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24/02/2023 | VELHOGENERAL.COM.

BR | CATEGORIA: GEOPOLÍTICA

A NOVA GUERRA FRIA PELO TESOURO ESCONDIDO


NO POLO NORTE
Por Piergiorgio M. Sandri*


Imagem simbólica do derretimento do gelo na Groenlândia: o trenó na água (Steffen Olsen).

A Rússia está bem-posicionada para explorar os recursos do Ártico, e investe pesado no


desenvolvimento e infraestrutura da região, em meio a uma competição acirrada com os
EUA e outros países do Ocidente.

O
s investidores estão esfregando as mãos, o Ártico está agitado. Este oceano
polar está aquecendo três vezes mais rápido que o resto do planeta
porque, à medida que o gelo derrete, a água absorve a luz do sol e os efeitos
se retroalimentam.

Estima-se que desde 1978 uma superfície de gelo equivalente a cinco vezes o
tamanho da Espanha tenha se perdido na área. Os sete anos mais quentes no
Ártico desde 1900 foram... os últimos sete. A camada de gelo da Groenlândia
perdeu gelo em 2022 pelo 25º ano consecutivo.

Mas se o gelo derreter, novos negócios podem surgir no círculo polar. Rotas que
pareciam inacessíveis passarão a sê-lo. Recursos que estavam escondidos sob
placas de gelo virão à tona. E exércitos que não se enxergavam, separados pelo
gelo, agora terão fronteiras flutuantes para se mover e observar uns aos outros.

Enquanto se intensifica uma guerra fria entre o Ocidente e a Rússia (e a China)


tendo como pano de fundo a guerra na Ucrânia, as diferentes potências movem-se
para defender seus interesses econômicos e geoestratégicos em uma região

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parcialmente inexplorada que já desperta o apetite dos investidores, já que em
2035 os verões poderão estar completamente livres de gelo.

Mas, ao contrário da Antártida, não existe um regime jurídico internacionalizado.


Também não foi criado um órgão específico para resolver disputas entre as partes.
Existe apenas a Convenção das Nações Unidas para o Direito do Mar de 1982 –
aliás não ratificada pelos EUA – e a Organização Marítima Internacional (IMO,
International Maritime Organization). Não há regras jurisdicionais claras aceitas
por todas as partes que sirvam para definir suas fronteiras, mas há muitas lacunas
e áreas cinzentas.

O Conselho do Ártico existe, mas não tem competência de segurança, apenas


cooperação. Desde a invasão da Ucrânia, a governança da região vive uma fase de
impasse. Este organismo conta com sete países ocidentais (EUA, Canadá, Noruega,
Suécia, Finlândia, Dinamarca, Islândia). Todos eles pertencem (ou irão pertencer)
à OTAN. Além da Rússia, que exerce a presidência rotativa, mas que por motivos
políticos está isolada. “Depois da guerra, a cooperação com a Rússia no Ártico é
praticamente impossível”, segundo se depreende da Estratégia Nacional da Casa
Branca para a Região do Ártico de outubro passado.

A ONU geralmente assinala aos Estados que bordejam o Polo Norte um mar
territorial de 12 milhas náuticas (22 km) e uma Zona Econômica Exclusiva (ZEE)
de 200 milhas náuticas (370 km) que dão direito de pesca, construção de
infraestruturas e extração de recursos naturais.

Um espaço que pode ser ampliado, desde que se demonstre que a plataforma
submarina é uma extensão da plataforma continental. O Dorsal de Lomonossov,
com cerca de 2.000 km de extensão, é objeto de disputa entre Canadá, Dinamarca
e Rússia. Todos apresentaram pedidos para expandir sua soberania sob este
regulamento. A batalha está apenas começando. Em 2007, os russos inclusive
fincaram uma bandeira a 4.200 metros de profundidade como reivindicação.

O maior potencial econômico do Ártico está nas rotas comerciais. A Rota Marítima
do Norte (NSR, Northern Sea Route), que liga a Ásia à Europa sem passar pelo Canal
de Suez, economiza quase 10.000 km de viagem. Por mar, a Europa e o Oriente
estão quinze dias mais próximos. Hoje a falta de assistência e os icebergs ainda
representam incógnitas, mas nos próximos anos esses obstáculos poderão
desaparecer.

Outro eixo é a Rota Marítima Transpolar (TSR, Transpolar Sea Route), que
possibilitaria a passagem pelo centro do Polo Norte e servirá para o transporte de
energia. E, finalmente, a Passagem Noroeste (NWP, Northwest Passage), que está
localizada em águas canadenses, liga o Atlântico ao Pacífico e reduzirá em 15% a
distância entre os Estados Unidos e a Ásia.

De acordo com o Instituto Ártico, a NSR já está operacional hoje. São cerca de 309
milhões de toneladas transportadas a cada ano, o que pode triplicar até o final da
década se novos projetos de energia forem abertos. Com o degelo, a rota também
será mais conveniente porque serão necessários menos navios quebra-gelo e
assistência.

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Região contestada: Dinamarca, EUA, Canadá e Rússia querem expandir sua soberania na região para explorar
recursos disponíveis graças ao derretimento do gelo (Fonte: Ministério das Relações Exteriores da Dinamarca,
The Arctic Institute e CIDOB. Elaboração: La Vanguardia).

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O Círculo Polar Ártico oferece recursos energéticos e novas rotas comerciais (Fonte: Ministério das Relações
Exteriores da Dinamarca, The Arctic Institute e CIDOB. Elaboração: La Vanguardia).

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E há os recursos energéticos (além da pesca: as capturas na área representam 4%
do total mundial). O Ártico detém 30% das reservas de gás e 16% das reservas de
petróleo em um território que equivale a 8% da superfície da Terra. Noruega,
Rússia e Estados Unidos já operam com estruturas de exploração na região. Sem
contar o potencial econômico de minerais como bauxita, diamantes, ferro, ouro e
possivelmente também as tão desejadas terras raras, essenciais para a transição
energética.

Para a Rússia, o Ártico é uma prioridade. Estima-se que 20% de suas exportações
e 10% de seu PIB venham dessa região. Metade dos recursos de petróleo e 70%
do gás do círculo polar estão em território russo. A Rússia controla mais da metade
das costas polares e tem metade da população residente nesta região (cinco
milhões de habitantes). Em seu relatório do ano passado sobre a doutrina naval
russa, Vladimir Putin lembrou que “o Ártico está se tornando uma região de
competição internacional” e que a exploração de seus recursos minerais deve ser
fortalecida. A palavra “ártico” aparece 66 vezes em 55 páginas.

O objetivo de Putin é explorar o Ártico para olhar de perto para a Ásia. “Precisamos
liberar o potencial de exportação e logística da Rússia para o Sudeste Asiático”,
disse o presidente. Antes da guerra na Ucrânia, o tráfego marítimo do Ártico era
essencialmente da Ásia para a Europa (nos últimos cinco anos, houve cinco vezes
mais cargueiros trafegando de leste a oeste do que o contrário). No futuro, a
tendência será oposta, porque a Rússia se voltará para a Ásia. “O transporte ao
longo do ano será a melhor forma de contornar as sanções”, reconheceu o diário
de negócios Kommersant.

Moscou está planejando uma usina nuclear flutuante para 100.000 residências e
na península de Yamal já possui um terminal de gás GNL. “Realmente não há uma
corrida para o Ártico. Na verdade, a Rússia é a única que avança no Ártico, embora
a Noruega também esteja desenvolvendo petróleo e gás na região. A China tem
ambições de longo prazo na região e usa a Rússia como fornecedora de petróleo e
gás para contratos de longo prazo”, disse Malte Humpert, diretor executivo e
fundador do The Arctic Institute.


“A Rússia é claramente o país mais bem posicionado para explorar os recursos do
Ártico. Mas é que você realmente não tem muitas ou nenhuma alternativa. Esta
área é de importância econômica significativa para a Rússia, muito mais do que
para os Estados Unidos ou o Canadá. Portanto, a Rússia investiu muito mais no
desenvolvimento e na infraestrutura do Ártico do que outros estados. A atividade

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russa será o principal motor de desenvolvimento econômico e investimento na
região”, diz Humpert.

Mas, em sua opinião, os projetos de expansão russos estão na berlinda. “O


problema não são os conflitos entre os Estados, mas as sanções. Várias empresas
ocidentais abandonaram a Rússia e agora são empresas como Novatek ou Zvezda
que devem encontrar parceiros financeiros ou tecnológicos. Isso vai desacelerar
os projetos, a menos que cheguem novas empresas da China ou de outros países
do leste”.

O gelo é o novo campo de batalha da Guerra Fria do século XXI.

Publicado em La Vanguardia.

*Piergiorgio M. Sandri é redator do jornal catalão La Vanguardia desde 2000. Formou-se em Direito
em Roma, tem mestrado em jornalismo pela UB/Columbia University e PDD pelo IESE (2022). É autor
de “Dinero Ético” (Mondadori, 2001).

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