Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Psicologia e Trabalho Pedagógico, Nazaré
Psicologia e Trabalho Pedagógico, Nazaré
• 1
-·· ROSELI FONTANA
••1:- NAZARÉ CRUZ
'H(OlOGIA �
apresentam temas centrais do desenvolvimento e da aprendiza
gem da criança, enfocando especialmente a brincadeira, o dese
nho e a escrita. Privilegiando as concepções de Piaget e Vygotsky,
e confrontando-as, o livro aborda tanto fundamentos teóricos
lRAIAllO
como situações concretas e cotidianas do trabalho com crianças
na sua fase inicial da vida escolar.
'
ISBN 978-85-7056-902-8
'�DAGOGl(O
@ATUA.L
EDITORA
1 .. ,,. '69028
�---
@ATUA.L
EDITORA
© Roseli A. C. Fontana
Maria Nazaré da Cruz
Apresentação
Copyright desta edição:
SARAIVA S.A. Livreiros Editores, São Paulo, 2007.
Av. Marquês de São Vicente, 1697 -Barra Funda
01139-904 -São Paulo-SP
Fone: (Oxxl 1) 3613-3000
Fax: (Oxx11) 3611-3308 -Fax vendas: (Oxxl 1) 3611-3268
www.editorasaraiva.com.br
Todos os direitos reservados.
Catalogação na fonte do Todos os momentos do dia de todos os dias da vida eram para aprender e en
Departamento Nacional do Livro sinar e de novo ensinar e aprender, vivendo e brincando, trabalhando e sendo...
F679p
(Carlos Rodrigues Brandão, Lutar com a palavra.)
Fontana. Roseli
Psicologia e trabalho pedagógico / Roseli Fontana. Maria Nazaré
da Cruz. -São Paulo : Atual, 1997.
240p. cm. -(Formação do educador).
ISBN 978-85-7056-902-8
Suplementado por manual do professor.
Inclui bibliografia.
Ela está na voz da mãe que acalanta e na mão do avô que ajuda a criança a
Desenvolvimento de produto segurar a colher e levá-la à boca. Está na birra e na palmada, no traço marcado na
Gerente: Wilson Roberto Gambeta
Editora: Vitória Rodrigues e Silva
areia ou no papel, no cabo de vassoura que se transforma em cavalinho.
Assessora editorial: Oscarina Camillo Não é coisa só da escola... Ela se faz também na escola.
Editor de texto: Noé G. Ribeiro Está na amarelinha riscada no pátio, na letra escrita na lousa, na dobradura, no
Preparação de texto: Célia Tavares
Editora de arte: Thafs de BruYn Ferraz
problema de matemática, no livro de histórias, nas conversas do recreio.
Pesquisa iconográfica: Cristina Akisino E assim é porque a prática do fazer-se homem dá-se pelo gesto, pelo jogo, pela
Projeto gráfico: Irineu Sanches palavra, pela mediação de outros homens, entre risos e choros, silêncios, cumplicida
Projeto de capa: Glair Alonso Arruda
Imagem de capa: Criança brincando, 1876, Thomas Eakins
des, desigualdades. A educação é expressão do humano.
Como vida que vem sendo tecida e transformada de geração em geração, a edu
Produção editorial
cação é o lugar da psicologia - prática humana de teorização sobre o que somos.
Gerente:
Coordenador:
Cláudio Espósito Godoy
Milton M. Ishino
Somos nós a matéria sobre a qual a educação e a psicologia se debruçam. A primeira
Assistente: Márcia Regina Novaes no esforço do fazer, do "lavrar e plantar no campo do nosso próprio corpo", como diz
Revisão: Maria Luiza Xavier Souto (coord.) Carlos Rodrigues Brandão. A segunda, na busca do entender e do explicar esse fazer
Vera Lúcia P. Della Rosa
Editor de arte: Celson Scotton
se humano.
Chefe de arte: lrineu Sanches Orientadas por essas concepções, encaramos o desafio de escrever este livro.
Diagramação: Renata Susana Rechberger Um livro carregado do desejo de manter vivos e próximos os sons e o movimento das
Sílvia Regina E. Almeida (coord.)/Grace Alves
Editoração eletrônica:
Digitação: Rosangela de Oliveira Vargas/Wagner 1. Pin
atividades e das relações entre as pessoas, para que, assim sendo, pudesse nos ajudar,
Produção gráfica
como professores em atuação e em formação, a estudar a criança, descobrindo a
Gerente: Antonio Cabello Q. Filho
beleza dos seus modos de dizer e de compreender o mundo.
Coordenador: José Rogerio L. de Simone Um livro em que as teorias não ficassem desgarradas dos fazeres e saberes coti
Filmes (D.T.P.): Binhos dianos e em que os psicólogos e seu trabalho não se convertessem num amontoado
maçante de nomes e idéias que a gente não sabe bem por que teve de aprender.
Visite nosso site: www.atualeditora.com.br
Para isso, procuramos partir sempre das práticas educativas, tal qual se desen
Central de atendimento ao professor: (Oxxl l) 3613-3030
volvem na escola, e de sua problematização: Como se processam? Que concepções ·
pedagógico em seus limites e possibilidades. Introdução .... ... .... ..... ....... ..... .. ................ .......... ..... .... .... ......................, ................... 2
Na primeira unidade, a relação entre as práticas pedagógicas e as teorias da Capítulo 1 - A psicologia na escola .................................... ...... ............ .............. 3
psicologia é tematizada a partir das quatro vertentes teórico-metodológicas que mar Escola é lugar de aprender. E de ensinar ...... .................. ......................... ..... ............ 3
cam as discussões sobre a especificidade do humano no nosso século: o inatismo A psicologia e a educação escolar ............................... ...................... .. ..................... 4
maturacionismo, o comportamentalismo, o construtivismo piagetiano e a abordagem O que é ensinar?Como a criança aprende? .. ...................... ....... ..... ............. ... .......... 5
histórico-cultural. O estudo científico da criança: um pouco de história ......................... ...................... 6
Nas três unidades seguintes, privilegiamos como foco de discussão e de análise Sugestão de atividades ..... .. .... .................. .. ... ................................ .... ......... ... ........... . 9
o desenvolvimento da atividade da criança, tal qual acontece na escola e fora dela. .
Sugestão de leituras .................... . ...... .......... ... .. ... ......... .. .. ... .............. .......... ... .. ....... 10
Nessas unidades, nossos interlocutores no campo da psicologia são Piaget e Capítulo 2 -A abordagem inatista-maturacionista .......... ..... ..... ........ ............... 11
Vygotsky, em cujas explicações nos baseamos para examinar as relações da criança A questão das diferenças individuais e a hereditariedade da
com a palavra, com o jogo, com o desenho e com a escrita. inteligência: "filho de peixe, peixinho é ?" . ..... ............. .................. ...... ..... ... .... ......... 12
Ao final de cada capítulo, você encontrará sugestões de atividades e de leituras Padrões de desenvolvimento: o que é próprio de cada idade?....... ... .. ............ ........ .. 14
variadas, que poderão auxiliá-lo a retomar o estudo do texto e a realizar pequenos Pesquisando a criança: a construção dos testes de inteligência .......... ..... ....... ..... ..... 16
trabalhos de iniciação à pesquisa, constituídos por observações, levantamento de Pesquis�ndo a criança: a elabora�ã? das escalas de desenvolvimento ............... ..... . 17
dados e análise das práticas educativas e da produção cultural relativa ao desenvolvi A questao dos comportamentos tip1cos ....................................................... ............. 18
mento infantil. As relações entre desenvolvimento e aprendizagem e as influências do
inatismo-maturacionismo na escola ............ .................... ............ ...... .... ... ............. .... 20
Se conseguimos estar próximos de vencer o desafio a que nos propusemos, Sugestão de atividades ........ ....... ................. .................. ........... ................ ... ........... .. . 22
você, leitor, é quem nos dirá... Sugestão de leituras .......... ........ .. ................... .... ........ . . ..... . ............ ............. .............. 23
g �:���� ��������������.::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: 1�
O período das operações concretas ...................... ............................................... 51
O período das operações formais .................. ...... ........ ...... ...................... ............ 52
Pesquisando a criança: o método clínico ....................................... ... ...... .. ................ 53 Sugestão de atividades .............................................................................................. 104
Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a influência da abordagem Sugestão de leituras ............................. ................. .............. ........ .......... .................... 106
piagetiana na escola .................................................................................................. 54
Sugestão de atividades .. ............................................ ........................... ............ ......... 55
Capítulo 9 - O papel da escola .
. ..... ..... ... .. ........ ................... .... ..... .. ... ..... ......... .. 107
. .
Sugestão de leituras .................................................................................................. 56
Filme recomendado ............................................................................ ................. 56 Escola é lugar de aprender a aprender, lugar de aprender pensando............... .......... 109
Escola é lugar de compartilhar conhecimentos........... ......... ............... ...................... 110
Sugestão de atividades..................... ...... ........................................ .................. ..... .... 116
Capítulo 5 -A abordagem histórico-cultural .................... ................................. 57
A transformação do biológico em histórico-cultural ................................................ 58
O uso de instrumentos............................................................... .......................... 58
Unidade 3 -A brincadeira e o desenho da criança
O uso de signos ................................................................................................... 59
O papel do outro e a internalização . ......... ........................................................... 60
Introdução ............................................................................................................... 118
Pesquisando a criança: o papel do signo no desenvolvimento ................................. 61
Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a influência da Capítulo 10 - O papel da brincadeira no desenvolvimento da criança............ 119
abordagem histórico-cultural na escola .................................................................... 63 Por que as crianças brincam? ........ ... ............ ........................ .................................... . 120
O papel da escolarização ............................................................................... ........... 65 A assimilação do real ao eu: a concepção de Piaget ........ ... ............... ................ . 120
Sugestão de atividades ................... ..... .................................................... ....... ... .... .. .. 67 As relações sociais com o mundo adulto: a concepção de Vygotsky ········'········· 121
Sugestão de leituras .................................................................................................. 68 Brincando de estação de trem .................................................... ............................... 123
Filmes recomendados ............................................................ .. ..... ..... .................. 68 A�rende�do ,ª olhar
.
��
rincadeira ................................................. ..... ...................... . 124
Brmcade1ra e coisa sena ....... ...... ... .. .... ......... .................... .. ......... .. ...................... ..... 125
Capítulo 6 - As ab�r�agens so�re desenvolvimento e aprendizagem Objetos e significados na brincadeira ............................... ................. ...................... . 126
. O papel da brincadeira no desenvolvimento da criança............................................ 127
e a pratica pedagog1ca .................................................................... 69
A brincadeira e a função simbólica .................................. ............... .......... .......... 127
Os diferentes modos de olhar ................................................................... ................ 70
Cada uma das abordagens explica um pouco?....... ................................................... 71 A criação de zonas de desenvolvimento proximal .............................................. 128
A atividade da criança como foco de análise ............................................................ 72 Sugestão de atividades .... ......................................................................................... . 130
Sugestão de atividades ........................... ,.................................................................. 73 Sugestão de leituras .... ....................... ...... ........................................ ........................ . 131
Sugestão de leitura .................................................................................................... 74
Filme recomendado ................................................................ ............................. 74 Capítulo 11 -,-A brincadeira na vida e na escola ............................................... . 132
A perspectiva de Piaget sobre o desenvolvimento da brincadeira ............................ 132
A perspectiva dé Vygotsky sobre o desenvolvimento da brincadeira ....................... 134
Unidade 2 -A elaboração conceituai Brincando, aprendendo e sendo ................................................................................ 136
Brincando na escola ............................................................................................ 137
.
Introdução ...... ........................................................................................................ 76
O lugar da brincadeira na escola ................... ...................................................... 139
-A relação entre pensamento e linguagem......................................
���� �:�� �::i5!�� �.�.����.:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::·::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
Capítulo 7 77 n 141
O que a psicologia nos diz .................. ................ .. ................... .. ............................... 80 Sug i 143
!
A l nguagem como com�orta�ent? ·:·····: ···························································· 80 Sugestão de leitura ............................................ ........................................................ 143
A lmguagem como funçao da mtehgencia ......................................... ...... .. .... ..... 81
A linguagem como atividade simbólica constitutiva .......................................... 83 Capítulo 12 - O desenho infantil ......................................................................... 144
Sugestão de atividades .............................................................................................. 87 Quando o traço no papel recebe um nome................................................................ 145
Sugestão de leituras .... .............................................................................................. 88 A criança desenha o que sabe e não o que vê . .................... ......... .............. .. ......... .... 147
O realismo do desenho infantil: a perspectiva de Luquet ......................................... 148
Capítulo 8 - A criança e a palavra .. ...... ....... .............................. ............. ............ 89 A criança é realista na intenção: a perspectiva de Piaget ..... .. ................... ............. ... 150
Piaget e o papel da linguagem no desenvolvimento do pensamento O realismo visual é aprendido: a perspectiva de Vygotsky ................ ....................... 151
lógico: do símbolo individual aos conceitos ............................................................. 89 Sugestão de atividades ................. ..... ...�..... ........ ....................................................... 153
O desenv?lvimento da funçã� simbólica ............................................................ 90 Sugestão de leituras ..... .... ........................ ...... .. ..... .................................................... 154
.
Os pnme1ros esquemas verbais ............. ..... .... .................... ...... ........................... 90
O desenvolvimento da elaboração conceituai das palavras ........................... .. ... 94 Capítulo 13 - Desenhando na escola . .................................................................. 155
Vygotsky e a elaboração conceituai - o desenvolvimento do significado da
Analisando o processo de elaboração do desenho ....................... ... ...................... .... 157
palavra na criança ........................................................................ ............................. 95
E a criatividade, onde fica?....... .................... ............................................................ 158
As primeiras palavras ................... .. ..................................................................... 96
Desenhando e aprendendo .. .......... ........................................ .................................... 159
A elaboração das funções analítica e generalizadora da palavra......................... 97
A escola e o desenho....................... .................................................................... 161
O pensamento por complexos e os conceitos potenciais..................................... 99
"O lápis é o melhor dos olhos... " ..................................................................: ..... 162
O papel do outro no desenvolvimento da elaboração conceitua! ........................ 101
Sugestão de atividades .... .. .. ........... . ..... .. ............ .... .... ........ .. ... ..... ....... .. ..... .... .... ...... . 165
Sugestão de leituras ...... .. ......... ...... .. ...... ....... ... ......... ....... .. ........ .. .... . .... .... . .......... .... . 166
A psicologia na escola
A escola tem uma longa história. Em cada período histórico ela uma infinidade de res- u
assume novas características quanto a funções, funcionamento, idéias e postas pode aparecer: a
concepções que embasam suas práticas. As transformações dessas ca gente aprende fazendo,
racterísticas sempre se relacionaram a mudanças da sociedade: mudan seguindo uma receita,
ças econômicas, políticas, sociais e ideológicas. vendo outra pessoa fa
O que acontece na escola é, assim, determinado por uma diversida zer, seguindo as orienta
de de fatores, o que faz com que a educação escolar seja objeto do inte ções de alguém. Quan
resse e de pesquisas de várias ciências: a psicologia, a economia, a so do o primeiro bolo não
ciologia, a história, entre outras. dá certo, podemos ainda
Cada uma delas, de acordo com suas especificidades, produz análi dizer que "errando é que
ses de aspectos determinados da educação escolar, sem que nenhuma se aprende".
consiga (ou mesmo pretenda) isoladamente dar conta da complexidade E ensinar, o que é? Como se ensina? Novamente uma série de res
A escola é um
da prática pedagógica. postas acaba emergindo: ensinar é transmitir conhecimentos, técnicas, espaça esse11cial
valores, é deixar o outro fazer, orientando, explicando, "dando a recei me111e de
ta", fazendo junto... relações sociais
Quando se trata de criança, as idéias que temos sobre aprendiza de trocas.
A psicologia e a educação escolar gem quase sempre se relacionam ao seu desenvolvimento, já que habi
tualmente admitimos que aprendizagem e desenvolvimento são proces
A psicologia é apenas uma entre as ciências que concorrem para a sos, de alguma forma, inter-relacionados.
reflexão sobre a educação escolar. Sendo uma das ciências que estudam Quando dizemos, por exemplo, que, para ensinar à criança uma
o homem, a psicologia tem se ocupado de uma grande variedade de coisa determinada, é preciso esperar que ela amadureça ou atinja uma
temas: a afetividade, o desenvolvimento da criança, a velhice, a apren certa idade, estamos subordinando a aprendizagem ao desenvolvimen
dizagem, as relações sociais e institucionais, a deficiência mental, as to. Ou seja, admitimos que para aprender é necessário determinado ní
relações de trabalho, a saúde mental, entre outros. vel de desenvolvimento. Por outro lado, sempre ouvimos dizer que o
Muitas das pesquisas e teorias psicológicas que têm servido à prá ensino deve promover o desenvolvimento da criança.
tica pedagógica não foram elaboradas com esse objetivo. Assim, as Embora a gente conheça, em decorrência de nossa própria expe
questões e interesses dos psicólogos são às vezes mais abrangentes e às riência, muita coisa sobre o ensinar, sobre o aprender e suas relações
vezes mais restritos do que aqueles colocados pelos agentes do proces com o desenvolvimento, quando se trata de desenvolver uma ação
so educacional. Esses dois âmbitos, o psicológico e o pedagógico, rara educativa intencional, de escolher os métodos, um grande número de 5
4 questões acaba aparecendo.
mente coincidem; portanto, não podem ser confundidos.
Será que, se o professor explicar direitinho, a criança aprende? tempo todo. Participava das atividades do adulto, compartilhando com
Como explicar as coisas para uma criança? E se a deixarmos agir, mon ele o trabalho nos campos ou nos mercados, os jogos e as festas.
tar quebra-cabeça, brincar com pedrinhas, estará aprendendo? O que ela O avanço das descobertas científicas tomou possível o prolonga
estará aprendendo? E, se a criança não aprende, será sinal de algum mento da vida e a diminuição da mortalidade infantil. A partir do século
distúrbio? Com quantos anos uma criança pode ser ensinada a ler? XVII, gradativamente passou-se a admitir a idéia de que a criança era
Quais são os pré-requisitos para aprender a adição? diferente do adulto não apenas fisicamente. Começou-se então a con
É sobre esse tipo de questões que a psicologia pode ajudar a refletir, siderá-la como não preparada para a vida, cabendo aos pais, além da
uma vez que, no decorrer de sua história, ela tem enfocado como obje garantia de sua sobrevivência, a responsabilidade por sua formação, en
tos de estudo o desenvolvimento humano, os processos de aprendiza tendida principalmente como espiritual e moral. Nessa época foi que se
gem e a própria criança, além de ter produzido conhecimentos que cer iniciou o costume de enviar crianças às escolas, as quais se ocupavam
tamente contribuem para a compreensão do processo de apropriação/ basicamente com o ensino da religião e da moral e de algumas habilida
elaboração do conhecimento. des, como a leitura e a aritmética.
Se antes a socialização da criança acontecia em meio à convivência
direta com os adultos - ajudando os mais velhos ela aprendia valores,
O estudo científico da criança: um pouco de história costumes e habilidades -, a partir do século XVII, ela foi afastada do con
vívio constante com eles e sua formação passou a ser responsabilidade da
Representaçõ es
A preocupação com o estudo da criança é bastante recente na histó família e da escola. Repare, na ilustração a seguir, um quadro do século
de crianças na
Roma a 11 tiga ria da humanidade. Aliás, a própria idéia de criança, tal como a conce XVII, como a representação da criança se transformou: seu corpo, suas
(século li). bemos hoje (como um ser que tem necessidades, interesses, motivos e proporções, seus movimentos
modos de pensar específicos), não existia antes do século XVII. ganharam contornos que per
Até então, as crianças eram consideradas adultos em mi mitem diferenciá-la claramente
dos adultos (compare com a re
:" \�,(1--��.,J?r/:!'1f1- niatura. Esse modo de conceber a criança pode ser percebido
nas suas representações em pinturas. Nas ilustrações desta pá presentação do século II, a do
gina, por exemplo, vê-se a representação de um jogo de bolas menino 'aprendendo a andar).
entre meninos e de um menino aprendendo a andar em um Repare também como ela é co
andador, feitas em uma tumba subterrânea, em Roma, no sécu locada como centro do interes
lo II. Repare como os meninos são representados: as propor se, da atenção e dos cuidados
ções e formas do corpo se assemelham às de uma pessoa adul dos adultos: seus primeiros
ta, de tal modo que passos são acompanhados a
não encontramos ne tentamente pela mãe, pela ama
nhum traço que indi e pela avó.
que qualquer especifi O historiador Phillippe
cidade da criança em Aries cita um texto de 1602, que
relação ao adulto. fala da preocupação dos pais
A convivência com a educação das crianças:
com um índice de Os pais que se preocupam com a educação de suas crianças O primeiro passo
mortalidade infantil merecem mais respeito do que aqueles que se contentam em p6-las da infância,
extremamente alto fa no mundo. Eles lhes dão não apenas a vida, mas uma. vida boa e quadro de
zia com que a morte santa. Por esse motivo, esses pais têm razão em enviar seus filhos, M a rguerite
das crianças fosse desde a mais tenra idade, ao mercado da verdadeira sabedoria [o Gérard.
considerada natural e colégio], onde eles se tomarão os artífices de sua própria fortuna...
que a duração da in
fância fosse limitada a (Aries, 198 1 : 277.J
um período muito cur- Mas a atuação da escola era ainda bastante limitada, tanto no que se
to na vida dos indivíduos. Ela correspondia ao período em que, para so refere aos objetivos que ela assumia quanto em relação aos métodos que
breviver, a criança necessitava de cuidados físicos. Quando sobrevivia, utilizava e ao pequeno número de crianças que atendia.
6.
com 6 ou 7 anos, após o desmame tardio, a criança "tomava-se a compa A retirada da criança do mundo adulto teve repercussões no modo de
nheira natural do adulto" (Aries, 1981 ), com quem passava a conviver o pensar sobre elas. No século XVIII, os filósofos começaram a apontar a
existência de um mundo próprio e autônomo da criança. Rousseau,
Pestalozzi e outros consideraram que a mente infantil opera diferentemente
da dos adultos. Isso possibilitou o estudo científico da criança e seu desen
Sugestão de atividades
volvimento em suas formas próprias de organização (Charlot, 1979).
Mas foi apenas no começo do século XX que se iniciou efetiva
mente o estudo científico da criança e do comportamento infantil. Des Trabalho de campo
de então vem sendo desenvolvida uma série de pesquisas sobre diferen
tes aspectos da vida psíquica da criança. Importantes sistemas teóricos Escolha uma classe da l� à 4� série para observar durante um pe
foram construídos e têm servido de base às reflexões sobre seu desen ríodo de aula. Anote, em folhas de papel, a série observada, a data, o
volvimento, sua afetividade e sua educação. horário do início e ·do término da observação, o número de alunos pre
Além disso, diversas abordagens sobre os processos de aprendizagem sentes à aula, como está organizada a sala, que móveis e outros objetos
e desenvolvimento foram elaboradas, a partirde questões e interesses espe há nela (por exemplo, se as carteiras estão dispostas em círculos, grupos
cíficos e com base em diferentes métodos de investigação. Enfocando te ou fileiras; a posição da mesa do professor; se há armários, prateleiras,
mas como a inteligência e as diferenças individuais, a maturação, a aprendi
zagem, a construção do conhecimento e o desenvolvimento da criança, al murais, etc.).
gumas dessas abordagens têm exercido considerável influência nos meios Em seguida, vá anotando bem rapidamente tudo o que se passa na
educacionais e levado a reflexões sobre as metodologias e conteúdos do sala de aula, prestando atenção aos seguintes aspectos:
ensino escolar. Entre elas destacam-se a inatista-maturacionista, o
comportamentalismo, a piagetiana e a histórico-cultural. • os conteúdos trabalhados;
É sobre essas abordagens que trataremos nos próximos capítulos, • os recursos utilizados pela professora;
destacando os autores mais representativos, os conceitos fundamentais
ligados a cada uma e as relações entre elas. Apresentaremos também • as atividades realizadas pelas crianças;
algumas das pesquisas que as embasaram, suas concepções quanto à • a movimentação das crianças e da professora;
relação desenvolvimento-aprendizagem e sua influência na escola. • acontecimentos "não previstos":
a) interrupções da aula;
b) situações de briga, choro, doença, falta de material;
O início da psicologia da criança 1zo Brasil
c) situações em que a professora perdeu a paciência;
No Brasil, as principais pesquisas psicológicas sobre a criança d) assuntos sobre os quais a professora e os alunos falaram que vo
datam do início do século. Foram educadores, geralmente vincula
dos às Escolas Nonnais, que implantaram a psicologia do desenvol
cê considera não pertinentes aos conteúdos trabalhados;
vimento infantil, realizando pesquisas e experimentos com crianças • reação das crianças à sua presença.
em idade escolar.
Alguns fatos que marcaram o início da psicologia da criança no Depois, organize o seu registro, agrupando as situações semelhan
Brasil foram: tes, de acordo com os aspectos sugeridos acima. Lembre-se de redigir
1) O estabelecimento, em 1914, de um laboratório de pedagogia seus registros de maneira clara, para que possam ser compreendidos
experimental junto à Escola Nonnal de São Paulo, onde crianças eram facilmente por outras pessoas.
submetidas a exames destinados a medir suas reações psicofísicas Comente, por escrito, as situações observadas, considerando a
(como, por exemplo, discriminações visuais, auditivas, etc). questão da complexidade do ensinar e do aprender.
2) A criação, em 1916, de um laboratório de psicologia pedagó
gica, por uma academia de pedagogos do Rio de Janeiro. Esse labo
ratório foi planejado por Alfred Binet (ver boxe no próximo tópico) Problematizando a observação
e, através dele, introduziram-se os testes psicológicos no Brasil, es
pecialmente aqueles destinados a medir e avaliar as capacidades e
Destaque um comportamento ou um episódio observado ao desen
habilidades infantis. volver a atividade acima que, a seu ver, a psicologia poderia ajudar a
3) Os estudos sobre a maturidade para a leitura em escolares, analisar. Justifique sua escolha. Enumere as perguntas que você faria,
pensando em encontrar respostas na psicologia. 9
8 realizados por Lourenço Filho na Escola Normal de Piracicaba/SP.
Aprofundando as informações do texto
Sugestão de leituras
ARIES, P. História social dafamília e da criança. Rio de Janeiro: Zahar, Todos nós já ouvimos ou dissemos coisas como: "Ele ainda não
1 978. tem maturidade para aprender a ler"; "Meu filho tem uma aptidão incrí
GÉLIS, J. A individualização da criança. ln: ARIEs, P., CHARTIER, R. Histó vel para a matemática"; "A Marina é tão inteligente! Puxou ao pai!".
ria da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. v. 3 . Maturidade, aptidão, inteligência são temas tradicionalmente abor
KoRCZAK, J. Quando eu voltar a ser criança. São Paulo: Summus. dados pela psicologia numa perspectiva que atribui um papel central a
MIRANDA, M. G. O processo de socialização da criança: a evolução da fatores biológicos no desenvolvimento da criança. Essa perspectiva,
condição social da criança ln: LANE, S. T. M., Cooo, W. Psicologia que estamos denominando inatista-maturacionista, parte do princípio
social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 1984. de que fatores hereditários ou de maturação são mais importantes para o
desenvolvimento da criança e para a determinação de suas capacidades
do que os fatores relacionados à aprendizagem e à experiência.
Mas o que são esses fatores hereditários ou de maturação?
A hereditariedade pode ser entendida como um conjunto de quali
dades ou características que estão fixadas na criança, já ao nascimento.
Ou seja, quando falamos em hereditariedade estamos nos referindo à
herança genética individual que a criança recebe de seus pais. Todos
sabemos que traços como, por exemplo, a cor dos olhos e do cabelo, o
tipo sanguíneo, o formato da orelha e da boca já estão determinados
geneticamente quando nascemos.
A idéia de maturação refere-se a um padrão de mudanças comum a
todos os membros de determinada espécie, que se verifica durante a
vida de cada indivíduo. O crescimento do feto dentro do útero da mãe,
por exemplo, segue um padrão de mudanças biologicamente determi
nado. As transformações do corpo, o crescimento dos órgãos, etc. acon
tecem de acordo com uma seqüência predeterminada, que, a princípio,
não dependeria de fatores externos.
Você pode estar se perguntando o que essa história de cor dos olhos
ou do desenvolvimento do feto tem a ver com uma abordagem psicoló
gica da maturidade, das aptidões e da inteligência.
É que, na psicologia, teóricos da perspectiva inatista-maturacio- ·
nista supõem que, do mesmo modo que a cor dos olhos, aptidões indivi- 11
duais e inteligência são características herdadas dos pais e, portanto, já ensinada. Do mesmo modo, crianças brancas e negras apresentam dife
estão determinadas biologicamente quando a criança nasce. Ou então renças no desempenho de determinadas tarefas em razão da herança ge
que, à maneira do crescimento das partes do corpo, o desenvolvimento nética de suas raças, e não de diferenças culturais ou de oportunidades.
do comportamento e das habilidades da criança é governado por um Foi nessa linha da preocupação com as diferenças individuais que
processo de maturação biológica, independentemente da aprendizagem se desenvolveram os primeiros estudos psicológicos com o objetivo de
e da experiência. avaliar a inteligência. Um dos pioneiros desses estudos, o pesquisador
São essas concepções que estudaremos no decorrer deste capítulo. francês Alfred Binet, interessou-se especialmente pela mensuração da
inteligência através de testes.
Por que as pessoas são diferentes umas das outras? Por que algu Alfred Binet nasceu em 1857 e viveu até 1911. Formou-se em
mas crianças parecem mais inclinadas para atividades artísticas, en Medicina, mas desde cedo interessou-se pela psicologia da crian
quanto outras se saem melhor com os nú ça e do deficiente, área em que se tornou conhecido.
meros? Foram perguntas desse tipo que Em 1904, quando era diretor do Labora
orientaram, no começo do século, as pri tório de Psicologia Fisiológica da Universi
meiras investigações psicológicas sobre o dade de Sorbonne, participou de uma comis
problema da natureza hereditária das apti são de médicos, educadores e cientistas, no
dões e da inteligência. meados pelo ministro da Instrução Pública da
Interessados em saber por que uma pes França, que tinha como objetivo estabelecer
soa é diferente da outra -quanto a traços de métodos e formular recomendações para o
personalidade, de habilidades, de desempe ensino de crianças deficientes mentais. Binet
nho intelectual, etc. -, pesquisadores pro foi incumbido da tarefa de desenvolver um
curaram obter dados que permitissem esta instrumento que pennitisse identificar as crian
belecer comparações entre pessoas. ças mentalmente deficientes.
Eles constataram, então, que pessoas Como resultado de seu trabalho nessa
com uma aptidão especial (um artista, por comissão e de suas pesquisas anteriores, ele
exemplo) normalmente tinham familiares publicou em 1905, com a colaboração de
que apresentavam o mesmo tipo de aptidão. Théodore Simon, a primeira escala para a
Ou, ainda, que gêmeos idênticos apresenta medida da inteligência geral. Essa escala,
vam aptidões e nível intelectual com um que se tornou conhecida como escala Binet
grau de semelhança maior do que o encon Simon, passou por duas revisões: a primeira,
trado entre irmãos não gêmeos. Por outro em 1908, e a segunda, em 1911, pouco antes da morte de Binet.
lado, identificaram diferenças de aptidões e Pode-se dizer que o desenvolvimento dessa escala marcou o
de traços mentais entre homens e mulheres início da medida da inteligência, tal como a conhecemos hoje.
ou entre raças diferentes. Os testes de Binet e Simon foram traduzidos e utilizados também
Essas constatações foram interpretadas como indicadoras de que os em muitos outros países e deram origem a inúmeras revisões,
Gêmeos: ce11tro
de interesse nos
fatores inatos são mais poderosos na determinação das aptidões indivi realizadas por outros pesquisadores, bem como inspiraram a
eswdos sobre duais e do grau em que estas podem se desenvolver do que a experiên elaboração de outros testes de inteligência.
hereditariedade. cia, o meio social e a educação. O papel do meio social, segundo essa No Brasil, seus estudos e testes foram introduzidos em 1916
perspectiva inatista, se restringe a impedir ou a permitir que essas apti por educadores ligados ao Laboratório de Psicologia Pedagógi
dões se manifestem. ca do Rio de Janeiro.
Assim, uma criança - filha, neta ou sobrinha de músicos - apre
senta inclinação e facilidade para aprender música porque herdou de
seus familiares a aptidão, o "dom" para a música, e não porque foi Binet concebia a inteligêncié! como uma aptidão geral que não de 13
12
educada num ambiente em que, provavelmente, a música é valorizada e pende das informações ou das experiências adquiridas no decorrer da
vida do indivíduo. Segundo ele, as principais características da inteli Quem foi Gesell?
gência seriam as capacidades de atenção, de julgamento e de adaptação
do comportamento a objetivos: Pesquisador norte-americano que viveu entre 1880 e 1961,
Gesell foi o principal expoente das teorias do desenvolvimento
Parece-nos que na inteligência há uma faculdade fundamen que dão maior ênfase ao papel da maturação. Desde
tal... Esta faculdade é o julgamento, também chamado bom senso muito cedo, logo queformado na Escola Normal (Ma
prático, iniciativa, a faculdade de adaptar-se às circunstâncias. Jul gistério), dedicou-se à carreira de professor. Foi dire
gar, compreender e raciocinar bem; estas são as atividades essen tor de colégio e escreveu sua primeira tese sobre um
ciais da inteligência. assunto ligado à pedagogia. Depois de doutorar-se
em psicologia, Gesell retomou o seu trabalho como
(Binet e Simon, O desem•ofrime1110 da imeUgência nas crianças. professor em uma escola primária. Alguns anos de
Apud Bee. H.)
pois, decidiu-se porfazer o curso de Medicina e assim
que o concluiu foi nomeado professor de Higiene da
É importante compreender que, nessa perspectiva, a idéia de inteli Criança na Escola de Medicina de Yale, cargo que
gência não se confunde com os conhecimentos adquiridos pelo indiví ocupou até a sua aposentadoria.
duo durante sua vida. Habitualmente, consideramos como muito inteli Em 1915, Gesell passou a empregar a psicologia
gente uma pessoa que demonstra ter um vasto conhecimento; ou seja, com vistas a proporcionar ajuda pedagógica às
dizemos que os mais inteligentes (entre nossos colegas, por exemplo) crianças desadaptadas. Ele é, por isso, considerado
são os que sabem mais. o primeiro psicólogo escolar norte-americano.
No entanto, o que define a inteligência de um indivíduo não é a quan Preocupado com a criação de uma ciência do desenvolvimento
tidade de conhecimentos que ele possui, mas sua capacidade de julgar, humano que integrasse todos os recursos da psicologia experimen
compreender e raciocinar. Essas capacidades, segundo Binet, não podem tal, da biologia evolutiva e da neuro.fisiologia, de 1920a 1961 Gesell
ser aprendidas, mas, ao contrário, são biologicamente determinadas. As dedicou-se à pesquisa cientfjica e à publicação de livros e artigos.
sim, a inteligência é vista como um atributo do indivíduo fixado pela he
reditariedade e, como tal, variável de uma pessoa para outra. Pode-se dizer que Gesell foi o primeiro teórico da maturação, uma vez
que defendia a prioridade dos fatores de maturação sobre os fatores de
aprendizagem, ou de experiência, na evolução do comportamento da
Padrões de desenvolvimento: o que é próprio de criança. Para ele, o que explica a existência de um padrão de desenvolvi
mento comum à maioria das crianças é o processo de maturação biológica
cada idade? inerente às transformações por que passa o comportamento da criança.
Assim, a evolução psicológica da criança seria determinada biolo
Mas, se as pessoas são diferentes umas das outras nas suas apti gicamente, do mesmo modo que o crescimento do feto no útero mater
dões, traços de personalidade ou de inteligência, existem também mui no. Seus comportamentos e formas de pensar tornam-se mais comple
tas semelhanças entre elas. A maioria dos bebês, por exemplo, torna-se xos à medida que ela cresce, que seu sistema nervoso, sua estrutura
capaz de se sentar antes que possa se arrastar, engatinhar e depois andar. muscular, etc. se desenvolvem. O ambiente social e as influências exter
Do mesmo modo, quando começa a falar, a criança primeiro diz apenas nas, de modo geral, limitam-se a facilitar ou dificultar o processo de
palavras isoladas, e só depois junta duas ou mais palavras, formando maturação. Por exemplo, uma criança que raramente é tirada do berço e
frases. Ou, então, antes de desenhar casas, animais ou carros, a criança deixada à vontade no chão, certamente vai demorar mais para,enga
rabisca traços e círculos. tinhar ou andar. Em condições adequadas, seu desenvolvimento se pro
cessaria no ritmo e na seqüência determinados pela maturação.
Essas seqüências parecem se repetir sempre em relação à maioria TantoBinetquantoGesell, acreditandoqueainteligênciaeodesenvolvi
das crianças, o que sugere a existência de certo padrão de desenvolvi mento psíquico da criança são biologicamente determinados, preocuparam
mento humano. Esse fato tem chamado a atenção de muitos pesquisa se em descrever comportamentos e habilidades típicos de cada faixa etária.
dores desde as primeiras décadas deste século. Um dos primeiros psicó Binet estava interessado, como já dissemos, em medir e comparar a
logos a se interessarem por essa questão foi Arnold Gesell, nos Estados inteligência das pessoas. Mas, se podemos medir a altura ou o tamanho
Unidos. Ele se preocupou com a evolução da criança, do nascimento do dedo de uma criança simplesmente usando uma fita métrica, medir a
aos 1 6 anos, e estudou as formas que seu comportamento vai tomando inteligência é bem mais complicado. Enquanto aptidão geral do indiví 15
no decorrer dessa evolução. duo, a inteligência não pode ser medida diretamente, mas apenas atra-
vés de algumas de suas realizações. Por isso, para construir um teste de
inteligência, Binet precisava conhecer o que crianças são capazes de Você sabe o que é o QI?
fazer em cada idade.
Essa também foi uma necessidade experimentada por Gesell. Preo Embora confundido por muita gente com a própria inteligên
cupado em compreender a evolução da criança, ele procurou estabele cia, o QI (quociente intelectual) é basicamente uma comparação
cer escalas de desenvolvimento que permitissem comparar os compor entre a idade mental e a idade real da criança (idade cronológica).
tamentos de uma criança com aqueles que eram esperados, ou conside A idade mental é determinada pelo número de tarefas de um tes
rados "normais", para sua faixa etária. te que a criança consegue resolver corretamente. Por exemplo, se ela
Mas como foram criados os testes de inteligência e estabelecidas as acerta todas as tarefas atribuídas ao grupo de 1 O anos, diz-se que ela
escalas de desenvolvimento? tem idade mental de 1 0 anos, seja qualfor sua idade cronológica.
Essa é uma pergunta importante, porque sua resposta nos mostra um O QI é obtido quando se divide a idade mental de uma criança
pouco como o conhecimento é produzido na área da psicologia. Partindo pela sua idade cronológica. Suponhamos que uma criança de 8
do princípio de que a hereditariedade e a maturação são os fatores mais anos consiga resolver todos os problemas propostos para a idade
decisivos na determinação da inteligência e na evolução do comporta de I O anos, mas nada além desse nível. Diremos que sua idade men
mento da criança, tanto Binet quanto Gesell dedicaram-se a pesquisas. tal é de 10 anos e, para calcular o seu QI, dividiremos 10 por 8, o
que dá um resultado de 1,25. Por convenção, esse resultado é mul
Pesquisando a criança: a construção dos testes de tiplicado por 100, para que o QI possa ser expresso em números
inteiros: Isso significa qúe, em nosso exemplo, a criança tem um QI
inteligência de 125, que é considerado acima da média.
tos típicos de cada faixa etária, embora a partir de perspectivas diferentes. viva ou as condições materiais e as possi vacilação.
Como já apontamos, Gesell não apenas destacava quais são os bilidades educacionais a que tenha acesso:
comportamentos infantis comuns a determinada idade, mas também a criança "normal" deve apresentar tais
procurava retratar a maneira como esses comportamentos evoluem, comportamentos.
transformam-se. É o caso, por exemplo, da capacidade da criança de No entanto, é importante lembrar que eles chegaram à definição
manter-se sentada sem apoio. dos padrões de comportamento de cada faixa etária a partir de pesqui
18
É possível observar, nas figuras a seguir, que a evolução desse sas realizadas nas primeiras décadas do século, com determinados gru
19
comportamento deve-se ao progresso do alinhamento das costas e do pos de crianças (francesas e norte-americanas). Logo, os comporta-
mentos considerados típicos foram aqueles apresentados pela maioria A idéia de que a criança é portadora dos atributos universais (bioló
das crianças que eles estudaram, e foi a partir daí que se definiu o que gicos) do gênero humano produz ou justifica a crença de que caberia à
é normal ou não. educação· fazer aflorar esses atributos naturais, desenvolvendo as
Esse procedimento é bastante coerente com os princípios teóricos potencialidades do educando de modo harmonioso. Tal concepção teve
pelos quais Binet e Gesell se orientaram. Se o ritmo e a seqüência do o mérito de chamar a atenção para as especificidades da criança, para as
desenvolvimento são biologicamente determinados, espera-se que cer características, habilidades e capacidades dos educandos, colocando
tos comportamentos apareçam sempre na mesma seqüência e na mesma em destaque noções como prontidão, maturidade, aptidão.
idade, quer se trate de crianças européias de classe média, quer de crian Mas, ao mesmo tempo que atribuem à escola o papel de "cultivar"
ças do interior do Nordeste brasileiro. o indivíduo, de possibilitar o seu desenvolvimento harmonioso, as pro
postas pedagógicas orientadas por essa perspectiva consideram que
para aprender os conteúdos escolares a criança precisaria já ter desen
As relações entre desenvolvimento e aprendizagem e volvido determinadas capacidades. Isso acaba gerando a idéia de que
existe uma idade bem precisa para aprender certos conteúdos. Ou, ain
as influências do inatismo-maturacionismo na escola da, que o proveito que a criança tira das situações de aprendizagem
depende de seu nível de prontidão ou maturidade.
Se o ritmo e a seqüência do desenvolvimento são biologicamente Essas noções, além de circularem entre os agentes do processo
determinados, qual a sua relação com os processos de aprendizagem? educacional, influenciando, muitas vezes, o cotidiano da escola, tam
Antes de responder a essa pergunta, é importante lembrar que os pes bém dão sustentação à prática de utilização de testes psicológicos para
quisadores da abordagem inatista-maturacionista não tinham como ob avaliar as possibilidades educacionais da criança.
jetivo o estudo da aprendizagem. No entanto, ao destacar o papel de É fato bem conhecido que testes de prontidão (para a leitura, por
fatores internos na determinação da inteligência e do desenvolvimento, exemplo) e testes de inteligência têm sido amplamente utilizados para a
essa abordagem considera que aquilo que a criança aprende no decorrer avaliação de crianças em idade escolar, penalizando muitas delas. Os
da vida não interfere no processo de desenvolvimento. resultados de tais testes têm, historicamente, impedido que inúmeras
De acordo com a perspectiva inatista-maturacionista, a aprendiza crianças tenham acesso ao conhecimento e à própria escolarização, ao
gem é que depende do desenvolvimento. Ou seja, o que a criança é fornecerem indicadores de sua "imaturidade" ou de seus "déficits" de
capaz ou não de aprender é determinado pelo nível de maturação de inteligência. Há crianças, por exemplo, que são retidas na pré-escola ou
suas habilidades e do seu pensamento ou, ainda, pelo seu nível de permanecem nos exercícios preparatórios, às vezes um ano inteiro, por
inteligência. que "não estão prontas" para aprender a ler e escrever; outras são envi
Essa concepção tem tido bastante influência na escola, desde sua adas às classes especiais porque "não têm condições" intelectuais de
elaboração. Pode-se dizer que o inatismo-maturacionismo marca o co seguir o curso normal da escolaridade.
meço da relação entre a psicologia científica e a educação. Como vi
mos, a construção dos primeiros testes de inteligência de Binet e
Simon foi resultado de uma necessidade emergente nos meios educa
cionais franceses da época: a de identificar as crianças mentalmente
deficientes e estabelecer métodos que tomassem o ensino acessível a
elas. O trabalho de Gesell também foi orientado por fins ligados à
educação, especialmente a de crianças consideradas desadaptadas.
No Brasil, as principais pesquisas psicológicas sobre crianças da
tam do início do século. Educadores, geralmente vinculados às Escolas
Normais (antigo nome dos cursos de Magistério), implantaram na déca
da de 20, em suas escolas, laboratórios de Psicologia Experimental e de
Psicologia Pedagógica. Nesses laboratórios, as crianças eram submeti
das a exames destinados a medir suas reações psicofísicas (discrimina
ções visuais, auditivas, etc.), e foi através deles que se introduziram no
país os primeiros testes psicológicos. O primeiro teste para avaliar a
prontidão de crianças para a alfabetização foi desenvolvido por um edu
20 21
cador, Lourenço Filho.
obtidas. Caso a pessoa queira lhe mostrar fotos da criança ou ano
Sugestão de atividades tações sobre ela, observe-as atentamente e sintetize as informa
ções proporcionadas por esses materiais.
• Pergunte à professora quais são as situações a que ela presta aten
Organizando as informações do texto ção para analisar o desenvolvimento de seus alunos. Procure saber
o que a encanta e o que a preocupa em seus alunos. Peça a ela que
1. Organize um quadro explicando, resumidamente, o que é: descreva algumas situações ou experiências que foram marcantes
• hereditariedade; em seu trabalho com as crianças. Registre as respostas obtidas.
• maturação.
2. Em grupo, organizem os dados obtidos, reunindo as respostas seme
2. Monte um quadro que apresente um resumo de como se explica, na lhantes. Destaquem nas respostas dadas pelos pais e professoras os
abordagem inatista-maturacionista: aspectos que as associam à visão inatista-maturacionista do desen
volvimento.
• inteligência; Concluído o trabalho, convém guardar os registros das entrevistas e o
• desenvolvimento. resultado da organização dos dados estabelecida pelo grupo, pois
eles serão utilizados em atividades referentes aos próximos capí
3. Explique a relação existente entre desenvolvimento e aprendizagem, tulos.
de acordo com es�a abordagem.
Exercitando a análise
Refletindo sobre o texto
Leia o livro A Terra dos Meninos Pelados, de Graciliano Ramos
1. Dividam-se em dois grupos, para discutir a seguinte frase: "Algumas (Editora Record). Nesse livro, o autor conta a estória de Raimundo, um
pessoas são mais inteligentes que outras em razão de sua herança menino considerado "diferente" ...
genética". Após a leitura, responda:
2. O grupo 1 deve se reunir e pensar em argumentos a favor dessa frase • De que tipos são as diferenças de Raimundo? .
(durante dez minutos). • Quais as conseqüências dessas diferenÇas na vida do menino?
3. O grupo 2 pensará em argumentos contra essa frase (durante dez mi
nutos). Em grupo, discutam essas questões, relacionando-as com as idéias
4. Organizem o debate entre os grupos. Mas lembrem-se: quem é do apresentadas no capítulo a respeito do desenvolvimento humano.
grupo 1 só pode falar "a favor" da frase e quem é do grupo 2 deve
falar "contra".
5. Registre em seu caderno suas opiniões sobre os aspectos favoráveis e
Sugestão de leituras
desfavoráveis da abordagem analisada.
A curva do sino. Folha de S. Paulo, 30 de outubro de 1994, p. 6-4 a 6-6;
Trabalho de campo BEE, H. A criança em desenvolvimento. São Paulo: Harper e Row do
Brasil, 1977.
1. Para realizar esta pesquisa, cada aluno deverá entrevistar uma pessoa
que tenha filhos (mãe ou pai) e uma professora (de pré-escola ou de
1� a 4� série). Explique à pessoa que você está realizando um trabalho
escolar e precisa da ajuda dela.
• Pergunte à mãe (ou ao pai) sobre o que se lembra a respeito do
desenvolvimento dos filhos. O que mais lhe chamou a atenção
nesse processo? O que foi motivo de encantamento e o que foi
22 motivo de preocupação? Por quê? Registre ou grave as respostas 23
O fato de incluir a psicologia entre as ciências naturais deve-se à
crença na existência de uma continuidade entre o animal e o homem.
Capítulo 3 Ou seja, para os comportamentalistas, embora o comportamento do ho
mem difira do dos animais em razão de um maior refinamento e com
plexidade, ambos podem ser explicados pelos mesmos princípios. Des
se modo, o comportamento humano não é privilegiado como objeto de
pesquisa: no comportamentalismo, estudam-se tanto o comportamento
humano quanto o comportamento animal.
,
mente com ratos, depois com pombos e, por último, com pessoas.
. Yt.'. G
'. �' '.,� : ..r- __/,,,.- ·-
.
Para estudar o problema da programação do reforço no condiciona
mento operante, Skinner utilizava em suas pesquisas com ratos uma
caixa em cujo interior havia
um dispositivo (uma pequena
.. . " ' - -� · ..'
. · . . '11' ", ' ·�1 ;·
y,_
,f
.. ,; ( ',f'' \; ', . ''�f " '' ,;� ,-�
barra de metal) que, quando
acionado, liberava água ou
. ,t;=.'.:::_
.a
As crianças, a
j�-
�
Assim, os princípios descobertos ou sistematizados mediante si
tuações experimentalmente controladas são os mesmos que explicam para a questão seguinte, que será referente à informação dada imediata
os comportamentos aprendidos em situações cotidianas. Conforme a mente antes. Se não acertar, não poderá prosseguir, devendo retomar a
perspectiva comportamentalista, pode-se dizer que pais e educadores, algum passo anterior. .--:"
por exemplo, modelam o comportamento da criança por meio de proce Por meio desse procedimento, organiza-se a aprendizagem d
.
dimentos que·correspondem ao condicionamento operante. criança "passo a passo", em ordem crescente de dificuldade, seguindo
os princípios da modelagem do comportamento, e cada resposta certa
da criança constitui um reforço para a aprendizagem.
A chamada "instrução programada" derivou das máquinas de
Skinner. As questões apresentadas às crianças são impressas e as res
postas corretas aparecem em outra página, em um gabarito. As ques�ões
são intercaladas por pequenos textos informativos sobre os quais a .
criança deverá responder no passo seguinte. De acordo com o compor
tamentalismo, esse procedimento permite que o ensino tenha uma pro
30 gressão gradual, que respeita o ritmo de cada aluno e toma o processo
31
Fonte: Nossm crianças. Abril Cultural, 1 970. v. 5. de ensino-aprendizagem mais eficiente.
Em seguida, analisem o material, procurando identificar os pressu
Sugestão de atividades postos e princípios do comportamentalismo nele presentes. Após
comparação e discussão das análises feitas pela classe, cada aluno
deverá escrever um pequeno texto sobre a instrução programada
como alternativa metodológica, destacando, de maneira fundamenta
Organizando as informações do texto da, seus aspectos positivos e negativos.
1. Segundo o texto, defina: 2. A seguir você tem reproduzido o 'Módulo instrucional 1 de um pro
'
�
Coo,ulto reu pro
�
e, a seguir; verificar suas respostas no gabarito, ao final deste
módulo. O desempenho desejado é o acerto de todas as questões.
Boa sorte!
1. Ciência cuida
(a) da aplicabilidade dos fenômenos físicos, biológicos e químicos.
(b) do estudo dos fenômenos físicos, biológicos e químicos. Objetivo intermediário n '.'2: "Distinguir a curiosidade
(e) da evolução do homem através dos tempos.
científica das crianças de sua curiosidade geral".
(d) dos principais fenômenos físicos.
Texto n? 2, Módulo 1
PERGUNTAS RESPOSTAS EXEMPLOS
Curiosidade infantil De sentido limitado Imediata • Quando foi que o ho-
mem ch egou à lua?
A criança, desde cedo, manifesta intensa curiosidade por tudo que vê, • Por que o homem não
ouve, sente e pensa. É a fase geralmente conhecida como "idade do voa?
POR QUÊ?". As inúmeras perguntas que as crianças fazem incessante
mente refletem uma grande necessida�e de explorar, conhecer, entender De sentido amplo Através do desenvolvi-
mento de uma série de
• Como é que o peixe
não se afoga?
a si própria e ao mundo que a cerca. E o caso de perguntas como: ativ idades. • Por que existem fo-
- Por que a gente tem que dizer "obrigado" quando ganha alguma lhas v ermelhas?
coisa?
- Por que eu não posso ir à escola sem uniforme?
- Por que o papai vai trabalhar todos os dias? Exercício n? 2, Módulo 1
Grande parte das perguntas das crianças, no entanto, é de natureza Isto é uma avaliação. Você deverá realizar o exercício proposto
científica. Através delas, nota-se que os interesses são muitos e diversi e, a seguil; verificar suas respostas no gabarito, ao final deste
ficados. Elas demonstram isto quando perguntam: módulo. O desempenho desejado é o acerto de todas as questões.
- O que é que segura a lua para ela não cair do céu? Boa sorte!
- Por que é que eu tenho que tomar vacina? 1. Marque apenas as afirmações corretas:
- Por que é que a mamãe rega as plantas todo dia? (a) A curiosidade da criança se manifesta a partir de seu ingresso na
- De onde vem a água da chuva? escola.
Podemos assim constatar que Ciências constitui uma disciplina (b) As perguntas infantis demonstram interesse da criança por si pró-
automotivada. O próprio conteúdo do estudo responde às indagações pria e pelo mundo que a cerca. .
infantis. (c) Dentre as inúmeras perguntas infantis, grande parte reflete cuno
É imprescindível que o professor aproveite esta vontade de saber. sidade eminentemente científica.
As perguntas, porém, devem ser selecionadas: umas respondidas de (d) A curiosidade científica infantil se limita aos fenômenos da natureza.
imediato - aquelas que apresentam sentido limitado; outras - aquelas 2. Marque o que melhor completa a afirmação:
que oportunizam um estudo mais profundo, seja por se incluírem na Ciências é uma disciplina automotivada porque:
programação do professor, seja por se ligarem à realidade de vida dos (a) desperta a curiosidade infantil.
alunos - deverão ser respondidas através do desenvolvimento de ativi (b) aumenta a curiosidade infantil.
dades variadas. (c) opõe-se à curiosidade infantil.
(d) responde à curiosidade infantil.
Ficha de consulta n? 1, Módulo 1
3. Coloque C ou G conforme as perguntas reflitam curiosidade científi
Curiosidade infantil ca ou geral da criança.
( ) Por que você está de vestido novo?
CARACTERÍSTICAS DA ( ) Por que a água do mar é salgada?
CONSEQÜÊNCIA
CRIANÇA DE 6 A 12 ANOS
( ) Afinal, de onde vêm os bebês?
• Necessidade de conhecer a si mesma • Curiosidade intensa e extensa. ( ) Para que as pessoas pintam o cabelo?
Necessidade de explorar, conhecer G rande incidência de perguntas.
•
todo dia?
( ) quantas patas tem a mosca?
Por que eu tenho que tomar vacina?
•
uniforme?
( ) é verdade que a baleia é mamífero?
Objetivo n? 3, Módulo 1 mentação, mas também através de todas as aplicações tecnológicas que
envolvem a vida atual: luz elétrica, elevador, transportes, materiais uti
Atenção: Se você tiver acertado as questões III e IV da pré-avalia
lizados em casa e na escola, brinquedos os mais diversos, medicamen
ção, está dispensado deste objetivo. Consulte seu professor. Caso con
tos, geladeira, liqüidificador...
trário, siga o fluxograma abaixo.
Disto resulta uma soma de madurezas que se constitui em rica base
de experiências precedendo o conhecimento científico que as explica e
Fluxograma das atividades
que somente o estudo trará.
1.
-Trago o meu suco na garrafa térmica porque ele ficabem geladinho.
-Mamãe, só vou naquele dentista que tem motor ajato, porque não dói.
Leia o objetivo intermediário n? 3, ao final da página.
- Bota uma lâmpada de 1 00 velas no meu quarto pra ele ficar mais
claro.
2.
- Meu carrinho não anda mais porque a pilha gastou.
Entreviste seu professor:
Estude o texto n? 3: fenômenos científicos e aspectos
Tecnologia e Ciência, nas séries iniciais do 1? Grau, se forjam no
Base de experiências OU tecnológicos que cercam ambiente em que a criança vive, em suas condições de percepção, em
científicas e tecnológicas. a criança; a influência seu interesse próximo e imediato.
da tecnologia na vida atual. A escola deve aproveitar esta curiosidade, bem como aquela soma
anterior de vivências, a prontidão para o estudo e a compreensão da
3. Ciência e da Tecnologia em seus estágios iniciais.
�
Boa sorte!
1. Marque o que melhor completa a afirmação:
Exercício n� 1
Capítulo 4
1-b
2-a
3-d
Exercício n �2
1- b, c
2-
3-
d
(G), (C), (C), (G), (C), (G)
A abordagem piagetiana
4- (b), (a), (b), (b)
Exercício n �3
"Papai, por favor, corte este pinheiro - ele faz o vento. Depois que
1-C você cortar ele, o tempo vaificar bom e a mamãe me leva para um passeio. "
2 - a, c, f.
"Mamãe, quem nasceu primeiro, você ou eu ? "
(Joullié, V. & Mafra, W. Didática de Ciências através de módulos (Helen Bee, A criança em desenvolvimell/o.)
instrucionais. 2� ed. Petrópolis: Vozes, 1980.)
concreto (dos 7 aos 1 1 anos) e o operatório formal (dos 11 aos 15 anos). leva a criança a repetir o movimento. Ela age para atingir um propósito.
Os movimentos ficam mais complexos, mais amplos, como engatinhar,
pôr-se de pé, andar.
Nesse percurso o eu e o mundo tornam-se progressivamente dis
Os estágios do desenvolvimento cognitivo
tintos. O indivíduo e os objetos diferenciam-se e organizam-se no pla
no das ações exteriores, e a permanência dos objetos vai sendo
O período sensório-motor construída. O brinquedo, que ao ser retirado da criança deixava de
existir para ela, passa a ser procurado. A criança começa a perceber
· · 4a O desenvolvimento cognitivo se inicia a partir dos reflexos que gra que os objetos, as pessoas, continuam existindo mesmo quando estão 49
dualmente se transformam em esquemas de ação. Do nascimento até os 2 fora do seu campo de visão.
Formam-se as primeiras imagens mentais dos objetos ausentes do Como a noção de permanência dos objetos, que leva muito tempo
meio imediato. São elas que possibilitam o desenvolvimento da função para ser elaborada no nível sensório-motor, os processos de raciocínio
simbólica, mecanismo comum aos diferentes sistemas de representação lógico e os conceitos demoram também um longo tempo para se desen
Uogo, imitação, imagens interiores, simbolização). Com o desenvolvi v�lver, a partir desses primeiros raciocínios (pré-lógicos) de que a
mento da função simbólica, a partir do segundo ano de vida, o eu e o cnança se toma capaz com a representação. Ao final do
mundo reorganizam-se num novo plano: o plano representativo. período pré
A ctjança reproduz, ou imita, utilizando gestos ou onomatopéias, o O período das operações concretas operatório, o
pensamento da
comportamento e os sons de um modelo ausente, representando-o de
É . apenas ao final do período pré-operatório, após equilibrações
criança começa
alguma forma simbólica no jogo do faz-de-conta. Por meio de uma ima a assumir a
gem mental, um símbolo, começa a imaginar fatos, objetos, pessoas, �ucess1va�, que o pensamento da criança assume a forma de operações forma de
acontecimentos que ocorreram em outras ocasiões, procurando re mtelectua1s. As operações são ações mentais voltadas para a cons operações
lembrá-los. O espaço e o tempo se ampliam, à medida que o desenvol tatação e a explicação. A classificação e a seriação, por exemplo, são intelect1wis.
vimento da função simbólica a libera de agir somente em situações do ações mentais. Essas ações
meio imediato. Ela toma-se capaz de imaginar ações ou fatos sem são sempre reversíveis, ou
praticá-los efetivamente. seja, têm a propriedade de
voltar ao ponto de partida.
A criança toma-se capaz
O período pré-operatório de compreender o ponto de
vista de outra pessoa e de
Representando mentalmente o mundo externo e suas próprias conceitualizar algumas rela
ações, a criança os ii:iterioriza. É nesse período que ela se toma capaz de ções. Portanto, é nessa fase
tratar os objetos como símbolos de outras coisas. O desenvolvimento da que são estabelecidas as bases
representação cria as condições para a aquisição da linguagem, pois a para o pensamento lógico,
capacidade de construir símbolos possibilita a aquisição dos significa próprio do período final do de
dos sociais (das palavras) existentes no contexto em que ela vive. senvolvimento cognitivo.
Nesse momento, a criança deverá reconstruir no plano da repre
sentação aquilo que já havia conquistado no plano da ação prática. MANDOU VÃR105 AUJN0S
Assim, a diferenciação entre o eu e o mundo, que já tinha se completa />D QUADQO-NEGRO PAQA
SOMAREM ' DOIS MAIS
do no plano da ação, deverá ser elaborada no plano da representação. 0015 IGUAL A QUATOO.
• "Para conhecer os objetos, o sujeito tem que agir sobre eles e, por con
seguinte, transformá-los: tem que deslocá-los, agrupá-los, combiná
los, separá-los e juntá-los. Nesse sentido, o conhecimento não é nem
uma cópia interior dos objetos ou acontecimentos do real, nem o mero
reflexo desses objetos e acontecimentos que se imporiam ao sujeito.
Ele é uma compreensão do real, construída a partir de modos de ação
do sujeito sobre o meio, dependendo dos dois- sujeito e objeto - ao
mesmo tempo" (Piaget, A epistemologia genética).
ceber e responder automaticamente a ruídos fortes, objetos em movi um processo de intemalização de modos culturais de pensar e agir. Esse
mento e mudanças bruscas do ambiente. processo de intemalização inicia-se nas relações sociais, nas quais os
No entanto, ao longo de nosso desenvolvimento, tomamo-nos ca adultos ou as crianças mais velhas, por meio da linguagem, do jogo, do
pazes de dirigir a atenção não só para os estímulos ligados a nossa so "fazer junto" ou do "fazer para", compartilham com a criança seus sis
brevivência, mas também para situações ou elementos que nos interes temas de pensamento e ação.
sam. Por exemplo, ao lermos determinado livro, dizemos que ele "pren Embora aponte diferenças entre aprendizado e desenvolvimento,
de nossa atenção'', quando somos capazes de ignorar, durante a leitura, Vygotsky considera que esses dois processos caminham juntos desde o
os ruídos do ambiente ou o movimento das pessoas em tomo de nós. E, primeiro dia da vida da criança e que o primeiro - o aprendizado -
na escola, uma criança pode permanecer alheia a tudo o que a professo suscita e impulsiona o segundo - o desenvolvimento. Ou seja, tudo
ra está explicando ou escrevendo na lousa, a despeito da sua movimen aquilo que a criança aprende com o adulto ou com outra criança mais
tação pela classe, do som da sua voz ou do fato de ser diretamente soli velha vai sendo elaborado por ela, vai se incorporando a ela, transfor
62 63
citada a prestar atenção. mando seus modos de agir e pensar.
Assim, segundo Vygotsky, o conhecimento do mundo passa pelo Além disso, o desenvolvimento proximal como desenvolvimento
outro, sendo a educação "o traço distintivo fundamental da história do em elaboração possibilita a participação do adulto no processo de
pequeno ser humano. A educação pode ser definida como sendo o de aprendizagem da criança. Para consolidar e dominar autonomamente as
senvolvimento artificial da criança. Ela é o controle artificial dos pro atividades e operações culturais, a criança necessita da mediação do
cessos de desenvolvimento natural. A educação faz mais do que exercer outro. O mero contato da criança com os objetos de conhecimento ou
influência sobre um certo número de processos evolutivos: ela rees mesmo sua imersão em ambientes informadores e estimuladores não
trutura de modo fundamental todas as funções do comportamento" garahte a aprendizagem nem promove necessariamente o desenvolvi
( 1 985: 45). mento, uma vez que ela não tem, como indivíduo, instrumental para
Os processos de aprendizado transformam-se em processos de de organizar ou recriar sozinha o processo cultural (Oliveira, 1 995).
senvolvimento, modificando os mecanismos biológicos da espécie. Portanto, é no campo do desenvolvimento em elaboração que a
Sendo um processo constituído culturalmente, o desenvolvimento psi participação do adulto, como pai, professor, parceiro social, se faz ne
cológico depende das condições sociais em que é produzido, dos modos cessária. Conforme alertava Vygotsky, "o bom aprendizado é somente
como as relações sociais cotidianas são organizadas e vividas e do aces aquele que se adianta ao desenvolvimento" ( 1 984: 1 0 1 ).
so às práticas culturais.
Em razão de privilegiar o aprendizado e as suas condições sociais
de produção no processo de desenvolvimento, Vygotsky colocou em O papel da escolarização
discussão os indicadores de desenvolvimento utilizados pela psicologia
da época. O modo como Vygotsky concebia e analisava o desenvolvimento
Para avaliar o desenvolvimento de uma criança, os psicólogos con humano levou-o a discutir explicitamente o papel da escolarização. Di
sideravam apenas as tarefas e as atividades que ela era capaz de realizar ferentemente de outros psicólogos, vygotsky considerou as espe
sozinha, sem a ajuda de outras pessoas. Procedendo assim, os psicólo cificidades das relações de conhecimento produzidas na escola, distin
gos, segundo Vygotsky, apreendiam apenas seu nível de desenvolvi guindo-as das relações de conhecimento cotidianas.
mento real, isto é, "o nível de desenvolvimento das funções mentais da Em nossas sociedades, a escola é uma instituição encarregada de
criança que se estabeleceram como resultado de certos ciclos de desen- possibilitar o contato sistemático e intenso das crianças com o sistema
volvimento já completados" (Vygotsky, 1 984). . de leitura e de escrita, com os sistemas de contagem e de mensuração,
Ao considerarem apenas o desenvolvimento real, problematizava com os conhecimentos acumulados e organizados pelas diversas disci
Vygotsky, os psicólogos voltavam-se para o passado da criança. Ou plinas científicas, com os modos como esse tipo de conhecimento é
seja, apreendiam processos de desenvolvimento já concluídos. elaborado e com alguns dos variados instrumentos de que essas ciências
No entanto, destacava ele, nas situações de vida diária e mesmq na se utilizam (mapas, dicionários, réguas, transferidores, máquinas de
·
escola, era possível perceber que as atividades que a criança realizava calcular, etc.).
sozinha, por exemplo, comer com a colher, amarrar os sapatos, montar
uma torre com peças de tamanhos diversos, escrever, foram antes com
partilhadas com outras pessoas.
Sua proposta, então, era a de que se trabalhasse também com os
indicadores de desenvolvimento proximal, que revelariam os modos de
agir e de pensar ainda em elaboração e que requerem a ajuda do outro
para serem realizados. Os indicadores do desenvolvi '!1ento proximal
As relações de
seriam as soluções que a criança consegue atingir com a orientação e a
cola�w:açãe-de-um a<iulto ou de outra �tiança. - - . -·-\ conhecimento
� )
· ·
travadas na
./,..Segundo sua análise, () ãprendizado (a atividade interpessoal) pr - escola têm uma
.tede e impulsiona o desenvolvimento, criando zonas de desenvolvi- / natllreza distinta
, das demais.
: mento proximal, ou seja, processos de elaboração compartilhada..---/
'""- Observar a atividade compartilhada da criança possibil Íta olhar
,,,,
para o seu futuro, pois "o que é o desenvolvimento proximal hoje será o
nível de desenvolvimento real amanhã - ou seja, aquilo que a criança é
capaz de fazer com assistência hoje ela será capaz de fazer sozinha ama
64
nhã" (Vygotsky, 1 985). 65
Embora chegue à escola já dominando inúmeros conhecimentos e
modos de funcionamento intelectual necessários à elaboração dos co
nhecimentos científicos sistematizados, durante o processo de educa Sugestão de atividades
ção escolar a criança realiza a reelaboração desses conhecimentos me
diante o estabelecimento de uma nova relação cognitiva com o mundo e
com o seu próprio pensamento.
O estudo da aritmética, por exemplo, não começa do zero. Ao che Organizando as informações do texto
gar à escola a criança já passou por experiências anteriores relativas a
quantidades, determinação de tamanho, operações de divisão, adição, 1. Faça um resumo do que você compreendeu sobre o papel do signo e
etc. O mesmo acontece quanto à escrita e às operações mentais utiliza das interações sociais na formação do funcionamento psicológico
das em situações do cotidiano. Nas brincadeiras, nas tarefas da casa, nas humano.
compras que faz para a mãe, a criança, imitando os mais velhos, "escre
ve", classifica, compara, seria, estabelece relações entre os elementos 2. Conceitue mediação e intemalização.
de uma situação, etc. Nessas situações, sem que ela própria e seus par
ceiros sociais percebam, os conhecimentos vão sendo elaborados ao rit 3. Compare a abordagem histórico-cultural do desenvolvimento hu
mo da própria vida, entrelaçados às emoções, às necessidades e interes- mano com as abordagens apresentadas pelo inatismo-matura
ses imediatos da atividade em que está envolvida. . cionismo, pelo comportamentalismo e pela teoria piagetiana. Enu
Na escola, as condições se modificam. Ali as relações de conheci mere as semelhanças e diferenças entre essas abordagens e confron
mento são intencionais e planejadas. A criança sabe que está ali para te-as com as relacionadas por seus colegas, numa discussão envol
apropriar-se de determinado tipo de conhecimentos e de modos de pen vendo a classe.
sar e de explicar o mundo, organizados segundo uma lógica que ela
deverá apreender.
Pesquisa de campo
A professora acompanha a criança: orienta sua atenção, destacan
do elementos das situações em estudo considerados relevantes à com
Converse com alguns professores da 1 � à 4� série e da pré-escola.
preensão dos conhecimentos nelas implicados; analisa as situações
Pergunte-lhes como vêem o papel da escola e seu papel de professores
para e com a criança e leva-a a comparar, classificar, estabelecer rela
no desenvolvimento da criança. Anote suas respostas.
ções lógicas; demonstra como usar determinados procedimentos da
Confronte o que pensam os professores com as reflexões de Vygotsky
matemática e da escrita; ensina a utilizar o mapa, os equipamentos de
acerca da relação entre escolarização e desenvolvimento.
laboratório, etc.
A seguir, apresente três conclusões a respeito da influência das teo
A criança, por sua vez, raciocina com a professora. Segue suas ex
rias psicológicas do desenvolvimento na prática dos professores.
plicações e instruções, reproduz as operações lógicas realizadas por ela,
mesmo sem entendê-las completamente. Nessas situações compartilha
das com a professora, a criança aprende significados, modos de agir e Exercitando a análise
de pensar, e começa a elaborá-los. Ela também re-significa e reestrutura
significados, modos de agir e de pensar, e começa a se dar conta das 1. Retome os dados das entrevistas com pais e professores realizadas ao
atividades mentais que realiza e do conhecimento que está elaborando. final do segundo capítulo. Destaque agora nas respostas dadas pelos
Nesse sentido, destaca Vygotsky, a educação escolarizada e o pro dois grupos aspectos que as associam a uma visão histórico-cultural
fessor têm um papel singular no desenvolvimento dos indivíduos. de desenvolvimento.
Fazendo junto, demonstrando, fornecendo pistas, instruindo, dan
do assistência, o professor interfere no desenvolvimento proximal de 2. Leia o texto 'O renascimento de Josela' , de Silvia Adoue, publicado
seus alunos, contribuindo para a emergência de processos de elabora na revista Ande, n? 7, 1 984.
ção e de desenvolvimento que não ocorreriam espontaneamente. Em pequenos grupos, discutam o papel da professora no processo
A escola, possibilitando o contato sistemático e intenso dos indi vivido por Josela.
víduos com os sistemas organizados de conhecimento e fornecendo a
Num debate da classe, apresentem a análise elaborada pelo grupo.
eles instrumentos para elaborá-los, mediatiza seu processo de desen
volvimento.
66 67
Sugestão de leituras
zagem" como relativas às condições em que a relação de ensino é pro Relação entre
duzida. Uma vez que tanto o desenvolvimento quanto a aprendizagem desenvolvimento e
são processos que ocorrem no plano das interações sociais, as "dificul aprendizagem
dades de aprendizagem" são enfocadas não como algo inerente à crian Principais
ça, mas às suas condições de produção no contexto interativo em que representantes
ela se insere.
Contribuições para
a prática pedagógica
Unidade 2
nuando um debate. Cadernos de Pesquisa, n? 57, maio/86. São Pau
lo: Fundação Carlos Chagas.
FREITAG, B. Piagetianos brasileiros em desacordo? Contribuições para
um debate. Cadernos de Pesquisa, n? 53, maio/85. São Paulo: Fun
dação Carlos Chagas.
MoRO, M. L. A construção da inteligência e a aprendizagem escolar de
crianças de baixa renda - Uma contribuição para o debate. Cader
nos de Pesquisa, n? 56, fev./86. São Paulo: Fundação Carlos Chagas.
PATIO, M. H. S. Criança da escola pública: deficiente, diferente ou mal
trabalhada?. Revendo a proposta de alfabetização. Projeto Ipê. São
Paulo: SE/CENP, 1 985.
____ . A criança marginalizada para os piagetianos brasileiros; de
ficiente ou não?. Cadernos de Pesquisa, n? 5 1 , nov./84. São Paulo:
Fundação Carlos Chagas.
SMOLKA, A. L. B. O trabalho pedagógico na diversidade (adversidade)
da sala de aula. Cadernos Cedes, n? 23. São Paulo: Cortez, .1989.
____ et alii. A questão dos indicadores de desenvolvimento:
apontamentos para discussão. Caderno de Desenvolvimento Infan
til, n? 1 , 1 994. Curitiba: Centro Regional de Desenvolvimento In
fantil da Pastoral da Criança/CNBB .
Sugestão de leitura
Filme recomendado
Crescer e aprender - Um guia para pais, documentário realizado pelo
Unicef e apresentado pela TV Cultura de São Paulo.
A e1·
74
Introdução Capítulo 7
ensinando-lhe novas palavras, como adição, subtração, fração, substan Hino e um dos professores falará sobre a data. "
tivo, verbo, sílaba, ponto final, pátria, cultura, monarquia, república, Voltando-se para a professora:
escravidão, sistema circulatório, célula, oxigênio, atmosfera, energia, � "Prepare as crianças. "
clima, relevo, etc. Essas palavras expressam relações complexas que os A saída da diretora, têm início os comentários.
homens, ao longo de sua história, foram estabelecendo entre os elemen
Juliana (para Fabiana) - "A tia vai dar desenho pra gente
tos do mundo, no seu esforço para conhecê-los e explicá-lÔs. Por tudo
isso, consideramos necessário que a criança as conheça e saiba utilizá pintar; né?!"
las adequadamente. Esforçamo-nos, então, para que ela as aprenda. E Eli (para o colega ao lado) - "Que negócio que ela falou da
esse aprendizado também nos parece natural. bandeira ? "
Assim, como adultos, ou membros mais velhos dos grupos sociais Eli (para a professora) - "A gente vai enfeitar a classe com
de que a criança faz parte, não temos o hábito de nos interrogar acerca bandeirinha verde e amarela? Foi isso que ela falou ? "
dos modos pelos quais ela, criança, se relaciona com as palavras. O que Cláudio (comentando com Sérgio) - "A gente vai ter que
é a palavra para a criança? Como é que ela se apropria das palavras e cantar o hino... "
como elabora seus significados? Que papel, afinal, nós, adultos, desem Sérgio - "Mas é láfora. Dá praficar de olho nas meninas da
penhamos nesse processo? 4�série, meu! "
Entretanto essas questões têm, há muito tempo, preocupado filóso Elaine (para a professora) - "É sete de setembro, né, tia?!"
fos, lingüistas, psicólogos, educadores, que têm se voltado, cada um em
João (para Sérgio) - "Éferiado... "
seu campo de estudo, para a busca de explicações e respostas a elas.
Nesta segunda unidade, vamos tematizá-las a partir das perspecti A professora, diante dos comentários suscitados pelo comuni
vas de Piaget e de Vygotsky. cado, e procurando identificar de que modo atender à solicitada
No capítulo 7, vamos problematizar as funções da palavra e nos "preparação das crianças " para o evento, escreve na lousa -
aproximar dos modos como esses dois autores analisam e explicam SEMANA DA PÁ TRIA - e pergunta para a classe:
suas relações com o pensamento. - " O que significa Semana da Pátria ? "
No capítulo 8, focalizaremos como cada um deles descreve e expli Sérgio - ·:semana é semana. Segunda, terça, quarta. . . "
ca o processo de elaboração da palavra pela/na criança. Prop- "E isso mesmo. E Pátria? O que é Pátria ? "
tões têm sido respondidas de modos diversos. ção ou aquisição das significações coletivas" ( 1 975: 14).
Nessa a.firmação �e Piaget, fica evidenciada sua concepção de lin
guagem. A lmguagem mtegra-se à função simbólica. Ela não é sua cau
O que a psicologia nos diz sa e sim seu resultado. Ela também é apenas um caso particular das
formas de simbolização.
A linguagem como comportamento "A linguagem é certamente um caso particular, especialmente im
portante, não o nego, mas um caso limitado no conjunto das manifesta
Watson e Skinner consideram a linguagem como comportamento: ções da função simbólica" (Piatelli-Palmarini, 1 979: 248). Ela diz res 81
80 o comportamento verbal. peito aos sistemas de signos coletivos que transmitem ao indivíduo urna
série de conceitos, um sistema pronto de classificações e de relações, formalização dessas idéias não se limita à palavra. Para apreender e
que vão sendo apreendidos e elaborados por ele de acordo com seus elaborar de maneira lógica os conceitos que estamos utilizando, seu
esquemas de ação e de pensamento. psiquismo está trabalhando intensamente. Você está realizando várias
Assim, no processo de aquisição da linguagem, os significados das operações de pensamento. São essas operações que lhe possibilitam
palavras não são diretamente incorporados pela criança. As palavras apreender a lógica do que estamos informando. Ou seja, a lógica depen
não se imprimem nela como se se tratasse de uma placa fotográfica. Ela de do modo de pensar construído e não da palavra em si, embora esta
elabora ativamente as palavras com base em seus esquemas de assimi seja uma condição necessária à elaboração desse tipo de conhecimento.
lação, construindo significados que nem sempre correspondem aos sig "O progresso da linguagem não traz em si um correspondente
nificados utilizados por nós, adultos. progresso em operações, ao passo que o inverso é uma realidade'',
Se atentarmos, por exemplo, nas definições que as crianças deram afirma Piaget.
de pátria, na situação descrita no início deste capítulo, vamos perceber No processo de desenvolvimento psicológico dos indivíduos a pa
que elas diferem da definição que um adulto em geral lhe dá (pátria =
lavra passa, então, da condição de um mero apêndice das estruturas de
país onde nascemos), ou da que aparece num dicionário, em que é pensamento para a condição de parte integrante do pensamento abstrato
enfatizado o sentido genérico de terra natal, país onde nascemos, lugar (Freitag, 1 986).
de origem, nação, além do sentido afetivo de comunidade moral e histó Uma vez que a linguagem segue o desenvolvimento do pensamen
rica. Na fala das crianças, o sentido da palavra pátria está relacionado a to até tomar-se parte dele, as formas como as palavras são usadas e os
suas experiências anteriores, na escola e fora dela (desenhos para colo significados atribuídos a elas refletem os níveis de desenvolvimento
rir, classe enfeitada, os desfiles, os soldados), a suas condições imedia cognitivo, permitindo-nos considerá-la como um mapa do pensamento.
tas de vida (falta de moradia, falta de dinheiro, desemprego) e até mes
mo a interesses pessoais projetados na comemoração escolar (a pa A linguagem como atividade simbólica constitutiva
quera, o feriado).
Essas diferentes formas de entendimento entre crianças e professo Na abordagem histórico-cultural, a palavra não é analisada como
ra, segundo Piaget, resultam das diferenças qualitativas entre o pensa uma das nossas funções simbólicas, mas como nosso sistema simbólico
mento infantil e o pensamento adulto.
básico, produzido a partir da necessidade de intercâmbio entre os indiví
Somente o desenvolvimento do pensamento operatório (tratado no duos durante o trabalho, atividade especificamente humana. Para agir co
capítulo 4) é que vai possibilitar ao sujeito �preender a� rel�ções lógi letivamente o homem teve que criar um sistema de signos que permitisse
cas, de abstração (atividade mental por me10 da qual 1dent1fica�os e a troca de informações específicas e a ação conjunta sobre o mundo, com
separamos os elementos que compõem um todo) � de generahza9ão
_ base em significados compartilhados pelos indivíduos (Kohl: 1993).
(processo mental inverso e complementar da abstraçao que nos poss1b1-
Vista dessa perspectiva, a linguagem é um produto histórico e
lita agrupar vários objetos singulares de acordo com os caracteres co
significante da atividade mental dos homens, mobilizada a serviço da
muns que neles reconhecemos), contidas nas palavras.
comunicação, do conhecimento e da resolução de problemas.
Como no pensamento operatório o conhecimento não se constrói
Não se trata de algo que se acrescenta às representações, ações e
!
mais a partir de operações sobre o objeto imediato, e, sim, sobre propos
desenvolvimento individuais, como considera Piaget. Ela é constitutiva
ções e hipóteses enunciadas verbalmente, a palavra toma-se uma condi
(é a base) da atividade mental humana, sendo, ao mesmo tempo, um
ção necessária, embora não suficiente, do conhecimento lógico-ab�trato.
processo pessoal e social: tem origem e se realiza nas relações entre
Para termos uma idéia mais clara das relações entre o conhecimen
indivíduos organizados socialmente, é meio de comunicação entre eles,
to lógico-abstrato e as palavras, tal com� vistas por Piaget, vamos pen
mas também constitui a reflexão, a compreensão e a elaboração das
sar no processo de elaboração de conhecimento que, ao longo da leitura
próprias experiências e da consciência de si mesmo.
deste texto, você está vivendo.
Como produção cultural humana, a palavra não se desenvolve em
Todas as explicações e suposições elaboradas por Piaget estão sen
do apresentadas a você através de conceitos (assimilação, acomod�ção, nós naturalmente. É nas nossas relações com o outro, nas nossas
pensamento operatório, etc.). Mesmo quando procuramos exemplificar interações, que ela vai sendo incorporada a nossas funções biológicas, a
com algumas situações o que estamos expondo, é por meio das palavras nossos modos de perceber e de organizar (conhecer) o mundo.
que o fazemos. Durante a leitura você não está observando cri�nças, Nascida num mundo humano repleto de símbolos e de signos, a
nem está em interação direta com elas. Você está elaborando as infor criança, desde seus primeiros momentos de vida, está mergulhada em
<?
mações que damos num plano inteiramente abstrato. orno des�aca o um sistema de significações sociais. Os adultos procuram ativamente
próprio Piaget, é difícil imaginar como se desenvolvenam relaçoes de fazer com que a criança incorpore os significados, objetos e modos de
82
conhecimento dessa natureza sem o emprego da palavra. No entanto, a agir criados pelas gerações precedentes. 83 .
Mesmo sabendo que a criança ain tudo o que se faz, tudo o que se é e também o que não se é, tudo o que se
da não a entende, a mãe fala com ela, deseja e imagina, tem nome, pode ter nome, é dito, pode ser dito ...
"envolvendo-a em um colo de pala Nesse sentido, a linguagem não é algo estranho à criança que ain
vras temas e quentes", observa poeti da não fala. Seu desenvolvimento não depende apenas de fatores in
camente Giani Rodari, jornalista e trínsecos à criança ou de seus modos de ação sobre o objeto. Depende
educador italiano. A mãe fala à criança das possibilidades que essa criança tem (ou não), nas suas relações
dando significado a seus movimentos, sociais, de se aproximar, de compartilhar e de elaborar os conteúdos e
choros e risos. as formas de organização do conhecimento histórica e culturalmente
Pela palavra da mãe, o choro trans desenvolvidos e materializados nas palavras.
forma-se em chamado, e o movimento A elaboração do mundo tem como intermediário o outro. Por sua
frustrado de agarrar, inscrito no ar pe mediação, revestida de gestos, atos e palavras, vamos nos integrando à
las mãos de um bebê voltadas para um cultura, vamos aprendendo a ser humanos. Pela palavra do outro, por
objeto qualquer, transforma-se em ges sua presença, pelo seu reconhecimento e encorajamento a cada pequeno
to de apontar. evento que indica nossa progressiva humanização, nos reconhecemos.
A mãe, observando as tentativas da criança para agarrar o objeto, Somos nomeados e nomeamos...
A cria11ça ai11da entrega-o a ela, interpretando seu movimento: "Ela quer esta bola". A palavra, portanto, não é apenas adquirida por nós no curso do
niío entende, mas Nesse momento um significado é atribuído pela mãe ao movimento _ do
a mãe fala
desenvolvimento. Ela nos constitui e nos transforma. Com suas fun
com ela,
bebê, transformando-o em gesto. A transformação do movimento em ções designativa e conceituai, a palavra é mediadora de todo nosso
apresentando-the gesto produzida pelas pessoas que cercam a criança vai sendo incorpo processo de elaboração do mundo e de nós mesmos. Ela objetiva esse
o mu11do. rada por ela ao longo de experiências semelhantes. �esse processo, a processo, integra-o e direciona a atividade mental por nós desenvolvi
criança passa a utilizar o movimento de pegar não mais como uma ten da. "O desenvolvimento intelectual da criança'', diz Vygotsky, expres
tativa de agarrar o objeto, mas como um gesto dirigido às pessoas qu� a sando um ponto de vista contrário ao defendido por Piaget, "depende
cercam. O movimento de agarrar suaviza-se e tem agora outro s1gmfi _
do seu domínio dos meios sociais de pensamento, ou seja, da lingua
cado, "Quero aquela bo�a", e outro destinatário, o adulto. . gem" ( 1 979: 73).
. · E pela interpretação e nomeação feitas pelo ou- Nesse processo, palavra e pensamento fundem-se. Uma palavra
l tro que os movimentos do corpo convertem-se em sem significado é um som vazio, afirma Vygotsky, da mesma forma que
gestos, apuram-se e tomam-se mais complexos. Os um pensamento que não se materializa em palavras se perde. A palavra
movimentos transformados em gestos são meios de não é apenas exwessão ou comunicação do pensamento.· Ela é um ato
comunicação, modos de manifestar e apreender de de pensamento. E por meio das palavras que o pensamento passa a exis
sejos, intenções, emoções, informações, formas de tir. Nas palavras ele encontra sua realidade e sua forma. "Esqueci a pa
direcionar e controlar (reciprocamente) os compor lavra que pretendia dizer, e meu pensamento, privado de sua substância,
tamentos dos sujeitos envolvidos na interação. Pela volta ao reino das sombras", reflete Vygotsky, citando o poeta russo
imitação, pela repetição, no ritual das relações so Mandelshtam.
ciais cotidianas, a criança aprende a dizer o que quer Não se trata, portanto, de vestir as palavras com o pensamento,
e a entender o outro pelo gesto. considera Vygotsky, nem de vestir o pensamento com palavras. Pen
O mesmo acontece com o balbucio, que se samento e palavra se articulam dinamicamente na prática social da
transforma em esboço de fala. É a mãe ou alguém linguagem.
mais velho do que a criança e em interação com ela Nesse sentido, as palavras não são formas isoladas e imutáveis.
que atribui inicialmente significados a eles. Elas são produzidas na dinâmica social, seus significados não são es
O universo da linguagem chega à criança me táticos. Uma palavra que nasce para designar um conceito vai sofren
diado pelos outros membros de seu grupo social. A do modificações, vai sendo reelaborada no jogo das práticas e das
A cria11ça apre11de a dizer o que quer e a
mãe fala à criança nomeando o mundo. Ela nomeia, forças sociais.
aponta, compartilha s1gm ·
· · fi1cados com a cnança.
e11re11der 0 outro pelo gesto. Por exemplo, a palavra cultura (do latim colere, "cultivar") inicial
Nessas relações, o mundo vai-se povoando de obje mente estava ligada às práticas agrícolas, significando o cuidado com
tos, de cores e de formas, de gente diversa, com no plantas e animais. Pensadores romanos ampliaram esse significado,
84
mes e modos de ser, de dizer e de fazer também diversos. O mundo passando a palavra a designar também o cultivo pessoal, o refinamento
povoa-se de palavras, pois tudo o que se percebe, tudo o que se sente, dos costumes, a educação elaborada de uma pessoa. Na Idade Moderna, 85
com novas experiências incorporadas ao seu significado, a palavra cul
tura passou a designar tanto uma classificação geral das artes, da reli
gião, dos valores de uma sociedade como a idéia de civilização ou, ain
Sugestão de atividades
da, a totalidade da vida social dos povos, englobando suas práticas ma
teriais e simbólicas.
De modo similar ao que acontece na história social, o significado Organizando as informações do texto
das palavras e das relações e generalizações nelas contidas também se
transforma no processo de desenvolvimento das crianças. Releia o texto considerando as relações entre pensamento e lingua
"Quando uma palavra nova é aprendida por uma criança, o seu de gem vistas por Piaget e por Vygotsky.
senvolvimento mal começou ... ", destaca Vygotsky ( 1 987: 7 1 ). Acom Reflita sobre as seguintes questões:
panhar esse desenvolvimento foi uma tarefa fascinante a que Vygotsky,
tal como Piaget, também se propôs. • Como a linguagem é concebida por eles?
Enquanto Piaget procurou mapear o desenvolvimento do pensa • Que funções da palavra são enfatizadas em seus trabalhos?
mento por meio da linguagem, descrevendo minuciosamente o papel • De que modo cada um deles explica o desenvolvimento da palavra
desempenhado pela palavra em cada um dos estágios da formação do nos indivíduos?
pensamento lógico, Vygotsky procurou retratar o movimento de articu
lação entre palavra e pensamento nas situações e tarefas com que as
crianças defrontam nas suas relações sociais. Refletindo sobre as informações do texto
-
Trabalho de campo
Os primeiros esquemas verbais gados ao ato imediato. Por exemplo, ela enumera, para si mesma ou osci/a11do
conforme a
para uma outra pessoa, coisas que viu ou utilizou para brincar, os situação 1•ivida.
As primeiras palavras usadas pela criança reúnem sob uma mesma alimentos que consumiu numa das refeições, algum tempo depois de
denominação vários objetos e situações que a interessam ou que fazem ter vivido tais situações. Ela conta fatos vividos ou presenciados por
parte de sua experiência. Ela pode, por exemplo, usar uma onomatopéia ela, como um gafanhoto pulando no jardim (Fanhoto, fanhoto sal
clássica, como bruuuuu, para designar o carro que passa pela rua, qual tar.. ) ou a saída da tia (Ti Madena no automove, parti no automove),
.
quer meio de transporte que apareça em sua frente, pessoas ou animais como exemplifica Piaget.
que se movimentam na rua, brinquedos que se movimentam, assim A construção das primeiras representações verbais se dá por meio
90 da narrativa. Na narrativa, a linguagem deixa de acompanhar simples-
como para manifestar o desejo de andar de carro, etc. O mesmo pode
mente o ato para reconstituir uma ação passada. A palavra deixa de ser experiência particular: "um senhor que tem Luciennes e Jacquelines".
parte do ato para tomar-se um signo, uma evocação do ato, passando a A classe, analisa Piaget, é uma espécie de indivíduo-tipo que se repete
ter a função de representação (no sentido de nova apresentação) e tam em vários exemplares.
bém de comunicação - a criança dirige essas narrativas a si mesma ou Do mesmo modo, o indivíduo particular, convertido em indivíduo
a outra pessoa. tipo, tem menos individualidade. Isso se evidencia na maneira como
Da narrativa, a criança Jacqueline define "o que são Luciennes". Ela não enfatiza a singulari
passa para a descrição, que é, dade da própria irmã, nem a relação particular de parentesco que as liga.
nas palavras de Piaget, "uma Ela refere-se à irmã como um exemplo típico de uma categoria genérica
narrativa que se prolonga até - a das meninas pequenas.
atualizar-se". Na descrição, a O mesmo acontece no episódio a seguir.
palavra acompanha a ação em
curso, mas não faz parte dela, Rafael, 3 anos, ao ganhar do pai a camiseta da Seleção Brasi
como na linguagem inicial. A leira de Futebol, exclama: "Oba, pai! O Romário! ".
palavra descreve, reapresenta o E, ao encontrar na escola várias crianças com a camiseta da
que foi percebido na situação; seleção, comenta com a mãe: " Viu quanto Romário ? ".
não mais enuncia ações possí
(Episódio extraído da experiência familiar de uma das autoras.)
veis, mas denomina os elemen
tos envolvidos na situação. A
A criança pensa por imagens, e são as imagens que marcam a signi
criança nomeia, para si mesma
ficação que ela atribui às palavras. O nome do indivíduo-tipo - um jo
ou para outras pessoas, objetos
gador específico - é utilizado por ela para denominar um grupo de
A narrativa ou pessoas que a cercam (boneco, pedra, gato, papai, mamãe, vovó),
jogadores e as camisetas utilizadas por eles.
torna-se um partes desses objetos ou dessas pessoas (nariz, boca, etc.), ações, etc.
Como a criança generaliza com base na percepção imediata de se
recurso de Piaget destaca como indicador relevante das transformações da
comunicação melhanças e não a partir de considerações lógicas ou relacionais, suas
relação da criança com a palavra o aparecimento da pergunta O que
para a criança. categorias oscilam entre a generalização e a individualização.
é?, que se relaciona ao mesmo tempo com o nome de objetos ou pes
Os ensaios de generalização e individualização também aparecem
soas particulares e com o conceito ou a classe do objeto designado
em relação às estruturas da língua.
(isto é, o conjunto composto por todos os elementos referidos pela
palavra).
Beto, aos 5 anos, utiliza a expressão "tavo " por estava, em
A nomeação, nessa fase, oscila entre a generalidade (conceito) e a
frases como "Eu tavo com fome", "Eu tavo com sono ", em que ele
individualidade. Piaget relata um episódio envolvendo sua filha mais
próprio é o sujeito. Corrigido pela mãe, ele resiste: "Não, mãe. Eu
velha, Jacqueline, quando tinha 3 anos e 2 meses.
sou menino. Menina é que fala tava ".
Ao cruzar com um homem na rua, a criança pergunta ao pai: Regina, 7 anos, ao aprender na escola a classificação das pa
- "Este senhor é um papai? " lavras segundo o gênero, pergunta à mãe ao fazer um exercício
- "Que é que é um papai ? " escolar: "Mamãe, eu sou feminina porque sou menina, e mamãe...
Jacqueline responde: éfemulher?"
- "É um senhor. Ele tem muitas Luciennes (nome de sua irmã (Episódios extraídos da experiência familiar d e uma das autoras.)
mais nova) e muitas Jacquelines. "
- "Que é que são Luciennes? " A criança também considera expressões relacionais, como mais
- "São meninas pequenas e as Jacquelines são meninas escuro ou maior, como atributos absolutos e não comparativos. Assim,
grandes. " para ela mais escuro significa "muito escuro", do mesmo modo que
maior significa "muito grande" .
<Episódio extraído do livro A formCl�'lio do sim/mio 110 criança.
p. 289.) O caráter imitativo e sincrético das primeiras palavras da criança, a
não-generalização e a não-individualidade das primeiras representa
Ao nomear o senhor como "um papai", a criança o inclui em uma ções verbais estão mais próximos dos símbolos individuais do que dos
classe genérica - a classe dos pais, composta por homens que têm fi conceitos utilizados na linguagem adulta. Daí Piaget considerar os mo
92 lhos. No entanto, ao explicitar o conceito de pai, define-o a partir da sua dos de elaboração da palavra pela criança como pré-conceitos. 93
O desenvolvimento da elaboração conceituai das palavras A ausência de critérios lógicos na elaboração conceituai na criança
está exemplificada na situação de sala de aula que descrevemos e anali
Nós, adultos, utilizamos a linguagem conceitualmente. Os concei samos no capítulo 7. Naquela situação, observamos como as crianças
tos supõem uma definição fixa, que depende de uma convenção social construíam o significado da palavra pátria: a partir das suas experiên
estável. Ou seja, nossas palavras não se restringem a designar determi cias e das imagens delas resultantes, sem considerar elementos logica
nado objeto ou acontecimento. A:plicando-se a um conjunto de elemen mente pertinentes ao conceito estabelecido. Vimos também como esses
tos da realidade, elas generalizam a informação sobre o objeto, incluin elementos flutuavam ao sabor da experiência pessoal imediata a que
do-o em uma categoria. eram relacionados. Por exemplo, o soldado é o elemento que define a
Como essa generalização se baseia numa correspondência lógica, palavra pátria em razão de sua presença nos desfiles de 7 de Setembro
ela não muda ao sabor das situações. Os traços comuns definidores de ou dos desenhos feitos na escola.
uma categoria de objetos tomam-se estáveis. O caráter generalizante e O desenvolvimento da capacidade de apreender conceitualmente a
estável da palavra nos possibilita transmitir o pensamento a outra pes linguagem social depende do desenvolvimento das operações de pensa
soa e sermos por ela compreendidos, bem como considerar o ponto de mento, considera Piaget. As operações são ações interiorizadas que vi
vista do outro e sua experiência. sam à explicação e à constatação. Nelas, as ações são coordenadas e
Por exemplo, ao dizer a palavra relógio, não temos em mente ape reversíveis (conforme vimos no capítulo 4).
nas determinado relógio, e sim um tipo, uma categoria de objetos a que Inicialmente, as operações desenvolvem-se em relação a situações
essa palavra se aplica. Do mesmo modo, aqueles que nos escutam não imediatas. A criança ainda necessita do suporte perceptivo para apreen
têm em mente um relógio específico, e sim esse tipo de objeto, que é o der as relações lógicas, para considerar as relações de inclusão entre
que lhes permite compreender o sentido generalizante dessa palavra. parte e todo (classificação), para apreender outros pontos de vista além
Entre os significados das palavras que utilizamos, há graus de da própria experiência individual (descentração). Ela elabora generali
generalização distintos, que nos permitem estabelecer relações lógicas zações a partir de exemplos concretos.
entre os objetos e eventos do meio, incluindo uma categoria em outra. As características dos modos de pensar da criança nesse período
Podemos nos referir, por exemplo, ao cachorro que temos em casa não derivam das categorias lógicas da linguagem. A linguagem facilita,
como bassê, animal doméstico, ser vivo. Ao utilizarmos tais palavras, segundo Piaget, a generalização do pensamento, mas não é sua fonte.
estamos incluindo o objeto dado - o cachorro - em um sistema de Piaget relata que diversos estudos possibilitaram perceber que as
categorias, hierarquicamente organizadas, de contraposições abstra crianças resolvem vários problemas, embora tenham dificuldade para
tas: um cão bassê não é um buldogue, nem um cachorro vira-lata; um explicar verbalmente o raciocínio que lhes permite chegar à solução, ou
cachorro, como alguns outros animais, é um animal doméstico, em seja, elas não conseguem transpor em palavras toda a atividade mental
oposição a outros animais que são selvagens; como animal, o cachor que já sabem colocar em atos.
ro é um ser vivo e não um ser inanimado, etc. As expressões bassê, Somente na adolescência, o indivíduo toma-se dotado do raciocí
animal doméstico e ser vivo mantêm entre si relações lógico-verbais nio dedutivo-hipotético, que lhe permite fazer considerações e racio
que independem das características particulares de cada objeto ou cinar apenas no plano representativo, atingindo plenamente o pensa
evento em si. mento operatório. Nesse estágio, no qual as operações não se cons
troem mais sobre os objetos, sobre as situações imediatas, mas sobre
proposições, a linguagem toma-se uma condição necessária do pensa
vivo inanimado
mento, passando a fazer parte dele. É nessa fase que os indivíduos tor
nam-se capazes de apreender conceitualmente a linguagem social.
animal vegetal
�
doméstico selvagem
o desenvolvimento do significado da palavra na criança
omlo gato
Diferentemente de Piaget, Vygotsky considera que a elaboração
conceituai pela palavra, desenvolvida culturalmente pelos indivíduos
bassê ovelheiro como forma de refletirem cognitivamente suas experiências, não ocorre
naturalmente na criança. Ela começa nas fases mais precoces da infân
"Roy" "Chiquinho" cia, por meio do emprego da fu nção mais simples da palavra - a no- 95. ·.
meação -, e seu desenvolvimento depende das possibilidades que cada A função designativa da palavra, por mais simples que pareça, é
indivíduo tem (ou não) de compartilhar e elaborar em suas interações os produto de um longo desenvolvimento. Inicialmente, a palavra está vin
conteúdos e as formas de organização dos conceitos. culada à situação em que é ouvida e utilizada. Ela passa a ter uma referên
cia estável, embora conserve ainda sua ligação com a ação prática, so
As primeiras palavras mente quando a criança atinge mais ou menos os 3 anos (Luria: 1 987).
Segundo pesquisas conduzidas por vários psi A elaboração das funções analítica e generalizadora
cólogos e apresentadas por Luria no livro Pensa da palavra
mento e linguagem ( 1 987: capítulo 3), a função
denotativa (função de nomeação) da palavra de Quando a palavra adquire uma referência estável, o desenvolvi
senvolve-se gradualmente na criança desde seus
mento de seu significado ainda não está concluído. Embora sua função
primeiros meses de vida, entrelaçada com fatores
designadora pareça ser constante e a mesma para um adulto e uma
não-verbais.
criança, permitindo que ambos se comuniquem, suas funções analítica
Pouco a pouco, a criança responde ao que os
e generalizadora sofrem profundas transformações à medida que o indi
adultos dizem a ela voltando o olhar para os obje
víduo avança no domínio das operações intelectuais culturalmente de
tos nomeados ou tentando alcançá-los. Inicialmen
senvolvidas.
te o significado da palavra depende da situação em
Vejamos uma situação que nos ajuda a perceber essas diferenças de
que a criança se encontra ao ouvi-la, da pessoa que
elaboração.
a pronuncia, da entonação de voz utilizada, do em
prego (ou não) de gestos, etc. Gradualmente, cada Voltando da escola, a mãe conversava com Eduardo, seu filho
um desses fatores situacionais enumerados vai dei de 3 anos.
xando de ter influência decisiva na compreensão Mãe: Quando a gente chegar em casa, vamos brincar?! Em um diálogo,
da palavra. Por volta dos 3 anos de idade, ela reage Filho (emburrado): Não quero... mãe e filho
. 4 .. �>., .
de modo seletivo ao objeto nomeado, independen- Mãe: Ah..., vamos jogar bingo! expressam
_
---.,.�� temente da situação. diferentes grallS
Filho: Não quero!
O mesmo processo acontece quanto à utilização da palavra. Dife Mãe: Ih, bobinho. Bingo é uma delícia!
de generaliwção
A palavra rentemente dos primeiros sons que a criança emite, que são manifesta Filho (olhando espantado para a mãe): É de comer?
de uma mesma
palavra.
desenvolve-se ções de seu estado emocional, suas primeiras palavras são tentativas de
gradualmente "ª -
reprodução dos sons assimilados da fala do adulto. Essas primeiras pa- (Episódio narrado pela mãe a uma das autoras.)
criança, desde os
lavras estão fortemente vinculadas a at1v1·d ade em que a cnança esta
· '
' ·
seus primeiros
O adjetivo delícia, utili
meses de vida. envolvida. Seu significado é difuso, uma vez que seu referente (o objeto
ou a pessoa que a palavra nomeia) muda conforme a situação em que zado pela mãe, tem uma re
elas são pronunciadas. ferência estável tanto para
ela quanto para a criança:
Rafael, aos 8 meses, utilizava a expressão bá, para nomear o ambos revelam, na interlo
irmão (Beto), a mãe e o pai sempre que estes se aproximavam dele, cução, que aplicam esse qua
e também para chamá-los quando estavam distantes, mas dentro de lificativo a determinados ti
seu campo visual. A expressão bá, acompanhada do gesto de apon ros de situação da realidade.
tar; era utilizada também com afinalidade de indicar; para qualquer É possível perceber também,
pessoa, algum objeto que ele desejava que alcançassem para ele. na dinâmica enunciativa, que
Gradativamente, Rafael passou a utilizar a expressão bá ape os dois elaboram a palavra
nas para referir-se ao irmão. Bá se diferenciou de mã e pá, que ele delícia de forma generali
começou a empregar para designar o pai e a mãe (e há que se des zante: para a mãe, delícia é
tacar; nesse caso, a persistência do irmão em ensinar Rafael a dizer um qualificativo que se apli
as palavras mamãe e papai). Depois, novas palavras passaram a ca a coisas ou situações que produzem deleite; para a criança, delícia é
indicar aquilo que ele desejava, até que, quando Rafael chegou aos um qualificativo que se aplica a alimentos gostosos. A diferença está no
3 anos, o próprio irmão deixou de ser bá, passando a ser Beto. grau de generalização que a palavra tem para cada um dos
96
(Episódio extraído da experiência familinr de uma das autoras.) interlocutores: mais amplo para a mãe e mais restrito para a criança.
Como destaca Vygotsky, o conceito ligado a uma palavra sempre começando a ter uma idéia vaga do significado da palavra. Sente neces
representa um ato de generalização, qualquer que seja a idade da pes sidade de usá-la, e, ao fazê-lo, o grupo confirma a adequação do signifi
soa. Mas essa generalização se amplia à medida que os contextos vão cado esboçado, fortalecendo-o. A palavra agora lhe pertence: "Daí,
sendo diversificados e as funções intelectuais complexas, como a abs mãe, eu vi que eu tinha aprendido".
tração e a generalização, vão sendo elaboradas e consolidadas. Nesse Funções intelectuais básicas - atenção, formação de imagens, as
sentido, diz-nos Vygotsky, "quando uma palavra nova é aprendida pela sociação, comparação, inferências - participam da elaboração do sig
criança, o seu desenvolvimento mal começou" ( 1 987: 7 1 ). nificado da palavra, associadas a ela. A palavra funciona como meio
para centrar ativamente a atenção, para abstrair e selecionar os traços
Gustavo, de 6 anos, era o garoto menor da turma defutebol da relevantes na situação considerada (análise), para estabelecer relações
rua. Apesar da diferença de idade, os garotos de 8 a 1 0 anos o entre esses traços e sintetizá-los (generalização).
aceitavam, porque era bom de bola e se enquadrava às exigências Por pressupor a articulação entre funções intelectuais complexas,
da turma: não reclamava e esperava sua vez de jogar. como a generalização e a análise, que não podem ser dominadas na
Um dia, ele contou para a mãe a grande dificuldade por que aprendizagem inicial, o processo de elaboração conceituai desenvolve
passara para descobrir o significado de uma palavra muito utiliza se na infância por meio do pensamento por complexos e dos conceitos
da pelos meninos durante o jogo. A palavra era frangueiro. Ela lhe potenciais.
causava estranheza porque ele a associava apenas a frangos ( "Eu
pensava que era o lugar de venderfrango"), e não ao futebol. Ele O pensamento por complexos e os conceitos potenciais
não podia perguntar aos meninos o que eles queriam dizer com
aquela palavra, pois seria alvo de gozações. O pensamento por complexos cria as bases para a generalização.
Assim, decidiu ficar atento às situações do jogo para tentar Nesse tipo de pensamento a criança busca estabelecer relações entre os
entender em que momentos a palavra era usada. O que acontecia elementos da realidade, unificar impressões dispersas. Por exemplo, !!la
durante as jogadas para que alguém a pronunciasse ? pode definir a palavra supermercado como o lugar onde a mãe compra
Depois de observar por vários dias, Gustavo chegou à conclu doces, bolachas, iogurte, sucos. Nesse caso, a palavra é elaborada com
são de que a palavra estava relacionada ao goleiro que deixava base no sentido afetivo que o supermercado tem para a criança. Ela tam
passar a bola e, na primeira oportunidade que teve, berrou: bém pode definir a palavra como um lugar grande e movimentado aon
"Frangueiro! ". de vai com os pais para fazer compras. Nessa situação, a palavra super
- Daí, mãe, eu vi que eu tinha aprendido. Sabe por quê? Por mercado é elaborada com base na imagem direta do supermercado con
que eles viraram pra mim e disseram "Aí, Gutão! ". creto e na situação real de compra.
(Episódio lembrado e relatado por Estela. mãe de Guto. a uma das No pensamento por complexos, a palavra evoca e agrupa uma série
autoras.) de elementos e situações da realidade não apenas em razão das impres
sões subjetivas da criança, mas também das relações que de fato exis
No processo de elaboração do significado, o indivíduo explora o tem entre esses elementos nos seus contextos de uso (os supermercados
material sensorial e opera intelectualmente sobre ele, orientado pela são realmente lugares de compra, onde doces, bolachas, iogurte e sucos
palavra em funcionamento nas interações. A palavra aprendida, fran são encontrados).
gueiro, suscita imagens (frango) e associações (lugar de vender frango) Segundo Vygotsky, a diferença principal entre um pensamento por
das quais a criança lança mão para apreender seu sentido. Como o con complexos e um conceito está no tipo de relação que une os elementos
texto não comporta essas primeiras tentativas de significação, a palavra numa palavra. No pensamento por complexos as relações estabelecidas
passa a dirigir as observações da criança, que centra ativamente sua são concretas, factuais e tão diversas quanto os contatos e as relações
atenção nas situações do jogo e nas enunciações nele envolvidas. que de fato existem entre os elementos da realidade. Diferentemente, o
As situações não revelam por si mesmas os possíveis significados conceito ancora-se em relações lógicas, cujo grau de generalização ul
da palavra frangueiro. É preciso analisá-las, compará-las. O que dife trapassa as relações imediatas.
rencia as situações em que a palavra é empregada daquelas em que não Voltando ao exemplo do supermercado, ao procurarmos no dicio
é? Qual a semelhança entre todas as situações em que a palavra é utili nário essa palavra, encontramos uma definição como esta: "Loja de
zada? Nesse processo de observação e análise, algumas peculiaridades auto-serviço, onde em ampla área se expõe à venda grande variedade de
se fazem notar: frangueiro é uma palavra dirigida ao goleiro, e não a mercadorias, particularmente gêneros alimentícios, bebidas, artigos de
outros jogadores; frangueiro é uma palavra dirigida ao goleiro em de limpeza doméstica e perfumaria popular" (Aurélio Buarque de Holanda
terminadas situações, e não em outras. A criança analisa e generaliza, Ferreira. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Nova Fronteira: Rio
de Janeiro, 1 986). A definição conceituai da palavra supermercado sintetizados novamente, e a síntese abstrata daí resultante torna-se o
comporta o complexo elaborado pela criança, mas o ultrapassa em mui principal instrumento de pensamento" (Vygotsky, 1 987 : 68). A palavra
to. Ela remete a um tipo de sistema de compra (auto-serviço), que é passa a ser usada com referência a categorias abstratas. Sua nova função
parte de um sistema social de troca (o comércio), que é parte de um torna-se codificar a experiência, os objetos e situações do mundo em
sistema econômico (modo socialmente organizado de produção e distri esquemas conceituais.
buição). Na elaboração conceituai da palavra, as relações imediatas e Para exemplificar essas características dos conceitos, basta recor
parciais integram-se e subordinam-se a relações lógico-verbais, que darmos as definições dicionarizadas de supermercado e de pátria já
abarcam muito mais elementos da palavra, generalizando-a. apresentadas neste capítulo. Elas envolvem as experiências que as crian
Embora a busca de ligações seja o traço distintivo do pensamento ças destacam em suas elaborações, mas as superam em generalidade.
por complexos, para chegar a elas a criança dá seus primeiros passos na
análise: ela destaca alguns elementos na totalidade da experiência com O papel do outro no desenvolvimento da
base no grau máximo de semelhança entre eles. Ela isola essa seme elaboração conceituai
lhança, tomando-a como atributo para definir a palavra.
No caso da palavra supermercado, por exemplo, um traço distinti As mudanças nas formas de utilização e de compreensão das pala
vo que costuma aparecer nas elaborações das crianças é a função social vras ao longo do desenvolvimento da criança são produzidas nas suas
de lugar de compra, ainda que por trás dessa idéia estejam relações interações verbais com os adultos, crianças mais velhas e produtos cul
afetivas e a imagem imediata do próprio supermercado. turais (livros, revistas, jornais, TV, propagandas, etc.). Nessas relações,
Podemos encontrar outro exemplo desse processo de elaboração a criança integra-se· ao fluxo da comunicação verbal, adquirindo novas
conceituai na situação de sala de aula descrita no início do capítulo 7. palavras e ampliando as possibilidades de significação daquelas que já
Ao definirem pátria como "coisa de soldado'', as crianças elaboram um conhece.
pensamento por complexos com base em elementos comumente pre
sentes em eventos e situações da vida real (os desfiles, os desenhos) por Beto, aos 7 anos, perguntou um dia à mãe:
elas agrupados na palavra. - Frágil é perigoso ?
O trabalho mental de destacar um elemento da totalidade e tomá-lo A mãe, sem entender a indagação da criança, quis saber o mo
como critério para conferir o significado à palavra é uma característica tivo da pergunta.
do pensamento analítico e também a marca distintiva dos conceitos po - Por que você está me perguntando isso?
tenciais. Eles resultam de "uma espécie de abstração isolante", segundo - É porque aqui nesta caixa está escrito CUIDADO, FRÁGIL
as palavras de Vygotsky ( 1 987: 67), uma vez que as características dos
elementos e situações da realidade não são consideradas em conjunto. (Episódio extraido da experiência familiar de uma das autoras.)
OLIVEIRA, M. K. de. Vygotsky. São Paulo: Scipione, 1 993. (Em especial sendo transmitidos prontos à criança e memorizados tal qual por ela.
os capítulos 3, Pensamento e linguagem, e 4, Desenvolvimento e Grande parte dos méto
dos de ensino ainda utilizados
aprendizado.)
em nossas escolas baseia-se
PIAGET, J. A construção do real na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1 975.
nessa concepção. Ensinam-se
A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro: Zahar,
às crianças os conceitos cien
____ ..
Exercitando a síntese
,.
Retome os dados do relatório do trabalho de campo sugerido no ca
pítulo anterior e complemente-o, utilizando informações e questio
namentos possibilitados pelo presente capítulo. Reelabore sua primeira
versão, retomando os pontos que, depois dessa reflexão, considerar ne
cessários.
Exercitando a análise
Vamos dividir a classe em dois grupos:
•
Os alunos do grupo 1 deverão ler o texto "Ensinando CiênCias e Es
tudos Sociais nas séries iniciais ", de Terezinha Nunes Carraher e
David W. Carraher, publicado em Isto se aprende com o Ciclo Básico
(Projeto Ipê, curso II. São Paulo: SE/CENP, 1 986).
•
Os alunos do grupo 2 deverão ler "A elaboração conceituai: a dinâ
mica das interlocuções na sala de aula ", de Roseli A. C. Fontana, no
livro A linguagem e o outro no espaço escolar: Vygotsky e a constru
ção do conhecimento, de A. L. Smolka e M. C. Góes, editado pela
1\ · JJ?h) Gú d elr �1
Papirus.
Nesses textos, os autores abordam situações de elaboração de con /
ceitos em sala de aula ou experimentalmente. •
... .
Cada aluno deve ler atentamente o texto que coube ao seu grupo e -">1-.
d 8 0 B n 'f e _l'f
-.. . "
_-!- "����
adotada pelo autor e suas implicações pedagógicas.
Cada grupo deve fazer uma síntese da sua leitura e apresentá-la à .... ...:·
classe.
Reunidos, os grupos devem debater sobre as posições defendidas nos .- -
textos, tendo como referência a seguinte questão: Como ensinar às crianças?
1 16 . ..-
..
Introdução Capítulo 10
O papel da brincadeira no
B '
rincar e desenhar são atividades fundamentais da crian
} ça. Ela brinca e desenha na rua, em casa, na· escola.
Pela brincadeira e pelo desenho, ela fala, pensa, elabora
desenvolvimento da criança
sentidos para o mundo, para as coisas, para as relações.
Pela brincadeira, objetos e movimentos são transformados. As rela Hora do recreio. No pátio, crianças correm, pulam, jogam bola,
ções sociais em que a criança está imersa são elaboradas, revividas, brincam de amarelinha, de roda e fazem outras tantas brincadeiras.
compreendidas. Brincando de casinha, de médico, de escolinha, de Na sala de aula, crianças reunidas em pequenos grupos estão con
roda, de amarelinha, de bolinhas de gude ou de pião, a criança se rela centradas em jogos que a professora escolheu para ajudá-la a ensinar
ciona com seus companheiros, e com eles, num movimento partilhado, algum conteúdo. Em outra sala (ou em outro momento), crianças prepa
dá sentido às coisas da vida. ram a encenação de um texto.
Pelo desenho, a criança deixa suas primeiras marcas. Traços, rabis Na aula de Educação Física
cos, círculos, que, aos poucos, vão assumindo formas mais definidas. as crianças jogam, pulam corda,
As marcas são nomeadas - pelos outros e por ela mesma - e come praticam esportes.
çam a se tomar simbólicas. Pelo desenho é possível representar objetos, Na pré-escola, as crianças
pessoas, espaços. A criança desenha sozinha, com outros, para outros. brincam na areia, imitam bichos,
Pelo desenho ela fala de si e do mundo. montam quebra-cabeças, inven
São essas as atividades da criança para as quais vamos, agora, diri tam coisas com sucata, brincam
gir o nosso olhar, procurando compreendê-las a partir das perspectivas de faz-de-conta; enfim, passam
de Luquet (no desenho), Piaget e Vygotsky. boa parte do tempo brincando.
No capítulo 1 0, vamos apresentar as concepções de Vygotsky e de A brincadeira se faz pre
Piaget sobre a brincadeira, sobre por que as crianças brincam e qual a sente na escola nas mais varia
sua importância no processo de desenvolvimento. das situações e sob as mais di
No capítulo 1 1 , acompanharemos as transformações por que passa versas formas. Muitas também
a brincadeira da criança, desde os primeiros jogos até aqueles com re são as concepções sobre o seu
gras, e discutiremos o lugar da brincadeira na escola. lugar e sua importância na práti- ��?""'•· �·· ..: ..;,..:;.,_.,, ·
..,
cursos didáticos importantes, ou, então, especialmente na pré-escola, Inhelder, 1 989: 52).
todo o trabalho pedagógico pode basear-se na brincadeira. A brincadeira é, então, uma atividade que transforma o real, por
Diante desse quadro, somos levados a perguntar: "Mas, afinal, qual assimilação quase pura às necessidades da criança, em razão dos seus
a importância da brincadeira na vida da criança e qual o lugar que ela interesses afetivos e cognitivos.
pode ou deve ocupar na escola?". É isso o que vamos procurar examinar
a seguir, com base na psicologia do desenvolvimento.
Uma garotinha que haviafeito diversas perguntas sobre o me
canismo dos sinos, observado num velho campanário de aldeia,
mantém-se imóvel e em pé ao lado da mesa do pai, fazendo um
Por que as crianças brincam? barulho ensurdecedor. " Você está me atrapalhando um pouco, não
vê que eu estou trabalhando ? ", acode o pai. E a pequena: "Não
Todos nós já ouvimos, ou até já demos, algumas respostas à ques fale comigo, sou uma igreja ". Da mesma forma, profundamente
tão formulada acima, como: "Criança brinca para descarregar energia"; impressionada por um pato depenado sobre a mesa da cozinha, a
"Criança não trabalha, não precisa se preocupar com a sobrevivência e, criança é encontrada à noite, estendida em um canapé, a ponto de
portanto, brinca para ocupar o seu tempo"; ou, ainda, "Criança brinca a cuidarem doente e de a crivarem de perguntas, a princípio sem
por puro prazer". respostas; depois, com vozfraca, ela acaba explicando: "Eu sou o
Hoje, prestar atenção à brincadeira infantil e buscar explicações pato morto! ".
(de senso comum ou científicas) para ela faz parte de nosso dia-a-dia.
Parece-nos natural que as crianças brinquem e que tenha sido sempre (Episódio relatado por Piaget e Inhelder, em A psicologia da
criança.)
assim.
No entanto, não foi sempre assim. Houve um tempo em que a idade
não era um critério de diferenciação social, e a criança partilhava os Para Piaget, situações como essas indicam que na brincadeira do
trabalhos e as festas dos adultos. Conforme vimos no primeiro capítulo, faz-de-conta (chamada por ele de jogo simbólico) as crianças criam
foi apenas nos séculos XV e XVI que nas sociedades ocidentais as símbolos lúdicos que podem funcionar como uma espécie de lingua- ·
crianças foram afastadas das atividades adultas. E a idéia da infância gem interior, que permite a elas reviver e repensar acontecimentos inte
como um período particular somente se consolidou no século XVII, ressantes ou impressionantes. As crianças, mais do que repensar, neces
acompanhada da elaboração de uma teoria filosófica sobre a especifici sitam reviver os acontecimentos. Para isso recorrem ao simbolismo di
dade infantil, que tornou possível o posterior aparecimento de uma psi reto da brincadeira.
cologia da criança e de seu desenvolvimento.
As relações sociais com o mundo adulto: a concepção
A assimilação do real ao eu: a concepção de Piaget
de Vygotsky
A psicologia vem mostrando que a brincadeira tem um papel im
portante no desenvolvimento da criança e que ela satisfaz algumas de Vygotsky também analisa a emergência e o desenvolvimento da
suas necessidades. Mas que necessidades são essas? O que leva a crian brincadeira nas relações sociais da criança com o mundo adulto.
ça a brincar? Segundo ele, na idade pré-escolar algumas modificações ocorrem
Para Piaget, a brincadeira infantil é uma assimilação quase pura do no desenvolvimento da criança. Como demonstra Leontiev, impor
real ao eu, não tendo nenhuma finalidade adaptativa. A criança pequena tante psicólogo soviético, o mundo objetivo que a criança conhece
sente constantemente necessidade de adaptar-se ao mundo social dos está continuamente se expandindo e, nesse período, j á não inclui
adultos, cujos interesses e regras ainda lhe são estranhos, e a uma infini apenas os objetos que constituem o ambiente que a envolve (como
dade de objetos, acontecimentos e relações que ela ainda não com seus brinquedos, sua cama ou os utensílios e objetos com os quais
preende. De acordo com Piaget, a criança não consegue satisfazer todas ela está sempre em contato e sobre os quais pode agir), mas também
as suas necessidades afetivas e intelectuais nesse processo de adaptação os objetos com os quais os adultos operam e sobre os quais ela ain-
1 20 ao mundo adulto. da não pode agir. · 1 21
-------
Quem foi Leontiev? A brincadeira é, então, a forma possível de satisfazer a essas necessi
dades,j á que possibilita à criança agir como os adultos (dirigindo um carro,
. _,
Alexis N. Leontiev, nascido em 1903, foi um dos cuidando de um bebê, fazendo "comidinha") em uma situação imaginária.
mais importantes psicólogos soviéticos que trabalha Para Vygotsky, a situação imaginária da brincadeira decorre da ação
ram com '\rygotsky e Luria. Membro daAcademia Sovié da criança. Ou seja, a tentativa da criança de reproduzir as ações do adul
tica de Ciências Pedagógicas, recebeu em 1968 o título to em condições diferentes daquelas em que elas ocorrem na realidade é
de doutor honoris causa pela Universidade de Paris. que dá origem a uma situação imaginária. Isso significa que a criança
Leontiev pesquisou principalmente a relação en não imagina uma situação para depois agir, brincar. Ao contrário, para
tre o desenvolvimento do psiquismo humano e a cultu imaginar, ela precisa agir. É o que vamos compreender melhor analisan
ra, ou seja, entre a evolução dasfunções psíquicas e a do uma situação real de crianças brincando, descrita a seguir.
assimilação individual da experiência histórica.
Assim como lrygotsky, Leontiev criticou as con
cepções mecanicistas do comportamento humano. Sua
preocupação era encontrar um referencial materialis Brincando de estação de trem
ta histórico e dialético para a psicologia.
A defesa que Leontievfez da natureza sócio-histó Algumas crianças brincam de estação de trem .!'!m uma pré-escola
rica do psiquismo humano teve como base a teoria na antiga União Soviética, observadas por um pesquisador.
marxista do desenvolvimento social.
Teórico e experimentador, Alexis Leontiev não se limitou ao tra Sete crianças estão brincando em uma sala grande. B é o che
balho de laboratório. Preocupou-se com os problemas da vida hu fe da estação. Ele está usando um boné vermelho e carrega um
mana em que o psiquismo intervém. Seu campo de estitdos compre disco de madeira em uma vara. Ele cercou uma área com cadeiras,
endeu principalmente a pedagogia, a cultura, o problema da perso explicando que é a estação onde o chefe mora.
nalidade. Criou a Faculdade de Psicologia da Universidade de T, L e N são passageiros. Eles dispuseram as cadeiras em fila,
Moscou, da qual se tomou decano. uma atrás da outra, e sentaram-se.
Leontiev morreu em 1979. N: "Como podemos começar sem um condutor? Eu serei o ma
A situação (Adaptado de Vygotsky. Luria, Leontiev. linguagem, desen
quinista ". Ele vai para afrente e começa a resfolegar: "Ssh-ssh-ssh ".
imaginária da volvimento e aprendizogem. São Paulo: lcone/Edusp.) G é a garçonete do restaurante. Ela cercou um "restaurante "
brincadeira é com cadeiras em tomo de uma mesinha, pôs uma caixa de papelão
uma decorrência sobre ela e encheu-a de pedaços de papel rasgados por ela e que
da ação. afimw
Ou seja, a criança passa a se interessar por uma esfera mais ampla seriam o "dinheiro ". Perto da caixa, ela dispôs ordenadamente,
\Ygotsky.
da realidade e sente necessidade de agir sobre ela. Agir sobre as coisas é em fileiras, pedacinhos de biscoito. "Veja como eu tenho um res
a principal forma de que a criança taurante bem-fomido ", diz ela.
dispõe para conhecê-las, compreen Ba: "Eu venderei as passagens... oh! Como se chama quem
dê-las. Nesse período, ela tenta atuar faz isso? ". "Caixa ", diz o pesquisador. Ba: "Sim, sim, o caixa. Dê
não apenas sobre as coisas às quais me um pouco de papel". Tendo obtido o papel, ela o rasga em tiras
tem acesso, mas esforça-se para agir e separa os pedaços maiores. "Aquelas são as passagens e estes
como um adulto: quer, por exemplo, (os pedaços pequenos) o dinheiro, para dar o troco ".
dirigir um carro ou fazer comida. B dirige-se a N: "Quando eu lhe der este disco, você imediata
Surge, então, uma contradição mente começa ". N imita o som de descarga de uma máquina e os
entre a necessidade de agir sobre um passageiros ocupam seus lugares. De repente, B diz: "Os passa
número cada vez maior de objetos e o geiros estão embarcando sem bilhetes e está na hora do trem par
desenvolvimento das capacidades fí tir ". Os passageiros correm para o guichê de venda de passagens,
sicas. Em outras palavras, surgem na onde Ba está sentada, esperando. Eles estendem a ela pedaços de
criança as necessidades não realizá papel e ela lhes dá, em troca, as passagens. Os passageiros voltam
veis imediatamente, no dizer de a seus lugares. B aparece e dá o disco a N. N imita o som de descar
Vygotsky, e que se tomam motivo ga, sopra, e eles "partem ".
para as brincadeiras. Isso não significa, porém, que as crianças com G (com ar aborrecido): "Quando é que eles virão para com
prar?". B: "Eu posso vir agora, o trem partiu e por isso eu posso ". 1 23
preendem as motivações que as levam a brincar.
Ele vai até o restaurante e pede um bolo. G lhe dá um e pergunta:
podem se transformar em um trem. Desse modo, a criança transforma
"E o dinheiro ? ". B corre até o pesquisador e, tendo recebido um
o significado dos objetos de acordo com seus desejos, sem preocupa
pedaço de papel, volta e "compra " um bolo. Ele come com ar s�
ção de adaptar-se à realidade.
tisfeito. Ba mexe-se na cadeira, olha para o restaurante, mas nao
Assim, na brincadeira qualquer coisa pode transformar-se em ou
se levanta. Em seguida, ela olha novamente para o restaurante e
tra, sem regras nem limitações. Essa possibilidade de livre transforma
para o pesquisador, e pergunta: "Quando é que vou com: r? Não
ção de significado dos objetos explica-se pelo predomínio da atividade
_
há ninguém aqui agora ", diz ela, como que para se 1ustificar. N
assimilativa da criança, ou seja, pela incorporação a seus esquemas de
observa: "O que é que está impedindo ? Vá em frente ". Ba olha ao
ação e pensamento de objetos diferentes sem a correspondente transfor
mação (acomodação) desses esquemas e com o único propósito de per
redor, depois corre para o restaurante, compra rapidamente e vol
ta depressa. G arruma de novo os seus bolos, mas não se serve.
mitir à criança imitá-los ou evocá-los.
Vygotsky, no entanto, observou que na situação do faz-de-conta
N assopra ruidosamente e grita: "Estação! ". Ele e os passa
não é qualquer objeto que pode substituir outro e que a criança, ao brin
geiros correm ao restaurante, compram bolos e voltam. B toma o
car, sempre submete seu comportamento a regras.
disco de N e, depois, devolve-o. N assopra e resfolega, e eles "par Se observarmos na brincadeira de estação de trem como se de
tem " novamente. senrolam as ações das crianças, notaremos que, ao contrário do que
Ba examina o restaurante, compra um bolo e o come. G: "Eu habitualmente se diz sobre as brincadeiras das crianças - que nelas
também gostaria de comer, mas o que é que eu faço, compro ou me tudo pode acontecer -, toda a ação das crianças é regulada pela si
sirvo ? ". B ri: "Compre de você mesma e pague-se ". G ri, mas tuação imaginária, desenvolve-se de acordo com ela. Assim, o trem
imediatamente pega duas "moedas " e compra de si mesma dois não pode partir antes que os passageiros tenham comprado seus bilhe
pedaços de bolo, explicando como se fosse para o pesquisador que tes e que o chefe da estação tenha dado a devida autorização ao ma
está presente: "Eles já compraram uma vez ". Não recebendo res quinista. Da mesma forma, não se pode comprar bolo sem dinheiro, e
posta, ela se põe a comer. os passageiros que estão no trem só se dirigem ao restaurante quando
(Situação relatada por Leontiev, 1988: 1 36-7.) o trem pára na estação.
Comecemos por examinar quais são as características dessa .brin Podemos notar, então, que a situação imaginária, longe de ser algo
cadeira. A primeira coisa que nos chama a atenção é que cada cnança criado livremente pelas crianças, sem nenhuma relação com a realida
envolvida na situação assume um papel definido: algumas são os passa de, traz as marcas da experiência social das crianças, de suas vivências
geiros, uma é o maquinista, outra o chefe da estação, e assim p�r diante. e conhecimentos sobre a realidade.
Toda a ação das crianças se desenvolve e se estrutura a partlí desses Vygotsky dá um exemplo de duas irmãs, uma com 5 e outra com 7
papéis, configurando-se, assim, uma situação imaginária. Ou seja, a anos, que resolveram "brincar de irmãs". Nessa brincadeira, elas fazem
criança que assume o papel de chefe de estação, age como tal:. é ela tudo aquilo que enfatiza sua relação social de irmãs, passando a agir de
quem deve autorizar a partida do trem. O mesmo ocorre com as cnanças acordo com regras de comportamento próprias dessa relação, que não
que assumem os outros papéis: elas agem como passageiros, como ma são percebidas na vida real.
quinista, como bilheteiro. Essa situação, como a da criança que assume o papel de maquinista
Um segundo aspecto que podemos notar na brincadeira é a utiliza de trem, mostra qu� aquilo que na vida real passa despercebido pelas
ção que as crianças fazem dos objetos: cadeiras tanto demarcam os es crianças toma-se regra de comportamento na brincadeira.
paços como compõem o trem; pedaços de papel transformam-se em De acordo c�m Vygotsky, essas regras decorrem da própria situa
dinheiro e em passagens; pedaços de biscoito viram bolo. ção imaginária. E o fato de assumir determinado papel que induz a
Essa transformação dos objetos é interpretada por Piaget como criança a submeter seu comportamento a regras.
resultado da utilização de esquemas habitúais, contando não com a A submissão a regras implica a superação da ação impulsiva. Para
presença dos objetos a que comumente se aplicam, mas de novos ob esperar que o trem pare na estação para ir ao restaurante comprar bolo,
jetos que "não lhe convém [à criança] do ponto de vista de u� a adap as crianças precisam evitar a ação impulsiva de obter um biscoito e
tação efetiva" (Piaget, 1 978: 1 27). Um pequeno travesseiro, por submetê-la às regras implícitas na situação imaginária. Segundo Vy
exemplo, pode ser embalado como uma boneca; uma caixa, empurra gotsky, essa submissão da criança a regras de comportamento é a razão 1 25
1 24 da como um carrinho; ou, ainda, como na situação acima, cadeiras do prazer que ela experimenta na brincadeira.
to, como o cabo de vassoura, que lhe permita realizar a mesma ação
possível com o cavalo real: montar ou cavalgar.
Assim, não é qualquer objeto que pode substituir outro. Uma bola,
uma caneta ou uma mesa não poderiam representar um cavalo, porque a
criança não poderia agir com esses objetos como se fossem um cavalo,
não poderia montá-los ou cavalgá-los.
Já uma criança mais velha ou um adulto poderiam utilizar qualquer
um desses objetos para representar um cavalo. Um adolescente, por
Durante a
exemplo, que estivesse relatando uma experiência a um amigo, poderia
brincadeira, a tranqüilamente dizer: "Faça de conta que aquela mesa é o cavalo. Eu
criança opera estava aqui, mais ou menos a essa distância, quando ele disparou em
com o significado minha direção".
das coisas, e não
com elas em si.
Isso porque crianças mais velhas, adolescentes ou adultos já po
dem operar com o significado, independentemente do objeto concreto.
Qualquer coisa pode simbolizar outra, e é possível até mesmo operar
Na situação de brincadeira, a criança supera a ação impulsiva tam com significados 9ue dizem respeito a coisas que nunca foram vistas ou
bém relativamente aos objetos. Crianças muito pequenas ainda não têm experimentadas. E por isso que, se nos falam sobre violino, é possível
essa capacidade: os objetos é que determinam o que devem fazer, por compreendermos o que dizem sem nunca termos visto um violino ou
que sua percepção é sempre um estímulo para a atividade. Ou seja, a ouvido o seu som. Para isso, basta conhecermos o significado da pala
criança pequena age de acordo com o que vê. Se vê um cabo de vassou vra violino.
ra perto de uma lata, por exemplo, ela poderá usá-lo para bater na lata. É nesse sentido que a brincadeira infantil constitui uma transição:
Ou então, se vê um biscoito, ela provavelmente o comerá. ao agir com um objeto como se fosse outro, a criança separa do objeto
De acordo com Vygotsky, "é no brinquedo que a criança aprende a real, concreto, o significado. Mas, para realizar essa separação, ainda há
agir numa esfera cognitiva, ao invés de numa esfera visual externa, de necessidade de um objeto substituto que possibilite a mesma ação que o
pendendo das motivações e tendências internas, e não dos incentivos objeto real.
fornecidos pelos objetos externos". Da mesma forma que um objeto substitui outro, na brincadeira in
Isso significa que na brincadeira os objetos perdem sua força deter fantil uma ação também substitui outra. Quando a criança brinca de
minadora e a criança passa a operar com o significado das coisas. Na montar a cavalo, sua ação de correr com um cabo de vassoura entre as
brincadeira, um cabo de vassoura pode ser utilizado como um cavalo, e pernas, imitando um trotar, substitui a ação real de cavalgar.
biscoitos podem se transformar em pedaços de bolo vendidos no restau Nesse caso, o significado também se separa da ação por intermédio
rante de um trem. de uma ação diferente (como no caso dos objetos), e a criança opera
com o significado de sua ação: "montar" um cabo de vassoura adquire o
significado de cavalgar.
Objetos e significados na brincadeira Na brincadeira, a criança opera com significados desvinculados
dos objetos e das ações; mas o fato de utilizar outros objetos reais
Mas a criança não realiza a transformação de significados de uma (como o cabo de vassoura) e outras ações reais (como "montar" um
hora para outra. Como vimos, quando muito pequena, ela ainda não é cabo de vassoura) ajuda-a a realizar uma importante transição.
capaz de agir como se um cabo de vassoura fosse um cavalo. Isso por
que os significados ainda estão ligados aos objetos concretos que a
criança conhece: cachorro significa seu próprio cachorro; relógio é o O papel da brincadeira no desenvolvimento da criança
relógio de parede da sala de sua casa; irmã é sua própria irmã.
Vygotsky vê a brincadeira infantil como um recurso que possibilita A brincadeira e a função simbólica
a transição da estreita vinculação entre significado e objeto concreto à
operação com significados separados dos objetos. Na brincadeira, a Piaget e Vygotsky têm pontos de vista diferentes também quanto à
criança ainda utiliza um objeto concreto para promover a separação en função da brincadeira no desenvolvimento infantil.
1 26 tre significado e objeto. Ela só é capaz de operar, por exemplo, com o Para Piaget, o jogo simbólico é parte de uma função fundamental
significado de cavalo (sem se referir ao cavalo real) utilizando um obje- 1 27
do processo cognitivo da criança, a função simbólica. Essa função apa-
rece na criança mais ou menos aos 2 anos e permite que ela possa repre situações concretas, tendo dificuldade em controlar voluntariamente
sentar uma coisa (um objeto, um acontecimento, etc.) por intermédio de seu comportamento e submetê-lo a regras. Quem conhece crianças des
outra coisa, como a linguagem, o desenho ou o gesto simbólico. sa id�de sabe que é preciso estar constantemente lhe dizendo o que fa
Como vimos, Piaget considera que a brincadeira não tem finalida zer. E preciso sempre chamá-la para tomar banho, lembrá-la de escovar
de adaptativa, não provoca um aprimoramento dos esquemas mentais, os dentes, recomendar que guarde seus brinquedos, e assim por diante.
ou de ação, da criança. Sua importância para o desenvolvimento consis Ela ainda não decide antecipadamente o que vai fazer e só submete seu
te no fato de possibilitar - pela aplicação de esquemas conhecidos a comportamento a regras impostas obedecendo a uma autoridade exte
objetos "inadequados" - a transformação do significado dos objetos e rior (os pais ou o professor).
a criação de símbolos lúdicos individuais. Num símbolo lúdico, como
pedacinhos de biscoito que representam bolo, um objeto é evocado por
outro, ao qual são atribuídas as qualidades daquele.
Assim, o jogo simbólico relaciona-se ao aparecimento da capaci
dade de representar eventos e objetos. E, com a representação, a criança
toma-se capaz de pensar em objetos que não estão presentes em seu
campo perceptivo, de lembrar-se de acontecimentos, de prever mental
mente o resultado de suas ações.
A função simbólica é, então, indispensável para a ampliação das Fonte: Nossas crianças. São Paulo: Abril Cultural, 1 970. v. 2.
fronteiras da inteligência, embora, de acordo com Piaget, ela só progri
da com o desenvolvimento da própria inteligência. Ou seja, é à medida A criança dessa idade tem no dia-a-dia dificuldade para fazer dis
que o pensamento da criança se desenvolve que sua linguagem, o dese tinção entre o significado dos objetos e suas características. Uma crian
nho e o próprio jogo evoluem. ça que tenha aprendido a utilizar a palavra animal para se referir a ma
Portanto, embora o jogo simbólico seja importante para a constitui míferos de quatro patas, provavelmente terá dificuldade em reconhecer
ção de símbolos que servem para representar objetos ou acontecimen um inseto ou uma ave como animais. O significado da palavra animal
tos, ampliando o campo de ação da inteligência, seu desenvolvimento permanece ligado às características dos seres que concretamente ela
está subordinado ao desenvolvimento da própria inteligência. conh�ce como animal: as quatro patas, por exemplo.
E por isso que, segundo Vygotsky, a brincadeira cria uma zona de
A criação de zonas de desenvolvimento proximal desenvolvimento proximal: "[ ...] no brinquedo, a criança sempre se
comporta além do comportamento habitual de sua idade, além de seu
Já para Vygotsky, a brincadeira tem um papel fundamental no de comportamento diário; no brinquedo é como se ela fosse maior do que é
senvolvimento do pensamento da criança. Ao substituir um objeto por na realidade" (Leontiev, 1 988: 1 22) .
outro, a criança opera com o significado das coisas e dá um passo im Assim, a brincadeira é a atividade "em conexão com a qual ocor
portante em direção ao pensamento conceituai, que, como já vimos, rem as mais importantes mudanças no desenvolvimento psíquico da
baseia-se nos significados, e não nos objetos. Por exemplo, o conceito criança e dentro da qual se desenvolvem processos psíquicos que prepa
de escola para um adulto não se refere a uma ou várias escolas que ele ram o caminho da transição da criança para um novo e mais elevado
conhece, mas corresponde a uma generalização, a uma idéia de escola nível de desenvolvimento" (idem, ibidem).
que pode incluir múltiplos aspectos: seu caráter de instituição, sua fun Logo, a atividade de brincar é essencial para o desenvolvimento da
ção social, sua forma de organização em geral, etc. criança em idade pré-escolar.
Além disso, quando a criança assume um papel na brincadeira, ela
opera com o significado de sua ação e submete seu comportamento a
determinadas regras. Isso conduz ao desenvolvimento da vontade, da
capacidade de fazer escolhas conscientes, que estão intrinsecamente
relacionadas à capacidade de atuar de acordo com o significado de
ações ou de situações e de controlar o próprio comportamento por
meio de regras.
É importante notar também que no jogo a criança faz coisas que
1 28 ainda não consegue realizar no cotidiano. Nas atividades cotidianas, a
criança em idade pré-escolar age de acordo com o meio, os objetos e as 1 29
Procurem registrar tudo o que puderem e bem rapidamente (as falas
Sugestão de atividades das crianças merecem atenção especial e, na medida do possível, de
vem ser registradas literalmente).
Cada grupo deve organizar o seu registro e depois apresentá-lo para a
classe.
Organizando as informações do texto
2. Com base nos resultados das observações de todos os grupos, organi
1. Reproduza o quadro abaixo e preencha-o com as informações do ze com os colegas um painel sobre a brincadeira infantil. Na apresen
texto: tação do painel, façam um debate sobre a brincadeira infantil, con
frontando os modos como a vêem Piaget e Vygotsky.
Piaget Vygotsky
Situações Idades
Sozinhas De 1 a 3 anos
Com outras crianças De 4 a 6 anos
Com adultos De 7 a 9 anos
De 8 a 1 1 anos
jogo por deslocamento do interesse para a proprza açao __ indepen ou situações. Aos poucos, a brincadeira sim- """'_,""'"''
,""*'�'"- ·'"1:'·,-,.;;: ."""."
Nesse terceiro modo de utilizar o jogo que descrevemos, o profes RoDARI, G. Jogos no parque. ln: ___ . Gramática da fantasia. São
sor elabora um saber sobre as crianças (sobre as particularidades de Paulo: Summus, 1 982.
cada uma e sobre as regularidades no processo de como elas aprendem
e se desenvolvem) e um saber sobre sua prática (sobre as possibilida
des de sua participação nos processos de aprendizagem e desenvolvi
mento de cada uma e de todas as crianças com quem interage).
Nesse saber elaborado no cotidiano do trabalho pedagógico, as teo
rias constituem um referencial importante para ajudar a perceber e com
preender a complexidade, a multiplicidade e as contradições das rela
ções de ensino.
restrito e delimitado: as aulas de Educação Artística. Estas podem ser
tanto um espaço para a atividade artística criativa, para o ensino de téc
Capítulo 12 nicas diferentes, quanto para a reprodução de modelos, por meio da
confecção de "trabalhos manuais", em que o trabalho de uma criança
seja semelhante aos das outras.
O desenho infantil
ratujas, bonecos, casinhas, animais. De Entretanto, que concepções sobre o desenho sustentam sua
senhos grandes, que ocupam toda a fo presença na escola? Qual o significado do desenho para a criança?
lha. Desenhos pequenos colocados em Como ele se desenvolve? E qual o seu papel no desenvolvimento
um cantinho do papel. Monocromáticos e na aprendizagem da criança? Esses são alguns aspectos que nos
ou multicoloridos. parecem fundamentais quando se busca a construção de uma prá
Atividade intensa e envolvente para tica pedagógica cientificamente fundamentada. Este capítulo pre
as crianças, o desenho na pré-escola tem
uma presença constante. E visto como tende trazer elementos que ajudem a compreensão e a reflexão
possibilidade de expressão, como incen sobre esses pontos.
tivo à criatividade. Ou ainda como indi
cador do nível de desenvolvimento
cognitivo e afetivo das crianças. Tendo Quando o traço no papel recebe um nome
em vista a alfabetização, o desenho é
também considerado uma forma agradável de trabalhar a coordenação Quando observamos uma criança muito pequena º rabiscando ou
Desenho: motora das crianças, sua capacidade de atenção e concentração, seus "desenhando", notamos facilmente que os traços não são nada mais que
presença
constante na
conhecimentos sobre cores, formas, etc. a fixação no papel de seus movimentos das mãos, dos braços e, às ve
pré-escola. Na escola do 1? grau, a escrita, a leitura e os cálculos gradualmente zes, até do corpo todo.
passam a ocupar o espaço do desenho e a determinar seu novo papel. As Os primeiros desenhos ou rabiscos infantis podem ser vistos mais
crianças desenham para ilustrar um texto, para enfeitar seus cadernos, como gestos que imprimem marcas em uma superfície do que propria
para compor conjuntos numéricos. Desenham ainda nas aulas de Ciên mente como desenhos.
cias ou Estudos Sociais, copiando dos livros o ciclo da água ou mapas De acordo com Vygotsky, o desenvolvimento posterior do desenho
geográficos. não é puramente mecânico nem tem explicação em si mesmo: é preciso
O desenho livre, a exploração das diversas possibilidades ofereci que, num dado momento, a criança descubra que os traços feitos por ela
das pela atividade gráfica, quando ainda se mantém, ganha um espaço podem significar algo. i .45
Rafael, de 3 anos, está desenhando em sua casa. Sentado à A criança desenha o que sabe e não o que vê
mesa, produz com o lápis movimentos mais ou menos circulares,
deixando marcas no papel. Num dado momento, olha para a sua
Rabiscos, bonecos formados por um círculo do qual saem dois tra
produção e exclama, dirigindo-se à sua mãe: "Olha, mãe! Eu fiz
ços, carro de perfil com quatro rodas, casinha com chaminé, árvores e
um fusca! ". sol com raios. Essas e outras formas tomadas pelo desenho da criança
(Episódio extraído das experiências familiares de uma das au- são vistas por Vygotsky em sua estreita relação com a linguagem. Para
1oras.)
ele, "o desenho é uma linguagem gráfica que surge tendo por base a
linguagem verbal" ( 1 984: 127), conforme já observamos.
A criança, ao nomear o seu desenho depois que o fez, relaciona os Os primeiros desenhos infantis, reproduzindo somente aspectos es
traços que produziu (que podem ou não assemelhar-se a algo real) a um senciais dos objetos, assemelham-se a conceitos verbais. Ao desenhar, a
objeto concreto (no caso, um fusca). E, pelo ato de nomear, seu desenho criança tem a fala como base: ela conta uma história ou o que ela sabe
toma-se significativo. sobre os objetos. Vygotsky diz que a criança não se preocupa com a
A fala tem, assim, um papel fundamental na descoberta que a crian; representação da realidade, com a reprodução daquilo que vê. Ao con
ça faz de que seus rabiscos podem significar algo, segundo Vygotsky. E trário, ela tenta, por meio do desenho, identificar, designar, indicar as
importante lembrar que, antes que a criança nomeie seu desenho, ele é pectos determinados dos objetos. Ou seja, a criança não começa dese
nomeado pelos adultos que a rodeiam (habitualmente perguntam à nhando o que vê, mas sim o que sabe sobre os objetos.
criança o que ela desenhou ou dizem coisas como "Olha, você fez um
menininho!").
Embora a descoberta de que os traços do desenho podem repre
sentar objetos reais ocorra nos primeiros anos da infância, Vygotsky
observa que essa descoberta ainda não equivale à da função simbólica
do desenho. Q
A nomeação, feita inicialmente depois de pronto ,o desenho,
passa gradativamente a acompanhar o ato de desenhar. E muito co
mum observarmos crianças que começam a fazer traços no papel e
vão, durante o ato de desenhar, nomeando o que estão fazendo. A
decisão quanto ao que desenhar não é tomada antecipadamente, mas -J
no decorrer do próprio desenho elas falam e nomeiam o que estão Fig. 1
fazendo.
Depois, a nomeação começa a se dar no início do processo de dese
nhar. A criança diz "Vou desenhar uma flor" ou "Vou fazer uma casa", Na figura 1 , por exemplo, o desenho mos
antes de começar a desenhar. tra traços que, antes de representar em deta
Essa mudança relativa ao momento da nomeação no desenho de lhes o que a criança quis desenhar (um carro
monstra que os primeiros traçados da criança aiI�da não representam guincho), indicam aspectos de um carro-guin
simbolicamente, em si mesmos, os objetos reais. E apenas pelo ato de cho: duas formas contendo duas rodas cada
nomeação, pela utilização da linguagem falada que os desenhos ga uma, ligadas por um traço. Na figura 2, pes- Fig. 2
nham algum significado. Tanto é assim que muitas vezes o significado soas são representadas por formas que indi-
passa a ser outro no decorrer do ato de desenhar. A criança pode expli cam a cabeça, os braços e as pemàs.
Isso implica certo grau de abstração, de generalização, do mesmo
car que está fazendo um gato e, antes mesmo de completar o desenho, modo que a palavra na linguagem verbal. Já vimos, em capítulos anteriores,
dizer "Isto é uma bruxa". que o significado de determinada palavra não é um objeto concreto com
Por isso Vygotsky afirma que a "representação simbólica primária todas as suas características. O significado da palavra coelho, por exemplo,
deve ser atribuída à fala" e considera que o próprio desenho toma-se comporta uma abstração, uma generalização que poderia ser expressa da
simbólico pela utilização da linguagem oral. O desenho transforma-se seguinte forma: "pequeno mamífero leporídeo, selvagem e doméstico"
efetivamente em representação simbólica quando a nomeação passa a (Dicionário Melhoramentos da língua portuguesa). Esse conceito verbal
se dar no início do ato de desenhar e a criança toma-se capaz de decidir não faz referência a todas as características de um coelho concreto, determi
.146 antecipadamente o que vai desenhar. nado, como cor, tipo de pêlo, tamanho, formato da cabeça, etc. . 1 4z:
O desenho da criança é uma espécie de conceito verbal: ele não O segundo estágio, do realismo fracassado,
reproduz todas as características de um coelho determinado, mas os as caracteriza-se pelas primeiras tentativas da crian
pectos mais relevantes para identificá-lo, como se pode observar nas ça de reproduzir algumas formas. Os elementos
figuras 3 e 4. de seu desenho são muitas vezes justapostos, em
Se a criança dese vez de coordenados: um chapéu pode ser dese
nha o que sabe, um coe nhado muito acima da cabeça, por exemplo: É
lho sem as quatro patas nessa fase que aparecem os primeiros desenhos de
(figura 3) significa que figuras humanas, como aqueles em que há apenas
a criança não sabe que a cabeça e as pernas (figura 6).
um coelho tem quatro O terceiro estágio, que começa mais ou me
patas? A afirmação de
Vygotsky de que as nos aos 4 anos e pode estender-se até os 1 O ou 12
crianças desenham o anos, é o do realismo intelectual. Durante esse
que sabem não quer di período, aparecem o plano deitado (figura 7) e a
zer que tenham tão transparência (figura 8). Esses recursos demons
pouco conhecimento tram que, de fato, a criança desenha o que sabe
quanto seus desenhos sobre os objetos, e não o que vê.
'----- poderiam fazer supor. Na figura 7, vêem-
Eles mostram, isso se inúmeros detalhes
./!..;!.._ sim, um elevado grau
no desenho de uma rua,
Figs. 3 e 4 de generalização, pró embora as formas do
prio do conhecimento humano, que, como vimos, é sempre elaborado skatista, da moto, dos
na forma de conceitos, de significados. pedestres e dos prédios
A idéia de que a criança desenha o que sabe, e não o que vê, não é (representados deita
exclusiva de Vygotsky, tendo sido defendida também por Luquet, um dos) não correspondam
dos mais conhecidos estudiosos do desenho infantil, que distinguiu ao modo como são vis
quatro estágios na evolução dessa atividade.
·
tos na realidade. Na fi
gura 8; as roupas do
condutor de trem são
O realismo do desenho infantil: a perspectiva de Luquet transparentes, revelan
do traços do persona
,.
.
.
.
. . O primeiro estágio gem que não poderiam Fig. 7
�:....---� identificado por Luquet, ser vistos em alguém
•r . ·• . . o do realismo fortuito, vestido. Desenhos co-
•
· ..:<-� ,, :
� :"'
... . -� .. começa por volta dos 2 mo o de um feto dentro da barriga da
�·'... : - . . anos. A criança descobre mãe ou o de uma árvore atrás de
� .. ..,
. ..;...-< :.. uma semelhança qual uma casa, da qual se vê o tronco (e
,1':.'w.· '"" . . quer entre seu traçado no não só a copa), também são exem
.. ...
..
papel (feito sem intenção plos de transparência.
.
de representação) e um O quarto e último estágio, pró
.
objeto. Então, depois que prio da adolescência, é o do realismo
fez o desenho, ela o no visual. Caracteriza-o o aparecimento
�
_·-�. meia. da perspectiva: a criança (ou o ado
.
Sugestão de leituras
Toni aparece aqui como aquele que sabe, que serve de modelo, que
ensina e que faz para o outro. Nem por isso Ivo deixa de fazer uma
observação crítica sobre o seu desenho ("Que que é isso?", "Nunca vi
laranja assim"). O fato de dizer "Nunca vi laranja assim" demonstra que
Ivo espera que o desenho se pareça com aquilo que ele vê na realidade.
E talvez seja por isso que ele pede a Toni que lhe desenhe um menini
nho. Toni "sabe desenhar", seus desenhos se parecem com o que se vê.
O desenho é
Ivo provavelmente ainda não consegue fazer o mesmo. sempre resultado
Depois de observar o desenho de Toni, Ivo não quer mais que este das interações
lhe faça um menininho. Quer saber e aprender como se faz uma árvore. sociais somadas
Toni se propõe fazer por ele e para ele. Ivo aceita e começam, então, a ao auxílio que o
indivíduo recebe
negociar as cores e os detalhes do desenho. e aos materiais e
Ivo pinta sua árvore. Ainda aqui pede a ajuda de Toni: "Pode pintá técnicas a que
colorido?", "Cor de abacate?". A expressão cor de abacate, que no iní ele tem acesso.
cio fora utilizada por Toni sem que Ivo identificasse a que cor se referia �-l3
plia-se o conhecimento que já se tem, possibilidades interessantes seu próprio trabalho, com o objetivo de
são descobertas. As crianças desenham e em seus desenhos explo possibilitar o desenvolvimento livre do de
ram as novas descobertas. Reproduções de motivos egípcios, in senho, da criatividade e da expressão, ain
dianos, russos e chineses aparecem com grande riqueza de deta da assim os modelos e o outro estão pre
lhes; obras famosas também são reproduzidas pelas tintas, pelos sentes. Afinal, não há outros desenhos na
lápis, pelas mãos, pelas cores, como você pode verificar na página sala de aula? Não há gravuras, livros de
ao lado. histórias, desenhos da professora e de ou
(Situação reconstituída a panir do relato de experiência da proíessora
tras crianças pelo ambiente? As crianças
1 60 Cristina Rufino Jalc.,, da EMEI Agostinho Pátaro, Bardo Geraldo, Cam· não comentam, opinam, avaliam os dese
pinas, que gentilmente compartilhou conosco o material dela resultante.) nhos umas das outras?
Para poder criar e se expressar, por meio do desenho, a criança se Resolvida a problematizar com as crianças esse tipo de rea
apropria das experiências do seu ambiente, servindo-se de modelos e do ção, propus a elas uma questão: Por que a mariafedida fede ?
auxílio de outras pessoas. A experiência que ela tem é que lhe propor Essa questão foi o disparador para nosso estudo sobre insetos, que
ciona os meios para se expressar de modo criativo. durou um semestre inteiro.
A preocupação com a correspondência do desenho à realidade re Onde buscar a resposta ?
vela não só a valorização de determinado padrão estético, mas também Antes de consultar os livros, decidimos fazer um trabalho de
o empenho da escola em desenvolver na criança habilidades de obser campo, coletando insetos para observação.
vação, concentração, discriminação visual, orientação espacial e coor Puçás improvisados, vidros de boca larga de vários tamanhos
denação motora. Também as folhas mimeografadas são utilizadas com (alguns com álcool), éter para anestesiar os insetos, pinças,
essa finalidade, considerada requisito para a aquisição da escrita. lançamo-nos ao trabalho, anotando o nome de todos os animais
Quando observamos uma criança desenhando, desde as suas pri encontrados, além do quefaziam no momento da coleta, e tratando
meiras garatujas até as composições mais definidas, desde suas primei de conseguir pelo menos um exemplar para identificação posteri01:
ras experiências de marcar o papel com os próprios movimentos até Sacudimos as árvores e os arbustos, observamos folhas e flo
produções com formas bem determinadas, descobrimos uma grande res, reviramos pedras e galhos caídos, improvisamos uma armadi
evolução de suas capacidades de concentração, orientação espacial, lha com uma lata perfurada contendo pedaços de frutas...
coordenação motora, etc. Em sala, começamos a estudar os exemplares coletados, aten
Nesse mesmo processo, o caráter simbólico do desenho também tando para suas características gerais, número de patas, número
vai se constituindo, com base na linguagem. O simbolismo é a dimen de asas, antenas, configuração do corpo, cor; formato, caracterís
são fundamental do desenho e se vincula mais estreitamente à elabora ticas como dureza, transparência, existência de pêlos, etc.
ção d.a escrita e ao desenvolvimento da conceituação. A escrita, sendo Procurando explicitar e tematizar a atividade intelectual que
também essencialmente uma atividade simbólica, apresenta uma es desenvolvíamos, propus à classe a leitura e o estudo do texto O
treita ligação com outras formas de simbolização, como o desenho e a segredo da observação. Nele, o personagem central, contando
brincadeira. como descobrira o segredo da observação, dizia, destacando a
A relação de continuidade que há na pré-escola entre o desenho e a importância do desenho: "o lápis é o melhor dos olhos... ". A partir
escrita, na escola fundamental transforma-se em substituição do dese daí, o lápis passou a guiar nossa observação.
nho pela escrita. O espaço para o desenho diminui e não há preocupação Todos queriam desenhar. Cada criança escolheu um exemplar
em trabalhá-lo. A criança desenha do jeito que sabe e aquilo que já sabe. e trabalhando individualmente procurava representá-lo na folha
As possibilidades de transformação, de evolução da atividade do dese de suljite. Alguns ampliavam o inseto, explorando todo o espaço
nho, via de regra, são mínimas. Deixadas a si próprias, gradativamente do papel, outros faziam reproduções diminutas.
as crianças vão parando de desenhar. As dificuldades emergiam, e com elas as frustrações: como ·
Como criar em sala de aula, no l? grau, condições e situações que marcar no papel a variedade de fonnas observadas, as simetrias,
possibilitem a utilização e o desenvolvimento do desenho? as proporções?
"Oh, meu! Olha o tamanho dessa antena! "
"O lápis é o melhor dos olhos ... " "/eh! Tá torto! "
"Desse tamainho não dá nem pra saber que bicho é... "
A afirmativa acima, que aparece em O segredo da observação, de Sentindo-se incapazes de representar pelo desenho algo que
Ramacharaca, nos levou a descobrir, professora e crianças, o desenho fosse o mais parecido possível com o "real ", algumas crianças
como um modo de guiar e instrumentalizar nossa observação. · queriam desistÍI:
A própria classe discutiu quanto a qual seria o papel do dese
Era o ano letivo de 1 986, e estávamos em uma 3; série do 1 � nho: "Esse desenho é pra gente saber mais sobre o inseto ".
grau, de uma escola municipal, na periferia de Campinas. Propusemos, então, o trabalho em conjunto, que favoreceu a
Ao lado das salas de aula da escola havia muitas árvores e comparação entre os insetos e a atenção aos detalhes particulares
arbustos que abrigavam um grande número de insetos. Freqüen de cada tipo, a troca de técnicas, de modos de desenhar; entre os mais
temente, marimbondos, abelhas e percevejos de plantas (conheci e os menos habilidosos, a troca de informações ( "presta atenção,
dos pelas crianças como marias-fedidas) entravam na classe, pro aqui do lado do corpo tem umfurinho "), enfim, a busca conjunta de
duzindo alvoroço: os dois primeiros por causa da picada e os últi um desenho mais apurado e um grande conjunto de questões.
162 1 63
mos por causa do mau-cheiro que desprendiam quando tocados. "O que é esse fiozinho enrolado que tem na borboleta ? "
"Por que alguns insetos têm um tubinho que parece um alfine
te e outros não ? "
"Por que esse tem a antena lisa e a desse outro parece feita de
Sugestão de atividades
um monte de pedacinhos emendados ? "
Detalhes que haviam escapado num primeiro momento foram
sendo identificados... Organizando as informações do texto
O sentimento de incapacidade de desenharfoi sendo substituí
do por comentários como "Eu aprendi com o Marcelo a fazer o 1. Elabore um resumo das informações do texto, enfocando:
gafanhoto ". A admiração diante das habilidades reveladas pelos a) o papel do outro e dos modelos no desenho da criança;
colegas foi sendo explicitada: "Nossa, a senhora viu como o b) a criatividade no desenho infantil.
Douglas é bom de desenho ? Olha que bonito que ficou o desenho
dele! ". A descoberta das próprias habilidades e interesses foi sen 'Irabalho de campo
do percebida: "Eu por mim ficava o dia inteiro olhando e dese
nhando esses bichos. Você viu como a perninha desse aqui é for 1. Observe crianças desenhando na escola, de preferência quando reu
mada por um monte de bolinha? Olha! Parece até um colarzinho... nidas em pequenos grupos. Lembre-se de contextualizar a sua obser
Por que será que é assim? ". vação, anotando em que condições ocorre a atividade de desenhar (se
Depois, os desenhos feitos pelas crianças foram confrontados por solicitação da professora, verifique o que foi solicitado e como
com desenhos e esquemas apresentados nos livros, evidenciando o foi dada a orientação; se por iniciativa das crianças, repare na manei
muito que eles haviam apreendido em suas observações (e que ale ra como surgiu a iniciativa), o modo como as crianças se organizam
gria: " Viu só? Bem que eu te mostrei... ! ") e o que haviam deixado para realizá-la, os materiais de que dispõem, etc.
escapar. E, então, voltar a desenhar complementando os detalhes Preste atenção a tudo o que as crianças fazem enquanto desenham,
era um novo prazer. E de novo aprender; pois agorajá sabiam o que como procedem, como utilizam o material, o que elas e o professor
estavam desenhando, o porquê das configurações de cada parte do falam e a quem se dirigem, as interferências do professor (nos dese
inseto observado e seu funcionamento no todo daquele organismo. nhos ou no relacionamento entre elas). Anote rapidamente tudo o que
(Relato de experiência de uma das
puder. Em seguida, organize o seu registro para tomá-lo compreensí
autoras.) vel a outras pessoas.
/,,---- Faça um relatório sucinto, analisando a situação observada a partir
Como instrumento de do que foi tratado neste capítulo: destaque aspectos da interação en
trabalho e de conhecimento tre as crianças que parecem influenciar a elaboração do desenho;
em sala de aula, o desenho aponte indícios de utilização de modelos pela criança (lembre-se de
revelou às crianças uma que esses modelos podem não estar explicitamente presentes); anali
competência em geral anu se o modo de proceder do professor, procurando identificar em que
lada pelo saber acadêmico, concepções sobre o desenho infantil ele ancora sua prática. Comente
incentivando-as a aprender todos os aspectos da situação que achar relevante para a compreen
pela observação. são do processo de elaboração do desenho pelas crianças.
Fazendo-se útil ao pro 2. Em pequenos grupos, entrevistem professores da l � à 4� série, inves
cesso de conhecimento, o tigando como, em que situações e com que finalidade as crianças
desenho na escola funda desenham em sala de aula. Com o auxílio de seu professor, elaborem
mental possibilita a valori um roteiro para as entrevistas. Lembrem-se de buscar informações
zação da linguagem gráfica sobre como as próprias crianças se relacionam com a atividade de
e das habilidades a ela rela desenhar (se a apreciam ou não, quais os tipos de desenhos que fa
cionadas, criando espaços zem, etc.).
para o seu próprio desen Organizem os dados coletados, agrupando as respostas semelhantes,
volvimento e condições de mas citando também as menos freqüentes, e apresentem-nos para o
interação e de realização restante da classe. Discutam, com base neste capítulo e nos dados das
pessoal. entrevistas, a situação do desenho no 1 ? grau.
Exercitando a análise
Sugestão de leituras
.· •
início muito antes da (dfabtiiilllfãi;/ae()ÍllpanJuuÍFtUi e prolongam-se
Quem foi Luria? . Paro âlém deía, segundo a rêlevâ11cúi da escrita no contextó social em
que �ivein úlls Úsuários; · • ·
Alexander Romanovich Luria (1902-1977) foi • aS especificidades da alfabetização, vista como um processo que, en
colaborador de Vygotsky. Na década de 20, reali volvendo sistematização de regras, mecanismos e fu11ções da escrita,
zou experimentos relativos ao estudo do desenvol acontece na relação de ensino do contexto escolar.
vimento da escrita e dos conceitos matemáticos na
criança. Pondo em questão o modo como a psico A seguir, vamos apresentar e comparar essas duas contribuições.
logia da época abordava esses temas, conduziu ex Primeiramente focalizaremos o modo como esses estudos explicam
tenso trabalho de campo sobre o funcionamento as relações da criança com a escrita. A seguir abordaremos como eles
psicológico de moradores de vilarejos e áreas ru descrevem e analisam a escrita produzida pela criança. E finalmente
rais de uma região remota da Ásia central. Seu ob discutiremos as implicações dessas teorias para as práticas escolares
jetivo era estudar como os processos psicológicos de alfabetização.
superiores são construídos em diferentes contextos
culturais. Dedicou-se mais intensamente ao estudo
das funções psicológicas relacionadas ao sistema
nervoso central, tomando-se conhecido como um dos mais impor
tantes neuropsicólogos do mundo.
Sugestão de leituras
Sugestão de atividades
BARBOSA, José Juvêncio. A história da escrita. ln: ___ . Alfabetiza-
ção e leitura. São Paulo: Cortez, 1 990.
Organizando as informações do texto CAGLIARI, L. C. o mundo da escrita. ln: · Alfabetização & lin
---
Não são quaisquer traços que podem ser lidos. O formato dos tra
com a escrita ços em relevo na tampa da lata e o lugar onde foram impressos não são
arbitrários. Eles significam alguma coisa. Na interpretação de Rafael,
eles nomeiam.
Quando prestamos atenção aos comentários que as crianças fazem Rafael, imitando o modo de ler de uma criança mais velha, compar
sobre a escrita ou às suas tentativas de utilizá-la, percebemos que elas tilha a possibilidade de leitura com o irmão, que muitas vezes lê para
não são indiferentes a essa forma de linguagem. Elas procuram imitá-la, ele. Na imitação, ele reproduz a relação entre o texto escrito e a fala.
interpretá-la, entendê-la. Nas duas situações observamos que a escrita, além de estar presen
te no cotidiano das crianças, é compartilhada com elas por adultos e
crianças mais velhas: a mãe possibilita a Olívia explicitar o que pensa e
Olívia, de 3 anos, conversando com a mãe, diz: sabe sobre a escrita; o irmão, que lê, serve de modelo para Rafael.
- Na escola eu faço desenho, eu escrevo... Esses episódios cotidianos mostram processos não escolares de
- Ah, é?! Como é que você escreve ? elaboração da escrita em que a criança formula uma compreensão
- É assim, 6. incidental e inicial dessa forma de linguagem.
E enquanto traça rabiscos em ziguezague no papel, ela vai Como as crianças chegam a essas elaborações iniciais da escrita?
nomeando: A gênese da escrita na criança é vista de modos diferentes por
- Papai, mamãe, Olívia. Emilia Ferreiro e Vygotsky.
(Relato feito pela mãe da criança às autoras durante um curso para
professores.)
A te q
criança elabora e testa hipóteses acerca da lógica de seu funcionamento.
Ela assimila a escrita interpretando-a de acordo com os conhecimentos
e modos de pensar que já desenvolveu e organizou no decorrer de sua
f �! e;
E
experiência de vida, produzindo "escritas" e "leituras" não compatíveis
com a escrita convencional.
Tal qual Olívia no episódio relatado anteriormente, ela começa di
ferenciando a escrita do desenho.
a �e J
g\ � �e
l �e �e
é\\e �Fonte: Reflexões sobre a/fabetiwçlio - Emilin Ferreiro. Cortez, p. 23.
A
s E X YS
E E
.
A 5 SI �
s E- A
E
A
A s
1 79
Fonte: Reflexões sobre alfabetização - Emilia Ferreiro. Cortez, p. 22. Fonte: Reflexões sobre alfabetização - Emilia Ferreiro. Cortez, p. 26.
As informações fornecidas por adul A escrita nos confere o título de cidadãos. É por meio do registro
tos leitores (inclusive a professora na es legal, nosso primeiro documento, que somos inscritos no rol de habitan
cola) a respeito de especificidades da es tes do país, temos nossa nacionalidade definida.
crita não são mecanicamente acrescenta A escrita nos faz ser classificados como alfabetizados ou analfabe
das às elaborações da criança. tos, e arcar com as vantagens e desvantagens de pertencer a um ou a
Ela vai passando de uma forma de outro desses grupos.
e � ífl}o
escrita para outra, à medida que vai se Como sistema de signos (conjunto organizado de marcas externas que
dando conta, por si mesma, das contra nos pennitem representar ou expressar objetos, eventos e situações da reali
dições entre sua interpretação da escrita dade), a escrita age sobre nossos processos psicológicos, transformando-os.
e a escrita convencional. Nesse proces Sua utilização, por exemplo, transforma nossa memória. Ao fazer
so, ela reelabora gradativamente suas mos uma lista de compras por escrito, ao anotarmos um endereço ou os
hipóteses, por meio de acomodações su ingredientes e o modo de preparo de uma receita, não só liberamos
cessivas, até chegar à lógica da escrita nossos neurônios da necessidade de reter mecanicamente algumas in
alfabética. formações, como também aumentamos enormemente a quantidade de
informações que podemos armazenar. A escrita nos permite esquecer
Fonle: Reflexões sobre alfabetização
informações que, tendo sido registradas, podem ser recuperadas.
Ela também transforma nossa atenção, nossos modos de buscar in
-
Concepção de escrita
Enquanto para Emília Ferreiro o papel do adulto (inclusive o pro
fessor) deve ser o de possibilitar o desenvolvimento da escrita, criando A relação da criança
condições estimuladoras e conflitos cognitivos (situações em que a crian com a escrita
ça percebe contradições entre suas hipóteses e os princípios da escrita
convencional) para que ela descubra por si mesma as chaves secretas O papel do adulto
do sistema alfabético (1985: 60), Vygotsky considera fundamental a e do meio
- Sim, muito bem. E isso é o quê? Leia lá. utilizá-los na coleta dos dados. Mas não se esqueça de que o material
- Chapéu. gravado também deve ser transcrito.
(Episódio registrado por Nunes. T. no texto 'Leitura e escrita: pro
cessos e desenvolvimento'. ln: Alencar. E. (org.). Novas colltribui·
Organizando os dados analisados
ções da psicologia aos processos de ensino e aprendiwgem. São
Paulo: Cortez. 1992.)
• Cada grupo deve apresentar e confrontar os dados observados, le
Tràbalho de campo vantar os pontos em comum nos relatos e organizar uma síntese
das observações feitas, para apresentar ao outro grupo. Convém
Vamos observar crianças de 2 a 7 anos, que ainda não estejam sen registrar tan1bém curiosidades, perguntas e dúvidas suscitadas pe
do alfabetizadas, e descrever o modo como se relacionam cotidiana la observação.
mente com a escrita. Para isso, vamos nos dividir em dois grupos. • Reunidos os dois grupos, vamos comentar e comparar os resulta
• Cada um dos alunos do primeiro grupo deverá observar uma crian dos das observações e das análises de cada um, buscando identifi
ça e descrever suas eventuais tentativas de uso do registro escrito, car os pontos comuns e não comuns entre os dados coletados.
para que ela o utiliza, e como ela se relaciona com a escrita presen • As indagações que ficaram sem resposta devem ser afixadas na
te no seu espaço doméstico. sala, e os registros escritos deverão ser arquivados para utilização
• Cada um dos alunos do segundo grupo deverá qbservar uma crian nos próximos trabalhos.
ça não alfabetizada e descrever a relação que ela mantém com o
material escrito existente na pré-escola e a utilização que ela faz de Leitura e discussão
registros gráficos nesse contexto (para que e como).
Vamos ler o texto de Maria Lucia Castanheira, Da escrita no coti
Para um melhor aproveitamento desse trabalho de campo, sugeri diano à escrita escolar, publicado na revista Leitura: Teoria e Prática,
mos que cada criança seja observada mais de uma vez e que sejam ob n? 20, de dezembro de 1992 (Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, p.
servadas crianças de idades diferentes, dentro da faixa de idade in 34-45).
dicada. Após a leitura individual, cada aluno deverá fazer um breve co
O seguinte roteiro poderá ser útil à observação e ao registro: mentário escrito sobre o texto. Nesse comentário deverá destacar três
pontos que considerou relevantes para sua reflexão sobre o modo como
• Registre a idade da criança, o dia, o local, a hora e quanto tempo a criança se relaciona com a escrita, comentar cada um deles e justificar
durou a observação. a escolha feita.
• Descreva a situação em que você observou a criança (onde ela
estava, o que fazia, quem a acompanhava, etc.).
• Que tipo de material escrito chama a atenção da criança ou está Sugestão de leituras
sendo explorado por ela? O que ela faz e o que diz em relação ao
material escrito? Que finalidade atribui a ele? FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez, 1993.
SMOLKA, A. L. B. A linguagem como gesto, como jogo, como palavra.
• Com quem ela compartilha sua exploração ou comentários? Como
Leitura: Teoria e Prática, Porto Alegre, Mercado Aberto, n? 5.
o faz? Como o outro participa dessa situação? O que diz? O que
faz? Filme recomendado
• Se a criança estiver numa situação de produção de escrita, descre
va também o que ela está fazendo. Que material está utilizando • A glória de meu pai, direção de Yves Robert, 1990.
para isso? Que tipo de marcas produz? Em que condições as pro
duz? Que significado ou função atribui a elas (está escrevendo o
que, para que, para quem) Como e com quem compartilha a ativi
1 86 dade? Como o outro participa da atividade? O que faz, o que diz? " J 87 .. .
também os fatores envolvidos na passagem de uma hipótese para ou
tra. Em seus estudos, privilegiaram produções espontâneas, isto é,
Capítulo 16 aquelas em que a criança escreve tal como acredita que poderia ou
deveria escrever certo conjunto de palavras, sem a ajuda ou a orienta
ção de outra pessoa.
Vygotsky e Luria, por sua vez, procuraram demonstrar a relação
entre a escrita e as atividades simbólicas no desenvolvimento da criança
e recriar experimentalmente o processo de simbolização na escrita, em ··
t
tos, animais, brinquedos, etc.) e não constar de manuais de alfabetiza
ção (para evitar a reprodução de palavras memorizadas).
Assim, eram ditadas às crianças seqüências como: gato, borboleta,
cavalo, peixe, o gato bebe leite; lápis, lousa, giz, apontador, a professora
pega seu lápis, etc. j
Por -meio desses experimentos, Emilia Ferreiro e seus colaborado
- O que você desenhou? - Ponha o nome. - Por que tem quatro pedacinhos?
res identificaram três grandes etapas no processo de construção da es - Um boneco. (Rabisco.) (b) - .... porque sim.
crita pelas crianças, ordenadas nesta seqüência: - Ponha o nome. - O que você pôs? - O que diz aqui? ( I?).
(Rabisco.) (a) - Ca5inha. - Adriana.
- O que você pôs? - Você sabe colocar o seu nome? - E aqui? (2?).
- Ale (= seu innão). (Quatro rabiscos separados.) (c) - Alberto (= seu pai).
• distinção entre o desenho (modo de representação icônico) e a escrita - Desenhe uma casinha. - O que é isso? - E aqui? (3?).
(Desenha.) - Adriana. - Ale (= seu innão).
(representação não icônica); - O que é isso? - Onde diz Adriana? - E aqui? (4?).
- Uma casinha. (Assinala globalmente.) - Tia Picha.
• diferenciação quantitativa e qualitativa dentro da escrita produzida
(intrafigural) e entre as escritas produzidas (interfigurais); Fonte: Reflexões sobre a/fabetiwção - Emilia Ferreiro. Cortez. p. 2 1 .
três a quatro) e que não se repitam sempre os mesmos caracteres. Quando as letras começam a adquirir valores sonoros estáveis, a
Nos experimentos, cartões com um ou dois caracteres, como A, AS, criança passa a registrar com as mesmas letras as partes sonoras seme
SO, eram classificados pelas crianças como não legíveis porque "são
lhantes das palavras, produzindo escritas como:
muito curtinhos", "tem uma palavra só, não dá para ler", "onde há
pouquinhas não é para ler, aqui tem pouquinhas letras, tem duas". Também G O por ga-lo ABKE por a-ba-ca-te
os cartões com MMMMM, AAAAA eram considerados ilegíveis porque
"tem tudo a mesma coisa", "diz o tempo todo a" (Ferreiro, 1985: 41-4). G O por ga-to ABKI por a-ba-ca-xi
RAL por Ra-fa-el IOA por pi-po-ca
Na escrita, as crianças utilizavam também sempre mais de dois
caracteres e combinados de modos diversos. (Exemplos extraídos de Azenha: 1994.)
Sugestão de leituras
Nessa etapa, a criança escreve com legibilidade, mas, ao confrontar
o que escreve com a escrita convencional, ela começa a perceber que a
identidade de sons não garante a identidade de letras e que a identidade AZENHA, M. da G. Construtivismo: de Piaget a Emilia Ferreiro. São
de letras também não garante a identidade de sons. Ou seja, ela percebe Paulo: Ática, 1994.
FERREIRO, E., TEBEROSKY, A Psicogênese da língua escrita. Porto Ale
que o bo de boneca (bô) não é o mesmo bo de bode (bó), que o a de
arara (á) não é o mesmo a de banana (ã). O r de rato é diferente do r de gre: Artes Médicas, 1985.
arara e do r de torrada. O som de eh pode ser representado diferente WEISZ, T. Por trás das letras. São Paulo: FDE, 1992. (Um vídeo
mente, como em chapéu ou baixo, da mesma forma que a letra x soa complementa o material escrito.)
diferentemente em lixo, tá.xi e exame. ____ . Como se aprende a ler e a escrever ou prontidão, um proble
Nesse emaranhado de possibilidades, a criança se dá conta de que ma mal colocado. Revendo a proposta de alfabetização. São Paulo:
uma letra "vale" por vários sons ou que um mesmo som pode ser repre SE/CENP, 1985. (Texto organizado e elaborado a partir da obra de
sentado por várias letras, entrando, assim, no campo dos critérios orto Emilia Ferreiro.)
gráficos da escrita, que, segundo Emilia Ferreiro, não são mais aspectos
construtivos do sistema alfabético. O conteúdo ortográfico da escrita,
afirma ela, depende das informações do meio e do ensino sistemático.
O gesto e o jogo são marcados na areia, na terra, no papel. Exploran
do o movimento, a criança produz traçados. São seus primeiros rabiscos.
Os gestos da mão segurando lápis, giz, varetas, pincéis materializam a
Capítulo 1 7 possibilidade de registro do gesto comunicativo. Surge o desenho.
Inicialmente "os traços constituem somente um suplemento à re
presentação gestual" (idem, p. 1 22). Aos poucos, nas interações, a
criança aperfeiçoa esse registro, e a representação pictórica e gráfica
começa a designar o mundo percebido e conhecido. Aos rabiscos, já
feitos no papel, ela dá um nome. Pouco a pouco, a nomeação passa a se
dar no início da atividade, e a criança nomeia o que vai desenhar. Pelo
Da atividade simbólica à desenho, como pela fala, ela conta uma história, comunica os aspectos
essenciais dos objetos. O desenho como linguagem gráfica é elaborado
simbolização na escrita com base na linguagem verbal.
Gesto, jogo e desenho, mediados pela fala, constituem momentos
diferentes de um processo unificado de desenvolvimento da linguagem
escrita. Os gestos, o jogo e o desenho representam, de acordo com
Enquanto Emilia Ferreiro documentou nos seus estudos experimen Vygotsky, a pré-história da escrita, pois contribuem para a elaboração
tais a progressão de noções localizando os modos como a criança racio do simbolismo na própria escrita.
cina sobre a escrita, apontando percepções e distinções que ela constrói Como a criança chega à compreensão de que a língua escrita é um
individualmente, até chegar aos princípios (regras) de organização e fun sistema de signos que não têm significado em si? Como apreendem e
cionamento da escrita convencional, Vygotsky e Luria procuraram mos elaboram a possibilidade de utilizar linhas, pontos, manchas feitas so
trar "o que leva a criança a escrever" (Vygotsky, 1 984: 1 2 1 ). bre o papel como suporte para a memória e a transmissão de idéias?
Para explicar a gênese da escrita na criança, Vygotsky focaliza a A elaboração do simbolismo na escrita foi objeto de um estudo
escrita como uma atividade simbólica. experimental desenvolvido por Luria, que procurou compreender:
Tal como as demais atividades simbólicas (gesto, desenho, jogo,
etc.), a escrita envolve a representação de uma coisa por outra, a utiliza • C(J"f11<!_ as c:rjanfas s_e aprop�f" da escrita em suas relações S(}Ciais;
ção de signos auxiliares para representar significados. O domínio dessa ... ·•· • •.�o,,U, eWJio1JYn, denh:,o dap,.ôpJfa técnipa da escriJa, .os prinC(pws de
càPai�q�dÔ-�e
n•·· " :W���wt��·tm,,UJ:�tf�����:'i!º·
habilidade complexa não nasce por si mesmo, nem é alcançado de ma
neira puramente mecânica e externa. Segundo Vygotsky, resulta de um �.
longo e unificado processo de desenvolvimento da atividade simbólica,
que começa com o uso do gesto como signo visual.
O gesto, movimento comunicativo das mãos, dos braços, das per O estudo experimental do simbolismo na escrita
nas, da cabeça, do rosto, do cõrpo todo, ganha sentido nas interações
com os outros. A criança aprende a dizer o que quer e a entender o outro O procedimento metodológico
pelo gesto. Os gestos, no dizer de Vygotsky, são escrita no ar.
Depois, o jogo simbólico. O imaginário, feito gesto, feito palavra, Segundo Luria, a simbolização na escrita consiste na transformação
transforma as coisas. No jogo simbólico, uma coisa vale por outra: a de rabiscos não diferenciados em signos diferenciados. Para reproduzir
cadeira vira leão, a folha de jornal enrolada vira a espada do menino, experimentalmente esse processo, ele colocou crianças de diferentes ida
que vira herói... des que ainda não sabiam ler e escrever em uma situação na qual tinham a
A criança se movimenta, age, pensa, inventa criando e usando sím tarefa de elaborar algumas formas simples de notação gráfica.
bolos. Um significado tem vários significantes, várias significações: a Partindo da função instrumental da escrita, isto é, do seu funciona
pedra pode virar elefante ou avião. Os objetos adquirem a função de signo mento como suporte para a memória e a transmissão de idéias e concei
pelo gesto indicativo e pela nomeação. Gesto e palavra são interligados. tos, o experimentador solicitava à criança que memorizasse uma série
de frases ditadas por ele, como:
O brinquedo simbólico das crianças pode ser entendido como
um sistema muito complexo de "fala " através de gestos que comu 1. Há cinco lápis sobre a mesa. 2. Há dois pratos. 3. Há muitas
nicam e indicam os significados dos objetos usados para brincar. árvores na floresta. 4. Há uma coluna no pátio. 6. A bonequinha.
197
(Vygolsky, 1 984: 123.) (Luria, 1 988.)
Propositadamente, entre as frases não havia relações semânticas, e O ato de escrever, nessa situação, era apenas externamente asso
seu número era muito maior do que a capacidade natural de memo ciado à tarefa de anotar uma palavra específica, segundo Luria. A crian
rização das crianças. ça imitava o gesto comunicativo dos adultos, sendo o escrever um ato
Depois de ficar evidente para as crianças sua dificuldade em me suficiente em si mesmo, um brinquedo.
morizar as sentenças, o experimentador sugeria que escrevessem ou re O outro tipo de elaboração observado foi o registro em forma de
gistrassem de alguma maneira as frases numa folha de papel, como for marcas topográficas. Distribuindo seus rabiscos pelo papel, as crianças
ma de ajudar na sua memorização. conseguiam lembrar parte das frases ou as frases inteiras, que asso
Assim, o experimentador oferecia às crianças uma estratégia (o uso ciavam à sua posição no papel.
d_e um signo auxiliar) e um modo de ação (a escrita) para a solução da lõ l Sl A l ll l r L lV I O
_
s1tuaçao-problema. Embora tivessem familiaridade com o aspecto ex
terno da escrita, as crianças desconheciam sua estrutura interna e suas
técnicas de utilização.
A partir daí começava o experimento, interessando ao experi
mentador apreender que formas de registro eram utilizadas pelas crian
ças e em que momento elas deixavam de ser simples brincadeiras, pas
sando a funcionar como símbolos auxiliares da memória.
Analisando as produções das crianças, Luria e Vygotsky caracte
rizaram dois modos de elaboração da escrita: a pré-instrumental e a
instrumental.
(Exemplo exlraído d a·dissertação d e mestrado d e Maria da Graça
A elaboração pré-instrumental da escrita: dos rabiscos Azenha B. Sanlos O grafismo infamil -processos e perspectivas.
Faculdade de Educação, USP, 1991.)
mecânicos às marcas topográficas
Ao reproduzir as frases, segundo Luria, as crianças davam a im
O primeiro tipo de elaboração eviden pressão de estar lendo. Olhavam para os rabiscos e podiam indicar re
ciado na situação experimental criada por petidamente, sem errar, qual rabisco representava qual frase. Embora
Luria foi a imitação do formato da escrita essas marcas ainda não fossem signos, já eram mais do que simples
do adulto por meio de rabiscos mecânicos rabiscos imitativos. A relação da criança com elas era de outra natureza,
desprovidos de qualquer relação com os pois as marcas funcionavam como pistas auxiliares para recuperar a
conteúdos a serem representados. As cri informação. Em alguma medida, ajudavam na memorização e tinham
anças traçavam inúmeros rabiscos no pa certa relação com um significado, embora ainda não determinassem
pel antes mesmo de ouvirem a frase a ser qual fosse esse significado.
registrada e, diante da pergunta do ex Pelo fato de as marcas não serem diferenciadas, depois de algum
perimentador acerca do significado dos ra tempo seu significado era esquecido e elas voltavam à condição de ra
biscos, explicavam: "É assim que você es biscos mecânicos.
creve", "Isso é escrever". Ainda assim, Luria considera as marcas topográficas como os pri
meiros rudimentos da escrita, pois reorganizam o comportamento da
criança, ajudando na memorização e na percepção da relação entre si
nais e significados.
(Exemplo extraído de 'O desenvolvimento da escrila na criança' .
l n : Vygotsky, Luria, Leontiev. Linguagem, desenvo/vimemo e A elaboração da função instrumental da escrita: o processo
aprendiz.agem, 1 988.)
de diferenciação das marcas utilizadas
Obviamente esse tipo de registro não ajudava a memorizar as Das marcas topográficas, as crianças passavam a preocupar-se em
frases, tanto que, ao tentar recordá-las, as crianças nem olhavam para produzir nos seus registros algo que refletisse as diferenças entre as 1 99 · ·
1 98 o papel. frases proferidas.
Inicialmente, tentavam fazer isso marcando o ritmo da frase. Em Num de seus relatos de observação, Luria descreve o registro feito
seus rabiscos, fixavam o efeito produzido pelo ritmo da fala, utilizando por V., de 5 anos.
marcas pequenas para registrar palavras isoladas e frases curtas e traça
dos longos e complicados para indicar as frases longas. Pedimos a ele que anotasse as sentenças para que mais tarde
Este relato de Luria ilustra bem o efeito do ritmo da fala sobre a criança. pudesse recordar. Começou imediatamente a produzir rabiscos di
zendo: "É assim que você escreve ". Obviamente, para ele, o ato de
Demos a L., quatro anos e oito meses de idade, um certo núme escrever era puramente uma imitação externa da escrita de um
ro de palavras: mamãe, gato, cachorro, boneca. Ela anotou todas adulto, sem qualquer conexão com o conteúdo da idéia particular,
com os mesmos rabiscos, que não diferiam uns dos outros. A situa uma vez que os rabiscos não diferiam um do outro de forma essen
ção mudou consideravelmente, todavia, quando lhe demos também cial. Eis o registro:
longas sentenças junto com palavras individuais: 1) menina; 2) 1. O rato com um rabo comprido.
gato; 3) Z. está patinando; 4) Dois cachorros estão caçando o gato; O sujeito (escreve): É assim que você escreve.
5) Há muitos livros na sala e a lâmpada está queimada; 6) garrafa; 2. Há uma coluna alta.
7) bola; 8) O gato está dormindo; 9) Nós brincamos o dia inteiro, O sujeito (escreve): Coluna.. .
depois jantamos e, em seguida, voltamos a brincar outra vez. 3. Há chaminés no telhado.
O sujeito (escreve): Chaminés no telhado... É assim que você
escreve...
4. Uma fumaça muito preta está saindo da chaminé.
Sujeito: Preta. Assim! (Aponta para o lápis e, em seguida, co
meça a desenhar rabiscos muito pretos calcando o lápis comforça.)
5. No inverno há neve muito branca.
Sujeito: (Faz seus rabiscos costumeiros; em seguida, separa
os em duas partes, aparentemente sem relação com a idéia de
"neve branca ".)
6. Carvão muito preto.
Sujeito: (Novamente desenha linhas volumosas.)
�-
J.
IB·
função instrumental.
pedido à criança que identificasse as frases apresentadas para memo
Tendo apreendido a necessidade de uti- 7.
rização. Luria conta que, inicialmente, a criança nada dizia, parecendo
Iizar marcas diferenciadas em seu registro
11 +1{·
ter-se esquecido de tudo. No entanto, ao examinar seus rabiscos, dete
para poder relacioná-las com o conteúdo do S.
ve-se em um deles, dizendo espontaneamente: "Isso é carvão".
· material a ser memorizado, a criança elabo-
ra, então, um sistema de marcas expressivas,
Essa foi a primeira vez que tal leitura espontânea ocorreu nes por meio das quais forma todo seu processo
sa criança, e o fato de ela não só ter produzido algo diferenciado, de recordação.
como ter sido capaz de recordar o que represelltava, confirma ple Nas tentativas de registro de cor, forma, .J..
�
namente que havia dado o primeiro passo no sentido de usar a tamanho, quantidade, as crianças produziam
escrita como um meio de recordar-se. representações próximas da pictografia pri-
(Luria. 1988: 168.) mitiva (escrita através de desenhos). O dese- - �---�
______ �__.,.., .-/-._-
nho começa, então, a convergir para a escrita,
Outro exemplo citado por Luria mostra como um signo, pela dife não como desenho em si, mas como um ele
renciação numérica, tem uma função expressiva: mento que representa conteúdos determina
dos das frases faladas pelo experimentador. O 2._.dY
Quando pedimos a Brina que escrevesse "O homem tem duas desenho constitui, assim, um elemento auxi
��
! \
pernas", ela imediatamente declarou: "Então desenharei duas li liar na produção de uma escrita diferenciada.
nhas ", e uma vez tendo descoberto esta técnica, continuou a usá 3.
la. E combinou esse expediente com uma grosseira representação
esquemática do objeto. "A garça tem uma perna " foi representada (Extraído da dissertação de mestrado de Maria
A criança quis escrever: 1. ônibus; 2. óculos; 3. meni
da Graça Azenha B. Santos O grafismo infantil
com uma linha que encontrava outras em ângulo reto; "O -processos e perspeclivas. Faculdade de Edu no; 4. árvore; 5. escola; 6. rua; 7. classe.
cachorrão com quatro cachorrinhos " tornou-se uma linha grande cação, USP, 1991.)
9
fases de escrita não diferenciada, mas utilizando as grafias aprendidas.
O seguinte registro de Luria exemplifica esse processo:
Exercitando a comparação
Como o convencional tem sido ensinado? Um procedimento comum entre alfabetizadores é se referirem às
letras relacionando-as com as lições da cartilha. O m vira "ma do maca
Cumprindo, ao lon co", o n vira "na do navio", numa confusão absoluta entre letra, sílaba,
go do ano dedicado à al palavra, nome de letra, som de letra.
fabetização, seu papel de "Já fez as palavrinhas? Ma com o... na com o... Aqui (na lousa) eu
informar, instruir, insistir, fiz ma com a. Olha o que você fez aí!" (Smolka, 1984). Numa situação
controlar, os professores como essa, além de não se dar esclarecimento à criança, passam-se in
ensinam letras, sons, síla formações inadequadas.
bas e a decifrar palavras Diante dos resultados obtidos, as professoras angustiam-se com as
escritas, insistem na me crianças que "não vão para a frente", que repetem uma ou mais vezes a
morização e fixação, con l � série, o que não é raro em nosso sistema escolar.
trolam a produção e a dis
ciplina. Fazem tudo isso
na crença de estarem di E as crianças?
recionando a atenção e a
vontade das crianças. As crianças chegam à escola desejosas de aprender, ansiosas por
Obrigadas a "copiar" uma série de letras e palavras, como, por escrever. Afinal, convivem com a escrita já há algum tempo, sabem que
Aprendendo a exemplo, o cabeçalho diariamente colocado na lousa, as crianças não
·
têm algum conhecimento sobre ela, mas sabem também que desconhe
escrever: entendem o que fazem. cem muita coisa. "Eu não sei ler"; "Eu sei que tem coisa escrita, mas eu
atividade /iídica
ou mecânica ?
O cabeçalho, algumas vezes, é apresentado com lacunas a serem não sei muito bem usar letra", dizem elas.
preenchidas: Elas têm expectativa de que os adultos lhes ensinem.
C _ _ _ _ _ _ _ , D _ _ 18 DEA _ _ _ _ DE 1 994. A criança, de 5 anos, pede à tia que escreva algumas palavras
D É A para ela. A tia, professora e estudante de Pedagogia, sugere que
H J E _ _ _ F_ _ _ _ _ _ SOL. ela mesma escreva. A criança responde que não sabe. A tia insiste:
"Escreva como você acha que é!".
(Extraído do relatório de estágio de uma aluna de Pedagogia de
1 994.)
Depois de algum tempo, a criança volta com algumas letras
marcadas no papel e pede que a tia leia para ela. ;�i�l�J(�����@:,�;�J.�+ .
- Não... Você lê pra mim o que escreveu... - a tia diz. cionamento e a funcionalidade da escrita, no sentido de procurar
- Viu só como eu não sei escrever? - a criança retruca. apontar para as crianças, tanto formal quanto informalmente, as
(Depoimenlo de uma aluna do curso de Pedagogia, numa aula em
diversas possibilidades e funções dessa forma de linguagem. As
que se discutiam os estágios de Prálica de Ensino, em 1 994.) crianças participaram da confecção de vários tipos de versões do
alfabeto - da Xuxa, do Toquinho, de animais -, tendo esse mate
n
· '·.· : . :·
r. ··e. ;,\ jii}lfii{�
{í As crianças trazem consigo experiên rial exposto como referência e consulta na sala. Algumas palavras
) •
\ cias diversas com a escrita, suposições acer
. .
;j ·
/
Í )
...
.
estão também pregadas na parede, em ordem alfabética. O quadro
ca de seu funcionamento, mas se vêem im
I '-;':::·; de presença com os nomes das crianças, o calendário, dois textos,
pedidas de explicitá-las na escola. Querem são outros materiais dispostos na sala. As crianças podem manu
aprender, mas nem sempre a escola se dis sear livros de história e ouvem, quase que diariamente, a leitura de
\· (; põe a ensinar a elas o que desejam. um livro pela professora.
\ "• c$'i ' Mês de maio. A professora encoraja as crianças a escreverem
Eu me lembro que esperava na maior
uma notícia para o jornal dos alunos. As crianças podem recorrer
ansiedade a hora de entrar na escola. Só
a qualquer estratégia para montar a notícia - perguntar ao cole
que, quando entrei na ] .ªsérie, chorava muito
e não queria ir mais. Eu queria escrever, não ga, copiar da revista, consultar o material exposto na sala, pedir
queria ficar fazendo os rabisquinhos dos auxílio à professora, etc.
exercícios do período preparatório... Eu já Duas crianças conversam sobre a torneira do banheiro que
sabia escrever o meu nome, que minha irmã está quebrada, que foi consertada, mas que continua não funcio
tinha ensinado, sabia algumas letras... nando. Decidem escrever esta notícia para o jornal. Pat. e Ale.
começam a falar e a repetir lentamente "a torneira está quebra
(Depoimento d e u m a aluna d e Pedagogia, numa aula em que s e
discutiam o s estágios de Prática de Ensino. em 1994.) da ".
Ale.: A gente quer escrever que a torneira está quebrada, �ia.
O resultado desse desencontro entre as Como que escreve ?
crianças e a escola aparece no diálogo com Pat. : A torne... é o "e", né, tia ?
crianças de escola pública reproduzido por Prof.": Tem o "e".
Ana Luiza Smolka: Pat. : Tá quebra... é o "a", né, tia ?
Prof.": Também tem o "a".
- Pra que vod vem à escola? Pat.: escreve "EA " A professora pede para o Ale. ler.
.
padrão. Durante o registro, a criança parou no "ele", e provavelmente (Projeto de Incentivo à Leitura. 1984.)
repetiu "A mulher está alimentando ele...", completando, então, "para
não morrer". O h no início da palavra homem não tem nenhum valor fonético,
A análise dessa produção mostra que existem diferentes tipos de assim como o m final, que, muitas vezes, não é pronunciado. O i em vez
"erros" - dialetais, ortográficos, por generalização, por supercorre de em indica problemas de nasalização e não-correspondência entre vo
ção -, que, ocorrendo por diferentes razões, devem ser corrigidos e . gal escrita e falada. O i de embaixo também é geralmente omitido na fala,
trabalhados de maneiras diferentes. Eles revelam, também, regularida e o x e o eh servem para representar o mesmo som. "Alvore" revela um
. 216 des no processo de elaboração da escrita. Juntos, os quatro primeiros 217
problema dialetal e de supercorreção. Em algumas regiões, o l é pronun-
.
ciado como r. Fala-se "borsa", "revórvi", e escreve-se bolsa, revólver. As soluções que encontram para as palavras que constroem
Então, se a fala é árvore, imagina-se que a escrita correta seria "alvore". são inúmeras. Ex. : O RATO GOTA D/ Q/JO (0 rato gosta de quei
Examinando com cuidado os erros cometidos pelas crianças, va jo) ou O COMETA PASO NA SIDADJ (0 cometa passou na cida
mos confirmando as regularidades e as sistematizações próprias do pro de). E quando eles me mostram, eu não digo "está errado ", mas
cesso de elaboração da escrita. Os erros revelam os modos como as "está certo " seria mentira. Então eu pergunto: O que você escre
crianças procuram organizar as informações e os conhecimentos que veu? Eles lêem e emendam "está certo? " E eu: "Esse é o seu jei
têm. Há neles uma lógica muito mais consistente do que à primeira vista to... " Não insistem, mas algumas crianças como a Rosa e a
imaginamos. Constatá-los é importante. Mas para quê? O que fazer lvanilda dizem que sabem que "falta alguma coisa " e ficam em
com eles? burradas porque eu não digo. [... ] a lvanilda, muito crítica, só
Alguns professores hesitam entre preservar o direito da criança de quer escrever "certo ". Não queria se arriscar a escrever "como
errar e de se arriscar e problematizar suas produções, com receio de achava " e eu, conversando com ela, perguntei por quê. Ela disse
inibi-las. Eis um relato que mostra esse dilema: que sabia que estava errado o jeito que escrevia e que eu aceitava
porque era a professora dela. E perguntava: "Você acha, professo
O trabalho com as frases foi bom até certo ponto. O que me ra, que depois (o ano que vem) vão deixar eu escrever como eu
desconcertou foi o fato das crianças terem ficado nervosas, histéri acho que deve ser?"
cas mesmo, porque já não se contentam com suas produções. O (Idem, ibidem.)
que eu estava interpretando como agressividade gratuita, confu
são e bagunça, vejo agora que é outra coisa. Lêem, reconhecem As crianças, na escola, não elaboram apenas a escrita em si, mas
sílabas, percebem o significado, mas escrevem silabicamente ou também o papel da escrita na sociedade, a função da escola em relação
silábico-alfabeticamente e não ficam satisfeitas com o resultado. à socialização da escrita convencional, a expectativa social quanto a sua
Fica um clima tenso, de insatisfação. Por outro lado, minha postu aprendizagem, os papéis sociais de professor e aluno, em jogo nas rela
ra radical de não corrigi-los nunca está sendo interpretada como ções de ensino ...
indiferença, pouco caso. Eles sabem que não escreveram certo e Se a escola erra, como vimos anteriormente, quando não possibilita
ficam desconfiados, sentem-se enganados. Tenho que repensar mi à criança expressar o que já conhece sobre a escrita, erra igualmente
nha atitude. [ ... ] Com medo de inibir, passei para o extremo oposto quando ignora ou toma secundário seu desejo de dominar de modo "efi
e não estou ajudando. caz" a escrita convencional.
(Depoimento extraído do texlo 'E na prátic� a teoria é outra?'. de Como facilitar, então, o aprendizado da língua padrão?
Teima Weisz, publicado no módulo li do Projeto /pê - Isso se Trazendo a escrita para dentro da sala de aula, trabalhando-a em
aprerrde com o ciclo básico. São Paulo: SE/CENP, 1 986.)
suas funções e em todas as sua& possibilidades; encorajando e ajudando
as crianças a falar, escrever, divulgar sua produção; lendo e escrevendo
Outro modo de olhar para os erros é não considerá-los como "nega
·para as crianças e com elas; expondo de forma organizada os trabalhos
ção de conhecimento" ou "afirmação da inteligência da criança e da sua
realizados e utilizando a escrita como recurso de organização; esclare
capacidade de pensar", porque eles são as duas coisas ao mesmo tempo.
cendo e informando às crianças sobre a escrita, respondendo a suas per
Eles nos mostram até onde as crianças chegaram na elaboração da escri
guntas e também corrigindo-as.
ta, que hipóteses estão formulando, o quanto já apreenderam e com
preenderam acerca de seus fundamentos, funções e princípios de orga
nização. E também quais os pontos em que ainda devemos intervir jun
to a elas, o que precisamos explicitar para elas e com elas, que informa Mas como corrigir?
ções podemos lhes dar para que avancem em suas elaborações e no
domínio da escrita. Já vimos que o antigo hábito de assinalar o erro não resolve. Ele
Os erros indicam a um só tempo o que já não precisamos trabalhar apenas evidencia o erro para a criança e para o professor. O erro assina
com as crianças, porque já é do domínio delas, e o que ainda exige lado não dá informações sobre a escrita, não diz nada ao professor sobre
nossa intervenção, por estar em fase de elaboração. os processos de elaboração da criança.
As crianças esperam que nós, professores, exerçamos nosso papel Se os diferentes erros se devem a diferentes razões, sua correção e
participando com elas do processo de elaboração desse conhecimento. superação exigem procedimentos também diferentes. Mas só chegamos
Afinal, somos reconhecidos pelos alunos como a pessoa que, na classe, a perceber isso quando fazemos da correção um momento de estudo dos
mais sabe (ou deveria saber) sobre a escrita, como se percebe neste ou processos de elaboração do conhecimento vivido pelas crianças com
tro depoimento: quem estamos trabalhando, quando buscamos discernir o que já domi-
nam e o que ainda não, que hipóteses estão formulando, em que lógica
têm sustentado sua produção. A análise dos acertos e dos erros, das
adequações e inadequações em relação à norma padrão indica os cami Sugestão de atividades
nhos a seguir.
E planejar o caminho a ser apontado a cada criança envolve um
complexo trabalho de comparar palavras, analisar e dar atenção aos Exercitando a análise
seus detalhes e às regularidades observadas entre elas, pesquisar e siste
matizar essas regularidades. Esse trabalho deve ser feito junto com as 1. Nas práticas cotidianas de sala de aula estão impressas as concepções
crianças, porque envolve habilidades intelectuais e informações que que o professor tem a respeito do processo de alfabetização e de ela
elas ainda não dominam. Ao fazê-lo, compartilhamos com elas tanto os boração da escrita pela criança.
problemas e as dificuldades que o domínio da escrita nos coloca quanto • O que é ler e escrever? O que é alfabetizar?
as buscas de soluções.
Para que se lê e se escreve? Para que se alfabetiza?
Vivida como linguagem, a escrita é código, técnica, significado,
•
objeto de conhecimento, forma de interlocução. É, enfim, um modo de • Como a criança aprende e apreende a escrita? Como ela se alfabetiza?
agir, um modo de dizer as coisas. • Com que e com quem a criança aprende a escrever e ler? Com que
No exercício do dizer pela escrita as crianças aprendem e inter e com quem ela se alfabetiza?
nalizam mais do que as relações e convenções lógicas de um sistema de
representação. Elas aprendem e intemalizam modos de interação na sua A seguir você tem um conjunto de episódios de sala de aula. Anali
realidade sociocultural. se-os atentamente, procurando abordar cada uma das questões suge
ridas acima. Para realizar a análise, releia todos os capítulos referentes
ao desenvolvimento da escrita na criança e todos os textos complemen
tares que foram trabalhados pelo seu professor.
Situação n? 1
(22.02.86) Amanhã será a reunião dos pais. Escrevemos jun
tos o bilhete. Primeiro resolvemos o que iríamos escrever. Conta
mos quantas palavras e perguntei sobre a primeira: REUNIÃ O.
Escrevi e pedi qu_! lessem. Qual a palavra que temos que escrever
agora? AMANHA. E liam tudo, até completar o bilhete, reler e co
piar. No final sabiam todo o bilhete e identificavam as palavras
s!!paradamente. Alguns disseram que tinham contado tudo errado.
E que no começo contaram nove palavras (oralmente): REUNIÃO
AMANHÃ 9 HORAS. TEM A ULA ATÉ 9 HORAS.
Quando viram escrito, discordaram: tem s6 7 porque "número
não é palavra, s6 quando fala ".
(Situação retirada de um diário de classe de uma professora de l !
série e transcrita por Teima Wcisz n o texto ' E n a prática, a teoria é
outra?', publicado em Projeto /pê - Isso se aprende com o Ciclo
Básico. São Paulo: SE/CENP, 1986.)
Situação n? 2
• Quais são as facilidades e as dificuldades que têm com a escrita? Prepare uma aula de regência com a ajuda de suas professoras de
Prática de Ensino e de Metodologia da Língua Portuguesa e desenvol
O grupo 4 deve realizar observações em classes de alfabetização, va-a numa classe da 1 � série.
procurando apreender as condições e formas de interação vivenciadas Registre tudo o que você planejou e trabalhou com as crianças.
no trabalho de escrita e leitura com as crianças. Descreva o material que utilizou e como o empregou em sua aula. Re
Nesse caso é importante observar: gistre também as dificuldades que você sentiu como professora.
• os tipos de materiais com que as crianças trabalham; Anote os modos como as crianças participaram em sua aula: as
reações, perguntas e comentários feitos por elas, as dificuldades que
como elas exploram, manipulam e organizam esses materiais;
elas sentiram, as solicitações que dirigiram a você.
•
• o acesso que as crianças têm (ou não) a material escrito ou informa Peça à professora da classe em que você desenvolveu a regência
tivo sobre a escrita (por exemplo, o alfabeto) dentro da sala de aula; que lhe permita ficar com a produção escrita das crianças realizada em
• os tipos de atividades propostas às crianças e como elas partici sua aula.
pam dessas atividades; Em seguida analise sua proposta de trabalho e a produção das
• com que finalidade se solicita à criança que escreva e como ela escreve crianças, seguindo os tópicos de observação destacados no exercício 2
(sozinha, em grupos, com o auxílio do professor, faz cópias, ditado, etc.); indicado para o grupo 4.
• o que acriançaescreve e paraquem escreve (para si, para os outros, etc.); Em relação à produção das crianças, procure prestar atenção não só
ao modo como escrevem, mas também ao conteúdo de sua escrita. O
a que tipo de material de leitura a criança tem acesso (cartilha,
que você corrigiria nesses trabalhos e como o faria? Como você os de
•
Cada grupo deve reunir os dados obtidos e fazer a leitura atenta dos
registros. E, a seguir, analisar os dados, procurando identificar o que há Sugestão de leituras
em comum e de diferente entre eles. Depois, agrupar, definir os critérios
desses agrupamentos e elaborar uma síntese deles para a apresentação CAGLIARI, L. C. A ortografia na escola e na vida. ln: Projeto !pê - Isto
aos outros grupos. se aprende com o Ciclo Básico. São Paulo: SE/CENP, 1 986.
FREIRE, M. A paixão de conhecer o mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
Discutindo os dados 1 983.
LEAL, A. Fala, Maria Favela. São Paulo: Ática, 1 987.
Reunidos os quatro grupos, vamos procurar cruzar o conjunto de SMOLKA, A. L. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como
dados obtidos, tentando ver nas respostas das crianças, dos professores, processo discursivo. São Paulo: Cortez, 1 988.
dos pais e no trabalho de sala de aula os pontos em que há convergên 225
cias e aqueles em que há divergências.
DIENES-GOLDING. Primeiros passos da matemática. Herder, 1972.
DwoRECKI, S. Criança: evitando a perda da capacidade de figurar. ln:
Bibliografia ___ . O jogo e a construção do conhecimento na pré-escola. São
Paulo: FDE, 1991 (Idéias, n? 10).
EVANS, R. Jean Piaget - o homem e suas idéias. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1980.
ANDRADE, c. D. de. Procura da poesia. ln: A rosa do povo. Rio
--- ·
FREITAG, B. Piagetianos brasileiros em desacordo? Contribuições para
de Janeiro: José Olympio, 1945.
um debate. Caderno de Pesquisa, São Paulo, n? 53, maio 1 985.
ARIEs, P. História social dafamília e da criança. Rio de Janeiro: Zahar,
___ . Sociedade e consciência - Um estudo piagetiano na favela e
1978. na escola. São Paulo: Cortez, 1984.
AzENHA, Maria da Graça. Construtivismo - de Piaget a Emilia Ferreiro.
FERREIRO, E. Reflexões sobre a alfabetização. São Paulo: Cortez, 1993.
São Paulo: Ática, 1 994. ___ , TEBEROSKY, A. A psicogênese da língua escrita. Porto Alegre:
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, Artes Médicas, 1985.
1 986. FoNTANA, R. A. C. A mediação pedagógica na sala de aula. Campinas:
BARBOSA, José J. Alfabetização e leitura. São Paulo: Cortez, 1 99 1 . Autores Associados, 1996.
BEE, H . A criança em desenvolvimento. São Paulo: Harper e Row do . A elaboração conceituai: a dinâmica das interlocuções na sala
Brasil, 1 977.
___
n<? 5 1 , novembro 1 984. - teoria e prática. Porto Alegre: Mercado Aberto, n9 5. 229
___ . (coord.). Relatórios do Projeto de Incentivo à Leitura -
subsídios metodológicos para professores de J� série do 1 � grau.
FLE/INEP/MEC/SESU, 1983- 1 988. Agradecimentos
___ . Educação básica: em busca de qualidade - Cognição,
linguagem e trabalho na escola. Simpósio VI-CBE, São Paulo, 1 99 1 .
___ , GóES, M. C . R . de (orgs.). A linguagem e o outro no espaço À Ana Luiza e à Cecília, com quem aprendemos a olhar a
escolar: Vygotsky e a construção do conhecimento. Campinas:
criança e a estudar o seu desenvolvimento. Pela leitura aten
Papiros, 1993.
ta, pelas sugestões, pela oportunidade de escrever este livro.
___ , GóES, M. C. R. de. Leitura e escrita. ln: ALENCAR, E. (org.). À Adriana, que, refletindo sobre as relações entre teoria e
Novas contribuições da Psicologia aos processos de ensino e·
prática, inspirou várias passagens deste texto.
aprendizagem. São Paulo: Cortez, 1 992. À Si/vinha, pelos episódios e por tudo o que nos ensinou,
___ . A atividade de leitura e o desenvolvimento das crianças:
considerações sobre a constituição dos sujeitos leitores. ln: SILVA, E. com seu trabalho, sobre o desenhar da criança.
T., ZILBERMAN, R. (orgs.) Porto Alegre: Mercado Aberto. Ao Jefferson, pela sugestão - inspirada - do título.
___ , LAPLANE, A. F. de. O trabalho em sala de aula: teorias para quê? A todas as professoras que compartilharam conosco as
Cadernos ESE, Faculdade de Educação da Universidade Federal belezas, os sobressaltos e as surpresas de seu fazer cotidiano
Fluminense, n? 1 , novembro, 1 993. na sala de aula.
___ et alii. A questão dos indicadores de desenvolvimento: À Cristina, pela preciosidade dos desenhos que nasceram
apontamentos para discussão. Cadernos de Desenvolvimento Infantil. de seu trabalho apaixonado e comprometido com as crianças.
Curitiba, Centro Regional de Desenvolvimento Infantil da Pastoral Às alunas do curso de Magistério e de Pedagogia, com
da Criança. CNBB, n? 1 , 1 994. quem trabalhamos - ensinando e aprendendo - e que soube
SOARES, Magda B. Linguagem e escola - Uma perspectiva social. São ram ver e compartilhar alguns dos mais belos episódios que
Paulo: Ática, 1986. relatamos neste texto.
VYGOTSKY, L. S . Les bases epistémologiques de la psychologie. ln: Às mães que, encantadas, nos contaram histórias sobre
BRONCKART, J. P. (org.). Vygotsky Aujourd'hui. Neuchatel, Paris: seus filhos.
Delachaux et Niestlé, 1 985 . . Ao Wilson e à Vitória, da Atual Editora, pela forma como
___ . A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1 984. acolheram este trabalho, pela possibilidade de diálogo, pelas
___ . La méthode instrumentale. ln: BRONCKART, J. P. (org.). Vygotsky sugestões.
Aujourd'hui. Neuchatel, Paris: Delachaux et Niestlé, 1 985. À Beth e ao Bernardo, amigos queridos, pela força, pelo
___ . lmaginación y el arte en la infancia. México: Hispánicas, 1 987. apoio, pela torcida. Pelo modo sempre especial de se coloca
___ . Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1 987. rem ao nosso lado.
___ , LURIA,,LEONTIEV. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. Às nossas famílias, pela solidariedade e pela paciência
São Paulo: Icone/Edusp, 1988.
durante o trabalho de elaboração deste livro.
WEisz, T. Como se aprende a ler ou prontidão, um problema mal colocado. Às crianças que, falando, brincando, desenhando, escre
ln: Revendo a proposta de alfabetização. Projeto /pê. São Paulo:
vendo e sendo, nos brindaram com osfragmentos do cotidiano
SE/CENP, 1985.
___ . E na prática, a teoria é outra? ln: Isto se aprende com o Ciclo que dão vida e movimento a este texto.
Básico. Projeto /pê. São Paulo: SE/CENP, 1 986.
ZAZZO, R. Onde está a psicologia da criança ? Campinas: Papiros, 1 989.
230