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XIII Reunião de Antropologia do Mercosul

22 a 25 de Julho de 2019, Porto Alegre (RS)


GT100 - Sexualidades, Gênero e Curso de Vida: analisando intersecções de
marcadores sociais em contextos latino-americanos
Transgenereidade, masculinidades e militarismo: receios e desejos de homens trans
com o serviço militar obrigatório
Patrick Monteiro do Nascimento Silva - Universidade Federal Fluminense (UFF)
Orlando Tailor Vinhoza - Universidade Federal Fluminense (UFF)
Resumo: O serviço militar obrigatório, bem como os processos de alistamento
militar, é construído no contexto brasileiro enquanto marco da passagem de
adolescência para a vida adulta dos homens. O processo é visto como uma maneira
de deixar de ser um menino para tornar-se homem. Homens trans que retificam
seus documentos para que conste “sexo masculino” precisam passar pelo mesmo
processo burocrático ao tornarem-se homens aos olhos do Estado. O trabalho
busca apresentar algumas implicações do processo de alistamento de homens
trans, como o receio de constrangimento ou o desejo de servir militarmente em um
contexto no qual militares trans que foram reformados recorrem para voltar à ativa.
Debates sobre transgenereidade, masculinidades e curso da vida em relação com
militarismo e Estado são focos analíticos do trabalho. A pesquisa encontra-se em
processo e serão trazidas as análises feitas até o momento com base em
normativos oficiais do Estado, entrevistas por escrito e conversas informais com
homens trans.
Este artigo tem como enfoque as experiências de homens trans e pessoas
transmasculinas com os processos de alistamento militar, e tem base em uma
pesquisa em fase inicial que realizamos. A ideia para ela surgiu a partir do
depoimento de um homem trans sobre sua experiência com o exame médico em
seu alistamento em um grupo de conversas do qual fazíamos parte, decidimos
então buscar as experiências de outros homens trans e pessoas transmasculinas
para um primeiro momento de pesquisa.

Podemos dizer que no Brasil é de conhecimento geral a obrigatoriedade de


que ao completar 18 anos os brasileiros que possuem “sexo masculino” nos seus
documentos, precisam se apresentar à Junta Militar para o alistamento. Esta
obrigatoriedade para esse grupo de pessoas parece representar muito sobre as
relações de gênero na sociedade brasileira, bem como ideais de masculinidade e a
posição do militarismo dentro desses ideais e relações.

A categoria “gênero” nos últimos anos ganhou força nos debates das grandes
mídias, especialmente por contas de polêmicas levantadas no campo político sobre
o apelidado “kit gay” e a chamada “ideologia de gênero”. Associado a isso, também
aparece a discussão sobre a demanda pelo projeto “Escola sem Partido”. Todos
estes debates surgem não apenas no campo de campanhas eleitorais - muitas
delas com sucesso, tendo em vista a eleição do atual Presidente da República, Jair
Bolsonaro e outros eleitos -, mas também nas demandas de parte da sociedade que
se expressou através de manifestações pelo impeachment da então Presidente
Dilma Rousseff, pelo Escola sem Partido, contra a ideologia de gênero e outras
reivindicações.

A valorização das Forças Armadas e dos ideais militares também apareceu


aparentemente ao mesmo tempo. Nas manifestações citadas acima isso é expresso
através de pedidos de intervenção militar e volta da Ditadura Militar por parte dos
manifestantes. Nas falas de políticos, como Jair Bolsonaro, a valorização aparece
também ao menosprezar o ensino das escolas civis, que estariam tomadas por
“comunismo” e “ideologia de gênero”, ao mesmo tempo em que elogia as escolas
militares como modelos de disciplina. Um dos objetivos deste trabalho, portanto, é
articular debates sobre algumas relações entre gênero e militarismo, a partir de
algumas discussões teóricas pertinentes ao enfoque escolhido e dos dados obtidos
até o momento na pesquisa.

A maneira pela qual fizemos o primeiro contato com os interlocutores foi


através de um questionário com perguntas fechadas e abertas, que foi divulgado em
nossas mídias sociais pessoais, em grupos voltados exclusivamente para homens
trans e pessoas transmasculinas e um grupo para pessoas trans em geral.
Recebemos em uma semana mais de 40 respostas ao questionário, totalizando 56
pessoas ao final, e selecionamos algumas pessoas para entrevistar - ainda não
tivemos oportunidade de realizar entrevistas menos fechadas. Observamos que
sempre que colocávamos o questionário e nossa proposta de pesquisa em algum
meio, algum deles utilizava da nossa postagem para perguntar sobre como
funcionava o alistamento, se realmente era necessário se alistar, ou ainda,
demonstravam sua apreensão sobre o processo. Mesmo quando nos colocamos
como pesquisadores, os interlocutores perceberam em nós a possibilidade de um
canal de informações às quais eles não tinham acesso.

As nossas principais perguntas para a pesquisa questionavam de que


maneira as instituições militares atuavam enquanto modeladoras de
masculinidades, qual o papel do serviço militar obrigatório neste contexto, e de que
forma pessoas trans - homens trans e transmasculinos, em especial - se inseriam
nessa relação entre gênero e militarismo. O que buscamos apresentar neste artigo,
portanto, é fruto da nossa interação com esses rapazes ao mostrar nossas
perguntas, suas respostas e as conversas entre eles nos grupos de conversa. Além
disso, procuramos fazer um delineamento da bibliografia existente sobre os temas
de gênero e instituições militares que se relacionavam as nossas ideias.

A primeira parte do artigo faz um resumo do contexto histórico da


implementação do serviço militar obrigatório no Brasil. Em seguida, é feita uma
discussão sobre o tema das masculinidades associado ao militarismo. Na terceira
parte é abordado o papel do Estado nos processos de nomeação e retificação de
nome e sexo nos documentos e a regulamentação do alistamento de pessoas trans
e travestis. E por fim trazemos alguns dados empíricos de notícias e nosso material
de pesquisa com os relatos dos homens trans e pessoas transmasculinas.

1 - ​Contexto histórico da implementação do serviço obrigatório

Para discutir as maneiras pelas quais a obrigatoriedade do serviço militar é


vivida e percebida pelos homens trans, pensamos ser necessário compreender de
forma sucinta como se dá o processo de alistamento bem como a contextualização
sociohistórica do serviço militar obrigatório. O alistamento militar no Brasil é
obrigatório para todo brasileiro que possua em seus documentos o sexo masculino
e deve ser realizado na Junta Militar quando essa pessoa completa 18 anos. O
alistamento da forma como ele é concebido hoje nas leis1, enquanto um serviço
militar obrigatório, é fruto de uma série de demandas e interesses da classe militar,
do Estado e de parcela da população ao longo da história do país.
Conforme explica Alexandro Batista (2005), a idealização e a criação de
possibilidades de aplicação da Lei de Serviço Militar inicia-se desde a época das
Capitanias Hereditárias, quando o objetivo do uso de forças militarizadas era a
proteção do território contra os “índios ‘rebeldes’” e inimigos estrangeiros. Em 1574,
institui-se o que para o autor é o início da regulamentação do serviço militar, a
‘Provisão das Ordenanças’, que normatizava que todos os cidadãos homens entre
14 e 60 anos deveriam servir nas Companhias de Ordenanças. Posteriormente, no
século XVII, por interesses da coroa em proteger o Brasil-colônia de forças
estrangeiras cria-se um movimento que une brancos, negros e indígenas para dar
origem ao Exército Brasileiro. Evidentemente que essa “união” se deu reforçando
uma estrutura de classe, em que Oficiais eram recrutados entre a nobreza e Praças
entre as classes mais baixas.
Desse ponto em diante foram promulgadas diversas leis de recrutamento
que, segundo Batista (2005), não foram efetivas. Dentre elas, uma lei em 1874 que
estabelecia o alistamento universal e o sorteio para vagas não preenchidas; a
Criação da Confederação Brasileira de Tiro em 1826; uma lei de sorteio que
também tornava obrigatório a instrução militar em instituições de ensino em 1908; e

1
CF/1988 Art. 143 § 1º e 2º; Lei nº 4. 375/ 1964 (Lei do Serviço Militar - LSM) ; Decreto nº 101
57.654/1966 (Regulamento da Lei do Serviço Militar - RLSM)
diversas outras. Muitas dessas leis buscavam amenizar a desigualdade presente no
Exército e aproximá-lo da classe média e alta do país, já que não era vantajoso para
instituição ter em seu contingente apenas a parcela mais marginalizada da
população.
“Até em 1916, o Exército vivenciava uma dualidade. Por um lado,
apresentava um recrutamento que marginalizava a si próprio, por
outro lado, impedia que o mesmo se modernizasse devido às más
condições em que se encontrava. Ainda assim, o sorteio universal
apresentava-se como sendo a grande saída para amenizar as
diferenças, e por isso torna-se presença notória na transição do
Brasil Império à República.” (BATISTA, 2005, p. 46)

Essa realidade só veio a mudar com uma forte campanha do Exército em


conjunto com membros da elite da sociedade civil e também com a eclosão da
Primeira Guerra Mundial, conforme coloca Tiago Rocha (2014). ​A campanha pelo
serviço militar obrigatório foi comandada por um grupo de jovens Oficiais, que
tinham uma longa experiência no exército alemão, eram conhecidos como “jovens
turcos” e em 1913 fundaram a revista “A Defesa Nacional” para propagar suas
ideias ganhando apoio do poeta Olavo Bilac (não coincidentemente hoje o patrono
do serviço militar). No ano seguinte foi criada a Liga de Defesa Nacional com forte
apoio da elite civil, ano em que também foi finalmente realizado o primeiro sorteio
com base na lei de 1908 para serviço militar obrigatório por um período de um ano
(BATISTA, 2015).
Com a Segunda Guerra Mundial, os sorteios foram extintos e a convocação
passou a ser geral para todos os homens brasileiros assim que completassem 21
anos. Aqueles que não estivessem quites com suas obrigações militares sofreriam
diversas sanções, como não poder tirar carteira de identidade e passaporte, nem
ingressar no funcionalismo público ou em instituição de ensino. Mas é durante a
Ditadura Militar que surgem as leis que regulamentam o serviço militar até os dias
atuais, ​a Lei nº 4.375, de 17 de agosto de 1964, e o Decreto nº 57.654, de 20 de
janeiro de 1966 (ROCHA, 2014). Atualmente, o serviço militar se dá da seguinte
maneira:

“O Serviço Militar se inicia com a fase de “convocação”, que é feita


anualmente através de um documento chamado Plano Geral de
Convocação (PGC), aprovado por decreto presidencial. Trata-se da
chamada de uma classe, que é o universo de jovens brasileiros do
sexo masculino que irão completar dezoito anos de idade naquele
ano, para o alistamento militar. Comparecendo a Junta de Serviço
Militar os jovens deverão se alistar, a fim de ficarem em dia com as
suas obrigações militares.” (ROCHA, 2014, p. 80)

Ao fim da fase de alistamento ocorre a dispensa parcial ou total da seleção


de acordo com a necessidade de contingente de cada Região Militar, a dispensa é
feita por sorteio de forma aleatória e não leva em conta qualquer fator qualitativo.
Através desse procedimento forma-se um “excesso de contingente” cabendo a
esses jovens apenas jurar a bandeira nacional e o recebimento do Certificado de
Dispensa de Incorporação (CDI). São automaticamente dispensados todos os
alistados em municípios não tributários, ou seja, que não contribuem com conscritos
para os quartéis. Após a dispensa desses jovens, inicia-se a Seleção Geral ou
Especial com os alistados restantes levando em conta aspectos físicos, culturais,
psicológicos, morais e também a vontade de servir. Os jovens selecionados são
então incorporados às Organizações Militares da Ativa ou a Órgãos de Formação de
Reserva, sendo o serviço militar obrigatório de um ano, podendo ser prorrogado por
mais sete (ibid.).

2 - ​Masculinidades, militarismo e ritos de passagem

Como afirma Batista (2005), os estudos sobre masculinidades colocaram em


evidência uma opressão sutil para a manutenção de um modelo hegemônico de
homem no campo da masculinidade. Para o autor, os mecanismos de poder que
marcam essa masculinidade hegemônica aparecem de forma mais intensa entre os
homens que estão em instituições normativas tradicionais, como Igreja, Família e
Forças Armadas. Na última, foco da nossa investigação, o modelo de masculinidade
hegemônica é imposto por mecanismos de força, disciplina, adestramento e moral,
como cita Batista.
O conceito de “masculinidade hegemônica” utilizado pelo autor é cunhado
pela cientista social Raewyn Connell (2005). A autora define masculinidade como
simultaneamente um “local dentro das relações de gênero, as práticas pelas quais
homens e mulheres interagem neste local, e os efeitos destas práticas na
experiência corporal, personalidade e cultura” (CONNELL, 2005, p. 71). Para ela, o
gênero é uma maneira de ordenar a prática social, e as masculinidades e
feminilidades são configurações de práticas de gênero. Connell argumenta que o
mais importante é tomar um visão dinâmica da organização das práticas e
compreender os processos de suas configurações. Ao compreender esses
processos, então, se entende que a masculinidade e a feminilidade são projetos de
gênero. Assim, existiria algo de intencional na forma que elas são configuradas e as
intenções estão ligadas à manutenção de hegemonias e subordinações.
A partir da identificação das inter-relações entre gênero, raça e classe
também costuma se reconhecer a multiplicidades de masculinidades, como aponta
Connell. No entanto, ela afirma que há um risco em categorizar a masculinidade
negra como uma única masculinidade negra, ou uma masculinidade da classe
trabalhadora como a única, ou no caso deste trabalho uma masculinidade trans
como a única. Para a autora, existem também relações dentro destes grupos que
precisam ser analisadas. Desta forma, a masculinidade hegemônica não pode ser
engessada em um tipo fixo, mas é sim uma masculinidade que ocupa uma posição
de hegemonia dentro de um dado padrão de relações de gênero, essa mesma
lógica pode ser usada para as masculinidades marginalizadas.
Assim, quando Batista fala sobre um modelo de masculinidade imposto pelas
instituições, em especial as Forças Armadas o que ele observa são as maneiras
como as Forças Armadas se mobilizam para a imposição de um projeto de
masculinidade hegemônica.

“as Forças Armadas, em especial o Exército, exaltam esses


mecanismos principalmente em função de seu caráter disciplinar de
controle de corpos, e de certa forma de mentes. A partir do
Alistamento Militar, o Exército impõe um rito de passagem para
todos os jovens quando atingem a idade de 18 anos,
independentemente de classe social, crença, cor/raça; todos são
convocados a deixar de ser ‘jovens’ para se tornar homens. Embora
o sujeito não seja incorporado à vida militar, submetido a um período
de recrutamento, sua apresentação formal torna-se obrigatória,
submetendo-o a este rito de passagem, uma tarefa desafiadora e
necessária. Enfim, um ambiente produtor de uma cultura institucional
que contribui para a ‘fabricação de homens de verdade’”. (BATISTA,
2005, p. 42)
De acordo com Batista, o espaço militar modela as pessoas na forma de um
modo de masculinidade e de ser homem. Esse modo de ser homem tem como uma
das referências mais fortes, segundo o autor, o padrão masculino heterossexual. As
conversas entre os cadetes trazem como assuntos principais o álcool, mulheres e
sexo. O espaço militar é de silenciamento com relação à sexualidade, a
masculinidade aparece como algo sob ameaça e precisa ser protegida dos riscos, é
“um lugar da ordem e da hierarquia na construção de novos homens ou como um
rito de masculinidade que educa e delimita práticas e comportamentos” (BATISTA,
2005, p. 103).
De acordo com Connell (2005), as masculinidades homosexuais estão na
mais baixa hierarquia no campo das masculinidades. De modo que, as
masculinidades homosexuais representam tudo aquilo que foi expulso das
masculinidades hegemônicas, o que iria desde apreço por design de interiores,
como prazer anal. Todos esses elementos, por sua vez, também fortemente
associados a uma posição de feminilidade. Essa análise se relaciona com a
pesquisa de Maria Celina D’Araújo (2004), que realizou entrevistas com militares
brasileiros em posição de comando a fim de compreender a percepção que estes
tinham sobre mulheres e homossexuais nas Forças Armadas. A autora constata que
a rejeição aos homossexuais é maior pois são vistos como portadores de um desvio
comportamental que corrompe o funcionamento técnico e moral das instituições
militares, enquanto a negação da plena participação de mulheres na vida militar se
dava por serem vistas como frágeis e objetos de desejo dos homens. Quase 30%
dos militares entrevistados por D’Araújo disseram que deixariam as Forças Armadas
caso homossexuais fossem aceitos de forma aberta e nenhum deles aceitaria ser
comandado por um homossexual.
Também é abordado brevemente o tema da sexualidade por Celso Castro
(2004), que afirmou ser difícil conversar com os interlocutores por tratar-se de um
assunto tabu as sexualidades não heterossexuais. Castro realizou uma etnografia
entre cadetes da Academia Militar Agulhas Negras e cita uma fala de um deles
sobre esse caráter de ‘fabricação de homens de verdade’ das instituições militares.
O cadete interlocutor de Castro diz: “aqui na Academia é lugar pra homem, não é
lugar pra criança nem viadinho. Então o cara quando vem pra cá … pô, o cara tem
que virar homem de qualquer maneira” (CASTRO, 2004, p. 35). Desta forma, a
hipótese de que os processos de alistamento militar obrigatório pode ser vistos
como ritos de passagem de um projeto de masculinidade fica mais forte.
No seu trabalho clássico, Arnold Van Gennep (2011) faz uma análise
detalhada dos ritos de passagem. Conforme explica, os indivíduos de qualquer
sociedade passam por etapas diferentes em suas vidas, em termos etários,
profissionais ou mudanças de outras naturezas. O autor argumenta que algumas
dessas passagens possuem um caráter diferenciado e que merecem uma categoria
à parte, que são os ritos de passagem, divididos em ritos de separação, de margem
e de agregação. Ao perceber que o alistamento - ou melhor, o serviço militar -, é
compreendido por muitos como um processo de tornar-se homem de verdade,
parece adequado afirmar que trata-se de um rito. No entanto, seria necessária uma
pesquisa mais aprofundada para analisar o processo de alistamento sob esta ótica.
Porém, se o alistamento e o serviço militar obrigatório são ritos de passagem, então
seriam ritos masculinos que servem para produzir homens de verdade dentro de um
projeto de masculinidade hegemônica. A mobilização de homens e armas é
bastante facilmente associada à masculinidade. Como Connell coloca, as
organizações das armas são representadas de forma convencionalmente masculina
em termos culturais, a exemplo das revistas norte-americanas de caça e armas que
trazem seus modelos vestidos com camisas xadrez e coturnos.
Para a autora, a questão da arma está associada a algumas arenas de
práticas de gênero, dentre elas a violência masculina. Connell cita o exemplo dos
crimes violentos de ódio contra homens gays e afirma que os homens que cometem
esses atos se percebem como vingadores em nome da sociedade contra traidores
da masculinidade. As Forças Armadas, enquanto detentoras do poder de violência
autorizado pelo Estado, aparecem, então, como a arena mais importante para a
definição da masculinidade hegemônica no contexto europeu e norte-americano,
segundo Connell.
A imagem do herói é central no imaginário Ocidental de masculinidades, de
acordo com Connell. No contexto brasileiro, nem sempre a imagem do militar herói
predominou, como aponta Castro ao falar do desprestígio da farda no Rio de
Janeiro na época de sua pesquisa. No entanto, no atual contexto, com a eleição de
um capitão reformado do Exército como presidente e com um general da reserva
como vice-presidente, esse desprestígio não parece ser o que predomina. De todo
modo, conforme os citados trabalhos de Celso Castro e Alexandre Batista,
predomina de forma relativamente harmônica a imagem das Forças Armadas como
formadora de homens, o que se assemelha ao caso estadunidense citado por
Connell. Ainda que a realidade cotidiana das Forças Armadas estadunidenses fosse
bastante diferente da imagem heróica construída nas mídias, ela é utilizada pelos
exércitos para recrutamento. Como exemplo, a autora cita um poster de
recrutamento de 1917 que falava “‘The United States builds MEN’2” (CONNELL,
2005, p. 213).

3 - ​Transgenereidade, Estado e alistamento de pessoas trans

As análises feitas até o momento, porém, não abrangem a realidade de


homens trans, que são o foco das nossas questões iniciais. A única produção
acadêmica que encontramos que falava sobre pessoas trans e instituições militares
foi o trabalho do psiquiatra da Força Aérea dos Estados Unidos, George Brown
(2006), publicado originalmente em 1988, aborda os casos de mulheres trans e
tenta explicar os motivos de haver uma proporção maior dessas mulheres nas
instituições militares em relação à população geral nos Estados Unidos. O trabalho
do psiquiatra, como esperado, tem argumentos bastante patologizantes e definições
datadas, não sendo possível utilizar suas análises para este trabalho. Assim, apesar
da quase ausente pesquisa sobre o tema, as pessoas trans continuam a passar
pelos processos de alistamento e a se descobrir trans enquanto estão militares nas
Forças Armadas. As mulheres trans e travestis passam pelo alistamento há muitos
anos por não conseguirem retificar os documentos antes de completar 18 anos. E
os homens trans que mudam os seus documentos para que conste “sexo
masculino” passam a ser obrigados a passar pelos processos de alistamento.
Compreender a maneira como o Estado influencia os processos de
alistamento obrigatório no caso de pessoas trans exige que se entenda a maneira
como os processos de retificação de nome e sexo nos documentos de pessoas
trans se relacionam com o poder do Estado. Primeiramente, é importante citar que é

2
Tradução livre: “Os Estados Unidos formam HOMENS”.
possível retificar apenas o nome dos documentos, seja por desejo da pessoa que
buscou o Estado para fazer essa mudança, ou pelo próprio Estado se recusar a
mudar o sexo nos documentos da pessoa. No entanto, é mais comum que se
busque alterar ambas as informações. Desta maneira, podemos partir de uma
reflexão sobre a mudança do nome oficialmente para pensar paralelamente a
mudança do sexo oficialmente.
A maneira que sociedades ocidentais de modo geral percebem a atribuição
de nomes próprios difere significativamente da forma como outras sociedades
percebem. O trabalho de Marcel Mauss (2003) traz alguns exemplos, como os
Pueblo, para quem a atribuição de um nome se dá a partir de nomes
pré-determinados para cada clã e o nome expressa, ainda, o papel exato a ser
desempenhado no clã pela pessoa que recebeu o nome. Para o autor, a noção de
pessoa se confunde com o seu clã, ao mesmo tempo em que define a pessoa
separadamente em seu papel, propriedade, posição e outros. Também é citado o
caso dos Kwakiutl, no qual os indivíduos recebem variados nomes ao longo de suas
vidas. Seus nomes são escolhidos a partir de duas séries de nomes, uma delas
secreta. Os indivíduos também recebem nomes diferentes ao mudar as estações do
ano do verão (profano) e inverno (sagrado). Ainda, no caso dos nobres, os nomes
mudam com a idade, ao passo que se cumprem as funções de cada idade. Existe,
portanto, uma ênfase nas mudanças de momentos da vida com a alteração de
nomes para cada fase. De forma oposta, as sociedades ocidentais enfatizariam o
nome enquanto um ponto fixo na identidade de uma pessoa.
Segundo Bourdieu (1998), para o mundo social a identidade é entendida
como a construção de um indivíduo constante, como uma história coesa. Assim,
haveria esforços das instituições para unificação da pessoa, e o nome próprio seria
um dos instrumentos utilizados para tal. O nome representa uma constância e
durabilidade, de modo que sua imutabilidade é pressuposta nas mais diversas
dimensões. Os contratos, as certidões os atestados, ou mesmo a condenação por
determinado crime partem do princípio de que o nome do indivíduo não mudará.
Desta maneira, o nome apresenta uma identidade social constante e una através do
tempo, que é reconhecida por qualquer pessoa ou instituição. No entanto, apesar de
o nome ser um elemento tão significativo para a identidade de um indivíduo, este
não é escolhido por ele na maioria das vezes e não basta a simples vontade do
indivíduo para realizar a sua alteração.
O Estado, de acordo com Bourdieu (1989) é detentor do monopólio de
diversos poderes simbólicos, e em consonância com isso, também detém o
exercício privilegiado da nomeação. O que um juiz decide e proclama é reconhecido
universalmente por qualquer instituição ou indivíduo, portanto tem uma eficácia
simbólica. Os documentos produzidos por mandatários do Estado são, nas palavras
de Bourdieu, mágicos, não podem ser recusados ou ignorados. Então, o nome
próprio que tenha sido reconhecido pelo Estado é de fato o nome que será
reconhecido nas mais diversas instituições. Neste contexto, então, a carteira de
identificação civil na qual consta o nome de uma pessoa, ou a Carteira de Trabalho
e Previdência Social que indica o nome e sexo de uma pessoa, têm eficácia em
qualquer espaço onde os documentos precisem ser apresentados. Assim, se este
nome, que como já apontado anteriormente é parte fundamental da identidade de
uma pessoa, não for um nome com o qual a pessoa se reconheça ou que lhe cause
qualquer constrangimento, é preciso que se busque a aceitação do Estado para sua
alteração, bem como para o caso da alteração do sexo nos documentos.
No Brasil a regulamentação com relação à nomeação era feita pela Lei
6015/73 no artigo 55 e seguintes. O parágrafo único do artigo 56 declara que nomes
que possam expor ao ridículo não serão registrados e como coloca o artigo 57,
estão passíveis de mudança futuramente se assim desejar a pessoa. Apesar disso,
também é determinado que o nome é imutável no artigo 59. Ao fazer o pedido de
retificação do primeiro nome, usavam-se como argumentos os artigos que permitem
a mudança, mas havia resistência de alguns juízes por conta da prevista
imutabilidade do nome. Até 2018 não existia uma regulamentação específica para a
retificação do nome de pessoas trans, o que significava na maior parte dos casos a
exigência de uma série de documentos e procedimentos que comprovassem a
identidade de gênero da pessoa que fazia o pedido. Dentre os documentos exigidos
estavam o laudo psiquiátrico que afirmasse que esta pessoa sofria com algum dos
distúrbios psicológicos associados à transgenereidade de acordo com o CID3.

3
Cadastro Internacional de Doenças
“O ‘transexualismo’, por exemplo, é definido como ‘transtornos da
identidade sexual (F64.0) ’. Além do ‘transexualismo’, há o
‘travestismo bivalente (F64.1), o transtorno de identidade sexual na
infância (F64.2),outros transtornos da identidade sexual (F64.8), o
transtorno não especificado da identidade sexual (F64.9)’”. (BENTO,
B. e PELÚCIO, L.,2012, p. 527)

Também era comum que se apresentasse comprovação do reconhecimento


social do nome para o qual se desejava mudar. Através de imagens de redes
sociais, ou apresentação de carteiras de identificação de universidade, ou qualquer
outro lugar que se conseguiu obter documentação com nome social. Muitas vezes,
também era pedido que a pessoa apresentasse duas testemunhas que
confirmassem que ela era conhecida por este nome. Alguns tribunais ainda exigiam
que tenha sido feita a cirurgia para mudança dos genitais, ou mamoplastia
masculinizadora no caso dos homens trans, ou ao menos que alguma destas
cirurgias estivesse marcada.
Atualmente já existe uma regulamentação com relação à mudança de nome
e sexo nos documentos, o Provimento 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça,
porém a falta de alguns direcionamentos mais objetivos ainda dificulta a retificação.
O provimento passa a garantir o direito de retificação de prenome e sexo na certidão
de nascimento diretamente no cartório onde a pessoa foi originalmente registrada,
ou por intermédio de outro cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais (RCPN). A
alteração pode ser autorizada por juiz corregedor permanente ou por via judicial. A
retificação só poderá ser solicitada, de acordo com o provimento, mediante a
entrega de uma série de documentos e certidões. As certidões de regularidade
exigidas devem ser solicitadas em cartórios específicos e são pagas, no Rio de
Janeiro a mais cara custa em média pouco mais de R$ 100,00. O provimento, no
entanto, não prevê prazo para os cartórios fazerem a alteração, de modo que há
pessoas que solicitaram a mudança logo após a publicação do provimento, há
quase 1 ano, que ainda aguardam uma resposta. Enquanto outras pessoas
conseguiram a retificação em menos de um mês. No Rio de Janeiro, os problemas
são solucionados pela via judicial com o auxílio da Defensoria Pública que possui
um núcleo que atua diretamente com a população LGBTI, o Núcleo de Defesa dos
Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual (Nudiversis). As pessoas interessadas
agendam um atendimento com o Nudiversis que concede declarações de
hipossuficiência para que se solicite as certidões exigidas de forma gratuita. O
Nudiversis também oferece um encaminhamento para atendimento psicológico na
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), onde um segundo encaminhamento é dado para
que a pessoa seja atendida pela Justiça Itinerante, onde um juiz autoriza
judicialmente a retificação de nome e sexo. O Nudiversis, no entanto, tem grande
procura e os agendamentos não são fáceis de conseguir dentro de um período
menor que um mês, e em determinadas épocas os agendamentos são congelados
pela grande procura. O processo portanto, continua burocrático e sem orientações
bem definidas.
Apesar das dificuldades impostas para a retificação do nome e do sexo nos
documentos, muitas pessoas trans conseguem fazê-lo. Após passar pelos
procedimentos exigidos e conseguir retificar o nome e o sexo na certidão de
nascimento, é necessário então tirar a segunda via de todos os documentos, o que
inclui contactar uma Junta Militar. Como um dos rapazes com quem conversamos
colocou: ​“a gente se fode a vida inteira pra depois ter mais essa condição para ter o
​ o caso das pessoas que colocaram “sexo
gênero reconhecido. Péssimo”. N
feminino” no lugar de “sexo masculino” nos documentos, em geral as travestis e
mulheres trans, é necessário atualizar os dados na Junta Militar, caso ela já tenha
passado pelo alistamento e obtido certificado de reservista. Isso se faz necessário
para que, em caso de guerra, ela não seja convocada e obrigada a servir. E no caso
das pessoas que colocaram “sexo masculino” no local de “sexo feminino”, que é o
caso dos homens trans e pessoas transmasculinas que são nossos interlocutores, é
necessário passar pelo processo do alistamento obrigatório, com as mesmas regras
de qualquer outra pessoa cujo sexo conste masculino nos documentos, de acordo
com a idade. Essas são as orientações dadas pelo Governo Brasileiro4 e pelo
Ministério da Defesa, após questionado pela Associação Brasileira de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT)5.

4
Disponível em: <​https://bit.ly/2F7yOeb​>. Acesso em: 06/03/2019.
5
Guia de Orientação Sobre Alistamento Militar de pessoas travestis, mulheres transexuais e homens
trans cujo nome e sexo foram retificados. Organizado pela ABGLT. Dispolível em:
<https://bit.ly/2ILbrrU>. Acesso em: 06/03/2019.
4 - ​Notícias e relatos

Como mencionado anteriormente neste trabalho, a pesquisa traz apenas


resultados iniciais e algumas análises prévias com base na bibliografia pertinente,
legislação e notícias. Os resultados iniciais foram obtidos através do contato com
homens trans e pessoas transmasculinas em grupos de conversa e da resposta
dessas pessoas a algumas perguntas padrão que fizemos virtualmente. Quando
iniciamos a pesquisa, pensávamos que receberíamos relatos de homens trans que
sofreram algum tipo de resistência explícita à sua presença nas Forças Armadas. A
expectativa era essa por conta das informações que encontramos na mídia antes de
conversar com os interlocutores.
O contexto é, segundo o Ministério Público Federal (MPF), de reforma de
militares que se reivindiquem trans perante as instituições militares. Em 2017 o MPF
emitiu uma recomendação para que os Comandos das Forças Armadas não mais
considerassem a transgenereidade motivo para a reforma de militares, realidade
que constataram analisando o caso de quatro militares (uma do Exército, uma da
Aeronáutica e duas da Marinha) excluídas do serviço ativo logo após se assumirem
trans para seus comandos, sob a justificativa de incapacidade para o serviço militar6
.
De acordo com jornalista Fernanda Baldioti (2018), as Forças Armadas alegaram
que não reformam militares por conta de sua identidade de gênero, mas sim por
necessitarem de licença para tratamento de saúde por mais de três anos para
terapia hormonal e procedimentos cirúrgicos. No entanto, a jornalista se deparou
com casos como o da Cabo Amanda da Marinha, que passou cerca de um ano
trabalhando utilizando uma bota ortopédica após acidente de trabalho em que
machucou o tornozelo, só sendo reformada no momento em que se apresentou
enquanto mulher trans. A justificativa foi o ferimento, mas mesmo após ser liberada
por médicos ela não pode retornar ao serviço ativo. Outro caso que ganhou
notoriedade na mídia foi o da Segundo-Sargento Bruna Benevides, também da

6
Inquérito Civil n.º 1.30.001.000522/2014-11. NOTIFICAÇÃO/RECOMENDAÇÃO PRDC/RJ/Nº
04/2017. Disponível em:
<http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/docs/pr-rj/recomendacao-transexuais-forcas-armadas>.
Acesso em: 10/05/2019.
Marinha, que foi afastada de suas funções após vinte e um anos de carreira. Ela
conseguiu impedir o processo de reforma com uma liminar da justiça em 2017,
continuando então tecnicamente na ativa, porém sem poder de fato trabalhar. Em
2018, obteve decisão favorável da Justiça para que seja reintegrada a Marinha,
dessa forma Bruna Benevides é considerada a primeira militar trans na ativa das
Forças Armadas brasileiras7.
No entanto, entre os homens trans que nos responderam, o que se
apresentou foi na verdade uma certa tranquilidade nos processos de alistamento. A
maioria dos rapazes que se alistaram falaram que a experiência foi ‘normal’,
‘tranquila’, a maior reclamação é sobre burocracia. Alguns poucos reclamam do
desconhecimento sobre os processos de retificação de pessoas trans e um deles
afirmou ter sido tratado mal, porém, sem afirmar que esse tratamento tinha relação
com o fato de ele ser trans: “​Horrível. Tudo o que podiam fazer pra dificultar,
fizeram. Sem contar que todo mundo me tratou muito mal, mandaram eu voltar
quinhentas vezes e demorou mais de 6 meses pra sair minha licença​”. Mas um
deles fez um elogio na direção oposta, afirmou que estavam capacitados para
atender a população e que a experiência foi muito boa. Essa foi a primeira dimensão
abordada na pesquisa. O objetivo era ter uma ideia geral de como os homens trans
e pessoas transmasculinas percebiam como os militares os atendiam. De maneira
geral, a experiência pareceu positiva. Mas acreditamos ser importante notar que em
muitos dos casos, não era um militar que atendia os rapazes na Junta. Alguns deles
se alistaram em cidades pequenas onde não havia militares, sendo eles atendidos
por civis e automaticamente dispensados.
Outros dois pontos que buscamos explorar foram os receios e os desejos dos
interlocutores relacionados ao alistamento e ao serviço militar obrigatório. Alguns
deles falam sobre o medo de ter que servir, ou mesmo o medo de chegar a ter que
fazer o exame médico. Esses medos se davam pelo receio de sofrer
constrangimento pelos seus corpos trans. A maioria deles dizia não querer contar
sobre ser trans para não sofrer discriminação, então a possibilidade de serem

7
Disponível em:
<​https://oglobo.globo.com/sociedade/justica-determina-que-militar-trans-seja-reincorporada-marinha-
23233060​>. Acesso em: 10/05/2019.
chamados para realizar o exame médico, especialmente entre os mais novos era
real. No entanto, dentre os 56 que responderam nosso questionário, apenas 3 se
alistaram com 18 anos, os outros se alistaram depois dessa idade, ou ainda iriam se
alistar. Aqueles que falavam sentir medo de serem chamados a servir se alistaram
com 18 anos. Ao mesmo tempo, o medo de passar pelo exame médico e do serviço
militar apareceu associado a uma certeza de que se falassem que eram trans e que
não desejavam passar por esse processo, então não precisariam fazê-lo. De todo
modo, nenhum dos rapazes afirma ter sofrido qualquer tipo de discriminação. Como
um deles explicou: “​Antes de ir eu tava muito ansioso achando que ia ser ruim já
que histórico de militar com minorias é uma merda, mas pra minha sorte foi tudo
bem”​ .
Porém, não havia apenas meninos que tinham receio com o alistamento,
alguns deles desejavam servir. Os meninos que falam sobre servir diziam ser um
sonho de criança, acharem bonito, gostarem “​das coisas militares”​ e até pela
estabilidade financeira. Um dos meninos que se alistou ao completar 18 anos e
desejava servir menciona ter conseguido fazer os exames médicos e afirma que
quase conseguiu passar, mas foi dispensado sob a justificativa de fazer faculdade e
tal situação era incompatível. Ele conta que os militares informaram a ele que ser
trans não seria um impeditivo para o serviço: “​O tenente disse a seguinte coisa
quando disse que era trans: ‘pra mim você não tem nada de errado, pra mim você é
homem e pronto’. Depois disse que faria meu exame separado para mim não ficar
constrangido por não ter feito as cirurgias ainda”​ . Outro afirmou que os militares
falaram que ainda havia chance de ele servir e ainda estava aguardando a
finalização do processo. Até o momento, nenhum deles conseguiu servir.
O Ministério da Defesa ao ser questionado pela ABGLT8, afirmou que os
homens trans poderiam ser recrutados ou convocados em casos de guerra, porém
não se tem notícia de que isso tenha acontecido ainda. As respostas dadas pelos
militares aos rapazes trans que desejavam servir também está de acordo com o
colocado pelo Ministério da Defesa. Pode ser que seja algo novo para as

8
Guia de Orientação Sobre Alistamento Militar de pessoas travestis, mulheres transexuais e homens
trans cujo nome e sexo foram retificados. Organizado pela ABGLT. Dispolível em:
<https://bit.ly/2ILbrrU>. Acesso em: 06/03/2019.
instituições o alistamento dos homens trans, ou uma série de outros fatores. Porém,
considerando os casos colocados na mídia sobre a relação das instituições militares
com pessoas trans que desejam atuar nos seus quadros, é plausível considerar que
existe alguma relação com questões de gênero homens trans ainda não terem sido
recrutados, mesmo que desejassem. De acordo com Batista (2005), existia um
silenciamento com relação à sexualidade como um dos critérios na seleção de
recrutas para o Tiro de Guerra do Exército.

“ao perguntar sobre a homoafetividade, eles dizem não acionar esse


critério, uma vez os próprios candidatos se auto-excluem durante o
processo, argumentando não suportar conviver entre os ‘homens de
verdade’. O argumento assumido pela instituição de auto-exclusão
dos candidatos parte do pressuposto de uma ‘identidade’ gay presa
a uma série de estereótipos, que provocaria sua inadequação ao
regime militar [...], não seria a instituição que exclui, mas a própria
vivência militar que os impõe limites”. (BATISTA, 2005, p. 80-81)

Sobre o caso de pessoas trans, mais recentemente, sabemos do que foi dito
nas entrevistas realizadas por Fernanda Baldioti e que MPF se manifestou com
relação a casos como os das pessoas entrevistadas, conforme citado anteriormente.
Na notificação, o MPF recomenda que a transexualidade não seja entendida como
uma incapacidade para o exercício da atividade militar, que aqueles que foram
reformados fossem reabilitados e que fossem implementados programas de
combate à discriminação. Desta forma, é possível que as recomendações do MPF,
feitas em 2017 tenham surtido algum efeito nos discursos das Forças Armadas
frente aos questionamentos das pessoas trans e das organizações LGBTI. Ou
ainda, que efeitos práticos tenham acontecido, como no exemplo da
Segundo-Sargento Bruna Benevides citado acima, que conseguiu garantir seu
direito de permanecer na ativa, apesar de ainda buscar na Justiça o direito de
trabalhar efetivamente, dado que ainda é impedida de exercer suas funções9.
Assim, pensamos que para determinar os motivos para homens trans não
conseguirem servir, bem como se existe uma resistência das Forças Armadas para

9
Disponível em:
<​https://www.huffpostbrasil.com/2018/06/07/bruna-benevides-a-resistencia-da-primeira-mulher-trans-
na-ativa-da-marinha-brasileira_a_23453761/​>. Acesso em: 10/05/2019.
recrutá-los exigiria uma pesquisa mais aprofundada e não poderíamos dar uma
afirmação precisa para este artigo. No entanto, para os interlocutores que desejam
servir fica evidente uma esperança de que isso possa acontecer. Enquanto para
aqueles que têm receio de serem recrutados, a transgenereidade - também motivo
de seus medos de sofrer discriminação - aparece como um último argumento
possível que garantiria que não seriam obrigados ao serviço militar. Um dos
meninos ao ser perguntado se falaria sobre ser trans ao se alistar, por exemplo,
respondeu: ​“Sim, ​pois reconheço a transfobia que existe no militarismo e não
gostaria de ser aceito por isto​”.
Outro ponto que achamos importante abordar logo no primeiro momento da
pesquisa diz respeito à transição médica e como os meninos perceberiam certas
etapas esperadas dela em relação ao alistamento militar. Dentre os rapazes que se
alistaram 4 não haviam usado testosterona ainda, 19 já usavam testosterona ,
dentre estes, 13 usavam há pelo menos 1 ano. Assim, a maioria usava testosterona
há um tempo relativamente considerável, após o qual se espera que mudanças
como tom de voz, formato de rosto, pelos corporais, entre outros, já tenham
ocorrido. Dentre os que ainda não haviam se alistado, a maioria pretendia se alistar
apenas quando estivesse tomando testosterona e metade disse que se alistaria
apenas após fazer a cirurgia de mamoplastia. A partir disso, é possível inferir que
existe uma importância dada ao uso da testosterona previamente ao alistamento.
Porém, os motivos dessa importância e se o fato de os rapazes com quem tivemos
contato que se alistaram terem feito uso de testosterona têm alguma influência nos
processos de alistamento e que tipo de influência, são questões que precisarão ser
respondidas após uma pesquisa mais avançada.
A percepção deles sobre a obrigatoriedade do processo, sobre a demarcação
de gênero nessa obrigatoriedade e o local deles enquanto homens trans nessa
obrigatoriedade também foram temas abordados com eles. A maioria era contra a
obrigatoriedade do alistamento militar, ao perguntarmos suas opiniões sobre o tema,
afirmando ser ‘desnecessário’, ‘antidemocrático’, ‘errado’ e ‘ultrapassado’. Dois
deles, no entanto, disseram ser a favor e necessário em caso de uma possível
guerra. Quando perguntamos sobre o caso específico de homens trans quanto à
obrigatoriedade de alistamento, alguns reafirmaram a discordância pelos mesmos
motivos citados anteriormente. Alguns afirmaram que era o justo, dado que se é
obrigatório para os homens cis, também deveria ser obrigatório para homens trans.
Alguns deles demonstraram seus medos, um dos mais recorrentes era o de estupro.
Um dos rapazes afirmou ser um risco aos homens trans por estar vulnerável à
transfobia e a situações de estupro corretivo. No mesmo sentido, outro deles diz:
“​ainda fico extremamente intimidado perto de homens cis e héteros, principalmente
os extremamente masculinos, e acredito que não sou o único homem trans que
sente isso [...]; o medo de estupro, mesmo depois da transição hormonal, ainda é
presente, e um ambiente como esse é obviamente intimidador”.​ Esses receios para
um deles aparece inclusive como um dos motivo para ele não retificar o sexo nos
seus documentos.

Conclusões

Nosso trabalho ofereceu uma breve análise teórica e alguns dados empíricos
que pensamos ser o primeiro passo para uma análise futura mais aprofundada
sobre a relação que homens trans e pessoas transmasculinas têm com os
processos de alisamento obrigatório e com as instituições militares de modo geral.
Apresentamos neste artigo uma síntese do contexto histórico da
implementação do serviço militar obrigatório; um debate dentro do campo de
estudos sobre masculinidades, associando esse debate à questão do militarismo;
uma reflexão sobre a hipótese do alistamento militar enquanto um rito de passagem
e rito masculino; uma explicação dos processos de retificação de nome e sexo nos
documentos e a maneira como o Estado se impõe nestes processos; e alguns casos
de pessoas trans nas Forças Armadas, por meio de notícias, associados com os
relatos dos homens trans e pessoas transmasculinas com quem conversamos.
O que sobressaiu no nosso trabalho e sua construção foram a discordância
da maior parte deles com relação a obrigatoriedade do serviço militar de maneira
geral entre todos os homens, e o medo de muitos dos rapazes do processo
associado à falta de informações sobre. Como falado no início do artigo, muitos
meninos vieram nos perguntar como funcionava o alistamento, se precisavam
realmente se alistar, se precisavam servir, fazer os exames médicos, etc. Até
mesmo mulheres trans que souberam que estávamos fazendo essa pesquisa
vieram nos perguntar o que elas precisavam fazer com relação ao alistamento. As
pessoas viram em nós, enquanto pesquisadores que estavam começando a estudar
o tema, uma fonte de informações que elas não encontravam em outro local. Essa
inquietude, os receios e a falta de informação ficou expressa nos relatos dos
rapazes, mesmo que muitos tenham tido experiências tranquilas de alistamento.

Referências Bibliográficas

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