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D'ottaviano e Silva - REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NO BRASIL VELHAS E NOVAS QUESTÕES
D'ottaviano e Silva - REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NO BRASIL VELHAS E NOVAS QUESTÕES
QUESTÕES
Maria Camila Loffredo D’Ottaviano*
Sérgio Luís Quaglia Silva**
No Brasil urbano contemporâneo, a regularização fundiária se coloca cada vez mais como questão
fundamental tanto nas grandes cidades quanto nas de pequeno e médio porte. A partir da aprovação do
Estatuto da Cidade (Lei Federal no 10.257/2001), a regularização fundiária de assentamentos preexistentes
tornou-se um objeto de trabalho dos arquitetos e urbanistas brasileiros. Com a recente aprovação da Lei
Federal no 11.977, instituindo o Programa Minha Casa, Minha Vida, a regularização de assentamentos já
consolidados tornou-se uma das metas prioritárias da política de acesso à moradia do governo federal.
A regularização fundiária passa a ser vista como uma ferramenta importante no acesso à posse legal da
moradia digna. A partir da análise da metodologia de kits judiciais desenvolvida, pretende-se discutir a
viabilidade de projetos de regularização em assentamentos de pequeno e médio porte.
Nowadays, land tenure is more and more a fundamental problem for great cities and even medium and
small ones at Brazil. With the approval of the City Statute (Federal Law nº 10.257/2001), land tenure of
irregular settlements became an important job for Brazilian architects and urban planners. With the recent
approval of the Federal Law no 11.977 creating the My House, My Life Program, the regularization of the
illegal settlements is an important goal for the federal housing policy. Land tenure is now an important
tool to achieve the legal housing ownership. By analyzing the judicial kits methodology, we will discuss
the viability for land tenure projects in small and medium sized irregular settlements.
En el Brasil urbano contemporáneo, la regularización urbana está posicionada como una cuestión
trascendental en las metrópolis, ciudades pequeñas y medianas. Desde la aprobación del Estatuto de la Ciudad
(Ley Federal no 10.257/2001), la regularización de tierras de asentamientos pre-existentes se volvió un tema
de estudio recurrente para los arquitectos y urbanistas brasileños. Debido a la reciente aprobación de la Ley
Federal no 11.977, que promulgó el Programa Mi Casa, Mi Vida, la regularización fundiaria de asentamientos
consolidados se convierte en una de las metas prioritarias de la política de acceso a la vivienda del gobierno
federal. La regularización fundiaria pasó a ser considerada como una herramienta importante para lograr la
tenencia de vivienda digna. A partir del análisis de la metodología de kits judiciales, se pretende debatir la
viabilidad de proyectos de regularización en asentamientos de pequeña y mediana escala.
Dans le Brésil contemporaine, la régularisacion foncière est une question fundamentale pour toutes les
villes, métropoles, moyennes ou petit villes. Aprés la approbation du Status de la Ville (Estatuto da Cidade
– Lói Fédérale no 10.257/2009), la régularisation du zones urbaines irregulières/ilégales est aujourd’hui un
important objet du travail des architectes et urbanistes brésilienne. Avec la approbation de la Lói Fédérale
no 11.977, que a crée le Program Ma Maison, Mon Vie, la régularisacion fonciére est actuellement une de
les objectifs priorités de la politique du logement du gouvernement federal. La régularisacion fonciére est
allors une importante instrument pour la acces a la legalisacion de la propriété et du logement appropprié.
Avec la analyse de la méthodologie développés du kits judiciaires, on va discuter la viabilité des projetes
de regularisation dans le mélanges urbain irrégulières moyennes e petites.
1 PREÂMBULO
No Brasil contemporâneo, os profissionais envolvidos com a questão urbana –
planejadores, arquitetos, urbanistas, economistas, juristas etc. – têm pela frente
um duplo desafio: “consertar” os problemas superlativos das grandes cidades,
produzidos, sobretudo, na segunda metade do século passado, e “salvar” as cidades
pequenas e médias que estão em processo de explosão por todo o país.
Durante os anos 1980 e 1990, foi possível observar um intenso crescimento
urbano informal, gerado pela consolidação de novos assentamentos irregulares e pelo
adensamento dos já existentes, com a verticalização das unidades residenciais e a
ocupação de espaços antes livres, como áreas públicas ou de proteção ambiental.
Nas grandes cidades e metrópoles, o acesso à moradia pela população de mais
baixa renda, em regra, se dá através da moradia em favelas ou através da residência
autoconstruída nos loteamentos ilegais periféricos. Nas cidades pequenas e médias
esse acesso não difere muito, pois, embora o processo de favelização seja menor, a
autoconstrução nos loteamentos ilegais periféricos é cada vez mais intensa. A presença
de assentamentos irregulares é uma constante na grande maioria das cidades brasilei-
ras, sejam pequenas, médias ou grandes. Devido à falta de uma política habitacional
eficiente para a população de baixa renda, o mercado habitacional informal tem sido
decisivo na configuração das cidades brasileiras nas últimas décadas.
Os loteamentos ilegais existentes no contexto brasileiro, na maioria das vezes,
são lugares com pouca ou nenhuma infraestrutura instalada, serviços públicos de-
ficitários ou inexistentes (escolas, postos de saúde etc.) e com moradias usualmente
O Brasil, como os demais países da América Latina, apresentou intenso processo de urbanização, espe-
cialmente na segunda metade do século XX. Em 1940 a população urbana era de 26,3% do total. Em
2000 ela é de 81,2%. Esse crescimento se mostra mais impressionante ainda se lembrarmos os números
absolutos: em 1940 a população que residia nas cidades era de 18,8 milhões de habitantes e em 2000
ela é de aproximadamente 138 milhões. Constatamos, portanto, que em sessenta anos os assentamentos
urbanos foram ampliados de forma a abrigar mais de 120 milhões de pessoas.
TABELA 1
Brasil: total e por tipo de domicílio e taxa de urbanização –1950, 1960, 1970, 1980,
1991 e 2000
População/ano 2000 1991 1980 1970 1960 1950
Total 169.799.170 146.825.475 119.011.052 93.134.846 70.992.343 51.944.397
Urbana 137.953.959 110.990.990 80.437.327 52.097.260 32.004.817 18.782.891
Rural 31.845.211 35.834.485 38.573.725 41.037.586 38.987.526 33.161.506
Urbana 81,25 75,59 67,59 55,94 45,08 36,16
Rural 18,75 24,41 32,41 44,06 54,92 63,8
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)/Censos Demográficos de 1950, 1960, 1970, 1980, 1991 e 2000.
(...) Como resultado: de acordo com dados recentes de diversas fontes, 26 de milhões dos brasileiros que
vivem em áreas urbanas não têm água em casa; 14 milhões não são atendidos por sistema de coleta de
lixo; 83 milhões não estão conectados ao sistema de saneamento; e 70% do esgoto coletado não são
tratados,mas despejados em estado bruto na natureza (FERNANDES, 2006, p. 3-4).
O trabalho recente divulgado pelo Ministério das Cidades sobre habitação pre-
cária aponta que no Brasil existe um total de 1.618.836 (6,65%) domicílios localizados
em setores subnormais (favelas) e 1.546.250 (6,35%) em setores precários, indicando
que 13% do total dos 24.364.375 domicílios brasileiros possuem algum tipo de
precariedade. O estudo considerou como habitações precárias aquelas localizadas em
favelas, loteamentos clandestinos e/ou irregulares e cortiços. Além das condições físicas
da moradia, devem ser consideradas variáveis como o acesso à rede de infraestrutura e
serviços públicos, a urbanização efetiva da gleba e a titularidade do imóvel.
Bentes (2003) afirma que:
(...) em 2000, o déficit habitacional brasileiro foi estimado em 6.656.526 de novas moradias e, na atuali-
dade, a ilegalidade e a informalidade urbanas se confirmam como um problema central a ser enfrentado
no tratamento da questão habitacional. Nesse sentido, aprofundar e implementar novos instrumentos
urbanísticos e fiscais visando a efetivação da função social da propriedade constitui, hoje, um dos principais
desafios na condução da Política Urbana em nosso país.
TABELA 2
Brasil: taxa de crescimento anual dos municípios por faixa populacional – 1991-2000
Pode-se observar que, em geral, o acesso à moradia pela população de mais baixa
renda nas metrópoles e grandes cidades se dá através da moradia em favela ou através
da residência autoconstruída nos loteamentos irregulares periféricos. Já nas cidades
pequenas e médias esse acesso se dá quase que exclusivamente através da autoconstrução
nos loteamentos irregulares periféricos. “Hoje, cerca de 40% das cidades brasileiras
com menos de 20 mil habitantes têm loteamentos clandestinos. Isso não é um mero
Enfim, a função social manifesta-se na própria configuração estrutural do direito de propriedade, pondo-se,
concretamente, como elemento qualificante na predeterminação dos modos de aquisição, gozo e utilização
dos bens. Por isso é que se conclui que o direito de propriedade não pode mais ser tido como um direito
individual. A inserção do princípio da função social, sem impedir a existência da instituição, modifica a
sua natureza (SILVA, 2008, p. 77-78)
A idéia de função social da propriedade envolve a prevalência do interesse social, do bem coletivo e do
bem-estar da coletividade, bem como a persecução e consecução da regularização fundiária e a urba-
nização das áreas ocupadas por populações de baixa renda” (Estatuto, parágrafo único do artigo 1º e
inciso XIV do artigo 2º) (DALLARI e FERRAZ, 2006, p. 145).
O Estatuto da Cidade promoveu uma mudança estrutural do planejamento urbano brasileiro, que passa a ser
não apenas o planejamento regulatório tradicional, mas também um planejamento indutor de processos terri-
toriais e urbanísticos que tenham um impacto direto na dinâmica dos preços do mercado imobiliário. (...)
(...) De fato, a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade plenamente reconhecem o direito dos mora-
dores em assentamentos informais consolidados em áreas urbanas públicas ou privadas a permanecerem
nessas áreas. (...)
O que se disputa hoje é um conceito de regularização, ou seja, se for entendido que a regularização é um
processo multidimensional que deve combinar uma dimensão jurídica de legalização das áreas e titulação
dos lotes com uma dimensão urbanística, ambiental e social, é crucial que medidas efetivas sejam tomadas
nesse sentido por meio de programas e políticas compreensivas de regularização. Na falta de tal resposta pelo
poder público, o caminho do reconhecimento judicial de direitos de posse e propriedade em terras privadas
e em terras de particulares continuará aberto aos ocupantes dos assentamentos informais, ainda que em
condições onde a sustentabilidade socioambiental seja inadequada (FERNANDES, 2006, p. 15-16).
O desafio, desde sua aprovação, tem sido viabilizar a aplicação dos novos
instrumentos de política urbana disponibilizados de forma a fazer valer a função
social da propriedade e o direito à cidade da população urbana brasileira. Recente-
mente, a aprovação do PMCMV (Lei Federal no 11.977), em 2009, veio se somar
aos avanços legais relativos à regularização fundiária e ao direito à cidade.
(...) prescinde, por óbvio, de qualquer intervenção judicial, incumbindo à administração pública, mediante
impulso próprio, assim como de interessados e entidades privadas (art. 50), prerrogativas para, através
da demarcação e da legitimação de posse – instrumentos voltados à outorga da titulação dominial –,
declarar o direito de propriedade privada beneficiando população de baixa renda.
5 O PMCMV
Há apenas alguns meses veio se somar aos esforços de aplicação da política ur-
bana nacional definida pelo Estatuto da Cidade a aprovação do PMCMV (Lei
no 11.977/2009). Se no Estatuto da Cidade a regularização fundiária era vista
como uma das formas de acesso ao direto à cidade, PMVMV avança no sentido
de delimitar os tipos de assentamentos a serem regularizados e, principalmente,
avança na disponibilização de novos instrumentos para a regularização consi-
derada de interesse social.
O programa pretende preencher lacunas existentes na legislação em vigor,
procurando produzir um marco legal adequado para a promoção da legalização
da posse em assentamentos irregulares no país, permitindo a aplicação definitiva
da função social da propriedade no território urbano brasileiro, em especial para
os assentamentos identificados como de interesse social.
Em seu capítulo III – Da Regularização Fundiária de Assentamentos Ur-
banos – define que:
(...)a regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais
que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a
garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana
e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 46).
TABELA 3
Brasil, Estado de São Paulo, Amparo e municípios entre 20 mil e 100 mil habitantes:
taxa geométrica de crescimento anual – 1991-2000
Brasil Estado de São Paulo Municípios de 20 mil a 100 mil habitantes Amparo
Total 1,63 1,78 0,77 1,94
Urbana 2,45 1,86 - 0,51
Rural 1,30 0,78 - 6,87
Fontes: IBGE/Censos de 1991 e 2000 e Ministério das Cidades. 2005, Elaboração dos autores.
TABELA 4
Amparo: população segundo situação do domicílio – 1970, 1980, 1991 e 2000
Ano
neste estudo, tem sido usado como um modelo de ação municipal também para
os outros loteamentos irregulares.
7 AVANÇOS E DESAFIOS
Passado pouco mais de um ano da entrega dos primeiros kits judiciais, acreditamos
que a metodologia desenvolvida tem se mostrado eficiente tanto como forma de
sistematizar os levantamentos cadastrais realizados, como também para instigar a
participação ativa da população local nas diversas etapas do processo de regularização
fundiária. Uma vez com o kit em mãos, o morador pode optar por participar de uma
ação coletiva organizada pelo poder público, ajuizar a ação de forma autônoma ou
mesmo a partir da associação de moradores ou outro tipo de organização coletiva.
Como o projeto foi idealizado, desde o início, como um projeto onde a re-
gularização fundiária e a regularização urbanística deveriam ser implementadas
de maneira concomitante, os resultados obtidos não se restringem unicamente à
questão fundiária.
Do ponto de vista social, a reestruturação da associação de moradores, ocor-
rida em 2007, foi essencial para a realização das diversas etapas. Após a eleição da
nova diretoria, em dezembro de 2007, a associação de moradores passou a parti-
cipar de forma efetiva de todas as atividades do projeto (reuniões, levantamentos
de campo, atividades de educação ambiental etc.). Os problemas sistemáticos
com a manutenção do poço artesiano mantido pela associação ou com a rede de
energia elétrica das vias de circulação deixaram de existir. A organização da coleta
da mensalidade e a prestação de contas sistemática geraram uma sobra mensal de
verba que vem possibilitando a execução de pequenas obras no bairro realizadas
pela própria associação (novo ponto de ônibus, calçamento da entrada do bairro
com paralelepípedos, limpeza de áreas públicas, e a contratação de máquinas de
terraplenagem para nivelamento das ruas de terra). As reuniões no bairro, que
nos dois primeiros anos do projeto aconteciam no centro de saúde, são feitas,
atualmente, sempre na sede da associação.
Uma vez que todo o conteúdo dos kits judiciais foi desenvolvido a partir de
discussões com o Poder Judiciário e a promotoria pública locais, ele representa
uma ferramenta eficiente para a elaboração e ajuizamento dos processos de regu-
larização fundiária, independentemente da modalidade de usucapião escolhida,
através da otimização dos passos processuais necessários para o sentenciamento
final da ação, objetivando uma sensível redução de trabalhos para os envolvidos
(juízes, advogados, promotores, oficiais de justiça etc.) e também do tempo de
tramitação do processo no âmbito judicial.
No entanto, apesar dessa planificação inicial, ingressadas as ações no Poder
Judiciário, verificou-se que alguns conceitos pessoais, notadamente dos juízes e do
oficial do Cartório de Registro de Imóveis, que também se manifesta nos processos
de usucapião, acabaram por imprimir dificuldades que se esperavam superadas,
além de um ritmo lento na tramitação das ações. Isto porque, apesar de toda a
parte técnica ter sido produzida pelo próprio Estado (leia-se prefeitura), o Estado-juiz
não lhe ofertou a credibilidade esperada, estando na expectativa de nomeação de
um perito judicial para conferência dos dados técnicos apresentados nos autos,
como levantamento topográfico, memorial descritivo, rol de confrontantes etc.
Além dessa situação que já se apontou na tramitação da ação, igualmente o oficial
registrário não conseguiu atinar que o procedimento intentado, por ser oriundo
de um programa oficial de regularização fundiária, não deveria seguir as rotinas
normatizadas pela Corregedoria Geral de Justiça, que dita as regras administrativas
aos Cartórios de Registro de Imóveis. Assim, especificamente, se nas ações de
usucapião normal, essas normas de serviço exigem que os imóveis usucapidos não
contemplem identificação através de número de lote e quadra. No entanto, entendemos
que nas ações de usucapião decorrentes de processo de regularização fundiária
essas regras não deveriam ser utilizadas, na medida em que, embora tramitando
individualmente, essas ações dizem respeito à regularização de um loteamento
irregular como um todo e por isto devem guardar com ele estrita relação, não
obstante existam respeitáveis posições doutrinárias contrárias que, diferentemente,
entendem que a adoção de identificação do imóvel usucapido por número e quadra
pressupõe um parcelamento regularmente instituído e registrado no Cartório de
Registro de Imóveis, o que não é o caso da regularização fundiária.
No entanto, tais dificuldades serão superadas a partir da melhor compreensão
dos agentes estatais que, nesses casos de regularização fundiária, o Estado deve
ser visto como o agente indutor e até mesmo coordenador dos procedimentos,
que deverão ser concebidos de forma una e não sectarizada, como histórica e
ordinariamente vem sendo concebida por seus agentes, quer sejam eles juízes,
promotores, escriturários etc.
A experiência regularizatória vivenciada no loteamento Jaguary evidenciou
que, para se alcançar os objetivos inicialmente propostos, foi extremamente impor-
tante a existência de real interesse aliado à conjugação de esforços dos vários atores
envolvidos no processo. Não basta somente a vontade política do poder municipal,
que é o ente condutor de todo o processo, em realizar todos os procedimentos
pedidos pela legislação vigente. Também se faz necessário que os demais entes
públicos envolvidos (os membros do Poder Legislativo municipal, do ministério
público e, em especial, do Poder Judiciário e todo o aparato estatal a este ligado,
como os serventuários forenses e o oficialato do Cartório de Registro de Imóveis)
tenham a concepção da exata magnitude do problema e das dificuldades que os
cercam. Desse modo, dentro de suas competências funcionais, espera-se que
realizem seus misteres, quando chamados a tanto, com concepções e leituras
pessoais de conceitos e entendimentos normativos o menos possível formais. Essa
prática facilita as ações necessárias, uma vez que a regularização fundiária envolve
assuntos de caráter multidisciplinar, como urbanismo, meio ambiente, registro
público, processos e procedimentos judiciais e extrajudiciais. Cada um destes
requer enfoques normativos complexos, que, se levados às esferas da concepção
formalista, poderão, se não inviabilizar, ao menos complicar o processo com a
elevação dos prazos e custos para a sua finalização.
Assim, não basta que o Estatuto da Cidade determine que nas ações de usu-
capião constitucional se deva seguir o rito sumário, onde as fases e procedimentos
são racionalizados, se, na prática, os juízes que presidem os processos continuam
a impor às partes procedimentos do rito ordinário. Mesmo considerando-se as
opiniões doutrinárias contrárias, não basta que a Lei no 11.977/2009 diga que o
registro das sentenças de usucapião de um lote em loteamento irregular prescinde
do registro do projeto de regularização junto ao Cartório de Registro de Imóveis,
se na prática o oficial registrário exige, preliminarmente, o registro do projeto de
regularização para posterior registro da sentença de usucapião desse lote integrante
do parcelamento irregular em vias de regularização. Este é um momento não apenas
de desenvolvimento e consolidação de práticas de atuação técnica no âmbito da
regularização fundiária, mas também de consolidação de uma nova cultura jurídica
que incorpore os avanços normativos recentes de forma objetiva e eficiente.
No caso analisado neste artigo, apesar de questões quanto ao entendimento
dos avanços procedimentais dos novos marcos legais, no geral os esforços conjuntos
dos vários atores, mesmo naqueles casos de usucapião onde o procedimento ainda
é de rito ordinário, foi possível racionalizar em muito as fases processuais. Desde
o início, várias foram as reuniões mantidas com juízes, promotores, oficiais de
cartório, vereadores etc. Nessas ocaisões foram discutidas as melhores fórmulas
para, dentro do poder discricionário de cada um deles, se racionalizar os proce-
dimentos necessários exigidos. Assim, a simples aceitação, pelos juízes e promo-
tores, das declarações de anuência dos vizinhos do imóvel usucapido e também
da prefeitura, peças que foram levadas aos autos no bojo do kit judicial, acabou
por proporcionar uma significativa economia de tempo, serviços e de verbas que
seriam despendidas se o procedimento normal fosse o adotado, posto que, para o
mesmo ato, seriam necessários vários procedimentos, tais como: oferta de cópias
do pedido inicial e de plantas e memoriais descritivos dos lotes pelos advogados,
confecção de mandados pela serventia cartorária, deslocamento de oficiais de
justiça para o local visando à citação desses confrontantes, a elaboração de certidão
dessas citações pelos oficiais, e ainda posterior juntada desses mandados nos au-
tos e certificação de que todos os confrontantes foram devidamente citados pela
serventia cartorária do juiz.
Dessa forma, pode-se perceber que, no caso concreto do Jaguary, inicial-
mente houve uma pequena mudança de postura das autoridades envolvidas. Ao
se conscientizarem da gravidade do problema fundiário da cidade, estas passaram
do papel de simples atores coadjuvantes para o de principais condutores do pro-
cesso de regularização fundiária. Mas mesmo com essas alterações de posturas
e entendimentos, foi visível a percepção de que, na maioria dessas autoridades,
o conceito de direito de propriedade ainda é muito ligado a uma concepção in-
dividualista e formal. Tal concepção ainda forma a cultura geral dos operadores
O lugar do jurista nesse processo é central. Já se avançou muito em relação ao Código Civil de 1916, segundo
o qual a questão da propriedade se resumia ao “binômio desapropriação e usucapião”; com o Estatuto da
Cidade, há um marco jurídico compreensível, articulado, integrado e promissor que permite a atuação efetiva
não só do Estado, como de toda a sociedade brasileira no enfrentamento das questões urbanas.
Para isso, é preciso que entendamos que o Direito não é um sistema objetivo, fechado em si mesmo ou
neutro em relação aos processos sociais. É preciso que se reconheça que o Direito brasileiro tem um papel
central no processo de exclusão social e nos processos de segregação territorial, para que possamos
avançar no sentido de compreender como o Direito pode ser um fator e um processo de transformação
social e reforma urbana.
(...) É preciso que seja superado o discurso tradicional da ilegalidade e da inconstitucionalidade e que
sejam construídos argumentos consistentes que validem essa nova ordem jurídica e urbanística (FERNANDES,
2006, p. 22-23)
permanente não ocupadas. Por outro lado, deve promover ações mitigatórias para
os danos ambientais considerados irreversíveis.
A metodologia dos kits judiciais permitiu que fosse viabilizadas a regularização
sem a mobilização de muitos técnicos municipais, a partir do trabalho conjunto
da assessoria técnica contratada, da prefeitura e da participação da associação de
moradores, mas também através da participação de representantes do Poder Judi-
ciário local, do ministério público estadual, do Cartório de Registro de Imóveis de
Amparo. Esses órgãos e instituições participaram das diversas etapas do projeto,
adotando, em alguns momentos, procedimentos facilitadores e agilizadores dos
processos judiciais dos registros das sentenças.
Foi possível aferir que a metodologia dos kits judiciais contribuiu em muito
na racionalização das tarefas necessárias para poder ofertar ao morador do lote
irregular o produto final que se propôs inicialmente: os meios necessários para
a formalização da sua titularidade dominial perante o Cartório de Registro de
Imóveis sobre o imóvel por ele e sua família habitado. Dessa forma, mesmo após o
advento da Lei no 11.977/2009, que muito inovou quanto aos procedimentos para
se chegar ao mesmo ponto, a metodologia dos kits judiciais não se tornou obsoleta,
na medida em que essas facilidades operacionais somente são possíveis naqueles
imóveis com área inferior a 250 m2, o que não é a realidade de uma grande parte
de loteamentos irregulares existentes nas cidades pequenas e médias.
Por fim, é importante constatar que um elemento primordial para o sucesso do
processo regularizatório é a presença e atuação proativa dos destinatários finais dessas
ações: os moradores do loteamento Jaguary. No início dos trabalhos se fizeram
presentes de forma individual, devido à pouca representatividade da associação
de moradores. Todavia, com o incentivo à mobilização promovido pela equipe
condutora dos trabalhos de coleta de dados, algum tempo depois os moradores
compreenderam a importância e a necessidade de se fazerem representar de forma
institucional pela associação de moradores existente, mas desde que ela tivesse
legitimidade e representatividade para tanto. A equipe técnica foi responsável pela
reestruturação da associação, primeiramente com o convencimento dos moradores
para participar do processo de escolha de uma nova diretoria para a associação de
moradores. Com a reestruturação, a entidade passou também a fornecer impor-
tantíssima colaboração para os trabalhos técnicos, nas discussões dos problemas
enfrentados e na busca de soluções.
Essa primeira experiência envolvendo os kits judiciais foi feita através de asses-
soria técnica contratada pela prefeitura , mas pode ser feita no âmbito das próprias
administrações municipais e mesmo pelas próprias associações de moradores.
É importante que os programas de regularização fundiária não se restrinjam
a ter um caráter meramente curativo, sendo necessário estarem sempre associados
a outras políticas públicas, assim como por políticas preventivas, que possibilitem
a oferta de outras formas de acesso à moradia digna que não exclusivamente pela
autoconstrução em loteamentos ilegais. A regularização fundiária apenas não
pode ser encarada como a solução da informalidade e precariedade habitacionais
brasileiras. Somente uma política habitacional que inclua a provisão de moradia
subsidiada paralelamente a projetos de regularização urbanístico-fundiária poderá
ser vista como a solução almejada para o déficit habitacional brasileiro.
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