e explícita
enumerando algumas condições necessárias para se ter (ou não) pátria tanto para ele quanto para a criança. Cabe ao adulto, no papel de profes­
- casa, dinheiro, trabalho - revela uma causalidade por identificação, sor, possibilitar à criança o acesso aos conceitos sistematizados, procu­
própria do pensamento pré-operatório. rando induzir nela formas de raciocínio e significados. Cabe à criança,
Deixando de dar prioridade às funções informativa e instrucional, o no papel de aluno, realizar as atividades propostas, seguindo as indica­
ensino tem sua função social redefinida: contribuir para o desenvolvi­ ções e explicações dadas.
mento dos indivíduos, possibilitando-lhes vivenciar modos de construir No entanto, destaca Vygotsky, o papel do professor não implica
conhecimento por si mesmos, modos de aprender pensando. ensinar ou explicar diretamente o significado de uma palavra à criança.
Isso é impossível, assegura ele, porque "quando se explica qualquer
palavra, colocamos em seu lugar outra palavra igualmente incompreen­
sível, ou toda uma série de palavras, sendo a conexão delas tão
Escola é lugar de compartilhar conhecimentos
ininteligível quanto a própria palavra" (Tolstoi. Apud Vygotsky, 1 987:
72). Esse encadeamento de palavras que se substituem umas às outras
A relação entre os processos de elaboração conceituai em desen­
conduz apenas ao verbalismo vazio, "uma repetição de palavras pela
volvimento na criança e o aprendizado de conceitos científicos na esco­
criança, semelhante à de um papagaio, que simula um conhecimento
la é tematizada explicitamente por Vygotsky.
dos conceitos correspondentes, mas que na realidade oculta um vácuo"
Embora considere o processo de elaboração conceituai único e in­
(idem, ibidem).
tegrado, Vygotsky destaca a necessidade de diferenciarmos as condi­
O que a criança necessita, aponta Vygotsky, é de oportunidades
ções em que a elaboração do conhecimento se dá nas relações coti­
para adquirir novos conceitos e palavras na dinâmica das interações
dianas e nas relações de ensino vividas no contexto escolar.
verbais, mediadas pelo professor.
Nas interações cotidianas, o adulto participa espontaneamente do
O professor participa ativamente do processo de elaboração
processo de utilização e de elaboração da linguagem pela criança. Ele e
conceituai da criança. Nas relações que mantêm, ele utiliza novos con-
a criança compartilham palavras, utilizando-as nas situações imediatas
ceitos, define-os, apresenta-os em diferentes contextos de uso, propõe utilização da palavra nas situações imediatas (que as crianças já domi­
atividades em que devem ser empregados. Destaca, recorta informa­ nam) para o de reflexão sobre a própria linguagem (uma atividade inte­
ções e significados em circulação na sala de aula, direcionando a �te�­ lectual a ser desenvolvida pela criança).
ção da criança para eles; induz à comparação entre informações e s1gm­ A intervenção da professora contribui para o desenvolvimento
ficados; possibilita a expressão das elaborações da palavra, orgamzan­_
proximal das crianças, uma vez que atua sobre atividades psíquicas ne­
do verbalmente seu pensamento; problematiza as elaborações iniciais las emergentes, fazendo-as avançar no raciocínio e começar a se dar
da criança, levando-a a retomá-las, a refletir sobre possibilidades não conta dele para poder responder ao outro.
consideradas, a refletir sobre seus próprios modos de pensar... A professora ouve atentamente as crianças, mas não se limita a
Na situação que vimos de conceituação da palavra pátria, é a pro­ isso. Ela questiona as relações por elas estabelecidas entre pátria e sol­
fessora quem conduz as crianças a explicitarem o significado que essa dado, indagando sobre a inclusão delas próprias no conceito: "Quem
palavra tem para elas. Inicialmente ela destaca a expressão Semana da aqui tem pátria?", "Por que povão não tem pátria?". Em suas perguntas
Pátria, tentando organizar os comentários espontâneos que se seguiram estão embutidas referências às relações entre grupos na sociedade: se
à saída da diretora. Como Sérgio separa as duas palavras da expressão, pátria é coisa de soldado, em que conceito se encaixariam os indivíduos
indicando o significado de semana, a professora destaca a palavra pá­ que não são soldados? Ela consegue formular essas questões porque já
·
tria, perguntando sobre seu significado. teve acesso, como adulta, a uma forma de elaboração mais generali­
Ao fazer a pergunta, ela interrompe os comentários entre as crian-
zante do conceito de pátria.
ças e as conduz para uma elaboração refletida sobre a palavra.
Através de suas perguntas, ela não nega nem exclui as definições
Para a criança, pensar sobre seu próprio modo de utilizar a palavra
iniciais das crianças. Ela as problematiza e as "empurra" para outro pa­
é uma atividade intelectual complexa e nova. Como a maioria de nós,
tamar de generalização. Leva as crianças a considerarem relações que
ela está acostumada a utilizar as palavras nas relações cotidianas, e não
não foram incluídas nas suas primeiras definições, provocando reelabo­
a pensar sobre elas. Assim, o que a professora faz é levar as crianças a
rações na argumentação desenvolvida por elas.
desenvolverem um tipo de atividade intelectual que elas ainda não rea­
As respostas dadas por Sérgio evidenciam esses esforços de reela­
lizam por si mesmas.
boração. Buscando responder aos questionamentos da professora e ori­
Visando responder às solicitações da professora é que as crianças
começam a realizar esse trabalho intelectual, novo para elas. Mesmo entado pelas palavras dos colegas ("Pátria é coisa de soldado"), Sérgio
sem compreender completamente o que estão fazendo, elas buscam na acaba destacando outro sentido possível da palavra.
memória elementos das experiências vividas, sentidos da palavra já Em sua primeira resposta, "Povão não tem pátria", Sérgio reafirma
internalizados que lhes possibilitem atender à solicitação feita. A per­ a exclusão dos não-soldados do conceito de pátria. Mas explicita, deli­
gunta da professora não é apenas o disparador da atividade intelectual mita o grupo a que está fazendo referência. Não são quaisquer não­
da criança. É a partir dela que as crianças selecionam os fragmentos de soldados que não têm pátria. Quem não tem pátria é o "povão".
suas experiências (soldados, desfiles, desenhos, bandeiras), articulam e Para responder ao novo questionamento da professora (por quê?),
ordenam esses fragmentos na resposta, organizando verbalmente o pen­ Sérgio acaba definindo, com base nas experiências de seu grupo social,
samento, elaboram justificativas. as condições necessárias para ter ou não pátria - dispor de casa, di­
O contexto (a situação) em que a pergunta da professora foi feita (a nheiro, trabalho - e, ao mesmo tempo, a expressão povão como a ne­
propósito das solenidades na escola para a comemoração da Semana da gação dessas condições.
Pátria) também orienta as respostas das crianças. Elas respondem le­ A elaboração da resposta de Sérgio à professora revela outra
vando em conta esse contexto quando privilegiam, inicialmente, ele­ nuance do conceito. Pátria diz respeito a participação social, cidadania,
mentos ligados às comemorações da Semana da Pátria, como o soldado, relações de poder: Quem não tem acesso aos processos de produção e
os desfiles e os desenhos. consumo da sociedade em que vive fica ou está à margem dela.
Nesse sentido, não se pode dizer que as respostas elaboradas pelas Embora Sérgio recorra a elementos de suas experiências vivenciais
crianças sejam decorrentes apenas da especificidade do seu modo de para responder à pergunta da professora, ele os coloca num quadro de
pensar, como sugere Piaget, nem que sejam um mero reflexo de suas generalização mais amplo. Ao fazer referência ao "povão" (um grupo
vivências, simplesmente uma associação entre estímulos. Elas são uma social específico) e suas condições de vida, ele utiliza na elaboração da
resposta ao outro numa relação social específica - a relação do ensino. palavra pátria as relações entre grupos da sociedade. Ele não faz uma
Ao possibilitar o acesso das crianças a atividades intelectuais ainda análise completa e deliberada das relações sociais de poder (que são a
não incorporadas por elas, a professora contribui para o desenvolvi­ base das relações entre os grupos) na sociedade em que vive. Ele as
1 12 mento de seus conceitos iniciais, que são deslocados do processo de 1 13
sugere, destacando um lugar social determinado: o dos despatriados.
A reelaboração resultante do encontro entre as perguntas da profes­ Nesse processo de entrecruzamento dos modos de conhecer se fa­
sora e as primeiras definições expressas pelas crianças mostra como zem pr:sentes. e atuantes as maneiras de dizer e pensar da criança, as
seus conceitos iniciais (e cotidianos) foram se aproximando das formu­ ,
oper�ç.o�s log1cas que ela realiza, as informações que o professor lhe
lações científicas do conceito de pátria, elaboradas pela história, pela poss1b1hta e, fundamentalmente, a dinâmica das relações sociais em
sociologia, pela antropologia e pela política. que o conhecimento é produzido, tanto na escola quanto fora dela.
Nas formulações dos cientistas sociais, as relações de poder são vi­
síveis quando se considera o sentido de nação e de identidade nacional . A sistematização é uma tarefa que as crianças não podem realizar
soz.mhas, P.ois requer o domínio de informações e de operações intelec­
que a palavra pátria tomou a partir do século XIX na Europa, com a con­ tuais que amda estão fora de seu alcance. Elas necessitam da mediação
solidação dos Estados nacionais. (Os professores da área de História do professor para realizá-la.
poderão fornecer detalhes desse período, além de explicar como os con­ P�ra iss?, o profess�r, como adulto que já teve acesso a um conjun­
ceitos de pátria e de nacionalismo se relacionam. Poderão explicar tam­ to muito mais amplo de mformações e de práticas culturais de conheci­
bém como esses conceitos foram sendo produzidos, como foram ga­ mento e de organização da atividade intelectiva, possibilita às crianças
nhando destaque e novos sentidos e a que setores da sociedade interessa­ o contato com diferentes situações de uso do conceito, destacando,
vam esses novos sentidos.) O sentido político, embora minimizado no apontando as di:eren�as de que o conc�ito se reveste em cada situação.
contexto escolar e nos livros didáticos, é que marca as solenidades da O profess�r :ns1?� (�J �dando, fazendo JUnto) as crianças a compararem
Semana da Pátria e em especial os desfiles mencionados pelas crianças. suas defimçoes m1cuus com os sentidos históricos dos conceitos. Ele
A aproximação entre as definições iniciais das crianças e as formula­ problematiza os sentidos dicionarizados das palavras ou os tradicional­
ções científicas do conceito revela que o sentido político, o da relação en­ mente enfatizados nos livros didáticos e nas solenidades escolares.
tre pátria e poder, está presente nas elaborações que elas fazem. Os modos A �arefa da sistematização exige que o professor, ele próprio, ela­
como definem pátria dizem respeito ao lugar por elas ocupado na socieda­ b�r� at1va�ente os c�nceitos: que conheça sua história, que apreenda as
de, à experiência histórico-cultural do grupo social a que pertencem. As­ at1V1dades mtel�ctuais contidas ou envolvidas na sua elaboração, que
sim, o que de início poderia parecer falta de compreensão ou espe­ con�eça os sentidos que têm nas práticas cotidianas das crianças com as
cificidade do pensamento infantil pré-lógico é, na verdade, uma forma de quais trabalha, que analise as possibilidades de articulação entre os seus
elaboração não só aceitável como também relativamente complexa. diferentes sentidos.
Ao prestarmos atenção a essas possibilidades, vamos percebendo Essa elaboração de conceitos por parte do professor, porém, não é
que as palavras não são apenas modos de representação do mundo e do uma tarefa que ele realize sozinho. Ela é mediada pela produção cientí­
pensamento ou instrumentos de comunicação. Elas são elemento de fica e pelos dizeres das crianças.
interação e de constituição de identidades. Nas relações de ensino compartilhadas, professor e crianças ensi­
Vamos percebendo, também, que é nas relações sociais que a "neu­ nam e aprendem. Eles aceitam o convite do poeta e contemplam juntos
tralidade" das palavras se desfaz. Pois é aí que "chegamos perto das as palavras. Eles aceitam juntos o desafio das palavras, mergulhando na
palavras", apreendendo-as na linguagem viva, em funcionamento. história, nas práticas sociais de conhecimento em que se constituem, em
Ao considerarmos os conceitos em sua história, em sua relação busca das chaves...
com a sociedade, em sua relação com a vida das pessoas que os utili­
zam, redefinimos a relação de ensino como relação de partilha e de
articulação de saberes. Nela, crianças e professores ensinam-se recipro­
camente.
As crianças nos mostram como, a partir dos lugares sociais que
ocupam, compreendem as palavras, os conceitos que vamos trabalhar
com elas. Elas nos falam de algumas das faces secretas que conseguem
apreender nas palavras.
Nós, professores, como parceiros sociais da criança, tomamos
contato com os sentidos e saberes que ela traz para a sala de aula e,
levando-os em conta, participamos ativamente dos seus processos de
conhecimento e de desenvolvimento. Para isso, destacamos outros sig­
nificados e sentidos além dos que ela já conhece, outros modos de orga­
nizar e articular os conhecimentos, tendo em vista chegar ao conheci­
. 1 14
<, , 1. mento sistematizado.
Unidade
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
3
1. Compare as concepções de Piaget e de Vygotsky acerca do papel da
escola no desenvolvimento da elaboração conceituai, enumerando as
semelhanças e as diferenças entre elas.
2. Confronte sua lista com a dos colegas, ajudando a organizar uma sín­
tese do levantamento feito pela classe.

Refletindo sobre os dados do texto


A partir dos elementos apresentados no texto, elabore uma pequena
reflexão considerando a seguinte questão: Professores para quê?

Exercitando a síntese
,.
Retome os dados do relatório do trabalho de campo sugerido no ca­
pítulo anterior e complemente-o, utilizando informações e questio­
namentos possibilitados pelo presente capítulo. Reelabore sua primeira
versão, retomando os pontos que, depois dessa reflexão, considerar ne­
cessários.

Exercitando a análise
Vamos dividir a classe em dois grupos:

Os alunos do grupo 1 deverão ler o texto "Ensinando CiênCias e Es­
tudos Sociais nas séries iniciais ", de Terezinha Nunes Carraher e
David W. Carraher, publicado em Isto se aprende com o Ciclo Básico
(Projeto Ipê, curso II. São Paulo: SE/CENP, 1 986).

Os alunos do grupo 2 deverão ler "A elaboração conceituai: a dinâ­
mica das interlocuções na sala de aula ", de Roseli A. C. Fontana, no
livro A linguagem e o outro no espaço escolar: Vygotsky e a constru­
ção do conhecimento, de A. L. Smolka e M. C. Góes, editado pela

1\ · JJ?h) Gú d elr �1
Papirus.
Nesses textos, os autores abordam situações de elaboração de con­ /
ceitos em sala de aula ou experimentalmente. •
... .
Cada aluno deve ler atentamente o texto que coube ao seu grupo e -">1-.

d 8 0 B n 'f e _l'f
-.. . "

sintetizá-lo, destacando a concepção de elaboração de conhecimento _ ... ';.>_.. �----: ."": . •� · .

_-!- "����
adotada pelo autor e suas implicações pedagógicas.
Cada grupo deve fazer uma síntese da sua leitura e apresentá-la à .... ...:·
classe.
Reunidos, os grupos devem debater sobre as posições defendidas nos .- -
textos, tendo como referência a seguinte questão: Como ensinar às crianças?
1 16 . ..-

..
Introdução Capítulo 10

O papel da brincadeira no
B '
rincar e desenhar são atividades fundamentais da crian­
} ça. Ela brinca e desenha na rua, em casa, na· escola.
Pela brincadeira e pelo desenho, ela fala, pensa, elabora
desenvolvimento da criança
sentidos para o mundo, para as coisas, para as relações.
Pela brincadeira, objetos e movimentos são transformados. As rela­ Hora do recreio. No pátio, crianças correm, pulam, jogam bola,
ções sociais em que a criança está imersa são elaboradas, revividas, brincam de amarelinha, de roda e fazem outras tantas brincadeiras.
compreendidas. Brincando de casinha, de médico, de escolinha, de Na sala de aula, crianças reunidas em pequenos grupos estão con­
roda, de amarelinha, de bolinhas de gude ou de pião, a criança se rela­ centradas em jogos que a professora escolheu para ajudá-la a ensinar
ciona com seus companheiros, e com eles, num movimento partilhado, algum conteúdo. Em outra sala (ou em outro momento), crianças prepa­
dá sentido às coisas da vida. ram a encenação de um texto.
Pelo desenho, a criança deixa suas primeiras marcas. Traços, rabis­ Na aula de Educação Física
cos, círculos, que, aos poucos, vão assumindo formas mais definidas. as crianças jogam, pulam corda,
As marcas são nomeadas - pelos outros e por ela mesma - e come­ praticam esportes.
çam a se tomar simbólicas. Pelo desenho é possível representar objetos, Na pré-escola, as crianças
pessoas, espaços. A criança desenha sozinha, com outros, para outros. brincam na areia, imitam bichos,
Pelo desenho ela fala de si e do mundo. montam quebra-cabeças, inven­
São essas as atividades da criança para as quais vamos, agora, diri­ tam coisas com sucata, brincam
gir o nosso olhar, procurando compreendê-las a partir das perspectivas de faz-de-conta; enfim, passam
de Luquet (no desenho), Piaget e Vygotsky. boa parte do tempo brincando.
No capítulo 1 0, vamos apresentar as concepções de Vygotsky e de A brincadeira se faz pre­
Piaget sobre a brincadeira, sobre por que as crianças brincam e qual a sente na escola nas mais varia­
sua importância no processo de desenvolvimento. das situações e sob as mais di­
No capítulo 1 1 , acompanharemos as transformações por que passa versas formas. Muitas também
a brincadeira da criança, desde os primeiros jogos até aqueles com re­ são as concepções sobre o seu
gras, e discutiremos o lugar da brincadeira na escola. lugar e sua importância na práti- ��?""'•· �·· ..: ..;,..:;.,_.,, ·
..,

No capítulo 12, focalizaremos o desenvolvimento do desenho in­ ca pedagógica.


fantil com base nos pontos de vista de Luquet, Vygotsky e Piaget. Uma concepção é aquela que pode ser traduzida na frase "Criança
A brincadeirafa:
No capítulo 1 3 , vamos olhar o processo de elaboração do desenho vai à escola para aprender, e não para se divertir". De acordo com esse pane das
pela criança, o papel que nele têm os outros e os modelos. E discutire­ ponto de vista, a brincadeira é pura diversão e, portanto, só deve ser práticas
mos algumas concepções sobre criatividade e desenho e sobre o traba­ permitida na hora do recreio. escolares das
lho com o desenho na escola. Outra concepção é a de que o criança tem necessidade de brincar,
crianças.

mas que na escola é preciso separar brincadeiras e "tarefas sérias". As


brincadeiras estão presentes tanto na pré-escola como nas séries iniciais
do 1? grau, e o tempo ocupado por elas é determinado pela idade das
.. ·. · · .l l8 crianças ou pelo andamento da programação pedagógica. 1 '19
Existe ainda a concepção segundo a qual "brincando a criança Assim, a criança brinca porque é "indispensável ao seu equilí­
aprende", que pode ser traduzida em métodos educacionais que valori­ brio afetivo e intelectual que possa dispor de um setor de atividade
zam a brincadeira e procuram evitar uma distinção rígida entre jogo e cuja motivação não seja a adaptação ao real senão, pelo contrário, a
"tarefas sérias". Nesse caso, os jogos podem ser introduzidos como re­ assimilação do real ao eu, sem coações nem sanções [ .. ]" (Piaget e .

cursos didáticos importantes, ou, então, especialmente na pré-escola, Inhelder, 1 989: 52).
todo o trabalho pedagógico pode basear-se na brincadeira. A brincadeira é, então, uma atividade que transforma o real, por
Diante desse quadro, somos levados a perguntar: "Mas, afinal, qual assimilação quase pura às necessidades da criança, em razão dos seus
a importância da brincadeira na vida da criança e qual o lugar que ela interesses afetivos e cognitivos.
pode ou deve ocupar na escola?". É isso o que vamos procurar examinar
a seguir, com base na psicologia do desenvolvimento.
Uma garotinha que haviafeito diversas perguntas sobre o me­
canismo dos sinos, observado num velho campanário de aldeia,
mantém-se imóvel e em pé ao lado da mesa do pai, fazendo um
Por que as crianças brincam? barulho ensurdecedor. " Você está me atrapalhando um pouco, não
vê que eu estou trabalhando ? ", acode o pai. E a pequena: "Não
Todos nós já ouvimos, ou até já demos, algumas respostas à ques­ fale comigo, sou uma igreja ". Da mesma forma, profundamente
tão formulada acima, como: "Criança brinca para descarregar energia"; impressionada por um pato depenado sobre a mesa da cozinha, a
"Criança não trabalha, não precisa se preocupar com a sobrevivência e, criança é encontrada à noite, estendida em um canapé, a ponto de
portanto, brinca para ocupar o seu tempo"; ou, ainda, "Criança brinca a cuidarem doente e de a crivarem de perguntas, a princípio sem
por puro prazer". respostas; depois, com vozfraca, ela acaba explicando: "Eu sou o
Hoje, prestar atenção à brincadeira infantil e buscar explicações pato morto! ".
(de senso comum ou científicas) para ela faz parte de nosso dia-a-dia.
Parece-nos natural que as crianças brinquem e que tenha sido sempre (Episódio relatado por Piaget e Inhelder, em A psicologia da
criança.)
assim.
No entanto, não foi sempre assim. Houve um tempo em que a idade
não era um critério de diferenciação social, e a criança partilhava os Para Piaget, situações como essas indicam que na brincadeira do
trabalhos e as festas dos adultos. Conforme vimos no primeiro capítulo, faz-de-conta (chamada por ele de jogo simbólico) as crianças criam
foi apenas nos séculos XV e XVI que nas sociedades ocidentais as símbolos lúdicos que podem funcionar como uma espécie de lingua- ·

crianças foram afastadas das atividades adultas. E a idéia da infância gem interior, que permite a elas reviver e repensar acontecimentos inte­
como um período particular somente se consolidou no século XVII, ressantes ou impressionantes. As crianças, mais do que repensar, neces­
acompanhada da elaboração de uma teoria filosófica sobre a especifici­ sitam reviver os acontecimentos. Para isso recorrem ao simbolismo di­
dade infantil, que tornou possível o posterior aparecimento de uma psi­ reto da brincadeira.
cologia da criança e de seu desenvolvimento.
As relações sociais com o mundo adulto: a concepção
A assimilação do real ao eu: a concepção de Piaget
de Vygotsky
A psicologia vem mostrando que a brincadeira tem um papel im­
portante no desenvolvimento da criança e que ela satisfaz algumas de Vygotsky também analisa a emergência e o desenvolvimento da
suas necessidades. Mas que necessidades são essas? O que leva a crian­ brincadeira nas relações sociais da criança com o mundo adulto.
ça a brincar? Segundo ele, na idade pré-escolar algumas modificações ocorrem
Para Piaget, a brincadeira infantil é uma assimilação quase pura do no desenvolvimento da criança. Como demonstra Leontiev, impor­
real ao eu, não tendo nenhuma finalidade adaptativa. A criança pequena tante psicólogo soviético, o mundo objetivo que a criança conhece
sente constantemente necessidade de adaptar-se ao mundo social dos está continuamente se expandindo e, nesse período, j á não inclui
adultos, cujos interesses e regras ainda lhe são estranhos, e a uma infini­ apenas os objetos que constituem o ambiente que a envolve (como
dade de objetos, acontecimentos e relações que ela ainda não com­ seus brinquedos, sua cama ou os utensílios e objetos com os quais
preende. De acordo com Piaget, a criança não consegue satisfazer todas ela está sempre em contato e sobre os quais pode agir), mas também
as suas necessidades afetivas e intelectuais nesse processo de adaptação os objetos com os quais os adultos operam e sobre os quais ela ain-
1 20 ao mundo adulto. da não pode agir. · 1 21
-------
Quem foi Leontiev? A brincadeira é, então, a forma possível de satisfazer a essas necessi­
dades,j á que possibilita à criança agir como os adultos (dirigindo um carro,
. _,
Alexis N. Leontiev, nascido em 1903, foi um dos cuidando de um bebê, fazendo "comidinha") em uma situação imaginária.
mais importantes psicólogos soviéticos que trabalha­ Para Vygotsky, a situação imaginária da brincadeira decorre da ação
ram com '\rygotsky e Luria. Membro daAcademia Sovié­ da criança. Ou seja, a tentativa da criança de reproduzir as ações do adul­
tica de Ciências Pedagógicas, recebeu em 1968 o título to em condições diferentes daquelas em que elas ocorrem na realidade é
de doutor honoris causa pela Universidade de Paris. que dá origem a uma situação imaginária. Isso significa que a criança
Leontiev pesquisou principalmente a relação en­ não imagina uma situação para depois agir, brincar. Ao contrário, para
tre o desenvolvimento do psiquismo humano e a cultu­ imaginar, ela precisa agir. É o que vamos compreender melhor analisan­
ra, ou seja, entre a evolução dasfunções psíquicas e a do uma situação real de crianças brincando, descrita a seguir.
assimilação individual da experiência histórica.
Assim como lrygotsky, Leontiev criticou as con­
cepções mecanicistas do comportamento humano. Sua
preocupação era encontrar um referencial materialis­ Brincando de estação de trem
ta histórico e dialético para a psicologia.
A defesa que Leontievfez da natureza sócio-histó­ Algumas crianças brincam de estação de trem .!'!m uma pré-escola
rica do psiquismo humano teve como base a teoria na antiga União Soviética, observadas por um pesquisador.
marxista do desenvolvimento social.
Teórico e experimentador, Alexis Leontiev não se limitou ao tra­ Sete crianças estão brincando em uma sala grande. B é o che­
balho de laboratório. Preocupou-se com os problemas da vida hu­ fe da estação. Ele está usando um boné vermelho e carrega um
mana em que o psiquismo intervém. Seu campo de estitdos compre­ disco de madeira em uma vara. Ele cercou uma área com cadeiras,
endeu principalmente a pedagogia, a cultura, o problema da perso­ explicando que é a estação onde o chefe mora.
nalidade. Criou a Faculdade de Psicologia da Universidade de T, L e N são passageiros. Eles dispuseram as cadeiras em fila,
Moscou, da qual se tomou decano. uma atrás da outra, e sentaram-se.
Leontiev morreu em 1979. N: "Como podemos começar sem um condutor? Eu serei o ma­
A situação (Adaptado de Vygotsky. Luria, Leontiev. linguagem, desen­
quinista ". Ele vai para afrente e começa a resfolegar: "Ssh-ssh-ssh ".
imaginária da volvimento e aprendizogem. São Paulo: lcone/Edusp.) G é a garçonete do restaurante. Ela cercou um "restaurante "
brincadeira é com cadeiras em tomo de uma mesinha, pôs uma caixa de papelão
uma decorrência sobre ela e encheu-a de pedaços de papel rasgados por ela e que
da ação. afimw
Ou seja, a criança passa a se interessar por uma esfera mais ampla seriam o "dinheiro ". Perto da caixa, ela dispôs ordenadamente,
\Ygotsky.
da realidade e sente necessidade de agir sobre ela. Agir sobre as coisas é em fileiras, pedacinhos de biscoito. "Veja como eu tenho um res­
a principal forma de que a criança taurante bem-fomido ", diz ela.
dispõe para conhecê-las, compreen­ Ba: "Eu venderei as passagens... oh! Como se chama quem
dê-las. Nesse período, ela tenta atuar faz isso? ". "Caixa ", diz o pesquisador. Ba: "Sim, sim, o caixa. Dê­
não apenas sobre as coisas às quais me um pouco de papel". Tendo obtido o papel, ela o rasga em tiras
tem acesso, mas esforça-se para agir e separa os pedaços maiores. "Aquelas são as passagens e estes
como um adulto: quer, por exemplo, (os pedaços pequenos) o dinheiro, para dar o troco ".
dirigir um carro ou fazer comida. B dirige-se a N: "Quando eu lhe der este disco, você imediata­
Surge, então, uma contradição mente começa ". N imita o som de descarga de uma máquina e os
entre a necessidade de agir sobre um passageiros ocupam seus lugares. De repente, B diz: "Os passa­
número cada vez maior de objetos e o geiros estão embarcando sem bilhetes e está na hora do trem par­
desenvolvimento das capacidades fí­ tir ". Os passageiros correm para o guichê de venda de passagens,
sicas. Em outras palavras, surgem na onde Ba está sentada, esperando. Eles estendem a ela pedaços de
criança as necessidades não realizá­ papel e ela lhes dá, em troca, as passagens. Os passageiros voltam
veis imediatamente, no dizer de a seus lugares. B aparece e dá o disco a N. N imita o som de descar­
Vygotsky, e que se tomam motivo ga, sopra, e eles "partem ".
para as brincadeiras. Isso não significa, porém, que as crianças com­ G (com ar aborrecido): "Quando é que eles virão para com­
prar?". B: "Eu posso vir agora, o trem partiu e por isso eu posso ". 1 23
preendem as motivações que as levam a brincar.
Ele vai até o restaurante e pede um bolo. G lhe dá um e pergunta:
podem se transformar em um trem. Desse modo, a criança transforma
"E o dinheiro ? ". B corre até o pesquisador e, tendo recebido um
o significado dos objetos de acordo com seus desejos, sem preocupa­
pedaço de papel, volta e "compra " um bolo. Ele come com ar s�­
ção de adaptar-se à realidade.
tisfeito. Ba mexe-se na cadeira, olha para o restaurante, mas nao
Assim, na brincadeira qualquer coisa pode transformar-se em ou­
se levanta. Em seguida, ela olha novamente para o restaurante e
tra, sem regras nem limitações. Essa possibilidade de livre transforma­
para o pesquisador, e pergunta: "Quando é que vou com: r? Não
ção de significado dos objetos explica-se pelo predomínio da atividade
_
há ninguém aqui agora ", diz ela, como que para se 1ustificar. N
assimilativa da criança, ou seja, pela incorporação a seus esquemas de
observa: "O que é que está impedindo ? Vá em frente ". Ba olha ao
ação e pensamento de objetos diferentes sem a correspondente transfor­
mação (acomodação) desses esquemas e com o único propósito de per­
redor, depois corre para o restaurante, compra rapidamente e vol­
ta depressa. G arruma de novo os seus bolos, mas não se serve.
mitir à criança imitá-los ou evocá-los.
Vygotsky, no entanto, observou que na situação do faz-de-conta
N assopra ruidosamente e grita: "Estação! ". Ele e os passa­
não é qualquer objeto que pode substituir outro e que a criança, ao brin­
geiros correm ao restaurante, compram bolos e voltam. B toma o
car, sempre submete seu comportamento a regras.
disco de N e, depois, devolve-o. N assopra e resfolega, e eles "par­ Se observarmos na brincadeira de estação de trem como se de­
tem " novamente. senrolam as ações das crianças, notaremos que, ao contrário do que
Ba examina o restaurante, compra um bolo e o come. G: "Eu habitualmente se diz sobre as brincadeiras das crianças - que nelas
também gostaria de comer, mas o que é que eu faço, compro ou me tudo pode acontecer -, toda a ação das crianças é regulada pela si­
sirvo ? ". B ri: "Compre de você mesma e pague-se ". G ri, mas tuação imaginária, desenvolve-se de acordo com ela. Assim, o trem
imediatamente pega duas "moedas " e compra de si mesma dois não pode partir antes que os passageiros tenham comprado seus bilhe­
pedaços de bolo, explicando como se fosse para o pesquisador que tes e que o chefe da estação tenha dado a devida autorização ao ma­
está presente: "Eles já compraram uma vez ". Não recebendo res­ quinista. Da mesma forma, não se pode comprar bolo sem dinheiro, e
posta, ela se põe a comer. os passageiros que estão no trem só se dirigem ao restaurante quando
(Situação relatada por Leontiev, 1988: 1 36-7.) o trem pára na estação.

Aprendendo a olhar a brincadeira Brincadeira é coisa séria

Comecemos por examinar quais são as características dessa .brin­ Podemos notar, então, que a situação imaginária, longe de ser algo
cadeira. A primeira coisa que nos chama a atenção é que cada cnança criado livremente pelas crianças, sem nenhuma relação com a realida­
envolvida na situação assume um papel definido: algumas são os passa­ de, traz as marcas da experiência social das crianças, de suas vivências
geiros, uma é o maquinista, outra o chefe da estação, e assim p�r diante. e conhecimentos sobre a realidade.
Toda a ação das crianças se desenvolve e se estrutura a partlí desses Vygotsky dá um exemplo de duas irmãs, uma com 5 e outra com 7
papéis, configurando-se, assim, uma situação imaginária. Ou seja, a anos, que resolveram "brincar de irmãs". Nessa brincadeira, elas fazem
criança que assume o papel de chefe de estação, age como tal:. é ela tudo aquilo que enfatiza sua relação social de irmãs, passando a agir de
quem deve autorizar a partida do trem. O mesmo ocorre com as cnanças acordo com regras de comportamento próprias dessa relação, que não
que assumem os outros papéis: elas agem como passageiros, como ma­ são percebidas na vida real.
quinista, como bilheteiro. Essa situação, como a da criança que assume o papel de maquinista
Um segundo aspecto que podemos notar na brincadeira é a utiliza­ de trem, mostra qu� aquilo que na vida real passa despercebido pelas
ção que as crianças fazem dos objetos: cadeiras tanto demarcam os es­ crianças toma-se regra de comportamento na brincadeira.
paços como compõem o trem; pedaços de papel transformam-se em De acordo c�m Vygotsky, essas regras decorrem da própria situa­
dinheiro e em passagens; pedaços de biscoito viram bolo. ção imaginária. E o fato de assumir determinado papel que induz a
Essa transformação dos objetos é interpretada por Piaget como criança a submeter seu comportamento a regras.
resultado da utilização de esquemas habitúais, contando não com a A submissão a regras implica a superação da ação impulsiva. Para
presença dos objetos a que comumente se aplicam, mas de novos ob­ esperar que o trem pare na estação para ir ao restaurante comprar bolo,
jetos que "não lhe convém [à criança] do ponto de vista de u� a adap­ as crianças precisam evitar a ação impulsiva de obter um biscoito e
tação efetiva" (Piaget, 1 978: 1 27). Um pequeno travesseiro, por submetê-la às regras implícitas na situação imaginária. Segundo Vy­
exemplo, pode ser embalado como uma boneca; uma caixa, empurra­ gotsky, essa submissão da criança a regras de comportamento é a razão 1 25
1 24 da como um carrinho; ou, ainda, como na situação acima, cadeiras do prazer que ela experimenta na brincadeira.
to, como o cabo de vassoura, que lhe permita realizar a mesma ação
possível com o cavalo real: montar ou cavalgar.
Assim, não é qualquer objeto que pode substituir outro. Uma bola,
uma caneta ou uma mesa não poderiam representar um cavalo, porque a
criança não poderia agir com esses objetos como se fossem um cavalo,
não poderia montá-los ou cavalgá-los.
Já uma criança mais velha ou um adulto poderiam utilizar qualquer
um desses objetos para representar um cavalo. Um adolescente, por
Durante a
exemplo, que estivesse relatando uma experiência a um amigo, poderia
brincadeira, a tranqüilamente dizer: "Faça de conta que aquela mesa é o cavalo. Eu
criança opera estava aqui, mais ou menos a essa distância, quando ele disparou em
com o significado minha direção".
das coisas, e não
com elas em si.
Isso porque crianças mais velhas, adolescentes ou adultos já po­
dem operar com o significado, independentemente do objeto concreto.
Qualquer coisa pode simbolizar outra, e é possível até mesmo operar
Na situação de brincadeira, a criança supera a ação impulsiva tam­ com significados 9ue dizem respeito a coisas que nunca foram vistas ou
bém relativamente aos objetos. Crianças muito pequenas ainda não têm experimentadas. E por isso que, se nos falam sobre violino, é possível
essa capacidade: os objetos é que determinam o que devem fazer, por­ compreendermos o que dizem sem nunca termos visto um violino ou
que sua percepção é sempre um estímulo para a atividade. Ou seja, a ouvido o seu som. Para isso, basta conhecermos o significado da pala­
criança pequena age de acordo com o que vê. Se vê um cabo de vassou­ vra violino.
ra perto de uma lata, por exemplo, ela poderá usá-lo para bater na lata. É nesse sentido que a brincadeira infantil constitui uma transição:
Ou então, se vê um biscoito, ela provavelmente o comerá. ao agir com um objeto como se fosse outro, a criança separa do objeto
De acordo com Vygotsky, "é no brinquedo que a criança aprende a real, concreto, o significado. Mas, para realizar essa separação, ainda há
agir numa esfera cognitiva, ao invés de numa esfera visual externa, de­ necessidade de um objeto substituto que possibilite a mesma ação que o
pendendo das motivações e tendências internas, e não dos incentivos objeto real.
fornecidos pelos objetos externos". Da mesma forma que um objeto substitui outro, na brincadeira in­
Isso significa que na brincadeira os objetos perdem sua força deter­ fantil uma ação também substitui outra. Quando a criança brinca de
minadora e a criança passa a operar com o significado das coisas. Na montar a cavalo, sua ação de correr com um cabo de vassoura entre as
brincadeira, um cabo de vassoura pode ser utilizado como um cavalo, e pernas, imitando um trotar, substitui a ação real de cavalgar.
biscoitos podem se transformar em pedaços de bolo vendidos no restau­ Nesse caso, o significado também se separa da ação por intermédio
rante de um trem. de uma ação diferente (como no caso dos objetos), e a criança opera
com o significado de sua ação: "montar" um cabo de vassoura adquire o
significado de cavalgar.
Objetos e significados na brincadeira Na brincadeira, a criança opera com significados desvinculados
dos objetos e das ações; mas o fato de utilizar outros objetos reais
Mas a criança não realiza a transformação de significados de uma (como o cabo de vassoura) e outras ações reais (como "montar" um
hora para outra. Como vimos, quando muito pequena, ela ainda não é cabo de vassoura) ajuda-a a realizar uma importante transição.
capaz de agir como se um cabo de vassoura fosse um cavalo. Isso por­
que os significados ainda estão ligados aos objetos concretos que a
criança conhece: cachorro significa seu próprio cachorro; relógio é o O papel da brincadeira no desenvolvimento da criança
relógio de parede da sala de sua casa; irmã é sua própria irmã.
Vygotsky vê a brincadeira infantil como um recurso que possibilita A brincadeira e a função simbólica
a transição da estreita vinculação entre significado e objeto concreto à
operação com significados separados dos objetos. Na brincadeira, a Piaget e Vygotsky têm pontos de vista diferentes também quanto à
criança ainda utiliza um objeto concreto para promover a separação en­ função da brincadeira no desenvolvimento infantil.
1 26 tre significado e objeto. Ela só é capaz de operar, por exemplo, com o Para Piaget, o jogo simbólico é parte de uma função fundamental
significado de cavalo (sem se referir ao cavalo real) utilizando um obje- 1 27
do processo cognitivo da criança, a função simbólica. Essa função apa-
rece na criança mais ou menos aos 2 anos e permite que ela possa repre­ situações concretas, tendo dificuldade em controlar voluntariamente
sentar uma coisa (um objeto, um acontecimento, etc.) por intermédio de seu comportamento e submetê-lo a regras. Quem conhece crianças des­
outra coisa, como a linguagem, o desenho ou o gesto simbólico. sa id�de sabe que é preciso estar constantemente lhe dizendo o que fa­
Como vimos, Piaget considera que a brincadeira não tem finalida­ zer. E preciso sempre chamá-la para tomar banho, lembrá-la de escovar
de adaptativa, não provoca um aprimoramento dos esquemas mentais, os dentes, recomendar que guarde seus brinquedos, e assim por diante.
ou de ação, da criança. Sua importância para o desenvolvimento consis­ Ela ainda não decide antecipadamente o que vai fazer e só submete seu
te no fato de possibilitar - pela aplicação de esquemas conhecidos a comportamento a regras impostas obedecendo a uma autoridade exte­
objetos "inadequados" - a transformação do significado dos objetos e rior (os pais ou o professor).
a criação de símbolos lúdicos individuais. Num símbolo lúdico, como
pedacinhos de biscoito que representam bolo, um objeto é evocado por
outro, ao qual são atribuídas as qualidades daquele.
Assim, o jogo simbólico relaciona-se ao aparecimento da capaci­
dade de representar eventos e objetos. E, com a representação, a criança
toma-se capaz de pensar em objetos que não estão presentes em seu
campo perceptivo, de lembrar-se de acontecimentos, de prever mental­
mente o resultado de suas ações.
A função simbólica é, então, indispensável para a ampliação das Fonte: Nossas crianças. São Paulo: Abril Cultural, 1 970. v. 2.
fronteiras da inteligência, embora, de acordo com Piaget, ela só progri­
da com o desenvolvimento da própria inteligência. Ou seja, é à medida A criança dessa idade tem no dia-a-dia dificuldade para fazer dis­
que o pensamento da criança se desenvolve que sua linguagem, o dese­ tinção entre o significado dos objetos e suas características. Uma crian­
nho e o próprio jogo evoluem. ça que tenha aprendido a utilizar a palavra animal para se referir a ma­
Portanto, embora o jogo simbólico seja importante para a constitui­ míferos de quatro patas, provavelmente terá dificuldade em reconhecer
ção de símbolos que servem para representar objetos ou acontecimen­ um inseto ou uma ave como animais. O significado da palavra animal
tos, ampliando o campo de ação da inteligência, seu desenvolvimento permanece ligado às características dos seres que concretamente ela
está subordinado ao desenvolvimento da própria inteligência. conh�ce como animal: as quatro patas, por exemplo.
E por isso que, segundo Vygotsky, a brincadeira cria uma zona de
A criação de zonas de desenvolvimento proximal desenvolvimento proximal: "[ ...] no brinquedo, a criança sempre se
comporta além do comportamento habitual de sua idade, além de seu
Já para Vygotsky, a brincadeira tem um papel fundamental no de­ comportamento diário; no brinquedo é como se ela fosse maior do que é
senvolvimento do pensamento da criança. Ao substituir um objeto por na realidade" (Leontiev, 1 988: 1 22) .
outro, a criança opera com o significado das coisas e dá um passo im­ Assim, a brincadeira é a atividade "em conexão com a qual ocor­
portante em direção ao pensamento conceituai, que, como já vimos, rem as mais importantes mudanças no desenvolvimento psíquico da
baseia-se nos significados, e não nos objetos. Por exemplo, o conceito criança e dentro da qual se desenvolvem processos psíquicos que prepa­
de escola para um adulto não se refere a uma ou várias escolas que ele ram o caminho da transição da criança para um novo e mais elevado
conhece, mas corresponde a uma generalização, a uma idéia de escola nível de desenvolvimento" (idem, ibidem).
que pode incluir múltiplos aspectos: seu caráter de instituição, sua fun­ Logo, a atividade de brincar é essencial para o desenvolvimento da
ção social, sua forma de organização em geral, etc. criança em idade pré-escolar.
Além disso, quando a criança assume um papel na brincadeira, ela
opera com o significado de sua ação e submete seu comportamento a
determinadas regras. Isso conduz ao desenvolvimento da vontade, da
capacidade de fazer escolhas conscientes, que estão intrinsecamente
relacionadas à capacidade de atuar de acordo com o significado de
ações ou de situações e de controlar o próprio comportamento por
meio de regras.
É importante notar também que no jogo a criança faz coisas que
1 28 ainda não consegue realizar no cotidiano. Nas atividades cotidianas, a
criança em idade pré-escolar age de acordo com o meio, os objetos e as 1 29
Procurem registrar tudo o que puderem e bem rapidamente (as falas
Sugestão de atividades das crianças merecem atenção especial e, na medida do possível, de­
vem ser registradas literalmente).
Cada grupo deve organizar o seu registro e depois apresentá-lo para a
classe.
Organizando as informações do texto
2. Com base nos resultados das observações de todos os grupos, organi­
1. Reproduza o quadro abaixo e preencha-o com as informações do ze com os colegas um painel sobre a brincadeira infantil. Na apresen­
texto: tação do painel, façam um debate sobre a brincadeira infantil, con­
frontando os modos como a vêem Piaget e Vygotsky.
Piaget Vygotsky

Por que as crianças


Sugestão de leituras
brincam
K1smMaro, T. M. O brinquedo na educação - Considerações históri­
Como as crianças cas. O cotidiano da pré-escola. São Paulo: FDE, 1 990. (Idéias, 7).
brincam
OLIVEIRA, Zilma M. R. de. L. S. Vygotsky: algumas idéias sobre desen­
Papel da brincadeira no volvimento e jogo infantil. A pré-escola e a criança hoje. São Paulo:
desenvolvimento FDE, 1 988. (Idéias, 7).
PIAGET, J. A função semiótica ou simbólica. ln: . A psicologia
da criança. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1 989.
Trabalho de campo VYGITTSKY, L. S. O papel do brinquedo no desenvolvimento. ln:
----'· A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes,
1. Observe crianças brincando. Faça uma combinação entre as idades e 1 984.
as situações seguintes:

Situações Idades
Sozinhas De 1 a 3 anos
Com outras crianças De 4 a 6 anos
Com adultos De 7 a 9 anos
De 8 a 1 1 anos

Combinando as diferentes faixas de idade e situações (por exemplo,


crianças de 1 a 3 anos sozinhas, de 1 a 3 anos com outras crianças e
de l a 3 anos com adultos), serão doze as condições para a observa­
ção. A classe deverá ser dividida em grupos, e a cada grupo será atri­
buída uma das condições.
Durante as observações, prestem atenção aos seguintes aspectos:
• de que as crianças brincam;
• com quem brincam;
• que objetos ou brinquedos utilizam e como os utilizam;
• que atividades realizam e como as realizam;
• o que falam e a quem se dirigem; 131
1 30
• como se relacionam durante a brincadeira.
O jogo vai se tornando mais
elaborado e mais complexo à medi­
da que o bebê começa a combinar
Capítulo 11 ludicamente ações diferentes, pas­
sando de uma a outra ação sem em­
preender nenhum esforço que vise
adaptação ao meio ou aos objetos e
sem ter nenhuma finalidade deter­
minada. O bebê repete certas ações
pelo prazer de exercitá-las.
A brincadeira na vida Se num primeiro momento as
ações do bebê são repetidas, apli­
e na escola cando-se aos mesmos objetos (co­
mo, por exemplo, repetir com o travesseiro todos os movimentos que
É apenas por
habitualmente faz para dormir: deitar-se de lado, apoiando nele a cabe­ puro prazer que
ça, chupar-lhe as franjas, fechar os olhos, etc.), chega um momento em
Como vimos no capítulo anterior, Piaget e Vygotsky tê1'.1 concep­ que outros e novos objetos começam a ser empregados.
os bebês repetem
certas ações.
ções diferentes sobre a importância . da bri�cadeira .para a cn?nça. No
entanto os dois concordam que a bnncade1ra evolm e se modifica.
Pa;a Piaget, essa evolução acompanha o desenvolvimento da inte­ J. (1 ano e 3 meses) vê uma toalha cujas bordas franjadas lhe
recordam vagamente as de seu travesseiro: apanha-a, retém uma
ligência e do pensamento, enquanto para Vygotsky el? se d�ve a mu­
danças que ocorrem na interação da criança co?l o me10 social, em ra­ ponta na sua mão direita, chupa o polegar da mesma �
o e deita-se
zão das diferentes posições que ocupa e das diferentes tarefas que lhe de lado, rindo muito. Conserva os olhos abertos mas pisca-os de tem­
são colocadas. pos a tempos, como se quisessefazer uma alusão aos olhosfechados
_
para dormir. Enfim, rindo cada vez mais, grita nanã (= dormir).
Assim, cada um desses autores dirige sua atenção para aspectos
distintos do processo de evolução da brincadeira, reconhecendo nele (Situação relatada por Piaget cm A formação do sfmbolo na
diferentes momentos. criança.)

Esse tipo de jogo dá origem


A perspectiva de Piaget sobre o desenvolvimento da
ao jogo simbólico (o faz-de-con­
ta), que surge na criança quando
brincadeira seu pensamento torna-se capaz
da representação simbólica (mais
Os primeiros jogos que a criança realiza s�o denominad�s por ou menos aos 2 anos). Diferente­
Piaget jogos de exercício. Estes não comportam amda nenhum simbo­ mente do jogo de exercício, que
lismo e consistem na repetição, por puro prazer, de comportamento que não supõe o pensamento nem a
ela já aprendeu. representação mental de objetos
ou situações, o jogo simbólico,
Depois de ter aprendido, a partir dos 7 meses, a repelir um
conforme já observamos, impli­
obstáculo para agarrar o objetivo, T. começa, entre 8 e 9 meses, a
ca a representação de objetos e
sentir prazer nesse gênero de exercícios. Quando eu interponho,
várias vezes seguidas, a minha mão ou um cartão entre a sua e o
acontecimentos ausentes.
brinquedo que ele cobiça, T. chega a �squecer mome�tane�mente
De acordo com Piaget, o jo-
,
esse brinquedo para limitar-se a repelir o obstaculo, rindo a� gar­
go simbólico começa por comportamentos o jogo dofaz-de-conta surge quando a criança torna-se
galhadas. O que era adaptação inteligente co�ve�teu-se. f!Ols, em
pelos quais a criança imita objetos, pessoas capaz de representar objetos e acontecimentos ausentes.

jogo por deslocamento do interesse para a proprza açao __ indepen­ ou situações. Aos poucos, a brincadeira sim- """'_,""'"''
,""*'�'"- ·'"1:'·,-,.;;: ."""."

bólica com outras crianças (casinha, escoli-


���;:�J ����� ��� ��1�� ;; �::;��:�!�� ��r:�r:�:��;;:s a�:�� rlim���f;'I�� ·.·
dentemente de sua finalidade.
r i i 0
(Situação relatada por Piaget em A fonnaçtlo do símbolo na
criança.)
o b l u
tadas, em que verdadeiras dramatizações com papéis definidos ocupam ça tenta agir sobre os objetos, como os adultos. É por isso que a brin­
o lugar do faz-de-conta. Construções com madeira, pedras, modelagem, cadeira de crianças mais novas caracteriza-se pela reprodução de ações
etc. passam a ser utilizadas, substituindo as transformações mais rudi­ humanas realizadas em torno de objetos. Elas brincam de montar um
mentares dos objetos que ocorrem no jogo de faz-de-conta. cavalo, de dirigir um trem, de alimentar, trocar ou banhar uma boneca.
Assim, o jogo simbólico se desenvolve na direção de uma atividade Durante o desenvolvimento dessas brincadeiras, as relações huma­
mais construtiva, com finalidade de adaptação ao real. Os jogos de cons­ nas incluídas nessas ações começam a aparecer mais claramente. As cri­
trução (em que a criança constrói maquetes e réplicas de objeto a partir anças passam a brincar não apenas de dirigir um trem, mas reproduzem
dos mais variados materiais), os jogos dramáticos (teatrinho, drama­ as relações humanas em que o maquinista está envolvido. Já não importa
tização) e também os jogos com regras (bolas de gude, cartas, amare­ apenas a relação entre o maquinista e o trem (a ação de conduzir o trem),
linha, etc.), todos eles se devem ao desenvolvimento do jogo simbólico. mas também as relações entre o maquinista e seu ajudante, os passagei­
Os jogos com regras aparecem por volta dos 7 anos, possibilitados ros, o chefe da estação e o funcionário que dá o sinal de partida.
pela crescente socialização do pensamento da criança, que conduz à Ao embalar a boneca, trocar sua roupa, dar-lhe banho ou comidi­
substituição do símbolo lúdico individual pelas regras. Ao contrário do nha, a criança pequena assume o papel de mãe, preocupando-se em re­
simbolismo, a regra supõe relações interindividuais, pois é "uma regu­ produzir as ações maternas. Já a criança mais velha inclui essas ações
laridade imposta pelo grupo, e de tal sorte que a sua violação representa em um contexto de relações sociais mais amplo, em que não importam
uma falta" (Piaget, 1 978: 148). apenas as ações que a mãe realiza com o filho, mas as relações entre
ambos. Ela ralha com a boneca, leva-a ao médico ou à escola, o pai e
outros irmãos podem aparecer, trazendo para o primeiro plano as rela­
ções sociais em que mãe e criança estão inseridas.

Fonte: Nossas crianças. São Paulo: Abril Cultural, 1 970. v. 1 .

Os jogos com regras são jogos de combinações sensório-motoras


(como corridas, bolas de gude, etc.) ou intelectuais (cartas, xadrez,
etc.). Quase sempre há entre indivíduos competições que são reguladas
por regras estabelecidas pelo grupo, por acordo momentâneo ou por Ao se vestirem
de mulher. as
regras transmitidas de uma geração a outra: meninas
rep1vduzem
[. . ] os jogos de regras podem ter origem quer em costumes
. ações sociais
do seu meio.
adultos que ca{ram em desuso (de origem mágico-religiosa, etc.),
quer em jogos de exercícios sensório-motores que se tornaram co­
letivos, quer; enfim, em jogos simbólicos que passaram igualmente
a coletivos mas esvaziando-se, então, de todo ou parte de seu con­ Nas brincadeiras de grupo, as relações sociais são reproduzidas nas
teúdo imaginativo, isto é, de seu próprio simbolismo. relações das crianças entre si. Reguladas por regras implícitas de com­
(Piaget, 1978: 1 85)
portamento, essas relações são uma pré-condição importante para que,
aos poucos, as crianças tornem-se conscientes da existência de regras
na brincadeira. É sobre essa base que surgem os jogos com regras (co­
A perspectiva de Vygotsky sobre o desenvolvimento mo amarelinha, esportes, cartas).
da brincadeira Vygotsky afirma que "da mesma forma que uma situação imaginá­
ria tem que conter regras de comportamento, todo jogo com regras
De acordo com Vygotsky, as primeiras brincadeiras surgem da ne­ contém uma situação imaginária". O jogo de xadrez (que é um jogo
cessidade de dominar o mundo dos objetos humanos. Ao brincar, a crian- com regras), por exemplo, baseia-se em uma situação imaginária.
O cavalo, o rei, a rainha e na-se com a brincadeira como um procedimento previsto em seu plano
outras peças só podem ser de ação com as crianças.
movidos no tabuleiro de ma­ No entanto, nas condições concretas do cotidiano escolar, como o

"'
neiras específicas, determi­ brincar se realiza?
o
·e nadas por uma situação ima­
j ginária. O mesmo ocorre nos Brincando na escola
jogos com cartas, na bata­
lha-naval, no jogo de bolas Sala de jogos. Acompanhadas pela professora, as crian­
de gude e outros. ças do jardim (5 anos) vão se acomodando nas mesinhas e esco­
Assim, no contexto das lhendo, nas prateleiras, os jogos e materiais com que desejam ocu-
práticas histórico-culturais, par-se.
a brincadeira se desenvol­ O material disponível à exploração das crianças é consti­
ve, passando de uma situa­ tuído basicamente por jogos pedagógicos - quebra-cabeças, jo­
ção claramente imaginária, gos de encaixe e montagem, placas de alinhavo, etc.
com regras implícitas, para uma situação implicitamente imaginá­ Nesse espaço, a professora não precisa orientar verbal­
No jogo de regras ria, com regras e objetivos claros. mente a atividade dos alunos. A própriq organização das condi­
estão presentes Da mesma forma que a brincadeira, o papel que ela exerce no de­ çõesfísicas da sala indica o que é esperado deles, o que é permiti­
Iambém siluações
senvolvimento infantil também se modifica. Na idade pré-escolar, a do a eles nesse lugar e momento da rotina escolar.
imaginárias. Na situação há possibilidades de escolha. Não há lugares
brincadeira de faz-de-conta é a principal atividade da criança. Já na ida­
marcados, nem uma tarefa única para todos - cada criança esco­
de escolar, os jogos com regras e os esportes tornam-se mais impor­
tantes. Estes têm um papel específico no desenvolvimento, mas não são lhe com que e com quem brincar, onde sentar.
tão fundamentais como o faz-de-conta na idade pré-escolar. A instrução A situação é um convite à exploração - os jogos estão à
disposição para serem manipulados, observados... Eles permitem/
formal, culturalmente valorizada e estimulada, passa a ocupar então o
incitam a atividade das crianças. Nos jogos há problemas implíci­
papel central no desenvolvimento da criança.
tos a serem solucionados: para que servem as peças? Como
montá-las ? A criança obedece às sugestões dos brinquedos, apren­
dendo a usá-los dentro das regras a que foram destinados.
Brincando, aprendendo e sendo Mas essa não é a única forma de explorá-los. Além de sua
experiência ou conhecimento desses tipos de jogos, as crianças
Após tratar do papel da brincadeira no desenvolvimento infantil também exploram as peças que os compõem, elaborando outras
em nossa sociedade, vamos retornar à questão do seu lugar na escola.
·
possibilidades e modos de brincar com elas.
Brincar na escola não é a mesma coisa que brincar em casa ou na É possível comparar as peças, juntá-las ao acaso, agrupá­
rua. O cotidiano escolar é marcado pelas características, pelas funções e las segundo os mais diferentes critérios e até desenhar com elas,
pelo modo de funcionamento dessa instituição. percorrendo os múltiplos caminhos que o material oferece à sua
Na escola, como lugar essencialmente destinado à apropri�ção e atividade.
elaboração pela criança de determinadas habilidades e detennmados Sem levar em conta figura e forma, Guilherme junta as
conteúdos do saber historicamente construído, a brincadeira é negada, peças de um quebra-cabeça em pares. Ana, percebendo o contorno
secundarizada ou vinculada a seus objetivos didáticos. Nesse último do quebra-cabeça, uma borda azuf e reta existente em várias pe­
caso, diz-se que brincar é uma forma de aprender, privile.giando-se as­ ças, utiliza-o como ponto de encontro para enfileirá-las, sem se
sim a atividade cognitiva implícita na brincadeira, em detnmento de seu importar com os encaixes. Fernando engata quatro peças montan­
caráter lúdico. do, empolgado, um trenzinho, enquanto Júlio transforma a haste e
E na escola existe o professor, que é o adulto que conduz intencio­ as argolas, que formariam o corpo do palhaço, no eixo e nas rodas
nalmente as relações de ensino, de acordo com objetivos e concepções de um avião.
didático-pedagógicos. Concepções e objetivos que constituem, ao mes­ Sentadas no chão, Carol, Elisa e Natália brincam de ali­
mo tempo, o crivo de seleção das atividades apresentadas às crianças e nhavo. Enquanto as mãos movimentam-se ritmadamente sobre as
a "lente" com a qual ele focaliza o que elas fazem e dizem. Diferente­ placas, elas conversam.
mente do adulto que em casa vê a criança brincar, ou brinca com ela e Carol: "Eu era a costureira. Eu tava tão cansada, mas
para ela, "experimentando com o acaso" (Novalis), o professor relacio- preciso terminar este vestido ".
Elisa: "Eu também ". Há grupos em que as relações são tensas, envolvendo disputa de
Natália: "Eu também. É pra festa de hoje à noite ". interesses, e com algumas crianças querendo se impor ao restante do
Carol: "É duro ser costureira. Dá uma dor na costa. grupo. Como todas as crianças queriam o quebra-cabeça da árvore, es­
Tem que trabalhar muito. Este vestido é tão grandão, niio acaba tabelece-se entre elas a seguinte conversa:
nunca ".
Natália: "A gentefurava o dedo na agulha e não vai poder Ricardo: "Ah, Carla! Dá o da árvore para mim. Eu querofazê
ir na festa ". primeiro, tá? ".
Elisa: "É. .. a madrasta não vai deixar. Ela vai com as fi­ Fabiana: "Não, não pode dar pra ele. Tem que acabar de
lhas dela e a gente vai ficar sozinha trabalhando... ". montar pra pegar o outro ".
Carol: "Que nem Cinderela, né? ". Carla: "Eu vou ficar com o da árvore. Depois eu vejo pra
(Episódio extraído do relatório de estágio de Fernanda Viclor. alu·
quem eu vou dar ".
na do curso de Magistério, 1993.) Ricardo: "Isso não vale! ".
Carla: "Eu e minhas amigas vamos ficar de mal de você! ".
As crianças brincam, transformando os brinquedos, reelaborando­ (Episódio extraído do relatório de estágio de Juliana Nogueira,
os criativamente. Combinando os dados da experiência, elas constroem aluna do curso de Magistério, 1 993.)
uma nova realidade.
O movimento de ali­ No confronto das possibilidades, no exercício das trocas e negocia­
nhavar, treino motor obje­ ções, vai se delineando a disputa entre os modos de ver e dizer o mundo
tivado pedagogicamente, e o outro. Emergem, na dinâmica da brincadeira, as práticas sociais das
adquire um novo significa­ crianças, suas histórias em construção no jogo "real" e conflitante das
do - o "gesto" de costurar relações sociais.
-, enquanto as crianças se
transformam em costurei­ O lugar da brincadeira na escola
ras e, em seguida, são im­
pedidas de irem à festa, em Vista de perto, com enfoque na criança que brinca, a brincadeira na es­
Cinderelas. cola se revela muito mais complexa, múltipla e contraditória do que leva em
Pelo gesto, pela pala­ conta o princípio didático-pedagógico que associa o brincar a aprender.
vra, a placa de alinhavo é Brincar é, sem dúvida, uma forma de aprender, mas é muito mais
convertida em símbolo para que isso. Brincar é experimentar-se, relacionar-se, imaginar-se, expres­
o jogo, e as crianças imitam sar-se, compreender-se, confrontar-se, negociar, transformar-se, ser. Na
e vivenciam um mundo que escola, a despeito dos objetivos do professor e de seu controle, a brinca­
querem conquistar. deira não envolve apenas a atividade cognitiva da criança. Envolve a
O faz-de-conta impõe-se aos objetivos didático-pedagógicos, redi­ criança toda. É prática social, atividade simbólica, forma de interação
Por meio de
mensionando-os. Na brincadeira, conhecimento e fabulação, experiên­ com o outro. Acontece no âmago das disputas sociais, implica a consti­
jogos, na escola,
cia e simbolização entrelaçam-se. tuição do sentido. É criação, desejo, emoção, ação voluntária.
as crianças
reprodu:em Brincar na sala de jogos possibilita, também, o relacionamento en­ Quando perde sua dimensão lúdica, sufocada por um uso didático
dil•ersas tre as crianças. Algumas ficam sozinhas. Outras se agrupam, mas têm que a restringe a seu papel técnico, a brincadeira esvazia-se: a criança
situações sociais:
dificuldade de se entrosar, não sabem exatamente o que fazer, ficam explora rapidamente o material, esgotando-o. Isso se dá quando, em vez
das trocas
observando os colegas. Há as que falam com os amigos, trocam peças e de aprender brincando, a criança é levada a usar o brinquedo para
inte17Jessoais, da
negociação. da idéias, num trabalho conjunto efetivo e equilibrado. aprender.
dispura.
Esse uso da brincadeira como estratégia de aprendizagem acentua­
Otáviofica em dúvida sobre onde colocar a peça do quebra­
se nas séries iniciais do 1 ? grau. Incentivada e considerada atividade
cabeça que tem nas mãos. Danilo, ao seu lado, lhe diz: "Tá vendo
fundamental da criança na fase pré-escolar, a brincadeira costuma ser,
o nome ? " (apontando para a parte já montada do quebra-cabeça).
então, deixada de lado, ou apenas tolerada. Nas sociedades urbanas
"Então, coloca a sua peça embm)::o. "
contemporâneas, ler, escrever e estudar tornam-se as atividades funda­
mentais para as crianças em idade escolar, e os jogos e as brincadeiras
1 38 (Episódio extraído do relatório de estágio de Juliana Nogueira. só têm lugar na prática pedagógica quando auxiliam a elaboração e
aluna do curso de Magistério. 1993.)
construção de conhecimentos sistematizados.
Nesse contexto, o jogo aparece (con)fundido com o "material co:i­ modos e percursos de apropriação e elaboração do mundo, pois pode­
creto" utilizado nas aulas de Matemática, como recurso para a fixaçao mos voltar nosso olhar não apenas para aquilo que elas fazem, mas para
de regras ortográficas ou de conteúdos a se�em m�morizados, c?1'.1º o como elas fazem. Quais são as elaborações das crianças? Em que me­
meio para a elaboração conceituai. Usam-se b1n�os, Jogos de me�?na, dida respeitam ou transformam o projeto, a estrutura e a tática do jogo?
_ como de domm1os e
"coelhinho sai da toca" (para dar noções espaciais, Que associações de idéias elas fazem no transcorrer da brincadeira? O
fronteiras), etc. que se mostra significativo para elas? Que elementos se tomam subita­
Os professores propõem aos alunos: "Vamos fazer um jogo?''.- Mas mente personagens, passando a agir por conta própria? Durante a brin­
o jogo sugerido pouco tem dos "jogos de verdade" com que as cna�ças cadeira, o que elas dizem, a quem, quando, como? Como se relacionam
se divertem fora da escola. Nele não há ganhador ou perdedor, p01s o com o outro (real ou imaginado)?
objetivo é aprender, e não jogar. Seu pro�ósito não diz r�s�eito à ativi­ Nesse processo o objeto de nossa atenção torna-se outro, bem
dade do próprio jogo, e sim a uma necessidade � a uma log1c� alheias _ a
como nossas perguntas acerca da criança e de nossa prática. Busca­
ele: a necessidade de sistematização de determmado conhecimento e a mos um novo sentido para o nosso trabalho pedagógico: conhecer a
lógica do próprio conhecimento.
esta,, do ponto de
. criança para trabalhar com ela, para brincar com ela, para aprender
A culminância das atividades envolvendo Jogos com ela.
vista pedagógico, no que acontece depois do jogo. Está no registro e na
análise do que se fez, dos resultados obtidos, do que se observou duran­ Aprender e ensinar a brincar
te o jogo, etc., e não no jogar em si.
Desfigurado, o jogo oscila entre a "ausência de sentido" e a
"busca de sentido". Ou as crianças não se envolvem, reclamam que No parque, crianças de 4 anos brincam na areia. Uma delas se
os jogos propostos são chatos, resistem ao registro e à análise, ou aproxima da professora e oferece o "bolo de chocolate " que havia
então brincam, mas "sem prestar atenção ao que é importante". Pro­ feito com areia:
fessores e crianças passam a desconfiar (por motivos distintos, natu­ - Professora, experimenta. Fui eu que fiz.
ralmente) da presença do jogo na escola. Para que, então, o jogo na - Hum! Que delícia! Ah, mas agora me deu sede. Você não
quer fazer um suco para mim?
escola? Como lidar com ele?
- Tá bom.
Ao possibilitarmos o jogo e observarmos as crianças brincando,
podemos nos ater a suas respostas (ao que elas fazem), identificand� o A criança mistura água com um pouco de areia num copinho
de danone.
que elas conhecem (ou não), se desempenham as tarefas e se soluc10-
- Professora, olha o suco.
nam os problemas. Podemos, também, intervir na sua atividade'. no sen­
tido de ajustar suas respostas ao que delas esperamos durante o JOgo. �s - Do que é?
dados observados, incluindo os "efeitos" de nossa intervenção, permi­ - É de laranja.
- Que tipo de laranja ?
tem a nós, professores, classificar as crianças segundo seu desempenho,
- Laranja-lima.
· formando o grupo daquelas que conseguem montar o quebra-cabeça e o
daquelas que não conseguem, o das que agem prontamente e o das A criança volta e faz outro bolo, só que agora com enfeites de
folha de árvore, e o oferece à professora.
dispersivas. . . . - Você só sabe fazer doce?
As respostas das crianças também podem nos servir de md1cadores - Não.
do seu desenvolvimento: estas "já" montam o quebra-cabeça, aquelas
"ainda" não, etc. Nesse caso, continuamos classificando as crianças, - Então eu quero um salgado.
mas a classificação baseia-se no grau de proximidade ou distancia­ - Eu vou preparar um salgadinho doce.
mento entre o que a criança faz e o que é esperado dela, de acordo com A criança volta com várias bolinhas de areia nas mãos.
as etapas do desenvolvimento apontadas pelas teorias da psicologia. - Oba! Que salgadinho é esse?
- Bolinha de queijo.
Nos dois modos acima descritos de utilizar o jogo, este serve como A professora, fingindo comer o salgadinho, oferece-o a outra
instrumento de avaliação e, implicitamente, de seleção: a diversidade criança:
que aparece entre as crianças é hierarquizada e analisada como desi­
- Quer uma, Mateus?
gualdade. Uma teoria psicológica adotada pelo professor pode, então,
levá-lo a colocar e sustentar "etiquetas" nas crianças. - Eu não!!! - responde Mateus.
É possível, no entanto, fazer do jogo um momento de conhecimen­ - Ah! Nós come de mentirinha - diz a primeira criança.
to e de convivência com as crianças, que nos permite conhecer seus (Episódio extraído do relatório de estágio de Juliana Nogueira,
aluna do curso de Magistério, 1993.) �t��l�}'-�Jú�t��[fu
A professora, ao aceitar o bolo de chocolate, aceita o convite que a
criança lhe faz p�ra brincarem juntas. Quem comanda a brincadeira é
a criança, mas a professora, assumindo um papel na brincadeira, enco­ Sugestão de atividades
raja-a a explorar outras possibilidades e nuances da situação imaginada:
"Você não quer fazer um suco para mim?", "Você só sabe fazer doce?".
A atenção ou destaque que a professora vai dando a determinados Organizando as informações do texto
aspectos da brincadeira constituem a via pela qual ela interfere na ativi­
dade da criança, não para ajustá-la à sua própria maneira de considerar Elabore um quadro-resumo acerca das diferenças e semelhanças
o jogo, mas para, explorando com ela outras possibilidades, enriquecê­ entre as concepções de Vygotsky e Piaget sobre o desenvolvimento da
lo em organicidade e duração. brincadeira da criança.
Pelo fato de a brincadeira não ser uma simples recordação de im­
pressões vividas, mas uma reelaboração criativa delas, e por consistir Trabalho de campo
sempre e apenas de materiais colhidos na realidade, o adulto tem nela
um importante papel. A vantagem de dispor de uma experiência mais Observe crianças brincando na escola e anote tudo o que puder,
vasta, de um repertório mais amplo de formas para imitar lhe permite ir seguindo as mesmas orientações dadas no capítulo anterior. Elabore um
mais longe com a imaginação. Ao compartilhar sua experiência inventi­ relatório de suas observações, discutindo, a partir dos subsídios do tex­
va com a criança, a professora "ensina-a" a brincar. to, questões relativas ao lugar do brinquedo na escola.
Na dinâmica do jogo, ela pode estimular e organizar as respostas
da criança, colocando ao seu alcance novos elementos e possibilida­ Exercitando a análise
des sígnicas.
Além de ensinar, nessa relação a professora também aprende. O filme O Menino Maluquinho focaliza com sensibilidade a infân­
Como destaca Rodari, no seu Gramática da fantasia: cia: os desejos, a família, as angústias, a escola, os amigos, as brincadei­
ras, as traquinagens.
[... ] aprende-se com a criança a falar com as peças do jogo, a Assista ao filme e, depois, organize um debate em classe. Troque
compreender seus nomes e papéis, a transformar um erro em uma com os colegas opiniões e impressões sobre o filme e destaque aspec­
invenção, um gesto em uma história [... ]; mas também a confiar tos, cenas, situações que possibilitem refletir sobre a brincadeira infan­
às peças mensagens secretas (porque são elas que dizem à criança til, sua importância e seu desenvolvimento.
que a queremos bem, que ela pode contar conosco, que nossa
força é sua).
Sugestão de leitura
( 1 982: 93.)

Nesse terceiro modo de utilizar o jogo que descrevemos, o profes­ RoDARI, G. Jogos no parque. ln: ___ . Gramática da fantasia. São
sor elabora um saber sobre as crianças (sobre as particularidades de Paulo: Summus, 1 982.
cada uma e sobre as regularidades no processo de como elas aprendem
e se desenvolvem) e um saber sobre sua prática (sobre as possibilida­
des de sua participação nos processos de aprendizagem e desenvolvi­
mento de cada uma e de todas as crianças com quem interage).
Nesse saber elaborado no cotidiano do trabalho pedagógico, as teo­
rias constituem um referencial importante para ajudar a perceber e com­
preender a complexidade, a multiplicidade e as contradições das rela­
ções de ensino.
restrito e delimitado: as aulas de Educação Artística. Estas podem ser
tanto um espaço para a atividade artística criativa, para o ensino de téc­
Capítulo 12 nicas diferentes, quanto para a reprodução de modelos, por meio da
confecção de "trabalhos manuais", em que o trabalho de uma criança
seja semelhante aos das outras.

O desenho infantil

A professora distribui folhas em


Fonte: Nossas crianças. São Paulo: Abril Cultural, 1970. v. 3.
branco, lápis e giz de cera; Uma agitação
toma conta das crianças. E hora de dese­ Elemento capaz de proporcionar a livre expressão e a criatividade,
nhar. Elas falam umas com as outras, o desenho se faz presente na escola como exercício da coordenação
contam sobre o que vão desenhar. Uma motora ou treino de habilidades manuais, como ilustração ou apoio para
--- olha o desenho da outra. Alguém diz que a compreensão de determinados conteúdos ou, ainda, como recurso
não sabe fazer um gato. Gradativamente para a mera ocupação do tempo quando a programação do dia já foi
as marcas no papel vão aparecendo: ga­ cumprida.
·

ratujas, bonecos, casinhas, animais. De­ Entretanto, que concepções sobre o desenho sustentam sua
senhos grandes, que ocupam toda a fo­ presença na escola? Qual o significado do desenho para a criança?
lha. Desenhos pequenos colocados em Como ele se desenvolve? E qual o seu papel no desenvolvimento
um cantinho do papel. Monocromáticos e na aprendizagem da criança? Esses são alguns aspectos que nos
ou multicoloridos. parecem fundamentais quando se busca a construção de uma prá­
Atividade intensa e envolvente para tica pedagógica cientificamente fundamentada. Este capítulo pre­
as crianças, o desenho na pré-escola tem
uma presença constante. E visto como tende trazer elementos que ajudem a compreensão e a reflexão
possibilidade de expressão, como incen­ sobre esses pontos.
tivo à criatividade. Ou ainda como indi­
cador do nível de desenvolvimento
cognitivo e afetivo das crianças. Tendo Quando o traço no papel recebe um nome
em vista a alfabetização, o desenho é
também considerado uma forma agradável de trabalhar a coordenação Quando observamos uma criança muito pequena º rabiscando ou
Desenho: motora das crianças, sua capacidade de atenção e concentração, seus "desenhando", notamos facilmente que os traços não são nada mais que
presença
constante na
conhecimentos sobre cores, formas, etc. a fixação no papel de seus movimentos das mãos, dos braços e, às ve­
pré-escola. Na escola do 1? grau, a escrita, a leitura e os cálculos gradualmente zes, até do corpo todo.
passam a ocupar o espaço do desenho e a determinar seu novo papel. As Os primeiros desenhos ou rabiscos infantis podem ser vistos mais
crianças desenham para ilustrar um texto, para enfeitar seus cadernos, como gestos que imprimem marcas em uma superfície do que propria­
para compor conjuntos numéricos. Desenham ainda nas aulas de Ciên­ mente como desenhos.
cias ou Estudos Sociais, copiando dos livros o ciclo da água ou mapas De acordo com Vygotsky, o desenvolvimento posterior do desenho
geográficos. não é puramente mecânico nem tem explicação em si mesmo: é preciso
O desenho livre, a exploração das diversas possibilidades ofereci­ que, num dado momento, a criança descubra que os traços feitos por ela
das pela atividade gráfica, quando ainda se mantém, ganha um espaço podem significar algo. i .45
Rafael, de 3 anos, está desenhando em sua casa. Sentado à A criança desenha o que sabe e não o que vê
mesa, produz com o lápis movimentos mais ou menos circulares,
deixando marcas no papel. Num dado momento, olha para a sua
Rabiscos, bonecos formados por um círculo do qual saem dois tra­
produção e exclama, dirigindo-se à sua mãe: "Olha, mãe! Eu fiz
ços, carro de perfil com quatro rodas, casinha com chaminé, árvores e
um fusca! ". sol com raios. Essas e outras formas tomadas pelo desenho da criança
(Episódio extraído das experiências familiares de uma das au- são vistas por Vygotsky em sua estreita relação com a linguagem. Para
1oras.)
ele, "o desenho é uma linguagem gráfica que surge tendo por base a
linguagem verbal" ( 1 984: 127), conforme já observamos.
A criança, ao nomear o seu desenho depois que o fez, relaciona os Os primeiros desenhos infantis, reproduzindo somente aspectos es­
traços que produziu (que podem ou não assemelhar-se a algo real) a um senciais dos objetos, assemelham-se a conceitos verbais. Ao desenhar, a
objeto concreto (no caso, um fusca). E, pelo ato de nomear, seu desenho criança tem a fala como base: ela conta uma história ou o que ela sabe
toma-se significativo. sobre os objetos. Vygotsky diz que a criança não se preocupa com a
A fala tem, assim, um papel fundamental na descoberta que a crian;­ representação da realidade, com a reprodução daquilo que vê. Ao con­
ça faz de que seus rabiscos podem significar algo, segundo Vygotsky. E trário, ela tenta, por meio do desenho, identificar, designar, indicar as­
importante lembrar que, antes que a criança nomeie seu desenho, ele é pectos determinados dos objetos. Ou seja, a criança não começa dese­
nomeado pelos adultos que a rodeiam (habitualmente perguntam à nhando o que vê, mas sim o que sabe sobre os objetos.
criança o que ela desenhou ou dizem coisas como "Olha, você fez um
menininho!").
Embora a descoberta de que os traços do desenho podem repre­
sentar objetos reais ocorra nos primeiros anos da infância, Vygotsky
observa que essa descoberta ainda não equivale à da função simbólica
do desenho. Q
A nomeação, feita inicialmente depois de pronto ,o desenho,
passa gradativamente a acompanhar o ato de desenhar. E muito co­
mum observarmos crianças que começam a fazer traços no papel e
vão, durante o ato de desenhar, nomeando o que estão fazendo. A
decisão quanto ao que desenhar não é tomada antecipadamente, mas -J
no decorrer do próprio desenho elas falam e nomeiam o que estão Fig. 1
fazendo.
Depois, a nomeação começa a se dar no início do processo de dese­
nhar. A criança diz "Vou desenhar uma flor" ou "Vou fazer uma casa", Na figura 1 , por exemplo, o desenho mos­
antes de começar a desenhar. tra traços que, antes de representar em deta­
Essa mudança relativa ao momento da nomeação no desenho de­ lhes o que a criança quis desenhar (um carro­
monstra que os primeiros traçados da criança aiI�da não representam guincho), indicam aspectos de um carro-guin­
simbolicamente, em si mesmos, os objetos reais. E apenas pelo ato de cho: duas formas contendo duas rodas cada
nomeação, pela utilização da linguagem falada que os desenhos ga­ uma, ligadas por um traço. Na figura 2, pes- Fig. 2
nham algum significado. Tanto é assim que muitas vezes o significado soas são representadas por formas que indi-
passa a ser outro no decorrer do ato de desenhar. A criança pode expli­ cam a cabeça, os braços e as pemàs.
Isso implica certo grau de abstração, de generalização, do mesmo
car que está fazendo um gato e, antes mesmo de completar o desenho, modo que a palavra na linguagem verbal. Já vimos, em capítulos anteriores,
dizer "Isto é uma bruxa". que o significado de determinada palavra não é um objeto concreto com
Por isso Vygotsky afirma que a "representação simbólica primária todas as suas características. O significado da palavra coelho, por exemplo,
deve ser atribuída à fala" e considera que o próprio desenho toma-se comporta uma abstração, uma generalização que poderia ser expressa da
simbólico pela utilização da linguagem oral. O desenho transforma-se seguinte forma: "pequeno mamífero leporídeo, selvagem e doméstico"
efetivamente em representação simbólica quando a nomeação passa a (Dicionário Melhoramentos da língua portuguesa). Esse conceito verbal
se dar no início do ato de desenhar e a criança toma-se capaz de decidir não faz referência a todas as características de um coelho concreto, determi­
.146 antecipadamente o que vai desenhar. nado, como cor, tipo de pêlo, tamanho, formato da cabeça, etc. . 1 4z:
O desenho da criança é uma espécie de conceito verbal: ele não O segundo estágio, do realismo fracassado,
reproduz todas as características de um coelho determinado, mas os as­ caracteriza-se pelas primeiras tentativas da crian­
pectos mais relevantes para identificá-lo, como se pode observar nas ça de reproduzir algumas formas. Os elementos
figuras 3 e 4. de seu desenho são muitas vezes justapostos, em
Se a criança dese­ vez de coordenados: um chapéu pode ser dese­
nha o que sabe, um coe­ nhado muito acima da cabeça, por exemplo: É
lho sem as quatro patas nessa fase que aparecem os primeiros desenhos de
(figura 3) significa que figuras humanas, como aqueles em que há apenas
a criança não sabe que a cabeça e as pernas (figura 6).
um coelho tem quatro O terceiro estágio, que começa mais ou me­
patas? A afirmação de
Vygotsky de que as nos aos 4 anos e pode estender-se até os 1 O ou 12
crianças desenham o anos, é o do realismo intelectual. Durante esse
que sabem não quer di­ período, aparecem o plano deitado (figura 7) e a
zer que tenham tão transparência (figura 8). Esses recursos demons­
pouco conhecimento tram que, de fato, a criança desenha o que sabe
quanto seus desenhos sobre os objetos, e não o que vê.
'----- poderiam fazer supor. Na figura 7, vêem-
Eles mostram, isso se inúmeros detalhes
./!..;!.._ sim, um elevado grau
no desenho de uma rua,
Figs. 3 e 4 de generalização, pró­ embora as formas do
prio do conhecimento humano, que, como vimos, é sempre elaborado skatista, da moto, dos
na forma de conceitos, de significados. pedestres e dos prédios
A idéia de que a criança desenha o que sabe, e não o que vê, não é (representados deita­
exclusiva de Vygotsky, tendo sido defendida também por Luquet, um dos) não correspondam
dos mais conhecidos estudiosos do desenho infantil, que distinguiu ao modo como são vis­
quatro estágios na evolução dessa atividade.
·
tos na realidade. Na fi­
gura 8; as roupas do
condutor de trem são
O realismo do desenho infantil: a perspectiva de Luquet transparentes, revelan­
do traços do persona­
,.
.
.
.
. . O primeiro estágio gem que não poderiam Fig. 7
�:....---� identificado por Luquet, ser vistos em alguém
•r . ·• . . o do realismo fortuito, vestido. Desenhos co-

· ..:<-� ,, :
� :"'
... . -� .. começa por volta dos 2 mo o de um feto dentro da barriga da
�·'... : - . . anos. A criança descobre mãe ou o de uma árvore atrás de
� .. ..,
. ..;...-< :.. uma semelhança qual­ uma casa, da qual se vê o tronco (e
,1':.'w.· '"" . . quer entre seu traçado no não só a copa), também são exem­
.. ...
..
papel (feito sem intenção plos de transparência.
.
de representação) e um O quarto e último estágio, pró­
.
objeto. Então, depois que prio da adolescência, é o do realismo
fez o desenho, ela o no­ visual. Caracteriza-o o aparecimento

_·-�. meia. da perspectiva: a criança (ou o ado­
.

Fig. 5 Rafael, aos 3 anos e lescente) passa a representar o que vê


meio, chamou de "gira­ a partir de determinada perspectiva.
1 48 gira" o desenho acima, depois de marcar sobre o papel o movimento de Assim, uma árvore atrás de uma casa
girar daquele brinquedo (figura 5). 1 49
tem apenas sua copa desenhada; os Fig. 8
objetos mais distantes são desenhados em tamanho menor. Um rosto de Para considerar um objeto de determinado ponto de vista, não
perfil é desenhado com apenas um olho, e um caminhão de lado com é necessário estar consciente dele. Em compensação, representar­
apenas duas (ou três) rodas (figura 9). se ou representar graficamente o mesmo objeto em perspectiva su­
põe que se tem consciência, simultaneamente, do ponto de vista
sob o qual é percebido e das transformações devidas à intervenção
desse ponto de vista.
(Meredieu, 1974: 57.)

Assim, embora a criança pequena tenha um conhecimento prático


do espaço que a cerca, sabendo se localizar nos cômodos da casa, reali­
zar sozinha pequenos trajetos na rua, prever a distância entre dois pon­
tos para ir de um a outro, reconhecer a sua casa a partir de diferentes
perspectivas e distâncias, ela ainda não é capaz de representar, mental­
Fig. 9
mente ou graficamente, essas relações espaciais.
No plano das ações práticas e das percepções, ela tem um conheci­
mento do espaço que ainda não se traduz em uma compreensão concei­
A criança é realista na intenção: a perspectiva tualizada das relações espaciais. A evolução do desenho seria, então,
concomitante ao processo de construção do conhecimento relativo ao
de Piaget espaço. Seus diferentes estágios estariam, de acordo com Piaget, vincu­
lados aos diferentes níveis de estruturação do conhecimento espacial,
Piaget também admite na evolução do desenho infantil os estágios de compreensão das relações espaciais. É importante lembrar que a
identificados por Luquet. Ele considera que até os 8-9 anos o desenho estruturação do conhecimento espacial, por sua vez, é simultânea ao
da criança "é essencialmente realista na intenção, [ . .. ] o sujeito começa desenvolvimento do pensamento.
desenhando o que sabe de um personagem ou de um objeto, muito antes Tanto Piaget quanto Luquet supõem que, embora durante a maior
de exprimir graficamente o que nele vê". parte da infância as crianças desenhem o que sabem, e não o que
Assim como Vygotsky, Piaget considera que o desenho constitui vêem, chega-se ao realismo visual, tido como a etapa final do desen­
uma espécie de conceitualização, antes de se tornar cópia do real. (É volvimento do desenho. Eles consideram que as crianças, ao dese­
importante não esquecer as diferenças entre as concepções de Piaget e nhar, são realistas na intenção, ou seja, têm como objetivo a represen­
as deVygotsky sobre a formação de conceitos.) Como elemento da fim­ tação realista do real. O fato de, apesar dessa intenção, elas não dese­
ção simbólica, o desenho representa um esforço de imitação do real, nharem aquilo que vêem deve-se ao seu nível de maturidade ou de­
estando submetido ao desenvolvimento do próprio pensamento da senvolvimento cognitivo. Portanto, chegar a desenhar o que se vê
criança. Isso quer dizer que, embora realista na intenção, a semelhança seria, para Piaget e Luquet, o resultado natural do processo de desen­
entre o desenho da criança e a realidade é determinada: pelo nível de volvimento do desenho.
conceitualização atingido, em cada estágio, pelo seu pensamento.
Piaget vê, portanto, a evolução do desenho como concomitante ao
desenvolvimento do pensamento e, principalmente, à evolução do co­ O realismo visual é aprendido: a perspectiva
nhecimento sobre o espaço. Isso porque o desenho envolve sempre a
representação de relações espaciais. Relações de vizinhança, de envol­ de Vygotsky
vimento ou de limites, de perspectiva ou de profundidade, todas impli­
cam uma forma de organizar o espaço gráfico. Florence de Meredieu, pesquisadora francesa de artes, em seu
Vejamos, por exemplo, a representação da perspectiva, que, con­ trabalho sobre o desenho infantil, argumenta que a aprendizagem da
forme os estágios propostos por Luquet, só aparece no desenho in­ perspectiva (necessária ao realismo visual) não pode ser encarada
fanti I por volta dos 1 0 ou 1 2 anos. Se no plano perceptivo ela tem como natural. Ela considera que, "da Renascença até o Impres­
noção de perspectiva muito antes dessa idade, por que demora tanto sionismo, a pintura esteve reduzida à representação do espaço per­
a representá-la? ceptivo, considerado como o único espaço verdadeiro" ( 1 974: 40),
150
De acordo com Piaget, é porque existe uma diferença fundamental chamando a atenção para a concepção de ensino do desenho baseado
151
entre ver em perspectiva e representar a perspectiva. na observação e imitação do real.
A representação do real pelo desenho passa � ser considerada al�o
natural, não se reconhecendo seu caráter convencional. A representaçao
do espaço perceptivo é apenas Sugestão de atividades
[... ] um dos aspectos de um modo de expressão convencion�l,
baseado em certo estado das técnicas, da ciência, da ordem social Organizando as informações do texto
do mundo em determinado momento. Cumpre então situar a pers­
f
pectiva de maneira correta, tomando-a _Pelo que : uma "simples 1. Organize um quadro-resumo com as etapas de desenvolvimento do
montagem " estética e não uma categoria do espmto. desenho discriminadas por Luquet.
(Meredieu, J 974: 4 !.)
2. Reproduza o quadro abaixo e, a partir das informações do texto,
complete-o.
Vygotsky também observa que a capacidade de desenhar o que se
vê não é algo que se desenvolve espontaneamente. Ele demonstra, em­
Vygotsky Piaget
pregando dados de outros pesquisadores, que a idade normal�ente
identificada pelas teorias como aquela em que se chega ao reahsmo Semelhanças
visual coincide com o momento em que os desenhos começam a desa-
parecer. . . .
' . ,, do d. esen-
Diferenças
De fato, poucas cnanças atmgem esse "u'ltimo estag10
volvimento do desenho sem terem recebido algum tipo de tremo ou
instrução especial. A maioria gradativamente abandona a ativida?e ?º Trabalho de campo
desenho e, quando desenha, não chega a ultrapassar as formas propnas
do estágio que Luquet denominou realismo intelectual. Q�antos de .nós Observe pelo menos duas crianças de idades diferentes (uma de 2 e
mesmos dizemos que não sabemos desenhar? E, se nos vimos obnga­ outra de 5 anos, por exemplo) desenhando, em casa ou na escola. Caso
dos a fazê-lo, produzimos geralmente algo que se assemelha ao dese­ não surja naturalmente uma oportunidade para isso, convide crianças
nho de uma criança de 8 ou 9 anos. conhecidas (parentes, vizinhos) para desenhar. Se for necessário, provi­
Ao que tudo indica, o realismo visual equivale, de fato, a um pa­ dencie o material: folhas de sulfite, lápis ou giz de cera. Peça às crianças
drão estético convencional socialmente valorizado, não tendo sua que lhe dêem ou emprestem um dos desenhos que elas fizerem para
aprendizagem nada de natural. A partir de determinada idade, a c?ança você mostrar a seus colegas na escola ou para guardar.
já não se contenta com seu desenho, como �ponta Vygots�y. Seja p �r
não conseguir corresponder aos padrões socialmente valonzados, seja Durante a observação, preste atenção à fala da criança: o que ela diz,
por já não ser suficiente para atender às necessidades expressivas da a quem, em que momento da produção de seu desenho. Se possível, faça
criança, o desenho acaba por ser abandonado. suas anotações na própria situação de observação, ou logo em seguida.
. Elabore um pequeno relatório, analisando, a partir dos subsídios do
A partir de certo momento, toma-se fundamental a aprendizagem
de técnicas, pois é apenas quando a criança ou o adolescente passam a texto, o papel da fala na elaboração do desenho. Tente também classifi­
conhecer as diferentes técnicas e os diversos padrões estéticos consti­ car os desenhos que coletou, segundo os estágios propostos por Luquet.
tuídos culturalmente que sua própria habilidade poderá continuar a se Justifique sua classificação e, caso tenha encontrado dificuldades, co­
desenvolver, ajudando-a a expressar sua visão de mundo. mente-as.
Exercitando a análise

1. Convide o professor de Educação Artística da escola para fazer uma


breve apresentação (se possível, ilustrada com reproduções de obras
famosas) da evolução histórica da pintura, com o objetivo de discutir
a questão do realismo nas representações gráficas. Faça anotações
durante a exposição do professor. Depois, com base nas anotações e
na releitura do capítulo, elabore um texto analisando o realismo no
152
f,.
·•-;..._...._
.;.. ...._
.;.. _
_
desenho infantil. 1 53

2. Faça um desenho. Cada qual deve fazer pelo menos um e, depois,
vocês devem organizar uma exposição de seus próprios desenhos.
Analisem a exposição: Em que os desenhos que vocês produziram
são diferentes dos das crianças? Em que são parecidos? Capítulo 13
A partir dessa análise, discutam as abordagens apresentadas no texto
sobre a evolução do desenho. Todos os adultos atingem a última eta­
pa identificada por Luquet e Piaget? Por quê?

Sugestão de leituras

DERDYCK, E. Fonnas de pensar o desenho; o desenvolvimento do gra­ Desenhando na escola


fismo infantil. São Paulo: Scipione. (Coleção Magistério).
MEREDIEU, F. O desenho infantil. São Paulo: Cultrix, 1 974.

Numa sala de pré-escola, as crianças estão desenhando. Ivo pede a


Toni que lhe faça um desenho. Toni concorda, mas continua desenhando.
Ivo: Toni, você faiz um minininho desse pra mim, faiz? (Toni
concorda com a cabeça, e continua desenhando). Que que é isso,
Toni?
Toni: Ué, maçã, aqui laranja e aqui é a banana (vai apontando).
Ivo: Nunca vi laranja assim, ó (mostra na folha de Toni).
Toni: ... Vai dando um giz, vai dando um cor de abacate (Ivo
havia pegado todo.s os lápis).
Ivo: Num tem cor de abacate.
Toni: Ó cor de abacate (tira o verde do monte que está com
Ivo).
[... ]
Toni desenha uma árvore com frutas.
Ivo: Toni, como que faiz árvore ?
Toni: Faz árvore ? Qué que eu faço?
Ivo: Quero.
Toni: Cê qué amarrão ou azul?
Ivo: Quero...
Toni: Cor de laranja ?
Ivo: Quero cor de aba. . . ó, é, é assim, assim, assim (mostra no
desenho de Toni).
Toni: Qué com fruta ?
Ivo: Quero com maçã, com... com...
Toni: Com laranja.
Ivo: E com...
Toni: Uva.
Ivo: Com uva!
Toni: Maçã. E com banana, não é?
Ivo: Cadê a banana ?
· 1 55
Toni: A banana é aqui (aponta), e aqui é abacate. Abacate é Analisando o processo de elaboração do desenho
mais gostosa com açúcar.
Ivo: Eu quero abacate. Mas, quando observamos o processo de elaboração do desenho vi­
[... ] vido por Ivo e Toni, o que apreendemos sobre eles, sobre como dese­
Ivo: Pode pintá colorido ? nham e sobre como seu desenho vai sendo produzido?
Toni: Pode! Nesse processo, uma criança serve de modelo para a outra, tem
Ivo: Cor de abacate ? (Ivo pinta e Toni olha, debruçado sobre seus desenhos valorizados, já que "sabe fazer". Essa criança auxilia,
a mesa). explica, ensina, ajuda a decidir e faz pela outra, a que pede ajuda e
Toni: Cor de abacate também. Faz as fruta também. Num es­ explicações, a que aparentemente "não sabe", mas que critica e opina.
quece, tá bom? Durante a elaboração do desenho, há um partilhar de saberes, de infor­
Ivo: Eu num sei fazê fruta. mações e de experiências ("Nunca vi laranja assim", "Ó cor de
Toni: Fruta ? Então deixa que eu faço. abacate", "Abacate é mais gostosa com açúcar"). Há também negocia­
(Episódio apresentado na dissenação de mestrado de Silvia Maria ção envolvendo formas, cores, o que e como desenhar.
Cintra da Silva, As condições sociais de produção do desenho,
Unicamp, 1993. Os comentários que faremos a seguir são de nossa
responsabilidade, embora inspirados nas belas análises feitas pela
autora no decorrer de sua dissertação.)

Toni aparece aqui como aquele que sabe, que serve de modelo, que
ensina e que faz para o outro. Nem por isso Ivo deixa de fazer uma
observação crítica sobre o seu desenho ("Que que é isso?", "Nunca vi
laranja assim"). O fato de dizer "Nunca vi laranja assim" demonstra que
Ivo espera que o desenho se pareça com aquilo que ele vê na realidade.
E talvez seja por isso que ele pede a Toni que lhe desenhe um menini­
nho. Toni "sabe desenhar", seus desenhos se parecem com o que se vê.
O desenho é
Ivo provavelmente ainda não consegue fazer o mesmo. sempre resultado
Depois de observar o desenho de Toni, Ivo não quer mais que este das interações
lhe faça um menininho. Quer saber e aprender como se faz uma árvore. sociais somadas
Toni se propõe fazer por ele e para ele. Ivo aceita e começam, então, a ao auxílio que o
indivíduo recebe
negociar as cores e os detalhes do desenho. e aos materiais e
Ivo pinta sua árvore. Ainda aqui pede a ajuda de Toni: "Pode pintá técnicas a que
colorido?", "Cor de abacate?". A expressão cor de abacate, que no iní­ ele tem acesso.
cio fora utilizada por Toni sem que Ivo identificasse a que cor se referia �-l3

("Num tem cor de abacate"), é agora também utilizada por este.


Toni assume realmente o papel daquele que sabe e que ensina. Diz Quando observamos o processo de elaboração do desenho pelas
a Ivo que faça as frutas e propõe-se desenhá-las quando este diz que crianças, colocamos em questão a pretensa natureza individual dessa
não sabe. forma de atividade. A participação do outro nesse processo é clara: um
Se tivéssemos em mãos o desenho de Ivo, o que veríamos? Uma adulto ou outra criança auxilia, fornece pistas ou instruções, opina, cri­
árvore com frutas coloridas, pela qual poderíamos tentar avaliar sua tica, elogia, incentiva ou faz junto.
capacidade de desenhar. Qual o tema de seu desenho? A forma aproxi­ Também nos modelos à disposição da criança, está presente a parti­
ma-se da realidade? As cores que utilizou estão "adequadas"? cipação do outro. O desenho da professora, de um colega ou do irmão, as
A partir das respostas a essas perguntas, faríamos uma avaliação ou gravuras dos livros, das revistas, das propagandas, etc., sugerem os temas,
uma apreciação do trabalho de Ivo e de sua capacidade de desenhar. A as formas, as cores, evidenciam o que é socialmente valorizado como
avaliação provavelmente não corresponderia à realidade. Se comparás­ belo, correto, bem-feito, indicam o que é saber e não saber desenhar.
semos o seu desenho com o de Toni, poderíamos concluir que Ivo fez Portanto, o processo de aprender a desenhar implica a interação da
uma cópia ou, então, que Toni é realmente o autor do desenho. Nesse criança com outros membros de seu grupo cultural e com modelos so-
caso, não haveria nada a dizer sobre a capacidade de desenhar de Ivo, cialmente disponíveis. O desenho evolui à medida que a criança se
1 56 l 57
sobre sua escolha de tema e a forma de seu desenho. apropria das formas culturalmente constituídas de atividade gráfica.
O desenhar não é, aparece antes que estejam socialmente criadas as condições materiais e
assim, uma atividade psicológicas para seu surgimento.
necessariamente solitá­ Assim, antes de ser um potencial de certos indivíduos, a criativi­
ria e individual. Não é dade é algo que emerge de práticas sociais próprias de determinadas
apenas o grau de maturi­ épocas históricas e de determinados grupos culturais.
dade ou o nível de de­ Logo, o desenvolvimento da criatividade depende das experiên­
senvolvimento do pen­ cias, dos interesses e necessidades da criança, mas também de conheci­
samento que se manifes­ mentos técnicos, das tradições e dos modelos de criação a que ela tem
tam nos desenhos da acesso. O desenvolvimento do desenho criativo envolve a apropriação
criança. O que e como pela criança da experiência cultural. Quanto mais ricas essas experiên­
ela desenha emerge das cias, quanto mais variados os modelos a que tiver acesso, quanto mais
interações sociais em incentivos, auxílios, técnicas e materiais lhe forem proporcionados,
que ela está inserida. maior será a sua capacidade criativa.
Depende do auxílio, das
pistas e instruções que
recebe; da partilha de in­ Desenhando e aprendendo
formações, opiniões, preferências; da sua relação com os modelos, os
Desenhando, as
crianças
materiais e as técnicas a que tem acesso. Numa sala de pré-escola, a professora aproxima-se para ver os
partilham seus desenhos das crianças: Esse aqui é a menina, é? Esse que é a meni­
saberes.
na? Que que é, as pernas da menina ?
E a criatividade, onde fica? Eva: É.
P: Cê fez uma perna vermelha e outra verde ? Que mais cê fez
Será possível criar algo novo sem recorrer às nossas experiências aí? E a cabecinha dela? Faz a cabeça pra ela.
anteriores? Vygotsky afirma que a possibilidade de criação do ho­ Lu: E a boca?
mem está apoiada em sua faculdade de combinar o antigo com o novo P: Não, pra mim isso é o corpo. . . Faz o chão pra ela não ficar
a partir de elementos da sua própria experiência. A atividade criadora voando.
encontra-se em relação direta não só com a riqueza e a variedade de Eva: Onde tá o chão?
nossas experiências individuais, mas também com as experiências P: Onde é as pernas dela? Mostra pra mim.
socialmente produzidas pela humanidade. Cada grande invento, des­ Eva: Aqui (mostra no desenho).
coberta ou obra de arte produzidos pelo homem tem como base para P: Então, então faz o chão pra ela não ficar voando.
seu surgimento a enorme experiência acumulada social e cultural­ Eva desenha um traço, o chão, sob as pernas da menina.
mente. P: Isso, muito bem! Então aqui é a peminha dela? (indica com
Vygotsky nos dá o seguinte exemplo da relação entre criação e o dedo).
meio social: Eva: É.
P: Aqui é os braços, a perna, agora faz a cabecinha dela.
Suponhamos que nas ilhas Samoa nascesse uma criança dota­ [... ]
da das qualidades e do gênio de um Mozart. Que poderia fazer? P: Isso, Eva. Agora o olhinho, pra ela nãoficar sem olho...
No máximo, ampliar a gama de três ou quatro tons para sete e Eva risca em outro lugar da folha.
compor algumas melodias um pouco mais complicadas, mas seria P: Aí não é o olho não, né? O que que é aí?
tão incapaz de compor sinfonias como Arquimedes de construir um Eva: Aí é a cabeça!
dínamo elétrico. P: Aí que é a cabeça ? Entãofaz!
Lu: A areia, cadê a areia ?
(Vygotsky. Jmaginació11 y e/ arte en ln i11fa11cia. México:
Hispánicas. 1987.) Gil: Cadê a areia ?
P: Faltou a boca, ó (Eva desenha a boca). E o nariz? (ele faz).
Toda obra criadora parte sempre de níveis alcançados anteriormen­ Gil: E a areia ? isso que é oreia. faiz otra areia aqui, ó (aponta
1 58 te (seja na arte, seja na ciência), e nenhuma descoberta ou obra original com o lápis no desenho de Eva).
Lu: É mesmo. Fica igual a um coelho! Cadê os cabelo ?
P: O cabelo, ela esqueceu ? Cê esqueceu do cabelo, Eva ? ·'·
Eva: Aí, o nariz.
(Episódio apresentado na dissertação de mestrado de Silvia M. C. da
Silva. As condições sociais de produção do desenho, Unicamp, 1 993.)

Desenhar na escola é desenhar com os outros e para os outros.


Crianças e professora participam da construção do desenho de Eva. Su­
gerem, apontam, indicam, comentam. O desenho de Eva vai se com­
pondo, se transformando. E Eva vai "aprendendo" a desenhar, vai des­
cobrindo o que é esperado de seu desenho, quais os padrões socialmen­
te valorizados como corretos, necessários e bonitos.
Esses padrões, no episódio descrito acima, aparecem na interven­ Que modelos estão sendo oferecidos
ção da professora, revelando suas concepções sobre o desenho infantil: às crianças na escola? Que padrões de de­
"Cê fez uma perna vermelha e uma verde?", "Faz o chão pra ela não senho estão sendo valorizados? Como se
ficar voando", "E a cabecinha dela?". dá a participação do professor e das crian­
A professora espera que o desenho da criança reproduza o mais ças nessa atividade? Que materiais estão
fielmente possível a realidade e atua tendo em vista esse resultado. Uma sendo utilizados pela criança?
menininha precisa ter pernas, braços, cabeça, olhos, cabelo, etc., suas
pernas não podem ser uma vermelha e outra verde. O espaço do papel A escola e o desenho
precisa ser delimitado, a criança precisa aprender a se orientar nele:
fazer o chão é necessário. Para as questões formuladas acima, não
Há uma partilha de experiências sobre a atividade do desenho que há uma única resposta. Os inúmeros modos
envolve o que a criança já sabe fazer e �s conhecimentos e as concep­ de lidar com o desenho infantil na escola re­
ções da professora e de outras crianças. E nesse jogo que o desenho vai fletem as diversas concepções que funda­
emergindo, trazendo em si as marcas da participação do outro. mentam o trabalho pedagógico cotidiano.
A criança não desenha sozinha. Seu desenho não é desvinculado do Não oferecer modelos, não intervir,
momento e do espaço em que é produzido. Ao contrário, constitui-se deixar que a criança desenhe sozinha.
sempre a partir de modelos e da participação do outro. Direcionar a produção da criança, valori­
Numa sala de pré-escola, a professora trabalha com as crian­ zando um único modelo e procurando
ensiná-la a "desenhar corretamente". Dis­
ças em um estudo de artes durante vários dias. Ela apresenta às
· ··· · · �
crianças produções gráficas típicas de diferentes países, como mo­ tribuir folhas mimeografadas para colorir - . ·· � �j . . .
ou cobrir o pontilhado, determinando as
• . -• ��.....

tivos chineses, russos, indianos, egípcios. Apresenta, ainda, repro­
cores que devem ser utilizadas. Essas são
·>:- ,\�_··
duções de obras de artistas como Van Gogh, Goya e Picasso, além
de outras representativas da pintura renascentista e abstrata. As algumas práticas relativas ao desenho pre­ \.'- \
crianças podem ver, conversar, perguntar. A professora informa,
..
sentes no cotidiano escolar. /' '. \ ,,
explica, direciona a atenção das crianças para determinadas ca­ Quando a escola incentiva a criança a .... ·· ·
racterísticas dessas produções. Novos horizantes são abertos: am­ desenhar livremente, a construir sozinha ----·

plia-se o conhecimento que já se tem, possibilidades interessantes seu próprio trabalho, com o objetivo de
são descobertas. As crianças desenham e em seus desenhos explo­ possibilitar o desenvolvimento livre do de­
ram as novas descobertas. Reproduções de motivos egípcios, in­ senho, da criatividade e da expressão, ain­
dianos, russos e chineses aparecem com grande riqueza de deta­ da assim os modelos e o outro estão pre­
lhes; obras famosas também são reproduzidas pelas tintas, pelos sentes. Afinal, não há outros desenhos na
lápis, pelas mãos, pelas cores, como você pode verificar na página sala de aula? Não há gravuras, livros de
ao lado. histórias, desenhos da professora e de ou­
(Situação reconstituída a panir do relato de experiência da proíessora
tras crianças pelo ambiente? As crianças
1 60 Cristina Rufino Jalc.,, da EMEI Agostinho Pátaro, Bardo Geraldo, Cam· não comentam, opinam, avaliam os dese­
pinas, que gentilmente compartilhou conosco o material dela resultante.) nhos umas das outras?
Para poder criar e se expressar, por meio do desenho, a criança se Resolvida a problematizar com as crianças esse tipo de rea­
apropria das experiências do seu ambiente, servindo-se de modelos e do ção, propus a elas uma questão: Por que a mariafedida fede ?
auxílio de outras pessoas. A experiência que ela tem é que lhe propor­ Essa questão foi o disparador para nosso estudo sobre insetos, que
ciona os meios para se expressar de modo criativo. durou um semestre inteiro.
A preocupação com a correspondência do desenho à realidade re­ Onde buscar a resposta ?
vela não só a valorização de determinado padrão estético, mas também Antes de consultar os livros, decidimos fazer um trabalho de
o empenho da escola em desenvolver na criança habilidades de obser­ campo, coletando insetos para observação.
vação, concentração, discriminação visual, orientação espacial e coor­ Puçás improvisados, vidros de boca larga de vários tamanhos
denação motora. Também as folhas mimeografadas são utilizadas com (alguns com álcool), éter para anestesiar os insetos, pinças,
essa finalidade, considerada requisito para a aquisição da escrita. lançamo-nos ao trabalho, anotando o nome de todos os animais
Quando observamos uma criança desenhando, desde as suas pri­ encontrados, além do quefaziam no momento da coleta, e tratando
meiras garatujas até as composições mais definidas, desde suas primei­ de conseguir pelo menos um exemplar para identificação posteri01:
ras experiências de marcar o papel com os próprios movimentos até Sacudimos as árvores e os arbustos, observamos folhas e flo­
produções com formas bem determinadas, descobrimos uma grande res, reviramos pedras e galhos caídos, improvisamos uma armadi­
evolução de suas capacidades de concentração, orientação espacial, lha com uma lata perfurada contendo pedaços de frutas...
coordenação motora, etc. Em sala, começamos a estudar os exemplares coletados, aten­
Nesse mesmo processo, o caráter simbólico do desenho também tando para suas características gerais, número de patas, número
vai se constituindo, com base na linguagem. O simbolismo é a dimen­ de asas, antenas, configuração do corpo, cor; formato, caracterís­
são fundamental do desenho e se vincula mais estreitamente à elabora­ ticas como dureza, transparência, existência de pêlos, etc.
ção d.a escrita e ao desenvolvimento da conceituação. A escrita, sendo Procurando explicitar e tematizar a atividade intelectual que
também essencialmente uma atividade simbólica, apresenta uma es­ desenvolvíamos, propus à classe a leitura e o estudo do texto O
treita ligação com outras formas de simbolização, como o desenho e a segredo da observação. Nele, o personagem central, contando
brincadeira. como descobrira o segredo da observação, dizia, destacando a
A relação de continuidade que há na pré-escola entre o desenho e a importância do desenho: "o lápis é o melhor dos olhos... ". A partir
escrita, na escola fundamental transforma-se em substituição do dese­ daí, o lápis passou a guiar nossa observação.
nho pela escrita. O espaço para o desenho diminui e não há preocupação Todos queriam desenhar. Cada criança escolheu um exemplar
em trabalhá-lo. A criança desenha do jeito que sabe e aquilo que já sabe. e trabalhando individualmente procurava representá-lo na folha
As possibilidades de transformação, de evolução da atividade do dese­ de suljite. Alguns ampliavam o inseto, explorando todo o espaço
nho, via de regra, são mínimas. Deixadas a si próprias, gradativamente do papel, outros faziam reproduções diminutas.
as crianças vão parando de desenhar. As dificuldades emergiam, e com elas as frustrações: como ·

Como criar em sala de aula, no l? grau, condições e situações que marcar no papel a variedade de fonnas observadas, as simetrias,
possibilitem a utilização e o desenvolvimento do desenho? as proporções?
"Oh, meu! Olha o tamanho dessa antena! "
"O lápis é o melhor dos olhos ... " "/eh! Tá torto! "
"Desse tamainho não dá nem pra saber que bicho é... "
A afirmativa acima, que aparece em O segredo da observação, de Sentindo-se incapazes de representar pelo desenho algo que
Ramacharaca, nos levou a descobrir, professora e crianças, o desenho fosse o mais parecido possível com o "real ", algumas crianças
como um modo de guiar e instrumentalizar nossa observação. · queriam desistÍI:
A própria classe discutiu quanto a qual seria o papel do dese­
Era o ano letivo de 1 986, e estávamos em uma 3; série do 1 � nho: "Esse desenho é pra gente saber mais sobre o inseto ".
grau, de uma escola municipal, na periferia de Campinas. Propusemos, então, o trabalho em conjunto, que favoreceu a
Ao lado das salas de aula da escola havia muitas árvores e comparação entre os insetos e a atenção aos detalhes particulares
arbustos que abrigavam um grande número de insetos. Freqüen­ de cada tipo, a troca de técnicas, de modos de desenhar; entre os mais
temente, marimbondos, abelhas e percevejos de plantas (conheci­ e os menos habilidosos, a troca de informações ( "presta atenção,
dos pelas crianças como marias-fedidas) entravam na classe, pro­ aqui do lado do corpo tem umfurinho "), enfim, a busca conjunta de
duzindo alvoroço: os dois primeiros por causa da picada e os últi­ um desenho mais apurado e um grande conjunto de questões.
162 1 63
mos por causa do mau-cheiro que desprendiam quando tocados. "O que é esse fiozinho enrolado que tem na borboleta ? "
"Por que alguns insetos têm um tubinho que parece um alfine­
te e outros não ? "
"Por que esse tem a antena lisa e a desse outro parece feita de
Sugestão de atividades
um monte de pedacinhos emendados ? "
Detalhes que haviam escapado num primeiro momento foram
sendo identificados... Organizando as informações do texto
O sentimento de incapacidade de desenharfoi sendo substituí­
do por comentários como "Eu aprendi com o Marcelo a fazer o 1. Elabore um resumo das informações do texto, enfocando:
gafanhoto ". A admiração diante das habilidades reveladas pelos a) o papel do outro e dos modelos no desenho da criança;
colegas foi sendo explicitada: "Nossa, a senhora viu como o b) a criatividade no desenho infantil.
Douglas é bom de desenho ? Olha que bonito que ficou o desenho
dele! ". A descoberta das próprias habilidades e interesses foi sen­ 'Irabalho de campo
do percebida: "Eu por mim ficava o dia inteiro olhando e dese­
nhando esses bichos. Você viu como a perninha desse aqui é for­ 1. Observe crianças desenhando na escola, de preferência quando reu­
mada por um monte de bolinha? Olha! Parece até um colarzinho... nidas em pequenos grupos. Lembre-se de contextualizar a sua obser­
Por que será que é assim? ". vação, anotando em que condições ocorre a atividade de desenhar (se
Depois, os desenhos feitos pelas crianças foram confrontados por solicitação da professora, verifique o que foi solicitado e como
com desenhos e esquemas apresentados nos livros, evidenciando o foi dada a orientação; se por iniciativa das crianças, repare na manei­
muito que eles haviam apreendido em suas observações (e que ale­ ra como surgiu a iniciativa), o modo como as crianças se organizam
gria: " Viu só? Bem que eu te mostrei... ! ") e o que haviam deixado para realizá-la, os materiais de que dispõem, etc.
escapar. E, então, voltar a desenhar complementando os detalhes Preste atenção a tudo o que as crianças fazem enquanto desenham,
era um novo prazer. E de novo aprender; pois agorajá sabiam o que como procedem, como utilizam o material, o que elas e o professor
estavam desenhando, o porquê das configurações de cada parte do falam e a quem se dirigem, as interferências do professor (nos dese­
inseto observado e seu funcionamento no todo daquele organismo. nhos ou no relacionamento entre elas). Anote rapidamente tudo o que
(Relato de experiência de uma das
puder. Em seguida, organize o seu registro para tomá-lo compreensí­
autoras.) vel a outras pessoas.
/,,---- Faça um relatório sucinto, analisando a situação observada a partir
Como instrumento de do que foi tratado neste capítulo: destaque aspectos da interação en­
trabalho e de conhecimento tre as crianças que parecem influenciar a elaboração do desenho;
em sala de aula, o desenho aponte indícios de utilização de modelos pela criança (lembre-se de
revelou às crianças uma que esses modelos podem não estar explicitamente presentes); anali­
competência em geral anu­ se o modo de proceder do professor, procurando identificar em que
lada pelo saber acadêmico, concepções sobre o desenho infantil ele ancora sua prática. Comente
incentivando-as a aprender todos os aspectos da situação que achar relevante para a compreen­
pela observação. são do processo de elaboração do desenho pelas crianças.
Fazendo-se útil ao pro­ 2. Em pequenos grupos, entrevistem professores da l � à 4� série, inves­
cesso de conhecimento, o tigando como, em que situações e com que finalidade as crianças
desenho na escola funda­ desenham em sala de aula. Com o auxílio de seu professor, elaborem
mental possibilita a valori­ um roteiro para as entrevistas. Lembrem-se de buscar informações
zação da linguagem gráfica sobre como as próprias crianças se relacionam com a atividade de
e das habilidades a ela rela­ desenhar (se a apreciam ou não, quais os tipos de desenhos que fa­
cionadas, criando espaços zem, etc.).
para o seu próprio desen­ Organizem os dados coletados, agrupando as respostas semelhantes,
volvimento e condições de mas citando também as menos freqüentes, e apresentem-nos para o
interação e de realização restante da classe. Discutam, com base neste capítulo e nos dados das
pessoal. entrevistas, a situação do desenho no 1 ? grau.
Exercitando a análise

Quando falamos em literatura infantil, habitualmente nos referi­


mos a textos (à sua qualidade, à beleza da história, etc.). Raramente
prestamos atenção às ilustrações, às técnicas, aos traços, ao colorido
Unidade 4
que as compõem. Quase sempre as vemos como simples apoio visual
do texto e quase nunca as apreciamos por si mesmas.
A seguir apresentamos uma relação de livros que, depois de lidos,
deverão ter suas ilustrações observadas com atenção. Note quanta va­
riedade na sua produção gráfica: cores fortes, preto-e-branco, riqueza
de detalhes, simplicidade de traços, humor, etc.
Depois, reflita sobre os modelos de desenho habitualmente valori­
zados na escola e as características que se espera encontrar no desenho
infantil. Discuta com seus colegas.
• Bichos, bicho. Texto de Ciça e ilustrações de Ziraldo. São Paulo:
FTD.
A pipa. Texto de Cristina Porto e ilustrações de Tenê. São Paulo:
FTD.
• O joelho Juvenal; Flicts; Meu amigo, o canguru. Textos e ilustra­
ções de Ziraldo. São Paulo: Melhoramentos.
• Se as coisas fossem mães. Texto de Silvia Orthof e ilustrações de
Ana Raquel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
• Comboio, saudades, caracóis. Texto de Fernando Pessoa e dese­
nhos de Cláudia Scatamacchia. São Paulo: FTD.
• Era uma vez duas avós. Texto de Nauim Aizen e ilustrações de
Patrícia Gwinner. Rio de Janeiro: EBAL.
A bruxinha; Cabra-cega; Esconde-esconde. Textos e ilustrações
de Eva Furnari. São Paulo: Ática.
Ida e volta. Juarez Machado. Rio de Janeiro: Agir.
• Mundo criado, trabalho dobrado. Texto de Elias José e ilustração
de Graça Lima. São Paulo: Atual.
• O dia em que um super-herói visitou minha casa. Texto de Sonia
Junqueira e ilustrações de Helena Alexandrino. São Paulo: Atual.

Sugestão de leituras

DwoRECKI, S. Criança: evitando a perda da capacidade de figurar. O


jogo e a construção do conhecimento na pré-escola. São Paulo:
FDE, 1 99 1 . (Idéias, 1 0).
MOREIRA, A. A. A. O espaço do desenho: a educação do educador. São
Paulo: Loyola, 1 984.
SILVA, M. S. C. As condições sociais de produção do desenho. Disserta­
ção de Mestrado, Unicamp, Campinas, 1 993.
Introdução Capítulo 14

O utdoors, prateleiras de supermercado, rótulos, ban­


cas de revistas, jornais, letreiros, livros, placas de
trânsito, cartas, cartões, convites, folhetos informativos,
A escrita e a alfabetização

lista télefônica, receitas, preces... A escrita, com diferentes caracteres e


funções, espalha-se pela cidade, permeando nosso dia-a-dia. Dela lan­ Vivemos num mundo orientado pela escrita. Anúncios, rótulos,
çamos mão, até sem perceber, para realizar satisfatoriamente grande propagandas, cartas, jornais, revistas, livros, documentos de identifi­
parte das atividades do cotidiano. cação, placas de informação e de indicação estão o tempo todo pre­
Em meio a essa multiplicidade de formas, cores, tamanhos e fun­ sentes no nosso cotidiano. As crianças, desde muito cedo, convivem
ções, as crianças, aos poucos e incidentalmente, vão prestando atenção intensivamente com a linguagem escrita. Como percebem e que sen­
à escrita. Imitam-na, procuram entendê-la. Brincam de escrever e de ler, tido fazem daquilo que os adultos chamam de escrita? O que é a
escrevem e lêem de verdade. escrita para elas?
Na escola, recebem informações sobre seu funcionamento, exerci­ Raramente essas questões são objeto de nossa atenção, porque
tam-na ao fazer traços na lousa, ao realizar tarefas (muitas vezes sem estamos acostumados a ver e tratar as relações da criança com a escrita
sentido para elas), ditados, "redações". Utilizam-na nos bilhetinhos como alfabetização.
para os colegas, nas marcas que deixam nas carteiras e paredes, nos Apesar de admitirmos, relativamente à linguagem oral, que a
cadernos de recordação, nas tabelas dos campeonatos... O que é a escrita
criança se desenvolve em situações de comunicação e interação com os para a criança?
Como a criança se transforma num indivíduo "letrado"? outros, no que diz respeito à escrita nos comportamos de modo muito
Essa é uma questão importante para o nosso trabalho como educa­ diferente.
doi:es, e a psicologia pode nos ajudar a refletir sobre ela, lançando luz O ingresso na 1 � série
sobre aspectos dos processos de elaboração da criança que muitas vezes do 1? grau é um rito de pas­
passam despercebidos. sagem em nossa socieda­
No capítulo 14, problematizamos as relações entre a alfabetização de. Consideramos ler e es­
e o desenvolvimento da escrita na criança. crever atividades que se
No capítulo 15, focalizamos as relações da criança com a escrita. aprendem na escola e tra­
Nos capítulos 1 6 e 17, o desenvolvimento da escrita na criança é tamos as primeiras tentati­
focalizado a partir dos estudos de Emília Ferreiro (fundamentados em vas· de escrita de nossas
Piaget) e de Vygotsky e Luria. crianças como meras gara­
No capítulo 1 7, voltamos às práticas de alfabetização, para analisá­ tujas ou como cópias ina­
las e discuti-las à luz das contribuições desses autores. dequadas de algo escrito.
Vemos essas tentativas
como relevantes apenas
sob um aspecto: o de, por
meio delas, as crianças aprenderem a manejar o lápis e a utilizar o espaço
do papel, desenvolvendo habilidades motoras que lhes serão úteis para
aprender a escrever.
Por que isso acontece? consolidou-se a partir da última década de 30, quando a alfabetização
Para entendermos o nosso próprio modo de nos relacionarmos com a passou a ser claramente definida e defendida como um conhecimento a
escrita em nossa tão letrada sociedade, precisamos, ainda que brevemente, ser possibilitado pela escola.
refletir sobre o que é a escrita e sobre a história de sua escolarização. Ao passar para a esfera de responsabilidade da escola pública
mantida pelo Estado, o acesso ao domínio das convenções e comple­
xidades dessa forma de linguagem foi ampliado, representando um
grande avanço em direção à meta de universalização da alfabetização.
Escrita e poder No entanto, a ação da escola fixou-se de tal forma no treinamento
das habilidades específicas relativas à escrita e ao traçado de letras
A linguagem escrita, como a linguagem falada, é um sistema sim­ que acabou relegando sua utilização como linguagem a um segundo
bólico criado pelo homem. No fluxo da comunicação verbal, grupos plano.
humanos passaram a utilizar linhas, pontos e outros sinais para repre­
sentar, registrar, recordar e transmitir informações, conceitos, rela­
ções, produzindo assim a escrita.
Vários tipos de escrita (pictográfica, ideográfica, etc.) foram pro­
duzidos ao longo da história. Hoje, a escrita dominante é a alfabética.
A escrita alfabética é uma forma de representar a palavra falada
com base nos seus aspectos sonoros e nas possibilidades de uso das
letras do alfabeto. Por exemplo, para escrever a palavra gato, na nossa
língua, usamos quatro letras que correspondem às quatro unidades mí­
nimas de som que compõem essa palavra no seu registro oral. As letras
g, a, t, o são grafismos (marcas) que representam aspectos sonoros da
palavra falada. Fonte: Nossas crianças. São Paulo: Abril Cultural, 1 970. v. 5.
As letras grafadas no papel representam, mediante uma convenção
socialmente estabelecida, os sons da palavra falada (seu significante,
sua imagem sonora), e esta, por sua vez, designa os objetos, as ações e Alfabetização e desenvolvimento da escrita
os fatos da realidade. Nesse sentido, podemos dizer que a linguagem
escrita é mais complexa do que a linguagem falada, uma vez que a
representa. Já na década de 20, Vygotsky criticava a não priorização da escrita
Para que a escrita seja dominada, essa complexidade requer a como linguagem. Para ele, o ensino da habilidade da escrita por si mes­
aprendizagem sistematizada e o treinamento específico de algumas ha­ ma corresponde ao domínio da habilidade técnica de tocar piano, em
bilidades e convenções, tais como: o conhecimento do conjunto de le­ que o aluno desenvolve a destreza dos dedos e a leitura simultânea da
tras disponíveis para o registro dos sons da linguagem falada, suas rela­ partitura, sem se envolver na essência da própria música.
ções com esses sons e as regras de combinação entre elas, o traçado que Embora ele considerasse necessário o ensino da escrita, sua crítica
as constitui, sua direcionalidade, e outros tantos detalhes. dirigia-se ao modelo de ensino então adotado e que é, ainda hoje, domi­
No processo de divisão social do trabalho, o acesso a essa aprendi­ nante na prática escolar.
zagem foi sendo controlado por algumas classes sociais, transformando Nesse modelo, a escrita é considerada principalmente como um
a escrita em privilégio, em índice de poder e recurso de dominação. código que permite representar graficamente a linguagem falada. Para
Embora desde a Renascença (século XV) a universalização da dominar esse código, as crianças necessitam treinar duas técnicas bási­
aprendizagem da escrita e da leitura fosse uma reivindicação das clas­ cas: a codificação, que é a transformação dos sons da língua falada em
ses excluídas do acesso à cultura letrada, somente com a criação dos sinais gráficos, e a decodificação, que é a possibilidade de reconstituir a
sistemas nacionais de ensino dos Estados modernos (século XIX) foi palavra falada a partir dos sinais gráficos registrados.
que se concretizou a idéia de escola como a instituição encarregada de Essas técnicas enfatizam os aspectos perceptivos (auditivos e vi­
iniciar as crianças no mundo da escrita e, com ela, criou-se o modelo de suais) e as habilidades motoras envolvidas no ato de ler e escrever, cuja
alfabetização que conhecemos hoje. aprendizagem é feita de modo progressivo, hierarquizado e cumulativo.
Entre nós, brasileiros, o lema "Escolarizar para alfabetizar " é mais As crianças precisam dominar passo a passo o traçado correto das le­ ' ,_., . -- . . · --,, ·,;·"""·-..,. · --
170 recente ainda. Tendo sido uma bandeira do pensamento republicano, tras, as correspondências entre os sons e as grafias, a discriminação de il?il >: " ·' :{,����'<:
sons e grafias semelhantes para chegar ao registro e à leitura de pala­
vras, frases e textos. Quem é Emília Ferreiro?
Durante o processo de alfabetização, as crianças desenham letras,
copiam ou formam palavras com elas, escrevem palavras ditadas pela Emília Ferreiro, psicóloga argentina, é douto­
professora, completam-nas, dominam a mecânica de decodificar o que ra pela Universidade de Genebra, onde foi
está escrito, independentemente do significado que as palavras escritas orientanda e colaboradora de Jean Piaget. Suas
ou lidas tenham para elas. pesquisas sobre alfabetização foram realizadas
Esse modo de considerar o ensino da escrita leva a que todos os es­ principalmente na Argentina e no México, onde é
forços se concentrem no treinamento de habilidades que possibilitarão à professora titular do Centro de Investigação e Es­
criança sua utilização futura. Ou seja, só depois de terem dominado essas tudos Avançados do Instituto Politécnico Nacio­
habilidades é que elas poderão utilizar a escrita para registrar suas expe­ nal. Deslocando do "como se ensina " para o
riências e pensamentos, para se comunicar com outras pessoas... Até "como se aprende" o foco da investigação relativa
então, elas escrevem para treinar a escrita e lêem para treinar a leitura. à aprendizagem da escrita, descreveu, no final da
Suas tentativas de "dizer por escrito" o que querem e o que pensam são década de 70, a psicogênese da língua escrita.
controladas. "É melhor que o aluno escreva uma linha certa do que uma Suas conclusões têm possibilitado aos educadores
folha cheia de erros", dizem alguns professores alfabetizadores. o redimensionamento da compreensão acerca das
A escrita, privada de sentido e do seu funcionamento social, é con­ relações da criança com a escrita.
vertida em fim último da aprendizagem escolar. E esta, em vez de ser
vista como parte imprescindível de um processo amplo, passou a ser
considerada o único e possível caminho de apropriação e de elaboração
da linguagem escrita. Esses estudos procuraram descrever como se origina e como se
A crítica a essa forma de ensino da escrita vem sendo feita desde o desenvolve a escrita na criança. Por meio deles tomou-se possível co­
início do século por psicólogos, pedagogos, lingüistas. Entre esses traba­ nhecer:
lhos críticos vamos destacar o de Vygotsky e Luria ( 1 920) e o de Emilia
Ferreiro e seus colaboradores ( 1 980), baseados nos pressupostos da teo­ • o. qife as crianças pensam sobre. a escrüa e. como se relacio11am com
ria piagetiana de desenvolvimento.
<': eW,. �i�s e dlfra,itté a .alfaf!�fitl.ição;' ; •.•.
. .
·.

o�j;rotessos ellvôM.dos mifre'/aç6es da cí-;Qnça com a escrlia, qüe.i§ln


- - . . . . -·· ···-- -�--

.· •
início muito antes da (dfabtiiilllfãi;/ae()ÍllpanJuuÍFtUi e prolongam-se
Quem foi Luria? . Paro âlém deía, segundo a rêlevâ11cúi da escrita no contextó social em
que �ivein úlls Úsuários; · • ·

Alexander Romanovich Luria (1902-1977) foi • aS especificidades da alfabetização, vista como um processo que, en­
colaborador de Vygotsky. Na década de 20, reali­ volvendo sistematização de regras, mecanismos e fu11ções da escrita,
zou experimentos relativos ao estudo do desenvol­ acontece na relação de ensino do contexto escolar.
vimento da escrita e dos conceitos matemáticos na
criança. Pondo em questão o modo como a psico­ A seguir, vamos apresentar e comparar essas duas contribuições.
logia da época abordava esses temas, conduziu ex­ Primeiramente focalizaremos o modo como esses estudos explicam
tenso trabalho de campo sobre o funcionamento as relações da criança com a escrita. A seguir abordaremos como eles
psicológico de moradores de vilarejos e áreas ru­ descrevem e analisam a escrita produzida pela criança. E finalmente
rais de uma região remota da Ásia central. Seu ob­ discutiremos as implicações dessas teorias para as práticas escolares
jetivo era estudar como os processos psicológicos de alfabetização.
superiores são construídos em diferentes contextos
culturais. Dedicou-se mais intensamente ao estudo
das funções psicológicas relacionadas ao sistema
nervoso central, tomando-se conhecido como um dos mais impor­
tantes neuropsicólogos do mundo.
Sugestão de leituras
Sugestão de atividades
BARBOSA, José Juvêncio. A história da escrita. ln: ___ . Alfabetiza-
ção e leitura. São Paulo: Cortez, 1 990.
Organizando as informações do texto CAGLIARI, L. C. o mundo da escrita. ln: · Alfabetização & lin­
---

güística. São Paulo: Scipione, 1 989.


No texto foram utilizados dois conceitos distintos para definir as GOMES JR., G. S. Escrita. Cadernos CEVEC, n? 4. São Paulo: Centro de
relações da criança com a escrita: alfabetização e desenvolvimento da Estudos Educacionais Vera Cruz, 1 988.
escrita na criança.
Com base nos dados do texto, compare os dois conceitos. Lembre­
se de que comparar é apontar semelhanças e diferenças entre os elemen­ Filme recomendado
tos considerados.
Escrita, direção de Fernando Passos, 1 988. Distribuído pela Fun­
Pesquisa bibliográfica

dação para o Desenvolvimento da Educação (FDE), São Paulo.


De tal maneira nos acostumamos às coisas que fazem parte do nos­
so cotidiano, que as consideramos naturais. Parece que elas sempre
existiram e sempre com as mesmas características. A escrita é um des­
ses elementos.
Vivendo num mundo povoado por representações escritas, fica di­
fícil imaginar como surgiram e como evoluíram ao longo da história
humana as formas de registro que utilizamos hoje.
Vamos fazer um pequeno estudo sobre a história da escrita. Um
roteiro básico pode ser o seguinte:
a) Identificar as condições históricas que possibilitaram o aparecimento
da escrita e quais foram suas finalidades sociais.
b) Resumir as etapas da evolução histórica da escrita, caracterizando
suas diversas configurações, até chegar à escrita alfabética.
c) Procurar informações sobre o funcionamento do sistema de escrita
alfabético, tendo em vista caracterizar o princípio fundamental que
o rege.
Para isso consulte outros livros didáticos ou livros especializados,
como os que são indicados neste capítulo nas sugestões para leitura e
pesquisa.
Você pode também recorrer a vídeos (neste capítulo sugerimos um)
e a seus professores de História, História da Educação, Português e
Metodologia da Alfabetização.
Exercitando a análise

Leia o livro O menino que aprendeu a ver, de Ruth Rocha (Editora


Melhoramentos). Nele a autora focaliza as relações da personagem
João com a escrita.
Ao analisar o texto, observe se o livro fala da relação de alfabetiza­ 1 75 .
ção, do desenvolvimento da escrita na criança ou dos dois temas.
As características gráficas da escrita também orientam as "tentati­
vas de leitura" das crianças.

Capítulo 15 Rafael, de 3 anos, olhando para a tampa da lata de Nescau,


onde estava escrita em relevo a palavra Nestlé, diz para o imzão de
9 anos:
- Olha, Beto.I
E, passa'ndo o dedinho sobre as letras, vai pronunciando pau­
sadamente:
- Neeeeessscaaauuu!

As relações da criança (Episódio envolvendo os filhos de uma das autoras.)

Não são quaisquer traços que podem ser lidos. O formato dos tra­
com a escrita ços em relevo na tampa da lata e o lugar onde foram impressos não são
arbitrários. Eles significam alguma coisa. Na interpretação de Rafael,
eles nomeiam.
Quando prestamos atenção aos comentários que as crianças fazem Rafael, imitando o modo de ler de uma criança mais velha, compar­
sobre a escrita ou às suas tentativas de utilizá-la, percebemos que elas tilha a possibilidade de leitura com o irmão, que muitas vezes lê para
não são indiferentes a essa forma de linguagem. Elas procuram imitá-la, ele. Na imitação, ele reproduz a relação entre o texto escrito e a fala.
interpretá-la, entendê-la. Nas duas situações observamos que a escrita, além de estar presen­
te no cotidiano das crianças, é compartilhada com elas por adultos e
crianças mais velhas: a mãe possibilita a Olívia explicitar o que pensa e
Olívia, de 3 anos, conversando com a mãe, diz: sabe sobre a escrita; o irmão, que lê, serve de modelo para Rafael.
- Na escola eu faço desenho, eu escrevo... Esses episódios cotidianos mostram processos não escolares de
- Ah, é?! Como é que você escreve ? elaboração da escrita em que a criança formula uma compreensão
- É assim, 6. incidental e inicial dessa forma de linguagem.
E enquanto traça rabiscos em ziguezague no papel, ela vai Como as crianças chegam a essas elaborações iniciais da escrita?
nomeando: A gênese da escrita na criança é vista de modos diferentes por
- Papai, mamãe, Olívia. Emilia Ferreiro e Vygotsky.
(Relato feito pela mãe da criança às autoras durante um curso para
professores.)

A criança constrói a escrita


Escrever, para Olívia, é diferente de desenhar. Ao demonstrar para
a mãe o que é escrever, ela nomeia cada um dos rabiscos feitos no papel. Emília Ferreiro e seus colaboradores consideram que a escrita,
O ato de escrever, em casos assim, é relacionado pela criança à como toda representação, baseia-se em uma construção mental que cria
tarefa de anotar palavras. Neste momento, trata-se apenas de um esboço suas próprias regras.
de apreensão da função representativa. Esta só será apreendida, de fato, "Escrever não é transformar o que se ouve em formas gráficas, as­
um pouco mais tarde. sim como ler não equivale a produzir com a boca o que o olho reconhe­
Os ziguezagues traçados por Olívia, em linhas mais ou menos ce visualmente", destaca Emilia Ferreiro ( l 985: 55). O sistema de escri­
retas, constituem a forma de grafismo utilizada pela maioria das ta tem uma estrutura lógica, e compreendê-la não é uma tarefa simples.
crianças de sua idade quando se pede a elas que escrevam. Esse dado Há várias relações e detalhes que a criança precisa apreender.
foi observado e analisado nos estudos de Luria e Emilia Ferreiro, No caso do sistema alfabético, por exemplo, a criança deve com­
como um indicador da apreensão de algumas das características for­ preender, entre outras coisas, que existe uma relação entre a letra escrita
mais da escrita pela criança. Observando os adultos quando escre­ (grafema) e o som pronunciado (fonema); que não há nenhuma relação
vem, a criança percebe que a escrita apresenta configurações (tais entre a forma da palavra escrita e as características físicas do elemento
como o formato, a distribuição no papel, etc.) que a distingue de ou­ da realidade nomeado por ela; que palavras com o mesmo significado
tras formas de representação gráfica. Ela imita, então, o formato ex­ não são escritas da mesma forma; que elementos essenciais da orali­ 1 77
terno da escrita do adulto. dade, como a entonação, não são registrados na escrita, etc.
Esse conjunto de relações não é simplesmente aprendido pela Em seguida, preocupa-se com a disposição das letras conhecidas
criança, mas construído ("reinventado") por ela. ou com o número de letras utilizadas, tentando marcar diferenças entre
Nas relações que mantém com a escrita no ambiente em que vive, a as palavras que deseja (ou é solicitada a) registrar.

A te q
criança elabora e testa hipóteses acerca da lógica de seu funcionamento.
Ela assimila a escrita interpretando-a de acordo com os conhecimentos
e modos de pensar que já desenvolveu e organizou no decorrer de sua

f �! e;
E
experiência de vida, produzindo "escritas" e "leituras" não compatíveis
com a escrita convencional.
Tal qual Olívia no episódio relatado anteriormente, ela começa di­
ferenciando a escrita do desenho.

a �e J
g\ � �e
l �e �e
é\\e �Fonte: Reflexões sobre a/fabetiwçlio - Emilin Ferreiro. Cortez, p. 23.

Conforme desenvolve a capacidade de prestar atenção às caracte­


rísticas sonoras da palavra falada, a criança começa a estabelecer rela­
ções entre as partes da palavra escrita e a quantidade de partes que reco­
A criança pode utilizar letras convencionais cujo traçado conhece, nhece na palavra falada. Ela passa, então, a representar cada sílaba com
para representar a escrita, sem estabelecer nenhuma diferenciação entre uma letra. ,
as palavras, como na ilustração a seguir.
A

A
s E X YS
E E
.

A 5 SI �

s E- A
E
A
A s
1 79
Fonte: Reflexões sobre alfabetização - Emilia Ferreiro. Cortez, p. 22. Fonte: Reflexões sobre alfabetização - Emilia Ferreiro. Cortez, p. 26.
As informações fornecidas por adul­ A escrita nos confere o título de cidadãos. É por meio do registro
tos leitores (inclusive a professora na es­ legal, nosso primeiro documento, que somos inscritos no rol de habitan­
cola) a respeito de especificidades da es­ tes do país, temos nossa nacionalidade definida.
crita não são mecanicamente acrescenta­ A escrita nos faz ser classificados como alfabetizados ou analfabe­
das às elaborações da criança. tos, e arcar com as vantagens e desvantagens de pertencer a um ou a
Ela vai passando de uma forma de outro desses grupos.

e � ífl}o
escrita para outra, à medida que vai se Como sistema de signos (conjunto organizado de marcas externas que
dando conta, por si mesma, das contra­ nos pennitem representar ou expressar objetos, eventos e situações da reali­
dições entre sua interpretação da escrita dade), a escrita age sobre nossos processos psicológicos, transformando-os.
e a escrita convencional. Nesse proces­ Sua utilização, por exemplo, transforma nossa memória. Ao fazer­
so, ela reelabora gradativamente suas mos uma lista de compras por escrito, ao anotarmos um endereço ou os
hipóteses, por meio de acomodações su­ ingredientes e o modo de preparo de uma receita, não só liberamos
cessivas, até chegar à lógica da escrita nossos neurônios da necessidade de reter mecanicamente algumas in­
alfabética. formações, como também aumentamos enormemente a quantidade de
informações que podemos armazenar. A escrita nos permite esquecer
Fonle: Reflexões sobre alfabetização
informações que, tendo sido registradas, podem ser recuperadas.
Ela também transforma nossa atenção, nossos modos de buscar in­
-

Emília Ferreiro. Cortcz, p. 29.


formações. Pense, por exemplo, nos usos de placas informativas.
O conjunto dessas formas de escrita que nos parecem "erradas" do Por não ser nem natural (ela é produção cultural) nem arbitrária
ponto de vista convencional são, segundo Emilia Ferreiro, "erros cons­ (escrever não é marcar quaisquer traços sobre qualquer superfície), a
trutivos": é passando por essas hipóteses que a criança vai construindo elaboração da escrita não começa dentro de cada um de nós. Apro­
(reinventando) a lógica do sistema alfabético. Nesse sentido, os erros priamo-nos dos conhecimentos das gerações que nos precederam para
revelam o raciocínio da criança sobre o que é escrever e as etapas pelas construirmos o nosso conhecimento. Nesse sentido, a elaboração da es­
quais ela vai passando no processo de construção da escrita. crita pela criança tem início nas suas relações sociais (cotidianas e
Nos estudos realizados por Emília Ferreiro e seus colaboradores escolarizadas), contando sempre com a participação do outro.
com crianças de diversos meios sociais em diferentes países (Argentina, Nas sociedades letradas, como a nossa, a escrita vai sendo gra-
México, Espanha, Brasil), as formas de escrita mostradas nas ilustra­ dativamente apontada e destacada para a criança pelos adultos leitores.
ções acima apareceram de modo sistemático, regular e na mesma pro­
gressão. O que diferia de uma criança para outra era o tempo de duração Aline, de 3 anos, pega um pedaço de papel e pede à avó:
de cada etapa e o tempo de passagem de uma etapa para outra. As regu­ - Vó, faz Aline...
laridades observadas comprovavam, segundo ela, que o desenvolvi­ A avó escreve no papel: AUNE.
mento da escrita envolve uma série de concepções e de relações cuja A criança não aceita e volta a pedir.
elaboração não pode ser atribuída à influência do meio, nem à aprendi­ - Faz Aline, vovó.
zagem, mas, sim, ao desenvolvimento cognitivo da criança. A avó, na tentativa de entender e atender ao pedido da neta,
Isso acontece, explica Emília Ferreiro, porque a criança "é um su­ desenha uma menininha, e Aline mostra-se satisfeita.
jeito que pensa. Um sujeito que assimila para compreender, que deve Alguns dias depois, a criançafazde novo o mesmo pedido à avó.
criar a fim de assimilar, que transforma o que vai conhecendo, que A avó pega lápis e papel e desenha a menininha.
A criança retruca:
constrói seu próprio conhecimento para apropriar-se do conhecimento
- Assim não, vovó. A outra...
dos outros" ( 1 987: 1 03 ; o destaque é nosso).
E, pegando o lápis, faz risquinhos no papel, enquanto diz:
- Assim, Aline, Aline pequenininha.
E, enquanto traça rabiscos maiores, vai dizendo:
A criança integra-se às práticas sociais de escrita - Aline grande...
(Episódio relalado po r uma professora durante curso ministrado
Já para Vygotsky e Luria, a escrita é mais do que um sistema de for­ pelas autoras.)
mas lingüísticas organizado segundo uma lógica com a qual o sujeito se
1 80
confronta, esforçando-se por compreendê-lo. Ela é uma forma de lingua­ É na interação com a avó que Aline, ao tomar contato simultanea­
gem, uma prática social própria de membros de uma sociedade letrada. 1 81
mente com duas formas de simbolização - o desenho e a escrita -,
descobre a possibilidade de usar marcas para representar. A avó, ao es­ Elas brincam de escrever, como Rafael, que aos 3 anos e meio en­
crever o nome da menina no papel, não determina os significados do trega para a mãe um papel cheio de letras traçadas por ele, dizendo:
desenho e da escrita, mas desencadeia essa elaboração em Aline.
As crianças mais velhas também participam da progressiva inte­
gração da criança à comunicação escrita. Elas compartilham com as
mais novas suas relações com a escrita, lendo, desenhando e escreven­
do para elas, ensinando-lhes os nomes das letras e a escreverem o pró­
prio nome, brincando de escolinha, etc.
A elaboração ativa dos conteú­
dos e formas de organização da es­
crita depende, fundamentalmente,
das possibilidades que as crianças
têm (ou não) de utilizar e comparti­
lhar a escrita em suas interações.
Num país como o nosso, a
grande maioria das crianças tem
contato incidental com a escrita, por
meio de rótulos de produtos, de pla­
cas e propagandas na rua, quando
vai aos supermercados, vendo TV...
Elas convivem com a escrita.
Nas grandes cidades, com o au­
mento de freqüência à pré-escola, a utilização de papéis, lápis, tintas e o
São muitos os
estímulos que as
contato com a escrita têm se intensificado e sido submetidos a um modo
crianças recebem
de organização mais sistemático.
para desenvolver Essas crianças, assim, além de conviver com a escrita, a utilizam e or­
a leitura. ganizam algumas de suas convenções no espaço das relações escolares.
Apenas um número reduzido de crianças brasileiras tem, na vida - Toma, mãe. Isso é uma carta pra você.
em família, como Aline, oportunidade de conviver com leitores, papel, - Ah! Que bom, Rafa! Lê a carta pra mim!
lápis, livros de história, jornais, revistas. - Não! Você é que lê! Eu escrevi a carta pra você!
Em algumas dessas famílias, os pais (Episódio envolvendo uma das autoras e seu filho.)
lêem histórias para as crianças, escrevem
palavras com elas e para elas. Nesse Nesse episódio, a criança, que aprendeu a traçar algumas das le­
caso, essas crianças vão além da situação tras do seu nome com o irmão e os primos, utiliza esse conhecimento
de convivência com a escrita, passando a para produzir alguma coisa "para ser lida", ou seja, algo que reúne
utilizá-la. Assim, mesmo sem dominar determinadas características daquilo que seus parceiros sociais mais
autônoma e convencionalmente a escrita, experientes tomam como objeto de leitura. Ela produz (essa é a inten­
elas começam a elaborar e a compreen­ ção revelada por ela diante do produto pronto) uma carta, produto
der, desde muito muito cedo, seus princí­ cultural típico de uma sociedade letrada. A elaboração da função social
pios de organização e sua natureza. da escrita, mais do que de sua lógica interna, é o que se destaca nessa
Nas relações que mantêm com a es­ atitude da criança.
crita, as crianças apropriam-se de técni­ Pela mediação do outro é que a lógica da escrita começa também a
cas para sua utilização e de algumas de ser elaborada. As crianças pedem a adultos (ou a crianças mais velhas)
A descoberta da leitura: momellfo de pra;.e1:
suas convenções básicas - o nome de que escrevam ou leiam para elas. Tentam escrever e ler, imitando o que
algumas letras, o modo de traçá-las, a observam e fazendo suposições a respeito das características e das re­
direcionalidade, etc. E apreendem também suas funções sociais - para gras de funcionamento da escrita, e procuram verificar, entre aqueles
que, para quem, por que, e onde, e como se escreve. que são leitores, a adequação de suas suposições.
As crianças do pré exploram as letras de plástico, tentando
compor palavras. Uma das meninas, após justapor uma série de
consoantes, chama a professora e pede a ela que leia o que es­ Sugestão de atividades
creveu.
Ruth, a professora, vai emitindo sons correspondentes às le­
tras justapostas. Organizando as informações do texto
A criança desmancha a combinação de letras e volta a fazer
uma nova justaposição de consoantes. Novamente ela pede à pro­ Reproduza e preencha o quadro abaixo, sintetizando as concepções
fessora que leia o que escreveu e a professora repete o tipo de lei­ de desenvolvimento e aprendizagem da escrita adotadas pela psi­
tura que fez antes. cogênese (Emilia Ferreiro) e pela abordagem histórico-cultural (Vy­
A criança então pergunta: gotsky e Luria).
- Ruth, por que será que eu só consigo escrever em inglês?
(Depoimento da professora Ruth Joíily Dias, professora da EMEI Abordagem
Meia Lua, do município de Paulínia, SP, a quem agradecemos a Psicogênese
histórico-cultural
autorização para a utilização desse episódio.)

Concepção de escrita
Enquanto para Emília Ferreiro o papel do adulto (inclusive o pro­
fessor) deve ser o de possibilitar o desenvolvimento da escrita, criando A relação da criança
condições estimuladoras e conflitos cognitivos (situações em que a crian­ com a escrita
ça percebe contradições entre suas hipóteses e os princípios da escrita
convencional) para que ela descubra por si mesma as chaves secretas O papel do adulto
do sistema alfabético (1985: 60), Vygotsky considera fundamental a e do meio

participação do outro no processo em que a escrita vai se tomando


parte da criança, destacando e diferenciando o papel do professor.
Vygotsky considera que o ingresso na escola representa para as Refletindo sobre as informações do texto
crianças um novo tipo de relação com a escrita, que, além de ser inten­
sificada, passa a ser sistematizada. No texto apresentamos as seguintes afirmações:
Nessa instituição, todas as crianças são colocadas diante da tarefa "A criança constrói seu próprio conhecimento para apropriar-se do
de interpretar convencionalmente a escrita. O papel do professor é dife­ conhecimento do outros" (E. Ferreiro).
rente daquele desempenhado pelos adultos que com elas convivem dia­ "Nós nos apropriamos dos conhecimentos das gerações que nos
riamente. Na família, o adulto intervém ocasionalmente e, em geral, precederam, para construirmos o nosso próprio conhecimento"
quando solicitado. Na escola, a ação do alfabetizador é intencional e (Vygotsky).
explícita: ele proporciona à criança um contato sistemático com a escri­ Explique e compare a duas afirmações, buscando no texto os argu­
ta padronizada, que, entrecruzando-se com suas elaborações iniciais, mentos que as sustentam.
acaba por substituí-las.
Também diferentemente de Emilia Ferreiro, Vygotsky não conside­ Exercitando a análise
ra que as relações da criança com a escrita sejam estritamente cog­
nitivas. A escrita não é apenas objeto de conhecimento. Ela constitui o A partir das leituras e discussões sugeridas até aqui, analise a si­
conhecimento, sendo uma forma cultural de ação no mundo. tuação seguinte:
A palavra materializada sobre o papel não é um fim em si mesma.
Ela cria relações entre os indivíduos: "A criança aprende a ouvir, a en­ No ônibus havia um anúncio de chapéu, com um chapéu mas­
tender o outro pela leitura; aprende a falar, a dizer o que quer pela escri­ culino desenhado em destaque. Abaixo, a marca do chapéu,
ta. Mas esse aprender significa fazer, usar, praticar, conhecer. Enquanto PRADA, escrita em maiúsculas e o endereço da firma. O avô,
escreve, a criança aprende a escrever e aprende sobre a escrita" encontrando um amigo, diz-lhe entusiasmado que estava justa­
(Smolka, 1 988: 63 ). mente ensinando seu neto a ler e que ele aprendia com grande
facilidade. Apontando para o anúncio, objeto de treino desde o
1 84 início da viagem, o avô pede ao garotinho que leia o mesmo. O
garoto prontamente: 1 85
- PE - ERRE A - DE - A.
-
Peça à criança o material produzido. Se ela não quiser dá-lo, respei­
- Muito bem, diz o avô, e o que está escrito ? te sua decisão.
- PE - ERRE - A - DE A
. . Se você dispuser de câmara de vídeo ou de gravador, poderá
-
.

- Sim, muito bem. E isso é o quê? Leia lá. utilizá-los na coleta dos dados. Mas não se esqueça de que o material
- Chapéu. gravado também deve ser transcrito.
(Episódio registrado por Nunes. T. no texto 'Leitura e escrita: pro­
cessos e desenvolvimento'. ln: Alencar. E. (org.). Novas colltribui·
Organizando os dados analisados
ções da psicologia aos processos de ensino e aprendiwgem. São
Paulo: Cortez. 1992.)
• Cada grupo deve apresentar e confrontar os dados observados, le­
Tràbalho de campo vantar os pontos em comum nos relatos e organizar uma síntese
das observações feitas, para apresentar ao outro grupo. Convém
Vamos observar crianças de 2 a 7 anos, que ainda não estejam sen­ registrar tan1bém curiosidades, perguntas e dúvidas suscitadas pe­
do alfabetizadas, e descrever o modo como se relacionam cotidiana­ la observação.
mente com a escrita. Para isso, vamos nos dividir em dois grupos. • Reunidos os dois grupos, vamos comentar e comparar os resulta­
• Cada um dos alunos do primeiro grupo deverá observar uma crian­ dos das observações e das análises de cada um, buscando identifi­
ça e descrever suas eventuais tentativas de uso do registro escrito, car os pontos comuns e não comuns entre os dados coletados.
para que ela o utiliza, e como ela se relaciona com a escrita presen­ • As indagações que ficaram sem resposta devem ser afixadas na
te no seu espaço doméstico. sala, e os registros escritos deverão ser arquivados para utilização
• Cada um dos alunos do segundo grupo deverá qbservar uma crian­ nos próximos trabalhos.
ça não alfabetizada e descrever a relação que ela mantém com o
material escrito existente na pré-escola e a utilização que ela faz de Leitura e discussão
registros gráficos nesse contexto (para que e como).
Vamos ler o texto de Maria Lucia Castanheira, Da escrita no coti­
Para um melhor aproveitamento desse trabalho de campo, sugeri­ diano à escrita escolar, publicado na revista Leitura: Teoria e Prática,
mos que cada criança seja observada mais de uma vez e que sejam ob­ n? 20, de dezembro de 1992 (Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, p.
servadas crianças de idades diferentes, dentro da faixa de idade in­ 34-45).
dicada. Após a leitura individual, cada aluno deverá fazer um breve co­
O seguinte roteiro poderá ser útil à observação e ao registro: mentário escrito sobre o texto. Nesse comentário deverá destacar três
pontos que considerou relevantes para sua reflexão sobre o modo como
• Registre a idade da criança, o dia, o local, a hora e quanto tempo a criança se relaciona com a escrita, comentar cada um deles e justificar
durou a observação. a escolha feita.
• Descreva a situação em que você observou a criança (onde ela
estava, o que fazia, quem a acompanhava, etc.).
• Que tipo de material escrito chama a atenção da criança ou está Sugestão de leituras
sendo explorado por ela? O que ela faz e o que diz em relação ao
material escrito? Que finalidade atribui a ele? FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez, 1993.
SMOLKA, A. L. B. A linguagem como gesto, como jogo, como palavra.
• Com quem ela compartilha sua exploração ou comentários? Como
Leitura: Teoria e Prática, Porto Alegre, Mercado Aberto, n? 5.
o faz? Como o outro participa dessa situação? O que diz? O que
faz? Filme recomendado
• Se a criança estiver numa situação de produção de escrita, descre­
va também o que ela está fazendo. Que material está utilizando • A glória de meu pai, direção de Yves Robert, 1990.
para isso? Que tipo de marcas produz? Em que condições as pro­
duz? Que significado ou função atribui a elas (está escrevendo o
que, para que, para quem) Como e com quem compartilha a ativi­
1 86 dade? Como o outro participa da atividade? O que faz, o que diz? " J 87 .. .
também os fatores envolvidos na passagem de uma hipótese para ou­
tra. Em seus estudos, privilegiaram produções espontâneas, isto é,
Capítulo 16 aquelas em que a criança escreve tal como acredita que poderia ou
deveria escrever certo conjunto de palavras, sem a ajuda ou a orienta­
ção de outra pessoa.
Vygotsky e Luria, por sua vez, procuraram demonstrar a relação
entre a escrita e as atividades simbólicas no desenvolvimento da criança
e recriar experimentalmente o processo de simbolização na escrita, em ··

situações compartilhadas entre o experimentador e a criança.


O estudo experimental Neste e no próximo capítulo, abordaremos de maneira mais deta­
lhada os procedimentos de pesquisa adotados por Emilia Ferreiro e
Vygotsky.
da construção da escrita
pela criança A metodologia da pesquisa

Para estudar a construção da escrita pela criança, Emilia Ferreiro


utilizou o método clínico ou de exploração crítica desenvolvido por
Como vimos no capítulo anterior, os estudos de Emilia Ferreiro e Piaget (do qual tratamos nos capítulos iniciais deste livro). Foram sub­
de Vygotsky analisam de maneira diferente a relação das crianças com a metidas à pesquisa crianças de distintas classes sociais, de 4 a 6 anos,
escrita. .
Enquanto Emilia Ferreiro e seus colaboradores consid�r�m a e�cn­ que ainda não conheciam os princípios da escrita convencional.
ta um objeto de conhecimento (isto é, como um alvo da atlVldad� mte­
lectual) que vai sendo construído de modo evolutivo pela criança, Nesses experimentos, interessava:
Vygotsky a concebe como um produto cultural, uma P':�tica social à
_

qual a criança vai se integrando, nas suas relaçoes sociais. .


Em suas análises Emilia Ferreiro procura demonstrar o papel atzvo
do sujeito no processo de elaboração individual da escrita. A criança,
em suas relações com a escrita, vai, ativa e espontaneamente, elaboran­
do e testando hipóteses a respeito de como se escrevem as palavras.
Sendo essas hipóteses de natureza cognitiva, elas dependem do desen­ Foram propostas às crianças duas situações de leitura.
volvimento da inteligência da criança. As discrepâncias que a criança Numa delas, o experimentador oferecia às crianças um conjunto de
percebe entre suas hipóteses e a escrita convencional le,v �-a a reelab_orar cartões contendo números isolados, conjuntos de números, conjunto
hipóteses e, pouco a pouco, apreender a natureza e a log1ca desse siste­ de números e de letras, letras isoladas, conjuntos de várias letras iguais,
ma simbólico. conjuntos formados por letras diferentes, palavras escritas em letra
Para Vygotsky, o processo é inverso. A criança ap�opria-se . gra­ cursiva, script ou letra de imprensa. Ele pedia que separassem os car­
dativamente do sistema de escrita e de suas funções sociais por me10 da tões em dois grupos - o dos que podiam e o dos que não podiam ser
observação da escrita em funcionamento, das . tentativa� de utilizá-la lidos - e explicassem, depois da separação feita, os critérios de seleção
que faz, pela imitação do outro, e da busca de mformaçoes sobre seus utilizados.
elementos e sobre seu funcionamento. O processo, destaca ele, aconte- Na outra situação de leitura, o experimentador apresentava pran­
ce entre sujeitos e em cada sujeito. . . . chas com figuras acompanhadas de texto e pedia às crianças que les­
Essas diferenças aparecem nas maneiras como Em1ha Ferreiro e sem o que estava escrito e explicassem como tinham chegado àquela
Vygotsky conduziram seus estudos experimentais. . leitura.
Emília Ferreiro e seus colaboradores procuraram caractenzar e Quanto às situações de escrita, o experimentador solicitava às crian-
descrever tanto a seqüência das hipóteses elaboradas pelas c�ianças a ças que escrevessem palavras e frases ditadas por ele e, em seguida, les-
1 88 respeito da natureza e dos princípios organizadores da escnta como sem sua produção, apontando a que marcas correspondia a leitura feita. ��\�f,����;;f��iJ
Alguns critérios foram adotados para a seleção das palavras e
frases ditadas: elas deveriam fazer parte do repertório de palavras ( a) �
normalmente conhecidas pelas crianças, apresentar uma relação se­
mântica entre si (isto é, fazer parte de um mesmo tema, como alimen­ ....,

t
tos, animais, brinquedos, etc.) e não constar de manuais de alfabetiza­
ção (para evitar a reprodução de palavras memorizadas).
Assim, eram ditadas às crianças seqüências como: gato, borboleta,
cavalo, peixe, o gato bebe leite; lápis, lousa, giz, apontador, a professora
pega seu lápis, etc. j
Por -meio desses experimentos, Emilia Ferreiro e seus colaborado­
- O que você desenhou? - Ponha o nome. - Por que tem quatro pedacinhos?
res identificaram três grandes etapas no processo de construção da es­ - Um boneco. (Rabisco.) (b) - .... porque sim.
crita pelas crianças, ordenadas nesta seqüência: - Ponha o nome. - O que você pôs? - O que diz aqui? ( I?).
(Rabisco.) (a) - Ca5inha. - Adriana.
- O que você pôs? - Você sabe colocar o seu nome? - E aqui? (2?).
- Ale (= seu innão). (Quatro rabiscos separados.) (c) - Alberto (= seu pai).
• distinção entre o desenho (modo de representação icônico) e a escrita - Desenhe uma casinha. - O que é isso? - E aqui? (3?).
(Desenha.) - Adriana. - Ale (= seu innão).
(representação não icônica); - O que é isso? - Onde diz Adriana? - E aqui? (4?).
- Uma casinha. (Assinala globalmente.) - Tia Picha.
• diferenciação quantitativa e qualitativa dentro da escrita produzida
(intrafigural) e entre as escritas produzidas (interfigurais); Fonte: Reflexões sobre a/fabetiwção - Emilia Ferreiro. Cortez. p. 2 1 .

• afonetização da escrita (caracterizada pela atenção às relações exis­


Nas situações de leitura, as crianças interpretam um desenho que
tentes entre o contexto sonoro da linguagem e o contexto gráfico do
lhes é apresentado, mas afirmam que ele não pode ser lido. Para que se
registro).
possa ler, · elas dizem ser necessário haver outros tipos de marcas, que
definem genericamente como letras ou números. Isso acontece porque,
Vamos entender essas etapas. de imediato, elas não vêem as letras e os números como objetos substi­
tutos, isto é, como objetos que representam outros objetos. As letras e os
números são, para elas, objetos do mundo externo que se definem por
oposição ao desenho e, como qualquer objeto, têm um nome: letras,
As fases do processo de construção da escrita pela números. Assim, ao apontarmos um texto, perguntando o que está escri­
criança to ou dito ali, é comum que muitas crianças respondam "letras", no­
meando aquilo que para elas é um objeto em si.
Posteriormente, as letras passam a dizer algo diferente delas mes­
A construção das primeiras formas de diferenciação: mas. Elas passam a representar o nome das coisas.
o período pré-silábico Assim, colocando bolinhas e tracinhos junto ao desenho de um
leão, uma criança de 4 anos diz ter escrito algo. Quando o pesquisador
A distinção básica entre desenhar (modo de representação ligado pergunta se aquela escrita pode ser lida, ela diz que sim e faz a seguinte
leitura: "diz o nome desse leão" (Ferreiro, 1986: 1 1 3). O nome, analisa
às características físicas e às formas dos objetos) e escrever vai sendo Emilia Ferreiro, é o escrito, e não a interpretação do escrito; portanto, o
construída pela criança, tanto nas situações de escrita quanto nas situa­ que está escrito pode ser diferente do que é lido. Isso se evidencia nas
ções de leitura. situações de leitura, nas quais a criança interpreta o texto escrito como
Para escrever o que lhe é pedido, a criança utiliza marcas dife­ se fosse o nome da figura desenhada.
rentes das que produz ao desenhar. Ela traça linhas onduladas ou em Nessa fase a escrita constitui um sistema independente, mas rela­
ziguezague, linhas interrompidas, bolinhas ou mesmo letras conven­ cionado ao desenho. Embora as crianças distingam texto de desenho,
cionais, horizontal ou verticalmente. Essas marcas não têm relação elas consideram que não se pode ler um texto sem imagens, porque,
com o registro sonoro da palavra e não se diferenciam entre si. So­ nesse caso, faltam elementos para poder interpretar as letras, e, ao es­
mente a própria criança consegue interpretá-las e o faz de modo ins­ crever, procuram associar escrita e desenho.
tável. Como a escrita é o nome de algo ou de alguém, a criança procura
-}9()
A situação a seguir, relatada por Emília Ferreiro, é característica
dessa fase.
registrar, nas marcas que traça sobre o papel, propriedades que os porta-
dores desses nomes têm. ��;iJ,\:,�ii4������-,:,
Uma criança de 4 anos registrou do seguinte modo as palavras ele­ A fonetização da escrita: do período silábico ao
fantee passarinho. período alfabético

passarinho: A partir do momento em que as crianças começam a prestar aten­


ção às propriedades sonoras da palavra, um novo tipo de hipótese co­
meça a ser construído. Elas passam a estabelecer correspondência entre
elefante:
� f!j partes da palavra falada e partes da palavra escrita.
A hipótese silábica é a primeira das hipóteses que a criança cons­
trói sobre como se dá a relação entre a escrita e os sons da linguagem
Fonte: O co11str1t1ivismo: de Piaget a Ferreiro - Maria da Graça
Azenha. Ática, p. 64.
falada. De acordo com ela, cada marca ou letra corresponde ao registro
de uma sílaba oral.
Ao escrever elefante, ela disse para a experimentadora: "tem que A criança escreve fazendo corresponder a quantidade de sinais grá­
ser bem grande" (Azenha, 1994: 64-5). ficos com a quantidade de sílabas da palavra falada. Os exemplos a
Uma vez feita a distinção básica entre desenho e escrita, as crianças seguir ilustram essa fase da construção da escrita.
começam a interpretar as propriedades formais da escrita. Comparando
as letras que compõem as palavras, elas estabelecem primeiramente cri­ V A D E por ma-ri-nhei-ro O F T por gi-gan-te
térios de diferenciação da escrita com base na quantidade mínima e na U R por ga-to T Z por bur-ro
variedade interna de caracteres. X N Z por ja-ca-ré
Não basta que haja "letras" para que algo possa ser lido ou escrito.
É preciso uma quantidade mínima de caracteres (em geral por volta de
(faemplos extraídos de Azenha: 1 994.)

três a quatro) e que não se repitam sempre os mesmos caracteres. Quando as letras começam a adquirir valores sonoros estáveis, a
Nos experimentos, cartões com um ou dois caracteres, como A, AS, criança passa a registrar com as mesmas letras as partes sonoras seme­
SO, eram classificados pelas crianças como não legíveis porque "são
lhantes das palavras, produzindo escritas como:
muito curtinhos", "tem uma palavra só, não dá para ler", "onde há
pouquinhas não é para ler, aqui tem pouquinhas letras, tem duas". Também G O por ga-lo ABKE por a-ba-ca-te
os cartões com MMMMM, AAAAA eram considerados ilegíveis porque
"tem tudo a mesma coisa", "diz o tempo todo a" (Ferreiro, 1985: 41-4). G O por ga-to ABKI por a-ba-ca-xi
RAL por Ra-fa-el IOA por pi-po-ca
Na escrita, as crianças utilizavam também sempre mais de dois
caracteres e combinados de modos diversos. (Exemplos extraídos de Azenha: 1994.)

Nessas escritas há correspondências quantitativas e qualitativas:


cada letra é usada de acordo com seu valor sonoro convencional e
corresponde a uma sílaba da palavra falada.
No entanto, a hipótese silábica cria, segundo Emília Ferreiro, suas
próprias condições de contradição. As palavras monossílabas, por
exemplo, que deveriam ser escritas com uma só letra, entram em con­
tradição com a hipótese da quantidade mínima de caracteres, e as pala­
vras escritas pelos adultos têm sempre mais letras do que aquelas pro­
duzidas pelas crianças. Essas contradições vão desestabilizando a hipó­
tese silábica. A criança precisa buscar um novo caminho. Ela começa a
agregar mais letras à escrita silábica, tentando aproximá-la da escrita
dos adultos. Produz, então, escritas como:
MAIONZ por maionese MAIZEA por maizena
BNCA por boneca
Fonte: Reflexões sobre alfabetiz.ação - Emilia Ferreiro. Cortez, p. 23. (Exemplos extraídos de Azenha: 1994.)
Nessa etapa da construção da escrita, a criança usa simultaneamen­
te a hipótese silábica e o princípio alfabético, configurando a hipótese ·
silábico-alfabética. Por exemplo, na escrita da frase Sugestão de atividades
A Coca coa e oesa por A Coca-Cola é gostosa
ou na seqüência de palavras seguinte, escrita pela mesma criança,
Organizando as informações do texto
ELFf por elefante
GAQE por jacaré Faça um quadro-resumo apresentando as fases da construção da
ESA por onça escrita pela criança e as características de cada uma delas, segundo
MAKO -por macaco Emilia Ferreiro.
LEAO por leão
RA por rã Refletindo sobre o texto
OELFfED por O elefante é gordo
(Exemplos extraídos de Azenha: 1 994.)
Retome as questões suscitadas pelo trabalho de campo desenvolvi­
do no capítulo anterior. Quais dessas questões o estudo feito por Emilia
podemos observar como algumas palavras são escritas de acordo com a Ferreiro ajuda a explicar?
hipótese silábica e outras de acordo com a hipótese silábico-alfabética.
Nesse processo, no qual a criança vai apurando a relação entre o Exercitando a análise
registro escrito e o registro sonoro das palavras, ela descobre que a síla­
ba não pode ser considerada uma unidade, uma vez que se compõe de Retome as amostras de escrita obtidas no trabalho de campo. Como
elementos menores. A partir daí, ela começa a construir o princípio alfa­ você analisa essas produções?
bético, último passo para a compreensão do sistema de escrita social­ Em pequenos grupos, discutam as tentativas de análise, procuran­
mente estabelecido. do comparar as amostras de escrita e destacando as regularidades que
A criança começa a se dar conta de que a escrita deve fazer o regis­ percebem entre elas.
tro de fonemas da língua oral. Ela passa, então, a perceber a correspon­ Reúnam as produções que não foi possível analisar ou que não se
dência entre a letra escrita (grafema) e o som pronunciado (fonema). enquadram na progressão estabelecida por Emilia Ferreiro.
Essa é a hipótese alfabética. Suas escritas têm nessa fase configurações Façam um resumo da discussão realizada pelo grupo que mencione
como as apresentadas a seguir: as regularidades observadas nas amostras de escrita. Problematizem
(transformem em questão) o que não foi possível enquadrar nas hipóte­
DINOSAURU TATUSSINHO FAMILIA CÃU SEREJA ses de Emilia Ferreiro.
(Exemplos extraídos de Azenha: 1 994.)

Sugestão de leituras
Nessa etapa, a criança escreve com legibilidade, mas, ao confrontar
o que escreve com a escrita convencional, ela começa a perceber que a
identidade de sons não garante a identidade de letras e que a identidade AZENHA, M. da G. Construtivismo: de Piaget a Emilia Ferreiro. São
de letras também não garante a identidade de sons. Ou seja, ela percebe Paulo: Ática, 1994.
FERREIRO, E., TEBEROSKY, A Psicogênese da língua escrita. Porto Ale­
que o bo de boneca (bô) não é o mesmo bo de bode (bó), que o a de
arara (á) não é o mesmo a de banana (ã). O r de rato é diferente do r de gre: Artes Médicas, 1985.
arara e do r de torrada. O som de eh pode ser representado diferente­ WEISZ, T. Por trás das letras. São Paulo: FDE, 1992. (Um vídeo
mente, como em chapéu ou baixo, da mesma forma que a letra x soa complementa o material escrito.)
diferentemente em lixo, tá.xi e exame. ____ . Como se aprende a ler e a escrever ou prontidão, um proble­
Nesse emaranhado de possibilidades, a criança se dá conta de que ma mal colocado. Revendo a proposta de alfabetização. São Paulo:
uma letra "vale" por vários sons ou que um mesmo som pode ser repre­ SE/CENP, 1985. (Texto organizado e elaborado a partir da obra de
sentado por várias letras, entrando, assim, no campo dos critérios orto­ Emilia Ferreiro.)
gráficos da escrita, que, segundo Emilia Ferreiro, não são mais aspectos
construtivos do sistema alfabético. O conteúdo ortográfico da escrita,
afirma ela, depende das informações do meio e do ensino sistemático.
O gesto e o jogo são marcados na areia, na terra, no papel. Exploran­
do o movimento, a criança produz traçados. São seus primeiros rabiscos.
Os gestos da mão segurando lápis, giz, varetas, pincéis materializam a
Capítulo 1 7 possibilidade de registro do gesto comunicativo. Surge o desenho.
Inicialmente "os traços constituem somente um suplemento à re­
presentação gestual" (idem, p. 1 22). Aos poucos, nas interações, a
criança aperfeiçoa esse registro, e a representação pictórica e gráfica
começa a designar o mundo percebido e conhecido. Aos rabiscos, já
feitos no papel, ela dá um nome. Pouco a pouco, a nomeação passa a se
dar no início da atividade, e a criança nomeia o que vai desenhar. Pelo
Da atividade simbólica à desenho, como pela fala, ela conta uma história, comunica os aspectos
essenciais dos objetos. O desenho como linguagem gráfica é elaborado
simbolização na escrita com base na linguagem verbal.
Gesto, jogo e desenho, mediados pela fala, constituem momentos
diferentes de um processo unificado de desenvolvimento da linguagem
escrita. Os gestos, o jogo e o desenho representam, de acordo com
Enquanto Emilia Ferreiro documentou nos seus estudos experimen­ Vygotsky, a pré-história da escrita, pois contribuem para a elaboração
tais a progressão de noções localizando os modos como a criança racio­ do simbolismo na própria escrita.
cina sobre a escrita, apontando percepções e distinções que ela constrói Como a criança chega à compreensão de que a língua escrita é um
individualmente, até chegar aos princípios (regras) de organização e fun­ sistema de signos que não têm significado em si? Como apreendem e
cionamento da escrita convencional, Vygotsky e Luria procuraram mos­ elaboram a possibilidade de utilizar linhas, pontos, manchas feitas so­
trar "o que leva a criança a escrever" (Vygotsky, 1 984: 1 2 1 ). bre o papel como suporte para a memória e a transmissão de idéias?
Para explicar a gênese da escrita na criança, Vygotsky focaliza a A elaboração do simbolismo na escrita foi objeto de um estudo
escrita como uma atividade simbólica. experimental desenvolvido por Luria, que procurou compreender:
Tal como as demais atividades simbólicas (gesto, desenho, jogo,
etc.), a escrita envolve a representação de uma coisa por outra, a utiliza­ • C(J"f11<!_ as c:rjanfas s_e aprop�f" da escrita em suas relações S(}Ciais;
ção de signos auxiliares para representar significados. O domínio dessa ... ·•· • •.�o,,U, eWJio1JYn, denh:,o dap,.ôpJfa técnipa da escriJa, .os prinC(pws de
càPai�q�dÔ-�e
n•·· " :W���wt��·tm,,UJ:�tf�����:'i!º·
habilidade complexa não nasce por si mesmo, nem é alcançado de ma­
neira puramente mecânica e externa. Segundo Vygotsky, resulta de um �.
longo e unificado processo de desenvolvimento da atividade simbólica,
que começa com o uso do gesto como signo visual.
O gesto, movimento comunicativo das mãos, dos braços, das per­ O estudo experimental do simbolismo na escrita
nas, da cabeça, do rosto, do cõrpo todo, ganha sentido nas interações
com os outros. A criança aprende a dizer o que quer e a entender o outro O procedimento metodológico
pelo gesto. Os gestos, no dizer de Vygotsky, são escrita no ar.
Depois, o jogo simbólico. O imaginário, feito gesto, feito palavra, Segundo Luria, a simbolização na escrita consiste na transformação
transforma as coisas. No jogo simbólico, uma coisa vale por outra: a de rabiscos não diferenciados em signos diferenciados. Para reproduzir
cadeira vira leão, a folha de jornal enrolada vira a espada do menino, experimentalmente esse processo, ele colocou crianças de diferentes ida­
que vira herói... des que ainda não sabiam ler e escrever em uma situação na qual tinham a
A criança se movimenta, age, pensa, inventa criando e usando sím­ tarefa de elaborar algumas formas simples de notação gráfica.
bolos. Um significado tem vários significantes, várias significações: a Partindo da função instrumental da escrita, isto é, do seu funciona­
pedra pode virar elefante ou avião. Os objetos adquirem a função de signo mento como suporte para a memória e a transmissão de idéias e concei­
pelo gesto indicativo e pela nomeação. Gesto e palavra são interligados. tos, o experimentador solicitava à criança que memorizasse uma série
de frases ditadas por ele, como:
O brinquedo simbólico das crianças pode ser entendido como
um sistema muito complexo de "fala " através de gestos que comu­ 1. Há cinco lápis sobre a mesa. 2. Há dois pratos. 3. Há muitas
nicam e indicam os significados dos objetos usados para brincar. árvores na floresta. 4. Há uma coluna no pátio. 6. A bonequinha.
197
(Vygolsky, 1 984: 123.) (Luria, 1 988.)
Propositadamente, entre as frases não havia relações semânticas, e O ato de escrever, nessa situação, era apenas externamente asso­
seu número era muito maior do que a capacidade natural de memo­ ciado à tarefa de anotar uma palavra específica, segundo Luria. A crian­
rização das crianças. ça imitava o gesto comunicativo dos adultos, sendo o escrever um ato
Depois de ficar evidente para as crianças sua dificuldade em me­ suficiente em si mesmo, um brinquedo.
morizar as sentenças, o experimentador sugeria que escrevessem ou re­ O outro tipo de elaboração observado foi o registro em forma de
gistrassem de alguma maneira as frases numa folha de papel, como for­ marcas topográficas. Distribuindo seus rabiscos pelo papel, as crianças
ma de ajudar na sua memorização. conseguiam lembrar parte das frases ou as frases inteiras, que asso­
Assim, o experimentador oferecia às crianças uma estratégia (o uso ciavam à sua posição no papel.
d_e um signo auxiliar) e um modo de ação (a escrita) para a solução da lõ l Sl A l ll l r L lV I O
_
s1tuaçao-problema. Embora tivessem familiaridade com o aspecto ex­
terno da escrita, as crianças desconheciam sua estrutura interna e suas
técnicas de utilização.
A partir daí começava o experimento, interessando ao experi­
mentador apreender que formas de registro eram utilizadas pelas crian­
ças e em que momento elas deixavam de ser simples brincadeiras, pas­
sando a funcionar como símbolos auxiliares da memória.
Analisando as produções das crianças, Luria e Vygotsky caracte­
rizaram dois modos de elaboração da escrita: a pré-instrumental e a
instrumental.
(Exemplo exlraído d a·dissertação d e mestrado d e Maria da Graça
A elaboração pré-instrumental da escrita: dos rabiscos Azenha B. Sanlos O grafismo infamil -processos e perspectivas.
Faculdade de Educação, USP, 1991.)
mecânicos às marcas topográficas
Ao reproduzir as frases, segundo Luria, as crianças davam a im­
O primeiro tipo de elaboração eviden­ pressão de estar lendo. Olhavam para os rabiscos e podiam indicar re­
ciado na situação experimental criada por petidamente, sem errar, qual rabisco representava qual frase. Embora
Luria foi a imitação do formato da escrita essas marcas ainda não fossem signos, já eram mais do que simples
do adulto por meio de rabiscos mecânicos rabiscos imitativos. A relação da criança com elas era de outra natureza,
desprovidos de qualquer relação com os pois as marcas funcionavam como pistas auxiliares para recuperar a
conteúdos a serem representados. As cri­ informação. Em alguma medida, ajudavam na memorização e tinham
anças traçavam inúmeros rabiscos no pa­ certa relação com um significado, embora ainda não determinassem
pel antes mesmo de ouvirem a frase a ser qual fosse esse significado.
registrada e, diante da pergunta do ex­ Pelo fato de as marcas não serem diferenciadas, depois de algum
perimentador acerca do significado dos ra­ tempo seu significado era esquecido e elas voltavam à condição de ra­
biscos, explicavam: "É assim que você es­ biscos mecânicos.
creve", "Isso é escrever". Ainda assim, Luria considera as marcas topográficas como os pri­
meiros rudimentos da escrita, pois reorganizam o comportamento da
criança, ajudando na memorização e na percepção da relação entre si­
nais e significados.
(Exemplo extraído de 'O desenvolvimento da escrila na criança' .
l n : Vygotsky, Luria, Leontiev. Linguagem, desenvo/vimemo e A elaboração da função instrumental da escrita: o processo
aprendiz.agem, 1 988.)
de diferenciação das marcas utilizadas

Obviamente esse tipo de registro não ajudava a memorizar as Das marcas topográficas, as crianças passavam a preocupar-se em
frases, tanto que, ao tentar recordá-las, as crianças nem olhavam para produzir nos seus registros algo que refletisse as diferenças entre as 1 99 · ·
1 98 o papel. frases proferidas.
Inicialmente, tentavam fazer isso marcando o ritmo da frase. Em Num de seus relatos de observação, Luria descreve o registro feito
seus rabiscos, fixavam o efeito produzido pelo ritmo da fala, utilizando por V., de 5 anos.
marcas pequenas para registrar palavras isoladas e frases curtas e traça­
dos longos e complicados para indicar as frases longas. Pedimos a ele que anotasse as sentenças para que mais tarde
Este relato de Luria ilustra bem o efeito do ritmo da fala sobre a criança. pudesse recordar. Começou imediatamente a produzir rabiscos di­
zendo: "É assim que você escreve ". Obviamente, para ele, o ato de
Demos a L., quatro anos e oito meses de idade, um certo núme­ escrever era puramente uma imitação externa da escrita de um
ro de palavras: mamãe, gato, cachorro, boneca. Ela anotou todas adulto, sem qualquer conexão com o conteúdo da idéia particular,
com os mesmos rabiscos, que não diferiam uns dos outros. A situa­ uma vez que os rabiscos não diferiam um do outro de forma essen­
ção mudou consideravelmente, todavia, quando lhe demos também cial. Eis o registro:
longas sentenças junto com palavras individuais: 1) menina; 2) 1. O rato com um rabo comprido.
gato; 3) Z. está patinando; 4) Dois cachorros estão caçando o gato; O sujeito (escreve): É assim que você escreve.
5) Há muitos livros na sala e a lâmpada está queimada; 6) garrafa; 2. Há uma coluna alta.
7) bola; 8) O gato está dormindo; 9) Nós brincamos o dia inteiro, O sujeito (escreve): Coluna.. .
depois jantamos e, em seguida, voltamos a brincar outra vez. 3. Há chaminés no telhado.
O sujeito (escreve): Chaminés no telhado... É assim que você
escreve...
4. Uma fumaça muito preta está saindo da chaminé.
Sujeito: Preta. Assim! (Aponta para o lápis e, em seguida, co­
meça a desenhar rabiscos muito pretos calcando o lápis comforça.)
5. No inverno há neve muito branca.
Sujeito: (Faz seus rabiscos costumeiros; em seguida, separa­
os em duas partes, aparentemente sem relação com a idéia de
"neve branca ".)
6. Carvão muito preto.
Sujeito: (Novamente desenha linhas volumosas.)
�-
J.

(Relato extraído de ·o desenvolvimento da escrita na criança'. ln:


Vygotsky, Luria, Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e apren­
dizagem, 1988.)

Também nessa situação, conforme analisou Luria, as marcas re­


gistradas com base no ritmo da fala não apresentavam diferenças signi­
ficativas entre si, de forma que possibilitasse uma leitura estável. No en­ 4

tanto, revelavam uma mudança no processo de simbolização da escrita,


pois, ainda que superficialmente, a criança estabelecia uma relação entre 5
as frases apresentadas oralmente e as características do seu registro.
Outro critério de diferenciação das marcas utilizadas pelas crianças
(Extraído de 'O desenvolvimento da escrita na crian­
200 foi o conteúdo das frases. As crianças procuravam registrar quantidades, ça'. ln: Vygotsky, Luria, Lconticv. Li11gua.i:e111, de.H'll· 201
tamanho, forma, cor e outras características dos elementos referidos. l'Ofrimemo <' apn•mli-:.t1gem. 1988.)
A marcas produzidas eram ainda confusas, mas, pela primeira vez,
As marcas feitas pela criança adquiriam caráter expressivo apenas .
a cnança revelou-se capaz de "escrever" e de "ler" o que escreveu.
em dois casos, nos quais "a fumaça preta" e "o carvão preto" foram
Nesse momento, segundo Luria, tem-se uma escrita elementar
registrados por volumosas linhas pretas. '
uma vez que o registro feito apresenta uma
O efeito dessa forma distinta de registro evidenciou-se quando foi

IB·
função instrumental.
pedido à criança que identificasse as frases apresentadas para memo­
Tendo apreendido a necessidade de uti- 7.
rização. Luria conta que, inicialmente, a criança nada dizia, parecendo
Iizar marcas diferenciadas em seu registro

11 +1{·
ter-se esquecido de tudo. No entanto, ao examinar seus rabiscos, dete­
para poder relacioná-las com o conteúdo do S.
ve-se em um deles, dizendo espontaneamente: "Isso é carvão".
· material a ser memorizado, a criança elabo-
ra, então, um sistema de marcas expressivas,
Essa foi a primeira vez que tal leitura espontânea ocorreu nes­ por meio das quais forma todo seu processo
sa criança, e o fato de ela não só ter produzido algo diferenciado, de recordação.
como ter sido capaz de recordar o que represelltava, confirma ple­ Nas tentativas de registro de cor, forma, .J..


namente que havia dado o primeiro passo no sentido de usar a tamanho, quantidade, as crianças produziam
escrita como um meio de recordar-se. representações próximas da pictografia pri-
(Luria. 1988: 168.) mitiva (escrita através de desenhos). O dese- - �---�
______ �__.,.., .-/-._-
nho começa, então, a convergir para a escrita,
Outro exemplo citado por Luria mostra como um signo, pela dife­ não como desenho em si, mas como um ele­
renciação numérica, tem uma função expressiva: mento que representa conteúdos determina­
dos das frases faladas pelo experimentador. O 2._.dY
Quando pedimos a Brina que escrevesse "O homem tem duas desenho constitui, assim, um elemento auxi­
��
! \
pernas", ela imediatamente declarou: "Então desenharei duas li­ liar na produção de uma escrita diferenciada.
nhas ", e uma vez tendo descoberto esta técnica, continuou a usá­ 3.
la. E combinou esse expediente com uma grosseira representação
esquemática do objeto. "A garça tem uma perna " foi representada (Extraído da dissertação de mestrado de Maria
A criança quis escrever: 1. ônibus; 2. óculos; 3. meni­
da Graça Azenha B. Santos O grafismo infantil
com uma linha que encontrava outras em ângulo reto; "O -processos e perspeclivas. Faculdade de Edu­ no; 4. árvore; 5. escola; 6. rua; 7. classe.

cachorrão com quatro cachorrinhos " tornou-se uma linha grande cação, USP, 1991.)

com quatro menores [... ]


No teste de recordação [ela] não mais agiu simplesmente a . J?a representação pictográfica, as crianças passam à escrita simbó­
partir da memória, mas leu aquilo que havia escrito, cada vez lica, inventando formas de representar informações difíceis de serem
apontando seu desenho. desenhadas.
Na situação do experimento de Luria, elas resolviam o problema
do registro de maneiras diversas:

• "anotavam" outro objeto mais fácil de ser retratado e que se relacio­


--

na de alguma forma com aquele que foi referido pelo expe­


rimentador. Diante da frase "O lixo da chaminé é preto", a criança
comenta: "Preto. Uma caixa pequena. Eu não sei desenhar uma cha­
miné". Desenha uma caixa e pinta de preto.

• anotavam uma parte daquilo que era proposto.

S. N., de 7 anos e meio, foi instruída a escrever "Há mil


estrelas no céu ".
Primeiramente desenhou uma linha horizontal ( "o céu ");
em seguida desenhou cuidadosamente duas estrelas e parou. O
pesquisador questiona: "Quantas mais você tem de desenhar?"
(Ex!raído de ·o desenvolvimcnlo da escrita na criança'. ln:
Vygotsky, Luria, Lconticv. linsuagem, dese11vo/11in1e1110 e apren­ Ela: "Apenas duas. Eu me lembrarei que há mil".
203
dizagem, 1988.)
• faziam simplesmente uma marca arbitrária para representar o objeto.
O processo de alfabetização: a relação entre a escrita
primitiva da criança e a escrita convencional
Diante da frase "A menina quer comer", a criança desenha
uma menina e faz uma marca ao lado da menina, dizendo: "Aí está Luria observou que no processo de alfabetização as crianças diferen­
- ela quer comer". ciavam também gradualmente os símbolos utilizados para produzir escrita.
E, diante dafrase "A noite é escura ", a criança diz "Eu porei No início, tinham com a escrita convencional uma relação pura­
um círculo para a noite " e desenha um círculo completo. mente externa: elas conheciam letras isoladas, sabiam que podiam usá­
las para escrever, embora desconhecessem como.
Ao utilizar as letras para registrar algo, as crianças retornavam a

9
fases de escrita não diferenciada, mas utilizando as grafias aprendidas.
O seguinte registro de Luria exemplifica esse processo:

O pequeno V., um aldeão de seis anos, não era ainda capaz de


escrever, mas conhecia as letras A e /. Quando lhe pedimos para
relembrar e anotar algumas sentenças ditadas, ele facilmente fez o
que lhe fora pedido. Em seus movimentos, ele revelou confiança
Fig. 2 integral em sua capacidade de anotar e relembrar as sentenças
ditadas. Os resultados estão nos registros seguintes:
Fig. 1
(Extraído de 'O desenvolvimento da escrita na criança'. ln: Vygotsky.
Luria, Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem, 1988.) 1 . Uma vaca tem quatro Sujeito: Eu sei que ela tem quatro
pernas e um rabo. pernas e isto (escreve) é 'T'.
Para superar os limites que encontravam no desenho, as crianças
passavam do registro do conteúdo da fala para o registro de uma idéia. 2. O lixo da chaminé é preto. (Escreve) E isto é "A".
Nesse processo, o desenho deixa de ser o desenho de alguma coisa para 3. Ontem à noite choveu. Eis a chuva. Eis (escreve) 'T'.
ser o desenho de palavras. Esse procedimento aparentemente simples
envolve um grau considerável de desenvolvimento intelectual e abstra­ 4. Há muitas árvores no bosque. (Escreve) Eis "A".
ção. A criança percebe que a fala também pode ser desenhada.
Ao longo das tentativas de utilização da· escrita, as crianças, que 5. O barco a vapor está O barco a vapor vai assim (Faz
inicialmente não compreendiam o significado da escrita e tentavam navegando rio abaixo. uma marca). Eis "I".
utilizá-la por imitação de uma atividade do adulto, foram elaborando e
aprimorando técnicas primitivas de registro, diferenciando-as gradual­ O resultado foi uma coluna de "is " e "as " alternados que
mente, até chegar ao significado fu ncional do símbolo. nada tinham a ver com as sentenças ditadas. Obviamente o sujeito
Luria destaca que essas formas de elaboração da escrita não consti­ não aprendera ainda a fazer esta conexão, de tal forma que, ao
tuem etapas linearmente organizadas e universais. Ou seja, as crianças executar a tarefa de ler o que havia escrito, leu as letras (I e A) sem
não passam necessariamente por todas elas, nem elas acontecem na se­ relacioná-las de forma alguma com o texto.
qüência descrita. (Extraído de 'O desenvolviml'nto da cscril:l na criançn'. Jn:
Isso porque a elaboração da escrita, como função psicológica cul­ Vygotsky, Luria, Leonliev. Linguagt•m, desenvo/vime1110 e apren·

tural, não é um processo individual e independente do contexto em que dizngem. 1 988.)

se vive. Os percursos feitos pelas· crianças variam conforme o acesso


No processo de alfabetização, a criança, interagindo com os usos e
que têm, ou não, a experiências concretas de utilização da escrita.
formatos da língua escrita, pela mediação do adulto, de quem recebe
Com a alfabetização, inicia-se um novo período da elaboração da
escrita. A criança passa a se relacionar com a escrita de modo delibera­ informações sobre o sistema convencional de escrita, tenta utilizar as
do e sistemático. Passa a utilizar, juntamente com suas técnicas primi­ letras para ler e produzir textos. Ela imita o adulto nos atos de ler e
tivas de registro, uma nova técnica, a escrita, que lhe é apresentada. escrever e segue suas instruções. Ela confronta suas técnicas primitivas
"Como escreve uma criança que, embora ainda seja incapaz de es­ de escrita com as regras da escrita convencional. Assim ela vai se apro­
.
crever, conhece alguns elementos do alfabeto? Como se relaciona com pnando dos mecanismos da escrita simbólica culturalmente elaborada.
essas letras e como (psicologicamente) tenta usá-las em sua prática pri­ O domínio do sistema de escrita convencional vai substituindo, então,
204 suas técnicas primitivas de escrita.
205
mitiva?'', pergunta Luria ( 1 988: 1 80).
diferenças que as autoras vêem nos trabalhos de Luria e Ferreiro e, a
Sugestão de atividades seguir, compará-las numa discussão que envolva a classe toda.
Após o debate, cada aluno deve retomar o texto elaborado na ativida­
de 2 e acrescentar a ele um comentário motivado pela leitura do seu
texto e pela discussão com os colegas.
Organizando as informações do texto

Num quadro-resumo, indique as características do processo de Sugestão de leituras


apropriação e de elaboração da escrita pela criança, segundo os estudos
de Vygotsky e Luria. LACERDA, Cristina B . F. de. É preciso falar bem para escrever bem? ln:
SMOLKA, A. L., GóES, M. c. R. de (orgs.). A linguagem e o outro es­
Exercitando a análise paço escolar: Vygotsky e a construção do conhecimento. Campinas:
Papiros, 1993.
1. Retome individualmente as amostras de produção de escrita que LuRIA, A. O desenvolvimento da escrita na criança. ln: VYGOTSKY,
você e seu grupo analisaram na atividade do éapítulo anterior. Após LURIA, LEONTIEV. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São
saber como Luria e Vygotsky caracterizam o desenvolvimento da es­ Paulo: Ícone/Edusp, 1988.
crita, que elementos você destacaria nessas produções? Registre sua NOGUEIRA, Ana L. H. Eu leio, ele lê, nós lemos: processos de negociação
análise. na construção da leitura. ln: SMOLKA, A. L., GóES, M. c. R. de
2. Em pequenos grupos, comparem as amostras de produção de escrita (orgs.). A linguagem e o outro espaço escolar: Vygotsky e a constru­
e discutam as tentativas de análise feitas inqividualmente, destacan­ ção do con!zecimento. Campinas: Papiros, 1993.
do as regularidades observadas entre elas. Registrem os principais SWAIITZ, S., AMARO, L. (orgs.). Meu universo - Comunicação e expres­
pontos da discussão e os elementos das produções que confirmam a são. São Paulo: Edart, 1976.
abordagem de Vygotsky sobre o desenvolvimento da escrita. VYGOTSKY, L. A pré-história da escrita. ln: __. Aformação social da
3. Reúnam e problematizem as produções que não conseguiram ana­ mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
lisar.
4. Em pequenos grupos, socializem o trabalho de análise feito e as
questões que foram por ele suscitadas.

Exercitando a comparação

1. Enumere as semelhanças e as diferenças entre os modos como Emilia


Ferreiro e Vygotsky/Luria descrevem e explicam o desenvolvimento
da escrita na criança. Para isso, baseie-se na leitura dos textos do
livro, nos exercícios de análise das amostras de escrita produzidas
pelas crianças e nas questões suscitadas por esses exercícios.
2. A partir da comparação feita, elabore um pequeno texto destacando
as semelhanças e as diferenças principais entre as duas abordagens.
3. Dividida em dois grupos, a classe deverá ler dois textos.
Os alunos do grupo 1 deverão ler 'Acesso ao mundo da escrita: os
caminhos paralelos de Luria e Ferreiro' , de Maria Thereza Fraga
Rocco, em Cadernos de Pesquisa, n? 75, de novembro de 1990, pu­
blicado pela Fundação Carlos Chagas, de São Paulo.
Aos alunos do grupo 2 caberá 'Discutindo pontos de vista', de Ana
Luiza Smolka, que é o terceiro capítulo do livro A criança na fase
inicial da escrita, editado pela Cortez, de São Paulo.
Nesses textos as autoras comparam as abordagens de Emilia Ferreiro
e Luria. Após a leitura, cada aluno deve destacar as semelhanças e as
tem um ano para dominar os segredos da escrita. Tudo o mais é inter­
rompido em favor de seu ensino. A preocupação com os rudimentos da
escrita e da linguagem matemática preenche o tempo das crianças na
Capítulo 18 escola e fora dela. As brincadeiras, a hora do parque, os desenhos e a
roda da conversa presentes na pré-escola, bem como o tempo livre e
descompromissado em casa, cedem lugar às tarefas. A l � série marca o
início da postura de seriedade. Agora se trata da escola de verdade com
º '
tarefa de casa, prova, exame e até, ou principalmente, repetência.
Alguns pais cobram e acompanham de perto o desempenho dos
.
filhos. Outros, marcados em sua história de vida pelo "insucesso"
escolar ("Eu sou cabeça-dura"; "As letras não me entram"), torcem
Escrevendo e lendo na escola pelo êxito dos filhos, mas temem seu fracasso ("Será que ele saiu
igual a mim?").
Muitos professores, angustiados com as condições de trabalho,
perguntam-se como trabalhar a escrita em salas com trinta, ou até qua­
renta alunos, nas precárias condições da escola pública brasileira, e
Enquanto a brincadeira e o desenho pratica­
levando em conta as também precárias condições de vida e de trabalho
mente inexistem na escola de 1? grau, a leitura e a
de muitas crianças.
escrita têm ali presença constante. Leitura e escri­
Grande parte deles procura, ansiosamente, nos alunos, os "pré-re­
ta são objeto de conhecimento (as crianças vão à . .
qulSl_tos" da alfabetização, mas ignora as experiências que essas crian­
escola para aprender a ler e escrever) e instru-
ças tiveram em relação à escrita. Espera-se, como bem apontou Emilia
i;�
mento para a apropriação de outros conhecimen-
tos (utilizando essas atividades, nós, professores,
Ferreiro (1982), que as crianças cheguem à escola sabendo pegar no
lápis, copiar da lousa, discriminar sons, "falar direito" ... A ausência des­
ensinamos), além de instrumento de trabalho dos
ses pré-requisitos as faz ser consideradas inaptas para aprender a ler e
professores, meio de comunicação na comunida­
escrever e condena-as às atividades do período preparatório, às vezes
de escolar (presente em bilhetes, avisos, boletins,
por um ano inteiro (Smolka: 1988).
murais, cartazes), registro, memória (nos planos,
projetos, documentos, atas).
No início de março, enquanto nas demais classes as crianças
Ainda em torno da atividade escolar, a leitu­
repetiam o a-e-i-o-u, na 1 �série M as crianças rasgavam páginas
ra e a escrita mediatizam as int�rações entre os
de revistas, picavam as folhas com as mãos em pequenos pedaços,
alunos, que comparam suas tarefas, trocam infor­
para enrolar, depois, em pequenas bolinhas que seriam coladas na
mações sobre elas, mandam bilhetes, copiam coi­
copa de uma árvore que a professora desenharia numa folha de
sas de seu interesse nos cadernos, ficam em sala
papel. As crianças não tinham idéia desse "projeto ", ou seja: ras­
durante o recreio para escrever no quadro-negro, .
gar, picar e enrolar papel para quê? Para a professora o objetivo
treinam a letra cursiva, lêem, mesmo quando não solicitados pelos pro­
era claro: era necessário treinar os movimentos dos dedos, para as
Em tws.m
fessores, desde o livro didático até materiais proibidos no recinto esco­
crianças poderem, posteriormente, segurar o lápis direito.
sociedade, saber lar, cuidadosamente escondidos sob as cúmplices carteiras.
Aparentemente, então, nesta classe, as crianças estavam sen­
Apesar dessa presença maciça e diversificada da leitura e da escrita
'.
ler e escrever é
. do ' preparadas para aprender a ler e escrever '', mas, de fato, im­
cada vez mais
nas atividades que se realizam na escola, vivemos às voltas com altos .
valorizado. plicitamente, o que ocorria era a negação desse conhecimento a
índices de analfabetismo funcional, evasão e repetência.
quem ainda não o possuía, devido a uma imagem que se tinha ou se
formou das crianças que compunham o grupo...

Por que o fracasso da escola em ensinar a escrita (Smolka. 1988.)

e a leitura? No período preparatório, as crianças também repetem inúmeras


vezes o a-e-i-o-u, "desenham" e cantam a "onda vai", enquanto movi­
O ingresso da criança na 1 � série do 1? grau é cercado de expecta­ mentam o lápis no papel. Ao fazerem isso, o que estão aprendendo?
208 tivas, por parte da própria criança, de sua família e dos professores. Ela Estão escrevendo? Estão desenhando?
Certamente não estão escrevendo. O que a seqüência de vogais sig­
Inúmeras vezes uma mesma lição da cartilha deve ser copiada na
nifica? A repetição de um mesmo símbolo em seqüência é escrita? Nos
classe e também como lição de casa:
estudos de Emilia Ferreiro, as crianças afirmaram que não. Uma condi­
ção de legibilidade, que elas apreendem e constroem nas suas relações
Mateus, de 6 anos e meio, entrou na 1 � série em 1990, numa
com a escrita, é a variedade de caracteres ...
escola central de Campinas, São Paulo. Criança de classe média,
Certamente não estão desenhando, pois o a-e-i-o-u é constituído de
filha de profissionais liberais, conhecia muita coisa sobre a escrita
letras, de um tipo de traçado específico. A "onda vai" também não é
e era interessada em ler.
desenho, pois o desenho de uma onda pela criança tem as mais diferen­
Ao final do primeiro mês de aula, chorava copiosamente e não
tes formas. (E muitas das crianças brasileiras, que moram no interior,
queria mais ir à escola nemfazer a lição de casa. A mãe, desespera­
não conhecem o mar e as ondas a que o treino motor reporta.)
da, não sabia o quefazer. Perguntando à criança o que estava acon­
A repetição das vogais e da letra c disfarçada de onda não contribui
tecendo, por que não estava gostando da escola, recebeu a seguinte
para o esclarecimento das crianças. Em vez de serem informadas de que resposta: "Eu não agüento mais escrever a lição da lata, mamãe! ".
estão aprendendo a traçar as letras, elas são sutilmente levadas a crer Havia um mês, Mateus copiava em sala de aula e em casa, como
que estão treinando a escrita. Que conclusão lógica essas crianças po­ tarefa, a primeira lição da cartilha. A mãe procurou a professora,
dem tirar? A de que C onda. No entanto, as crianças são recriminadas
=
que explicou: "Eu só posso mudar de lição quando todos tiverem
ou consideradas incompetentes quando "não aprendem" o convencio­ aprendido direitinho, copiarem sem erro, e acertarem o ditado.
nal (Smolka e Góes, 1984). Com o tempo, as crianças vão ficando mais rápidas".
(Depoimento da mãe da criança a uma das autoras, em 1 992.)

Como o convencional tem sido ensinado? Um procedimento comum entre alfabetizadores é se referirem às
letras relacionando-as com as lições da cartilha. O m vira "ma do maca­
Cumprindo, ao lon­ co", o n vira "na do navio", numa confusão absoluta entre letra, sílaba,
go do ano dedicado à al­ palavra, nome de letra, som de letra.
fabetização, seu papel de "Já fez as palavrinhas? Ma com o... na com o... Aqui (na lousa) eu
informar, instruir, insistir, fiz ma com a. Olha o que você fez aí!" (Smolka, 1984). Numa situação
controlar, os professores como essa, além de não se dar esclarecimento à criança, passam-se in­
ensinam letras, sons, síla­ formações inadequadas.
bas e a decifrar palavras Diante dos resultados obtidos, as professoras angustiam-se com as
escritas, insistem na me­ crianças que "não vão para a frente", que repetem uma ou mais vezes a
morização e fixação, con­ l � série, o que não é raro em nosso sistema escolar.
trolam a produção e a dis­
ciplina. Fazem tudo isso
na crença de estarem di­ E as crianças?
recionando a atenção e a
vontade das crianças. As crianças chegam à escola desejosas de aprender, ansiosas por
Obrigadas a "copiar" uma série de letras e palavras, como, por escrever. Afinal, convivem com a escrita já há algum tempo, sabem que
Aprendendo a exemplo, o cabeçalho diariamente colocado na lousa, as crianças não
·
têm algum conhecimento sobre ela, mas sabem também que desconhe­
escrever: entendem o que fazem. cem muita coisa. "Eu não sei ler"; "Eu sei que tem coisa escrita, mas eu
atividade /iídica
ou mecânica ?
O cabeçalho, algumas vezes, é apresentado com lacunas a serem não sei muito bem usar letra", dizem elas.
preenchidas: Elas têm expectativa de que os adultos lhes ensinem.

C _ _ _ _ _ _ _ , D _ _ 18 DEA _ _ _ _ DE 1 994. A criança, de 5 anos, pede à tia que escreva algumas palavras
D É A para ela. A tia, professora e estudante de Pedagogia, sugere que
H J E _ _ _ F_ _ _ _ _ _ SOL. ela mesma escreva. A criança responde que não sabe. A tia insiste:
"Escreva como você acha que é!".
(Extraído do relatório de estágio de uma aluna de Pedagogia de
1 994.)
Depois de algum tempo, a criança volta com algumas letras
marcadas no papel e pede que a tia leia para ela. ;�i�l�J(�����@:,�;�J.�+ .
- Não... Você lê pra mim o que escreveu... - a tia diz. cionamento e a funcionalidade da escrita, no sentido de procurar
- Viu só como eu não sei escrever? - a criança retruca. apontar para as crianças, tanto formal quanto informalmente, as
(Depoimenlo de uma aluna do curso de Pedagogia, numa aula em
diversas possibilidades e funções dessa forma de linguagem. As
que se discutiam os estágios de Prálica de Ensino, em 1 994.) crianças participaram da confecção de vários tipos de versões do
alfabeto - da Xuxa, do Toquinho, de animais -, tendo esse mate­
n
· '·.· : . :·
r. ··e. ;,\ jii}lfii{�
{í As crianças trazem consigo experiên­ rial exposto como referência e consulta na sala. Algumas palavras
) •
\ cias diversas com a escrita, suposições acer­
. .
;j ·
/
Í )
...
.
estão também pregadas na parede, em ordem alfabética. O quadro
ca de seu funcionamento, mas se vêem im­
I '-;':::·; de presença com os nomes das crianças, o calendário, dois textos,
pedidas de explicitá-las na escola. Querem são outros materiais dispostos na sala. As crianças podem manu­
aprender, mas nem sempre a escola se dis­ sear livros de história e ouvem, quase que diariamente, a leitura de
\· (; põe a ensinar a elas o que desejam. um livro pela professora.
\ "• c$'i ' Mês de maio. A professora encoraja as crianças a escreverem
Eu me lembro que esperava na maior
uma notícia para o jornal dos alunos. As crianças podem recorrer
ansiedade a hora de entrar na escola. Só
a qualquer estratégia para montar a notícia - perguntar ao cole­
que, quando entrei na ] .ªsérie, chorava muito
e não queria ir mais. Eu queria escrever, não ga, copiar da revista, consultar o material exposto na sala, pedir
queria ficar fazendo os rabisquinhos dos auxílio à professora, etc.
exercícios do período preparatório... Eu já Duas crianças conversam sobre a torneira do banheiro que
sabia escrever o meu nome, que minha irmã está quebrada, que foi consertada, mas que continua não funcio­
tinha ensinado, sabia algumas letras... nando. Decidem escrever esta notícia para o jornal. Pat. e Ale.
começam a falar e a repetir lentamente "a torneira está quebra­
(Depoimento d e u m a aluna d e Pedagogia, numa aula em que s e
discutiam o s estágios de Prática de Ensino. em 1994.) da ".
Ale.: A gente quer escrever que a torneira está quebrada, �ia.
O resultado desse desencontro entre as Como que escreve ?
crianças e a escola aparece no diálogo com Pat. : A torne... é o "e", né, tia ?
crianças de escola pública reproduzido por Prof.": Tem o "e".
Ana Luiza Smolka: Pat. : Tá quebra... é o "a", né, tia ?
Prof.": Também tem o "a".
- Pra que vod vem à escola? Pat.: escreve "EA " A professora pede para o Ale. ler.
.

A escrita deve - Para aprender a ler e escrever.


ser trabalhada
Ale. Eeeee Aaaaaa.
- Mas para que você vai aprender a ler e escrever? Prof'!: Eu também leio "EA ". Vamos ver outro jeito. Torneira,
deforma
funcional para
- Pra tirar boa nota. como será que escreve torneira (pronuncia bem devagar)?
manter o seu - Pra não ficar burro. Pat.: Tor. .. é o "o ". (Faz a letra O.)
sentido real. - Pra passar de ano.
Ale.: Ne... é o "e". (Pat. faz a letra E. )
- Pra não precisar pegar no serviço pesado quando crescer.
Pat. : Ra... (jaz a letra A).
(.4 crümça na fase b1icial da escrita, 1988: 38.) Prof.�· Agora lê, Pat.
Pat. : Torneira.
Não trabalhando a escrita de forma funcional, a escola faz com Prof.": Você acha que está escrito torneira aqui, Ale. ?
que se perca o sentido real de sua aprendizagem, que passa a ser ape­
Ale. : Não sei, tia.
nas o de cumprir as exigências da própria escola (boa nota, passar de
Prof:': Então vamos ler juntos: OoooEeeeAaaa. Não está fal­
ano) ou de ajudar num futuro remoto.
tando nada ? Tttoorrr. . .
Ale.: É o "t", não é, tia ?
Prop· Certo. Eu vou soletrar, vou dizer o nome das letras pra
Pra quem, o que e por que escrevo?
escrever "torneira ".
As crianças conhecem quase todas as letras pelo nome e,
Uma sala de aula de 1 .ª série, com 26 crianças ingressantes,
quando esquecem ou hesitam, éfeita referência ao alfabeto expos­
entre quase 7 e 8 anos de idade. Zona de periferia, quase rural. A
to. A professora vai atender outros grupos. Pat. e Ale. continuam
professora vem, desde o primeiro dia de aula, trabalhando o fun-
tentando escrever. A professora retorna ao grupo deles, verifica o Ao escrever o que
que e como as crianças escreveram, acaba soletrando o resto da pensa, sem copiar ou repe­
frase para elas. As crianças agora seguem adequadamente, com o tir mecanicamente frases
dedo (fazendo corresponder dimensão sonora com extensão gráfi­ de cartilhas, a criança bus­
ca), o quefoi escrito, lendo e mostrando para os colegas o resulta­ ca classificar e sistemati­
do de sua produção. zar os sons da língua de
acordo com a sua percep­
(Episódio extraído de SMOLKA A. L.• 'A atividade da leitura e o
desenvolvimento das crianças: considerações sobre a constituição
ção. Os "erros" que come­
dos sujeitos leitoresº. ln: SILVA, E. T., ZILBERMAN, R. (orgs.). Porto te, embora sejam profun­
Alegre: Mercado Aberto. )
damente reveladores dos
seus processos de aprendi­
Ao tentar escrever sozinha, a criança analisa a escrita do ponto de
zagem, causam preocupa­
vista do conhecimento que ela já tem de suas convenções. "A tome... é
ção e ansiedade nos pro­
o 'e', né, tia?" - diz Pat. Ao indicar à professora o modo como elabora fessores, que se interro­
a escrita, a criança possibilita que ela trabalhe a forma convencional, gam acerca do que fazer.
ajudando-a a ir além do conhecimento até então elaborado. Corrigir ou não corrigir? Essa é a questão que ainda ocupa os pro­
A professora esclarece a criança, informa-a . adequadamente fessores, interferindo na sua prática, no dia-a-dia da sala de aula, levan­
Escrevendo o que
pensa e o que
("Tem o e"). Pede à criança que leia sua própria produção, lê para a do-os a dois extremos: corrige-se tudo, anulando a produção da criança quer. a criança
criança, pronuncia devagar o que as crianças querem escrever, sole­ como um todo, ou não se corrige nada, confiando-se na "descoberta do elabora a
tra para elas. certo" que ela fará. linguagem.
O que a professora ensina nesse processo? Ela explicita a análise
fonológica para as crianças, mas com a participação delas. Informa so­
bre o lugar das letras nas palavras, esclarecendo o valor que têm de
O que é o erro? Os erros são todos iguais?
acordo com a posição que ocupam. Aponta e nomeia as letras, que são o
instrumental necessário e convencional para dizer as coisas por escrito.
O caminho para as respostas às questões acima pressupõe a análise
Trabalha o funcionamento da escrita, usando-a para registrar o que a
da produção das crianças.
criança deseja e, escrevendo, interage com ela.
Nessa interação, a professora ensina, explícita e implicitamente, os Após a leitura do livro "Nosso trabalho é assimº', elaborado
aspectos mecânicos e estruturais da escrita, ao mesmo tempo que de­ por um grupo de cria11ças, a professora conversou com os alunos
monstra para a criança que reconhece nela alguém capaz de aprender a sobre o tema TRABALHO. A partir da conversa, as crianças come­
ler e a escrever. Também aprende a ouvir a criança, a entender o que ela çaram a confeccionar seus próprios livros individuais, com recor­
tem a dizer sobre a escrita, a "ler" o que ela registra sobre o papel. Nessa tes defiguras de revistas. Após o manuseio, a escolha, o recorte e a
relação, o conhecimento sobre a escrita é compartilhado, reconhecido e colagem das figuras, as crianças ditavam para a professora ou
elaborado. escreviam textos de acordo com o tema.
No episódio apresentado, o domínio da escrita como código é ape­ Uma criança escolheu fotos do peixe-boi e ditou o seguinte
nas um dos objetivos apresentados às crianças. A atividade em que elas texto para que a professora registrasse:
estão envolvidas não se esgota no aprendizado do código. Sua finalida­ "Os peixes-bois estão em uma canoa especial porque os sal­
de é outra: escrever a notícia do jornal. Escreve-se para outros lerem. A va-vidas estão salvando eles pra eles não morrerem ".
escrita é, nesse caso, possibilidade de interlocução. Ela tem significado Após a saída da professora para atender outras crianças, ela
para as crianças porque responde a uma necessidade social; seu papel é escreve sozinha:
relevante. Essa é uma condição para que a escrita não se desenvolva
"como hábito de mão e dedos, mas como uma forma nova e complexa
de linguagem" (Vygotsky, 1984: 1 33).
O uso significativo da escrita desmistifica o acesso a ela. A criança
não se limita a memorizar, gravar ou fixar modos de escrever palavras.
(Episódio extraído do relatório do Projeto de Incentivo à Leitura de
Ela elabora e reelabora a linguagem escrita, escrevendo o que pensa e o t 984. O projeto. coordenado por Ana Luiza Smolka, foi desenvolvido
215
que quer expressar ou registrar para si e para o outro. na Rede Municipal de Ensino de Campinas no período de 1983 a 1985.) ------
Analisando a frase escrita pela criança, o que se evidencia?, per­ erros analisados indicam que a criança está apreendendo a relação en­
gunta Smolka no relatório em que o episódio está registrado. tre a oralidade e a escrita. Mas, para consolidar essa apreensão, ela
Antes de destacar e analisar os erros, a autora sugere que se dê precisa de tempo para elaborar, analisar, relacionar e não apenas me­
atenção a um aspecto dessa produção. A criança comunica seu pensa­ morizar.
mento por meio da escrita, e o faz com clareza. Ela consegue escrever o O processo de elaboração, porém, não compete só à criança. Nós,
"que queria ter escrito", e nós, leitores, conseguimos ler e entender o professores, também participamos dele ao analisar com ela sua produ­
que ela quer dizer. ção, quando a ajudamos a perceber o curso de seu próprio processo de
"Molhe" em vez de mulher, o primeiro erro que chama a atenção, elaboração.
se explica, destaca Smolka, por uma generalização comumente consta­ Outros tipos de erros encontrados fartamente em relatos de expe­
tada nas séries iniciais. Fala-se "ovu" e escreve-se ovo, fala-se "carru" e riência assemelham-se aos seguintes:
escreve-se carro, fala-se "ratu" e escreve-se rato. Diante disso, a crian­
ça conclui: o que se fala com u, escreve-se com o. Daí, "molhe", em vez
de mulher, como também "boraco", em vez de buraco. A criança erra
devido à preocupação em acertar (supercorreção ). Esse erro revela as
.�
elaborações que ela faz acerca da relação entre a oralidade e a escrita.
Essa relação entre oralidade e escrita aparece também na omissão A casa é mal-assombrada.
do r final. Fala-se "mulhé", omitindo-se o r final. Assim, a criança es­
(Projeto de Incentivo à Leitura. 1984.)
creve como fala.
O mesmo acontece com "alimentano". É comum, sobretudo nas Mau e mal soam exatamente iguais e só o contexto esclarece quan­
classes populares, a omissão do d na pronúncia dos verbos no gerúndio. to à ortografia correta. A criança comunica o que quer, mas precisa de
Essa omissão, além de evidenciar a relação entre a oralidade e a escrita, tempo para aprender a sutil diferença entre um termo e outro.
constitui outra marca: o modo de falar da criança, evidenciado na sua
A professora pode mediar essa apreensão analisando com a criança
escrita, não corresponde ao que é estabelecido como língua padrão, é
a forma utilizada por ela e as razões de sua adequação, ou não, ao con­
uma variedade dialetal.
texto. Assinalar o erro ou escrever a forma adequada sem analisar com a
Ao escrever "more" por morre, a criança revela as dificuldades,
criança os critérios de adequação ou inadequação em nada contribui
compreensíveis, que os múltiplos valores fonéticos das letras trazem,
para a elaboração e o domínio da língua escrita convencional.
não só para ela, mas para todas as crianças no período inicial de apro­
O mesmo acontece na tentativa de escrita da palavra assombrada.
priação da escrita convencional.
A criança recorta a palavra em alguns pedaços (a, sul) e usa elementos e
A repetição da preposição para no fim da frase também não é ade­
critérios que já conhece, que já viu escritos e que correspondem, em
quada à norma padrão, mas sua ocorrência se verifica por razão diferen­
alguma medida, à sonorização da palavra. Também nesse caso, assina­
te da que leva à omissão do d nos verbos no gerúndio. Ela não revela um
lar o erro, corrigi-lo ou esperar que a criança descubra em que ele con­
modo de dizer da criança, e sim a diferença de tempo entre o pensamen­
siste não conduzem a nenhuma superação.
to e seu registro por escrito. A criança pensa o que quer escrever. No
processo de fazer o registro, ela vai repetindo a frase lentamente, pára
nas palavras, repete-as, volta sua atenção para o esforço de analisar e
marcar as palavras. Com isso, perde a fluência da frase e retoma-a no
ponto em que parou.
O processo de pensamento pode ter sido "A mulher está alimentan­
do o peixe-boi para ele não morrer", elaborado de acordo com a norma Um homem embaixo da árvore.

padrão. Durante o registro, a criança parou no "ele", e provavelmente (Projeto de Incentivo à Leitura. 1984.)
repetiu "A mulher está alimentando ele...", completando, então, "para
não morrer". O h no início da palavra homem não tem nenhum valor fonético,
A análise dessa produção mostra que existem diferentes tipos de assim como o m final, que, muitas vezes, não é pronunciado. O i em vez
"erros" - dialetais, ortográficos, por generalização, por supercorre­ de em indica problemas de nasalização e não-correspondência entre vo­
ção -, que, ocorrendo por diferentes razões, devem ser corrigidos e . gal escrita e falada. O i de embaixo também é geralmente omitido na fala,
trabalhados de maneiras diferentes. Eles revelam, também, regularida­ e o x e o eh servem para representar o mesmo som. "Alvore" revela um
. 216 des no processo de elaboração da escrita. Juntos, os quatro primeiros 217
problema dialetal e de supercorreção. Em algumas regiões, o l é pronun-
.
ciado como r. Fala-se "borsa", "revórvi", e escreve-se bolsa, revólver. As soluções que encontram para as palavras que constroem
Então, se a fala é árvore, imagina-se que a escrita correta seria "alvore". são inúmeras. Ex. : O RATO GOTA D/ Q/JO (0 rato gosta de quei­
Examinando com cuidado os erros cometidos pelas crianças, va­ jo) ou O COMETA PASO NA SIDADJ (0 cometa passou na cida­
mos confirmando as regularidades e as sistematizações próprias do pro­ de). E quando eles me mostram, eu não digo "está errado ", mas
cesso de elaboração da escrita. Os erros revelam os modos como as "está certo " seria mentira. Então eu pergunto: O que você escre­
crianças procuram organizar as informações e os conhecimentos que veu? Eles lêem e emendam "está certo? " E eu: "Esse é o seu jei­
têm. Há neles uma lógica muito mais consistente do que à primeira vista to... " Não insistem, mas algumas crianças como a Rosa e a
imaginamos. Constatá-los é importante. Mas para quê? O que fazer lvanilda dizem que sabem que "falta alguma coisa " e ficam em­
com eles? burradas porque eu não digo. [... ] a lvanilda, muito crítica, só
Alguns professores hesitam entre preservar o direito da criança de quer escrever "certo ". Não queria se arriscar a escrever "como
errar e de se arriscar e problematizar suas produções, com receio de achava " e eu, conversando com ela, perguntei por quê. Ela disse
inibi-las. Eis um relato que mostra esse dilema: que sabia que estava errado o jeito que escrevia e que eu aceitava
porque era a professora dela. E perguntava: "Você acha, professo­
O trabalho com as frases foi bom até certo ponto. O que me ra, que depois (o ano que vem) vão deixar eu escrever como eu
desconcertou foi o fato das crianças terem ficado nervosas, histéri­ acho que deve ser?"
cas mesmo, porque já não se contentam com suas produções. O (Idem, ibidem.)
que eu estava interpretando como agressividade gratuita, confu­
são e bagunça, vejo agora que é outra coisa. Lêem, reconhecem As crianças, na escola, não elaboram apenas a escrita em si, mas
sílabas, percebem o significado, mas escrevem silabicamente ou também o papel da escrita na sociedade, a função da escola em relação
silábico-alfabeticamente e não ficam satisfeitas com o resultado. à socialização da escrita convencional, a expectativa social quanto a sua
Fica um clima tenso, de insatisfação. Por outro lado, minha postu­ aprendizagem, os papéis sociais de professor e aluno, em jogo nas rela­
ra radical de não corrigi-los nunca está sendo interpretada como ções de ensino ...
indiferença, pouco caso. Eles sabem que não escreveram certo e Se a escola erra, como vimos anteriormente, quando não possibilita
ficam desconfiados, sentem-se enganados. Tenho que repensar mi­ à criança expressar o que já conhece sobre a escrita, erra igualmente
nha atitude. [ ... ] Com medo de inibir, passei para o extremo oposto quando ignora ou toma secundário seu desejo de dominar de modo "efi­
e não estou ajudando. caz" a escrita convencional.
(Depoimento extraído do texlo 'E na prátic� a teoria é outra?'. de Como facilitar, então, o aprendizado da língua padrão?
Teima Weisz, publicado no módulo li do Projeto /pê - Isso se Trazendo a escrita para dentro da sala de aula, trabalhando-a em
aprerrde com o ciclo básico. São Paulo: SE/CENP, 1 986.)
suas funções e em todas as sua& possibilidades; encorajando e ajudando
as crianças a falar, escrever, divulgar sua produção; lendo e escrevendo
Outro modo de olhar para os erros é não considerá-los como "nega­
·para as crianças e com elas; expondo de forma organizada os trabalhos
ção de conhecimento" ou "afirmação da inteligência da criança e da sua
realizados e utilizando a escrita como recurso de organização; esclare­
capacidade de pensar", porque eles são as duas coisas ao mesmo tempo.
cendo e informando às crianças sobre a escrita, respondendo a suas per­
Eles nos mostram até onde as crianças chegaram na elaboração da escri­
guntas e também corrigindo-as.
ta, que hipóteses estão formulando, o quanto já apreenderam e com­
preenderam acerca de seus fundamentos, funções e princípios de orga­
nização. E também quais os pontos em que ainda devemos intervir jun­
to a elas, o que precisamos explicitar para elas e com elas, que informa­ Mas como corrigir?
ções podemos lhes dar para que avancem em suas elaborações e no
domínio da escrita. Já vimos que o antigo hábito de assinalar o erro não resolve. Ele
Os erros indicam a um só tempo o que já não precisamos trabalhar apenas evidencia o erro para a criança e para o professor. O erro assina­
com as crianças, porque já é do domínio delas, e o que ainda exige lado não dá informações sobre a escrita, não diz nada ao professor sobre
nossa intervenção, por estar em fase de elaboração. os processos de elaboração da criança.
As crianças esperam que nós, professores, exerçamos nosso papel Se os diferentes erros se devem a diferentes razões, sua correção e
participando com elas do processo de elaboração desse conhecimento. superação exigem procedimentos também diferentes. Mas só chegamos
Afinal, somos reconhecidos pelos alunos como a pessoa que, na classe, a perceber isso quando fazemos da correção um momento de estudo dos
mais sabe (ou deveria saber) sobre a escrita, como se percebe neste ou­ processos de elaboração do conhecimento vivido pelas crianças com
tro depoimento: quem estamos trabalhando, quando buscamos discernir o que já domi-
nam e o que ainda não, que hipóteses estão formulando, em que lógica
têm sustentado sua produção. A análise dos acertos e dos erros, das
adequações e inadequações em relação à norma padrão indica os cami­ Sugestão de atividades
nhos a seguir.
E planejar o caminho a ser apontado a cada criança envolve um
complexo trabalho de comparar palavras, analisar e dar atenção aos Exercitando a análise
seus detalhes e às regularidades observadas entre elas, pesquisar e siste­
matizar essas regularidades. Esse trabalho deve ser feito junto com as 1. Nas práticas cotidianas de sala de aula estão impressas as concepções
crianças, porque envolve habilidades intelectuais e informações que que o professor tem a respeito do processo de alfabetização e de ela­
elas ainda não dominam. Ao fazê-lo, compartilhamos com elas tanto os boração da escrita pela criança.
problemas e as dificuldades que o domínio da escrita nos coloca quanto • O que é ler e escrever? O que é alfabetizar?
as buscas de soluções.
Para que se lê e se escreve? Para que se alfabetiza?
Vivida como linguagem, a escrita é código, técnica, significado,

objeto de conhecimento, forma de interlocução. É, enfim, um modo de • Como a criança aprende e apreende a escrita? Como ela se alfabetiza?
agir, um modo de dizer as coisas. • Com que e com quem a criança aprende a escrever e ler? Com que
No exercício do dizer pela escrita as crianças aprendem e inter­ e com quem ela se alfabetiza?
nalizam mais do que as relações e convenções lógicas de um sistema de
representação. Elas aprendem e intemalizam modos de interação na sua A seguir você tem um conjunto de episódios de sala de aula. Anali­
realidade sociocultural. se-os atentamente, procurando abordar cada uma das questões suge­
ridas acima. Para realizar a análise, releia todos os capítulos referentes
ao desenvolvimento da escrita na criança e todos os textos complemen­
tares que foram trabalhados pelo seu professor.

Situação n? 1
(22.02.86) Amanhã será a reunião dos pais. Escrevemos jun­
tos o bilhete. Primeiro resolvemos o que iríamos escrever. Conta­
mos quantas palavras e perguntei sobre a primeira: REUNIÃ O.
Escrevi e pedi qu_! lessem. Qual a palavra que temos que escrever
agora? AMANHA. E liam tudo, até completar o bilhete, reler e co­
piar. No final sabiam todo o bilhete e identificavam as palavras
s!!paradamente. Alguns disseram que tinham contado tudo errado.
E que no começo contaram nove palavras (oralmente): REUNIÃO
AMANHÃ 9 HORAS. TEM A ULA ATÉ 9 HORAS.
Quando viram escrito, discordaram: tem s6 7 porque "número
não é palavra, s6 quando fala ".
(Situação retirada de um diário de classe de uma professora de l !
série e transcrita por Teima Wcisz n o texto ' E n a prática, a teoria é
outra?', publicado em Projeto /pê - Isso se aprende com o Ciclo
Básico. São Paulo: SE/CENP, 1986.)

Situação n? 2

Era o nosso primeiro contato com as crianças. Para conhecer


e guardar os nomes das crianças, fomos escrevendo o nome de
cada uma na lousa, em letra script, seguindo a posição das crian­
ças nasfileiras. A sétima criança da primeira fila disse que o nome
dela não era 'daquelejeito '. Foi, então, à lousa para mostrar como
se escrevia. Escreveu em cursivo. Mostramos, então, o que aconte­
ceu quando se "juntavam " as letras do nome em script. Logo todas
as crianças queriam ir à lousa para mostrar como se escrevia o Novamente o processo de soletrar junto, o aluno percebendo
nome. De repente havia mais de quinze crianças escrevendo na que ele "já sabia " escrever "o revólver".
lousa (escrever na lousa, em geral, não é permitido às crianças). Chegam à palavra "moço". A professora fala "cê cedilha ",
Diante da perturbação gerada (e, de certo modo, esperada) propu­ procura no alfabeto e não encontra. De repente se dá conta de que
semos às crianças que cada uma escrevesse o seu nome numafolha não se coloca o "cê-cedilha " no alfabeto. A criança não conhece,
de papel e que aproveitassem a oportunidade para desenharem e não sabe qual é a letra, e a professora, então, escrevepara a criança.
escreverem o que quisessem. A professora se vira para atender outros alunos. A criança
Neste mesmo contexto, uma criança "emburra " por causa da que desenhou o revólver fala:
disputa de algum material e se recusa a fazer qualquer coisa. Um -... mata o moço, não. O ladrão.
adulto se aproxima da criança e pergunta: E escreve, sozinha, na sua folha de papel: OLETAN.
- Por que você está bravo? (Situação extraída do livro de Ana Luiza Smolka, A criança na
Nenhuma resposta. fase inicial Ja escriw: a alfabe1iwçüv como processo discursfro.
São Paulo: Cortez/Ed. da Unicamp, 1 988.)
- Você não quer conversar comigo?
A criança olha para o adulto sem responder.
2. Você já leu o livro Uma professora muito maluquinha, de Ziraldo?
O adulto pega o lápis e começa a escrever enquanto pergunta:
Esse livro, publicado pela Editora Melhoramentos, além de ser uma
- Você quer que eu escreva alguma coisa para você?
leitura prazerosa, oferece um rico material de análise.
- Não.
Após tê-lo lido, procure caracterizar as concepções de escrita e de
- Você quer saber o que eu estou escrevendo?
alfabetização que orientavam o trabalho pedagógico da "professora
- Quero.
- Eu estou escrevendo a nossa conversa. m aluquinha".
- O quê?
- Eu estou escrevendo o que a gente está falando. Você quer Trabalho de campo
que eu leia?
- Quero. Vamos dividir a classe em quatro grupos.
O adultofaz, então, a leitura do diálogo. A criança, ainda sur­ O grupo 1 deve realizar entrevistas com professores alfabetizado-
presa, pergunta: res, procurando saber deles:
- Como é que sai igualzinho, tia? • De que mais gostam no seu trabalho?
O adulto faz uma nova leitura, acompanhando com o dedo o
que está escrito, e vai mostrando os travessões (quando cada um • Quais as dificuldades que encontram?
delesfala) e os pontos de interrogação (quando cada um deles per­ • Como alfabetizam as crianças e que materiais utilizam nesse
gunta). Outras crianças se chegam. A cri.inça pega a folha, entu­ trabalho?
siasmada, e vai "lendo ", mostrando e explicando para os colegas • O que pensam da correção da escrita da criança e como a realizam?
o que está escrito na folha.
(Situação extraída do livro de Ana Luiza Smolka, A criança na O grupo 2 deve realizar entrevistas com pais de crianças que estão
fase inicial da escrita: a alfabe1ização como processo discursivo. sendo alfabetizadas, procurando saber deles:
São Paulo: Cortez/Ed. da Unicamp, 1 988.)

O que esperam da escola em relação aos filhos?


Situação n? 3

• O que aprovam e o que desaprovam no trabalho dos professores de


Era também a classe de primeira série mais fraca da escola. seus filhos?
Nenhuma das trinta crianças cursou a pré-escola. A professora, • Como acompanham a aprendizagem dos filhos?
encorajada pela coordenação da escola, busca alternativas de tra­
balho com as crianças. • O que pensam do desempenho deles?
A situação: as crianças estavam desenhando. Uma das crian­
ças desenha um revólver e quer escrever "o revólver atira ". Pede O grupo 3 deve realizar entrevistas com crianças em fase de alfabe­
ajuda à professora, que vai soletrando e apontando cada letra no tização, procurando saber delas:
alfabeto exposto numa das paredes da sala de aula. • O que acham da escola?
A criança continua:
- Quero escrever: "o revólver mata o moço ". • Do que gostam e do que não gostam no trabalho escolar?
• O que pensam sobre aprender a ler e a escrever na escola? Vamos registrar as convergências e divergências constatadas e buscar
nas leituras e no estudo que fizemos sobre a relação da criança com a escrita
• Já sabiam ler e escrever antes de entrar na escola? O que sabiam? elementos que nos ajudem a explicar e a problematizar esses dados.
• O que já aprenderam na escola?
• O que gostariam de aprender na escola? Analisando sua própria experiência

• Quais são as facilidades e as dificuldades que têm com a escrita? Prepare uma aula de regência com a ajuda de suas professoras de
Prática de Ensino e de Metodologia da Língua Portuguesa e desenvol­
O grupo 4 deve realizar observações em classes de alfabetização, va-a numa classe da 1 � série.
procurando apreender as condições e formas de interação vivenciadas Registre tudo o que você planejou e trabalhou com as crianças.
no trabalho de escrita e leitura com as crianças. Descreva o material que utilizou e como o empregou em sua aula. Re­
Nesse caso é importante observar: gistre também as dificuldades que você sentiu como professora.
• os tipos de materiais com que as crianças trabalham; Anote os modos como as crianças participaram em sua aula: as
reações, perguntas e comentários feitos por elas, as dificuldades que
como elas exploram, manipulam e organizam esses materiais;
elas sentiram, as solicitações que dirigiram a você.

• o acesso que as crianças têm (ou não) a material escrito ou informa­ Peça à professora da classe em que você desenvolveu a regência
tivo sobre a escrita (por exemplo, o alfabeto) dentro da sala de aula; que lhe permita ficar com a produção escrita das crianças realizada em
• os tipos de atividades propostas às crianças e como elas partici­ sua aula.
pam dessas atividades; Em seguida analise sua proposta de trabalho e a produção das
• com que finalidade se solicita à criança que escreva e como ela escreve crianças, seguindo os tópicos de observação destacados no exercício 2
(sozinha, em grupos, com o auxílio do professor, faz cópias, ditado, etc.); indicado para o grupo 4.
• o que acriançaescreve e paraquem escreve (para si, para os outros, etc.); Em relação à produção das crianças, procure prestar atenção não só
ao modo como escrevem, mas também ao conteúdo de sua escrita. O
a que tipo de material de leitura a criança tem acesso (cartilha,
que você corrigiria nesses trabalhos e como o faria? Como você os de­

livros escolares, livros de história, poesias, etc.)


volveria às crianças? Que trabalho desenvolveria com elas a partir dos
• quem lê para ela, o que lê e em que condições; dados obtidos nessa correção?
• em que condições ela mesma lê (o que, como e para quem); Finalmente, tente olhar para sua experiência tendo como ponto de
.
• em que intensidade o desenho e a brincadeira são explorados em partida as perguntas relacionadas no exercício l . Elabore um relato des­
sala de aula, e como a criança os explora; sa experiência respondendo a duas questões: O que você aprendeu com
• como a leitura e a escrita da criança são corrigidas e que reações as crianças? O que as crianças aprenderam com você?
essa correção desperta (indiferença, desânimo, temor, alegria, Depois de todo esse trabalho, que tal montar uma mostra da produ­
vontade de retomar o trabalho, questionamento, etc.). ção das crianças e das futuras professoras? Que tal reunir os relatos num
pequeno volume para que eles possam ser lidos pelos colegas e pelos
Organizando e analisando os dados professores de outras disciplinas?

Cada grupo deve reunir os dados obtidos e fazer a leitura atenta dos
registros. E, a seguir, analisar os dados, procurando identificar o que há Sugestão de leituras
em comum e de diferente entre eles. Depois, agrupar, definir os critérios
desses agrupamentos e elaborar uma síntese deles para a apresentação CAGLIARI, L. C. A ortografia na escola e na vida. ln: Projeto !pê - Isto
aos outros grupos. se aprende com o Ciclo Básico. São Paulo: SE/CENP, 1 986.
FREIRE, M. A paixão de conhecer o mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
Discutindo os dados 1 983.
LEAL, A. Fala, Maria Favela. São Paulo: Ática, 1 987.
Reunidos os quatro grupos, vamos procurar cruzar o conjunto de SMOLKA, A. L. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como
dados obtidos, tentando ver nas respostas das crianças, dos professores, processo discursivo. São Paulo: Cortez, 1 988.
dos pais e no trabalho de sala de aula os pontos em que há convergên­ 225
cias e aqueles em que há divergências.
DIENES-GOLDING. Primeiros passos da matemática. Herder, 1972.
DwoRECKI, S. Criança: evitando a perda da capacidade de figurar. ln:
Bibliografia ___ . O jogo e a construção do conhecimento na pré-escola. São
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ta, pelas sugestões, pela oportunidade de escrever este livro.
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Novas contribuições da Psicologia aos processos de ensino e·
prática, inspirou várias passagens deste texto.
aprendizagem. São Paulo: Cortez, 1 992. À Si/vinha, pelos episódios e por tudo o que nos ensinou,
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considerações sobre a constituição dos sujeitos leitores. ln: SILVA, E. com seu trabalho, sobre o desenhar da criança.
T., ZILBERMAN, R. (orgs.) Porto Alegre: Mercado Aberto. Ao Jefferson, pela sugestão - inspirada - do título.
___ , LAPLANE, A. F. de. O trabalho em sala de aula: teorias para quê? A todas as professoras que compartilharam conosco as
Cadernos ESE, Faculdade de Educação da Universidade Federal belezas, os sobressaltos e as surpresas de seu fazer cotidiano
Fluminense, n? 1 , novembro, 1 993. na sala de aula.
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apontamentos para discussão. Cadernos de Desenvolvimento Infantil. de seu trabalho apaixonado e comprometido com as crianças.
Curitiba, Centro Regional de Desenvolvimento Infantil da Pastoral Às alunas do curso de Magistério e de Pedagogia, com
da Criança. CNBB, n? 1 , 1 994. quem trabalhamos - ensinando e aprendendo - e que soube­
SOARES, Magda B. Linguagem e escola - Uma perspectiva social. São ram ver e compartilhar alguns dos mais belos episódios que
Paulo: Ática, 1986. relatamos neste texto.
VYGOTSKY, L. S . Les bases epistémologiques de la psychologie. ln: Às mães que, encantadas, nos contaram histórias sobre
BRONCKART, J. P. (org.). Vygotsky Aujourd'hui. Neuchatel, Paris: seus filhos.
Delachaux et Niestlé, 1 985 . . Ao Wilson e à Vitória, da Atual Editora, pela forma como
___ . A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1 984. acolheram este trabalho, pela possibilidade de diálogo, pelas
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Aujourd'hui. Neuchatel, Paris: Delachaux et Niestlé, 1 985. À Beth e ao Bernardo, amigos queridos, pela força, pelo
___ . lmaginación y el arte en la infancia. México: Hispánicas, 1 987. apoio, pela torcida. Pelo modo sempre especial de se coloca­
___ . Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1 987. rem ao nosso lado.
___ , LURIA,,LEONTIEV. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. Às nossas famílias, pela solidariedade e pela paciência
São Paulo: Icone/Edusp, 1988.
durante o trabalho de elaboração deste livro.
WEisz, T. Como se aprende a ler ou prontidão, um problema mal colocado. Às crianças que, falando, brincando, desenhando, escre­
ln: Revendo a proposta de alfabetização. Projeto /pê. São Paulo:
vendo e sendo, nos brindaram com osfragmentos do cotidiano
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