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Eduardo Saad-Diniz

VITIMOLOGIA
CORPORATIVA

São Paulo
2019
Eduardo Saad-Diniz
Copyright© 2019 by Eduardo Saad-Diniz
Editor Responsável: Aline Gostinski
Capa e Diagramação: Carla Botto de Barros

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:


Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de

VITIMOLOGIA
Investigações Jurídicas da UNAM - México
Juarez Tavares
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil

CORPORATIVA
Luis López Guerra
Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da
Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
Owen M. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
Tomás S. Vives Antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

S116 Saad-Diniz, Eduardo


Vitimologia corporativa / Eduardo Saad- Diniz.
- 1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch, 2019.
204p.

ISBN: 978-85-9477-353-1

1.Direito Penal. 2. Criminologia. 3. Pesquisa. I.


Título.

CDU: 343.9

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/
ou editoriais.
A violação deS116 Saad-Diniz,
direitos autorais constitui crimeEduardo
(Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se
à busca e apreensão e indenizaçõesVitimologia corporativa [livro eletrônico] / Eduardo
diversas (Lei n°9.610/98).
Saad-
Todos os direitos desta edição reservadosDiniz.
à Tirant-Empório
1.ed. –doSão
DireitoPaulo
Editoral: Ltda.
Tirant lo Blanch,
2019.
1Mb ; ebook
Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch.
Avenida Nove de Julho
ISBN: nº 3228, sala 404, ed. First Office Flat
978-85-9477-352-4
Bairro Jardim Paulista, São Paulo - SP
CEP: 01406-000
1.Direito
www.tirant.com/br Penal. 2. Criminologia. 3. Pesquisa. I.
- editora@tirant.com.br
Título.
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
São Paulo
CDU: 343.9 2019
Financiamento FAPESP, Proc. n. 2016/15038-1 (com aprovação também na
CAPES, Proc. n. 120549/2016-01) e financiamento CNPQ-Bolsa Produtivida-
de PQ2, Proc. n. 311899/2016-11

A Ceci y Agus

1. Este livro toma por base o relatório apresentado para concurso de livre-docência na Faculdade de
Direito de Ribeirão Preto da USP, defendido em junho de 2018. Agradecimentos aos membros da
banca examinadora, Víctor Gabriel Rodriguez (FDRP/USP), Cláudio do Prado Amaral (FDRP/
USP), Maria Cristina Cacciamali (FEA/USP), Adán Nieto Martín (UCLM/Espanha) e Alamiro
Velludo Salvador Netto (FDRP/USP)
PREFÁCIO
A EXPLICAÇÃO AUSENTE DA VITIMOLOGIA CORPORATIVA

William S. Laufer
Julian Aresty Endowed Professor of Legal Studies & Business Ethics, Sociology,
and Criminology; Director: The Carol and Lawrence Zicklin Center for Business
Ethics Research. University of Pennsylvania – The Wharton School

Por muitos anos, a criminologia tem ignorado as vítimas da cri-


minalidade corporativa. Não se trata de mera omissão ou de um erro
insignificante. Nosso ceticismo reflete os limites rígidos da pesquisa cri-
minológica; o desafio perene de pensar sobre as corporações como categoria
analítica relevante; a prioridade moral dada à criminalidade de ruas, que
reforça desigualdades estruturais; e a influência geral e limitações das tradi-
ções sociológicas e psicológicas ortodoxas. E pagamos um preço exorbitante
pelo nosso ceticismo coletivo: não saber muito sobre quem é vitimizado e,
mais genericamente, sobre a seriedade da criminalidade corporativa, afeta
drasticamente as concepções da culpabilidade, da responsabilidade e das
sanções justas e proporcionais.
Eu acrescentaria à lista das muitas razões para a negligência acadêmica
sobre a vitimização corporativa uma explicação mais sutil. Desde suas ori-
gens, o desenvolvimento da criminologia revela uma atração pela ofensa e
pelos ofensores que merece muito mais atenção. O mesmo talvez não se possa
dizer sobre a vitimização e a vítima. Para alguns, o estudo da delinquência é
um esforço completamente descontextualizado, que traz consigo os rigores
de um método científico de pesquisa social de vanguarda para a análise de
problemas e políticas sociais. Que o crime e o comportamento criminoso seja
um explicandum é praticamente incidental. A persecução da ciência molda
perguntas a serem formuladas e respondidas. Para outro subconjunto de cri-
minólogos, aderir a questões de justiça e igualdade reflete a vida acadêmica
que é motivada por uma visão normativa sólida e estrita. Por exemplo, raça,
8 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Prefácio 9

classe e idade movem a pesquisa criminológica sobre encarceramento de simples questão de melhor conceber os custos. Seria ainda mais fácil se ele
massas, ou mesmo sobre a gestão da pena de morte. Finalmente, para muitos delimitasse a pesquisa sobre esta negligência, entendida como obstrução
outros, há um fascínio pelo crime e pelo comportamento criminoso que beira de uma teorização mais completa sobre as teorias da intimidação corpo-
ao voyeurismo e à sedução. A criminologia é um mundo obscuro e excitante rativa (corporate deterrence). E muito mais fácil se, para ficar com pouco,
que permite o avanço da “ciência” de forma bastante legítima. apesar de nossa ignorância sobre a vitimização corporativa, simplesmente
Há muitos criminólogos que se importam muito mais com seus concluir que, antes de mais nada, não há agência moral (moral agency)
métodos do que com suas variáveis dependentes. Há ainda outros tantos das corporações. Em vez disso, Prof. Saad-Diniz nos leva ao desenvolvi-
criminólogos que se dedicam ao estudo das vítimas por razões normativas mento da Criminologia, levantando questionamentos fundamentais sobre
profundamente enraizadas. Mas a vitimologia ainda não atraiu aqueles que onde a criminalidade corporativa se encaixa nas mais celebradas teorias
são fascinados e seduzidos pela própria ideia da ofensa. Isso é bem funda- do comportamento criminoso e teorias do crime. Isso é acompanhado
mentado pelo fato de que nos falta indignação moral em relação às vítimas da investigação sobre quais lições da criminologia corporativa podem ser
e à vitimização. Em conferências e em revistas científicas, a vitimologia aprendidas ao longo da tradição da pesquisa vitimológica. O trabalho do
permanece tangenciada, às margens. Parece que cuidamos mais de casos Prof. Saad-Diniz resulta em discussão importante sobre os limites, arqui-
notáveis de injustiça do que de casos notáveis de vitimização. Estamos justi- tetura e conteúdo da vitimologia corporativa.
ficadamente fascinados pela ideia de inocência, prisões indevidas, sentenças Eu poderia pensar em bem poucas grandes contribuições à crimi-
condenatórias e punição. No entanto, não há nada comparável sobre as nologia corporativa que tragam uma explicação coerente e mais completa
histórias não contadas de mais da metade das vitimizações. sobre a vitimologia corporativa. E poderia pensar em poucos em uma po-
Considerando que na última década, nos EUA, houve 57.741.304 sição melhor para alcançar este objeto científico tão importante. Antes de
vitimizações violentas (agressão sexual, furto, roubo, violência doméstica, qualquer coisa, Prof. Saad-Diniz, é somente a responsabilidade dos mais
violência praticada por estranhos – stranger violence – , e crimes violentos poderosos neste mundo o que está em jogo.
envolvendo dano), dos quais 47% (26.933.022) foram reportados à polícia
e 53% (30.808.282) não foram reportados. É escassa a atenção dedicada
a estes 53% de toda vitimização violenta — aproximadamente 31 milhões
de vidas. Não importa quão gravosas, traumáticas ou economicamente
deletérias, muito frequentemente as infrações não reportadas em face destas
31 milhões de vidas se perdem e são diluídas no tempo. É impressionante
como o Estado raramente reconhece e leva em consideração os “resíduos”
(remainders) de justiça relacionados a todas as pessoas reportadas (e.g.,
ausência de declaração de vítimas), relacionadas ao sistema (e.g., casos per-
didos por conta de fracasso do Estado em oferecer os elementos de prova),
ou às considerações sociais (e.g., tratamento diferencial em função de raça
ou classe). E, mais relevante para a contribuição deste livro, o resíduo da
vitimização corporativa ou a “cifra oculta” da criminalidade corporativa é
robusto, estável no tempo, e totalmente desconsiderado.
Seria muito fácil ao Prof. Eduardo Saad-Diniz seguir o senso comum
da tradição científica nos EUA e determinar esta cifra oculta como uma
SUMÁRIO

CAPÍTULO 1 - INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
CAPÍTULO 2 - QUESTÕES DE MÉTODO, CONVERGÊNCIAS E
DIVERGÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
CAPÍTULO 3 - FUNDAMENTOS DA PESQUISA CRIMINOLÓGICA . . 27
3.1. OS FUNDAMENTOS DA ANOMIA EM ÉMILE DURKHEIM E
ROBERT MERTON . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28
3.1.1. Albert Cohen e a subcultura delinquente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
3.2. TEORIA DO CONTROLE SOCIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
3.2.1. Travis Hirschi e as causas da delinquência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40
3.2.2. Michael Gottfredson, Travis Hirschi e o auto-controle . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
3.3. ROBERT AGNEW E TEORIA GERAL DA TENSÃO (GENERAL
STRAIN THEORY) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
3.3.1. Integração das teorias do controle e o controle social do negócio . . . . . . . . . . 55
3.4. EDWIN SUTHERLAND E A ASSOCIAÇÃO DIFERENCIAL . . . . . . . . 61
3.5. TEORIA DA ESCOLHA RACIONAL, ATIVIDADES
ROTINEIRAS E ESTILO DE VIDA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
3.6. ECOLOGIA DO CRIME E A IMPORTÂNCIA DO CONTEXTO . . . . . 72
3.6.1. A Escola de Chicago . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
3.6.2. Robert Sampson e a teoria do curso da vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
3.6.3. O lugar como vítima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
3.7. LIÇÕES DA CRÍTICA CRIMINOLÓGICA E ETIQUETAMENTO
SOCIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84
3.8. ELEMENTOS PARA UMA CRIMINOLOGIA CORPORATIVA . . . . . . 91

CAPÍTULO 4 - FUNDAMENTOS DA PESQUISA VITIMOLÓGICA . . 97


4.1. OS CLÁSSICOS DO PENSAMENTO VITIMOLÓGICO . . . . . . . . . . . 103
4.1.1. Hans von Hentig . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104
4.1.2. Benjamin Mendelsohn . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105
4.1.3. Stephen Schaefer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106
4.1.4. Marvin Wolfgang . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
4.2. MOVIMENTOS HISTÓRICOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108
4.2.1. Blaming the victim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
4.2.2. Orientação normativa pela necessidade de proteção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113
4.2.3. Mensurando a vitimização: a avaliação de risco vitimológico . . . . . . . . . . . . 117
4.3. CONCEITOS E TIPOLOGIAS: VÍTIMA E VITIMIZAÇÃO . . . . . . . . . 122
4.3.1. A construção de tipologias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129
4.3.2. Lições da vitimologia crítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136
12 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ

CAPÍTULO 5 - VITIMOLOGIA CORPORATIVA: UM NOVO


CAMPO DE PESQUISA PARA AS CIÊNCIAS CRIMINAIS . . . . . . . . . 139
5.1. AS IDEIAS DE WILLIAM LAUFER PARA UMA VITIMOLOGIA
CORPORATIVA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144 Capítulo 1
5.2. CORPORAÇÃO COMO OFENSORA E CORPORAÇÃO COMO
VÍTIMA: OS NÍVEIS DE VITIMIZAÇÃO CORPORATIVA . . . . . . . . . 151 INTRODUÇÃO
5.2.1. Stakeholders como vítima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156
5.3. VIOLÊNCIA CORPORATIVA E CORPORTAMENTO
CORPORATIVO SOCIALMENTE DANOSO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161
5.4. NEUTRALIZAÇÃO MORAL E O PROBLEMA DA Neste livro, a propositura de um novo campo nas ciências criminais em
DEPENDÊNCIA COMUNITÁRIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 168 torno da vitimologia corporativa (corporate victimology) será estruturada em
5.5. TENSÃO ORGANIZACIONAL E TRAUMA CORPORATIVO . . . . . . 176 duas partes principais: revisão dos fundamentos da vitimologia, buscando
5.6. DIREITOS HUMANOS, RESPONSABILIDADE MORAL E identificar os possíveis pontos de convergência entre a pesquisa vitimológica
EMPRESA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 184
e a vitimização no âmbito corporativo; e delimitação conceitual da vitimo-
5.7. JUSTIÇA RESTAURATIVA CORPORATIVA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 190
logia corporativa, a partir da qual se pretende criar corpo teórico referencial
CAPÍTULO 6 - CONCLUSÕES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201 que habilitará pesquisas científicas baseadas em avaliações sobre os vínculos
possíveis entre os danos causados pelas corporações e sugestões inovadoras
de atribuição de responsabilidade às corporações. Esta convergência entre
vitimologia e vitimização no âmbito corporativo, conceitualmente sintetiza-
da em torno de uma vitimologia corporativa, apresenta potencial científico
bastante significativo para a necessária revisão dos padrões de prevenção da
vitimização e redução dos danos, orientada pela necessidade de se levar em
consideração a figura da vítima na aplicação da responsabilidade corporativa.
Com fundamento nestas questões de mérito, o livro está centrado nos
seguintes questionamentos: a partir de uma revisão do lugar da vítima no
pensamento criminológico, o que é possível aprender com as ideias vitimo-
lógicas para alcançar melhores níveis de compreensão sobre a vítima e os
processos de vitimização? É possível desenvolver a vitimologia corporativa,
tomando por referencial um novo campo de pesquisa baseado na convergência
entre as teses vitimológicas e a criminologia corporativa?
A construção científica do objeto de pesquisa parte do problema da
necessidade de elaborações teóricas mais precisas sobre a vítima e os pro-
cessos de vitimização. Raramente se encontram estudos sólidos e avaliações
de bases empíricas consistentes sobre quem é a vítima do delito e como
efetivamente se produz esta vitimização. As teses dogmáticas predominam
nas ciências criminais brasileiras, dedicando pouca ou nenhuma atenção à
vítima ou aos processos de vitimização. Neste contexto em que a vitimolo-
gia definitivamente parece ser um capítulo esquecido das ciências criminais,
14 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 1 – Introdução 15

é preciso retomar os esforços científicos em busca de uma melhor com- o comportamento desviante individual para as infrações cometidas pelas
preensão do lugar da vítima no sistema de justiça criminal. Há uma série próprias corporações.
de aprendizados que foram negligenciados ao longo dos movimentos his- Definitivamente, o protagonismo das corporações na dinâmica da vida
tóricos em que se consolidaram as abordagens tradicionais sobre as “ideias social moderna não pode ser descuidado pelo conhecimento criminológico.
vitimológicas”, os quais poderiam influenciar mudanças significativas no É preciso aprofundar o legado de Sutherland sobre a criminalidade ocorrida
exercício cotidiano da interpretação das leis penais. Por muito tempo, as no ambiente corporativo e intensificá-lo em relação à criminalidade cometida
ciências criminais se deram por satisfeitas com o apelo emocional de incri- pelas próprias corporações, tomada como ponto de partida dos estudos sobre
minar indivíduos1, sem se dar conta do protagonismo das corporações no o controle social, regulação e funcionamento do sistema de justiça criminal.
comportamento socialmente danoso. Este livro conduz, invariavelmente, à análise reflexiva sobre o comporta-
Especialmente em vista do incandescente cenário brasileiro2, é neces- mento corporativo socialmente danoso e, por conseguinte, à construção do
sário empenhar novos esforços que permitam uma profunda redefinição das conflito vitimal no ambiente corporativo. Mais precisamente aí é que se
justificações morais (moral justifications) que impõem ao sistema de justiça justifica a necessidade de um novo campo que organize o referencial teórico
criminal, a um só tempo, instabilidade institucional e obsessão punitiva, de um novo campo de investigação científica idôneo a orientar futuras quan-
com seus níveis intoleráveis de seletividade, estigmatização e encarcera- tificações dos processos de vitimização, verificações de modo e intensidades
mento em massa, ademais das práticas sistemáticas de despersonalização e pelos quais determinadas ofensas repercutem sobre vítimas, seguidas de aná-
vulneração das vítimas. lises reflexivas sobre possíveis alternativas de aplicação prática, sob influência
O esforço científico para a propositura de uma vitimologia corporativa dos direitos humanos e das práticas restaurativas.
resgata a reconstrução da trajetória de vida do próprio pensamento crimi- Com base nestes pressupostos, a vitimologia corporativa permite
nológico pós-clássico, trabalhando os desdobramentos após o pensamento analisar a convergência entre os fundamentos da vitimologia e os novos
clássico e a criminologia positiva europeia (Beccaria e Lombroso). As cor- desenvolvimentos da criminologia corporativa. Esta convergência recorre
rentes teóricas, que se sucederam à fundamentação metafísica das ciências à revisão do movimento das ideias vitimológicas, com o objetivo de iden-
criminais e ao positivismo, tomaram da sociologia durkheimiana pressu- tificar evidências sobre quem e em que medida sofre com os processos
postos fáticos suficientemente explicativos para dar conta da evolução do de vitimização, visando informar novas perspectivas sobre o potencial da
crime na sociedade moderna. Os estudos sobre o lugar da vítima nas ciências construção do conflito vitimal na formulação de estratégias de redução da
criminais, desde suas formulações originais, ocuparam papel coadjuvante, vitimização. A isso se soma a necessidade de se delimitar conceitualmente
com manifestações isoladas, sem maior alcance analítico ou rigor sistemá- a vitimologia corporativa, estabelecendo conceitos analíticos que permitam
tico. Apenas recentemente, com maior ênfase nas últimas quatro décadas, identificar os processos de vitimização corporativa e padrões mais imagina-
com as transformações globais decorrentes do fim da Guerra Fria, que trou- tivos de compreensão do comportamento corporativo socialmente danoso,
xeram consigo a contenção da criminalidade de ruas expressada nos picos na linha das ideias sugeridas por William Laufer. A ideia é que ao final se
de superencarceramento e o traslado gradual da agenda político criminal alcance um corpo teórico referencial suficiente para habilitar futuras pes-
internacional para a criminalidade corporativa é que se tem experimentado quisas científicas baseadas em avaliações sobre os vínculos possíveis entre
a necessidade de estudos mais intensos sobre a criminologia corporativa. Este os danos causados pelas corporações e sugestões inovadoras de atribuição
despertar do legado de Edwin Sutherland motivou criminólogos a elevar de responsabilidade às corporações, elaboração de políticas de prevenção
da vitimização e redução dos danos, orientadas pela figura da vítima e dos
1. “Blaming individuals is emotionally more satisfying than targeting institutions”, REASON, James. “Hu-
man error? Models and management”. British Medical Journal, 2000, p. 768. processos de vitimização corporativa.
2. Os recentes escândalos corporativos (Operação Lava Jato, Carne Fraca e a Tragédia de Mariana) no
Brasil são mais do que ilustrativos da vitimologia corporativa, o que aumenta as expectativas de que o Espera-se que este livro, além do desenvolvimento de um novo campo
livro possa servir de fundamento para pesquisa neste novo campo.
16 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ

de investigação científica, possa oferecer condições para o desenvolvimento


posterior de indicadores de avaliação da efetividade das políticas de pre-
venção à vitimização no âmbito corporativo. Inspirados pela criminologia
Capítulo 2
corporativa de Laufer, o impacto social esperado é a superação de contextos
de “Justiça não distribuída” (undistributed Justice), provocados pela indi- QUESTÕES DE MÉTODO, CONVERGÊNCIAS E
ferença tanto em relação à vítima por parte do sistema de justiça criminal DIVERGÊNCIAS
quanto no que diz respeito à própria pesquisa científica. O desenvolvi-
mento da vitimologia corporativa poderá provocar mudanças sensíveis no
ambiente corporativo brasileiro, promovendo melhores práticas empresa-
rias e menos danos a quem é vulnerado pelo ambiente corporativo nocivo. Convergence: the idea at the heart of science, de Peter Watson, narra a
formação histórica dos campos de investigação científica. A convergência
Os fundamentos da propositura de um novo campo de pesquisa para combina identidades e performa integrações, rompe com as hierarquias,
as ciências criminais, além desta introdução, serão desenvolvidos em quatro unifica ideações em torno de novas práticas e promove sínteses históricas
capítulos analíticos, dispostos nesta tese de acordo com a estrutura seguin- definitivas em torno dos temas essenciais da humanidade. Vida, espaço,
te: Capítulo II, no qual se analisam as questões de método e se pronunciam tempo, sentido social, propósito, as leis da física e da consciência, são, cada
as convergências e as divergências entre os campos e mediações a serem qual em sua especificidade, flagrados pela fineza de observação, intuição
investigados; Capítulo III, em que se repõem as principais correntes teó- ou formação societária universal do cientista, dando-lhes movimento e
ricas da criminologia pós-clássica e, ao final, são organizados os elementos sensibilidade prática às ideias3. As divergências também ocupam aí um
performativos da criminologia corporativa; Capítulo IV – que recebe a papel decisivo, podendo inclusive exercer protagonismo no surgimento de
discussão dos pressupostos do conhecimento vitimológico; Capítulo V – o novos campos de investigação quando, ao lado das continuidades, impõem
qual, em caráter propositivo, articula os principais conceitos e tendências rupturas e apresentam os caminhos possíveis para a libertação concreta de
de aplicação prática da vitimologia corporativa; e, por fim, a Conclusão, individualidades frente a padrões universais abstratos.
na qual se consolida a síntese do referencial teórico proposto como novo
campo nas ciências criminais. Convergência não se confunde com colagens disciplinares. Na crimi-
nologia, como advertido por Sir Radzinowicz, “a fusão interdisciplinar pode
levar à confusão centrífuga”4. Tampouco se reduz à mentalidade classificatória
3. “Convergence is a history of modern science but with a distinctive twist. The twist has been there for
all to see, but so far it has not been set out as clearly as it deserves. The argument is that the various
disciplines – despite their very different beginnings, and apparent areas of interest – have in fact been
gradually coming together over the past 150 years. Converging and coalescing to identify one extra-
ordinary master narrative, one overwhelming interlocking coherent story: the history of the universe.
Among its achievements, the intimate connections between physics and chemistry have been discove-
red. The same goes for the links between quantum chemistry have been discovered. The same goes for
the links between quantum chemistry and molecular biology. Particle physics has been aligned with
astronomy and the early history of the evolving universe. Pediatrics has been enriched by the insights
of ethology; psychology has been aligned with physics, chemistry, and even with economics. Genetics
has been harmonized with linguistics, botany with archaelogy, climatology with myth – and so on and
so on. Big History – the maste or the trajectories of the world´s great civilizations – has been explained
and is being further fleshed out by the interlocking sciences. This is a simple insight but one with pro-
found consequences. Convergence is, as Nobel Prize-winning physicist Steven Weinberg has put it, ‘the
deepest thing about the universe’”, WATSON, Peter. Convergence: the idea at the heart of science. New
York: Simon&Schuster, 2016, p. xxii-xxiii.
4. “(...) from the growing complexity realization of the complexity of the phenomenon of crime, and of
the need to utilize the resources of several branches of knowledge, is that progress can be made only by
means of what is sometimes described as an interdisciplinary approach: a psychiatrist, a social psycho-
logist, a penologist, a lawyer, a statistician, joining together in a combined research operation. A closer
liaison, leading to a more productive exchange of views concerning methods and objectives, is needed.
18 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 2 – Questões de método, convergências e divergências 19

ou a mera sistematização dos conceitos. A convergência deve ser capaz de buscando encontrar mecanismos efetivos de desvitimização, redução dos
orientar empírica e normativamente uma nova unidade de conhecimento e danos e restauração do conflito vitimal.
promover formas estratégias de ação e movimento. Antes de se lançar à pesquisa quantitativa, há ainda muito espaço
Howard Becker, no que poderia ser considerada uma “obra de con- para se buscar a convergência e elaborar corpo teórico que se lance em
sagração”, Evidence, demonstra os caminhos científicos para a realização uma compreensão mais densa e profunda, baseada na revisão sistemática8.
das ciências sociais: data-evidence-idea, a partir dos quais se tem um ciclo A vitimologia corporativa toma por método de pesquisa a exploração das
dinâmico de interpendências e criação5. Na criminologia, destacam-se as possíveis convergências entre as áreas de interesse, buscando a formulação de
pesquisas baseadas em evidência (evidence based research) coordenadas por um novo campo de investigação teórica. Para alcançar modificações mais
Lawrence Sherman, liderando as pesquisas sobre a mensuração do dano e substanciais no conhecimento científico e buscar genuíno impacto na análise
da ofensa e a determinação do what works (o que funciona) na formulação dos processos de vitimização corporativa são necessárias, para além da mera
de políticas públicas, conferindo-lhes efetividade e legitimação6. Na cri- interdisciplinaridade, estratégias de pesquisa em vários níveis, desde o reco-
minologia corporativa, a fundamentação com base em evidências tem por nhecimento da insuficiência da racionalidade estritamente jurídica, passando
referências as revisões sistemáticas e colaborações científicas mais afeitas pelo domínio do conhecimento sobre os fundamentos da vitimologia, até
às ciências naturais, como a Cochrane Collaboration. Sally Simpson et al sólida compreensão da pesquisa social e criminológica, com ênfase nos novos
coordenaram a Campbell Collaboration on Corporate Crime e a Campbell avanços da criminologia corporativa.
Systematic Review, evidenciando a ausência de efeito intimidatório às cor- Além da desconsideração da cifra oculta9, há uma série de fragilida-
porações (corporate deterrence) em relação aos mecanismos sancionatórios des da quantificação em pesquisa que serão igualmente aperfeiçoados no
existentes7. A partir desta colaboração, tem-se por consolidada a falta de desenvolvimento da pesquisa: a interferência de critérios burocráticos na
evidência sobre a capacidade dos mecanismos usuais de controle social mensuração da criminalidade e na avaliação do desempenho da administra-
formal, lacuna que se reflete na porosidade conceitual e na necessidade de ção em seu gerenciamento; as negociações paralelas frequentes entre agressor,
revisão das formas de atuação do sistema de justiça criminal. A vitimologia vítima e poder público; bem como a desistência da vítima em levar seu caso
corporativa, assim o pensamos, poderia orientar uma nova colaboração, ao conhecimento dos poderes públicos, geralmente por desconfiança nas
instituições do sistema de justiça10. Adorno também identifica o problema da
There can be no doubt that a particular project of research undertaken by a penologist, for instance, “memória da vítima” como obstáculo da pesquisa vitimológica11. As escassas
could gain in richness and depth if some parts of it could be reviewed by a social psychologist. But I
cannot help thinking that, except in very rare instances indeed, an inquiry embracing several disciplines pesquisas empírico-qualitativas encontradas serão revisadas, neste momento
from the start, and depending on the coordination of their individual methods and distinctive terminolo-
gies, would carry the seeds of its own failure and would inevitably fall apart into as many undertakings. da pesquisa, apenas como fonte de exploração de processos de vitimização e
This interdisciplinary fusion breeds centrifugal confusion. Yet at the conceptional and consultative stage
it undoubtedly contains great advantages”. RADZINOWICZ, Sir Leon. Adventures in Criminology. proteção das vítimas de contextos de violência corporativa.
Routledge: London, 1999, p. 451.
5. BECKER, Howard. Evidence. Chicago: Chicago Press, 2017, p. 5 e 23. A convergência possível entre os fundamentos da vitimologia e os novos
6. SHERMAN, Lawrence. “The rise of evidence-based policing: targeting, testing, and tracking”. Crime desenvolvimentos da criminologia corporativa será utilizada para consolidar
and Justice, 42/2013, p. 377-451; SHERMAN, Lawrence et al. “The Cambridge Crime Harm Index:
measuring total harm from crime based on sentencing guidelines”. Policing: a Journal of Policy and
Practice, 10/2016, p. 171 – 183.
8. CHALMERS, Iain. “Trying to do more good than harm in policy and practice: the role of rigorous,
7. SIMPSON, Sally et al. Corporate crime deterrence: a systematic review. Campbell Systematic Re- transparente, up-to-date evaluations. The ANNALS of the American Academy of Political and Social
views, 2014, 105 p. The Campbell Collaboration on Corporate Crime: Laws and Regulations have only Science, 589/2003, p. 22-40; HAMMERSLEY, Martyn. “Is the evidence-based practice movement
small effects on corporations: “This Campbell systematic review examines the effects of interventions doing more good than harm? Reflections on Iain Chalmer´s Case for Research-Based Policy Making
to deter corporate crime. The review examines the effectiveness of formal legal and administrative stra- and Practice”. Evidence&Policy, 1/2005, p. 85-100.
tegies to lower the risk of non-compliance. The authors summarized 106 studies, and the interventions
are grouped into six intervention categories, each with sub-categories. The intervention groups are: (1) 9. ANTILLA, I. “The criminological significance of unregistered criminality”. Excerpta Criminologica,
laws, (2) punitive sanctions (e.g. arrest, fines, or a likelihood of prosecution), (3) non-punitive actions 4/1964, p. 411-415
by regulatory agencies (e.g. cease and desist orders) (4) regulatory policies (e.g. company inspections), 10. ADORNO, Sérgio. “Insegurança versus direitos humanos: entre a lei e a ordem”. Tempo Social, Revista
(5) other sanctions, and (6) multiple treatments”; especializando a discussão do método, BRAITHWA- de Sociologia da USP, 11/1999, p. 136.
ITE, John. “In search of Donald Campbell: mix and multi-methods”. Criminology & Public Policy, 11. ADORNO, Sérgio. “Conflitualidade e violência: reflexões sobre a anomia na contemporaneidade”.
15/2016, p. 417-437. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, 10/1998, p. 30.
20 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 2 – Questões de método, convergências e divergências 21

o referencial teórico da vitimologia corporativa, melhor evidenciado em 4) apropriação do aprendizado para a determinação da criminologia corpo-
termos de quem é a vítima corporativa e em que medida é vitimizada, es- rativa; e, por fim, 5) extração das consequências teóricas para a propositura
tratégia válida não apenas para desenvolver um novo e promissor campo do de uma vitimologia corporativa.
conhecimento em ciências criminais, mas também para colocar em questão o A inversão do método na criminologia, transladando da criminali-
modelo regulatório sedimentado na literatura sobre a criminalidade corpora- dade de rua para a criminalidade dos criminosos, repercute fortemente no
tiva (corporate crime). Especificamente em relação à delimitação do conceito campo do julgamento moral. Por que um assaltante merece maior repro-
de vitimologia corporativa, os resultados observados da convergência entre vação ética de seu comportamento do que uma multinacional que sonega
vitimologia e criminologia corporativa serão trabalhados em conceitos ana- ou lava fortunas, devassa ecossistemas inteiros ou sustenta a escravidão
líticos, sedimentando cada um dos níveis em que se especificam os processos moderna? Por que a criminalidade corporativa não é sentida pelas pessoas?
de vitimização e a incidência, em escala, do comportamento corporativo Por que há relativamente tão pouco ressentimento quando uma empre-
socialmente danoso (corporate harmful wrongdoing)12. A mediação das teses sa local é vulnerada por uma multinacional? A criminalidade corporativa
de ética negocial, sobretudo a teoria dos stakeholders, além da crítica à agres- afeta o estereótipo de que indivíduos privilegiados ostentam respeito e
sividade do valor dos shareholders, deve oferecer capacidade de avaliação de obediência ao ordenamento jurídico, o reforço aos padrões morais vigentes
efetividade e orientação de comportamento prossocial13. seria quase como uma contra-identidade da estigmatização. As demandas
No plano das teses criminológicas, a convergência entre a criminalidade sociais pela exasperação das penas em relação aos criminosos tradicionais
tradicional ou criminalidade de rua – os street crimes – e a criminalidade dos convivem, ambiguamente, com regimes regulatórios bastante flexíveis e de
podersosos – white-collar crime – ocupará grande parte dos estudos14. Serão certa forma indiferentes à vitimização corporativa (corporate victimhood). É
buscadas as justaposições entre as áreas e a lacuna em relação ao papel das em- intrigante que o verdadeiro protagonismo das corporações e a ascensão da
presas e da responsabilidade penal empresarial. Curiosamente, haverá certa violência corporativa não sejam acompanhados por um correlato aumento
tônica nas oposições científicas que por muito tempo isolaram os modelos dos crimes corporativos sendo investigados e julgados. Causa indignação
explanatórios do comportamento socialmente danoso e o gerenciamento da moral o deletério esquecimento das vítimas.
reação do sistema de justiça criminal. Os elementos de uma criminologia A ausência de uma vitimologia corporativa obstrui o conhecimento de
corporativa extraídos deste primeiro nível de convergências serão levados às quem é vitimizado pelo comportamento corporativo socialmente danoso.
justaposições possíveis com a vitimologia. Há pouco mais de um século, tem-se discutido a responsabilidade penal
A estratégia de produção deste livro volta-se a identificar os aprendi- corporativa sem o devido escalonamento deste conceito bastante elementar,
zados históricos que a criminologia e, mais especificamente, a criminologia minando sua consistência sistemática e o convencimento sobre sua funda-
corporativa, podem informar à consolidação de uma vitimologia corporativa. mentação moral: quanta vitimização há, quais são definitivamente as pessoas
Daí porque o encadeamento lógico na busca das convergências e divergências que se encontram em risco, quem e sob quais circunstâncias é lesionado? Há
tomará por base o roteiro seguinte: 1) análise da formação do pensamento uma necessidade disciplinar de explicações mais substanciais para redescobrir
criminológico; 2) desdobramentos da corrente teórica em análise; 3) identi- a natureza da vítima, trazendo percepções mais acuradas, dando voz a quem
ficação dos elementos próprios da vitimologia formulados por essa corrente; é lesado e busca medidas legítimas de pronta resposta (rapid response).
A teoria da vitimologia corporativa, portanto, é a síntese destas conver-
12. HAWKINS, J. David et al. “Taking effective crime prevention to scale”. LOEBER, Ralf; WELSH,
Brandon (org) The future of criminology. New York: Oxford Press, 2012, p. 178 e ss. gências e das divergências identificadas ao longo do itinerário de pesquisa.
13. De forma incidente, alguns estudos chegaram a buscar a convergência entre criminologia e ética ne-
gocial, porém voltados à compreensão do comportamento desviante, SZWAJKOWSKI, Eugene. “Or- Desde esta opção de método, uma perspectiva mais abrangente do novo
ganizational Illegality: theoretical integration and illustrative application”. Academy of Management campo de pesquisa proposto neste livro também deveria se ocupar de explo-
Review, 10/1985, 558-567.
14. BROWN, Darryl. “Street crime, corporate crime, and the contingency of criminal liability”. University rações sobre as oposições científicas entre os modelos explanatórios da causa
of Pennsylvania Law Review, 149/2001, p. 1296 e ss.
22 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 2 – Questões de método, convergências e divergências 23

do crime (crime causation) e dos processos de vitimização e estendê-las, não consequências morais, emocionais e sociais permanecem no mais das vezes
apenas no que há de sintonia, mas também dissonâncias. ignoradas. O silêncio em relação a quem é efetivamente lesado evidencia
uma indiferença moral em relação aos processos de vitimização, gerando
O referencial criminológico norte-americano é mais acentuado neste
um descolamento entre o ofensor e a vítima. Precisamente esta divergência
livro, sob particular influência das ideias de William Laufer. Paralelamente
merece ser explorada no âmbito corporativo.
à determinação desta tradição (no campo da criminologia, noções fundan-
tes do fato social, controle social, associação diferencial, sociologia da urbe Desde a perspectiva criminológica, esta divergência se permite
e teorias reativas; na vitimologia, dos movimentos iniciais de blaming the observar mais claramente nos estudos sobre o genocídio, um capítulo
victim aos movimentos de proteção, passando técnicas de mensuração; na esquecido na história do pensamento criminológico. William Laufer, com
ética negocial, ênfase na teoria dos stakeholders e regulação responsiva), elevada sensibilidade científica, dedica às vítimas do genocídio o apelo
o referencial europeu (especialmente em relação às diretivas europeias, à mobilização dos criminológos neste campo, em crítica ao “incrível
que podem repercutir entre nós como modelo jurídico) e também o la- poder de recusa coletiva (collective denial)”, merecendo a atenção da “ima-
tino-americano surgirão de forma incidente, na medida em que auxiliam ginação criminológica” (criminological imagination)16. É simplesmente
a compreensão do novo campo de investigação e possam dizer respeito desafiador o estudo do dano produzido pelas atrocidades contra a huma-
ao desenvolvimento das ciências criminais no Brasil. A maior parte dos nidade, porém, muito pior do que a falta de imaginação criminológica
desenvolvimentos da teoria criminológica esteve concentrada nas pesqui- é a indiferença que penetra a consciência coletiva e reduz a tragédia ao
sas tradicionais sobre formação da delinquência juvenil, além de algumas banal, normal. A divergência entre o estudo criminológico e a apreensão
reflexões surgidas no âmbito da pesquisa carcerária, a qual também se do sentido da vitimização retira a indignação moral e a responsabilidade
revelou um extraordinário campo de reflexões sobre as interações huma- sobre o grande negócio do genocídio. Para além da simples necessidade de
nas. A verdade é que a criminologia de matriz norte-americana, e com ela reparação, a divergência obstrui os processos de aprendizado histórico e a
também a vitimologia, é bem pouco explorada no contexto brasileiro15. Isso formação de uma memória geracional. A perda do senso de vitimização,
talvez justifique o caráter mais descritivo e, em grande medida introdutório, em última instância, poderia até fundamentar uma cumplicidade disci-
buscando familiarizar aqueles que se espera estejam envolvidos em futu- plinar com regimes autoritários, com a agressividade e a mais reprovável
ros desdobramentos no campo da vitimologia corporativa, demonstrando redução do outro a objeto sem dignidade.
como estudos empíricos poderiam impactar no sistema de justiça criminal No debate sobre as tragédias humanas e naturais, a literatura cien-
e nas formas de inclusão da vítima no âmbito corporativo. tífica na área segue basicamente limitada ao estudo do dano ambiental.
O contraste entre a capacidade de detecção e apuração sobre as infra- Mesmo assim, não há avanço significativo na concepção do comporta-
ções ocorridas e o grau de afetação das pessoas e da sociedade no âmbito mento socialmente danoso e de quem é efetivamente lesado, reduzindo-se
corporativo é de fato marcante. O nível de consciência e a percepção pú- a avaliações de impacto episódicas. As pesquisas normalmente não são
blica sobre os escândalos corporativos aumentam em escala crescente. A fundamentadas em estudo etnográfico mais sério, orientadas à discussão do
cada nova investigação deflagrada, a informação adquire profusão instan- desastre ambiental (dano ecológico, ameaças ambientais à saúde humana,
tânea real time nos veículos de comunicação. No entanto, as deletérias insustentabilidade, ou intergenerational non-equity)17. Menos imaginação
ainda tem as medidas reparatórias, na maioria das vezes profiláticas e sem
15. PFOHL, Stephen. Images of deviance and social control: a sociological history. New York: McGraw- demonstrar com indicadores precisos como os benefícios da reparação são
-Hill, 1994, 528 p., em que se critica que os os criminólogos do “terceiro mundo” são submetidos a ter
noção da criminologia do “primeiro mundo” porque faz parte do “aparato da colonização”. Para refe- compartilhados com as comunidades. Este abuso de poder econômico nas
rências latino-americanas e nacionais: DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia. Rio
de Janeiro: Revan, 2004, 328 p.; Alvino Augusto de Sá, na caracterização do “cenário do crime”, aponta
duas particularidades mais acentuadamente relacionadas à dinâmica do crime e da criminalidade nos 16. LAUFER, William. “The forgotten criminology of genocide”. LAUFER, William; ADLER, Freda (org)
países periféricos: a exclusão social (ou inclusão perversa) e a condição de vulnerabilidade, SÁ, Alvino The criminology of criminal law. New Brunswick: Transaction, 2013, p. 76.
Augusto. Criminologia clínica e execução penal. São Paulo: Tese-USP, 2010, p. 486 e ss. 17. WHITE, Rob. Environmental harm: an eco-justice perspective. Bristol: University of Bristol, 2013, p. 43.
24 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 2 – Questões de método, convergências e divergências 25

corporações reflete-se necessariamente em abuso de confiança pública. de século foram e estão sendo reduzidas em sua subjetividade, prostradas e
A mais contundente divergência pode ser evidenciada na capacidade abusadas pelo comportamento corporativo socialmente danoso.
adstringida do controle social dos negócios no Brasil. É frustrante que O lado humano evidencia anos de vidas perdidas. Mais do que mo-
a responsabilidade penal empresarial esteja limitada a delitos ambien- ralmente injustificável, é moralmente reprovável. As corporações afetam
tais, e é ainda mais frustrante que as poucas consequências daí advindas sensivelmente a vida comunitária, submetendo-as à subordinação por uma
cheguem a ser tão inexpressivas. A pesquisa científica está simplesmente série de efeitos disruptivos. Mensurar o dano no nível comunitário é mais
perdendo a oportunidade de acoplar a responsabilidade penal empresarial complexo do que simplesmente agregar consequências colaterais às infrações
ao comportamento corporativo socialmente danoso, reservando o siste- econômicas. Há uma “dinâmica social” que agrava e aumenta as consequên-
ma de justiça criminal para as infrações comprovadamente mais sérias e cias negativas aos indivíduos quando ela tem origem e retorna a um contexto
recomendando formas menos ostensivas de controle social formal para o corporativo específico, afetado por esquemas fraudulentos e de corrupção.
comportamento socialmente tolerável. Parece então que há mesmo muito Há um impacto cumulativo da tensão nas múltiplas redes sociais formadas
espaço ainda inexplorado para avaliar o impacto causado pela violência na comunidade (straining multiple social networks) que, assim como os crimi-
corporativa na personalidade, no desenvolvimento moral, nos danos e nólogos tem observado desde as “fundações da teoria social” (J. Coleman),
custos sociais da criminalidade, percepções da violência e seriedade do impende a formação do capital social (capacidade de indivíduos e grupos em
comportamento corporativo socialmente danoso, saúde, pobreza e de- atingir determinados objetivos em conexão com outros).
senvolvimento socioeconômico. No coração da corrupção e dos esquemas corporativos fraudu-
O desenvolvimento de um novo campo de pesquisa poderia trazer lentos estão as conexões com outros gravemente afetados pela falta de
não apenas uma nova perspectiva científica sobre o que funciona (what importante suporte econômico e social. Todas estas tensões financeiras e
works), mas sim em relação ao que realmente interessa (what really matters). emocionais são traduzidas em um cotidiano de vidas humanas perdidas,
A criminologia corporativa poderia estar compromissada em endereçar uma perda de auto-estima e – ao final – falta de legitimação das instituições.
mensagem mais significativa e mais poderosa contra as injustiças sociais O efeito disruptivo é a erosão da confiança, que dá às pessoas menos
resultantes do comportamento corporativo socialmente danoso, concebidas stake no comportamento em conformidade e faz das vítimas relutantes
não apenas em termos de “modelos”, “princípios”, “valores”, ou qualquer em recorrer à ajuda do sistema de justiça criminal, na maioria das vezes
outra dimensão ontológico-existencial, mas sim desde um senso essencial- deixando-as, senão mais vulneráveis, sem alternativas de reconhecimento,
mente prático: extrair dos processos de vitimização possibilidades de ação inclusão e reparação. No entanto, as ciências criminais ainda estão bem
estratégica para uma reação realista. O emprego do direito penal econômi- longe de desenvolver uma métrica para isso.
co com a finalidade de oferecer às vítimas real capacidade de reconstruir
a confiança, o cuidado e o perdão, amparados por evidências científicas.
A principiar pelo questionamento retórico “as vítimas estão obriga-
das a perdoar?”, a compreensão do merecimento justo da punição poderia
oferecer uma oportunidade um pouco mais genuína de perdão. Esta é a
moldura para se estabelecer quanta intervenção punitiva é mais ou menos
necessária. O direito penal econômico simplesmente perde tanto tempo
somando stakes aos stakeholders, buscando bodes expiatórios no âmbito
das corporações e obcecado pelas falhas de gatekeeers, que simplesmente
negligencia o conhecimento sobre quem é lesado, como as pessoas ao longo
Capítulo 3
FUNDAMENTOS DA PESQUISA CRIMINOLÓGICA

A pesquisa teórica em criminologia divide-se em dois campos prin-


cipais: os modelos explanatórios e os normativos. As explanações teóricas
se concentraram até agora em categorizar o crime a partir das noções de
auto-controle, teoria geral do conflito, anomia e aprendizagem social, ou
ainda, colocando à frente a perspectiva do conflito, a reação social, buscan-
do demonstrar as causas e as consequências do crime e da criminalidade.
Os modelos normativos, por sua vez, oferecem recomendações de ações
estratégicas, elaborando diretrizes e prescrições de conduta que veiculam
determinadas finalidades políticas ou preferências valorativas, que podem
ser mais ou menos alinhadas às perspectivas da autonomia individual ou
de solidariedade comunitária.
Em um ou em outro caso, a análise teórica deve levar em considera-
ção os testes empíricos, as revisões ou recensões (reviews) e as críticas que
são elaboradas a cada um dos trabalhos. É assim que se revelam os novos
desenvolvimentos, são testadas novas hipóteses, experimentadas novas es-
tratégias de controle social. O pensamento criminológico é decorrente
desta constante evolução e interrelação entre as matrizes teóricas que ex-
plicam o comportamento humano socialmente desviante, submetidas à
verificação empírica contínua.
A pesquisa criminológica, desde os estudos anômicos até os reativos,
foi tratando de consolidar as interações entre indivíduo e sociedade, media-
das pelo Estado e pela construção social do crime e da criminalidade. Este
referencial teórico, nos últimos três anos de intensificação da globalização
econômica e elevada diferenciação da sociedade moderna, repercute sensi-
velmente nas manifestações do crime e da criminalidade. É nesse contexto
em que irrompem, por exemplo, a transnacionalidade do crime e com ela
os emergentes estudos interculturais (cross cultural studies). A partir daí as
corporações passam a ser consideradas como importante objeto de interesse
da pesquisa criminológica.
28 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 29

3.1. OS FUNDAMENTOS DA ANOMIA EM ÉMILE para a orgânica) 21. Tanto mais integrada a sociedade, mais absoluta a
DURKHEIM E ROBERT MERTON coesão e o poder de universalizar a identidade normativa da sociedade22.
É assim que o controle social se reveste de normalidade, variando apenas
Embora a interpretação funcional de Émile Durkheim tenha exercido
os níveis de encarceramento a depender da seriedade da ruptura das
ampla influência na formação do pensamento criminológico, seu potencial
tramas de solidariedade.
explanatório tem sido pouco explorado na criminologia brasileira. A vítima
também encontra ressonância na sociologia durkheimiana, especialmente O crime, conceitualmente, remonta a (uma bem definida) consciên-
porque o processo de vitimização diz respeito, antes de tudo, às tramas de cia coletiva. O conceito de crime como “normal” – assim como nas Regras
solidariedade e à coesão social. do método sociológico, como fator de saúde pública, reportaria também à
noção de que seria “funcional” manter a ordem social, exercendo o crime
Desde que Durkheim promoveu a ruptura com o paradigma bio-
um importante papel no controle da estabilidade social e na afirmação
lógico, floresceu a “imaginação sociológica” (sociological imagination)18 e
positiva do universo de representações coletivas. A reação do grupo ou
com ela a explicação do crime como um fenômeno social. A partir daí é
comunidade é induzida pelo comportamento desviante, determinando os
que foram possíveis todas as demais variantes explanatórias da criminolo-
sentimentos coletivos e reforçando as percepções de imperativos morais
gia: teoria do controle social, teoria da tensão, teoria do comportamento
e integração mais ou menos coesa da comunidade. Quer dizer, segundo
desviante cultural, associação diferencial, teoria da aprendizagem social,
a interpretação funcional de Durkheim, o crime desempenha, antes de
desenvolvimental, e, em maior ou medida também tributárias às fontes
tudo, uma função social23 e não é por outra razão que nas Regras do método
originárias de Durkheim, as teorias do conflito, especialmente etiqueta-
sociológico é definido como “antecipação da moral futura, um encaminha-
mento e reação social19. O ponto de contato talvez mais imediato entre
mento para o mundo do futuro!”24. O funcional é o que é necessário para o
a interpretação funcional do fato social e o crime pode ter sido a solução
bem-estar da sociedade e o que lhe permite diferenciar entre o aceitável e o
de Durkheim à questão hobbesiana da ordem. Fundamentalmente, a
inaceitável, tolerável e intolerável, normal e patológico25. Questionamentos
consciência coletiva regula a moralidade para assegurar o controle social,
empíricos poderiam dar maior concretude à noção de consciência coletiva,
o qual, se não é consistente o bastante, cede espaço para o comportamen-
to desviante e, por conseguinte, à configuração da anomia. Assim como 21. DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 29 e ss.
22. São muitas afinidades entre a interpretação funcional de Durkheim e a filosofia hegeliana, GANGAS,
Weber divide a sociedade em tipologia racional e irracional20, Durkheim Spiros. “Social ethics and logic: rethinking Durkheim through Hegel”. Journal of Classical Sociology.
7/2007, p. 315-338; CARRÉ, Louis. “Die Sozialpathologien der Moderne: Hegel und Durkheim im
a divide em sociedade em solidariedade mecânica e orgânica. A divisão do Vergleich”. Hegel Jahrbuch, 2013, p. 312-317.
trabalho na sociedade leva ao aumento da especialização e diferenciação 23. A leitura funcional de que o comportamento desviante em regra serve à integração da comunidade, per-
formando uma noção coletiva de indignação moral ao crime, foi preenchida, por assim, por instigante
de papéis, mas também aumenta a integração das unidades na diferença exploração histórica do puritanismo do século XVII, em Massachusetts, a mesma moralidade que teria
levado ao célebre “julgamento das Bruxas de Salem”, ERIKSON, Kai. Wayward puritans: a study in
e atualiza a adaptação da sociedade (evolução da sociedade pré-industrial the sociology of deviance. London: John Wiley and Sons, 1966, 228 p.; em crítica à “função social do
crime” de integração da sociedade, Bob Roshier observa que a função essencial do crime não é definir e
manter os moral boundaries of the society: “The fallacy in this argument, and in other similar versions,
18. MILLS, C. Wright. The sociological imagination. New York: Oxford Press, 1959, p. 6 e ss. is that it confuses the functions of crime with the functions of social control. It is social control, in
19. “Durkheim, of course, most explicitly took up the question of crime and punishment. But he reversed sanctioning some forms of behavior and not others, that defines the normative contours of society. The
the conventional analytic logic, explaining the former in terms of (social ‘needs’ for) the latter. In this criminal acts contribute themselves nothing to this process since they do not exist as criminal acts un-
view, he presaged the development of the labeling school in criminology and deviancy in the 1960s, and less they have been defined as such by official defining and sanctioning agencies”. “(…) Social control
illuminated a host of important questions in the study of crime. For example, the differential treatment performs the function of defining those acts that are deemed to be harmful to the society”, ROSHIER,
at law of white-collar and conventional crimes may register the effect of a complex of social sentiments Bob. Controlling crime: the classical perspective in criminology. Chicago: Lyceum, 1989, pp. 52-53.
having less to do with objective criminal harm than is often thought”, YEAGER, Peter. “Law, crime, and Conclui em seguida (p. 130) que: “crime is a shifting, situational and precarious human construct. (…)
inequality: the Regulatory State”. HAGAN, John et al (org) Crime and inequality. Stanford: Stanford The most important aim of the postclassical perspective is to relocate the issue of crime and its control
University Press, 1995, p. 248-249. into the social, political and economic context in which it belongs”.
20. Desperta a curiosidade a recepção de um certo senso comum weberiano sobre a máquina partidária e a 24. DURKHEIM, Emile. Regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 86.
organização burocrática na sociologia norte-americana e recepcionada pelo pensamento criminológico, 25. Marcuse desafia a oposição mecânica entre normal e patológico, a partir da reflexão sobre o próprio
a qual é interpretada, na maioria das vezes, como organização racional instrumentalizada por interesses referencial ético de observação que permitiria diferenciar as duas dimensões, quer dizer, abrindo espaço
autocráticos, MERTON, Robert. Social theory and social structure. Glencoe: The Free Press, 1957, p. para questionamentos sobre o que de fato significaria ser um “indivíduo normal” em uma “sociedade
125; SYKES, Gresham. Society of captives: a study of a maximum security prison. Princeton: Princeton patológica”, MARCUSE, Herbert. Agresividad en la sociedad industrial avanzada y otros ensayos.
Press, 1958, 51 p. Madrid: Alianza, 1971, p. 3 e ss.
30 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 31

às formas de sua internalização e às combinações possíveis de controles, Em Robert Merton, cânone da sociologia norte-americana, o conceito
normas sociais e evidências empíricas de sua funcionalidade26. de anomia ganhou especialização. À diferença de Durkheim, o conceito de
No entanto, o conceito de anomia formulado originariamente n´O anomia é deduzido da forma como determinadas estruturas sociais exercem
Suicídio27, ou a “doença da aspiração infinita”, é o que move o auto-interesse pressão sobre determinados indivíduos na sociedade, levando-os à desinte-
e reduz as normas sociais à forma egocêntrica pura. A ausência de normas gração31. O que faz Merton, na verdade, é criticar a cultura da competição,
(normlessness) forçada pela redução anômica resulta em dissociação social dos do egoísmo racional e da ênfase exagerada no sucesso. Ao atrelar a anomia
indivíduos e sucessão de atitudes anômicas negativas, falta de atitude, ou não- às estruturas sociais, Merton promove vigorosa crítica ao próprio sistema
-atitude, no sentido de que certas normas simplesmente não tem mais lugar capitalista dos EUA. É desta forma que se torna possível compreender como
(absent), e, portanto, destituídas do potencial de estabelecer vínculos. Os são produzidos tensão e stress intensivos na população, distanciando as metas
contextos de anomia também são conhecidos pela falta de institucionalismo sociais de American dream das restrições materiais severas que obstruem a
societário (societal institutionalism) e diluição do referencial de internalização obtenção dos meios. Esta chave metodológica, que acomoda a interpretação
de comportamentos. Por isso é que, sem referencial normativo, os indivíduos funcional nas estruturas sociais, permite explicações sociológicas do crime
anômicos ostentam maior propensão ao comportamento desviante. mais afeitas aos limites impostos pelas metas culturais e as condições mate-
riais escassas para alcançá-los32. Desta forma é que se explica por que razão
Steven Lukes e Andrew Scull, nos comentários Durkheim and the os indivíduos anômicos são mais propensos ao comportamento desviante. A
Law, identificaram que a “solução”28 residiria na compreensão do direito, quebra no sistema normativo e a desintegração dos indivíduos não decorrem
simultaneamente, como reflexo e instrumento da regulação de compor- exclusivamente da dissociação moral, mas de concretas estruturas sociais que
tamentos, desde a condição de “indicador externo” das transformações a oportunizam e o problema da regulação de comportamentos e controle
da solidariedade orgânica, sendo esta a rationale para a regulação da vida social passa a ser o de compreender as condições macrossociais específicas
em sociedade. Cumpre à teoria sociológica observar as determinantes da das instituições que funcionam ou deixam de funcionar. Não se interpre-
fundamentação moral das formas jurídicas modernas e estabelecer os pa- ta a anomia sem a devida compreensão das fontes materiais estruturais do
râmetros de adequação ou perturbação do comportamento na sociedade29. comportamento anômico, desigualdade de oportunidade, enorme pressão
Lukes e Scull também identificam a centralidade do conceito de anomia social pela internalização de valores culturais universais e da própria anomia
para a interpretação funcional e preenchimento moral do crime, uma vez
que as noções de solidariedade orgânica e moralidade acarretariam uma
re that punishment proper existed is thus reduced to the establishment of a court of law. In whatever
contradição lógica em Durkheim30. what this was constituted, wheteher it comprised the people as a whole or only an elite, whether or not
it followed a regular procedure both in investigating the case and in applying the punishment, by the
mere fact that the offence, instead of being judged by an individual, was submitted for consideration to
26. GARLAND, David. Punishment and modern society. Oxford: Oxford Press, 1990, p. 23 e ss. a properly constituted body and that the reaction of society was expressed through the intermediary of a
27. DURKHEIM, Émile. O suicídio: estudo sociológico. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 188 e ss.; ARON, well-defined organism, it ceased to be diffuse: it was organized. The organization might have been more
Raymond. Les étapes de la pensée sociologique. Saint-Amand: Galimard, 1967, p. 330-345. complete, but henceforth it existed. Thus punishment constitutes essentially a reaction of passionate
28. “The remedy (…) lay in legal reforms: in regulating contracts to render them more just; and in the deve- feeling, graduated in intensity, which society exerts through the mediation of an organized body over
lopment of secondary occupational associations, composed of workers and employers, with their own those of its members who have violated certain rules of conduct”, LUKES, Steven; SCULL, Andrew.
means of normative self-regulation. These would mediate between the individual and an interventionist Durkheim and the Law… cit., p. 112.
state, which had a special responsibility to impose rules of justice on economic exchanges, to ensure that 31. MERTON, Robert. Social theory and social structure… cit., p.132.
‘each is treated as he deserves, that he is freed of all unjust and humiliating dependence, that he is joined 32. Com base na escala “metas culturais” em função de “meios institucionais” para alcançá-los, Merton
to his fellows and to the group without abandoning his personality to them”, LUKES, Steven; SCULL, elaborou esquemas analíticos que explicam a pressão exercida pelas estruturas sociais na produção
Andrew. Durkheim and the Law. 2. ed. London: Palgrave, 2013, p. 2. de anomia e comportamento desviante: i. tipologia de adaptação individual (1. conformidade, 2.
29. Lukes e Scull seguem aqui Cotterrell, outro importante comentador de Durkheim: “(...) symbolize social inovação, 3. ritualismo, 4. retração, 5. rebelião) e ii. formas de comportamento desviante conforme
unity and create for modern complex societies a moral framework in which regulation is effective, and indicadores anomia (1. inovação; 2. novos descobrimentos da teoria, 3. ritualismo, 4. retração,
the regulated are able, in some way, to participate as moral actors in a solidary society which is more 5. rebelião). Os indicadores de anomia, atendendo tanto à dimensão subjetiva da anomia, quanto
than an economic free for all”, COTTERRELL, Roger. “The durkheimian tradition in the sociology of com base nas condições objetivas de determinado grupo social, seriam: 1. percepção de que as
law”. Law and Society Review, 25/1991, p. 923 e ss. lideranças na comunidade seriam indiferentes das necessidades sociais, 2. percepção de que pouco
30. O que acontece, na verdade, é que Lukes e Scull não conseguem combinar cooperação e coerção, ao pode ser realizado na sociedade, ou porque imprevisível bem porque desordenada; 3. percepção de
pensar que a solidariedade seria cooperativa, recíproca e restitutiva, dispensando a retribuição punitiva: que o propósito de vida mais se frustram do que se realizam; 4. senso de futilidade, 5. convicção
“So it is not the regulation of punishment that constitutes the distinctive organization of this kind of re- de desamparo frente ao suporte psicológico e social, MERTON, Robert. Social theory and social
pression. Nor is it the institution of a criminal procedure. (...) The only organization met with everywhe- structure… cit., p. 139 e ss.; 164; 176 e ss.
32 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 33

institucional33. Tomando por base a revisão do conceito de anomia proposta No que diz respeito ao pensamento vitimológico, Armando Sapona-
por Merton, há enorme ganho na compreensão das causas do crime, dos me- ro, de forma bastante criativa, concebe a vitimologia como uma sociologia
canismos sociais e desarranjos institucionais que levam à erosão das normas da vítima38. A avaliação moral da violação das normas sociais e o sistema
sociais e que dão centralidade às “estruturas legítimas de oportunidade”34. de sanções que lhe é correlato correspondem à noção de “responsabilidade
A criminologia incorporou a anomia e levou adiante a exploração de compartilhada” (shared responsibility) e comportamento desviante da vítima
seu potencial explicativo. Richard Cloward e Lloyd Ohlin expandiram a (victim deviance). Identificam-se aí os mesmos conceitos empregados por
noção mertoniana de anomia. Cloward e Ohlin propõem uma revisão na Durkheim: comportamento arriscado, violação de normas sociais de dili-
relação entre as metas culturais e os meios para atingi-las, a “teoria da opor- gência e cuidado, coesão moral do grupo, solidariedade, todos “impõem
tunidade diferencial”, sugerindo novas relações possíveis entre metas culturais o imperativo moral de prevenir e não contribuir ou ainda provocar uma
e meios institucionais para se atingi-las, no que convencionaram como acesso conduta ilícita. Um é expressão do outro”39.
a oportunidades ilegítimas (gaining access to illegitimate opportunities), tanto As ações da vítima constituem um fato amoral, sujeito ao enviesa-
mais intensas quanto se aumenta a pressão e se acumulam frustrações nas mento (biased) e reação social – , mas não isoladamente, sempre em relação
classes mais baixas35. Freda Adler cunhou a expressão “sinomia”, em oposição recíproca com outro ator social, o ofensor. Saponaro identifica a mesma
ao conceito tradicional de anomia e à promoção da “obsessão pelo crime” na semelhança da elaboração funcional dos conceitos em Durkheim e no
sociedade norte-americana, revelando configurações sociais mais propensas pensamento vitimológico de Schaefer. A partir do conceito de “responsa-
à conformidade, coesão, controle social intacto e integração normativa36. bilidade funcional” (functional responsibility), manteve direta interlocução
Richard Rosenfeld e Steven Messner exploram as expressões concretas do com o funcionalismo de Durkheim – e, em menor medida, também Par-
American dream e seus reflexos no “equilíbrio de poder institucional”, pro- sons – , enaltecendo seu lugar neste modelo, uma vez que os processos de
duzidos pela interface entre os elementos culturais básicos da competição e vitimização também expressam a coesão social.
os arranjos institucionais que difundem a anomia, fragilidade do controle Deborah Cohen investigou os impactos da anomia na cultura orga-
social e altos índices de criminalidade37. nizacional e na ética negocial. Anomia pode muito bem explicar porque
33. MERTON, Robert. Social theory and social structure… cit., p. 131-194. empregados cometem crimes impulsionados pela falta de confiança no am-
34. “Opportunity structure designates the scale and distribution of conditions that provide various probabi- biente organizacional, sacrifício de interesses individuais, estagnação frente
lities for acting individuals and groups to achieve specifiable outcomes”, MERTON, Robert. “Opportu-
nity structure: the emergence, diffusion, and differentiation of a sociological concept”. ADLER, Freda; às imposições dos superiores hierárquicos, deterioração de valores na orga-
LAUFER, William (org) The legacy of anomie theory. New Brunswick: Transaction, 2000, p. 25.
35. “The disparity between what lower-class youth are led to want and what is actually available to them is nização, gerando maior propensão ao comportamento antisocial. D. Cohen
the source of a major problem of adjustment. Adolescents who form delinquent subcultures, we suggest,
have internalized an emphasis upon conventional goals. Faced with limitations on legitimate avenues of reconhece o diálogo com a psicologia construtivista (Lawrence Kohlberg)
access to these goals, and unable to revise theis aspirations downward, they experience intense frustra- e o fato de que as organizações inibem o desenvolvimento de habilidade
tions; the exploration of nonconformist alternatives may be the result”, CLOWARD, Richard; OHLIN,
Lloyd. Delinquency and opportunity: a theory of delinquent gangs. London: Routledge, 1960, p. 86.
CLOWARD, Richard. “Illegitimate means, anomie and deviant behavior”. American Sociological Re-
e reduzem a possibilidade de juízos morais prossociais. Esta seria a causa
view, 24/1959, p. 164-176.
36. ADLER, Freda. “Synnomie to Anomie: a macrosociological formulation”. ADLER, Freda; LAUFER, and social conditions – indeed, from the American dream itself”, ROSENFELD, Richard; MESSNER,
William (org) The legacy of anomie theory. New Brunswick: Transaction, 2000, p. 272. Evidências Steven. “Crime and the American Dream: an institutional analysis”. ADLER, Freda; LAUFER, William
empíricas sobre o conceito de sinomia foram reunidas no clássico ADLER, Freda. Nations not obsessed (org) The legacy of anomie theory. New Brunswick: Transaction, 2000, p. 15-161.
with crime. Littleton: Fred B. Rothman, 1983, 204 p. 38. SAPONARO, Armando. “Victimology: a sociology of victim as well?”. WINKEL, Frans et al (org)
37. Ambos captaram muito bem o sentido do American dream em Merton: “The obsession with crime in the Victimization in a multi-disciplinary key: recent advantages in victimology. Nijmegen: wolf, 2009, pp.
United States cannot be dismissed as an irrational feature of the American character or as a peculiarly 258-259.
American penchant for inventing crime waves or using crime as a stage for enacting other social dra- 39. Mais adiante, “the social cohesion/trust part of the measure taps the nature of community relationships
mas. Rather, the American obsession with crime is rooted in an objective social reality. Levels of crime and was measured by coding whether residents agreed that ‘people around here are willing to help their
in the United States, and more specifically levels of serious crime, are in fact very high in comparative neighbors’; ‘people in this neighborhood can be trusted’; ‘this is a close-knit neighborhood’, ‘people in
perspective. (…) Merton proposes that the sources of crime in the United States lie in the same cultural this neighborhood share the same values’. As hypothesized, social cohesion and social control proved
commitments and social arrangements that are very conventionally regarded as part of the American to be strongly related across neighborhoos and thus combined into a summary measure of collective
success story. High rates of crime are thus not simply the ‘sick’ outcome of individual pathologies, such efficacy, yielding an aggregate-level reliability in the high eighties”, SAMPSON, Robert. “How does
as defective personalities or aberrant biological structures. Nor are they the ‘evil consequence’ of indivi- community context matter?”. WIKSTRÖM, Per-Olof; SAMPSON, Robert (org). The explanation of
dual moral failings. Instead, crime in America derive in significant measure from highly prized cultural crime: context, mechanisms and development. Cambridge: Cambridge, 2006, p. 40.
34 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 35

da indiferença em relação aos stakeholders, produzindo indesejáveis conse- corporações na formação de coesão social necessita verificação empírica e
quências sociais. Também acrescenta interessantes evidências sobre a situação experimentação. A dissociação provocada pela falta de internalização de
anômica dos processos de tomada de decisão na empresa em relação a pro- mecanismos partilhados de interação social e pela instabilidade das ins-
dutos letais, na maioria das vezes porque neste contexto o estranhamento da tituições produz contextos sociais anômicos que prestigiam os interesses
vítima representaria uma barreira ao juízo moral40. egoísticos (self-interest). Mais ou menos anomia na comunidade, como
Diane Vaughan, em difundido experimento, testou a produção de ano- desempenhar o controle social das corporações anômicas e como pensar
mias no ambiente corporativo da NASA, consolidando a transposição da questões anômicas transnacionais são questionamentos de fundo para uma
pesquisa anômica nas organizações, que igualmente “ocupam posições na nova e promissora agenda de pesquisa em ciências criminais.
estrutura social, são expostas culturalmente a metas e vivenciam obstrução
de oportunidades”. Vaughan coletou evidências de que o ambiente norma- 3.1.1. ALBERT COHEN E A SUBCULTURA DELINQUENTE
tivo de fato pode estimular comportamento desviante: 1) pessoas criam o Albert Cohen desenvolveu a teoria geral da subcultura e a desintegra-
ambiente normativo em que o comportamento desviante é normalizado; 2) ção dos valores convencionais em função do contexto de intensificação da
na medida em que é criado, demonstra que as normas, crenças, e procedi- industrialização, dos fluxos migratórios e urbanização. Com base nestes pres-
mentos desta cultura constringem as escolhas subsequentes; 3) demonstra supostos, A. Cohen investiga a evolução do crime e da criminalidade em áreas
também como se dá a construção social da conversão entre comportamento altamente afetadas, gerando contextos de aprendizagem do comportamento
desviante em aceitável e incorporado como prática de interação no grupo. desviante, resultante das interações sociais que acabam por cultivar valores
Vaughan, citando Sutherland, Hannah Arendt, Herbert Kelman e Lee Ha- antissociais e atitudes antissociais. A subcultura também exerce pressões de
milton (os dois últimos autores de Crimes of desobedience), reconhece que a conformidade, por meio de poderosos incentivos para reafirmação dos pa-
conformidade aos procedimentos, mais do que a aprendizagem social, seria drões de dissociação marcados pelo grupo subcultural. Em Delinquent boys:
determinada na performação do comportamento desviante41. the culture of the gang, A. Cohen marca com precisão os processos sociais de
Peter Yeager identifica desde Durkheim a “ambigüidade moral” nos contínuo realinhamento de grupos, transição de indivíduos de um grupo a
crimes de colarinho branco. A natureza altamente técnica das operações outro, movidos pela necessidade de identificação (adjustment)”43.
negociais ou transações comerciais faz com que a configuração moral das O problema teórico central analisado por A. Cohen é a dependên-
ações, ou seja, muito difícil de se definir ou simplesmente obscura demais42. cia que os grupos subculturais impõem a seus integrantes, compelindo-os
Mais do que uma reorientação normativa, neste campo das “corpora- pela manipulação de seu status perante o grupo à contínua e sistemática
ções anômicas” – como assim o preferimos – , a avaliação do papel das submissão ao alinhamento do comportamento individual a subpadrões de
conformidade44 e de inovação45. A formação de subculturas delinquentes
40. COHEN, Deborah. “Ethics and crime in business firms: organizational culture and the impact of ano- encontra nos estudos de A. Cohen quase como uma extensão das teorias do
mie”. ADLER, Freda; LAUFER, William (org) The legacy of anomie theory. New Brunswick: Transac-
tion, 2000, p. 190; interessante inventário sobre o comportamento socialmente danoso, embora “legal”, strain, desorganização social e associação diferencial. O grande mérito de A.
FREUDENBERG, Nicholas. Lethal but legal: corporations, consumption, and protecting of public
health. Oxford: Oxford Press, 2014, p. 181 e ss. Cohen, na verdade, foi identificar a diversidade das normas sociais na socie-
41. “Cultural meaning systems constrain choice, narrowing the possible options that will appear rational at
a given moment. Shared cultural understandings facilitate interaction, yet because they exist at a pre- dade. Há grupos que criam “subculturas” a partir dos padrões normativos da
parational level, present problems of control”, VAUGHAN, Diane. “Anomie theory and organizations:
culture and the normalization of deviance at NASA”. PASSAS, Nikos; AGNEW, Robert (org) The
future of anomie theory. Boston: Northeastern University Press, 1997, p. 119. 43. COHEN, Albert. Delinquent boys: the culture of the gang. New York: The Free Press, 1955, p. 56-58.
42. “Moreover, given the generally high social value placed on private sector production (of both goods and 44. “(…) the crucial condition for the emergence of new cultural forms is the existence, in effective inte-
jobs) in market economies, government regulation itself is often considered morally suspect, at least by raction with one another, of a number of actors with similar problems of adjustment”. COHEN, Albert.
the regulated and particularly at the margins of perceived costs and benefits. As a result, not only is the Delinquent boys... cit, p. 59.
line defining legal compliance subject to shift, but events clearly on the wrong side of legal boundaries 45. “(…) the innovation to solve his status problem, that these new criteria be shared with others, that the
may appear open to ethical debate”. YEAGER, Peter. Law, crime, and inequality… cit., p. 251. No solution be a group and not a private solution. If he ‘goes alone’ he succeeds only in further estranging
mesmo sentido, Na mesma linha, DOWNES, David; ROCK, Paul. Understanding deviance: a guide to himself from his fellows. Such new status criteria would represent new subcultural values different from
the sociology of crime and rule-breaking. Oxford: Oxford Press, 2011, p. 59. or even antithetical to those of the larger social system”, COHEN, Albert. Delinquent boys... cit, p. 59.
36 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 37

identidade cultural hegemônica, obedecendo a uma normatividade própria. Marvin Wolfgang e Franco Ferracuti resgatam a noção de que não
A. Cohen analisou a forma destas subculturas no âmbito das gangues juve- apenas a motivação para cometer um crime é parte essencial da natureza
nis e possibilitou que Cohen categorizasse as subculturas a partir de duas humana, mas os não cometer também é indissociável da personalidade e
orientações ideológicas básicas: 1) frustação em vista do status, que promove deveria estar na base das estratégias de controle social. No lugar dos ques-
uma dissociação entre a realidade social dos indivíduos e as metas culturais tionamentos apegados a “por que as pessoas cometem crimes?”, mais valeria
impostas pela sociedade; 2) formação da reação, decorrente da frustação se dedicar a compreender “por que as pessoas não cometem crimes?”. A in-
de expectativas sociais causada pela falta de status, que justifica a eleição versão proposta em Wolfgang e Ferracuti depende da criação de indicadores
de novas normas sociais46. A reação aos padrões culturais vigentes permite para avaliar como determinados grupos sociais e instituições logram alcan-
explicar as infrações não-utilitárias, que não podem ser traduzidas em per- çar efetividade nas suas regras49, evidenciando mais ou menos violência
cepção de ganho imediato aos indivíduos, salvo a própria manifestação das em seu comportamento subcultural. Terence Thornberry et al empenham
novas normas sociais sustentadas pela subcultura e as necessidades internas significativa análise do comportamento associativo juvenil desde a pers-
de aceitação perante o grupo47. pectiva da criminologia desenvolvimental e da life-course theory, alinhados
Na verdade, a crítica criminológica bem pouco explora o fato de que a estudos longitudinais do comportamento antissocial dos indivíduos – e
a formação de subculturas não significa a representação de uma contra- não dos grupos (Rochester Youth Development Study) – , determinando as
cultura ou crítica subversiva dos valores vigentes. A. Cohen aperfeiçoa o causas por que um indivíduo se integra em uma gangue e outro não, além
modelo de Merton na medida em que entende a subcultura como mani- da medida a partir da qual a gangue influencia ou não no comportamento
festação coletiva, e não individual. Não há uma nova fundamentação da do indivíduo50. Adler, Mueller e Laufer comentam que A. Cohen oferece
identidade ideológica ou mesmo das mediações materiais de existência na referências claras para analisar quando surgem os grupos subculturais – a
sociedade. Walter Miller, apesar de não manter interlocução com Cohen, partir de uma tensão (strain) – , por que eles assumem determinada forma
dedicou uma série de estudos empíricos longitudinais para demonstrar – desorganização social (social disorganization) – , e como são transmitidos
que os membros de gangues juvenis, em verdade, eram jovens normais de uma geração a outra (associação diferencial)51.
da classe trabalhadora, porém premidos pela imposição cultural de uma A vitimologia não deixou de acompanhar estes desenvolvimentos da
classe alta, e que acabam sendo negligenciados na priorização de políticas subcultura delinquente. Isso permitiu observar que os jovens se predispõem
públicas de prevenção48. ao comportamento associativo para aliviar o stress e as tensões geradas pela
A subcultura é antes apenas expressão da identidade cultural vigente, pobreza, privações e alienação frente aos padrões convencionais de sucesso
porém com novas orientações normativas de comportamento e aceitação/ ditados pela classe média, integrando-se às gangues52. Este padrão de com-
rejeição que levam os indivíduos tanto a (a) aprender – em associação – novas portamento tende a ser reproduzido na disputa entre gangues rivais e mesmo
formas de interação social e adaptar-se aos padrões de exclusão e marginali- dentro das prisões ou em internação. Todavia, o curioso é que os níveis de
zação impostos pela identidade cultural hegemônica, quanto (b) questionar vitimização entre as gangues são significativamente maiores do que em rela-
a idoneidade das instituições para se atingir as metas sociais, afrontando-as ção a quem não pertence a qualquer gangue53.
para reconfigurar a percepção do status e do prestígio entre as pessoas com
49. WOLFGANG, Marvin; FERRACUTI, Franco. The subculture of violence. 2. ed. London: Routledge,
quem estabelece interações associativas. 2002, p. 71 e ss.
50. THORNBERRY, Terence et al (org). Gangs and delinquency in developmental perspective. Cambridge:
46. COHEN, Albert. Delinquent boys... p. 66 e ss. Cambridge Press, 2003, p. 3 e ss.
47. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology. El Paso: LFB Scholarly, 2011, p. 54: “gang initiations 51. ADLER, Freda; MUELLER, Gerhard; LAUFER, William. Criminology and the Criminal Justice Sys-
that involve being dropped off without a weapon to make your way back from inside a rival gang´s tem. 6. ed. Boston: McGraw Hill, 2007, p. 136.
territory reflect the group´s emphasis on toughness, bravery, and street smarts”. 52. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 54.
48. MILLER, Walter B. “Lower class culture as a generating milieu of gang delinquency”. Journal of Social 53. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 54. A tipologia de Malcolm Klein e Cheryl
Issues 14/1958, p. 5-19; MILLER, Walter B. The growth of youth gang problems in the United States: Maxson (KLEIN, Malcolm; MAXSON, Cheryl. Street gangs patterns and policies. Oxford: Oxford
1970-98. Washington: Report/Diane Pub Co., 2001, p. 1 e ss. Press, 2006, p. 68 e ss.) é reconhecida dentre as principais referências neste campo, apontando diferen-
38 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 39

A compreensão da subcultura delinquente representa alguns avanços Depois disso, a discussão foi ganhando especificidade e novas pers-
significativos no esclarecimento de alguns processos de vitimização, espe- pectivas: a perspectiva macrossociológica do controle (regime jurídico e
cialmente porque permite identificar as causas do comportamento violento medidas de law enforcement), e a micro, em que operam os grupos de
no interior das associações subculturais. Trata-se, em realidade, do exercício poder públicos e também privados. Jackson Toby, também sob decisiva
do controle para “dominação e supressão das ameaças aos valores do grupo”, influência de Talcott Parsons, analisa a noção de “comprometimento indi-
“a violência é concebida como meio de proteção dos sentimentos, crenças e vidual” (individual commitment) como determinante do controle social do
customes dos membros associados”, mediante “reações apropriadas a trans- comportamento. Scott Briar e Irving Piliavin estenderam a tese de Toby,
gressões reais ou imaginárias”54. articulando comprometimento e conformidade como estratégias para re-
John Braithwaite, de forma bastante criativa, discutiu a formação de duzir a propensão ao comportamento desviante58.
subculturas na criminologia corporativa. Independemente se no campo da Coube a Albert Reiss isolar o grupo de fatores de controle social e
criminalidade de ruas ou se na criminalidade dos poderosos, o impacto da pessoal59, testando o comportamento desviante como resultado dos con-
estigmatização na personalidade da organização se desdobra em “formações troles social e pessoal. Mesmo assim, desde então a criminologia avançou
de subcultura” em razão da humilhação ou vergonha (corporate shame), as pouco na compreensão da interação entre self e social control, sem falar em
quais se expressam em resistência às estratégias de controle social, especial- manifestações isoladas sobre o contexto comunitário ou corporativo. Ba-
mente formal decorrente de law enforcement, e regulação55. sicamente, os estudos da personalidade estiveram orientados a investigar
a estrutura performativa da pessoa e características do comportamento
3.2. TEORIA DO CONTROLE SOCIAL pessoal e dos processos de socialização, permitindo classificações e dife-
Desde as formulações originais de Edward Alswort Ross, um dos renciações entre comportamento criminoso e não-criminoso. Desde a
fundadores da sociologia norte-americana, as teorias do controle social re- tradição criminológica, os estudos da personalidade e dos processos de
portam-se aos “sistemas de crenças, mais do que leis específicas, que orientam socialização foram importantes para compreender os vínculos possíveis
o comportamento das pessoas e servem, universalmente, como controle deste entre a dinâmica da personalidade, a socialização, o comportamento des-
comportamento”56. Se bem que esta premissa básica padeça de certa vague- viante e as medidas de controle60.
za, foi por muito tempo o referencial em torno do qual se estruturaram as A criminologia desenvolvimental foi responsável por avanços significa-
principais teses do controle. Assim como, por muito tempo, Ross foi res- tivos nesse campo. Com ricas influências da psicologia – Albert Bandura, R.
ponsável pelo certo descuido do pensamento criminológico em relação aos Walter, Lawrence Kohlberg – , foi a partir das pesquisas desenvolvimentais
mecanismos de controle social informal e aos processos de socialização que na criminologia que se aperfeiçoaram as qualidades essenciais do comporta-
pudessem inibir o interesse próprio e a perda de solidariedade57. mento prossocial, extraindo suas principais consequências teóricas de bases
ças significativas no comportamento associativo juvenil na Europa e nos EUA, especialmente em fun- empíricas longitudinais bastante esclarecedoras sobre a estrutura dinâmica
ção da disponibilidade de armas de fogo e da menor incidência de gangue no espaço europeu, KLEIN,
Malcolm; WEERMAN, Frank; THORNBERRY, Terence. “Street gang violence in Europe”. European da personalidade e outras dimensões do processo de socialização normativa,
Journal of Criminology. 3;2006, pp. 413-437.
54. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit. p. 55. Neste campo, McSHANE, Marilyn et al.
American Victimology... cit. destaca que as leituras de Wolfgang e Ferraccuti já apontavam que o em-
prego de armas, agressão masculina, lutas, machismo e estruturas familiares patriarcais são igualmente institutions requiring impersonal relations and producing an amalgam of private interests, an artificial
idealizadas no campo da subcultura, inclusive mediante a ocorrência de assassinatos para auto-defesa order is required”. ROSS, Edward. Social control… cit., p. 126 e ss.
ou retaliações, McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., pp. 54-55. 58. Hirschi, no entanto, é contrário a esta ideia, já que o controle apenas explica a conformidade e aderência
55. BRAITHWAITE, John. “Criminological theory and organizational crime”. Justice Quaterly, 6/1989, p. a normas, não o comportamento desviante.
339-340. 59. REISS, Albert. “Delinquency as the failure of personal and social controls”. American Sociological
56. “(…) belief systems rathen than specific laws guide what people do and universally serve to control Review, 16/1951, p. 196-207.
behavior”, ROSS, Edward A. Social control: a survey of the foundations of order. London: Macmillan, 60. Laufer, por exemplo, mesmo reconhecendo que a personalidade é preditivo modesto da criminalidade,
1910, p. 126 e ss. aduziu evidências a partir da reação à disciplina no contexto prisional e suas repercussões no auto-con-
57. “Thus, as natural communities mature into “artificial societies” the regulation of conduct to quell trole, intolerância e falta de responsabilidade, LAUFER, William. The development of a measure of
temptation demands a means of control that is more formal and systematic. Quite simply, with societal psychosocial control. Newark: Rutgers, 1987, p. 88.
40 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 41

tais como a empatia, internalização, grupos de referência e associação dife- Delinquency), e, posteriormente, a teoria do auto-controle (General Theory
rencial61 , além dos vínculos possíveis com o auto-controle, controle social of Crime), ao lado de Michael Gottfredson. Hirschi inverteu os questiona-
e aprendizagem social62. mentos mais básicos a que se dedica o pensamento criminológico: no lugar
No entanto, dedica-se pouca atenção ao controle das empresas, a maior de “por que alguns cometem crimes?”, suas investigações eram conduzidas
parte das críticas acaba atendendo à lógica universalista de Travis Hirschi, pela pergunta “por que todos não cometem crimes?”. Desde esta chave,
no Causes of Delinquency, que rechaçam a especificidade do controle na cri- foi possível tomar por consenso que a teoria do controle não se presta a
minalidade econômica63. Do ponto de vista das corporações, abordagens responder “por que eles fazem isso?”, mas sim envolver o pensamento cri-
sistêmicas mais recentes tendem a reconhecer a necessidade da ampliação minológico na busca de evidências e explanações mais coerentes sobre “por
da perspectiva sociológica do controle, em “perspectiva multi-níveis” (mul- que nós não fazemos isso?”. Esta estratégia científica de normalização não
ti-level account). Seria bem possível introduzir na agenda de pesquisa da apenas do comportamento, mas da própria explicação do comportamento
vitimologia corporativa um “nível meso”64, cuja observação sociológica das desviante tem anteparo na interpretação funcional de Durkheim, já que
interações entre governos e corporações internacionais, atendendo a distintas o próprio Hirschi reproduz em várias passagens que “em últimas circuns-
escalas de produção da criminalidade, talvez seja o caminho necessário para tâncias, a teoria do controle segue sendo o que sempre foi: uma teoria em
desenvolver novas estratégias cognitivas orientadas pelas estruturas gerais da que o comportamento desviante não é um problema”65.
personalidade envolvida nas organizações. Com seus estudos desenvolvidos inicialmente na sociologia, seus
trabalhos se mostram metodologicamente estruturados, com clara
3.2.1. TRAVIS HIRSCHI E AS CAUSAS DA DELINQUÊNCIA visibilidade de referências, dados coletados, suposições iniciais e as in-
terpretações derivadas delas, de modo a apresentar uma combinação da
Travis Hirschi foi responsável por articular, de forma bastante coesa,
questão central discutida com teoria e análise empírica. A contribuição
a teoria do controle social (publicada comercialmente como Causes of
original de Hirschi está radicada no emprego criterioso do método
61. WOLFGANG, Marvin; FERRACUTI, Franco. The subculture... cit., p. 71 e ss. para identificar no comportamento desviante um fato social do qual
62. Para um panorama destes desenvolvimentos, veja a coletânea BANDURA, Albert (org). Self-efficacy emanam uma série de “vínculos sociais” (social bonds)66. Seus estudos
in changing societies. Cambridge: Cambridge Press, 1997, 334 p.; sobre o paradigma da criminolo-
gia desenvolvimental, LE BLANC, Marc. “Um paradigme développmental pour la criminologie: dé- de formação de Hirschi aportaram importantes reflexões sobre os con-
veloppment et autorégulation de la conduite déviante”. Criminologie, 43/2010, p. 401-428; para uma
compreensão das análises psicológicas no Brasil, BAZON, Marina Rezende. Avaliação psicológica de tratualistas como “teóricos do controle”. Sobretudo a partir de Hobbes,
adolescentes em conflito com a lei: validação do Inventário de Jesness. Ribeirão Preto: Livre-docência
USP, 2016, 250 p. Hirschi resgata um dos interrogantes centrais da filosofia política “por
63. Hirschi critica o método e o certo relativismo de Sutherland, cujas inferências teóricas não valem
universalmente para explicar o comportamento desviante e o comportamento em cumprimento com que os indivíduos obedecem às regras da sociedade?”, trazendo desde
as normas: “Analytic induction proceeds by reformulating the hypothesis and-or redefining the phe- o Leviatã os fundamentos da obrigação moral de obediência: o medo
nomenon to be explained each time a deviant case is encountered. The ability to redefine the phe-
nomenon may trick the user of analytic induction into merely defining that which he was to have é a paixão que mais controla os homens a seguir as normas, é a única
explained. Yet, to my knowledge, Sutherland never felt called upon to redefine crime. Crime began
and remained simply ‘violation of the law’. Instead, he reformulated his hypothesis until they were coisa que consegue contê-lo às inclinações do lucro ou prazer. De forma
compatible with all known facts about crime. Hypotheses encompassing the cannibalism of the Don-
ner Party, the murder of one newspaper editor by another, and a slum boy stealing a bike, are of bastante contundente, Hirschi impõe que o desejo de desobediência é
necessity highly abstract. Given the inferential distance between the concept of such hypotheses and
concrete events, it is not surprising that the theory of differential association is virtually nonfalsiable o que gera a pressão pelo crime, que não é apenas decorrente de uma
(it is also not surprising that empirical predictions derived from the theory tend to be trivial)”. (…) decisão fria e calculista, mas fortemente marcado por irracionalidade e
“the attempts by many scholars to explain criminal behavior by general drives and values, such as …
striving for social status, (and) the money motive …, have been and must continue to be futile since
they explain lawful behavior as completely as they explain criminal behavior” (…) “I reached the ge-
emoção intensa. Em Hirschi, o crime seria, portanto, resultado desta
neral conclusion that a concrete condition cannot be a a cause of crime, and that the only way to get a discrepância entre aspiração e expectativa.
causal explanation of criminal behavior is by abstracting from the varying concrete conditions things
which are universally associated with crime”. HIRSCHI, Travis. Causes of delinquency. 2. ed. New A teoria do controle encontra nas teorias de Travis Hirschi a explicação
Brunswick: Transaction, 2002, p. 9 e 19. SUTHERLAND, Edwin. The Sutherland Papers. Indiana:
Indiana University Press, 1956, p. 19.
64. BUNGE, Mario. “A systemic perspective on crime”. WIKSTRÖM, Per-Olof; SAMPSON, Robert (org) 65. HIRSCHI, Travis. Causes of delinquency... cit., p. 34
The explanation of crime: context, mechanisms and development. Cambridge: Cambridge, 2006, p. 21. 66. HIRSCHI, Travis. Causes of delinquency... cit., p. 161.
42 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 43

para a liberdade que as pessoas para cometer delitos, a partir de dois concei- desportivas profissionais que exigem, por parte dos jovens, demonstração
tos “altamente complexos”: o “vínculo” (bond) do indivíduo à “sociedade” prévia de “honestidade” e “confiabilidade”.
(society). O comportamento delitivo se evidencia quando os vínculos entre o O envolvimento (involvement)72 resgata noções de falta de oportunidade
indivíduo e a sociedade se rompem, justificando o comportamento desviante de agir de outra forma, que, necessariamente, restringem a disponibilidade de
ou não usual67. A diferenciação entre os vínculos a partir de Hirschi foi objeto tempo e energia. O envolvimento em atividades convencionais pode afastar o
de amplo debate científico no pensamento criminológico, indicando uma va- comportamento desviante simplesmente por ocupar o tempo útil da pessoa,
riedade de unidades como ponto de controle. Os vínculos foram classificados “simplesmente ocupada demais” com rotina de tarefas e compromissos para
em quatro categorias distintas: 1) ligação (attachment); 2) comprometimento cometer um delito, valendo a máxima “mãos ociosas são a oficina do diabo”73.
(commitment); 3) envolvimento (involvement); 4) crença (belief).
A crença (belief) remonta à identidade de valores e normas sociais que
As teses de ligação (attachment) referem-se à essência de internalização orientam o comportamento individual. Ao desenvolver o elemento crença,
das normas, consciência, ou superego, captada na ligação entre um indivíduo Hirschi expressamente pontua a diferença com a teoria do desvio cultural
e outro68. Na avaliação da forma como as relações interindividuais expres- (cultural deviance theory), uma vez que sua tese sobre o controle pressupõe
sam a internalização das normas, identifica-se como pessoas empregam seu a existência de um sistema de valores comuns a determinada sociedade ou
tempo, energia em determinadas atividades e isso acaba levando a um custo grupos sociais, que é violado pelo comportamento desviante74. O referencial
à própria consciência, justificando tomadas de decisão e o comportamento valorativo é indispensável para o modelo explanatório de Hirschi, que eli-
de ligação com o outro. A noção de attachment, em última análise, busca mina, por exclusão lógica, todo aquele comportamento não orientado pela
explicações para as conexões estabelecidas entre as pessoas, porém desde a identidade normativa da sociedade ou grupo social75. Na linha de Hirschi, o
perspectiva exclusivamente individual, o que não necessariamente diz res- que mais importa é avaliar por que um indivíduo viola as normas sociais nas
peito à inclinação por agregar-se ou associar-se. quais ele próprio crê (why does a man violate the rules in which he believes?),
O comprometimento (commitment) diz respeito aos elementos racio- quer dizer, explicar os mecanismos a partir dos quais se produz a “socialização
nais que levam os indivíduos à conformidade e à obediência às normas69. imperfeita”. A imperfeição consiste precisamente no fato de que a sociabilida-
Hirschi destaca a importância da ambição e aspiração para produzir con- de, apesar de valorativamente orientada a referências sociais comuns, desvia.
formidade, de tal forma que a “pessoa se torna committed em relação a uma Daí porque Hirschi entende coerente que o comportamento desviante não
linha de ação convencional, e, logo, commited com a conformidade”70. é apenas questão de um grupo impondo suas regras aos membros de outro
Como analisado por Hirschi, “se o attachment com o outro é a contraparti- grupo, mas sim que, mesmo crendo nas normas sociais, são violadas pelo
da sociológica do superego ou consciência, o commitment é a contrapartida indivíduo76. As normas não são impostas, porque o indivíduo previamente
do ego ou senso comum”71. Hirschi também especializa as relações de com-
72. HIRSCHI, Travis. Causes of delinquency... cit., p. 21.
mitment em função de situações não-convencionais que acabam gerando 73. HIRSCHI, Travis. Causes of delinquency... cit., p. 22. “The view that ‘idle hands are the devil´s
conformidade convencional, a exemplo de aspirações a integrar equipes workshop’ has received more sophisticated treatment in recent sociological writings on delinquency.
David Matza and Gresham M. Sykes, for example, suggest that delinquents have the values of a leisure
class, the same values ascribed by Veblen to the leisure class: a search for kicks, disdain of work, a
desire for the big score, and acceptance of aggressive toughness as proof of masculinity (Juvenile delin-
67. HIRSCHI, Travis. Causes of delinquency... cit., p. 16. quency and subterranean values).”
68. Hirschi complementa que “attachment to others is just one aspect of Albert J. Reiss´s ‘personal controls’. 74. HIRSCHI, Travis. Causes of delinquency... cit., p. 23.
69. Hirschi complementa que “Few would deny that men on occasion obey the rules simply from fear of the 75. “If the deviant is committed to a value system different from that of conventional society, there is, within
consequences”, e acrescenta comentários críticos de H. Becker ao conceito de comprometimento: “first, the context of the theory, nothing to explain”, HIRSCHI, Travis. Causes of delinquency... cit., p. 23.
the individual is in a position in which his decision with regard to some particular line of action has conse- 76. Em comparação com as teorias da tensão, a motivação é tão forte que o delinquente que o delin-
quences for other interests in activities not necessarily (directly) related to it. Second, he has placed himself quente pratica mesmo sabendo que é errado. Ao passo que para as teorias do controle, como pontu-
in that position by his own prior actions. A third element is present though so obvious as not to be apparent: ado por Hirschi, belief é meramente nominal quando faltam outras formas de controle, são apenas
the committed person must be aware (of these other interests) and must recognize that his decision in this exercício de linguagem e não representam verdadeiros obstáculos à prática de delitos. Por outro
case will have ramifications beyond it”, HIRSCHI, Travis. Causes of delinquency... cit., p. 16. lado, o delinquente pode racionalizar seu comportamento de tal forma que, mesmo praticando uma
70. HIRSCHI, Travis. Causes of delinquency... cit., p. 21. única vez, acredita que é excepcionalidade, sem afeta seus beliefs. HIRSCHI, Travis. Causes of
71. HIRSCHI, Travis. Causes of delinquency... cit., p. 20. delinquency... cit., p. 24.
44 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 45

lhes dá aceitação. A noção de crença em Hirschi não admite, portanto, os De acordo com as reflexões de Hirschi, as teorias da tensão (strain)
esquemas de racionalização de comportamento que justificariam condutas legitimam desejos que a conformidade simplesmente não está no lugar de
que ele intenciona cometer, mas sim que seriam imotivadas. Quer dizer, satisfazer, compelindo o indivíduo ao comportamento desviante82. Quanto
pode-se até acreditar que está “errado”, mas o sentido e a eficácia do belief às implicações do auto-controle, Hirschi apresenta uma série de evidências
são contingentes e variam em função da densidade dos vínculos que são sobre: (1) a concepção do comportamento criminoso, desviante ou negli-
estabelecidos com a ordem convencional77. gente é consistente com pesquisas sobre a importância da família na causa
Além de categorizar os vínculos, Hirschi elabora esquemas relacionais do crime (crime causation); (2) importância das oportunidades na prática
entre os quatro estamentos de sua teoria do controle. Na relação entre liga- de comportamento desviante; (3) redução significativa em todos os tipos
ção e comprometimento (attachment e commitment), apesar de comumente de comportamento criminoso, desviante ou negligente com o decorrer dos
analisados de forma inversa, propõe que sejam analisados de forma paralela78. anos. As inconsistências dizem respeito a: (1) a ideia de carreira criminosa;
(2) a ideia de crime organizado; (3) diferenciação entre a causa do crime nos
Já na relação entre comprometimento e envolvimento (commitment adolescentes e nos adultos; (4) diferenciação entre a causalidade dos crimes
and involvement), Hirschi sugere que sejam analisados em função de um de colarinho branco e crime convencionais; (5) crime como aprendizagem,
contexto concreto, especificando não apenas tempo e espaço em que se adquirido na interação com outras pessoas83. Estas duas últimas inconsis-
produz o crime, mas também as cadeias causais (causal chains) que con- tências, como não poderia deixar de ser, em franca oposição científica ao
vergem em determinado momento. Esta convergência, embora seja difícil pensamento criminológico de Sutherland.
prever eventos e a especificação das condições em que se produz, pode ser
decisiva para reduzir as indeterminações e a imprecisão na predição de A sua vez, o próprio Hirschi faz um inventário das críticas dirigi-
comportamento desviante79. das a seu modelo explanatório: (1) excessivamente generalista – colarinho
branco se diferencia dos demais e os crimes dolosos guardam, em verdade,
A seu modo, as conexões entre as aspirações educacionais e ocupa- bem pouca relação com acidentes, maus hábitos, sanidade mental, além de
cionais de commitment e involvement em atividades convencionais permite outros problemas de socialização e escolaridade; (2) definição tautológica –
observar como o commitment pode limitar as oportunidades para cometer o crime não poderia ser conceituado como atos de consequências negativas
crimes, “afastando a tese implícita em muitas teorias do controle de que a longo prazo e ganhos imediatos, uma vez que as consequências negativas
estas oportunidades são simplesmente distribuídas de forma aleatória na ou bem são ignoradas ou bem pouco sopesadas pelos indivíduos que optam
população”80. por comportamento desviante; (3) concepção equivocada da relação entre
A relação entre ligação e crença (attachment and belief) pode eviden- idade e comportamento, além da relação entre persistência e desistência;
ciar os vínculos entre os indivíduos e a validade moral das normas sociais. (4) ignora a distinção entre incidência e prevalência do comportamento
Hirschi parte do pressuposto de que, assim como o respeito é a fonte do desviante; (5) falha em distinguir entre tipos de ofensores, bastante variá-
direito (source of law), sua falta pode ser o que mina o caráter obrigató- vel a depender do tipo e intensidade do comportamento desviante; (6)
rio das normas. Daí porque a crença no caráter obrigatório das normas equívoco quanto à inefetividade das sanções previstas no sistema de justiça
corresponde à eficácia na produção da conformidade, e, a seu modo, a criminal, além da própria variação da resposta dos indivíduos frente às
ligação produz conformidade mesmo quando haja crença que favoreça a
não-conformidade81. 82. “It is oversimplification to say, however, that strain theory assumes a moral man while control theory
assumes an amoral man. Control theory merely assumes variation in morality: for some men, considera-
tions of morality are important; for others, they are not. Because his perspective allows him to free some
77. HIRSCHI, Travis. Causes of delinquency... cit., p. 26. men from moral sensitivities, the control theorist is likely to shift to a second line of social control – to
the rational, calculational compontent in conformity and deviation. This emphasis on calculation is re-
78. HIRSCHI, Travis. Causes of delinquency... cit., p. 27-28. flected in a recent proposal by theoristis operatin from within this perspective: “The idea of paying boys
79. HIRSCHI, Travis. Causes of delinquency... cit., p. 28. to conform is sufficiently intriguing to merit study and experimentation”, HIRSCHI, Travis. Causes of
80. HIRSCHI, Travis. Causes of delinquency... cit., p. 29. delinquency... cit., p. 11.
81. HIRSCHI, Travis. Causes of delinquency... cit., p. 30. 83. HIRSCHI, Travis. Causes of delinquency... cit., p. 5
46 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 47

reações institucionais; (7) excesso na relevância do auto-controle como são as consequências do crime e da criminalidade para o outro o que
causa exclusiva do crime; (8) ignora a instabilidade do auto-controle84. mais interessa, mas sim as consequências que trazem ao próprio ofensor.
Isso talvez porque Hirschi segue no propósito de eliminar as hipóteses
3.2.2. MICHAEL GOTTFREDSON, TRAVIS HIRSCHI E O AU- de distinção entre as ofensas comuns e os crimes sérios – (“não motiva-
TO-CONTROLE ção especial para qualquer dos atos assumidos”, “porque todos envolvem
Os desenvolvimentos posteriores de Michael Gottfredson e Travis riscos de custo a longo prazo para o ofensor” 90). Na GTC, os criminosos
Hirschi aprofundaram as implicações do auto-controle85, na assim chamada de colarinho branco ou a criminalidade corporativa pode ser tão ou mais
“Teoria Geral do Crime” (General Theory of Crime – GTC). Na GTC, crime impulsiva do que nas hipóteses de crimes tradicionais, inclusive porque
seriam os atos ocorridos por força da perseguição do interesse próprio, ao as evidências demonstram tendência a benefícios imediatos e custos a
passo que criminalidade se refere à propensão do indivíduo à prática delitiva. longo prazo. Ao lado de Gottfredson, Hirschi propõe a equivalência das
Determina-se com isso a centralidade do auto-controle na determinação do causas do crime (baixo controle – custo de longo prazo), o que aumenta
crime e da criminalidade86, que oscila entre os índices de maior ou menor a probabilidade de engajar em comportamento desviante de custos a
auto-controle, induzindo os indivíduos ao comportamento impulsivo. Ori- longo prazo. Interessante é que esta argumentação, assim como aponta-
ginalmente, as evidências empíricas se referem aos vínculos entre a idade do por Gottfredson e Hirschi, impõe que a previsão abstrata de penas
(crescimento e maturação dos indivíduos)87 e o comportamento desviante. elevada acaba surtindo pouco efeito em indivíduos que apresentam baixo
O mecanismo básico de pesquisa refere-se à verificação de que a perda do auto-controle. A certa impopularidade deste raciocínio é acompanhada
referencial parental no processo de socialização do indivíduo é interpretada por outra questão ainda mais provocativa: “se o ofensor não se dá conta
como fator que fragiliza o auto-controle e afeta os padrões de socialização e das consequências para si próprio, por que então se preocuparia com as
oportunidade para a perda de controle88. consequências para os outros?”. O próprio Hirschi chegou posteriormen-
te a reconhecer que a teoria do controle social seria a teoria alternativa
Do contrário, auto-controle remonta a estados subjetivos estáveis, “indesejável”, daí sua popularidade91.
que permitem ao indivíduo resistir frente a eventuais benefícios do crime
e ponderar sobre as consequências a longo prazo89. Na teoria deles, não A GTC foi objeto de uma série de testes e verificações dentre os
criminólogos92. É certo senso comum entre os criminólogos que a GTC
84. HIRSCHI, Travis. Causes of delinquency... cit., p. 6. presume a agência do ofensor e sua pretensão universalista, como a única
85. HIRSCHI, Travis; GOTTFREDSON, Michael. “The generality of deviance”. HIRSCHI, Travis; GOT-
TFREDSON, Michael. The generality of deviance. New Brunswick: Transactions, 1994, p. 16. Apesar causa explicativa para o crime acaba por deixar os esforços de sistemati-
de haver afinidade entre as teorias do auto-controle e a psicanálise (autorregulação do comportamento,
“ego depletion”, “emotional self-regulation”, auto-monitoramento), a análise de seus fundamentos esca- zação do controle social empenhados por Hirschi relegados à história do
pa à delimitação desta pesquisa.
86. GOTTFREDSON, Michael; HIRSCHI, Travis. A general theory of crime. Stanford: Stanford Universi- truants in the allocation of punishments by the criminal justice system. Our theory indeed denies the
ty Press, 1990, p. 5-6. utility of punishment in the interests of deterrence or rehabilitation or incapacitation. But id does not
87. Em detalhes sobre os estudos originais que levaram ao modelo explanatório socialização familiar/baixo require abandonment of distictions based on harm to the victim or society as a basis for punishment. In
auto-controle/crime, HIRSCHI, Travis; GOTTFREDSON, Michael. “Age and the explanation of cri- our view, punishment chiefly operates to show those with high self-control the wisdom of their course
me”. American Journal of Sociology. 89/1983, p. 552-584; posteriormente, GOTTFREDSON, Michael; of action – that is, to reward conformity (see Toby, 1964, Is punishment necessary?). It also provides
HIRSCHI, Travis. A general theory of crime... cit., p. 8. retribution and as a consequence promotes a sense of justice. Presumably, both of these functions are
88. GOTTFREDSON, Michael; HIRSCHI, Travis. A general theory of crime… cit., p. 7 e ss. necessary whatever the crime rate”, HIRSCHI, Travis; GOTTFREDSON, Michael. “The generality
of deviance”. HIRSCHI, Travis; GOTTFREDSON, Michael (org). The generality of deviance. New
89. “Those who are not so influenced by long-term consequences are, according to our theory, more likely Brunswick: Transaction, 1994, p. 18-19.
to change their behavior as a result. Those who are not so influenced, are less likely to change. Put in
another context: Hitting a spouse with a heavy object rather than with the fist causes homicide and 90. HIRSCHI, Travis; GOTTFREDSON, Michael. The generality of deviance… cit., p. 16
official reaction rather than a beating and no outside notice, radically altering the long-term cost but not 91. HIRSCHI, Travis. Causes of delinquency… cit., p. xii.
affecting the basic cause of the act”. (…) “Some theorists see great intelligence and long-range scheming 92. PRATT, Travis; CULLEN, Francis. “The empirical status of Gottfredsons and Hirschi’s General Theory
among upper-class offenders (Braithwaite, 1989). Such a view is possible only through an idiosyncratic of Crime: a meta analysis”. Criminology. 38/2000, p. 931-964: “(…) (1) social control theory is better
definition of crime. It is possible to construct a definition predicated on characteristicis of criminals that than self-control theory; (2) the major factual premises of self-control theory are wrong; and (3) a major
will meet any contingency. Thus, if one wishes, one can speak of the ‘crimes of the rich and powerful’ factual implication of self-control theory is also wrong. I think it less likely that she would make such as-
or the ‘crimes of the pious and holy’. Such exercises trade on the love of the oxymoronic construction sertions (and less likely that they would be published) were she comparing two theories by two authors”.
that is the hallmark of nonserious social science”. (…) “A final objection to the equation of behavior TAYLOR, Claire. “The relationship between social and self-control: tracing Hirschi´s criminological
differing greatly in seriousness is that it suggests no basis for distinguishing between murderers and career”. Theoretical Criminology, 5/2001, pp. 369-388.
48 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 49

pensamento criminológico93. consiste em uma variável de constante modificação do comportamento,


Ronald Akers, referência nos estudos de aprendizagem social (social influenciando especificamente os processos de tomada de decisão dos indi-
learning), foi dos principais opositores de Hirschi, apontando as incoerên- víduos, um dos aspectos centrais do problema criminal; (2) o auto-controle
cias entre controle social e teoria do auto-controle94. Especificamente em reduzido aumenta o envolvimento em comportamentos desviantes, sendo
relação aos crimes do colarinho branco, a GTC seguiu afrontando direta- um dos principais correlatos do crime; (3) apesar de que seu potencial expli-
mente seus fundamentos. Não apenas porque Gottfredson e Hirschi vêem cativo é limitado, auto-controle orienta a formulação de políticas públicas
aí certo oportunismo para testar experimentos sem validade no campo da de prevenção (a partir de experiências desenvolvimentais que apresentam
criminalidade tradicional, mas também porque o apego às oportunidades indicadores de futura prática delitiva)97.
ou contexto (social location) sensível à prática de determinados crimes não
poderia ser confundido com a causa do crime (social causation)95. Gottfred-
3.3. ROBERT AGNEW E TEORIA GERAL DA TENSÃO (GE-
son e Hirschi mantêm-se firmes no enfrentamento às teses de Sutherland, NERAL STRAIN THEORY)
o qual teria sido induzido em erro por haver negligenciado os múltiplos Desde as teses originalmente formuladas por Robert Agnew, o objeto
fatores e recusado as explicações não-sociológicas do crime”96. Indepen- que orienta a construção científica da General Strain Theory (GST), a teoria
dentemente das críticas, há algo que permanece de modo inequívoco no geral da tensão, é a compreensão das explanações em torno da questão por
pensamento criminológico: o comportamento desviante é causado (moti- que os indivíduos se envolvem com o crime (why do individuals engage in
vado), e os indivíduos perseguem uma carreira no crime, e que a variação crime). A ideia em torno da qual se sistematiza a GST é a análise das expe-
cultural não encontra, virtualmente, nenhum limite. riências de tensão (strain) ou stress que movem os indivíduos a cometerem
Em monografia dedicada à verificação da teoria de Hirschi e Gott- delitos98. Os indivíduos experimentam cotidianamente uma série de situa-
fredson, Schulz Stefan alcança os resultados seguintes: (1) o auto-controle ções envolvendo, por exemplo, “falta de dinheiro, maus-tratos nas relações
familiares ou entre professores, pares, empregados”, produzindo emoções
93. “Causes purported to provide its own evidence of the universality of attitude toward crime, of core negativas que os inclinam ao cometimento de crime99. De acordo com a
values common to all cultures and social groups. Interestingly enough, despite the current celebration
of multiculturalism in the larger society, mainstream criminology now appears to accept cultural univer- GST, portanto, o crime nada mais é do que uma reação às emoções nega-
salism with respect to crime. And I think for good reasons. Here is one of them: cross-cultural studies
of self-reported delinquency routinely find that the causes and correlates of delinquent behavior do not tivas produzidas por tensões, e a proposta de Agnew consiste precisamente
vary from country to country. In other words, the findins of research do not depend on, and are una-
ffected by, local legal definitions of the behavior in question. GOTTFREDSON, Michael; HIRSCHI, em sistematizar como as diversas manifestações de tensões interagem com
Travis. A general theory of crime… cit., p. xvii. distintos indivíduos produzindo comportamento criminoso.
94. AKERS, Ronald. “Self-control as a general theory of crime”. Journal of Quantitative Criminology,
7/1991, p. 201-211.
95. “It is time criminology recognized that the typological approach inherent in the concept of whi- Em comparação a outras teorias criminológicas 100, costuma-se asso-
te-collar crime is a mistake. One of the causes of this mistake is, we believe, to be found in the ciar a GST ao desenvolvimento das teses de Robert Merton, assim como
enduring tendency of those who study crime to subordinate the topic to the interests of their parent
discipline. This tendency is particularly marked among sociologists, who see in white-collar crime Albert Cohen e Richard Cloward e Lloyd Ohlin. Agnew acentua que as
an opportunity to save conceptual schemes that have not proved useful with ordinary offenders. It
is also present among economists, who see in white-colar crime an opportunity to explicate once teorias antecedentes se limitavam a articular os diferentes tipos de tensão,
again the grand scheme of theis discipline. Psychologists, comfortable with the idea of typologies,
endlessly divide offenders into groups thought to be ‘relatively homogeneous’ with respect to the
meaning of their offenses. And quantitative analysts of all disciplinary persuasions see white-collar
crime as one more opportunity to specify a formal model. All of these disciplinary interests are 97. SCHULZ, Stefan. Beyond self-control: analysis and critique of Gottfredson & Hirschi´s General The-
served by acceptance of the received view of ‘white-collar offending’. This paper questions the ory of Crime. Ettenheim: Duncker & Humblot, 2006, p. 258.
received view and reasserts the view that crime is a unitary phenomenon capable of explanation 98. AGNEW, Robert. Pressured into crime. Los Angeles: Roxbury, 2006, p. 2.
by a single theory, a theory that seeks first the features common to all crimes and deduces from 99. “They become upset, experiencing a range of negative emotions, including anger, frustration, and de-
them tendencies to criminality in the individual. It is then in position to outline the causes of such pression. And they cope with their strains and negative emotions through crime. Crime may be a way
tendencies and to consider the differential manifestation of these tendencies. Such differential ma- to reduce or escape from strains. (…) Crime may be a way for individuals to seek revenge against those
nifestation is of course a function of the opportunities available to people, of the circumstances in who have wronged them. (…) And crime may be a way to alleviate the negative emotions that result
which they find themselves. To think otherweise is to confuse social location with social causa- from strains”. AGNEW, Robert. Pressured… cit., p. 2.
tion”. HIRSCHI, Travis; GOTTFREDSON, Michael. “Causes of white-collar crime”. In: HIRS- 100. Em detalhes, a avaliação do lugar da teoria da tensão no pensamento criminológico foi reunida em
CHI, Travis (org). The craft of criminology. New Brunswick: Transaction, 2002, p. 238-239. CULLEN, Francis; AGNEW, Robert; WILCOX, Pamela (org). Criminological theory: past to presente.
96. GOTTFREDSON, Michael; HIRSCHI, Travis. A general theory of crime… cit., p. xiii. Los Angeles: Roxbury, 2003, 667 p.
50 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 51

na medida em que apenas enfatizavam o conflito gerado ou pelas metas que vivenciam104.
de sucesso monetário impostas pela sociedade (Merton) ou a ascensão Agnew define as tensões como “eventos ou condições que não agra-
social gerada pela aquisição de status de classe média (A. Cohen). Há certa dam os indivíduos”105 e podem ser classificadas em três grandes grupos: (1)
afinidade com as teorias do controle social na medida em que Agnew perda de algo que representa um valor ao indivíduo, lose something good; (2)
parte da mesma constatação de que duas das principais características da submissão à tratamento negativo adversário ou negativo por outro, receive
personalidade humana são o auto-controle e as emoções negativas, apesar something bad; (3) incapacidade de atingir determinados objetivos, fail to
de que na GST se supera a delimitação exclusiva no comportamento get something they want106. O manejo destes grupos oferece instrumentos
individual e se passa a considerar os efeitos das tensões trazidas pelo am- de analítica prática bastante elucidativos para o comportamento criminoso,
biente social a este comportamento, quer dizer, como as tensões minam permitindo identificar qual tensão poderia gerar maior probabilidade de
o auto-controle e dinamizam as emoções negativas101. Na perspectiva da crime e também as situações mais propensas à vitimização. Esta estratégia
GST, dois aspectos marcam a diferença em relação às demais teoria do classificatória de Agnew habilita discussões mais específicas, demonstrando
controle: (1) a descrição do tipo de fatores ambientais que levam ao crime a forma como cada indivíduo pode responder, de maneira particularizada,
e (2) o modelo explanatório do motivo pelo qual os fatores ambientais às tensões a que está submetido. Há, na verdade, múltiplos fatores que in-
levam ao crime. Se na GST o foco está nas relações negativas com o outro fluenciam os distintos níveis em que se experimentam as tensões e emoções
e a pressão ao crime advém das emoções negativas resultada pelas tensões, negativas. Os indivíduos ostentam diversas características não apenas de
nas teorias do controle social se pressupõe a ausência de relações positivas personalidade ou do contexto regulatório em que se encontra (gerenciando
com o outro ou com as instituições, ocorrendo uma falha no exercício do custos e benefícios financeiros e sociais de seu comportamento), mas de
controle direto que deixa os indivíduos “livres” para cometer delitos102. recursos disponíveis ou suporte social107.
Porém, o que mais propriamente caracterizaria a GST seria uma A partir desta equação entre (a) tensões, (b) suas manifestações in-
análise intensiva dos elementos sociais e psicológicos do stress, permitindo dividuais a partir de analítica prática de vários fatores que influenciam o
uma mais ampla compreensão que combina o stress às tensões suportadas comportamento e (c) produção de comportamento criminoso, Agnew extrai
pelos indivíduos103. O recurso aos estudos psicossociais levou Agnew a várias consequências teóricas da GST. Alguns indivíduos são mais suscetí-
introduzir a divisão entre tensões objetivas (que provocam rejeição na veis aos strains do que outros, especialmente dentre aqueles mais propensos
generalidade das pessoas) e subjetivas (limitada à percepção de um indi-
víduo ou grupo de). Esta resolução metodológica do estudo psicossocial 104. “Strains, then, make people feel bad and create pressure for corrective action, and crime is one way in
do stress é o que lhe permite a Agnew alcançar uma classificação mais which people cope with strains. Crime may be a way of reducing or escaping from strains, obtaining
revenge against those believed responsible for the strains or other, more vulnerable targets; and/or alle-
abrangente de tensões e a elaboração de uma teoria geral dos efeitos do viating the negative emotions associated with strains. But not all people cope with strains through crime.
Most people, in fact, cope in a legal manner. For example, they negotiate with the people who irritate or
ambiente social no comportamento criminoso individual. A principal harass them, they file complaints agains the people who worong them, or they alleviate their negative
emotions by exercising or listening to music”, AGNEW, Robert. Pressured… cit., p. 17.
distinção do pensamento de Agnew nesta evolução das ideias criminoló- 105. Na síntese conceitual apresentada pelo próprio Agnew: “strains involve events and conditions that are
gicas é que os indivíduos são pressionados ao crime em função da tensão disliked by individuals. Individuals may lose something they value, be treated in a negative or aversive
manner by others, or be unable to achieve their goals. It is important to distinguish between objective
strains, which are disliked by most people in a given group, and subjective strains, which are disliked
by the individuals being examined. And while the personal experience of strains is most likely to result
101. Assim expressamente, ao afirmar que “individuals who are low in constraint are impulsive (tend to act in crime, vicarious and anticipated experiences with strains may sometimes result in crime as well”,
without thinking), like to take risks, reject social norms or rules, and have little concern for the feeling AGNEW, Robert. Pressured… cit., p. 13.
or rights of others”. (…) Individuals who are high in negative emotionality are easily upset and quick to 106. AGNEW, Robert. Pressured… cit., p. 4. As classificações propostas por Agnew foram testadas em
anger, tend to blame their problems on others, and have an aggressive or antagonistic interactional style. inúmeros estudos: PATERNOSTER, Raymond; MAZEROLLE, Paul. “General Strain Theory and de-
(…) It is easey to understand how the traits of low constraint and negative emotionality may increase the linquency: a replication and extension”. Journal of Research in Crime and Delinquency. 31/1994, p.
likelihood of crime. Individuals with these traits care little about others; give little thought to the costs of 235-263; PIQUERO, Alex. “Violent responses to strain: an examination of conditioning influences.
crime; are attracted to the exciting, risky nature of crime; and are easily provoked by others”, AGNEW, Violence and victims, 12/1997, p. 323-343; ASELTINE, Robert et al. “Life stress, anger and anxiety,
Robert. Pressured… cit., p. 20. and delinquency: an empirical test of general strain theory”. Journal of Health and Social Behavior.
102. AGNEW, Robert. Pressured… cit., p. 22-23. 41/2000, p. 256-275.
103. AGNEW, Robert. Pressured… cit., p. 9-10. 107. AGNEW, Robert. Pressured… cit., p. 17-18.
52 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 53

ao comportamento criminoso108. A inclinação ao cometimento do crime em limitação temporal, a interação com comportamento criminoso111.
pode ocorrer em situações de tensão vicariante (vicarious strains), em que se Podem variar conforme a percepção de que a ofensa praticada foi injusta
experimentam conflitos advindos de tensões de outros do circuito de rela- ou ilegítima, argumento valioso para a auto-compreensão das emoções
ções individuais. Agnew também concebe a “tensão antecipada” (anticipated negativas por parte da vítima112. A intensidade pode ser refletida em tensão
strain), orientada pela expectativa de que a tensão persista no tempo ou que crônica ou repetida que incrementam a predisposição ao comportamento
se reitere no futuro. A antecipação da tensão tem particular interesse para criminoso113, na medida em que elevam as emoções negativas, dificultam a
os estudos de vitimologia, uma vez que o indivíduo pode justificar medidas estabilização do auto-controle e induzem a aprendizagem social do crime.
de cautela frente ao perigo futuro de vitimização (como seria o caso do ar- Na prática, a GST importa para definir como esta dinâmica ganha dimen-
mamento supostamente para reduzir as oportunidades de ser vitimizado)109, sões mais concretas a partir das próprias experiências individuais. Uma vez
inclusive a partir das intersecções de gênero110. que o crime pode ser uma “solução parcial” para as experiências vivenciadas
As evidências de tensão não são estáticas, variando conforme as condi- pelo indivíduo, stress e tensão são decisivos para se determinar as mediações
ções temporais, o contexto e a intensidade da manifestação. Podem reduzir entre, de um lado, a compreensão prática do comportamento individual
apenas temporariamente os níveis de auto-controle ou induzir, igualmente e, de outro, os fatores que o impelem ao comportamento socialmente
desviante. Mais precisamente, a contribuição de Agnew consiste na inter-
108. Exemplo de Agnew: “assault is more likely when people believe that violence is an appropriate response
pretação criminológica destas mediações e é o que permite a formulação
to being treated in a disrespectful manner”. AGNEW, Robert. Pressured… cit., p. 3. de indicadores de predição (predictors) e a projeção das probabilidades do
109. AGNEW, Robert. Pressured… cit., p. 12.
110. “The classic statements of the strain explanation of crime hold that strain or frustration results when crime e dos processos de vitimização, a partir da indicação dos fatores que
individuals experience structural blockages to culturally prescribed goals, and that when indivi- influenciam os efeitos da tensão e das emoções negativas.
duals face such goal blockages, they may develop nonconformist or criminal responses as a way
to compensate for the inability to reach their goals by conventional methods. Most strain theories
point to blocked occupational or economic goals as the primary source of strain and a major cause A análise reflexiva necessária, no entanto, revela que a teoria da tensão
of crime (Merton, 1938, Social structure and anomie; Cloward and Ohlin, 1960, Delinquency and
opportunity). Because traditional gender roles dictate that personal economic success is of little acaba por pressupor uma configuração hegemônica dos valores culturais,
importance to women, the classic statements of strain theory paid little attention to female crime – a com certa proeminência do êxito econômico. Consequência indesejável disso
glaring omission, given that women have historically made up a significant proportion of the poor.
In the past, career goals were not culturally emphasized as much for females as for males. But more
recently, women have come to hold higher educational and career goals, and women increasingly
seria reconhecer que indivíduos menos providos de condições para alcançar
occupy “breadwinner” roles due to changing trends in marriage and family arrangements. Thus, the o sucesso econômico estariam, portanto, mais propensos ao crime, em ge-
potential for women to experience economically based strain should be increasing. This is especially
true given the fact that women are often employed in “pink-collar” or traditional female jobs that do neralização não só duvidosa como bastante questionável.
not pay as well as traditional male jobs. In addition, many women who aspire to high-paid positions
have found their access to them blocked by the ‘glass ceiling’. Despite changing roles and economic
situations for women, there has been surprisingly little empirical research examining female crime
A crítica criminológica à GST, no entanto, vai além da questão
from the classical strain perspective. However, one line of research provides a partial test of strain classista. Nem sempre é fácil identificar uma evolução desenvolvimental
theory by examining the differences between women who hold egalitarian gender-role attitudes
versus those who hold more traditional gender-role attitudes. Women with liberal or egalitarian linear da personalidade, nem mesmo é possível apegar-se a uma referên-
gender-role attitudes tend to have higher career goals, and thus have a greater potential to experience
strain, in comparison with more traditionally minded women. In turn, liberal women should have hi- cia universal de valores114. Apesar de Agnew apresentar amplo repertório
gher crime rates, and their crime rates should be similar to those of males. However, several studies
of this issue have failed to support this argument, finding instead that nontraditional females are no sobre os distintos fatores que incidem, em termos de maior ou menor
more likely to experience strain than traditional females (Lieber, 1994, Bridging the gender gap in controle social, distintamente sobre indivíduos mais ou menos propensos
criminology). It should also be noted that the empirical literature supporting classical strain theory
in general has been limited at best (Burton and Cullen, 1992, The empirical status of strain theory).
Robert Agnew recently proposed a significant revision to classical strain theory. This ‘general strain
theory’ is broader in scope than traditional strain theories, holding that forces other than blocked 111. AGNEW, Robert. Pressured… cit., p. 37.
economic goals can cause strain and crime (Agnew, Foundation, 1992, Legacy, 1997). Broidy and
Agnew have recently argued that general strain theory can be usefull in explaining female crime, 112. Por exemplo, em situações nas quais o crime foi induzido por comportamento negativo da vítima (ex.
given that strain may result when and individual is presented with negative or noxious stimuli but de Agnew: criança punida por mau comportamento), motivado por circunstâncias muito particulares da
lacks the resources to remove them. Thus, unhappy relationships, physical abuse, unfulfilling jobs, situação concreta (ex. de Agnew: censura no trabalho por inexperiência laboral relevante), ou tensão
and responsibility for housework and childcare may lead to strain and crime among women. Future desproporcional ou tratamento injusto, AGNEW, Robert. Pressured… cit., p. 63.
research on strain theory and female crime will likely build upon the idea that characteristiscs of 113. Em detalhes, AGNEW, Robert. Pressured… cit., p. 38-46.
the female gender role may contribute to strain and crime among women”, COSTELLO, Barbara; 114. DE COSTER, Stacy, KORT-BUTLER, Lisa. “How general is General Strain Theory? Assessing de-
DUNAWAY, R. Gregory. “Strain explanation of crime”. RAFTER, Nicole Hahn (org) Encyclopedia terminacy and indeterminacy across life domains”. Journal of Research in Crime and Delinquency,
of women and crime. Arizona: Oryx, 2000, p. 255-256. 43/2006, p. 297-325.
54 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 55

ao comportamento desviante, há enorme variação entre as estruturas de de tensão também ser delimitado conforme uma referência de “metas eco-
personalidade “criminoso/não-criminoso” e seu desenvolvimento é muito nômicas aceitáveis”, em oposição a “metas econômicas irreais e ambiciosas”,
mais embaraçado do que propriamente harmônico, oscilando muito entre podendo ser mensurado a partir das percepções sobre as metas (pressão ex-
emoções negativas e positivas. A formação de subculturas em função do trema para se atingir determinado lucro e avaliações de desempenho também
contexto evidencia que não há a formação hegemônica de uma identi- centradas no lucro) e os meios necessários para se alcançá-las, ou, no caso
dade cultural e das motivações, mas sim de múltiplas manifestações de das corporações, sintetizando a documentação organizacional e o confronto
subsistemas valorativos, algo que alcança mesmo as próprias fundações a partir de entrevistas com os principais dirigentes118.
do modelo mertoniano (muito embora em Merton haja plena consciência No campo mais próprio da criminologia econômica, as tensões orga-
da necessidade de mudança nas estruturas sociais que impedem isonomia nizacionais (organizational strains) serão discutidas em detalhes. Com base
na persecução das “metas culturais”). Assim como em Laufer, parece que na teoria da tensão, a vitimologia corporativa tenderia a nos oferecer cons-
de fato a avaliação de modo como a dinâmica da personalidade opera truções sociais e psicológicas que indicam os elementos mais perceptíveis
pode influenciar não apenas no comportamento desviante, deficiência de das estruturas da personalidade envolvendo as organizações. Definitiva-
auto-controle, intolerância e falta de responsabilidade, mas também na mente, as tensões organizacionais são bastante promissoras na proposição
performação de comportamento prossocial115. O domínio das teses do con- de futuras avaliações empíricas.
trole social é especialmente válido para se determinar por que as pessoas
não cometem crimes, observando e avaliando a habilidade de determinados 3.3.1. INTEGRAÇÃO DAS TEORIAS DO CONTROLE E O CON-
grupos sociais e arranjos institucionais para produzir normas efetivas. TROLE SOCIAL DO NEGÓCIO
Para a construção da vitimologia corporativa, interessa a análise
Desde Sir Leon Radinowicz já se falava no abandono das explicações
mais detida da noção de “tensão ocupacional” (occupational strain) 116.
unilaterais, que podem levar apenas a “explicações parciais” (partial explana-
Agnew aponta que a tensão provocada pela inabilidade de atingir as metas
tion)119. Mesmo a separação entre teorias psicológicas e sociológicas já não
ocupacionais ou mesmo educacionais não incrementam os níveis de cri-
faria mais tanto sentido, frente à tamanha complexidade da criminalidade
minalidade. Apesar de que tradicionalmente (Merton, Cohen, Cloward e
contemporânea e as perspectivas explanatórias sistêmicas e multi-fatoriais120.
Ohlin) tende-se a pensar a inadequação de meios para atingir as aspirações
Agnew, por exemplo, propõe expressamente a integração das teorias do con-
ocupacionais e educacionais aumente a incidência de comportamento cri-
trole, tensão e aprendizagem social, já que afetam uma a outra e sua interação
minoso, Agnew apoia-se em dados empíricos para a revisão do impacto
poderia impactar na compreensão do crime121.
das tensões neste âmbito117.
Desde os primeiros estudos de Delbert Elliot, em 1979, surgiram
Agnew reconhece que tensões econômicas podem ser resolvidas mais
hipóteses de integração das teorias do controle social. Terence Thorn-
por crimes voltados à arrecadação do que propriamente envolvendo atos vio-
berry, posteriormente, fala em “diáspora do pensamento criminológico”,
lentos, o que seria o caso da maioria dos crimes de colarinho branco. O nível
115. William Laufer observa, no entanto, que a personalidade não chega a ser um indicador consistente 118. AGNEW, Robert; PIQUERO, Nicole Leeper; CULLEN, Francis T. General Strain Theory and Whi-
para predição de comportamento desviante. Como afirmado, a elaboração de preditivos de compor- te-Collar Crime. SIMPSON, Sally; WEISBURD, David (org). The criminology of white-collar crime.
tamento por ele proposta toma por base a resposta à disciplina na prisão, identidades e diferenças em Heidelberg, Springer, 2009, p. 40. O argumento também seria válido às corporações (p. 40): “Corpora-
relação ao auto-controle, intolerância e falta de senso de responsabilidade, LAUFER, William. The tions may also have trouble achieving more reasonable economic goals thorough legitimate channels.
development of a measure… cit., p. 88. Economic downturns, competition from others, lack of resources, technological changes, changes in the
116. Para a observação das outras formas de tensão (life hassles; negative relations with adults; parental figh- law, and a variety of problems internal to the corporation”.
ting; neighborhood problems; unpopular with opposite sex; clothing strain), AGNEW, Robert; WHITE, 119. RADZINOWICZ, Sir Leon. Adventures in Criminology. Routledge: London, 1999, p. 449.
Helene Raskin. “An empirical test of General Strain Theory”. Criminology 30/1992, pp. 475-499. 120. ROBINSON, Matthew. Why crime? An integrated systems theory of antisocial behavior. New Jersey:
117. Os dados estão registrados em AGNEW, Robert. “Strain and subcultural theories of crime”. SHELEY, Prentice Hall, 2002, 345 p.
Joseph (org) Criminology: a contemporary handbook. Belmont: Wadsworth, 1995; AGNEW, “Building 121. AGNEW, Robert. Pressured into crime… cit., p. 202; expressamente, AGNEW, Robert. Toward a
on the foundation of general strain theory: specifying the types of strain most likely to lead to crime and unified Criminology: integrating assumptions about crime, people and society. New York: New York
delinquency”. Journal of Research in Crime and Delinquency. 38/2001, p. 319-361. Press, 2011, 251 p.
56 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 57

manejando as variáveis que permitiriam a elaboração de modelos explanató- auto-controle (self-control) e vínculos entre as pessoas (bonding domains),
rios122. Thornberry enfatiza a necessidade de se construir teorias dinâmicas sem que, no entanto, possam apreender a dinâmica das interações entre
do estudo da delinquência: “é claro que o comportamento delinquente não elas127. A própria posição de Hirschi, no entanto, não é de todo refratária à
se trata de um produto ou resultado de um processo social recursivo. É parte conciliação teórica entre as teses do controle social, desde que haja sentido
integrante deste processo – que influencia e também é influenciado por efetivo na integração entre as teorias128.
outras variáveis”. A preocupação de Thornberry em conferir maior dinâmi- Ruth Kornhauser, Bob Roshier, Michael Gottfredson e Hirschi, Robert
ca à compreensão da delinquência também passa pela análise das constantes Sampson e John Laub partilham de orientação semelhante. Kornhauser, por
mudanças na própria criminalidade. Nesta medida, assim como nas críticas exemplo, chegou a usar os dados coletados por Hirschi para dizer funda-
às teorias do controle – estático – de Hirschi, permite-se compreender as mentar suas críticas às teorias da tensão. Segundo ela, se alguém rejeita as
várias transformações do crime, “que não mantém a mesma forma nos teses de Sutherland, o que resta é a teoria do controle, já que esta seria uma
diferentes estágios desenvolvimentais”123. Para preservar a efetividade das variante da teoria da desorganização social. Roshier chama a ascensão da
técnicas de isolamento de causa e efeito orientadas à identificação temporal teoria do controle de o “despertar da criminologia pós-clássica” (rise of post-
da sequência de eventos, Thornberry recomenda expressamente que uma classical criminology), não passando as teorias da tensão e desvio cultural de
“explanação completa das causas da delinquência requer a compreensão “relíquias” da fase recente da evolução teórica da criminologia. Bem distintas
desta complexidade”, se for o caso de uma construção acurada e precisa dos da disputa retórica empenhada por Hirschi, Kornhauser e Roshier, as teorias
modelos da delinquência, e não “modelos estáticos excessivamente simplis- do controle social informal, em Sampson e Laub, permitem uma extraordi-
tas”124. Definitivamente, assim como afirmado por Thornberry, “é o que nária combinação entre life-course, avaliação da estabilidade do crime e do
garante a efetividade das estratégias de intervenção” na criminalidade125. comportamento desviante, turning points que levam a mudanças no curso da
As teorias do controle, de acordo com a interpretação desenvolvi- vida de adultos, além de revisões sobre a extensão do capital social. Os fatores
mental de Marc Le Blanc, seriam estáticas na análise da natureza humana. causais e a direção das influências causais experimentam inúmeras – e muitas
Apesar de identificar as principais causas do comportamento desviante, es- vezes contingentes – variações, transformando-se “sistematicamente ao longo
pecialmente as ligações frágeis entre os indivíduos e o baixo auto-controle, do curso da vida” do próprio pensamento criminológico.
não indicam como os controles se desenvolvem no curso da vida (during Independemente de “qual” teoria do controle social ou sobre a cau-
the life span), sem conseguir superar os questionamentos sobre o curso e os salidade da delinquência, mais importante seria a construção de uma base
processos responsáveis pela continuidade ou mudança nos controles. Quer empírica de verificação do controle social dos negócios. Originalmente, John
dizer, ideal seriam modelos integrados, que permitissem analisar, desde a Maurice Clark importa as teorias do controle social para as ciências econômi-
perspectiva do controle, como o auto-controle e o controle social interagem cas, com o seu Social Control of Business. Ao interpretar o negócio como uma
nos contextos da comunidade no decorrer do curso da vida (life course)126. instituição social, inscrita no cerne da vida econômica e das interações entre
Segundo a interpretação de Le Blanc, Hirschi e Gottfredson apenas espe- as pessoas e a comunidade, Clark cria as condições para o desenvolvimento
cificam a estrutura, as relações entre as noções de constrição (constraint), do controle da liberdade de ação econômica. A ausência de controle é res-
122. THORNBERRY, Terence. Empirical support for interactional theory: a review of the literature”. In:
ponsável pela desconfiança mútua entre os agentes econômicos, oportuniza
HAWKINS, J. David. Delinquency and crime. Cambridge press, 1996, p. 199.
127. LE BLANC, Marc. Self-control and social control… cit., p. 213.
123. THORNBERRY, Terence. Empirical support… cit., p. 222.
128. “(...) consistency within a theory is crucial, so crucial that it may require conclusions that one would
124. THORNBERRY, Terence. Empirical support… cit., p. 222. prefer to do without. At the same time, we believe that consistency across theories is no virtue at all. Re-
125. THORNBERRY, Terence. Empirical support… cit., p. 233; mais sobre, WOLFGANG, Marvin; THOR- conciliation of separate theories of crime is either impossible or unnecessary. If they are the same theory,
NBERRY, Terence; FIGLIO, Robert. From Boy to Man, from Delinquency to Crime. Chicago: Chicago reconciliation is not required. If they are different theories, they cannot be made the same without doing
Press, 1987, 221 p. violence (introducing inconsistency) to one or the other, or both. Social control theory and self-control
126. LE BLANC, Marc. “Self-control and social control of deviant behavior”. WIKSTRÖM, Per-Olof; theory are not unique in this regard. They share important assumptions, but they are not the same theory,
SAMPSON, Robert (org). The explanation of crime: context, mechanisms and development. Cambrid- and should be judged on their merits, as should some future theory that attempts to encompass them
ge: Cambridge, 2006, p. 197. both”. HIRSCHI, Travis. Causes of delinquency... cit., p. xiv.
58 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 59

o egoísmo racional e a intimidação entre os players. O controle social do de avaliação de um “bom” sistema de controle: 1) deve ser democrático;
negócio, pelo contrário, representa a “democratização do negócio” (demo- 2) deve apresentar um propósito claro; 3) suficientemente poderoso (obri-
cratization of business)129. gatório à minoria, detecta evasões, previne infrações); 4) eficiente (sem
O controle significa a gradual adequação do negócio a um modelo de comprometer a eficiência do objeto da regulação); 5) priorização na coerção
conformidade às regras de mercado e confiança entre os competidores130. (economize coercion); 6) domina as motivações da natureza humanas, das
Quer dizer, o controle impõe-se sobre o conjunto de interações e transações mais generosas às mais egoísticas; 7) clareza e precisão na imposição de
do negócio, “um sistema de cooperação social por meio da troca recíproca”. deveres; 8) orientação pela experiência ou experimento comprovado; 9)
Embora controle seja essencialmente coerção, ele apenas existe porque há a adaptável; 10) prudente; 11) orientação ao progresso da humanidade134.
colaboração voluntária na construção das regras do mercado. Por essa razão, Em relação ao controle social informal, também escalona pontos para ava-
a coerção se justifica simplesmente “porque houve falha na cooperação em liação: 1) um código de conduta não é apenas escrito, é “vivo”135; 2) não
acordos voluntários para ganho mútuo”131. E pela mesma razão, o controle apenas bem estruturado, mas compreensível e que viabiliza a aceitação das
está a serviço da sociedade, uma vez que está para ela como o estabilizador obrigações; 3) demonstrar as relações básicas de integridade, fidelidade dos
das regras de mercado, permitindo que elas se prestem à confiança no agentes e oficiais em que há confiança. A educação é meio mais eficaz de
mercado e nas instituições. “controlar os controles”, com a introjeção de valores democráticos e dados
concretos sobre o entorno das organizações empresariais e uma série de
A organização da empresa e a disposição dos controles são essenciais referências para desenvolver o raciocínio indutivo dentre os executivos136.
para a regulação do comportamento corporativo, alocação da responsa-
No entanto, a simbiose entre a personalidade dos empregados, dos diri-
bilidade, propósitos das relações de comando, enforcement e mecanismos
gentes e a personalidade da própria empresa torna a questão do controle social
sancionatórios132. Desde Clark, a integração dos controles já é pensada
do negócio ainda mais complexa (conflito de interesse e postulação de direitos,
como combinação inteligente entre controle interno e externo, processos
interesse próprio e cooperação com a performance negocial). Os entraves ao
de tomada de decisão e informalização133. Clark elabora onze indicadores
controle social do negócio passam pela constante pressão pela competição e a
129. CLARK, John Maurice. Social control of business. New York: McGraw-Hill, 1939, p. 4. ameaça do desemprego: “o verdadeiro desafio não está no fato de que se lhe
130. CLARK, John Maurice. Social control of business… cit., p. 126 e ss.
131. “For this reason, when we speak of the ‘social control of business’, we must take some pains to avoid
devem impor aos empregados mais trabalho, mas sim em chegar a um consenso
the implication that business exists first and is the controlled. Control is rather an integral part of busi- sobre o trabalho mais efetivo”. Planejamento econômico e vantagem competi-
ness, without which it could not be business at all. The one implies the other, ant the two have grown
together. But it is worth while distinguishing three levels of control: the informal kind which economic tiva podem ser agressivos137, negando-se-lhes a dimensão moral, o engajamento
groups developed out of their own needs and customs, the kind which courts can develop in the course
of settling disputed cases as they arise, and the kind resulting from legislation which changes the rules de stakeholders e a criatividade nos processos de criação de valor.
for the future, with the definitite purpose of bringing about some new result which the legislators foresee
and desire. When people speak of the social control of business, ‘business’ usually means the system as
it develops under the first two classes of control, which are taken for granted; and ‘control’ refers to con-
As considerações de Clark sobre o controle social do negócio apenas
trol of the last class only. But one cannot look at legislative control intelligently unless one starts with timidamente tocam o problema da ética negocial – “antes de a empresa pro-
at least a fair understanding of the character and tendencies, virtues and limitations, of the more stable
substratum of law which furnishes the point of departure for legislation. Indeed, it does far more than duzir bens, deve produzir homens e mulheres satisfeitos com sua própria
this, for it pervades legislation itself, via the process of interpretation, and shows a considerable capacity
to resist attempts to change it by the legislative route. This underlying system of control maintains what
we call ‘individualism’; and the essential meaning of business, from our present standpoint, is private ter than nothing, especially if a large measure of decentralization is possible, so that the units of decision
gain getting subject top at least the individualistic variety of restraints”, CLARK, John Maurice. Social are numerous; then there can be numerous opportunities for worker participation, and correspondingly
control of business… cit., p. 6-13. more delegates. Experience shows that, once the atmosphere is right, all questions of internal discipline,
punctuality, absenteeism and so on can safely be left to the workers themselves to regulate, thought their
132. CLARK, John Maurice. Social control of business… cit., p. 252 e ss. committees, and that there is no part of the managerial problem which does not become easier if the
133. “Progress in this sphere depends also on the internal atmosphere of the business unit. The worker will workers are taken into full consultation”, CLARK, John Maurice. Social control of business… cit., p. 90
give his best only if he identifies himself with his working unit, and has towards it sentiments of pride 134. CLARK, John Maurice. Social control of business… cit., p. 16.
and of loyalty. This is largely a matter of the personal relations between management and managed, but
it depends also to some extent on securing to workers some participation in management. The importan- 135. “The code as lived, not merely as written, must measure up to its task of guiding the pursuit of private
ce of this is both exaggerated and underestimated. In a large firm the vast majority can play little part in gain into channels of efficient productive service to the public”, CLARK, John Maurice. Social control
management; the workers may elect delegates so gew that the election interests only the active minority. of business… cit., p. 219.
What is missing in the large firm is personal contact between management and managed, and for this 136. CLARK, John Maurice. Social control of business… cit., p. 232.
participation in management through delegates is but a poor substitute. On the other hand, it can be bet- 137. CLARK, John Maurice. Social control of business… cit., p. 87.
60 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 61

condição (self-supporting)”138 – . Apesar de conhecer a interpenetração de que o exercício do controle não incide sobre a personalidade, mas sim sobre a
preferências políticas que podem comprometer a realização democrática do empresa, na empresa ou entre empresas, o que será explorado na propositura
controle social do negócio139, a integração dos controles em Clark parece da vitimologia corporativa.
não haver superado a instrumentalidade e um vago referencial ontológico
à democracia, dizendo muito a respeito das formas de obediências, mas 3.4. EDWIN SUTHERLAND E A ASSOCIAÇÃO DIFEREN-
nada constrói em termos de cooperação e reinvenção da condução ética da CIAL
empresa. Esta inteligência, no âmbito de uma vitimologia corporativa, ser- As principais reflexões do pensamento criminológico de Edwin Su-
viria para compreender o que leva uma empresa a vitimizar, mas informaria therland sobre a teoria da associação diferencial encontram-se no seminal
muito pouco sobre o que a levaria a respeitar a vítima do comportamento Principles of Criminology, que teve sua primeira edição em 1924. Sutherland
corporativo socialmente danoso. propõe a explicação das condições que constituem um ambiente propício
No âmbito de uma criminologia corporativa, “a aprendizagem de ao comportamento desviante e a prática de “crimes do colarinho branco”
normas culturais sobre o comportamento desviante nos negócios ou na (white collar crime), expressão cunhada em apresentação na American So-
indústria causa violação das leis penais e regulatórias”140. Os estudos crimi- ciological Association, em 1939. Ao que tudo indica bastante influenciado
nológicos voltados às infrações econômicas (ocupacionais ou mesmo nos pelo pensamento social de Charles Richmond Henderson143, as ideias de
crimes corporativos), em regra, tomam como ponto de partida, o ambiente Sutherland desafiam a teoria geral do crime, ao trazer evidências de que
cultural ou ético. Robert Apel e Raymond Paternoster iniciaram avaliações a posição social e o status dos indivíduos não só é relevante como é es-
sistemáticas de diretrizes corporativas (normative guidelines) e a forma como sencial para entender a causa do crime. De acordo com as interpretações
concebiam o comportamento antiético ou ilegal sob determinadas condições, de Sutherland, os esforços criminológicos em explicar o comportamento
além dos mecanismos sancionatórios e incentivos ao cumprimento norma- criminoso por meio de perspectivas e valores generalistas apresentam ren-
tivo (compliance)141. A análise do contexto em função do qual se operam as dimento insatisfatório, são “fúteis” e concebem de forma indiscriminada
organizações empresariais desloca a reflexão criminológica da personalidade o comportamento desviante e conforme ao direito144.
para as estruturas e oportunidades da própria organização142. Disso extraímos and violent crime: a multi-level study of collective efficacy. Science, 277, 918-924), APEL, Robert;
PATERNOSTER, Raymond. “Understanding ‘criminogenic’ corporate culture… cit., p. 20.
138. CLARK, John Maurice. Social control of business… cit., p. 221. 143. É bem provável que Gaylord e Galliher estejam certos quanto ao legado de Henderson em Sutherland
e seus seguidores: “Social position affects conduct. Crime is more frequent among the lower classes
139. “Thus at many levels and in many ways the structure of legitimate control is honeycombed with irre- than among the upper classes. Criminals are recruited from their own kind. But it should be added that
levancies, and its legitimate purposes perverted. And a system of control, to be reasonably successful, rich criminals are more likely to escape detection, arrest, and punishment, and that we must in justice
must not only devise wise measures but wage an endless and vigilant combat against all these forms of discriminate carefully between the ‘lower classes’ and the great majority of the worthy and honest
perversion, as well as against the more legitimate and unavoidable difficulties. We must be on our guard working people of small incomes. These latter often belong to the ture ‘upper classes’. The real dis-
not only against disguised measures of self-interest, but against the tendency of the reformer to compare tinction is one of character, not of income. The crimes of merchants are those of cunning and intrigue
the imperfections of existing conditions with the anticipated results of his reform measures, conceived rather than of force. The immoral and cruel acts of employers which drive men to strike are usually
as workin perfectly. They will not work perfectly, and this hab better be expected from the start. We within the technical forms of law, and are not outwardly sensational and tangible, while the beating
should learn to compare existing imperfect conditions with the otgher imperfections which experience of a non-union workman is covered by statute”. (…) “The corruption of partisan politics, the entire
theaches us are sure to result from attempts at control”, CLARK, John Maurice. Social control of busi- spoils system, favors the increase of crime. The successful politician is the demigod of the immature
ness… cit., p. 493. youth of a city ward, and hist example is more powerful than that of Washington or Lincoln, because
140. APEL, Robert; PATERNOSTER, Raymond. “Understanding ‘criminogenic’ corporate culture: what whi- these respectable gentlemen are not so well known, and have no places to fill. Bribery in all its forms
te-collar crime researchers can learn from studies of the adolescent employment-crime relationship”. In: stimulates cupidity and dulls conscience. The saloon-keeper is an authority and guide in the evil
SIMPSON, WEISBURD. The Criminology of White-Collar Crime. New York: Springer, 2009, p. 20. ways of politics. Under a vicious system of appointments to office the police, who should suppress
141. “Empirical evidence that such norms are at work consists of the fact that some industries have higher rates vice, sometimes derive private revenue from gambling-dens and brothers as the price of immunity
of criminal and regulatory infractions than others, and within a given industry some firms offend more from interruption of their wicked trades. When the unscrupulous agents of city railways, railroads,
than others. Such empirical regularities, it is explained, cannot be due to the different motivational stances and other great corporations purchase the nominations and control the elections of aldermen in their
of individual actors, but to the cultural conditions existing within industries and individual firms”, APEL, own interest and against the public, crime is fostered through the very institutions of justice and law,
Robert; PATERNOSTER, Raymond. “Understanding ‘criminogenic’ corporate culture… cit., p. 20. and by those whose intelligence and strength makes them most responsible and guilty”, GAYLORD,
142. “Those interested in studying the neighborhood origins of crime are adamant that emergent properties Mark; GALLIHER, John. The criminology of Edwin Sutherland... cit., p. 19.
of communities create fertile soil for criminal conduct. That is, crime rates are higher in some nei- 144. SUTHERLAND, Edwin. Sutherland papers… cit., p. 9. Apesar disso, Hirschi manteve-se firme na
ghborhoods than others not because some neighborhoods attract bad people (a compositional effect), but oposição científica: “Analytic induction proceeds by reformulating the hypothesis and-or redefining
because people are made bad or worse because of the conditions existing within those neighborhoods the phenomenon to be explained each time a deviant case is encountered. The ability to redefine the
(a contextual effect). For example, a crime-ridden communities may lack strong social ties or social phenomenon may trick the user of analytic induction into merely defining that which he was to have
capital, or may otherwise suffer from weakened collective efficacy (Sampson, 1997, Neighborhoods explained. Yet, to my knowledge, Sutherland never felt called upon to redefine crime. Crime began and
62 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 63

A formação prévia do criminoso e sua posição nas hierarquias sociais cial seria uma combinação entre a aprendizagem social e as investigações da
desafiam também os questionamentos mais básicos da teoria social, sobretu- causa do comportamento desviante. A sua vez, o comportamento desviante
do o da obediência às normas. O indivíduo que se engaja na criminalidade surge mediante a associação com outros indivíduos que já estão engajados
econômica em regra não menospreza nem o ordenamento jurídico nem as em práticas delitivas, à distinção do que se afirmava nas teses do controle
normas sociais145. Pelo contrário, reconhece os padrões de coesão social e social148. As tensões da sociedade e os níveis de desorganização social apenas
defende a moral vigente. O que o diferencia do “criminoso tradicional” é a aumentam as possibilidades de associação diferencial orientada à aprendi-
oportunidade que se lhe oferecem as organizações empresariais para delin- zagem de comportamento desviante. No estudo monográfico que leva o
quir. Por essa razão é que as teses de Sutherland sobre a associação diferencial nome de White-Collar Crime, o conceito encontra a delimitação de “crime
adquirem verdadeira proeminência, valendo como sistema de ideias, uma cometido por uma pessoa respeitável e de elevado status social em função de
vez que a teoria da associação diferencial acomodou uma série de conceitos e sua ocupação”, cujo especial processo de socialização o impele a satisfazer seus
perspectivas da sociologia do comportamento criminoso e da causa do crime anseios na ilegalidade. O caráter associativo e a dependência de estruturas que
de seu tempo, especialmente em razão da Crise de 29 (Great Depression). Su- oportunizam o crime, na verdade, estão concentrados em poucos “ofensores
therland firmou-se na constelação dos criminólogos ao articular consistência perspicazes” e em poucas corporações149.
frente a outras disciplinas (psiquiatria e psicologia) e pelo impacto no campo Os elementos a partir dos quais Sutherland estrutura a criminalidade
científico, abrindo um novo campo de pesquisa nas ciências criminais146, e do colarinho branco também são bastante representativos para a consolida-
quem sabe porque se soma à reação ao positivismo, colocando os poderosos ção de uma criminologia econômica. Trata-se de (1) pessoas respeitáveis da
no foco do sistema de justiça criminal. classe média ou alta, envolvidas em atos que não apenas lhes acarreta custos
Valendo-se de sua formação em interacionismo simbólico, Suther- econômicos, mas também desorientação e que por essa razão deveriam
land adquire um lugar privilegiado na história das ideias criminológicas ao individual´s calculation of costs and benefits, nder the assumption of constained self-interest, shows a
cunhar a expressão white-collar crime. O que move a associação diferencial é profit fot the illicit action. Even individuals who are bonded to prosocial norms may be exposed to situ-
ational inducements to commit crime or use durgs. Even one bonded to society may engage in deviant
o aprendizado ao crime como resultado da interação com valores antissociais behavior if the potential cost seems low (if, for example, the risk of detection by valued prosocial others
is perceived as low) and the benefit seems high.; 3. Finally, antisocial behavior results when a child
e padrões de comportamento criminoso147. Quer dizer, a associação diferen- is bonded to immediate socializaing units of family, school, community, or peers who hold antisocial
beliefs or values. When though are bonded to parents who use drugs or are engaged in crime, to schools
or communities that tolerate drug use and dealing, or to peer groups that have antisocial practices, it is
remained simply “violation of the law”. Instead, he reformulated his hypothesis until they were compa- likely that they will behave in a manner consistent with the norms and values of these groups. Thus,
tible with all known facts about crime. Hypotheses encompassing the cannibalism of the Donner Party, antisocial bonding provides a third direct path to antisocial behavior. This is consistent with differential
the murder of one newspaper editor by another, and a slum boy stealing a bike, are of necessity highly association theory”, CATALNO, Richard; HAWKINS, J. David. “The social development model: a
abstract. Given the inferential distance between the concept of such hypotheses and concrete events, it is theory of antisocial behavior”. HAWKINS, J. David. Delinquency and Crime. Cambridge: Cambridge
not surprising that the theory of differential association is virtually nonfalsiable (it is also not surprising Press, 1996, p. 158. Em Hirschi, a ligação (attachment) permite predizer o comprometimento (com-
that empirical predictions derived from the theory tend to be trivial)”. mitment) e este o envolvimento (involvement), ao passo que a busca por oportunidades que levem ao
145. John Hagan explora as implicações estruturais de Sutherland e extrai delas a noção de que o crime de comportamento prossocial influenciam o aprendizado a partir de interações sociais cooperativas. O
colarinho branco, em grande medida, constitui também crime organizado, no sentido de uso posições certo vício do pensamento criminológico tradicional radica no fato de que as intervenções preventivas
na organização e recursos para a comissão dos delitos: “It is not gradational status, but rather structural para reduzir o comportamento antissocial são orientadas a interromper o ciclo de atividades antissociais,
position in the social organization of work that makes such forms of organized crime possible. Relatio- e não a promoção de comportamento prossocial.
nal conceptions of class penetrate to the heart of this matter by locating individuals in structural terms. 148. “White collar criminals, like professional thieves, are seldom recruited from juvenile delinquents. As
The relational indicators we use in this chapter, ownership and authtority, locate individuals in class part of the process of learning practical business, a young man with idealism and thoughtfulness for
positions that are directly relevant to the perpretation of white-collar crime as organized crime”. Hagan others is inducted into white collar crime. In many cases he is ordered by managers to do things which
concebe também a noção de “vantagem corporativa” (corporate advantage) e expõe a inefetividade he regards as unethical or illegal, while in other cases he learns from those who have the same rank
da persecução penal às organizações comerciais da forma como tem sido concebida, HAGAN, John. as his own how they make a success. He learns specific techniques of violating the law, together with
Structural criminology. New Brunswick: Rutgers, 1989, p. 20 e 24. definitions, and situations in which those techniques may be used. Also, he develops a general ideology.
146. Sobre o “legado de Sutherland”, GAYLORD, Mark; GALLIHER, John. The criminology of Edwin This ideology grows in part out of the specific practices and is in the nature of generalization by phrases
Sutherland. New Brunswick: Transaction, 1988, p. 6 e ss. such as “We are not in business for our health”, “Business is business”, and “No business was ever built
147. A dinâmica do comportamento antissocial pode ser compreendida de três formas distintas: “(…) 1. on the beatitudes”. These generalizations, whether transmitted as such or constructed from concrete
Antisocial behavior results when prosocial socialization breaks down, that is, when people are denied practices, assist the neophyte in business to accept illegal practices and provide rationalizations for
the opportunities to parcitipate in prosocial life or their skills are inadequate for prosocial performance them”, SUTHERLAND, Edwin. White collar crime: the uncut version. New Haven: Yale University
to produce reinforcement, or when the environment fails to reinforce them consistently for effective Press, 1983, p. 245.
prosocial performance. This conforms to Hirschi´s (1969) theory of social control. Antisocial beha- 149. Acentuando a certa antipatia de Sutherland em relação às classificações do “tipo de pessoa”, LAUB,
vior results when low levels of prosocial bonding develop, providing few internal constraints against John; SAMPSON, Robert. “The Sutherland-Glueck debate: on the sociology of criminological knowle-
antisocial behavior; 2. Antisocial behavior results, even in the presence of prosocial bonding, when the dge”. American Journal of Sociology, 96/1994, p. 1402-1440.
64 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 65

ser considerados “crimes” (o que mais tarde ficou conhecido como debate teoria dos crimes de colarinho branco. Donald Cressey, desde The respectable
Sutherland-Tappan); (2) estas situações de colarinho branco ocorrem como criminal, seguiu estudando a especialidade do comportamento socialmente
resultado do envolvimento em negócios ou ocupações; (3) crime do co- desviante nos casos de colarinho branco, que desafiam as teorias conven-
larinho branco prevalece em determinados setores da indústria150; (4) o cionais ao não trazer consigo nem patologia nem passado desestruturado.
engajamento em crimes do colarinho branco varia conforme o setor da Cressey talvez tenha sido o primeiro a apontar a ironia de que os “mais
indústria ou da atividade empresarial; (5) nem os crimes convencionais respeitáveis” (most respectable), em termos de reputação e posições das hie-
de rua, nem mesmo os crimes de colarinho branco podem ser atribuídos a rarquias sociais, são, ao mesmo tempo, os maiores criminosos, vulnerando
fatores como pobreza ou carência econômica, ou ainda a fatores sociopatas sistematicamente a sociedade com o crime do colarinho branco156.
ou psicopatas das pessoas; (6) os fatores que explicam a criminalidade de James Coleman descreveu o aperfeiçoamento contínuo das teses de Su-
classe baixa ou trabalhadora não se diferenciam dos crimes de colarinho therland. No lugar da noção abrangente, a investigação do crime e do sistema
branco; (7) todo crime deve ser aprendido e este aprendizado se dá a partir de justiça criminal passou a abranger simultaneamente todos os tipos de crimes
da interação com o outro e com as “definições” legais151. e ofensores para enriquecer a área e ampliar o entendimento dos problemas,
Sutherland amplia, portanto, a noção de criminalidade econômica introduzindo construções do tipo “entidade corporativa” (corporate entity) e
para a violação da confiança e, consequentemente, produção da descon- “ação corporativa” (corporate action)157. A ênfase na orientação sociológica da
fiança. O impacto na sociedade reflete-se em fragilização da moral social criminologia, que mantém uma perspectiva crítica e mais tendente à pesquisa
e, em última consequência, incrementa os níveis de desorganização social. qualitativa (na maior parte das vezes, antipositivista), estende a compreensão
A argumentação de Sutherland apoia-se no impacto negativo que abusos da criminalidade para além das condutas que a sociedade convencionalmente
sobre a “confiança interpessoal”, a se considerar a posição de “referência acredita merecedora de punição, abrangendo também os poderosos (as elites,
moral” que as pessoas de determinada posição social assumem na socieda- as corporações, autoridades públicas, militares)158. Após Sutherland, foi se con-
de, já que definitivamente as pessoas se inspiram e se orientam conforme solidando a ideia de que a criminologia simplesmente falha em conceber a
aqueles que “emulam”. Esta questão foi amplamente difundida como o criminalidade dos poderosos. James Coleman reconhece ele próprio que esta
despertar da criminologia econômica, recebendo críticas sobre o fato ideia se deve em grande medida às determinantes deste contexto, nas quais
de que os crimes de colarinho branco, na maioria dos casos não seriam, as estruturas sociais do capitalismo industrial e a “cultura da competição” são
“ofensores de elite”, mas sim membros da classe média e com algum tipo essenciais para a compreensão dos crimes de colarinho branco159.
de interação prévia com o sistema de justiça criminal, como em David
Collin Goff, em introdução a Sutherland, afirma que os questionamentos
Weisburd152, Gilbert Geis153, Neal Shover e Kevin Bryant154, apontadas
morais de Sutherland fazem que ele pareça estar sempre inspirado por indig-
também por Adler, Mueller e Laufer155.
nação moral (moral indignation)160. Mesmo assim, os estudos criminológicos
Por outro lado, muito se pode aprender com os desenvolvimentos da
156. CRESSEY, Donald. “The respectable criminal”. Trans-action, 2/1965, p. 12-15.
150. Esta variação foi testada sob a forma de convergência em APEL, Robert; PATERNOSTER, Raymond. 157. COLEMAN, James. “The theory of white-collar crime: from Sutherland to the 1990s”. SCHLEGEL, Kip;
Understanding ‘criminogenic’ corporate culture… cit., p. 15 e ss. WEISBURD, David (org) White-collar crime reconsidered. Boston: Northeastern Press, 1992, p. 53-77.
151. SUTHERLAND, Edwin. “White-collar criminality”. American Sociological Review. 5/1940, p. 1-12. As construções de Coleman serão decisivas para a compreensão da ideia de concentração e abuso de poder
152. WEISBURD, David et al (org). Crimes of the middle classes: white-collar offenders in the Federal nas corporações: “a symmetric allocation of rights between corporations and persons can lead in practice
Courts. Chelsea: Yale Press, 1991, p. 74 e ss.; em sentido contrário, HAGAN, John; PARKER, Patricia. to an asymmetric realization of interests. (…) amount the variety of interest that men have, those interests
“White-collar crime and punishment: the class structure and legal sanctioning of securities violations”. that have been successfully collected to create corporate actors are the interests that dominate the society”,
American Sociological Review, 50/1985, p. 302-316; BERK, Richard. “An introduction to sample se- COLEMAN, James. Power and structure of society. New York: Norton, 1974, p. 10 e ss.
lection bias in sociological data”. American Sociological Review, 48/1983, p. 386-398. 158. SIMON, David; EITZEN, Stanley. Elite deviance. Boston: Allyn and Bacon, 1982, 277 p.
153. GEIS, Gilbert. “The evolution of the study of corporate crime”. BLANKENSHIP, Michael (org) Un- 159. “Decrease in the availability or attractiveness of legitimate opportunities will normally increase the
derstanding corporate criminality. New York: Garland, 1993, p. 3-28. attractiveness of illegal opportunities”, COLEMAN, James. The criminal elite: understanding white-
154. SHOVER, Neal; BRYANT, Kevin. “Theoretical explanations of corporate crime”. BLANKENSHIP, -collar crime. New York: St Martin´s, 1987, p. 425.
Michael (org) Understanding corporate criminality. New York: Garland, 1993, p. 141-176; SHOVER, 160. Gaylord e Galliher notam bem que Geis e Goff foram amplamente influenciados pela busca do senso de
Neal; HOCHSTETLER. Choosing white-collar crime. Cambridge: Cambridge Press, 2006, p. 130 e ss. “indignação” e “vituperação” causado pelo crime e criminosos do colarinho branco, GAYLORD, Mark;
155. ADLER, Freda; MUELLER, Gerhard; LAUFER, William. Criminology… cit., p. 350. GALLIHER, John. The criminology of Edwin Sutherland... cit., p. 18.
66 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 67

apresentam poucas evidências a respeito dos processos de vitimização. Faltam cas como vítimas no sistema de justiça criminal seja estratégico como
fundamentações empíricas mais consistentes que possam servir de orienta- mobilização e inclusão de uma dimensão estrutural, na medida em que
ção à formulação de políticas públicas e iniciativas de controle social, ou que as empresas aportam recursos em prol do sistema164.
dêem conta das dinâmicas dos negócios em economia global constantemente
submetida a processos de diferenciação. Pouco se fala no dano causado pela 3.5. TEORIA DA ESCOLHA RACIONAL, ATIVIDADES RO-
criminalidade do colarinho branco, apesar da postura crítica de Sutherland TINEIRAS E ESTILO DE VIDA
sobre a “aparente desconsideração dos sérios danos causados pelos crimes do Desde os estudos originais de Gary Becker, a explicação racional do
colarinho branco”161, com montas imensuráveis de perdas monetárias. crime argumenta que o comportamento desviante obedece a uma série de
Talvez por essa razão Gilbert Geis tenha se destacado ao demonstrar variáveis, tornando-o não apenas provável como mensurável. O compor-
algumas das insuficiências do pensamento criminológico de Sutherland. Geis tamento desviante responde a uma série de estímulos à maximização do
indica que a falta de maior especificação entre a criminalidade corporativa próprio benefício e interesse próprio (self-interest) orientados à evitação
e a criminalidade dos executivos no âmbito corporativo afetaria o alcance da punição e da imposição de um mal ou pena ao infrator165. Os estudos
explicativo não apenas do comportamento ofensor, mas das próprias dimen- da racionalidade do comportamento socialmente desviante estiveram por
sões da vitimização. Geis era mais descritivo, afirmando a qualidade ilícita de muito tempo limitados a compreender a relação custo/benefício do enfor-
determinados atos, as consequências serias e os danos do crime de colarinho cement e controle social formal166.
branco, justificando a necessidade de controle diferenciado para este tipo de Os fundamentos da teoria social em James Coleman e da construção
ofensa. Geis entendia que o colarinho branco era uma forma diferenciada de de modelos matemáticos promoveram enormes avanços na área, incremen-
criminalidade. Os ofensores são qualitativamente diferenciados e, portanto, tando a avaliação de probabilidade do crime e propensão à vitimização167.
os modelos explanatórios devem ser diferentes162. Assim como em Suther- Mais recentemente, a questão tem se transformado bastante no campo das
land, porém, também em Geis a atenção da teoria do colarinho branco não ciências econômicas, no debate sobre os incentivos adequados (nudges)
dedicou maior espaço à concepção da responsabilidade das corporações. não apenas de reação à coerção normativa, mas no sentido de orientação
Mesmo assim, é com a associação diferencial que se desperta para a cooperativa de comportamento, revestindo o comportamento de sentido
criminalidade ocorrida no âmbito das corporações, e com ela, ainda que prossocial168. No âmbito do pensamento criminológico, a especificação
de forma bastante tímida, os processos de vitimização. Esta timidez pode deste comportamento desviante racional, assim como em Derek Cornish
ser demonstrada, por exemplo, na crítica de John Hagan. Em dialógo e Ronald Clarke, pode ser observada a partir das tomadas de decisão do
com a sociologia weberiana (problematizando se a racionalidade formal ofensor. O processo decisório atenderia, em regra, a uma avaliação de custos
no direito contribuiria para a ascensão do capitalismo; ou se, alternati- e benefícios dividida em “duas fases”: uma sobre o possível envolvimento
vamente, o capitalismo contribuiria para a ascenção da lógica racional 164. HAGAN, John. Disrepute… cit., p. 62-63.
no pensamento jurídico), Hagan mensura as assimetrias e os distintos 165. BECKER, Gary. “Crime and punishment: an economic approach”. Journal of Political Economy,
76/1968, p. 169-217; aportando a reação estatal como variável do comportamento econômico, EHR-
papéis das corporações nos tribunais. Ainda seguindo a linha weberiana LICH, Isaac. “Crime, punishment, and the market for offenses”. Journal of Economic Perspectives,
10/1996, p. 43-67.
das formas de dominação, Hagan evidencia que os litígios envolvendo 166. PILIAVIN, Irving et al. “Crime, deterrence, and rational choice”. American Sociological Review,
51/1986, p. 101 e ss.
as empresas como vítimas tem maior êxito do que em relação às pessoas 167. Repete-se de enorme influência também em Robert Sampson, COLEMAN, James. “Social theory, so-
naturais vitimizadas163, apesar de que o envolvimento de pessoas jurídi- cial research, and a theory of action”. American Journal of Sociology, 1986, pp. 1309-1335. O inter-
câmbio entre os avanços do conhecimento matemático e das ciências naturais (especialmente a noção de
inferência causal na observação e experimentação), imbuídos do ideal progressista de orientação para a
161. SUTHERLAND, Edwin. Sutherland papers... cit., p. 16. mudança social (social change), já se observava desde os clássicos estudos de Beccaria, GROENEWE-
162. Mais sobre em MEIER, Robert. “Geis, Sutherland, and White-collar crime”. PONTELL, Henry; SHI- GEN, Peter. Eigtheenth-century economics: Turgot, Beccaria and Smith and their contemporaries. Lon-
CHOR, David (org). Contemporary issues in crime & criminal justice: essays in honor of Gilbert Geis. don: Routledge, 2002, p. 18.
New Jersey: Prentice Hall, 2001. 168. THALER, Richard; SUNSTEIN, Cass. Nudge: improving decisions about health, wealth, and ha-
163. HAGAN, John. Disrepute… cit., p. 43. ppiness. London: Penguin, p. 74 e ss.; 83 e ss.
68 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 69

no crime, e a outra sobre engajar-se nele169. pontos de concentração do comportamento desviante e, com base nesta
A integração entre as teorias da escolha racional, atividades rotinei- antecipação racional, criar modelações de prevenção e intervenção173. Mais
ras e estilo de vida prestam uma importante contribuição à consolidação especificamente em relação à propensão racional à vitimização, o modelo de
do pensamento criminológico, não apenas por permitir a construção de Cohen e Felson aponta três características: 1) adequação ou atração da vítima
modelação de prevenção e intervenção, mas também por incrementar a como alvo; 2) intencionalidade ou motivação do ofensor; 3) percepção de
capacidade explanatória das variações de incidência do crime. No âmbito que a vítima não despertará a atenção de terceiros ou vigilância174. Quanto
da vitimologia, há inclusive análises sobre a certa coincidência estatística mais vulnerável ou atraente a vítima, mais convincente são os argumentos
entre a quantidade vítimas e ofensores, embora qualitativamente a forma para a escolha racional do ofensor em função dos benefícios de seu comporta-
como são conduzidas e realizadas as interações sociais e mudanças no con- mento, o que justificaria intervenções e estratégias preventivas em ambientes
texto seria já suficiente para explicar as variações na criminalidade e as que concentram vítimas mais vulneráveis175.
oportunidades para o comportamento desviante170. A avaliação das atividades rotineiras e seu impacto na criminalidade
Lawrence Cohen e Marcus Felson, em investigações que buscavam remonta aos estudos organizados por Ronald Clarke e Marcus Felson, mo-
as relações possíveis entre as transformações da família no pós-Guerra e mento determinante no pensamento criminológico para situar as influências
padrões da vida cotidiana na sociedade, extraíram relevantes tendências da rotina cotidiana do ofensor e vítima como critério básico de “exposição
ao crime” 176. As teorias do estilo de vida (lifestyle) incrementam o potencial
explanatórias sobre as alterações do perfil da criminalidade: taxas de cri-
explicativo do impacto das transições demográficas, atividades profissionais
minalidade, tipos de crimes, e tempo e lugar em que se realizam. Estes
ou de lazer no risco de vitimização, sobretudo pelos indicadores de adap-
processos de racionalização do comportamento partem do princípio de
tação individual às limitações objetivas impostas pelo contexto177. Esta é a
que as ocorrências criminosas não estão genericamente difundidas na so-
compreensão das relações causais entre a rotinização da vida social e o modo
ciedade171. O domínio do conhecimento sobre perfil da criminalidade é
como se configuram os contatos sociais em função da “exposição” a deter-
indicativo do risco de vitimização, da probabilidade do envolvimento em
minado contexto178, valendo tanto para a interpretação das causas do crime
contexto criminoso e da identificação de oportunidades para o comporta-
quanto dos processos de vitimização. A teoria da escolha racional facilmente
mento desviantes forjadas pelo fluxo de pessoas e capital. O engajamento
se combina com o estilo de vida, uma vez que as escolhas individuais, em
no comportamento desviante depende de uma serie de variáveis, abrangen-
do a capacidade de encontrar as parcerias ou a organização adequada, em 173. “This means that some victimizations are less likely to take place at home and are more likely to occur
in urban áreas, work sites, schools and even at fast food establishments on the way from their residen-
ciclos de desemprego, na comunidade, ou no cárcere, ou incrementando ces. While personal victimizations shift to adapt to where people are located, burglaries and thefts may
also shift to times when family memebers are not home, or not near their vehicles. The development
os níveis de tensão que impulsionam as interações sociais172. of malls, parking garages, and even cyberspace alter the dynamics of interactions between offenders
and victims”, COHEN, Lawrence; FELSON, Richard “Social change and crime rate trends: a routine
A partir da dinâmica racional apreendida das interações sociais entre activities approach”, American Sociological Review, 1979, p. 58.
174. COHEN, Lawrence; FELSON, Richard. Social change… cit., p. 58.
ofensor, vítima e contexto social, estas modelações permitem identificar os 175. “Victims would be part of that formula as offenders target those who seem more vulnerable or more
rewarding, such as the weak and the wealthy. Choosing a victim is a rational process involving a number
of assessments and evaluations about the level of risk and the probability of a worthwhile outcome. The
169. CORNISH, Derek; CLARKE, Ronald. “Rational choice approaches to crime: empirical studies of cri- way a victim appears in specific environmental context would be critical to these assessments and crime
minal decision making”. CORNISH, Derek; CLARKE, Ronald (org). The reasoning criminal: rational prevention, under rational models, involves providing protection for the victim in the forms of escape,
choice perspectives on offending. New Brunswick: Transaction, 2014, p. 5 e ss.; CORNISH, Derek; surveillance by others and the presence of capable guardians who could deter potential criminals”,
CLARKE, Ronald. “Understanding crime displacement: an application of rational choice theory”. Cri- McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 58.
minology, 25/1987, p. 933-948. 176. CLARKE, Ronald; FELSON, Marcus. “Introduction: Criminology, Routine Activity, and Ratio-
170. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 59. nal Choice”. CLARKE, Ronald; FELSON, Marcus (org) Routine activity and rational choice. New
171. COHEN, Lawrence; FELSON, Marcus. “Social change and crime rate trends: a routine activity appro- Brunswick: Transaction, 1993, p. 1-16.
ach. American Sociological Review, 1979, p. 588-608. 177. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 60.
172. TREMBLAY, Pierre. “Searching for co-offenders”. CLARKE, Ronald; FELSON, Marcus (org) Routine 178. “The more one comes in contact with potential offenders, those with high-risk traits, at high-risk times,
activity and rational choice. New Brunswick: Transaction, 1993, p. 18 e ss.; há especial referência aos the more likely it is that one will experience victimization”, HINDELANG, Michael; GOTTFRED-
estudos sobre a comportamento racional-colaborativo no cárcere, SYKES, Gresham. Society of capti- SON, Michael; GAROFALO, James. Victims of personal crime: an empirical foundation for a theory of
ves… cit., 51 p. personal victimization. Cambridge: Ballinger, 1978, 324 p.
70 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 71

suas ações ou integração a grupos associativos, podem evidenciar a maior ou determinados comportamentos desviantes poderia ser decisivo na formu-
menor propensão à vitimização179. lação de estratégias de prevenção, tratamento184 e desvitimização. Assim
Esta combinação (escolha racional, atividade rotineira, estilo de vida) como Finkelhor, Mary Otto identificou equivalentes entre a forma como
oferece farto material de investigação empírica para a elaboração de mapas a sociedade reage ao abuso infantil e os processos de vitimização no âmbito
de risco. Além de fatores situacionais (determinados horários do dia ou da doméstico185, havendo ainda muito espaço de investigação sobre as diversas
noite, local em determinada vizinhança), o risco também se estende aos formas, fatores e ameaças de vitimização186.
elementos do contexto, como os padrões mais comuns de socialização, O domínio do conhecimento sobre os processos de vitimização pode
uso de entorpecentes, ou ainda elementos estruturais que dizem respeito ser bastante revelador do que as construções sociais sobre o vulnerável. A
à configuração das instituições, como estrutura familiar e desemprego, os pesquisa vitimológica pode indicar com precisão as condições concretas em
quais podem ser determinantes de “vitimização vicariante” (vicarious vic- que se operam a “vitimização dos mais frágeis”, algo perfeitamente pertinente
timization)180. Quer dizer, esta combinação pode permitir a definição de também ao âmbito da criminologia econômica.
afinidades explanatórias e situar a análise multifatorial em função de seu No âmbito da criminalidade corporativa, as teorias racionais remontam
contexto. Apesar de bastante promissora a estratégia, bem pouco se diz a à avaliação do custo racional do comportamento desviante e dos correla-
respeito do papel das corporações nesta dinâmica. tos efeitos de intimidação (deterrence) e efetividade das sanções jurídicas187.
No âmbito da pesquisa vitimológica, é muito provável que as linhas Raymond Paternoster e Sally Simpson remanejam os elementos que confi-
de vitimologia desenvolvimental (developmental victimology) possam trazer guram a criminalidade corporativa ao comportamento racional, tais como
evidências mais significativas. Na interpretação de David Finkelhor, a motivações, particularidades do comportamento e circunstâncias especiais,
vitimização é mensurada a partir da natureza, quantidade, impacto lon- como forma de expansão da intimidação formal a partir da escolha racional.
gitudinal em diferentes capacitações, atividades e condições ambientais, A teoria da escolha racional empregada no âmbito corporativo aporta os ele-
conforme os distintos estágios de desenvolvimento da personalidade, pre- mentos subjetivos da decisão (percepções sobre o ganho da decisão) à noção
cisamente o que não é perceptível nas observações próprias das teorias do de utilidade do comportamento e cálculo custo-benefício188. Paternoster e
estilo de vida e das atividades rotineiras na medida181. Com especial ênfase Simpson indicam a necessidade de avaliação das circunstâncias do ambiente
nos processos de múltipla vitimização na infância, Finkelhor identificou a em que são tomadas as decisões, porém deixam de reconhecer criticamen-
configuração a noção de “poli-vítima” (poly-victims) e “poli-vitimização”182. te que aplicaram a pesquisa apenas aos indivíduos envolvidos no âmbito
Para além da noção de eventos estressantes ou traumatizantes, a vitimização 184. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., 12
ganha novos contornos de stress pós-traumático, processos de vitimização 185. Mary Otto aponta que aos baixos índices de reconhecimento precoce da vitimização se segue uma
indesejável retórica moralista quando de estágios mais evoluídos. OTTO, Mary. “The cycle of abuse:
repetida, de tal forma que o conceito de vitimização é mais uma condição from victim to victimizer”. In: SCHERER, Jacqueline. Victimization of the weak: contemporary social
reactions. Springfield: Charles Thomas, 1982, pp. 53-79.
(reverberando seus efeitos na personalidade ao longo do tempo) do que 186. Ainda bastante pertinente a crítica de Finkelhor: “(...) it is ironic that until recently the problem of children
um evento (limitado em circunstânicas históricas e temporais)183. O estudo as aggressors has had more attention in social science than has children as victims, reflecting perhaps the
priorities of the adult world”, FINKELHOR, David. Developmental victimology… cit., p. 32.
da exposição precoce ao crime e aos processos de vitimização em relação a 187. Problematizando a questão: “The profit maximization thesis has been criticized by several authors. For
instance, Stone cites various economists who suggest that corporations are more likely to seek a ‘satis-
179. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 61. factory level of profits’ to satisfy their stockholders than maximum profits. Bozeman and Straussman
(1983) argue that corporations seek stable growth, which is less risky, in preference to rapid growth and
180. DAQUIN, Jane Christie. “Vicarious victimization: examining the effects of witnessing victimization profit maximization. Nevertheless, by nature, private enterprise “breeds a materialistic preoccupation,
while incarcerated on offender reentry”. Thesis – Georgia State University, 2013, 92 p. a competitive drive to get ahead, and individuality” (Chamberlain, 1973). Since organizations are for-
181. FINKELHOR, David. “Developmental victimology”. DAVIS, R. et al (org) Victims of crime. 3 ed. mally rational, following the bureaucreatic model, the congruence between their procedures and their
London: Sage, 2007, p. 28. substantitve goals is closer than of most other social groups”, SHICHOR, David. Corporate deviance
182. “We prefer to the term ‘poly-victim’ over ‘multiple victim’ because the term ‘multiple victim’ can mean and corporate victimization: a review and some elaborations”. International Review of Victimology,
a victimization in which there were several victims (…), no several victimizations. We expected that re- 1/1989, p. 67-88.
search on poly-victims would show them to be particularly highly victimized, vulnerable, and distressed 188. PATERNOSTER, Raymond; SIMPSON, Sally. “A rational choice theory of corporate crime”. CLARKE,
young people”, FINKELHOR, David. Developmental victimology… cit., p. 28. Ronald; FELSON, Marcus (org) Routine activity and rational choice. New Brunswick: Transaction,
183. FINKELHOR, David. Developmental victimology… cit., p. 21. 1993, p. 38.
72 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 73

corporativo, desperdiçando a oportunidade de mais concretamente mensu- trabalho foi pioneiro na investigação sobre os caminhos possíveis do controle
rar a racionalidade subjetiva das corporações, gerando evidências sobre suas social informal e do papel da comunidade na compreensão do crime e da
crenças morais (moral beliefs) e legitimidade (perceived legitimacy)189. criminalidade. Em Kornhauser encontramos as primeiras reflexões sobre a
instabilidade comunitária, fragilidade dos mecanismos de controle social
3.6. ECOLOGIA DO CRIME E A IMPORTÂNCIA DO CON- informal e comportamento desviante192, uma das primeiras manifestações a
TEXTO expandir as relações entre indíviduo, comunidade e crime. Deve-se a ela a
A preocupação com a desorganização social remonta à turbulência dos consolidação das tipologias criminológicas (etiquetamento, desorganização
anos 20 e 30 nos EUA. Intensificação dos fluxos de capital e pessoas, desloca- social, controle, stress, desvio cultural) e as distintas perspectivas até hoje
mento dos problemas sociais para a urbe. É precisamente aí que a sociologia bastante significativas na sociologia do crime (ordem social, motivação, de-
da urbe encontra seus pontos de contato com o pensamento criminológico. terminismo, níveis explanatórios, situação social, estrutura social, cultura),
As teses sobre a desorganização social e a “ecologia humana”, formulada além do domínio das implicações das teorias do controle, especialmente a
originalmente por Robert E. Park, tomam emprestados conceitos das ciên- partir da causa do crime em Hirschi193.
cias naturais, tais como simbiose, invasão, sucessão e dominância, dentre A teoria da desorganização social introduziu novas concepções sobre as
outros. Esta ideia é bastante influente no período de formação da Escola de variações no estilo de vida (lifestyle) e formas de adaptação da personalidade
Chicago, especialmente após a colaboração científica empenhada ao lado na comunidade. Enquanto as teorias da tensão estavam limitadas à compreen-
do não menos influente Ernest W. Burgess. Robert Park e Ernest Burgess são das emoções negativas e intensidade do auto-controle, a desorganização
descrevem esta “nova ciência da ecologia” (new science of ecology): “a cidade social passou a ocupar-se da fragilidade dos vínculos entre a formação da
como um organismo, a dinâmica do ambiente que pode, sob condições personalidade e as estruturas culturais e sociais verificadas no âmbito da
adversárias exibir patologias e sintomas de insalubridade, como a pobreza e comunidade. Valendo-se do certo acúmulto teórico do pensamento crimi-
a deterioração”190. Park e seus alunos mapearam a geografia social da cidade. nológico até então, a teoria da desorganização social atuou na elaboração de
A partir daí, desenvolve-se a noção de ecologia do crime, em que o lugar ou preditivos das tensões e deficiências no auto-controle que levam a maior ou
contexto em que se dão as interações sociais interessa191. menor probabilidade do comportamento desviante na comunidade194.
Sob semelhante preocupação de oferecer alternativas estratégicas aos
problemas sociais, os avanços obtidos nos primeiros desenvolvimentos desta 3.6.1. A ESCOLA DE CHICAGO
criminologia da urbe levaram Ruth Kornhauser a discutir o que ficou co- A assim chamada Escola de Chicago dedicou-se à compreensão dos
nhecido como “desorganização social”. Quando Kornhauser publicou o processos de reorganização, desorganização e organização nos quais se pro-
muito interessante Social sources of delinquency, suas críticas sobre as teorias duzem o crime e a criminalidade. O pensamento criminológico passou a
da anomia, controle social e associação diferencial provocaram o interesse do dialogar com outras fronteiras do conhecimento. O diálogo com a geografia
pensamento criminológico em torno da teoria da desorganização social. Seu
192. KORNHAUSER, Ruth. Social sources of delinquency. Chicago: Chicago Press, 1978.
193. Acentuando a influência de Parsons em Kornhauser, e em divergência às críticas dela a Sutherland
189. Mesmo assim, absorveram da escolha racional uma série de critérios a serem explorados com maior (o qual não seria um teórico do desvio cultural), MATSUEDA, Ross. “Social Structure, Culture, and
precisão pela criminologia econômica: “1) perceived certainty/severity of formal legal sanctions; 2) Crime: Assessing Kornhauser’s Challenge to Criminology”. CULLEN, Francis et al (org) Challenging
perceived certainty/severity of informal sanctions; 3) perceived certainty/severity of loss of self-respect/ Criminological Theory: The Legacy of Ruth Kornhauser: Advances in Criminological Theory. New
4) perceived cost of rule compliance; 5) moral inhibitions; 7) perceived sense of legitimacy/fairness; York: Routledge, 2017, P. 117 e ss.
8) characteristics of the criminal event; 9) prior offending by the person”, PATERNOSTER, Raymond; 194. “(…) a careful reading of the control and strain models shows they are in fact oriented towards explai-
SIMPSON, Sally. A rational choice… cit., p. 47 e 51. ning different facets of delinquency. The present research does in fact show that the control model is
190. PARK, Robert; BURGESS, Ernest. The city: suggestions for investigation of human behavior in the more closely associated with self-reported crime and the strain model yields stronger relationships with
urban environment. Chicago: Chicago Press, 1925, p. 1 e ss. subcultural deviance. What this suggests is that theory testing which seeks to evaluate two or more
191. PARK, Robert; BURGESS, Ernest. The city... cit., p. 3 e ss.; STARK, Rodney. “Deviant places: a the- models, and to then combine them in some analytic fashion, may not be the best wayt to build or assess
ory of the ecology of crime”. Criminology, 25/1987, p. 893-910; recentemente, MARZLUFF, John et theory especially when the ruels of correspondence suggest that complabilte dependent variables must
al (org) Urban ecology: an international perspective on the interaction between humans and nature. be chosen for each model”. KNOX, George W. “Social disorganization models of deviance”. In: JEN-
Boston: Springer, 2008, 807 p. SEN, Gary. Sociology of delinquency. London: sage, 1981, p. 78 e 89.
74 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 75

social, sociologia urbana e criminologia ambiental foram decisivos para a por Herbert Blumer199, revelando vínculos intensos entre as interações
determinação dos estudos sobre o “lugar” ou a “ecologia” do crime. Os crimi- sociais na urbe e a construção social do crime e da criminalidade. Coube,
nólogos passaram a empenhar esforços significativos para analisar a dinâmica porém, a Clifford Shaw e Henry McKay aplicar os estudos sobre a delin-
dos vínculos com o local, pontos vulneráveis de dissolução e reconstituição quência juvenil na cidade, demonstrando como havia uma distribuição
da vida na cidade. Surgem aqui os primeiros esforços para a criação de um dos infratores em áreas delimitadas e marcadas pela “deterioração física,
modelo explanatório que identificasse como os laços interpessoais estão mais pobreza e desorganização social” 200.
ou menos articulados com o controle social informal195. A maior especialização se deu no âmbito da pesquisa sobre a vizinhan-
O surgimento da Escola de Chicago coincide com o movimento de ça (neighborhood)201, valendo-se originalmente das técnicas de pesquisa de
maior integração da pesquisa acadêmica e os problemas sociais, reorientando campo etnográfica e elaboração de mapeamentos estratégicos (spots maps)
a produção de conhecimento científico para a transformação social, no que na cidade de Chicago, com a finalidade de sustentar a formulação de políti-
ficou conhecido como a “Era Progressista da inovação na organização e na cas públicas de prevenção. Os estudos sobre a vizinhança e o controle social
pesquisa da Universidade norte-americana”, protagonizada por Jane Addams informal foram incrementados a partir de suas relações com as instituições,
e William Rainey Harper. No famoso discurso de William Rainey Harper, especialmente a família, a escola, a igreja, evidenciando novas perspectivas
The Trend in Higher Education, 1905, o primeiro diretor da Escola de Chica- para as próprias tramas de solidariedade e reconhecimento nas interações
go funda as bases do que seria a “universidade urbana” (urban University)196. sociais202. Em pesquisas recentes, já desvinculadas do modelo original pro-
Apesar de reconhecer o papel essencial do conhecimento especulativo na posto em Chicago, os estudos da urbe identificam intersecções raciais e de
consolidação democrática dos EUA, a era progressista foi por marcada pela gênero bastante reveladoras sobre os custos morais e sociais do crime e da
necessidade de solução de problemas sociais básicos: a Universidade deve se criminalidade, com especial atenção à “concentração espacial dos efeitos
voltar a produzir bem-estar social (social welfare), “reduzir a miséria entre os do mass incarceration”203.
pobres, o analfabetismo nas escolas, a intolerância nos cultos, sofrimento nos Assim como a personalidade, comportamento desviante, vizinhança
hospitais, menos fraude nos negócios e insensatez na política”, tal qual Daniel e instituições, a ideia de comunidade tampouco é conceito estanque204,
Coit Gilman na aula inaugural do primeiro moderno centro de excelência
em pesquisa dos EUA, a Johns Hopkins197. Quando Harper concebeu a 199. BLUMER, Herbert. Symbolic interactionism: perspective and method. Berkeley: California Press,
1969, p. 78 e ss.
universidade urbana como instituição estratégica para a melhoria da comu- 200. SHAW, Clifford; McKAY, Henry (org) The juvenile delinquency and urban areas. Chicago: Chicago
Press, p. x e ss.; posteriormente, REISS, Albert; TONRY, Michael (org) Crime and Justice – Communi-
nidade, escolas e sociedade, a orientação progressista consistia em consolidar ties and Crime, v. 8. Chicago: Chicago Press, 1986, 430 p.
a democracia a partir da gestão científica da sociedade democrática198. 201. “The ecological underpinning of neighborhood has a venerable history. Robert Park and Ernest Burgess
laid the foundation for urban sociology by defining local communities as ‘natural areas’ that developed
as a result of competition between business for land use and between population groups for affordable
As referências teóricas mais genéricas remontam às análises do intera- housing. A neighborhood, according too this view, is a sub-sectin of a larger community – a collection
of both people and institutions occupying a spatially defined area influenced by ecological, cultural,
cionismo simbólico no âmbito da própria sociologia da urbe desenvolvidas and sometimes political forces. Suttles later refined this view by recognizing that local communities do
not form their identities only as the result of free-market competition. Instead, some communities have
195. BUNGE, Mario. “A systemic perspective on crime”. WIKSTRÖM, Per-Olof; SAMPSON, Robert (org). their identitiy and boundaries imposed on them by outsiders, such as the staete. Suttles also argued that
The explanation of crime: context, mechanisms and development. Cambridge: Cambridge, 2006, p. 11. the local community is best thought of not as a single entity, but rather as a hierarchy of progressively
196. “A University which will adapt itself to urban influence, which will undertake to serve as an expression more inclusive residential grouping. In this sense, we can think of neighborhoods as ecological units
or urban civilizatiobn, and which is compelled to meet the demands of an urban environment, will in nested withing successively larger communities, SAMPSON, Robert. “How does community matter”.
the end become something essentially different from a university located in a village or small city”, WIKSTRÖM, Per-Olof; SAMPSON, Robert (org). The explanation of crime: context, mechanisms and
BENSON, Lee et al (org) Knowledge for social change: Bacon, Dewey, and the revolutionary transfor- development. Cambridge: Cambridge, 2006, p. 33.
mation of research Universities in the Twenty-First Century. Philadelphia: Temple, 2017, p. 32. 202. Para uma síntese teórica, SAMPSON, Robert J. Great American City: Chicago and the enduring nei-
197. BENSON, Lee et al (org) Knowledge for social change… cit., p. 34. ghborhood effect. Chicago: Chicago Press, 2012, p. 71 e ss.
198. BENSON, Lee et al (org) Knowledge for social change… cit., p. 44. Alguns estudos fascinantes anali- 203. ROBERTS, Dorothy. “The social and moral cost of mass incarceration in African American communi-
sam fontes históricas do surgimento da “Era Progressista” e fundação da Escola de Chicago, RUCKER, ties”. Stanford Law Review, 56/2004, p. 1275.
Darnell. The Chicago pragmatists. Minneapolis: Minessota Press, 1969, p. 9 e ss.; BULMER, Martin. 204. Sampson apoia-se na construção de Charles Tilly (TILLY, Charles. “Do communities act?” Sociological
The Chicago School of Sociology: institutionalization, diversity, and the rise of the sociological resear- inquiry, 43, pp. 209-240), para definir a vizinhança em função do território, problematizando a extensão
ch. Chicago: Chicago Press, 1984, p. 45 e ss.; THOMAS, William et al. The Polish peasan in Europe da “solidariedade”. AMPSON, Robert. “How dows community context matter? Social mechanisms and
and America. Chicago: Chicago Press, 1918, p. 2 e ss. the explanation of crime rates”. WIKSTRÖM, Per-Olof; SAMPSON, Robert (org). The explanation
76 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 77

pode variar desde a comunidade local até a comunidade internacional, potencial explicativo sobre o impacto do contexto da vizinhança nos proces-
passando pelas noções de “comunidade corporativa” ou pela “comunida- sos de socialização, no crime e na criminalidade207. David Weisburd, por sua
de corporativa transnacional”, que expõem o enorme impacto global que vez, assumiu a liderança nos estudos da “criminologia do espaço” (crimino-
pode alcançar as práticas corporativas. Não apenas o ambiente em que logy of place)208, recorrendo a estratégias de pesquisa orientadas pela “lei da
se produz o crime, mas também as estratégias de controle e regulação do concentração do crime nos espaços” (law of crime concentrations at places)209
comportamento não deveriam ser entendidas como imutáveis ou estáveis. e, de particular interesse ao estudo da vitimologia, “lugar como vítima”. À
Do contrário, o pensamento criminológico deve acompanhar os níveis de diferença de Sampson, Weisburd enfatiza o aspecto microgeográfico210 para
diferenciação em torno dos quais se constroem as interações individuais identificar os hot spots da criminalidade211.
e suas mediações institucionais. Para além do controle da criminalidade Também aqui os fundamentos da teoria social de James Coleman
na urbe, a imaginação criminológica pode alcançar estratégias bastante exercem uma importante influência no desenvolvimento da pesquisa cri-
promissoras de comportamento prossocial e colaborativo, em que se verifi- minológica da urbe. As modelações produzidas a partir da investigação
cam indicadores concretos de partilha dos benefícios e valores da atividade dos vínculos entre comunidade e crime permitiu a elaboração de modelos
corporativa com a comunidade, gerando tramas de solidariedade e coesão explicativos em sistema efetivamente integrado de explanações causais em
social. A seguir esta linha dos efeitos do contexto no desenvolvimento da nível macro e micro. O modelo explanatário a que recorre Sampson se vale
personalidade e do comportamento desviante, as corporações exercem aí destas várias combinações possíveis entre espaço público e privado e amplia
um papel fundamental, recomendando estudos aprofundados sobre etno- as unidades de análise até uma “integração em multi-níveis” (multi-level in-
grafia organizacional e os impactos das corporações na comunidade e na tegration)212, permitindo-lhe determinar como o contexto comunitário ou a
percepção do crime e da criminalidade. vizinhança expressa ao longo do tempo efeitos desenvolvimentais no compor-
tamento desviante213. Sampson concebe seu modelo a partir de combinações
3.6.2. ROBERT SAMPSON E A TEORIA DO CURSO DA VIDA
Os desenvolvimentos recentes da desorganização social e dos estu- 207. SAMPSON, Robert J. Great American City… cit., p. 48-49.
dos sobre o contexto como fator na compreensão da criminalidade tem em 208. WEISBURD, David et al (org). The criminology of place: street segments and our understanding of the
crime problem. Oxford: Oxford Press, 2012, p. 2 e ss.
Robert Sampson e David Weisburd seus principais expoentes. Sampson se 209. WEISBURD, David et al. “Spatial displacement and diffusion of crime control benefits revisited: new
evidence on why crime doesn’t just move around the corner”. TILLEY, N. et al (org) The reasoning
destaca com sua obra seminal Great American City, na qual sintetiza os efeitos criminologist? Essays in honour of Ronald V. Clarke. New York: Routledge, 2012, pp. 142-159.
da vizinhança no crime e na criminalidade205. Seus estudos sobre as estruturas 210. Experimentos sobre a variação dos macro-modelos de criminalidade em função dos níveis de urbani-
zação, as próprias especificidades das personalidades em interação (porcentagem de solteiros, jovens
da comunidade e o crime puderam fundar uma “teoria da desorganização entre 12 e 20 anos, densidade demográfica), SMITH, Douglas et al. “Social structure and criminal
victimization”. Journal of Research in Crime and Delinquency. 25/1988, p. 47. Mais sobre as condições
social no nível comunitário”206. A partir do diagnóstico do “lamento da deca- sociológicas da urbe e os processos de vitimização, DECKER, David et al. Urban Structure and Victi-
mization. 1982. New York: Lexington, 1982, 116 p.
dência comunitária”, Sampson resgata os mecanismos sociais que apresentam 211. WEISBURD, David. “The law of crime concentrations and the criminology of place”. In: Criminology,
53/2015, p. 133-157. A técnica dos hot spots (RATCLIFFE, Jerry. “The hotspot matrix: a framework for
of crime: context, mechanisms and development. Cambridge: Cambridge, 2006, p. 33; em detalhes, the spatio-temporal targeting of crime reduction”. Police Practice and Research: an International Jour-
SUTTLES, Gerald. The social construction of communities. Chicago: Chicago Press, 1972, 278 p. nal. 5/2004, p. 5-23; RATCLIFFE, Jerry et al. “Crime diffusion and displacement: measuring the side
205. SAMPSON, Robert J. The Great American City… cit., p. 31 e ss. effects of police operations”. The Professional Geographer, 63/2011, p. 230-243) opera como preditivo
206. “(…) social disorganization refers to the inability of a community structure to realize the common e orientação para o exercício do controle social e regulação do comportamento a partir da formulação
values of its residents and maintain effective social controls. Empirically, the structural dimensions of de políticas públicas, ECK, John; ECK, Emily. “Crime, place and pollution: expanding crime reduction
community social disorganization can be measured in terms of prevalence and interdependence of so- options through a regulatory approach”. Criminology & Public Policy, 5/2012, p. 281-316.
cial networks in a community – both informal (e.g., friendship ties) and formal (e.g., organizational par- 212. Apesar de que Sampson ressalva que nem sempre é necessário partir do indivíduo como unidade de
ticipation) – and in the span of collective supervision that the community directs toward local problems. análise para fazer estudo do contexto comunitário como unidade de controle social, importando mesmo
This approach is grounded in what Kasarda and Janowitz term the systemic model, in which the local é o questionamento causal a partir do qual se orienta a investigação criminológica, SAMPSON, Robert.
community is viewed as a complex system of friendship and kinship networks and formal and informal “How dows community context matter? Social mechanisms and the explanation of crime rates”. WI-
associational ties rooted in family life and ongoing socialization processes”, SAMPSON, Robert J.; KSTRÖM, Per-Olof; SAMPSON, Robert (org). The explanation of crime: context, mechanisms and
GROVES, W. Byron. “Community structure and crime: testing social-disorganization theory”. Ameri- development. Cambridge: Cambridge, 2006, p. 31.
can Journal of Sociology, 94/1989, p. 777 e ss.; veja-se também SAMPSON, Robert. “Crimes in cities: 213. WIKSTRÖM, Per-Olof; SAMPSON, Robert. “Social mechanisms of community influences on crime
the effects of formal and informal social control”. REISS, Albert; TONRY, Michael (org). Communities and pathways in criminality”. LAHEY, Benjamin et al (org) Causes of conduct disorder and serious
and crime. Chicago: Chicago Press, 1986, p. 271-311. juvenile delinquency. New York: Guilford Press, 2003, p. 118-147.
78 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 79

entre pesquisa individual-desenvolvimental (individual-developmental) e si- em Crime in the Making estas variáveis que influenciam as trajetórias,
tuacional (situational-level), sob forte inspiração de Coleman na produção transições e “momentos decisivos” no curso da vida 217, dedicando-se a
de modelos explanatórios que permitam evidenciar os mecanismos sociais algo de certa forma negligenciado na tradição criminológica. A maior
(processos que permitem explicar um determinado fenômeno) que produ- parte dos modelos explanatórios é indiferente à dinâmica de continuida-
zem as ações individuais que criam a noção de comunidade214. de/descontinuidade do comportamento criminoso e do desenvolvimento
A teoria do curso da vida (life-course theory) foi decisiva para que Samp- da personalidade ao longo do curso da vida. Assim como também parece
son pudesse verificar os diferentes processos de socialização dos indivíduos ser bastante negligenciado o estudo sobre a desistência do crime e a
em função das estruturas sociais, do contexto sócio-cultural e das institui- explicação das causas e motivações que levam não só à transição do com-
ções. Conceitualmente, caracteriza-se pelas trajetórias (life spans) a partir portamento desviante para o comportamento solidário e cooperativo, mas
das quais vão se forjando as escolhas e expectativas ao longo dos distintos também à evitação da recidiva na vida adulta218, tal qual já questionado
estágios, transições e “momentos decisivos” (turning points) da vida. A prin- por Neal Shover, “o que acontece quando os criminosos envelhecem?”219,
cipal finalidade da teoria do curso da vida é estabelecer os vínculos possíveis ou Laub e Sampson, “início partilhado, vidas divergentes”220.
entre as estruturas sociais e contexto histórico nos desdobramentos da vida, A tese “sociogênica” sustentada em Crime in the Making refere-se
influenciando sensivelmente os processos de vitimização215. A investigação da justamente aos vínculos entre o contexto sócio-estrutural e a mediação
história de vida é conduzida de forma longitudinal, diferenciando a trajetória dos processos de controle social informal no curso da vida221. As principais
individual com base em indicadores como idade, efeitos das interações em constatações baseiam-se em: (1) o contexto estrutural mediado informal-
nível local (cohort effect), contexto histórico, e influência de transições nas mente pelos controles sociais da família e escola explica o comportamento
distintas fases de amadurecimento individual216. desviante na juventude; (2) continuidade do comportamento antissocial
da infância à fase adulta em uma série de campos da vida; (3) vínculos
Juntamente com John Laub, Sampson analisou discriminadamente
sociais informais à família na fase adulta e emprego explicar mudanças
214. SAMPSON, Robert. “How dows community context matter? Social mechanisms and the explanation na criminalidade ao longo da trajetória, apesar de propensão na primeira
of crime rates”. WIKSTRÖM, Per-Olof; SAMPSON, Robert (org). The explanation of crime: context,
mechanisms and development. Cambridge: Cambridge, 2006, p. 32. infância. Quer dizer, o modelo teórico de Sampson e Laub reconhece a
215. SAMPSON, Robert; CASTELLANO, T. “Economic inequality and personal victimization: an areal importância da primeira infância e – dando razão a Gottfredson e Hirschi
perspective”. British Journal of Criminology, 22/1982, p. 363-385. A noção de prevenção da vitimiza-
ção a partir da manipulação das estruturas do ambiente foi verificada em CORNISH, Derek; CLARKE, – as diferenças individuais no auto-controle, porém rejeitam a relevância
Ronald. “Opportunities, precipitators and criminal decisions: a reply to Wortley´s critique of situational
crime prevention”. Criminal Justice Press, 2003, 96 p. destes fatores na vida adulta222. Quer dizer, o que se tem é um modelo que
216. Mais especificamente: “trajectory (…) is a pathway or line of development over the life span, combina curso da vida e o acompanhamento longitudinal dos fatores que
such as work life, marriage, parenthood, self-esteem, or criminal behavior. Trajectories refer to long-
-term patterns of behavior and are marked by a sequence of transitions. Transitions are marked by life levam ao comportamento desviante.
events (such as first job or first marriage) that are embedded in trajectories and evolve over shorter
time spans – ‘changes in state that are more or less abrupt’. Some transitions are age-graded and some A teoria do curso da vida também se dedica à compreensão das outras
are not; hence, what is often assumed to be importante are the normative timing and sequencing of
role transitions. Life-course analyses are often characterized by a focus on the duration, timing, and manifestações de sentido social da idade na personalidade e no comportamento
ordering of major lie events and their consequences for later social development. The interlocking of
trajectories and transitions may generate turning points or a change in the life course. Adaptation to
life events is crucial because the same event or transition followed by different adaptations can lead to 217. SAMPSON, Robert J., LAUB, John. Crime in the making… cit., p. 6.
different trajectories. The long-term view embodied by the life-course focus on trajectories implies a 218. CUSSON, Maurice; PINSONNEAULT, Pierre. “The decision to give up crime”. CORNISH, Derek;
strong connection between childhood events and experiences in adulthood. However, the simultaneous CLARKE, Ronald (org) The reasoning criminal. New York: Springer, 1986, p. 72-82.
shorter-term view also implies that transitions or turning points can modify life trajectories – they can 219. SHOVER, Neal. Aging criminals. London: Sage, 1985, p. 30 e ss.
‘redirect paths’. Social institutions and triggering live events that may modify trajectories include scho-
ol, work, the military, marriage, and parenthood”, SAMPSON, Robert J., LAUB, John. Crime in the 220. LAUB, John; SAMPSON, Robert. Shared beginnings, divergent lives: delinquent boys to age 70. Cambrid-
making: pathways and turning points through life. Cambridge: Harvard Press, 1993, p. 8; a discussão ge: Harvard Press, 2003, p. 4 e ss.; SAMPSON, Robert J.; LAUB, John. Crime in the making… cit., p. 17.
pode ser aprofundada em ELDER, Glen. “Perspectives on life course”. ELDER, Glen (org) Life course 221. “(…) we adopt a more general conceptualization of social control as the capacity of a social group to
dynamics: trajectories and transitions. New York: Cornell Press, 1985, p. 23-49; LEVY, René; TEAM, regulate itself according to desired principles and values, and hence to make norms and rules effective. We
Pavie. “Why look at life courses in an interdisciplinary perspective?”. LEVY, René et al (org) Towards further emphasize the role of informal social controls that emerge from the role reciprocities and structure
an Interdisciplinary Perspective on the Life Course. v. 10. pp. 3-32. Amsterdam: Elsevier, 2005, p. 3-35; of interpersonal bonds linking members of society to one another and to wider social institutions such as
cada um dos fundamentos é detalhado em MORTIMER, Jeylan et al (org) Handbook of the life course. work, family, and school”. SAMPSON, Robert J.; LAUB, John. Crime in the making… cit., p. 18.
New York: Springer, 2003. 222. SAMPSON, Robert J., LAUB, John. Crime in the making… cit., p. 7.
80 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 81

desviante, transmissão intergeracional de padrões sociais de comportamen- trajetória da empresa levaram-na a engajar-se em comportamento desviante
to, e efeitos de eventos no nível macro na história de vida individual223. Na ou colaborativo. De qualquer maneira, estudos sistemáticos sobre a life-course
verdade, os estudos ancorados em psicologia desenvolvimental224 apresentam das corporações podem ser bastante reveladores.
muito mais evidências de que o comportamento antissocial é estável entre as
várias fases do curso da vida do que propriamente a mudanças. O comporta- 3.6.3. O LUGAR COMO VÍTIMA
mento disruptivo pode ser manifestação isolada, temporária, contingencial, Ao elaborar a noção de “lugar como vítima”, Weisburd não deixa de
e sem maior significado para a determinação da personalidade do ofensor225, reconhecer a importância de Sutherland na formulação de estratégias de
e as mudanças podem ocorrer em distintas fases da vida226. prevenção à criminalidade, tomando de suas ideias os pressupostos de ava-
As contribuições de Robert Sampson para o pensamento vitimológi- liação dos fatores e motivações que levam ao comportamento desviante229.
co indicam um modelo explanatório que identifica, com delimitação nos Na linha da mensuração microgeográfica da concentração do crime, haverá
estudos da vizinhança, o impacto das estruturas sociais e instituições na maior precisão na identificação do crime e de suas causas, proporcionando,
vitimização227. Quase como dedução lógica, os estudos dos efeitos da ur- por conseguinte, melhor compreensão sobre as mudanças da criminalidade
banização e das características da vitimização também permitem encontrar em função de determinado contexto230. Esta precisão do campo analítico
indicadores da influência do contexto e da consistência dos mecanismos de conduz a indicadores bem reveladores, apontando especialmente para o
controle social informal como fator explicativo dos processos de vitimiza- fato de que a maior parte dos comportamentos desviantes se realiza em um
ção e criação de padrões de orientação de políticas públicas de intervenção número relativamente reduzido de lugares231. A precisão permite indicar o
preventiva228. lugar (casa, escola, negócios, local de trabalho etc.) ou o caminho (avenidas
Se bem é certo que o estudo do contexto, relações entre empresa e ou mesmo a fachada do lugar em frente a ela etc.), facilitando o trabalho
comunidade e estratégias de controle social informal muito bem poderiam de priorização e de explicação da rotina criminosa232.
ser levados ao campo da criminologia econômica, é no mínimo razoável A vitimologia tem muito a aprender com a análise de microunidades
enfatizar que a natureza dinâmica das organizações em boa parcela dos casos geográficas. A importância dos estudos de microunidades geográficas para a
transcende as dimensões territoriais e há mais processos disruptivos do que vitimologia consiste precisamente no fato de que áreas com maiores índices
propriamente continuidade. Da mesma forma, nem sempre é fácil deter- de criminalidade também tendem a levar aos maiores índices de vitimização
minar quais são as estruturas dominantes de controle social informal na repetida, “sugerindo que a vitimização crônica possa ser uma das determi-
empresa, assim como explicar as motivações e as causas que ao longo da nantes da área de alto risco”233. Estes estudos sobre a oportunidade podem
explicar não apenas o comportamento ofensivo, mas também a maior ou
223. SAMPSON, Robert J., LAUB, John. Crime in the making… cit., p. 7. menor propensão à vitimização e à afetação de terceiros234. A compreensão
224. Desde os anos 80, os estudos no campo desenvolvimental tem sido intensivos, buscando identificar as
relações possíveis entre o desenvolvimento da personalidade e o crescimento físico, saúde, desenvol-
vimento cognitivo, sociabilidade e crenças, aprendizagem em ocupações profissionais, além, é claro, 229. WEISBURD, David et al (org). Place matters: criminology for the twenty-first century. Cambridge:
de psicoses e comportamento criminoso. Veja-se em riqueza de detalhes a coletânea BRIM, Orville. Cambridge, 2016, p. 6.
KAGAN, Jerome. Constancy and change in human development. Cambridge: Harvard Press, 754 p. 230. WEISBURD, David et al. Place matters… cit., p. 30. Também em WEISBURD, David. The law of
225. SAMPSON, Robert J., LAUB, John. Crime in the making… cit., p. 11. crime concentrations… cit., p. 133-157.
226. Na carreira criminosa, o curso da vida pode ser afetado não apenas nas primeiras fases dos processos 231. WEISBURD, David et al. Place matters… cit., p. 42.
de socialização do indivíduo, mas também em que experiência já na fase adulta ou mesmo na velhice, 232. WEISBURD, David et al. Place matters… cit., p. 45.
podendo ocorrer reiteradas vezes ao longo da vida, LAUB, John; SAMPSON, Robert. Shared beginnin- 233. WEISBURD, David et al. Place matters… cit., p. 33.
gs… cit., p. 18 e ss. 234. WEISBURD, David et al. Place matters… cit., p. 45. Oportunidade pode ser combinada com outros
227. Inclusive, Sampson aponta que o reforço das instituições poderia mitigar os efeitos de estruturas so- fatores, tais como a atividade rotineira: “(…) routine activity theory integrates the behaviors of offen-
ciais desorganizadas, a exemplo do controle dos efeitos criminógenos da desigualdade e injúria racial ders with these other people to help answer the question: what makes some targets more vulnerable to
por meio da maior integração social da família, menor mobilidade urbana, SAMPSON, Robert. “Nei- attack than others? The simple answer is that unguarded targets at poorly managed locations are highly
ghborhood and crime: the structural determinants of personal victimization”. Journal of Research in vulnerable to criminal attack when confronted by unhandled offenders. Like offenders, targets, guar-
Crime and Delinquency, 22/1985, p. 7-40. dians, handlers, and place managers follow spatial-temporal routines, thus making targets differentially
228. SAMPSON, Robert. “The effects of urbanization and neighborhood characteristics on criminal victimi- vulnerable over space and time. Because place is and explicit element of routine activity, it is not surpri-
zation”. FIGLIO, Robert et al (org) Metropolitan crime patterns. New York: Willow Tree, 1986, p. 3-25. sing that routine activity theory specifically, and opportunity theories in general, are invoked to explain
82 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 83

das causas da vitimização repetida235 é o que possibilita formular estratégias de vigilância direta e a proteção da privacidade na indireta240. Mesmo em
de desvitimização mais efetivas, concentrando os esforços e a alocação de vista das dificuldades, a leitura de Weisburd segue sendo otimista, recomen-
recursos em lugar prioritário236. A priorização toma por base a concentração dando a elaboração de um repertório de medidas preventivas orientadas
do crime, estável ao longo do tempo, e as evidências consistentes sobre a pela apreensão microgeográfica dos riscos de vitimização, uma vez que “as
efetividade das políticas de intervenção e seu impacto na redução da crimi- políticas de hot spots ou prevenção situacional chegam a reduzir o medo do
nalidade237. Por essa razão, apesar de que o conhecimento sobre a vitimização crime e aumento da qualidade de vida nas ruas, a incrementar a eficácia
repetida238 – e sua alta probabilidade de reiteração no futuro – torna possível e a reduzir a desigualdade social”241. Raciocínio semelhante deveria valer
a elaboração de preditivos, nem sempre são generalizáveis a outras vítimas para a concepção das funções de gatekeeper e estruturação dos deveres de
ou a quem ainda não foi vitimizado239. vigilância no âmbito empresarial.
Weisburd demonstra como a dificuldade de determinação dos pro- Na discussão vitimológica, o estudo do lugar acaba reforçando o fato
cessos de socialização representa um entrave para os gestores do local, que de que a vítima, antes de figura abstrata, atende a circunstâncias concretas.
devem controlar o acesso de ofensores, potencial vítima, os usos da pro- As principais categorias desenvolvidas por Shaw e McKay (pobreza, mo-
priedade, a priorização de intervenção, a destinação dos mecanismos de bilidade urbana, heteregoneidade racial) foram submetidas a uma série de
controle, como os destinatários devem ser protegidos, como regular o nível testes e experimentações, que propuseram a verificação das relações entre
as características da vizinhança e os índices de violência e roubo. Atestou-se
high-crime places”
235. Com ênfase na teoria da escolha racional: “The rational choice theory of offender decision making
que a referência à desorganização social de fato é bastante relevante para a
seems to apply particularly well to repeat victimization. Offences against the same target by the same compreensão da distribuição da vitimização entre os distintos grupamentos
offender are based on the experiences of the previous victimization, and perception of known risk and
rewards. This rational choice is based upon the motivated offender’s greater knowledge of the victim’s sociais, guardando, no entanto, certa coerência com o tipo de crime A alo-
suitability and the likelihood of the absence of capable guardians. For repeat crimes against the same
targets committed by different offenders, the ’rational’ decision factors influencing target selection (per- cação prioritária de recursos em um lugar pode significar que outro deixou
ceived victim suitability, perceived likelihood of capable guardianship) will be those which prompted
previous offenders to target the same victim”, FARREL, G. et al. “Like taking candy: why does repeat de receber as políticas de intervenção, que, em últimas consequências, há
victimization occur?”. British Journal of Criminology. 35/1995, p. 9. vítimas mais ou menos merecedoras de proteção, a depender das circuns-
236. “What types of interventions will work to prevent offenders from committing a crime? Situational crime
prevention helps provide the answer. The most general answer from situational crime prevention is that tâncias e percepção do risco, cujas dimensões trágicas podem tanto ser
actions that make possible crime situation less rewarding, less excusable, less provocative, more risky,
and requiring more effort will reduce crime. Consiste with the two assumptions of opportunity theories, interpretadas como aviso a não frequentar determinada localidade quando
situational crime prevention states that offenders’ perceptions of the utility of a crime depend on the spe-
cific characteristiscs of the context where the offender is making the decision. This context is typically um atrativo a visitantes”. Em última instância, o lugar como vítima e a
a place”, WEISBURD, David et al. Place matters… cit., p. 46.
discriminação entre as próprias vítimas são bastante sintomáticos do “so-
237. WEISBURD, David et al. Place matters… cit., p. 155.
238. “Thus the patterning of victimisation when linked with images of vulnerability mirrors thinking that frimento” e “depressão” dos centros urbanos242.
assumes either an individual is a victim or they are an offender – despite the fact that the empirical pat-
terning of victimisation would suggest that young, economically marginal males from ethnic minority As percepções, a memória e o conjunto de sentimentos que com-
groups belong to both categories; that is, they offend and victimize each other. All of these features are
particularly acute when the patterning of criminal victimisations points to repeat victimisation. WA- põem a personalidade na urbe243 também padecem do mesmo cenário de
LKLATE, Sandra. “Defining victims and victimisation”. DAVIES, Pamela; FRANCIS, Peter; GREER,
Chris. Victims, crime & society. 2. ed. Los Angeles: sage, 2017, p. 42. “Tseloni and Pease state that ‘vic-
timisation is a good, arguably the best readily available, predictor of future victimization. This assumes 240. WEISBURD, David et al. Place matters… cit., p. 145.
that it is possible to differentiate victims from non-victims. Hope points out that this is a very difficult 241. WEISBURD, David et al. Place matters… cit., p. 159. “(…) in order to expand what we know about
starting point when the data on which it is based (criminal victimisation survey data) does not provide places that are disproportionately associated with victimization, researchers have relied on geospatial
information on what the characteristics of a non-victim are. Genn offers a different starting point to this analysis and sophisticated computer software that is able to code and illustrate crime in a multidimen-
phenomenon. She suggested that multiple victimisations ‘are just part of life’”. (…) “In other words, sional framework. Better prediction of wher and how crimes occur will help us develop more effective
some sections of society feel the impact of criminal victimisation not only repeatedly but also routinely. prevention strategies. We are also assisted in this goal by technological advances in equipment that scre-
(…) Thus it is important to remember that, as Quinney once observed, ‘our conceptions of victims and ens and interprets the environment to enhance surveillance and response times so that places we enjoy
victimisation are optional, discretionary and are by no means innately given’. Thus victims are brought frequenting do not end up creating victims and these places themselves do not become victims either”,
into being, not by some innate characteristics that they may or may not possess (as the early victimolo- McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit.. 194
gistis were concerned to explore) but by social processes, and it is within those social processes that the 242. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 176. Reforçando as intersecções de raça e
experiences that people have may or may not be recognized as victimisation”, WALKLATE, Sandra. gênero, SHAW, Clifford; McKAY, Henry. Juvenile delinquency... cit., p. 120-121.
“Defining victims and victimisation”. DAVIES, Pamela; FRANCIS, Peter; GREER, Chris. Victims, 243. “No doubt, crimes and their media interpretations color our perceptions of areas and from the basis of
crime & society. 2. ed. Los Angeles: sage, 2017, p. 44-45. their image or reputation. Negative connotations impact the desirability of business and housing in a
239. WEISBURD, David et al. Place matters… cit., p. 103-104. giving area, lowering property values, leading to what theorists refer to as the ‘broken windows’ syn-
84 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 85

“obliteração”, perturbando os sentidos e a estrutura de identidade pessoal Taylor, Paul Walton e Jock Young246. Apoiando-se em Foucault, Matthews
com o “intenso desejo de esquecer ou diminuir as lembranças das atroci- situa historicamente este panorama a partir da consolidação das ideias cri-
dades ou conflitos civis dolorosos”244. Desde uma perspectiva multi-níveis minológicas, algo que representaria nada mais do que o estabelecimento de
e levando-se em consideração a escala dos processos de vitimização, é bem um discurso particular e a formação de uma interlocução significativa entre
possível articular formas de desvitimização e restauração da urbe a partir os criminólogos. Foi isso também que os levou a práticas institucionais e
do papel das corporações. A forma como se construíram os grandes cen- criações de redes consideráveis247.
tros financeiros traz consequências indissociáveis das interações sociais 245. Se bem é verdade que a reflexão crítica assumiu uma série de variáveis
Falta, no entanto, melhor domínio sobre a agressividade da higienização no pensamento criminológico, também é certo que o ponto de inflexão mais
urbana e a atmosfera devastadora provocada pelas grandes recuperações significativo se concentra na apreensão do papel da reação do Estado e dos
judiciais. A integração do estudo vitimológico nesta perspectiva macro processos de criminalização, constituindo definitivamente uma verdadeira
e micro é bastante promissora para a vitimologia corporativa. O lado “transformação qualitativa” na criminologia. Tal qual como na expressão de
humano das coisas demonstra que na verdade temos gerações inteiras Lola Aniyar, “a causa do delito é a lei, não quem a viola, por ser a lei que
simplesmente perdidas pela ausência de propósito da vida social em transforma condutas lícitas em ilícitas”248.
determinadas localidades. Os custos sociais para a comunidade levam
à subordinação da comunidade, mais adiante desenvolvidos como de- O processo de etiquetamento social – ou labeling approach – encontra
pendência comunitária. A criminologia corporativa deve incorporar este seus fundamentos na ideia de que não é o comportamento desviante (pelo
efeito disruptivo. potencial ofensivo ou as dimensões patológicas da personalidade) o que de-
termina o crime, mas sim o fato de que as instâncias de controle social
3.7. LIÇÕES DA CRÍTICA CRIMINOLÓGICA E ETIQUETA- qualificam este comportamento enquanto tal. Não são indivíduos em situa-
MENTO SOCIAL ções de dissenso que provocam o crime, senão é o próprio Estado que dirige
suas ações estratégicas e diferencia, na sociedade, o criminoso do inocente. O
O pensamento crítico, guardadas algumas distinções entre os autores,
Estado, por força do controle social formal e ao determinar a incriminação de
assume como ponto de partida o panorama teórico entre os movimentos
comportamentos, move suas políticas públicas e rotula determinados indiví-
de ideias mais significativos. Segundo a leitura realista de Roger Matthews,
duos, sobre os quais recaem os níveis de rejeição e segregração. E o principal
seriam (1) o pragmático, (2) o gerencialista, (3) a teoria do comportamento
problema por que se debatem desde suas origens as teorias do etiquetamento
desviante e (4) a “nova criminologia” (The New Criminology). Atribui-se
é a certa coincidência entre os selecionados (objetos da qualificação de crimi-
a Sir Leon Radzinowicz o caráter de “pragmático” e “gerencialista” – lem-
nosos) pelo sistema de justiça criminal: na maioria absoluta, indivíduos que
brando, porém, que Paul Rock reconhece maior relevância às contribuições
vivem em contextos socialmente instáveis e marginalizados249.
de Herbert Mannheim – , seguido de estudiosos do comportamento des-
viante (Howard Becker, Edwin Lemert, Alvin Gouldner, Erving Goffman, 246. “(…) by the marxist and radical, initially, as a facet of social disorganization without reference to any
David Matza e Robert Merton), e, por fim, a “nova criminologia”, com a victims other than deracinated industrial workers, then as the figments of a proletarian false conscious-
ness that was turned towards the wrong objects and, latterly, as the sometimes righteous, sometis posses-
reposição de clássicos como Marx, Durkheim e Foucault, liderada por Ian sive, individualistis responses of the anomic poor and dispossessed to the pathologies of capitalism, and
victims, by extension, were either undeserving or descriptively excluded (Taylor, Walton and Young)”.
ROCK, Paul. On Becoming a Victim… cit., p. 1.
drome. The appearance of graffiti and deteriorating buildings, they argue, seems to signal the deline of 247. MATTHEWS, Roger. Realist Criminology. New York: Palgrave, p. 2; outras variantes sobre esta evolu-
a community and fosters the process of spiraling into decay. High concentrations of unemployement, ção teórica desde a perspectiva crítica, VAN SWAANINGEN, René. Critical criminology: visions from
poverty and abandoned lots, just like toxic waste, undermines the health of the residents there and their Europe. London: Sage, 1997, p. 3 e ss.
ability to revitalize their surroundings”, McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 179 248. ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 97.
244. “Obliteration is a very deeply emotional purging (…) as strong as the desire may be to rid the area of any 249. Howard Becker, principal referência dentre os teóricos do etiquetamento, demonstra que a construção
trace of the crimes that occurred there, others see the need to educate and learn from the experiences of ideia de etiquetamento é bastante depende das interações sociais e relações de poder em função das
the past as much more critical”, McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 188-189. quais se realiza. O comportamento desviante refere-se a um conjunto determinado de normas sociais, e
245. ZIMRING, Franklin. The city that became safe: New York´s lessons for urban crime and its control. é bem possível que um comportamento esteja mais afeito a um grupo do que a outro, BECKER, Howard
Oxford: Oxford Press, 2012, p. 28 e ss. S. Outsiders: studies in the sociology of deviance. New York: The Free Press, 1963, p. 3. Mais sobre,
86 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 87

A partir deste pressuposto básico de que a crítica se dedica à concep- No que diz respeito à principal contribuição para fins desta pesquisa,
ção reativa do crime e da criminalidade e ao etiquetamento do criminoso, o que mais importa é o fato de que as teorias reativas se dedicam às críticas
começam a seguir divisões entre a criminologia do mainstream e a crimi- dos processos de produção legislativa, à interpretação seletiva das leis penais
nologia crítica. Mainstream seria responsável pela legitimação do status e aos desmandos da execução penal, especialmente no que diz respeito à
quo e colaboração com a administração do sistema de justiça criminal; à desumanidade do cárcere moderno. As estratégias de etiquetamento social
crítica caberia a função de denúncia e mobilização de estratégias contra impactam de modo sensível não apenas nos níveis de incriminação primária,
o escamoteamento ideológico, assumindo a vanguarda da transformação mas sobretudo rotulando criminalmente o que é o crime e quem é o crimino-
social a partir de alternativas extrapenais. so. A reação social é introduzida também como uma importante estrutura de
Desde suas origens, o desenvolvimento da crítica na criminologia socialização e repercute também nos processos de incriminação secundária,
reconhece o legado da agitação de 1968. Pouco tempo depois, Ian Taylor, afetando as interações sociais em vista do etiquetamento e estigmatização
Jock Young e Paul Walton marcaram toda uma geração com o The New forjados pelo sistema de justiça criminal. Mesmo assim, o acúmulo de evidên-
Criminology, em 1973250. A nova criminologia foi decisiva para os estudos cias científicas sobre a necessidade de desformalização do sistema de justiça
posteriores, Critical Criminology (1975), e a reposição da centralidade da criminal (controle social informal é amplamente mais efetivo), a necessidade
crítica de Karl Marx no pensamento criminológico. Sob decisiva orientação de integração da política criminal com políticas públicas de inclusão social
na crítica de Marx, a inteligência da crítica foi atrelar crime e criminalidade e – já desde Beccaria! – a constatação de que a certeza da punição repercute
a modo de produção251. Na coletânea Capitalism and the Rule of Law, o mais sensivelmente na redução da criminalidade do que severidade são ainda
itinerário deste novo movimento de ideias do pensamento criminológico o persistente brado da criminologia crítica253.
encontra as referências do que mais tarde amadureceria sob a condição de É intrigante, no entanto, que os criminólogos críticos tenham dedicado
“realismo de esquerda” na criminologia252. tão pouca atenção ao papel das corporações254. Em La défense sociale nouvelle,
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do
Marc Ancel, marcou uma geração inteira com o apelo humanista e a neces-
direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2011, p. 85 e ss. sidade de um conhecimento criminológico que fundamentasse uma política
250. Em introdução à edição comemorativa ao 40º aniversário da obra, (TAYLOR, Ian; WALTON, Paul;
YOUNG, Jock. The new criminology: for a social theory of deviance. London: Routledge, 2013, p. 3 e criminal racional de proteção da sociedade e readaptação social do indíviduo
ss.), Jock Young reconhece o papel da “nova criminologia”: “The great contribution of labelling theory
was its unpacking of the dyadic nature of crime and deviance. Deviancy is not a quality inherent in an envolvido em comportamento desviante, com especial ênfase na execução
act, it is a quality bestowed upon an act. To have deviance one needs action and reaction, behavior and penal. Daqui surgem algumas repercussões, especialmente no ordenamento
evaluation, rule making and rule breaking”). O emprego da crítica na transição da modernidade foi revi-
sitado em WALTON, Paul; YOUNG, Jock. The new criminology revisited. New York: Palgrave, 1998, jurídico francês com a responsabilidade penal da pessoa jurídica, no âmbito
p. vii e ss.
251. Inadvertidamente, boa parte da manualística no campo da criminologia desconhece fontes originais com da defesa da sociedade contra o abuso de poder das corporações255 e defesa
análises de Marx sobre o fenômeno criminoso. Recentemente foram inclusive traduzidos ao português
os “debates sobre a lei de furto de lenha”, publicados como MARX, Karl. Os despossuídos. São Paulo: da vítima256, sem que, no entanto, apresente maior alcance universal.
Boitempo, 2018. Um dos capítulos obscuros da obra marxiana talvez seja MARX, Karl. Sobre o sui-
cídio. São Paulo: Boitempo, 2012. É simplesmente fascinante a crítica em MARX, Karl. A Ideologia Estado se imponha. A vítima resulta sendo vítmia também do sistema punitivo. Ademais, não raro, é a
Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 325 e ss. No capítulo XXVIII do Capital, Marx foi pioneiro na vítima que trará uma luz para solução da pendência existente com o réu. No mais das vezes, vítimas de
análise das formas de produção do capital social e expansão nas sociedades anônimas, MARX, Karl. O um processo não diferenciam uma questão civil da penal; muitas vezes não têm qualquer interesse em
Capital. Rio de Janeiro, Civilização, cap. XXVIII, 1974, p. 516 e ss. Entre o final do Séc. XIX e início perseguir quem quer que seja; tias vítimas, normalmente, querem obter uma reparação e reencontrar
do Séc. XX, Willem Bonger publicou a “proto-história” da política econômica do crime e dos vínculos sua tranquilidade, assim como encontrar na Justiça alguém que as escute com paciência e simpatia”,
entre desigualdade e crime, BONGER, Willem. Criminalité et conditions économiques. Amsterdã: G. SHECAIRA, Sergio Salomão. Criminologia. 3. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 373
P. Tiere, 1905. Posteriormente, Rusche e Kirchheimer levaram o marxismo para análise das relações
entre cárcere e modos de produção, RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Sozialstruktur und Stra- 253. DOWNES, David. “What the next government should do about crime”. The Howard Journal of Crime
fvollzug. Frankfurt: Europäische, 1981, 340 p. and Justice, 39/1997, p. 1-13.
252. FINE, Bob et al (org). Capitalism and the rule of law: from deviancy to Marxism. London: Hutchin- 254. FRIEDRICHS, David; ROTHE, Dawn. “Crimes of the powerful: white-collar crime and beyond”.
son, 1979. À “nova criminologia” se reserva este status privilegiado de “transformação qualitativa” DeKESEREDY, Walter et al (org) Routledge Handbook of Critical Criminology. London: Routledge,
na compreensão da criminologia. Sobre o estado atual da criminologia realista, MATTHEWS, Roger. 2011, p. 241-251. Se bem não possa ser formalmente considerado um criminólogo, boa parte dos escri-
Realist Criminology. New York: Palgrave, p. 1 e ss. Sérgio Salomão Shecaira alinha-se ao neorealismo tos de Ralph Nader são centrais à compreensão do comportamento empresarial socialmente danoso nos
escandinavo (T. Mathiesen), criticando, igualmente, o lugar da vítima nas ciências criminais: “A vítima EUA, tal qual NADER, Ralph. Unsafe at any speed. Grossman Publishers, 1965.
não interessa ao sistema penal. Ela ocupa um lugar secundário ou lugar nenhum. Há um sofisma de 255. ANCEL, Marc. La défense sociale nouvelle: un mouvement de politique criminelle humaniste. 3. ed.
que ela é parte interessada na sentença condenatória, o que faz com que não seja admissível sua parti- Paris: Cujas, 1954, 184 p.
cipação no processo. Para o processo penal é mais importante buscar um culpável para que a razão de 256. ANCEL, Marc. “La defense sociale devant le problème de la victime”. Revue de science criminelle et de
88 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 89

A busca por modelos explanatórios à criminalidade corporativa foi É verdade, no entanto, que desde o escândalo da Enron e a crise dos
objeto de poucos e isolados estudos, que basicamente se orientam pelos subprimes de 2008 houve maior mobilização em torno da criminalidade dos
avanços em torno da concreta determinação do dano e na crítica à regulação poderosos. Recentemente alguns estudos referenciados à criminologia crítica.
do comportamento corporativo socialmente danoso257. Com a orientação Na coletânea Why they got away with it: white collar criminals and the financial
de uma economia política do dano, deve-se à crítica criminológica a mo- meltdown, organizada por Susan Will, Stephen Handelman e David Brother-
bilização em torno da compreensão das condições materiais que causam ton em 2013, encontram-se estudos bastante reveladores. David Freidrichs,
dano às pessoas em seu curso de vida e à comunidade258. Os estudos sobre por exemplo, ao criticar o vácuo das ideias criminológicas em relação à crise
danos em massa (mass harm) foram levados às ciências criminais desde a financeira, estabelece relações entre Wall Street e Main Street. Na linha da
condição de delito político (Wolfgang Naucke) e a atividade especulativa tradição crítica, posiciona os crimes de colarinho branco e a criminalidade
das instituições financeiras foi explorada cientificamente por Raul Zaffaroni financeira como socialmente muito mais danosos que o tradicional “assalto
no campo do genocídio. a banco”263. Susan Will demonstra como a lógica dos esquemas fraudulentos
A maior parte dos estudos se concentra na denúncia do caráter abusi- (“esquemas Ponzi” ou “esquemas pirâmide”) serve bem à tensão imposta
vo e predatório da concentração de poder corporativo. Steven Box acentua aos cidadãos para “lucrar como gente grande”, os quais, na maior parte
a mistificação do “criminoso do colarinho branco” e a certa dificuldade das vezes, sequer tem a dimensão do risco e de suas perdas264. Jock Young,
social em aceitar o caráter patológico das “pessoas respeitáveis que cometem por sua vez, analisou o caso Madoff, “uma verdadeira metáfora dos nossos
crimes”, sendo bem mais confortável – quase uma saída estética, acrescen- tempos”. Antes de ser um “marginal, era bem ajustado e integrado à socieda-
tamos – entender este comportamento desviante como “racional”259. Steve de” e famoso filantropo nos EUA. Aliás, Young capta muito bem o sentido
Tombs articula a necessidade de regulação do comportamento corporativo disso e questiona “quantos ladrões norte-americanos seriam necessários para
socialmente danoso com a falta de um modelo explanatório para a crimina- furtar U$ 60 bilhões”? Em tom de denúncia, Young aponta a falha na con-
lidade advinda das “novas formas de organização”260, menos burocratizadas cepção dos processos de vitimização, assim como da falta de ruptura com o
(“anti-modernas”)261, recomendando novas estratégias de controle262. modelo que levou ao ciclo da “crise moral à financeira; e da crise financeira

droit pénal comparé. 4/1978, p. 184. blurring of divisions between organizations and indeed even perhaps between organizations and their
257. HILLYARD, Paddy et al (org). Beyond criminology: taking harm seriously. Winnipeg: Fernwoodbooks, environments creates a potential for legitimate democratic participation by groups of ‘external’ stake-
2004, p. 10-30. holders. If pro-regulatory pressure groups ‘are absolutely central to the regulatory process’, then any
prospects for democracy in and around organizations might help minimize (…) crimes”, TOMBS, Ste-
258. HILLYARD, Paddy; TOMBS, Steve. “Towards a political economy of harm: states, corporations and ve. Corporate crime… cit., p. 143-144; em sentido semelhante, COHEN, Stanley. Visions of social con-
the production of inequality”. HILLYARD, Paddy et al (org) Beyond criminology: taking harm se- trol: crime, punishment and classification. Malden: Polity, 1985, p. 161 e ss; em crítica mais explícita ao
riously. Winnipeg: Fernwood, 2004, p. 30-54. A centralidade da produção do dano foi posteriormente padrão regulatório amistoso às corporações do sistema de produção capitalista, com a imposição de um
reconhecida por AGNEW, Robert. Toward a unified criminology: integrating assumptions about crime, “capitalismo de compadrio” ao “terceiro mundo”, sustentado por captura regulatória sistêmica (crony
people, and society. New York: 2011, p. 167 e ss. capitalism), COHEN, Stanley. Against criminology. London: Routledge, 1998, p. 172 e ss. Próximo, em
259. “If these upper- and middle-class criminals are also pathological, then what hope is there for any of us! críticas às manifestações do controle na esfera econômica como “não regulação regulável”, MARCAN-
(…) Having rescued the powerful from ‘abnormality’ we might do the same for the powerless. Maybe TONIO, Jonathan Hernandes. Direito e controle na modernidade. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 121 e ss.
they too are rational rather than irrational, morally disreputable rather than organically abnormal, ove- 263. “The intent here is not to dismiss the various forms of harm involved in conventional bank robberies,
rwhelmed by adversity rather than by wickedness”, BOX, Steven. Power, crime and mystification. Lon- which are surely traumatic for many of the victims, but rather to place such robbery within the broader
don: Routledge, 1983, p. 4 e 16 e ss. context of other forms of ‘bank robbery’, and to call for more appropriate proportionality in the popular,
260. TOMBS, Steve. “Corporate crime and new organizational forms”. PEARCE, Frank; SNIDER, Laureen. legal, and justice system responses to those different forms of crime”, FRIEDRICHS, David. “Wall
Corporate crime: contemporary debates. Toronto: University of Toronto Press, 1995, p. 132 e ss. Em Street: crime never sleeps”. WILL, Susan et al (org) Why they got away with it: white collar criminals
maior profundidade sobre a noção de “organização moderna”, ETZIONI, Amitai. Modern organiza- and the financial meltdown. New York: Columbia University Press, 2013, p. 3 e ss.
tions. New Jersey: Prentice-Hall, 1964, 120 p. 264. “Average Americans, wanting to maintain or improve their economic position, were seduced by the
261. Tombs analisa criticamente o primado do modelo weberiano dos tipos ideais de organização burocrá- hegemonic rhetoric that told of new financial opportunities and the prospect of producing wealth like
tica, “a structure of clearly defined activities linked by clear lines of command, communication, co-or- the ‘big boys’. (…) Victims of the housing bubble and other institutionalized Ponzi schemes rarely
dination and control”, ao contrário das “novas formas”, fragmentadas ou descentralizadas, com maior understand or are told that they participated in a Ponzi. It is difficult for them to comprehend that they
autonomia ou autorregulação entre as pequenas unidades – ‘minimization of obligation’, ‘increased were victims of Ponzis operated by the country´s most respected financial institutions”. WILL, Susan.
responsibility’, and decreased surveillance’ – , compromisso com o mercado e pesquisa tecnológica, “America´s Ponzi culture”. WILL, Susan et al (org) Why they got away with it: white collar criminals
cultura de cooperação, e orientação estratégicas em ‘core activities’, TOMBS, Steve. Corporate crime… and the financial meltdown. New York: Columbia University Press, 2013, p. 60-61. Em argumentação
cit., p. 134. muito semelhante, SHAPIRO, David. “Generating the Alpha return: how Ponzi schemes lure the unwa-
262. “In so far as new forms of organization open up corporate froms and recognize the existence and legi- ry in an unregulated market”. WILL, Susan et al (org) Why they got away with it: white collar criminals
timacy of a plurality of voices, possibilities for democratization emerge that are worth pursuing. The and the financial meltdown. New York: Columbia University Press, 2013, p. 130-148.
90 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 91

ao pânico moral”265. A principal contribuição da criminologia crítica neste campo consis-


Gregg Barak, em seu Unchecked corporate power, no seu melhor estilo te mesmo em levar a sério a necessidade de verificação concreta do dano
da denúncia, apresenta fontes preciosas para a compreensão da “rotinização” corporativo (corporate harm), especialmente a partir da chave metodológica
dos crimes perpretados no âmbito das multinacionais (MNCs), os quais, proposta por Barak para a compreensão dos processos de vitimização mul-
não obstante, deixam de figurar na priorização político-criminal. Bem ao tinacional268. Esta compreensão parece ser fundamental para a construção
contrário, de tal forma as MNCs estão onipresentes no cotidiano da so- científica de uma vitimologia corporativa e recomendação de uma agenda de
ciedade que a rotinização e a vulneração de comunidades inteiras sequer é ações estratégicas para a regulação do comportamento empresarial socialmen-
questionada. A reflexão central da criminologia crítica é o que justifica toda te danoso. Apesar de que a criminologia crítica por muito tempo foi refratária
a pesquisa de Barak: “por que os crimes dos poderosos são punidos de forma aos estudos de vitimologia, sob a falsa percepção de que o reconhecimento da
mais leniente do que os crimes de rua? Quando um policial mata um cida- vítima levaria à criminalização de muitos comportamentos269, as repercussões
dão permanece impune, a tortura política é chancelada pelo Estado, mas as da teoria do etiquetamento no âmbito da vitimologia também são muitas. A
fraudes financeiras dos traders de Wall Street sequer são investigadas, nada ideia de uma vitimologia crítica também será analisada em apartado.
acontece tão sistematicamente como as ações fracassadas dos Estados nacio- No âmbito da vitimologia, a consideração das condições materiais em
nais em obstruir a criminalidade dos poderosos”. Frente ao poder das MNCs que se produzem os processos de vitimização, ao menos do ponto de vista
e a dinâmica de suas estratégias corporativas266, as ações governamentais não econômico – sem levar em consideração ainda os sofrimentos emocionais – ,
passam de mera cumplicidade, reduzidas à colusão267. é determinante para a construção social da vitimização. Permite-se a partir
daí extrair indicadores mais precisos para se precisar o estado de vulnera-
265. “There were relatively poor victims who deserve our concern, but they played more of a role in the bilidade, distinguindo na população pessoas mais ou menos propensas ao
rhetoric of victimization than they did in the proportion of losses. Even some of the ‘less’ wealthy
clients lost millions of dollars, which scarcerly vindicates their claims of being the average Ameri-
can family”, YOUNG, Jock. “Bernie Madoff, finance capital, and the anomic society”. WILL, Su-
estado vitimizante270. É mais precisamente esta ideia de construção social da
san et al (org) Why they got away with it: white collar criminals and the financial meltdown. New vitimização que permitirá definir as percepções sociais e estabelecer a prio-
York: Columbia University Press, 2013, p. 78-81. No mesmo texto, Jock Young comenta sobre as
similitudes entre Madoff e os cidadãos “comuns”: “He is a bit of a puzzle for the criminologista: rização de políticas criminais e qualificar quem é a vítima, o ofensor, o juízo
He is the right gender to be sure but the wrong class, ethnicity, and age; we usually spend our time
looking down, not up, the social structure when analyzing criminal behavior. I am not onte who de reprovação e as possibilidades estratégias de restauração271.
believes that there is a general theory of crime that can explain everything. Such endeavors usually
end up in vacuous abstractions, for instance, Gottfredson and Hirschi´s (1990) grandly named
General Theory of Crime. But there are formal similarities, for example, the Ponzi scheme as a con 3.8. ELEMENTOS PARA UMA CRIMINOLOGIA CORPO-
trick is only an upmarket version of the guy on the street corner with three cards or three tumblers
and one concealed marble. You have a mark, the likely investor; a shill, who plays on the cupidity RATIVA
of the mark and his or her desire for easy money; a chief compliance officer; and the con man
himself, Mr. Madoff. And there are cultural parallels: subcultures that thrive on risk, which go to Sob decisiva influência das ideias criminológicas de Sutherland,
the very edge of legitimacy and often drift over it, and those who, whether high or low in the class
structure, see extravagance as a style of life and eschew utilitarian notions of wealth”. Donald Cressey iniciou um processo intuitivo de investigação das rela-
266. Barak recorre ao caso da Apple para dar concretude às críticas: “As global corporations have grown
richer and more powerful than many nations, they increasingly operate without limits on their power in- ções entre as distintas disciplinas que envolvem a criminologia corporativa,
fluence. Around the world, global corporations drive governmental policies, unchecked by strong global
policies to protect public health, human rights and environment. In 2015 Apple Inc. reported a quaterly
profit of $ 18 billion, the largest in history. During the same year its market-captial valuation of $ 765
billion reached the highest ever for any U.S. corporation. Based on total revenues of $233 billios for 268. “In the world of high-powered multinational corporate crimes that we do know about, these transgres-
2014/2015 for a private, public, or state-owned company, Apple ranked twelfth in the world. However, sions should be studied within the legal trends and social parameters of capital accumulation and global
its record for design and technological innovation has been second to no other companies. The Apple geopolitics. In an era of financialization and globalization, these examinations need to take into account
brand is also the most admired brand in the world. Several factors have contributed to Apple´s success, both the current developments in the internationalization of criminal law and criminal justice as well
including the vision of the late Steve Jobs, the work executed by Apple engineers, the failure or refusal as in the application of international human rights law. (…) there has been a general trend in criminal
of Apple to pay a fraction of its fair share in taxes, and the super-exploitation of the workers who manu- wrongdoing to normalize complicity inside of a multitude of liability models, such as `collective agen-
facture Apple products”, BARAK, Gregg. Unchecked corporate power: why the crimes of multinational cy` or `co-perpretation`”. BARAK, Gregg. Unchecked corporate power... cit., p. 20-21.
corporations are routinized away and what we can do about it. London: Routledge, 2017, p. 1. 269. Veja-se, por exemplo, SCHUR, Edwin. Radical non-intervention: rethinking the delinquency problem.
267. Em sentido semelhante, SNIDER, Laureen. “The sociology of corporate crime: an obituary – or: Whose New Jersey: Prentice-Hall, 1973, pp. 10 e ss.
knowledge claims have legs?)”. Theoretical Criminology, 4/2000, pp. 169-206; TOMBS, Steve; WHY- 270. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 46.
TE, David. The corporate criminal: why corporations must be abolished. London: Routledge, 2015, 271. “According to labeling theory, the way society reacts to a crime is determined not only by who the
p. 30 e ss.; TOMBS, Steve. “State-corporate harm and victimization”. CORTEEN, Karen et al (org) A victim was, but also by who the offender is and how that particular offense is viewed in the context of
companion to crime, harm, and victimization. Bristol: Policy Press, p. 224-225. contemporary events, McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 47.
92 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 93

como nas construções psicologia social e mesmo ciências naturais, conce- Esta postura científica também se reproduz dentre os criminólogos críticos,
bendo as formulações originais da teoria da criminalidade corporativa272. como Steven Box e David Shichor, que definem a criminalidade corporati-
Embora tenha inaugurado os prospectos teóricos originais da criminolo- va de modo bastante semelhante à perspectiva tradicional, “atos ilícitos de
gia corporativa, Cressey resistiu à configuração da personalidade jurídica, omissão e comissão por um indivíduo ou grupo de indivíduos em forma
confrontando-a aos processos de investigação da causa do crime (crime de organização legítima, de acordo com os objetivos desta organização, re-
causation). A responsabilidade penal empresarial não resistiria, segundo sultando em consequências econômicas ou físicas sérias a seus empregados,
ele, nem à análise de como o crime é distribuído na ordem social, nem à consumidores, (...) público geral e outras organizações”277.
análise lógica sobre os processos psicossociais do comportamento desviante. John Braithwaite, em diálogo aberto com Don Cressey, propõe que
A “pobreza teórica da criminalidade corporativa” radicaria precisamente na a investigação teórica em criminologia corporativa encontre na realização
falta de diferenciação consistente entre crimes cometidos por indivíduos e dos objetivos corporativos a rationale e a validação parcial da capacidade
crimes cometidos por corporações273. de ação da empresa. “Se as corporações podem aprender, as teorias da
Stanton Wheeler274, Kramer275 e Marshall Clinard e Peter Yeager276 aprendizagem podem se aplicar tanto aos atos individuais quanto aos co-
tampouco teriam alcançado esta distinção, limitando-se a reconhecer socio- letivos”. Corporações podem ser influenciadas por subculturas, as infrações
logicamente a importância da criminalidade corporativa e seu impacto na corporativas estão tão alinhadas às oportunidades legítimas e ilegítimas
sociedade como argumentação suficiente para justificar a responsabilidade. para obtenção de suas metas quanto qualquer indivíduo, assim como há
272. Na bastante elucidativa síntese de Laufer, compreende-se o contexto histórico das críticas de Cressey
uma série de modelos explanatórios da criminalidade tradicional que se
e o surgimento da criminologia corporativa: “The history of criminology is marked by a series of intel- concretizam como referencial teórico na criminologia corporativa. O mais
lectual revelations that we now too often take for granted, for example, persons of high socioeconomic
status commit crimes (Sutherland, 1949); a small number of young chronic offenders commit a dispro- importante, segundo Braithwaite, é que a “criminologia não avançará como
portionate amount of crime (Wolfgang, Figlio, and Sellin, 1972). Of all the any revelations over the
last fifty years, criminologists seem to have the most difficult with the notion that an organization or ciência se os investigadores padecem de criatividade, nas mãos de teorias
entity, whether a corporation or nation state, may commit a crime. When crimes are imputed from an
individual to an inanimate entity, the intellectual challenge becomes: Should an individual be blamed ortodoxas de fins, como dizia o próprio Cressey, ‘impossíveis’”278.
as well? Don Cressey´s critical remarks about the fictionalizing of corporate persons, for example,
reveal an all too common hostility to the notion of organizational liability and blame (Cressey, 1989). Curiosamente, há poucas referências teóricas específicas sobre a cri-
This hostility is reflected in an absence of a theoretical deliberation over crimes imputed or attributed to
complex business organizations (Paternoster and Simpson, 1993). The same may not be said of theories minologia corporativa. A famosa expressão de John Sutton foi por muito a
of white collar crime (Weisburd, Wheeler, Waring, and Bode, 1991). It is simply easier to theorize about
individual offenders – or individuals in groups. Criminological theories of entities challenge an accep- regra: “crime e punição são importantes demais para serem deixados a cargo
tance of anthropomorphic fiction. Scholars get mired in discussions of how and when to attribute blame; dos criminólogos”279. Apenas mais recentemente é que a pesquisa científica
how and when to sanction; and who ultimately deserves punishment (Laufer, 1994; Schlegel, 1990)”,
LAUFER, William. The forgotten criminology… cit., p. 76. em criminologia corporativa ganhou maior densidade, especialmente moti-
273. “(…) it does not make sense for scientists to maintain that these fictitious persons do so because they
are in poverty, are frustrated, are labeled as troublemakers, have poor attachments to the social order, vada pela dinâmica altamente especializada da criminalidade financeira280.
or have had an excess of associations with criminal behavior patterns. Clearly, corporate criminality
cannot be explained by the same causal principles used to explain the criminality of real persons. (…)
let it be said that it is just as ridiculous for criminologists to try to explain criminal behavior that was 277. BOX, Steven. Power, crime, and mystification. London: Routledge, 1983, p. 16 e ss.; “Corporate de-
not intended as it is for judges to try to determine whether a fictitious person has an evil state of mind. viance is organizational deviance, committed by individuals during their normal activities as employees
Because corporations cannot intend actions, none of their criminality can be explained in the framework or representatives of the corporation and is meant to achieve organizational goals. The corporation is
of behavioral theory. It is time for criminologists to eradiate this embarrassment by acknowledging considered to be the violator, not the individual. Clinard and Yaeger expand this definition by stating
that corporation crimes and organizational crimes are phantom phenomena. Such acknowledgment will that ‘a corporate crime is any act committed by corporations that is punished by the sate, regardless
not lead to abandoning criminological concer for white-collar offenses and offenders. On the contrary, of whether it is punished under administrative, civil, or criminal law. This violation ‘is committed on
the strength of this area of criminological research and theory will grow in proportion to the degree to behalf of the organization; it occurs in the course of participating or working in it. “corporations generate
which criminologists first recognize that only real persons have the psychological capacity to intend occasion for deviance because: (a) the complex and impersonal nature of transactions allows for mislea-
crimes, and then focus their analytical and theoretical skills on these persons”, CRESSEY, Donald. “The ding advertisement, and consumers are unable to test the product; (b) organizations are subject to special
poverty of theory in corporate crime research”, LAUFER, William; ADLER, Freda (org). Advances in norms which can be easily broken, thus resulting in illegality and deviance, for instance anti-trust laws,
criminological theory.v. 1., New Brunswick: Transaction, 1995, p. 37-48. etc”. SHICHOR, David. Corporate deviance…, p. 67-88.
274. WHEELER, Stanton. “Trends and problems in the sociological study of crime”. Social problems. 278. BRAITHWAITE, John; FISSE, Brent. “On the plausibility of corporate crime theory”. 2. ed. LAUFER,
23/1976, p. 525-533. William; ADLER, Freda (org) Advances in criminological theory. New Brunswick: Transaction, 1990, p. 34-35.
275. KRAMER, R. “Corporate criminality: the development of an idea”. HOCHSTEDLER, E. (org) Corpo- 279. SUTTON, John. “The political economy of imprisonment in affluent Western democracies – 1960-
rations as criminals. Beverly Hills: Sage, 1984, p. 30. 1990”. American Sociological Review, 69/2004, p. 185.
276. CLINARD, Marshall; YEAGER, Peter. Corporate crime. 3. ed. New Brunswick: Transaction, 2009, p. 280. GOTTSCHALK, Petter. Policing financial crime: intelligence strategy implementation. Boca Raton:
12 e ss. Brown Walker, 2009, p. 67 e ss.
94 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 3 – Fundamentos da pesquisa criminológica 95

Observar como se deu a priorização da política criminal econômica, ao que a persistência da criminalidade corporativa nas “eras” não corresponde à
menos nas últimas quatro décadas, dá sinais de que está em curso um trânsito crítica da desregulação, quem sabe apenas substituído por atuação simbólica e
da war on crime/war on drugs para a criminalidade do colarinho branco, da contingente do Estado284. Porém, o mais interessante é que Hagan demonstra
criminalidade violenta das ruas para a sofistificação dos centros financeiros. como a análise da criminalidade corporativa está inserida no cerne das rela-
Com base em inteligente estratégia de pesquisa relacional entre a punição ções sociais e impacta estruturalmente a coesão social285. Isso significa que a
da criminalidade das ruas (crimes in the streets) e do colarinho branco (crimes criminologia corporativa extrai suas consequências teóricas da criminologia
in the suítes), Hagan combinou estudos sobre a criminalidade e falta de cre- tradicional, mas a ela volta quando as corporações descem, por assim dizer,
dibilidade (disrepute) com os custos sociais da desigualdade281. A partir desta aos níveis mais básicos das ofensas criminais.
chave de leitura, a falta de recursos de comunidades afetadas (distressed) nos Para além das definições convencionais286, assume-se que a criminologia
EUA colabora para o incremento da violação e maior vulneração de grupos corporativa depende da sistematização de uma série de elementos tópicos
comunitários. Posteriormente, Hagan, no instigante Who are the criminals?, analíticos: a) corporação como ofensora; b) concepção da personalidade cor-
organiza os estudos sobre a política criminal nos EUA da Era Roosevelt a Era porativa e responsabilidade construtiva (constructive fault); c) mensuração do
Reagan, delimitado nos processos de priorização política e as estratégias de impacto do comportamento corporativo socialmente danoso; d) escalona-
controle. A determinação histórica da “política da política criminal” remonta mento das condutas em função de sua danosidade; e) convergências entre
à explosão demográfica e encarceramento de massas e veio combinada com a crimes do colarinho branco e crimes corporativos; f ) mediação dos meca-
retórica da “recuperação econômica”. Nestes períodos históricos, a polaridade nismos de controle social formal do negócio; g) combinação das estratégias
entre criminalidade de rua e dos poderosos é mais do que significativa: de de enforcement e regulação; h) articulação de soluções alternativas e práticas
um lado controle excessivo (overcontrol) muito medo da criminalidade de restauradoras; i) articulação das iniciativas corporativas e cultura organizacio-
ruas, desigualdade e racismo, de outro, desregulação e controle insuficiente nal; e, por fim, o tópico analítico proposto como j) vitimologia corporativa,
(undercontrol) da criminalidade corporativa. Quer dizer, muito crime e pouca abrindo oportunidade para um novo campo de investigação científica.
justiça (too much crime and too little justice)282. Hagan utiliza a expressão
“alimento para a ambição” ou “lenha para a fogueira” (feed for greed) para 284. “There are deeper meanings to shifts and trends in the regulation of Wall Street or the ‘suites of America’.
Perhaps most notable is our remarkable ambivalence with the idea of a criminal corporation, found in the
anunciar como as políticas de Reagan encontraram ressonância no ideário apparent illogic of attributing criminal wrongdoing to the engines of our economic growth. This ambi-
valence, reflected in the tilted allocation of criminal justice expenditures, is captured by the fact that: (1)
desregulador de Alan Greenspan (que ocupou a presidência do Federal Reserve corporations are aggregates of innocent stakeholders who unfairly suffer from a criminal investigation,
indictment, and conviction, but serious consequences must result from corporate deviance; (2) markets en-
Bank de 1987 a 2006) e na economia liberal de Milton Friedman, espe- courage corporate risk taking and innovation, but corporations particularly in certain sectors and industries
require vigilant regulation and faithful compliance; (3) civil and administrative law remedies for organiza-
cialmente a partir do Garn-St Germain Depository Institutions Act. Citando tional deviance already exact a huge toll on corporations, but few doubt the unique role of the criminal law
Wheeler e Rothman (1982), Hagan mostra que “a corporação está para o to encourage law abidance or voluntary disclosure of wrongdoing; and (4) the government must support
and maintain close ties to the business community, but such ties may inhibit regulation or make resort to
crime de colarinho branco assim como a arma está para o ladrão, quer dizer, the criminal law problematic”, LAUFER, William. Commentary on ‘Who Are the Criminals?’, by John
Hagan”. Contemporary Sociology: a Journal of Reviews, 42/2013, p. 679-683.
um instrumento para obter dinheiro de suas vítimas”283. Laufer, em recensão 285. “(...) the latter part of the 1990s was also a period of falling violent crimes rates in the United States.
There is important recent evidence from research (…) on more than 9.000 US neighborohoods that in-
a Hagan, aponta que deveria haver maior clareza na alocação de recursos das dicates that increased residential investment in home ownership lowered violent crime rates, especially
estratégias fiscalizatórias e regulatórias, bem diferenciando o enforcement no in African American neighborhoods in 1999-2001. Based on research in Chicago neighborhoods in the
1990s, Sampson and Wikstrom similarly argue that concentrated disadvantage and low levels of home
campo da criminalidade de ruas e nos crimes corporativos, além de pontuar ownership would reduce neighbordhood levels of social control, social trust, and collective efficacy,
which in turn increases rates of violence. The hope was that increasing home ownership would reduce
neighborhood instability, including that attributable to neighborhood violence”, HAGAN, John. Who
281. HAGAN, John. Crime and disrepute. Thousand Oaks: Pine Forge, 1994, p. 108; no campo da vitimo- are the criminals… cit., p. 191.
logia, COHEN, Lawrence et al. “Social inequality and predatory criminal victimization: an exposition 286. “Corporate crime is criminal activity committed by organizations meant to profit the organization. An
and test of a formal theory”. American Sociological Review, 1981, pp. 505-524. understanding of corporate crime often requires learning the language of business and conceiving of both
282. HAGAN, John. Who are the criminals? The politics of crime policy from the Age of Roosevelt to the Age crime and victimization in a collective and aggregate sense. Corporate crime has existed as long as there
of Reagan. Princeton: Princeton Press, 2010, p. 14 e ss. have been corporations, but history shows that more recent corporate crimes have been more extensive and
283. “Corporate complexity and a trust of persons in high corporate positions worked hand in glove with have resulted in greater lossess to victims than in years past. There are severeal different kinds of corporate
policies of deregulation to set the foundation for an increasingly free and fearless pursuit of risks and crimes, and each of these results in different kinds of harm or costs”, MEIER, Robert F. “Corporate Crime”.
profits during the age of Reagan”, HAGAN, John. Who are the criminals… cit., p. 173. CHAMBLISS, William (org). Crime and criminal behavior. Los Angeles: Sage, 2011, p. 59.
Capítulo 4
FUNDAMENTOS DA PESQUISA VITIMOLÓGICA

Para além dos esforços conceituais tradicionais287, os fundamentos da


pesquisa vitimológica permitem observar a fascinante convergência entre
criminologia e os desenvolvimentos científicos da vitimologia. O fascínio,
no entanto, não repercute no âmbito corporativo, e acaba facilmente frus-
trando as expectativas, dando-se conta de que a vitimização corporativa
(corporate victimhood) é drasticamente reduzida à relação incestuosa entre
as narrativas corporativas, as tragédias humanas e as catástrofes naturais. A
própria vitimologia é descrita com pobreza ou apreendida com insuficiên-
cia, restrita às categorias tradicionais. É preciso assimilar novas percepções
sobre os processos vitimizantes, identificar estas novas vozes e resgatar-lhes
o sentido mais básico de dignidade como matéria de realinhamento da
responsabilidade penal empresarial, reforçando-lhes os fundamentos e seus
limites de legitimação.
Com elevada sensibilidade, o prêmio nobel de literatura Voices from
Chernobyl, escrito com fineza por Svetlana Alexievich, representa um tre-
mendo testemunho emocional sobre os sentimentos, percepções e incerteza
que a vítima pode vivenciar em uma tragédia humana. O uso de narrativas
corporativas, porém, arrefece o drama da sensibilidade humana, diluindo-a
em “manchas morais coletivas” (collective stains), sensações esparsas mera-
mente acumuladas sem afetar de forma significativa a concepção que se tem
da criminalidade corporativa e dos processos de vitimização. A cobertura de
mídia converte-se em um grande negócio, ávida pelo sofrimento e lutas pela

287. “Victimology, the study of crime victims, their characteristics, their relationship to, and their interac-
tions with, their victimizers, their role and their actual contribution to the genesis of the crime, offers
a great promise for transforming etiological criminology from the static, one-sided study of the traits
and attributes of the offender into a dynamic, situational approach that view criminal behavior not as a
unilateral action but as the outcome of dynamic processes of interaction. Victimology offers the prosect
of a comprehensive model that integrates endogenous and exogenous factors, individual and situatio-
nal variables, predisponsing and catalytic forces, a model encompassing the perpetrator´s motives and
environmental temptations and opportunities, the victimizer´s initiative and the victim´s response, one
party´s action and the other party´s reaction”, FATTAH, Ezzat. “Some problematic concepts, unjustified
criticism and popular misconceptions”. SHICHOR, David (org) Victims and victimization. Waveland,
Prospect, 2002, p. 36.
98 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 4 – Fundamentos da pesquisa vitimológica 99

sobrevivência. O alcance do mundo virtual permite que real time a vitimiza- processos de múltipla vitimização, cifra oculta de vitimização (com elevados
ção se torne imediatamente objeto de mercancia. A captura de percepções é índices de emoções contraditórias, tais como vergonha, constrangimento e
exercício permanente, afetando e criando novos comportamentos, o que gera autorresponsabilização). A falta de conhecimento vitimológico causa a erosão
enorme faturamento a partir das tragédias humanas e manipula sentimentos da legitimidade do controle social formal. Falta de medidas e insuficiente
em desprezo à forma como são afetadas as vítimas reais em sua personalidade concepção apenas reafirmam a frágil agência da vítima, negligenciada em
e em sua vida social. Recentemente, os vitimólogos tem até classificado estas seus direitos e necessidades. As vítimas são submetidas a forças que elas não
situações como manifestações de vitimização quaternária de grupos especí- controlam290 e, o que torna a situação ainda mais delicada, as ciências crimi-
ficos288, o que, em verdade, apenas reflete a avidez pela maximação do lucro nais simplesmente não dominam estas formas de subordinação, seus abusos
na mesma proporção em que maximiza o sofrimento humano. e os efeitos deletérios do dano à pessoa (harm to the self).
As vítimas merecem muito mais do que isso. Merecem mais atenção, Por conseguinte, a fundamentação da vítima e dos processos de viti-
melhores condições concretas para exercer seu testemunho, o perdão e de- mização fica fragilizada em interpretações sobre sua “relatividade”, ao sabor
terminarem-se em suas liberdades pessoais (ou capacidade de agência). Mas da acomodação de preferências políticas ou moralismos291. A necessidade
também o sobrevivente (harm to other), merece igualmente reconhecimento, de conectar as vítimas aos danos por meio da punição do comportamento
o sistema de justiça criminal deve dar-lhe voz, ouvi-lo, ampliar-lhe os limi- socialmente danoso vem para suprir a sensação de anomia (normlessness) e
tes do amparo psicológico. O dano à vítima deve ser envolvido com outros restaurar o Estado de Direito (rule of law). A pesquisa vitimológica deve estar
tipos de dano e com suas repercussões na comunidade (harmed community) solidamente fundamentada em evidência sobre a identificação da vítima e
e frente às gerações futuras em larga escala de efeitos socialmente danosos daquelas que realmente necessitam submeter-se à restauração. O que, com
(mass harm). Ao contrário disso, a sensação de justiça não-realizada mina o maior sensibilidade prática, significa identificar as vozes que não são ouvidas
sistema de justiça criminal. A pesquisa científica na área deveria demonstrar e a percepção real de deslegitimação do sistema de justiça criminal frente às
maior sensibilidade por estas novas percepções, um tanto mais acuradas injustiças cometidas sistematicamente contra as vítimas.
sobre como definir o sentido social do dano e suas consequências para a Com base em pressupostos muito semelhantes, o instigante ensaio de
responsabilização. Apesar disso, as vítimas seguem sendo sistematicamente Michael O´Connell investiga por que a vitimologia estaria no “modo de
silenciadas. A vitimização permanece não reconhecida, na mesma medida espera”, na expectativa de construção racional, metódica, suficientemente
em que a Justiça não distribuída. fundada em empiria e propositiva sobre um modelo explanatório orientado
Desde Albert Reiss, as quantificações e cruzamento de dados sobre viti- à vítima292. Ezzat Fattah, movido por semelhante preocupação de busca do
mização reforçam a disparidade do conhecimento sobre o comportamento do referencial científico da pesquisa em vitimologia, elabora um interessante
ofensor e da vítima289. O domínio precário dos padrões de comportametno cenário da pesquisa vitimológica. Além dos entraves da métrica e da pesquisa
deriva não apenas da falta de dados, mas da métrica insuficiente. Reiss já quantativa, há interpretações qualitativas igualmente subestimadas. Por que
dava conta das métricas insuficientes, cruzamentos de dados, analítica dos algumas pessoas são vitimizadas e outras não? Seria aleatório e casual, ou
haveria certa padronização de fatores e oportunidades? Haveria um corte
288. “(…) hearing the stories of the victims can often vicariously traumatize these individuals. Finally, in-
dividuals in the community who are relatively isolated from a violent incident may also become vica- científico transversal que permita compreender, a um só tempo, a especifici-
riously traumatized by hearing about the incident or seeing stories on the news or reading about it in dade da vítima e da não-vítima, propensão e vulnerabilidade?293
the newspaper, becoming quaternary victims”, AXELROD, Evan. Violence goes to the internet. Sprin-
gfield: Charle Thomas, 2009, p. 35.
289. “Not only does considerable overlap exist between populations of victims and offenders as demonstra- 290. GOVIER, Trudy. Victims and victimhood. Ontario: Broadview, 2015, 232 p.
ted by the substantial proportion of violators having also been victims, but considerable evidence exists
that the experience of being victimized increases the propensity for offending and that populations 291. QUINNEY, Richard. “Who is the victim?”. Criminology, 10/1972, p. 322
of victims and offenders have homogeneous characteristics (…). Clearly any theory that assumes no 292. O´CONNELL, Michael. “Victimology: a social science in waiting?”. International Review of Victimo-
overlap exists between populations of victims and offenders or that they are distinct types of persons logy, 15/2008, p. 91-104.
distorts the empirical research”, REISS Jr., Albert. “Towards a revitalization of theory and research on 293. FATTAH, Ezzat. Criminology past, present and future: a critical overview. Hampshire: Macmillan,
victimization by crime”. Journal of Criminal Law and Criminology, 72/1981, pp. 710-711. 1997, 61 e 143 e ss.
100 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 4 – Fundamentos da pesquisa vitimológica 101

A partir desta analítica, Fattah sistematizou alguns elementos funda- afetam diretamente a percepção da vitimização.
mentais para o estudo da vitimologia: 1) a “motivação do comportamento A revisão dos estudos de vitimologia pretende identificar evidências e
desviante não se desenvolve suspensa em um vácuo”, o que demanda inves- novas perspectivas sobre como a construção do conflito vitimal pode contri-
tigação mais séria sobre ações, interações e reações ao crime, assim como já buir decisivamente na formulação de estratégias mais efetivas de redução da
afirmado por von Hentig. Há casos em que o comportamento ofensor se vitimização. A revisão da literatura disponível em vitimologia e a busca por
dê em função de vítima específica. Quanto à vítima, o problema é que na interrelações possíveis com os estudos desenvolvidos no âmbito corporativo
maioria dos casos, é envolvida de modo inconsciente; 2) analítica multifato- podem permitir novas abordagens explanatórias sobre os processos de vitimi-
rial é indispensável para compreender o contexto criminógeno; 3) analítica zação corporativa. Sob decisiva influência das ideias de William Laufer e dos
de cadeia de interações entre ofensor e vítima; 4) modelos explanatórios não estudos interdisciplinares desenvolvidos na Universidade da Pennsylvania,
devem ser estatísticos – do contrário, compreender a dinâmica do compor- em perspectiva metodológica que combina ampla formação em criminologia
tamento e interação entre ambos; 5) estudo da vítima tem importante valor corporativa e fineza de observação dos problemas vitimológicos, é possível
como informação, que compõe a base da métrica da probabilidade de risco questionar as justificações morais e incorporar novas estratégias de pesquisa
e determinação das categorias de risco, propensão, medo, reação e impacto com base em mais criatividade e imaginação296 na formulação de mecanismos
da vitimização, além de fundamentar a formulação de políticas públicas de de prevenção da vitimização e redução dos danos à vítima.
prevenção (proteção de vulneráveis, aumento da segurança e melhoria na
qualidade de vida); 6) impacto nas decisões do sistema de justiça criminal; Nesta pesquisa, serão revisitados os estágios evolutivos da vitimologia,
7) compreensão da responsabilidade moral da sociedade perante à vítima; 8) buscando auxiliar não apenas no entendimento dos motivos que levaram as
conceber estratégias de justiça restaurativa. Como consequência teórica destes ciências criminais a se mostrarem pouco receptivas às preocupações vitimo-
critérios, Fattah extrai a recomendação de que a perspectiva da escolha racio- lógicas, mas também na delimitação de possíveis novas indagações quanto
nal e oportunidade (rational choice opportunity) seria o caminho preferencial aos processos de imputação moral orientada à vítima, oferecendo às ciências
de convergência entre ambas as teorias criminológicas e vitimológicas294. criminais a oportunidade de rever os conceitos estruturantes do crime e da
pena. Na própria experiência científica da Universidade da Pennsylvania há
A construção científica da vitimologia corporativa pressupõe referências estudos bastante significativos sobre a convergência entre a pesquisa social e
que melhor permitam compreender os processos de vitimização e o lugar criminológica e as formas de manifestação da violência e da vitimização, com
do sistema de justiça criminal. Desde suas origens, a vitimologia adquiriu o quantificações e métricas consistentes297, buscando precisamente analisar
status de ciência social da vitimização, encontrando seus limites basicamente como a pesquisa científica pode extrair consequências teóricas de experiên-
na reparação e assistência à vítima. A grande questão é que a vitimização cias concretas e fundamentar novas práticas sociais.
provocada pela criminalidade econômica é muito mais danosa do que as
demais formas de vitimização. O número de mortos pela negligência ou Na formulação da vitimologia corporativa, sua compreensão pode ser
pela simples indiferença da vitimização corporativa é muito maior do que obtida por meio desta interação entre as variáveis da vitimologia e os estudos
o dano intencionalmente causado pela criminalidade tradicional295. Assim desenvolvidos na literatura sobre ética negocial e melhores práticas corporati-
como na criminologia é recorrente a estratégia de comparação entre os custos vas. O domínio do conhecimento sobre a convergência entre as experiências
e benefícios relativamente aos street crime e aos corporate crime, na vitimologia em torno da vitimização na criminalidade tradicional (street crimes) e a vi-
se observam os mesmos problemas de priorização de política criminal, que timização no âmbito corporativo (corporate victimization) é essencial para

296. WERHANE, Patricia. Moral imagination and management decision making. New York: Oxford Press,
294. FATTAH, Ezzat. Criminology… cit., p. 144-146; de modo semelhante, FATTAH, Ezzat. Understanding 1999, p. 89 e ss.; desde a análise das mudanças na percepção da ética provocada pelas ciências cog-
Criminal Victimization. New Jersey: Prentice, 1991, p. 91. nitivas, JOHNSON, Mark. Moral imagination: implications of cognitive science for ethics. Chicago:
295. “With the exception of a few rare types (such as murder, rape, or serious injury), most victimizations, Chicago Press, 1993, p. 185 e ss.
even the ones usually termed serious, are actually trivial in nature, as well as consequence”, FATTAH, 297. SELLIN, Thorsten; WOLFGANG, Marvin. The measurement of delinquency. New York: Wiley, 1964,
Ezzat. Criminology… cit., 1997, p. 53. 423 p.
102 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 4 – Fundamentos da pesquisa vitimológica 103

a elaboração de novos parâmetros de compreensão da vitimização direta e de uma ação, mas de uma omissão ou falha organizacional, sendo sequer
colateral, níveis de vitimização secundária e terciária, além de mecanismos de facilitada a disposição autodeclarada de dados sobre a violência no âmbito
proteção e integração de stakeholders, estratégias de prevenção da vitimização corporativo. Isso torna ainda mais delicada a tarefa de identificação e deli-
corporativa e devitimização. mitação do trauma vitimológico causado pelo abuso de poder corporativo.
Após determinar os elementos de uma criminologia econômica, neste Há muito a ser investigado neste campo e precisamente a partir desta
capítulo serão discutidas as possíveis convergências entre a pesquisa vitimoló- releitura do lugar da vítima e dos processos de vitimização pode haver mudan-
gica e a vitimização no âmbito corporativo. A concepção de uma vitimologia ças nas justificações morais dos processos de aplicação da lei (law enforcement),
corporativa toma como pressuposto a definição do corportamento corporati- intimidação penal (deterrence) e regulação do abuso no âmbito corporativo.
vo socialmente danoso (corporate harmful wrongdoing). O estudo da evolução Embora a pesquisa científica brasileira seja ainda incipiente em termos de
do pensamento vitimológico servirá para evidenciar elementos que permitam responsabilidade empresarial (há baixa incidência da responsabilização empre-
estruturar a finalidade, natureza, o nível de conhecimento empírica e as sarial nos âmbitos civil e administrativo, imputação penal limitada a delitos
possibilidades de aplicação prática dos conceitos, desde a avaliação de risco ambientais, análises de responsabilização moral em franca maturação, insta-
vitimológico até a imputação de responsabilidade penal empresarial, pas- bilidade quanto ao reconhecimento judicial de boas práticas empresariais)300,
sando pela revisão dos processos de vitimização direta e colateral, terciária, a propositura da vitimologia corporativa se alinha a momento histórico que
análise de stakeholders, estratégias de desvitimização e justiça restaurativa298. reclama pela mobilização científica em torno de novas leituras sobre a própria
vitimologia, especialmente no que diz respeito à estreita relação entre a ética
As corporações devem ser concebidas como perpetradoras e agentes
negocial e a violação de direitos humanos na empresa.
puníveis pelo comportamento socialmente danoso. O abuso do poder cor-
porativo resulta em tragédias funestas ao redor do mundo, cotidianamente. 4.1. OS CLÁSSICOS DO PENSAMENTO VITIMOLÓGICO
A falha de reguladores em desenvolver estratégias de suporte à vítima e a Desde suas primeiras manifestações, a vitimologia foi relegada a
ausência de suporte material não dizem nada a respeito dos sentimentos de um plano secundário, como apêndice do conhecimento criminológico.
culpa (blame) ou constrangimento (shame)299. Por muitos anos, respeitáveis pesquisadores relutaram em reconhecer sua
Os “aspectos latentes da vitimização” e da “vitimização dos mais vul- idoneidade científica. Donald Cressey, por exemplo, foi, em princípio,
neráveis” nem sempre produzem traumas visíveis, oficialmente reconhecidos refratário à vitimologia como campo idôneo de investigação científica,
ou que sejam do conhecimento das pessoas, no entanto, acaba por justificar em célebre manifestação no Fifth International Symposium on Victimology,
o fato de que tradicionalmente a vítima das infrações corporativas sequer ocorrido em Zagreb no ano de 1985: “um programa anti-acadêmico, em
é considerada enquanto tal. Somando-se ao senso comum do “crime sem torno do qual estão arbitrariamente agrupadas ideias, interesses, ideolo-
vítima” está o fato de que a “violência corporativa” (corporate violence), além gias e métodos de pesquisa”. A recusa disciplinária foi responsável por um
de poderosa, difusa e, muitas vezes, irreversível, nem sempre seja decorrente longo período de desorientação teórica e marginalização na coleta de dados.
Tradicionalmente, a pesquisa vitimológica esteve centrada no desenvolvi-
298. HOYLE, Carolyn. Restorative Justice: critical concepts in criminology. London: Routledge, 2009, p. mento teórico de suas primeiras classificações e, no plano institucional, na
126-127: “there is a balance to be struck in restorative justice between the desire to provide victims,
and others, with a servisse which seems to be beneficial, and the concern not to coerce victims into formulação de iniciativas institucionais de assistência, bastante restritas
attending, with the risk of re-victimisation. As Wright has argued, while coercion should be avoided,
it is important conversely that those who might want to take part should be made fully aware of the aos instrumentos e procedimentos de reparação, compensação de danos
opportunity, with all its likely benefits and disadvantages so that they can make an informed choice”,
HOYLE, Securing restorative justice for the ‘non-participating’ victim”. HOYLE, Carolyn et al (org) ou solução de demandas aleatórias e contingências301.
New Visions of Crime Victims. Oxford: Hart Publishing. p. 97-131.
299. Para a reconstrução dos vínculos entre o sentimento de culpa, responsabilidade e punição, profundo 300. Para uma revisão do estado da arte, SAAD-DINIZ, Eduardo. “Brasil vs. Golias: os 30 anos da res-
LAMB, Sharon. The problem with blame: victims, perpretrators and responsibility. Harvard: Harvard ponsabilidade penal da pessoa jurídica e as novas tendências em compliance”. Revista dos Tribunais,
Press, 1999, p. 160 e ss.; explorando a construção das narrativas do crime e a orientação crítica da 2/2018, 25 p.).
opinião pública, SASSON, Theodore. Crime talk: how citizens construct a social problem. New York: 301. SCHNEIDER, Hans Joachim. “Victimological developments in the world during the last three deca-
Aldine de Gruyter, 1995, p. 13 e ss. des”. International Journal of Offender Therapy and Comparative Criminology. 45/2001, p. 539-555.
104 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 4 – Fundamentos da pesquisa vitimológica 105

Vitimólogos contemporâneos chegam a desacreditar os fundadores da von Hentig discutiu a figura do “provocador em potencial” (potential provo-
vitimologia, pelo caráter “primitivo” de suas formulações302, embora, assim cateur) no envolvimento do crime305.
como pensamos, sem este esforço classificatório das origens da vitimologia As reflexões que se sucederam às ideias de von Hentig indicam certa
talvez estivéssemos ainda muito longe de mais efetivo reconhecimento e semelhança de seu esforço classifatório com um comportamento científico
medidas inclusivas de restauração tal qual atualmente as concebemos. mais afeito ao positivismo lombrosiano, notadamente porque propõe clas-
sificação das vítimas e ofensores a partir de seus “traços comuns”, o que faz
4.1.1. HANS VON HENTIG todo sentido, já que von Hentig se insere na mesma tradição científica de
Hans von Hentig, apesar de certa ambiguidade em relação a ques- investigação dos fatores sociobiológicos e geofísicos da causa do crime306.
tões eugênicas, na fase inicial de sua carreria científica militou contra as Mesmo assim, há rudimentos da desorganização social que influenciam
ciências criminais autoritárias de seu tempo (especialmente em oposição a a compreensão de von Hentig sobre os processos de vitimização. Desde
Georg Dahm e Friedrich Schaffstein)303. Radicado nos EUA, é então que von então, entendia que o problema do imigrante estava para além das dife-
Hentig escreve The Criminal and his Victim304, introduzindo originalmente o renças no plano da comunicação, já que os fatores mais decisivos seriam o
estudo da vítima nas ciências criminais. Aí também se inauguram os estudos isolamento e a falta de familiaridade com as normas sociais e leis do novo
sobre a “precipitação vitimal” e o papel da própria vítima na vitimização, contexto a que estava submetido307.
assumindo a condição de agente moralmente responsável por seu compor-
tamento e suas interações com o ofensor. 4.1.2. BENJAMIN MENDELSOHN
O pioneirismo de von Hentig consistiu em mentalidade classifica- Logo em seguida a von Hentig, Benjamin Mendelsohn preparou a
tória e percepção da “precipitação vitimal” são as primeiras contribuições primeira sistematização dos estudos vitimológicos em 1948. Benjamin Men-
originais de suas pesquisas. Trata-se do primeiro ensaio sobre a natureza delsohn promoveu a cisão entre os conceitos de vítima e ofensor (é notado
da vítima e da vitimização, extraindo as consequências teóricas do reco- também por Schaefer). Mendelsohn desenvolveu seus estudos como a moeda
nhecimento da vítima a partir de suas dimensões morais e sociais. É o “reversa” da criminologia308, a partir de uma tipologia baseada na ideia de
“pai da relação vítima-ofensor”, surge com ele a polaridade entre autor e culpa (blameworthiness): 1) vítima completamente inocente (vítima dos
vítima, e é apenas a partir dele que se tornou possível analisar a propensão crimes tradicionais, sem provocação ou facilitação); 2) vítima como culpada
à vitimização (victim proneness) segundo as características socioeconômi- pela ofensa (usuário ou traficante de drogas em tiroteio entre si, suicídio); 3)
cas das pessoas. vítima mais culpada do que o ofensor, por provocar ou abusar (casos em que
Na categoria “geral de vítimas”, von Hentig classificou a vítima em seis vizinho testemunha assalto e atira no suspeito ou protesta publicamente pela
grupos distintos: 1) jovens; 2) idosos; 3) mentalmente deficientes ou deran- condenação do assaltante e reza pelo atirador); 4) “most-guilty” vítima (leva
ged; 4) dependentes químicos (intoxicated); 5) imigrantes; 6) membros de 305. VON HENTIG, Hans. The criminal and his victim… cit., p. 406 e ss.
grupos minoritários. Da categoria “tipos psicológicos de vítimas”, constam 306. VON HENTIG, Hans. Crime: causes and conditions. McGraw-Hill, 1947, 379 p. Sutherland, no en-
tanto, vê como inconsistente a formação sociobiológica de von Hentig, e afirma que, em verdade, suas
os depressivos, o perdulário, o libertino, o solitário, o traído; o atormentado, contribuições sobre o estudo da vítima dizem respeito muito mais à “interação social entre ofensor e
vítima”, SUTHERLAND, Edwin. “Book review: The Criminal and his Victim: studies in the sociobio-
o retraído, o neutro, o inconformado e, por fim, the activating sufferer – logy of crime”. American Journal of Sociology, 54/1949, p. 575.
quando a vítima se torna ofensor. No que diz respeito à precipitação vitimal, 307. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 5: “Feeblemindedness, common among
some types of criminals, is also common among their victims… certain characteristics of law-abiding
citizens arouse a counterreaction in the criminal. The inexperienced businessman, for example, invites
302. MEIER, Robert; MIETHE, Terance. “Understanding theories of Criminal Victimitzation”. Crime and embezzlement; the nagging wife is flirting with murder; the alcoholic is a natural for robbery. Thus the
Justice, 17/1993, p. 459-499. victim becomes the ‘tempter’. Since society does not yet recognize the close relationship between crimi-
303. VON MAYENBURG, David. “Der Fall v. Hentig ist recht unerfreulich: Hans von Hentig und die natio- nal and victim… the whole machinery of prisons, parole boards and probation is drastically out of date.
nalsozialistische Hochschulpolitik”. SCHMOECKEL, Mathias (org) Die Juristen der Universität Bonn Until a new theory of crime prevention is adopted, victims will go on being self-perpetuating group, as
im “Dritten Reich”. Boehlau, editor, 2004, p. 324-343. dangerous to society as criminals (Science, 1948)”.
304. VON HENTIG, Hans. The criminal and his victim: studies in the sociobiology of crime. New Haven: 308. DUSSICH, John. “Victimology – past, present and future”, Resource Material Series n. 70. Tokyo:
Yale Press, 1948, 461 p. UNAFEI, 2006, p. 116.
106 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 4 – Fundamentos da pesquisa vitimológica 107

a que alguém se auto-defenda, assaltante que invade a casa e é assassinado functional responsibility), alcançado uma dimensão negativa – a necessidade
pelo morador); 5) vítima simulada ou imaginária (pretende ter ou falsamente de prevenção de outros para que não seja ela própria violada – e uma positiva
reclama o status de vítima)309. – por meio de sua própria disciplina e orientação de comportamento, preve-
Apesar da relevância histórica desta classificação, a contribuição de nir violações. Schaefer concebe a accountability da vítima como instrumento
Mendelsohn adstringe-se a estes critérios de melhor compreensão do com- de controle social. A resposta moral ao comportamento da vítima serve para
portamento vitimal no crime, sem maiores práticas na verificação de causas manter e conservar a ordem social, isto é, está para preservar a configuração
dos processos de vitimização ou na percepção das motivações psicológicas da sociedade da mesma forma que as funções do crime313.
consequências teóricas na legitimação do sistema de justiça criminal310.
4.1.4. MARVIN WOLFGANG
4.1.3. STEPHEN SCHAEFER Em clássico do pensamento criminológico, Patterns in criminal
homicide, Marvin Wolfgang introduziu uma mais vigorosa noção de “pre-
Ao publicar The Victim and his Criminal, Stephen Schaefer se soma ao
cipitação vitimal” (victimal precipitation)314. Articulando a noção de que
lado dos cânones do pensamento vitimológico. O jogo de linguagem com o
o processo de vitimização deve ser entendido como uma interação social,
título original de Von Hentig vem para acentuar a primazia da vítima, que
Wolfgang coleta evidências que justificam que a maior parte das situações
deve ocupar um lugar privilegiado nas ciências criminais311. Schaefer o que
de homicídio são provocadas, direta ou indiretamente, pela vítima. As
faz, em verdade, é uma grande revisão dos clássicos para habilitar-se como
evidências são essenciais para a imposição dos limites entre a situação de
referência em estudos vitimológicos. A tipologia por ele criada segue até os
abuso de poder, os limites do consentimento da vítima e a decisão da vítima
dias atuais bastante influente: 1) vítimas casuais (unrelated victims, casual-
de participar ou não do processo penal315.
mente escolhida pelo ofensor, sem culpa da vítima); 2) vítima provocadora
(comportamento da vítima é responsável em algum grau pela reação do ofen- Juntamente com Thorsten Sellin, Marvin Wolfgang ocupa uma posição
sor) ou precipitadoras (vítima se autocoloca em situação de vulnerabilidade, privilegiada na formação do pensamento vitimológico com The measure-
particularmente se arriscando em determinados lugares e em horários de alto ment of delinquency, oportunidade em que as vítimas foram classificadas em
risco); 3) vítimas biologicamente frágeis (não são responsáveis pela ofensa, função de seu comportamento e do dano: vitimização primária (qualquer
como um jovem violado sexualmente na prisão); 4) vítimas socialmente frá- dano direto pessoal, como vítima de um assalto); vitimização secundária
geis (como minorias não empoderadas ou imigrantes, sem culpa); 5) vítima (vítima não humana, como um negócio ou organização); vitimização ter-
auto-vitimizadoras (envolvidas em contexto criminoso, como em tráfico de ciária (produz dano social ou um mal contra a sociedade como um todo);
drogas ou exploração da prostituição, agindo em conluio com os ofensores, vitimização mútua (experiência compartilhada entre vítima e ofensor, me-
totalmente responsáveis pelo envolvimento direto em situações de alto risco); diante mútuo consentimento e participação)316.
6) vítima política (decorrentes de relações de poder, não responsável)312. Os estudos de Marvin Wolfgang repercutiram sensivelmente na consoli-
A contribuição teórica de Schaefer remonta à interpretação funcional, dação da pesquisa vitimológica. A exploração do papel da vítima na sociedade
na linha de Durkheim, analisando a responsabilidade como questão crítica tornou-se o elemento constituinte da ideia vitimológica e o ponto de parti-
na compreensão do comportamento desviante. De forma bastante criativa, da para analisar as relações vitimais, compreender como o comportamento
aperfeiçoou o conceito de “responsabilidade funcional da vítima” (victim 313. SCHAEFER, Stephen. The Victim and his Criminal… cit..
314. WOLFGANG, Marvin. Patterns in criminal homicide. New York: Wiley, 1966, 413 p.; estudos posteriores
309. MENDELSOHN, Benjamin. Etudes internacionales de psycho-sociologie criminell, 1956. testaram as evidências de Wolfgang, ADLER, Freda. Sisters in crime: the rise and fall of the new female
310. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 8 criminal. New York: McGraw-Hill, 1975, 287 p.; em detalhes sobre a interpretação judicial da precipitação
311. Esta oposição, em maior ou menor medida, também se repõe entre MUELLER, Gerhard et al. The vitimal, GOBERT, James. “Victim precipitation”. Columbia Law Review, 77/1977, p. 536 e ss.
criminal, society, and the victim. Washington: National Criminal Justice Ref. Service, 1973, 19 p.; e 315. HINDELANG, Michael; GOTTFREDSON, Michael. “The victim´s decision not to invoke the criminal
DAVIES, Pamela et al. Victims, crime, and society: an introduction. 2. ed. London: Sage, 2017, p. 1 e ss. process”. Criminal justice and the victim, p. 57-78.
312. SCHAEFER, Stephen. The Victim and his Criminal: Victimology. Random House, 1968, 178 p. 316. Em detalhes, McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 9.
108 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 4 – Fundamentos da pesquisa vitimológica 109

da vítima se envolveu em situação perigosa e foi ou não determinante da sociais. A isso se convencionou “culpar a vítima” (blaming the victim), muitas
dinâmica do risco. Posteriormente, os estudos foram levados ao plano de ve- vezes imputando à vítima mesma a causa dos processos de vitimização.
rificação institucional, impactando a atuação funcional do sistema de justiça O contorno moral do conflito vitimal parece decisivo para a com-
criminal, o que também permitiu criar parâmetros de avaliação não apenas preensão destes movimentos históricos. Opõe-se uma fase de neutralização
da forma como polícia, Ministério Público e tribunais interagem com a moral do conflito vitimal à sucessão de justificações morais (moral justifica-
vítima, mas também da maior ou menor legitimação de suas práticas a partir tions) de intervenções punitivas bem ao gosto da razão populista, ocupando
do reconhecimento, participação e inclusão. É precisamente a partir deste a prioridade em formulação de políticas públicas de “enfrentamento à crimi-
momento que os vitimólogos começam a “avaliar a efetividade das medidas nalidade”319. O reconhecimento da vítima, até então, ou bem tomou aspectos
de reparação às perdas das vítimas, indo ao encontro das necessidades pessoais meramente formais, orientado por mentalidade eminentemente classifica-
e emocionais delas”317. tória, ou foi apropriado a interesses políticos. Neutralização ou justificação
O pioneirismo de Wolfgang consiste em sistematizar uma tradição moral de preferências políticas alienam a dimensão conflitiva da relação vi-
cientítica que se dedica às evidências sobre a dinâmica do papel da vítima timal e mutilam o drama, as percepções e as experiências de vitimização320.
na sociedade, desde perspectiva multidisciplinar, demonstrando que a ne- Seja como for, a observação do movimento das ideias vitimológicas
cessidade de individualização não se limita ao ofensor e deve ser estendida permite afirmar que segue havendo muito espaço para estudos significativos
também à vítima318. na área, especialmente no que diz respeito a uma descrição adequada da
4.2. MOVIMENTOS HISTÓRICOS vítima nas ciências criminais. A construção científica do objeto de pesquisa
demonstra que há ainda uma significativa oportunidade para resgatar a
Hans von Hentig, Benjamin Mendelsohn, Stephen Schaefer e a ideia de compreensão da vítima e abordar de forma realista e inteligente o sistema
“precipitação vitimal” aportada por Marvin Wolfgang correspondem à assim de justiça criminal, dando a quem normalmente é esquecida, sem lugar
chamada “idade de ouro” da vitimilogia. Porém, se bem é certo que puseram e voz. Constantemente se debate a atualização do conceito de “indivi-
a descoberto o pensamento vitimológico, também é certo que esta fase inicial dualização da vítima”, baseado nas noções retribucionistas de just desert,
foi fortemente marcada por neutralização e déficits no reconhecimento da originalmente propostas Marvin Wolfgang: “este desenvolvimento pode
figura da vítima, limitando-se a compreender o comportamento da vítima na representar a vantagem de produzir uma simetria histórica, e mesmo dar
construção do delito, e não propriamente como o protagonista das interações lugar ao senso de justiça por parte das vítimas, sobreviventes (survivors) e
317. KARMEN, Andrew. Crime Victims: an introduction to victimology. 2. ed. Belmon: Wadsworth, 1995, defensores das vítimas (victims advocates)”321
p. 14 e ss.
318. “This approach to the individualization of the victim is related to the prevailing penal philosophy of
retribution (Wolfgang, 1982). When the major objective is to sanction the offender according to the 319. TONRY, Michael. “Can twenty-first century punishment policies be justified in principle?”. TONRY,
gravity of offense perpetrated, then the seriousness of crime can be defined also by the degree of harm Michael (org). Retributivism has a past: has it a future?. Nova York: Oxford University Press, 2011;
inflicted upont the victim. According to this approach it is not the individualization of the offender VON HIRSCH, Andrew; ASHWORTH, Andrew. Proportionate sentencing: exploring the principles.
(which has come under criticism lately) but the individualization of the victim which becomes the major Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 23.
factor in punishment, a practice that could enhance the idea of ‘just deserts’. This suggestion in in line 320. “O que não passaria de construção abstrata de personagem representativa, que exterioriza as preocu-
with the idea mentioned earlier of personalization of the harm, and may lead to a more severe handling pações securitárias da sociedade e que serve à justificação ao populismo punitivo (Garland), sendo a
of corporate crime. Personalization of the harm and individualization of the victim facilitate the ability proteção à vítima elemento frequentemente causador de irracionalidade na produção legislativa, ar-
of the public to identify with the victims of corporate deviance and to recognize the seriousness of gumento a partir do qual se estabelece uma duvidosa conexão entre (i) pressões sociais por proteção
corporate violations. The personalization of harm and individualization of corporate victims correspond penal de vítimas e (ii) a instituição de medidas punitivas de especial gravidade. A manifestação desta
with the corporate accounts and justifications of deviance which, according to Lundman (1984 – Ac- desconfiança acaba por restringir o potencial de reorientação do processo de imputação moral orientado
counts of corporate deviance), are strikingly similar to the ways individuals excuse or justify their own à vítima, principalmente pelo receio de reposição de certos níveis de revanchismo nas ideias penais, ou
actions. Thus, both the victimization and the justification of corporate deviance can be personalized pela primazia de correntes mais propensas à categorização do comportamento da vítima que contribui
and individualized to a large degree. There are several avenues for future research that can be followed para a produção de determinado resultado”, SAAD-DINIZ, Eduardo; MARIN, Gustavo de Carvalho.
which utilize concepts developed in the study of individual victimization. Various victims categories “Imputación moral a la víctima como problema de imputación objetiva”. Revista de Derecho Penal,
depicting the nature of interaction between the offender and the victim should be examined (Wolfgang 1/2016, p. 87-114.
and Singer, 1978 – Victim categories of crime; Shelly, Understanding crime; Fattah, Vers une typologie 321. EREZ, Edna; SEBBA, Leslie. “From individualization of the offener to individualization of the victim:
criminologique des victims). These explorations may contribute to the clarification of issues related to an assessment of Wolfgang´s conceptualization of a victim-oriented Criminal Justice System”. LAU-
societal response to corporate deviancy (corporate vs. individual responsibility)”. SCHICHOR, David. FER, William; ADLER, Freda (org). The Criminology of Criminal Law. New Brunswick: Transaction,
Corporate deviance and corporate victimization… cit., p. 69. 1999, 171-198.
110 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 4 – Fundamentos da pesquisa vitimológica 111

Com base neste diagnóstico e uma vez mais sob decisiva influência de 4.2.1. BLAMING THE VICTIM
William Laufer, questiona-se sobre a legitimidade de um sistema de justiça Desde a tradição vitimológica, muito se discutiu que esta inclinação
criminal que se realiza cotidianamente à indiferença de tragédias humanas a culpar a vítima decorre, em verdade, de certa banalização dos processos
e da “vitimização coletiva” (collective victimization)322. Para além de apelos de vitimização, o que nas ciências criminais foi incorporado pelo discurso
de sensibilidade de justiça, a proposta é justamente reforçar a objetividade dogmático da autocolocação em risco ou perigo. Não apenas em função
e fundamentar, de forma consistente e baseada em evidências científicas, da naturalização do crime em determinadas sociedades, mas também pelo
a elaboração de uma vitimologia corporativa em que os danos corporati- uso indiscriminado da vitimização para obtenção de favores judiciais. Isso
vos, que afetam milhões de vidas. Nesta linha, a criminologia corporativa forja na sociedade a sensação de exaustão, difundindo cinismo frente à
apresenta consolidados desenvolvimentos na investigação das “estruturas vítima e indiferença em relação a quem realmente é vulnerado e necessita
de oportunidade” ao delito que engajam good people em dirty work323, cuja proteção. Atribuir à vítima a culpa pelo crime, ao mesmo tempo em que
revisão pode ser bastante significativa para a proposta de desenvolvimento justifica as manifestações de cinicismo e indiferença moral à vítima, deixa
da vitimologia corporativa. posta na sociedade a percepção de que os processos de vitimização são
A agenda de pesquisa no âmbito corporativo tem sido dominada bem pouco tributários das concretas condições materiais de existência das
por estudos pouco inspiradores, limitados à investigação de estratégias de pessoas. O cinismo se evidencia sempre que “nos questionamos sobre se
intimidação (corporate deterrence)324, normalmente se referindo a compor- as vítimas realmente estão por merecer nosso investimento emocional”326.
tamento antissocial enganoso (deceptive asocial behavior), em sofisticadas Leva-se bem pouco em consideração a relação entre desorganização
tramas de antecipação e distribuição do risco no ambiente empresarial. O social e crime, inviabilização à formação de evidências mais consistentes
cenário de pesquisa de fato é pouco inspirador, se ponderarmos a predo- sobre os vínculos entre criminalidade, pobreza, desigualdade, segurança
minância de “princípios” e “valores” que guiam as abstratas modelações de e violência, somadas à inefetividade de políticas públicas 327 e à com-
ética negocial. A abordagem estritamente normativa acaba mobilizando pleta alienação das iniciativas do setor privado. William Ryan cunhou
enormes recursos sem impacto correlato, adstrita a medidas profiláticas, a expressão “culpar a vítima” (blaming the victim), como expressão da
de baixo potencial persuasivo e padrões de prevenção baseados em “efe- ideologia da classe média norte-americana. Ryan reconhece as distorções
tividade” não mensurável. Assim como na inspiração de William Laufer do discurso vitimológico que culpa a vítima por sua própria vitimização,
(bring real life to the core of the scientific reconstruction of victimology)325, a e não por estar constrita em contexto social desorganizado e marcado
revisão sistemática da pesquisa vitimológica pode ser decisiva na formu- por discriminação, marginalização, desigualdade, pobreza, violência e
lação de parâmetros mais imaginativos da redução dos danos causados racismo. O campo de representações deste grupo tem perfeita noção não
pelas corporações na sociedade brasileira. apenas dos benefícios gerados por sua posição privilegiada na sociedade,
322. “Collective victimization has generally been neglected as a field of study and research. More attention mas também de que os outros não desfrutam de determinados direitos,
should be directed at the effects and impact of white collar crimes; corporate misconduct; of abuses of
power on the part of the state; and of illegal business practices. The gross and pervasive ‘violations of tais como formação limitada (limited background) ou falta de valores
human rights’ that are occurring in several areas of the world and are affecting many millions of people
should become a focus of increased inquiry”, VIANO, Emilio. “Victimology: a new focus of resera-
familiares (parental lack of values)328.
ch and practice”. VIANO, Emilio (org). The victimology handbook: research findings, treatment, and
public policy. New York: Garland, 1990, p. xvii.; recentemente, identificando a necessidade de maior 326. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 16.
mobilização em torno da vitimização corporativa, BURGESS, Ann Wolbert et al. Victimology: theories 327. De forma semelhante, McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 17.
and applications. Boston: Jones and Bartleet, 2010, p. 84 e ss.
328. Ryan chega mesmo a afirmar que “social and political liberals are guilty of imposing a kind of middle-
323. HUGHES, Everett. “Good people and dirty work”. Social problems, 10/1962, p. 3-11. -class ideology on to minority group problems in a way that stigmatizes the minority group – blames the
324. PATERNOSTER, Raymond. “Deterring corporate crime: evidence and outlook”. Criminology & Pu- victims – even though the avowed liberal intent is to alleviate the supposed problem”, RYAN, William.
blic Policy. 15/2016, p. 383-386; PATERNOSTER, Raymond. “The deterrent effect of the perceived Blaming the victim. New York: Vintage, 1976, p. 31-33. As críticas de Ryan repercutiram sensivelmente
certainty and severity of punishment: a review of the evidence and issues”. Justice Quaterly, 4/1987, em coletânea “Myths about the powerless”, na qual se discutiram alternativas ao victim blaming e se
p. 173-217; GRASMICK, Harold. “The deterrent effect of perceived severity of punishment”. Social mobilizaram estratégias inclusivas para a emergência de novas vozes no discurso vitimológico, LYKES,
Forces, 59/1980, p. 471-491. M. et al. (org). Myths about The Powerless: Contesting Social Inequalities. Philadelphia: Temple Press,
325. LAUFER, William. A very special… cit., p. 20. 1996, Part III.
112 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 4 – Fundamentos da pesquisa vitimológica 113

Mais afeito às noções de desorganização social, Emilio Viano, também 4.2.2. ORIENTAÇÃO NORMATIVA PELA NECESSIDADE DE
em crítica à noção de blaming the victim, pontua que a compreensão do PROTEÇÃO
comportamento da vítima não se limita à análise do que foi que elas pró-
É possível observar o progressivo alheamento da vítima das discussões
prias fizeram, onde estão ou como reagiram. Mais importante do que isso
das ciências criminais, nas hipóteses em que ou se apega à pauta de deslegi-
é a verificação dos fatores culturais, sociais e econômicos que ensejaram o
timação do direito penal na construção do conflito vitimal ou se interpreta
victim blaming329.
o comportamento da vítima como mero receptor do delito, fazendo dela
A validade universal das críticas de Ryan e a inclinação à desorganização figura anônima que se dissolve na supraindividualidade do interesse protegi-
social demonstrada por Viano não deixou de ser objeto de oposição científica do. Desde as primeiras manifestações de blaming the victim, a percepção da
dentre os vitimólogos. Identificar as causas e suas relações com o contexto não vítima passou por uma série de manifestações. O controle dos processos de
necessariamente significa encontrar os limites da culpa ou adscrever qualquer vitimização foi redimensionado, passando a veicular um conteúdo material
juízo sobre ela. Não é propriamente o dano que qualifica a vítima, e sim a e orientação normativa voltados à proteção da vítima. Não faltaram lentes
qualificação moral de que ela foi injustamente lesionada (unjustly harmed), daí conservadoras para criticar a “expropriação do conflito” pela vítima e a pro-
porque, em últimas consequências, o reconhecimento da vítima depende do moção de contextos hipersensíveis334.
preenchimento moral do conflito vitimal, conforme a determinadas referências
Mais consistente, Van Dijk empregou a expressão “vitimagogia” (victi-
valorativas que distribuem liberdades pessoais e direitos fundamentais.
magogic) como resultado da expressão ideológica da reorientação normativa
Se muito, Ryan está se referindo a uma das causas possíveis do compor- da vitimologia em favor da proteção da vítima. Esta vitimagogia estaria
tamento330, o que não o leva a apreender objetivamente o problema social em dividida em quatro aspectos principais: 1) ideologia do cuidado (care); 2)
todas as suas dimensões: “um problema social é a situação danosa resultante ideologia da ressocialização ou da reabilitação; 3) ideologia da retribuição ou
do conjunto de circunstâncias moralmente reprováveis, tais como arranjos da justiça criminal; e 4) ideologia radical ou anti-justiça criminal. Caberia à
sociais e institucionais”331. Esta discussão importa particularmente a com- ideologia do cuidado definir os parâmetros do Estado de bem-estar e absorver
preensão do comportamento corporativo socialmente danoso. A partir da os impactos individuais pela comunidade o máximo possível, inclusive se o
diferença entre os processos de imputação causal e moral, é possível afirmar caso de cuidados paliativos para mitigar a dor e o sofrimento. Van Dijk, no
que não há razão por que considerar que os crimes corporativos, de difícil entanto, é consciente de que o cuidado não resolve os problemas da vítima
percepção de uma violência concreta em face da vítima, tenham necessaria- indiscriminadamente (stress, trauma ou mesmo necessidades econômicas
mente que implicar aflição imediata à personalidade da vítima332. básicas). À ressocialização cumpriria refundar os processos de socialização e
No âmbito corporativo, a atribuição de responsabilidade ao compor- auxiliar o desenvolvimento das personalidades envolvidas. Retribuição teria
tamento da vítima encontra algumas manifestações isoladas, especialmente por objetivo a compensação da vítima de acordo com parâmetros de propor-
orientadas pela avaliação da devida precaução na tomada de decisão arriscada, cionalidade, estendendo-se também a um melhor posicionamento da vítima
como no célebre “ask why, asshole!” do caso Enron333. no sistema de justiça criminal e nos processos decisórios. A postura radical
insere-se nas práticas de mediação do conflito com a comunidade e supor-
329. VIANO, Emilio. “Victimology today: major issues in research and public policy”. VIANO, Emilio te à vítima e reparação devem superar as formas tradicionais do Estado335.
(org) From crime and its victims: international research and public policies issues. Bristol: Hemisphe-
re,1989, p. 3-14. Em crítica a Van Dijk, Nagel, figura igualmente proeminente na tradição
330. “(…) to find something to be the cause of something else is not necessarily to blame that thing. (…)
Causal responsibility is quite different from moral responsibility”, McSHANE, Marilyn et al. American
Victimology... cit., p. 218. 334. “There have been complaints about what is said to be a growing and unattractive culture of victimisation in
331. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 228. which more and more people abjure responsibility for their own actions or refuse to accept that events may
332. “(…) people do not have to be hurt to be harmed, nor do they have to know their rights to have them be beyond human control”, SYKES, Charles. A nation of victims. New York: St. Martin´s Griffin, 1992.
violated”, McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 229. 335. VAN DIJK, J. “Ideological trends with the victims movement: an international perspective”. MAGUI-
333. McLEAN, Bethany; ELKIND, Peter. The smartest guy in the room: the amazing rise and scandalous RE, Mike; POINTING, John. Victims of crime: a new deal? Philadelphia: Open University Press, 1988,
fall of Enron. London: Penguin, 2003, p. 313. p. 115-126.
114 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 4 – Fundamentos da pesquisa vitimológica 115

vitimológica, pontua que as distintas expressões ideológicas manifestadas teóricas e institucionais dedicadas à problemática da vítima, impulsionando
ora prescindem do Estado, ora dão ênfase na comunidade, o que pode ir de a vitimologia a adotar uma agenda científica propositiva e qualitativamente
encontro a um modelo integrado de sistema de justiça criminal orientado à diversa daquela que mobilizava os estudos característicos de sua fase inicial.
vítima336. A verdade é que há muitas recomendações e critérios, mas o mais O desenvolvimento da autocompreensão da vitimologia envolveu iniciativas
importante seria pensar em práticas de efetiva inclusão da vítima, com cui- integradas, como a coleta de dados, formulação de novas teorias, criação de
dado e respeito por parte dos profissionais do sistema de justiça. Na maioria programas, além da instituição de mecanismos processuais, com o propósito de
das vezes, a verdadeira natureza (true nature) da vitimização é simplesmente ajudar vítimas a se recuperar do trauma decorrente da vitimização339. Este mo-
ignorada pela decisão criminal. A orientação normativa poderia até prescindir vimento de reconfiguração científica foi impulsionado por avanços legislativos
de epistemologismos ou ideações político-ideológicas, desde que se possa internos aos países e em âmbito transnacional. Paul Rock discute a importância
verificar em suas práticas humanização, proteção da privacidade e intimidade das convenções internacionais na articulação de leis e interpretações com os
da vítima, melhoria das condições de informação, com amplo conhecimento parâmetros internacionais de direitos humanos. De fato, observa-se um incre-
dos direitos das vítimas e suas obrigações, possibilidades de compensação mento das práticas vitimológicas, com o reconhecimento substancial da vítima.
e detalhamento sobre os serviços a serem prestados pelas vítimas, melhor Apesar disso, a linha Maginot entre ofensor, vítima e redes de proteção estatal
coordenação entre as várias esferas de proteção da vítima (federal, estadual, ainda segue bastante significativa. Os processos legislativos permanecem como
municipal e comunitária) e, como falta na maioria dos casos, informação mero referencial simbólico, desacompanhados de eficácia concreta em sua im-
sobre o andamento e resultado do caso337. plementação340. Pior do que isso, o tratamento – ou a satisfação – que o sistema
Segundo esta reorientação normativa, sobretudo nas três últimas dé- de justiça criminal dedica à vítima não é utilizado como critério para avaliação
cadas, surgem novas articulações de movimentos de proteção da vítima, que de sua funcionalidade. Mais precisamente desde 1985, com a Declaração dos
buscam redefinir o lugar da vítima nas ciências criminais. Resgataram-se Princípios de Justiça Básicos da Vítima de Crimes e Abuso de Poder da ONU
estudos sobre a proteção da personalidade da vítima e estratégias de efetivação (Declaration of Basic Principles of Justice for Victims of Crime and Abuse of Power)
dos direitos das vítimas envolvidas em contexto criminoso. David Garland já se queixa sobre a falta de conhecimento da dimensão do dano à vítima e
dá a esta mobilização o nome de “movimentos de proteção da vítima”, mo- como esta informação é ou não recepcionada no comportamento decisório do
tivados pela percepção de uma “nova vitimização coletiva”338. juiz, da mesma forma em que se queixa que os órgãos prosecutores raramente
são avaliados sobre sua postura em relação à vítima341.
A necessidade de proteção incide mais precisamente sobre a percepção
da vítima como sujeito que requer novos arranjos institucionais e sociais para A complexidade do problema do reconhecimento da vítima já estava ins-
encontrar formas de realização da personalidade vulnerada por comporta- crita como preocupação nos clássicos do pensamento criminológico. “Justiça,
mento desviante. Entra em questão a avaliação empírica das necessidades moralidade, poder político”, assim já Richard Quinney, “estão entrelaçados em
concretas de proteção da personalidade a partir de novas mediações que qualquer análise sobre a vítima”. Embora alguns direitos não passem de sua
tragam processos de socialização mais afeitos ao sofrimento da vítima. formalização no campo jurídico, pode haver combinação com outras redes de
proteção e estratégias de controle social informal que possam tocar mais de
Especialmente a partir da década de 80, houve redefinição das redes perto a personalidade da vítima, no campo de suas demandas emocionais e
336. NAGEL, W. “The notion of victimology in criminology”. Excerta Criminologica, 3/1963, p. 245-247;
FATTAH, Ezzat. “Prologue: on some visible and hidden dangers of the victims movement”, FATTAH, 339. Consolidaram-se teoricamente quatro níveis para a compreensão do processo de vitimização: primária
Ezzat. From Crime Policy to Victim Policy. Basingskote, Palgrave, 1986, p. 05. (experiência individual); secundária (vítima e instâncias de controle formal/Estado); terciária (vítima
337. KILPATRICK, Dean et al. “The rights of a crime victim: does legal protection make a difference?”. e instâncias informais de controle/grupos sociais/comunidade); e, mais recentemente e com menor re-
National Institute of Justice, 1998, p. 1-12; BRIENEN, Marion et al. “Evaluation and meta-evaluation cepção na literatura especializada, quaternária (percepção subjetiva da vítima que a deixa vulnerável à
of the effectiveness of victim-oriented legal reform in Europe”. Criminologie, 33/2000, p. 121-144. sensação de possibilidade de vitimização).
338. Garland, em verdade, não era de todo adversário da incapacitação seletiva, desde que a atenção a de- 340. ROCK, Paul. Constructing victim´s rights: the home office, new labour and victims. Oxford: Oxford
terminados atores e agências estivesse acompanhada da crítica ao processo de ‘seleção’ que valida a Press, 2004, p. 217 e ss.
escolha do alvo da incapacitação, GARLAND, David. The culture of control. Chicago: Chicago Press, 341. HAGAN, John. “Victims before the law: a study of victim involvement in the criminal justice process”.
2001, p. 104-144. Journal of Criminal Law and Criminology, 73/1982, p. 317-330.
116 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 4 – Fundamentos da pesquisa vitimológica 117

dramáticas. Quinney capta, com sensibilidade, que o mais comovente é o fato 4.2.3. MENSURANDO A VITIMIZAÇÃO: A AVALIAÇÃO DE
de que os mais desamparados e inocentes são aqueles injusta e sistematicamente RISCO VITIMOLÓGICO
lesionados, que as vítimas são negligenciadas pela sociedade, em situação de
Além da oscilação entre blaming the victim e orientação normativa pela
abandono e desamparo342. A reposição da vítima no epicentro das ciências
proteção da vítima, a mensuração da vitimização estimula a avaliação de impac-
criminais não prescinde da revisão dos procedimentos a partir dos quais opera
to à vítima (victim impact assessment) e as pesquisas de vitimização (victimization
o sistema de justiça criminal. A reorientação normativa em torno do direcio-
survey). Na vitimologia clássica, esta discussão remonta às investigações de pro-
namento de necessidades concretas das vítimas cedeu um importante espaço
pensão à vitimização (victim proneness) e determinação das estruturas unitárias
estratégico para implementação de direitos mais específicos àqueles esquecidos
expostas a risco organizadas por Albert Reiss e Richard Sparks347, até formas
ou negligenciados pelo sistema de justiça criminal343.
mais recentes e sofisticadas de análises de custos e benefícios.
Por força dos movimentos de proteção da vítima, houve melhorias
Apesar de que estas pesquisas foram responsáveis pela criação de indi-
significativas no nível de exposição pública e profissionalismo das redes de
cadores do crime e do sistema de justiça criminal que tomassem um pouco
suporte344. No entanto, há muito a ser aperfeiçoado, resolvendo as situações
mais a sério o lugar da vítima348, os entraves se acumulam349. Em regra,
de inchaço de formalizações abstratas, promessas de mais direitos e lutas
sequer mensuramos a participação da vítima no processo, não concebemos
simbólicas, instrumentos jurídicos sem efetividade e o impasse sobre os di-
os problemas de juridificação, não há sequer métrica que defina quem é a
reitos do ofensor, na medida em que falta clareza sobre o alcance das medidas
vítima do crime. Níveis básicos de desconhecimento e negligência em rela-
de inclusão dos interesses da vítima na esfera de proteção de liberdades do
ção à vítima que levam a questionamentos sobre a legitimação do sistema
próprio ofensor345. As dificuldades de proteção das vítimas envolvidas em
escândalos corporativos são enormes, e o vazio em termos de estratégias de with a frisson of envy and resentment that requires, for its emotional ‘kick’, the fall from grace of those
who are caught by shifts in regulatory attitude and competence and who, bemused, find themselves before
controle social e regulação ainda maior. A mobilização social anti-crime do the criminal courts for actions that they may have known to be illegal, but over which they never expected
colarinho branco e as redes de proteção às vítimas corporativa ainda não to face criminal charges”, LEVI, Michael. “White-collar crime victimization”. SCHLEGEL, Kip; WEIS-
BURD, David (org). White-collar crime reconsidered. Boston: Northeastern, 1992, p. 190.
encontraram vazão concreta na sociedade, “o movimento de vítima dedicou 347. Analisando a influência de Sparks e Reiss para a compreensão do crimes de colarinho branco: “Ri-
chard Sparks’s research on victimization highlights the importance of the victim’s own role in the
pouca atenção aos aspectos sociais e distributivos das políticas de alocação offense. It may be argued that the relationship between offenders and victims plays an even larger
role in white-collar offenses. While the white-collar crimes receiving the most publicity tend to be
de recursos”346 e priorização das estratégias de política criminal. those where the victim is painted as completely powerless and/or ignorant of the offense or its risk,
a certain amount of white-collar crime is put into play by virtue of the victim’s interest in deriving
some gain. Bogus investment firms that solicit participation by offering an unusually high return
342. “(…) their helplessness is reinforced because it is not perceived or recognized, and they have to face on investments require individuals who are at least willing to circle the bait. While many victims
the consequences of their suffering alone”) and formal victimology (concerns of professional crimino- may not recognize the potential for injury, many others enter cognizant, albeit perhaps wary, of the
logists, lawyers, police, and other professionals within the criminal justice system”). (…) it would be questionability of the practice. To this extent, Vaughan’s discussion of offending as a dimension of
almost impossible to estimate the degree of harm that has been suffered for purposes of compensation risk management applies equally well to victims. This general point holds true within organizatio-
or punishing offenders if there were no restrictions on the concept of victim in law. (…) our conceptions nal settings as well, whether the victimization takes place against other organizations, or withing
of victims and victimization are optimal, discretionarey, and by no means innately given (...) such con- the organization by individuals. To the extent that such factors as management autonomy and/or
ceptions affect the ways in which we all live our lives”, QUINNEY, Richard. Who is the victim… cit., decentralization are related to proneness to victimization, such proneness can readily be unders-
p. 315 e ss. tood as a factor in risk management, to be weighed to particular positions within organizations or
343. BOHM, Robert. A concise introduction to criminal justice. New York: McGraw Hill, 2008, p. 220. between individuals in business activities. Finally, such an understanding requires the important
344. DUFF, Peter. “The ´victim movement’ and legal reform”. MAGUIRE, Mike; POINTING, John. Victims temporal dimension as well. The study of white-collar crime thus lends itself to research on the
of crime: a new deal? Philadelphia: Open University Press, 1988, p. 147-156. victimization ‘career’. Reiss has pointed out the complexity of white-collar victimization as it re-
345. Mireille Delmas Marty discute o dilema da inclusão dos direitos da vítima no âmbito do “paradoxo da lates to organizational actors. Understanding such victimization becomes complicated when it may
proteção penal dos direitos humanos”, GROENHUIJSEN, Marc. “Conflicts of victims´ interests and involve organizations against individuals, organizations against other organizations, individuals
offenders´ rights in the criminal justice system: an European perspective”. SUMNER, Chris et al (org) outside the organization against the organization, or individuals within the organization against the
International victimology. Canberra: Australian Institute of Criminology, 1994, pp. 163-176; AMA- organization. Furthermore, the variety of organizational forms involved in victimization (for-pro-
RAL, Claudio do Prado. “Vitimização no cárcere”. SAAD-DINIZ, Eduardo (org) O lugar da vítima nas fit, nonprofit, governmental, trusts, pension funds, and so on) and the relational nature between
ciências criminais. São Paulo: LiberArs, 2016, p. 26-45. victim and offender affect the quality of, and the organizational response to the victimization”,
346. “(…) some of the major gaps in knowledge still to be filled and the more intractable conceptual and me- SCHLEGEL, Kip; WEISBURD, David. “White-collar crime: the parallax view”. SCHLEGEL,
thodlogical difficulties that are inherent to this area of criminological research. I close by drawing attention Kip; WEISBURD, David. White-collar crime reconsidered. Boston: Northeastern, 1992, p. 12-13.
to a paradox. Most moral panics about crime develop through exploiting the image of hurt victims who 348. FIENBERG, Stephen; REISS, Albert. Indicators of crime and criminal justice: quantitative studies. US
can readily be drawn from cultural definitions of ‘the vulnerable’, combined with either explicit or implicit Department of Justice, 1980, 124 p.
conceptions of the psychopathic, heartless offender. Yet in much financial white-collar crime – as opposed 349. SCHNEIDER, Anne. “Methodological problems in victim surveys and their implications for research in
to safety violations in the workplace or environment – images of evil are hard to generate and we are left victimology”. Journal of Criminal Law and Criminology. 72/1981, p. 818 e s.
118 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 4 – Fundamentos da pesquisa vitimológica 119

de justiça criminal. explicativo em termos de especificação da variedade de vítimas, necessidades,


Nem sempre a pesquisa sobre a sensação de ser vitimizado (experiência opiniões e tratamento, possibilitando melhor compreensão sobre as formas
subjetiva de vitimização) coincide com as definições jurídicas da vitimi- e efetividade de interação entre o sistema de justiça criminal e a Justiça res-
zação350. A avaliação de risco vitimológico pode consistir em promissora taurativa na proteção da personalidade da vítima353.
estratégia de pesquisa para a vitimologia – e, por conseguinte, para a vi- A avaliação dos processos de vitimização deve levar em consideração
timologia corporativa – . De todo modo padece da mesma desorientação diferentes culturas, classes sociais e contextos urbanos. The Hamilton Project,
normativa das pesquisas de vitimização. A noção de avaliação de risco vi- por exemplo, dedica-se a recomendações de políticas públicas e análises eco-
timológico apenas recebeu tratamento mais específico como estratégia de nômicas baseadas em evidências científicas (evidence-based), e demonstrou
mensuração da vitimização, baseada em avaliação do crime, cena do crime, que os índices de vitimização são significativamente mais altos entre indi-
análise da vítima, confronto com estatísticas policiais e médicas, análise de víduos vivendo em vizinhanças menos privilegiadas. As evidências colhidas
perfil e questões abertas ao caso. pelo projeto demonstram que este é um dos principais desafios das famílias
Em tese, a avaliação de risco vitimológica deveria ocupar certo prota- mais vulneradas nos EUA, determinando não apenas os custos econômicos
gonismo nas experiências de Justiça restaurativa. Críticas demonstram que e sociais do crime, mas também os elevados níveis de depressão, violência e
também segue como campo inexplorado, não apenas por falta de dados agressão que lhe são impostos. Os processos de vitimização, em verdade, são
empíricos, mas pela própria capacitação dos envolvidos, na maior parte das cíclicos e replicados entre as gerações: “As famílias mais pobres dos EUA não
vezes limitados ao formalismo jurídico. Questões mais complexas sobre as apenas se deparam com maiores riscos da criminalidade, mas também com a
causas da vitimização, aspectos identitários, as dimensões sociais e desenvol- maior propensão de que seus membros sejam encarcerados”354.
vimento da personalidade da vítima estão longe de merecerem tratamento 353. “Allowing for personality and individual differences may also impact the research question in compa-
mais adequado, o que afeta tanto a capacidade de articulação de soluções de risons between criminal justice and restorative justice. In Strang and Sherman's research the question
is which system or paradigm outperforms the other. Introducing individual differences effects this, as it
reflexão, perdão e apologias (rumination, forgiveness and apologies)351 como a could be that it is more relevant to ascertain what the best fitting option is, depending on the characteris-
tics of the victim, the offender, and the crime committed. Instead of asking ourselves if restorative justi-
própria legitimidade da Justiça restaurativa. ce should be preferred to criminal justice, we could ask ourselves under what circumstances restorative
justice is better suited and under what circumstances criminal justice or some combination of the two. A
Sob decisiva influência dos estudos de Heather Strang and Lawrence variant of this is the question what features of restorative justice are most effective for which situation”,
PEMBERTON, Antony et al. “Evaluating victims experiences in restorative justice”. British Journal of
Sherman sobre as necessidades das vítimas (processos mais informalizados, Community Justice. 6/2008, p. 103; cada um destes campos específicos recebeu avaliação posterior em
STRANG, Heather et al. “Victim evaluations of face-to-face restorative justice conferences: a quasi-ex-
mais informação sobre os procedimentos e resultados dos casos, tratamento perimental analysis”. Journal of Social Issues, 62/2006, p. 281-306.
justo e respeitoso, participação mais efetiva, além de restauração material e 354. “Across all types of personal crimes, victimization rates are significantly higher for individuals living
in low-income households, as shown in figure 2. In 2008, the latest year for which data are availab-
emocional, incluindo as apologias) e seu impacto na melhoria substancial le, the victimization rate for all personal crimes among individuals with family incomes of less than
$15,000 was over three times the rate of those with family incomes of $75,000 or more (DOJ 2010a).
do sistema de justiça criminal352, vitimólogos tem buscado aperfeiçoar a The most prevalent crime for low-income victims was assault, followed closely by acts of attempted
violence, at 33 victims and 28 victims per 1,000 residents, respectively. For those in the higher-income
avaliação das pesquisas vitimológicas. Elas tem adquirido melhor potencial bracket, these rates were significantly lower at only 11 victims and 9 victims per 1,000 residents, res-
pectively. Because crime tends to concentrate in disadvantaged areas, low-income individuals living in
these communities are even more likely to be victims. Notably, evidence from the Moving to Opportu-
350. “Despite the proliferation of victimization surveys and their unquestionable utility, it is not yet cle- nity program—a multiyear federal research demonstration project that combined rental assistance with
ar what exactly they do measure and what are their long-term objectives. Victimization is a personal housing counseling to help families with very low incomes move from areas with a high concentration
subjective and relative experience. The feeling of being victimized does not always coincide with the of poverty—suggests that moving into a less-poor neighborhood significantly reduces child criminal
legal definition of victimization. So what exactly are victimization surveys trying to measure? It is far victimization rates. In particular, children of families that moved as a result of receiving both a housing
from clear whether their objective is to measure those criminal victimizations that meet the criteria set voucher to move to a new location and counseling assistance experienced personal crime victimization
by the criminal code, or whether they are meant to measure the subjective victimizations experienced rates that were 13 percentage points lower than those who did not receive any voucher or assistance
by the respondents. These, needless to say, are two different realities”, FATTAH, Ezzat. “Victimology (Katz, Kling, and Liebman 2000). Victims of personal crimes face both tangible costs, including me-
today: recent theoretical and applied developments”. IITSUKA, H. et al (org) Resource material series dical costs, lost earnings, and costs related to victim assistance programs, and intangible costs, such as
n. 56. Tokyo: United Nations Asia and Far East Institute for the Prevention of Crime and Treatment of pain, suffering, and lost quality of life (Miller, Cohen, and Wiersama 1996). There are also public health
Offenders, 2000, p. 63. consequences to crime victimization. Since homicide rates are so high for young African American
351. PEMBERTON, Antony et al. “Taking victims seriously in restorative justice” International Perspecti- men, men in this demographic group lose more years of life before age sixtyfive to homicide than they
ves in Victimology, 3/2007, p. 7 e ss. do to heart disease, which is the nation’s overall leading killer (Heller et al. 2013)”, KEARNEY, Melissa
352. STRANG, Heather; SHERMAN, Lawrence. Repair or revenge: victims and restorative justice. Oxford: et al. “The unequal burden of crime and incarceration on America´s poor”. The Hamilton Project, dis-
Oxford Press, 2002, p. ponível em http://www.hamiltonproject.org/.
120 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 4 – Fundamentos da pesquisa vitimológica 121

Mesmo assim, os modelos de avaliação de impacto da vítima e as pes- Apesar dos avanços recentes nas pesquisas de vitimização, teóricos da
quisas de vitimização simplesmente fracassam na exposição da vitimização desorganização social ainda expõem de forma muito tímida os custos morais
corporativa. De forma bastante inteligente, Nikos Passas tem discutido e sociais dos processos de securitização urbana e criação de centros seguros
a necessidade de revisão científica do potencial criminógeno das assime- de reprodução do capital financeiro, as críticas de crimigração raramente
trias econômicas, políticas, jurídicas e culturais, assim como a produção identificam o papel das empresas nos novos movimentos migratórios que, em
de novas assimetrias ou fragilização das estratégias de controle social. A verdade, estão no torvelinho do legado da própria humanidade. A construção
complexidade da sociedade econômica e o protagonismo das corporações científica da vitimologia corporativa demanda modelos explanatórios mais
tem sido de fato negligenciado pelas ciências sociais. As corporações estão substanciais do que as pesquisas tradicionais sobre local, padrões de comuni-
inscritas no cerne dos fluxos migratórios, explosão demográfica, vitimiza- cações ou a determinação genérica do conceito de propensão à vitimização.
ção criminal e exploração de contingentes vulneráveis da população, sem Para mensurar a vitimização357, o caminho preferencial talvez seja a lógica
falar no recrutamento em organizações criminosas e associações funda- de múltiplas correlações, por meio da organização de pesquisas empíricas vol-
mentalistas. Assim como Passas vem concebendo a “anomia global” (global tadas a cruzamento de dados, obtenção de correlações significativas e critérios
anomie), “os padrões normativos e os mecanismos são frágeis ou comple- claros de análise. O processo de mensuração deve ter fundamento preciso,
tamente ausentes, precisamente aí onde são mais necessários”355. Passas referenciado em parte em evidências empíricas, em parte na explanação teórica
segue a interpretação funcional clássica para determinar o que seria o “risco extraída das evidências, além de ser complementada por dados comportamen-
criminógeno” (criminogenic risk), entendido como resultado da perda de
tais e, no caso do ambiente corporativo, em categorias próprias da dinâmica
controle sobre as metas desejadas (desired goals), percepção e satisfação
das organizações que possam indicar impacto e mudança de comportamen-
das necessidades humanas, combinando valores individualistas altamente
to. Quem é a vítima, quem vitimiza e como são os processos de vitimização
competitivos e a disjunção entre meios e fins356.
poderia ser mensurado a partir de pesquisas sistemáticas mais consistentes.
Nesta mesma linha, o potencial explicativo dos fatores criminógenos O desenvolvimento de uma vitimologia corporativa incidirá precisamente na
também teria muito a dizer sobre os processos de vitimização, igualmente elaboração de termos auto-descritivos, categorias e critérios mais coerentes em
interpretadas como um processo de construção de interações sociais e promo- relação às práticas corporativas socialmente danosas. Do ponto de vista quan-
ção das necessidades humanas. O ideal seria que os processos de avaliação de titativo, as múltiplas escalas de vitimização poderiam atender aos diferentes
impacto de vitimização pudessem orientar a organização de bases de dados níveis de vitimização, desde que orientados a uma mesma dimensão básica
sobre os efeitos criminógenos da globalização, potencial negativo das tensões sobre vítima e vitimização. Em termos qualitativos, os desafios de se mensurar
sistêmicas e anomia global, impacto das assimetrias de poder, mensuração do a vitimização seguem sendo a determinação das escalas de valor pessoal – como
extraordinário impacto do comportamento corporativo socialmente danoso, a vítima poderia avaliar a própria vitimização? – e os aspectos emocionais
domínio das estruturas de oportunidades para o ilícito nas organizações em- (propriedades implícitas da vitimização, não observáveis diretamente, percep-
presariais, formas específicas de redução da probabilidade de danos futuros, ções), o que, definitivamente, depende de muita maturidade científica para
responsabilidade social corporativa, regulação e risco. estabelecer as técnicas que a mensuração deveria assumir.
355. Assumindo uma forma genérica de “organização criminosa transnacional” (como forma de superar a A pesquisa científica neste campo ganha ainda mais complexidade
oposição entre “organização criminosa estereotípica” e “estruturas organizacionais sérias”) lesiva à so-
ciedade, Passas se posiciona pela necessidade de intervenção: “Globalized form of the stereotypical quando pensamos em hipóteses nas quais a própria empresa pode ser a vítima.
‘organized crime’… refers to cross-border misconduct that entails avoidable and unnecessary harm
to society, is serious enough to warrant state intervention”. PASSAS, Nikos. Transnational financial A coordenação dos resultados é ainda mais delicada, demandando ainda mais
crime. London: Routledge, 2013, p. 17.
356. “Regardless of their social background and the social capital available to them, people are urged to 357. As métricas na criminologia, especialmente em relação às estruturas da personalidade, devem muito à
desire more than they have. As this cultural theme is internalized, competitive forces and consumerism psicologia científica e às investigações de Hans Eysenck (EYSENCK, Hans. The structure and measure-
foster normative referents on what is ‘normal’ and appropriate”, PASSAS, Nikos. “Global anomie, dys- ment of intelligence. New York: Springer, 1979) e Raymond Cattell (CATTELL, Raymond. The scientific
nomie, and economic crime: hidden consequences of neoliberalism and globalization in Russia and use of factor analysis in behavioral and life sciences. New York: Plenum, 1978). Particularmente, neste
around the world”. AGNEW, Robert; KAUFMAN, Joanne (org). Anomie, strain and subcultural theo- trabalho a tese de William Laufer tornou-se referência bastante estimulante para se pensar em estratégias
ries of crime. London: Routledge, 2010, p. 316-324. de comportamento prossocial, LAUFER, William. The development of a measure… cit., p. 88.
122 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 4 – Fundamentos da pesquisa vitimológica 123

consistente descrição das circunstâncias (identificação dos eventos possíveis especificidade, levando-se em consideração que a própria qualificação de vítima
capazes de ocorrer em dada situação) em que se dão os processos de vitimiza- já pressupõe uma prévia diferenciação entre inocente e culpado, o que não
ção e o raciocínio intuitivo sobre as relações possíveis com base em evidências apenas pode parecer injusto como também inviabilizar a compreensão de
colhidas do comportamento corporativo socialmente danoso. Novos contornos contextos em que esta relação é dinâmica e os papeis entre vítima e ofensor
da pesquisa científica em vitimologia, estendendo os horizontes da imaginação se invertem.
moral, poderiam delimitar novas métricas sobre a utilidade esperada pelas A maior parte dos estudos encontrados sobre a matéria dedica-se à
práticas corporativas no sentido de um comportamento organizacional pros- elaboração de modelos explanatórios não fundamentados em evidências em-
social e orientado à geração de valor para os stakeholders. Tomando por base a píricas. A apreensão dos conceitos de vítima e vitimização, além da própria
vitimologia corporativa, seria necessário acessar as propriedades que definem invisibilidade e indiferença moralmente justificadas pela sociedade, depende
as corporações e construir – intuitivamente – suas relações com os processos em grande medida da disposição da própria vítima em testemunhar. Isso
de vitimização e desvitimização, seguido de sucessivos testes e experimentos afeta sensivelmente a estabilidade das medidas de controle social, gerando
sobre o que funciona ou indicadores que demonstrem por que os processos de um ciclo vicioso que se agrava com a alienação da vítima perante o sistema
vitimização foram interrompidos (integração a uma associação, experiências de de justiça criminal, afetando os fundamentos de sua própria legitimação. A
desemprego, ou mesmo fusões e aquisições e abertura de capital que possam recuperação da figura da vítima nas ciências criminais, alinhando de forma
influenciar o comportamento). mais inteligente e menos desumana os mecanismos de controle social, está
A reorientação do sistema de justiça criminal baseada em evidências ainda bastante distante de conhecer as causas da vitimização, e medidas
científicas sobre comportamento corporativo socialmente danoso e os pro- mais realistas de proteção da subjetividade da vítima e a redução dos dramas
cessos de vitimização teria por consequência necessária maior consistência humanos despertados por cada um dos contextos criminosos.
no manejo dos mecanismos sancionatórios de controle social formal e na Para além do plano conceitual, as disputas e as preferências em torno
estruturação de estratégias de controle social informal. É o que permitirá ela- do conceito de vítima remontam aos estudos desenvolvidos ainda no campo
borar as respostas mais efetivas às demandas da vítima, fundamentar a ideia da sociologia. Nas formulações originais que antecederam à unidade discipli-
de merecimento da pena com maior precisão científica e, por conseguinte, nar da vitimologia, já se discutiam as determinantes históricas do conceito,
encontrar a legitimação do sistema de justiça criminal. levando a conflitos entre as próprias vítimas, variando as prioridades sobre
4.3. CONCEITOS E TIPOLOGIAS: VÍTIMA E VITIMIZAÇÃO “quem é a vítima” em função do próprio contexto – uma vítima protegida
hoje, pode não o ser amanhã. Conceitualmente, isso se explica na medida em
Genericamente, a manualística convencionou que vitimologia consiste
que os vitimólogos tem clara a noção de que “o conhecimento é socialmente
no estudo empírico e fático da vítima do delito, devendo ser integrada ao pro-
criado, aceito e modificado; como e por que determinados pontos de vista
blema do crime358. Desde as noções mais tradicionais de análise de hipóteses
são legitimados e outros abandonados; e como e por que distintos públicos
em que alguém tenha sido lesionado sem a própria culpa359, a vitimologia
são suscetíveis a determinadas interpretações do mundo social, ao passo que
expandiu seu campo de atuação para o estudo da personalidade e do contex-
definições alternativas são evitadas”. Na verdade, a construção social de sen-
to da vítima, permitindo o desenvolvimento e o progresso no conhecimento
tido da vitimologia acompanha a mesma trajetória intelectual das ciências
das causas do sofrimento humano, e é socialmente relevante para a preven-
sociais360. A criação social do conhecimento é constante submetida ao crivo
ção ou alívio do sofrimento. Posteriormente, a questão foi ganhando maior
dos pares e às modificações conforme as diferenciações da própria sociedade,
358. Historicamente, remonta à “Magna Carta for Victims”, International Standards for Victims´ Rigths. que legitima ou retira a legitimidade de determinadas posições, colhe novas
“The most historic and significant step to remedy the suffering of victims” and “a long overdue act
in the name of humanity”, Minoru Shikita, Chief of the CJCPB of the United Nations, to describe the evidências para abandonar determinados dogmas, ou ainda incorpora ou
Justice and Assistance for Victims that was drafted at the Interregional Prepatorty Meeting of Experts
on Victims of Crime, Ottawa, July 1984. 360. WINCH, Peter. The idea of a social science and its relation to philosophy. Routledge: London, 1958, p.
359. Veja-se, p. ex., McDONALD, William. Criminal Justice and the victim. London: Sage, 1976, 288 p. 62 e ss.
124 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 4 – Fundamentos da pesquisa vitimológica 125

se debate contra as preferências políticas e ideológicas postas nas relações sobre segurança, preservação da ordem pública, medo do crime e da viti-
sociais e suas assimetrias de poder. Os caminhos desta maturação teórica mização. Rock analisa que o estudo das vítimas pelos interacionistas não
no âmbito da vitimologia são bem explicitados por Jacqueline Scherer, que derivou de preocupação mais legítima sobre o sofrimento, esteve limitada
soma à formação da interpretação sociológica as determinantes históricas meramente a identificar sua ausência no discurso365. Até então, “as vítimas
– vítima de um período pode simplesmente ser negligenciada em outro – , raramente se faziam visíveis, na maior parte das vezes interpretadas como
as quantificações psicológicas no âmbito do desenvolvimento e vulneração artefatos retóricos de interesse seja por conta de uma esperada neutralização
da personalidade, o dano e o sofrimento. A esse conjunto multidisciplinar, ou mutilação (annihilation) no sistema de comportamentos desviantes, seja
Scherer dá o nome de processo de “construção social da sensibilidade, o por serem sujeitos distorcidos do folies à foule”366. Apenas posteriormente, em
componente que falta na operação dos sistemas”361. coincidência com o inchaço das estatísticas criminais e o declínio dos níveis
A esta sensibilidade se soma o problema do reconhecimento e as de detecção do crime, é que a preocupação com a vítima ganha novos con-
dificuldades inerentes a todo processo de juridificação dos conflitos, que tornos de reconhecimento, suporte e restauração, alcançando um horizonte
alienam os conflitos vitimais e deslegitimam questionamentos sobre justi- mais amplo de “comunidade e cooperação multi-agências, a partir das quais
ça, moralidade, poder político e emoções362. Insensibilidade e ausência de as vítimas foram integradas às medidas de controle social informal do arsenal
reconhecimento representam, em verdade, o principal entrave da avaliação de um Estado não mais tão confiante na ‘luta contra o crime’”367.
vitimológica, produzindo sistematicamente “inocentes e desamparados in- Lola Aniyar de Castro organiza de forma bastante simples os elemen-
justamente lesados”363. A propositura da vitimologia corporativa fundada tos da vitimologia em torno de ideias não muito distintas: 1) personalidade
na revisão crítica dos conceitos tradicionais da vitimologia, passa por esta da vítima; 2) “potencial de receptividade vitimal”, a partir da interpretação
reconstrução das expectativas, normas sociais, liberdades pessoais e con- das interações sociais entre vítima e ofensor; 3) estudo da vitimização sem
trole. Esta revisão, ainda na linha de argumentação de Scherer, poderia intervenção de ofensor (p. ex., no suicídio); 4) propensão à vitimização; 5)
também alcançar das dimensões mensuráveis do dano, o que reforçaria estudo do tratamento curativo e modalidades de prevenção368. O conceito
o aspecto de formação da consciência sobre as injustiças e os desarranjos de vitimização foi explorado com mais profundidade em J. Bayley, soman-
institucionais envolvidos nos processos de vitimização364. do a perspectiva da vítima putativa (putative victim). Atribui-se em Bayley
Paul Rock, em boa síntese, analisa a evolução do pensamento vitimoló- a qualificação de vítima às pessoas que 1) sofreram uma perda ou afetação
gico em função do contexto de certa forma negligenciado pelos criminólogos significativa, injusta ou indesejável em seu bem-estar, e de tal forma desam-
parados para prevenir esta perda; 2) perda sem causa definida; 3) desamparo
361. SCHERER, Jacqueline. “An overview of victimology”. In: SCHERER, Jacqueline; SHEPHERD, Gary causado pelo contexto jurídico ou moral369. As vítimas putativas distinguem-
(org) Victimization of the weak: contemporary social reactions. Springfield: Charles Thomas, 1982, p. 9.
362. SHERMAN, Lawrence. “Reason for emotion: reinventing justice with theories, innovations, and rese- se das “vítimas de fato” pela necessidade extraordinária de justificar políticas
arch”. Criminology, 41/2003, p. 1-37.
363. A inconsistência conceitual produz uma cisão entre vitimologia informal e formal. Informal se refere às
públicas de proteção. Apesar de que a percepção de vitimização (victimhood)
vítimas não reconhecidas pela sociedade ““their helplessness is reinforced because it is not perceived e o merecimento de compaixão e remediação estejam postos, não é tão claro
or recognized, and they have to face the consequences of their suffering alone”; formal se refere àquela
realizada por criminólogos e profissionais do Sistema de justiça criminal, SCHERER, Jacqueline. An
overview… cit., p. 9 365. Os clássicos da vitimologia teriam se dedicado ao estudo da vítima apenas como “another rendezvous
364. “Societies have been ambivalent about victims who bring harm upon themselves. “(…) Sensitivity subject, and it was long occupied with the compiling of empirically-driven lists of item sharing the word
about victimization occurs when a society admits its own discrimination; “(…) There is a mounting ‘victim’ as a denominator”, ROCK, Paul. “On Becoming a Victim”. HOYLE, Carolyn et al (org) New
recognition that we are the victimizers in some cases, that the victim may serve functions within a visions of crime victims. Oxford: Hart Publishing, 2002, p. 2.
society that are beneficial or useful in some ways to others. Such a recognition has important political 366. P. Rock faz menção expressa ao conceito de “pânico moral” (moral panics) de Cohen, “ampliação do
consequences: it legitimizes the group claims for restitution and protection, it addresses the collective comportamento desviante” de Wilkin, ao catálogo de “leis criminais risíveis” de Sutherland e Cressey,
set of values held by society at large, and it stimulates conflict between those who have much to gain ao trabalho sobre serenidade de Gusfield, e a polêmica de Schur sobre a “criminologia dos crimes sem
and those seeking change. Societal recognition of its own complicity in creating victims is also a source vítima”, ROCK, Paul. On becoming… cit., p. 2.
of controversy because it collides with different ideological and personal views about the actual nature
of the victimizing relationship. One person’s benevolent and paternal attitude is another’s discrimina- 367. ROCK, Paul. On becoming… cit., p. 9.
tory and controlling posture. The task of identifying victims, and the subsequente commitment to assist 368. ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia... cit., p. 97.
them have become central political issues throughout the world during the past fifty years”, SCHERER, 369. BAYLEY, J. E. “The concept of victimhood”. SANK, Diane. To be a victim: encounters with crime and
Jacqueline. An overview… cit., p. 16-17. injustice. Plenum Press: Insight, 1991, p. 53.
126 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 4 – Fundamentos da pesquisa vitimológica 127

ao imaginário coletivo dar-se conta da vitimização em casos de desastres na- Nils Christie é o principal responsável pela crítica ao conceito de “vítima
turais, pobreza ou discriminação. A noção de vítima putativa é o ponto de ideal” (ideal victim). A vitimologia tradicional apenas cria um estereótipo
contato entre vitimologia e dogmática, porque determina a normatividade de vítima – uma idealização, portanto – , resultando que determinadas
e o âmbito de proteção das liberdades pessoais. pessoas são vistas ou como “vítimas merecedoras” (deserving victims), fa-
Paul Rock discutiu uma série de variáveis possíveis para a concepção cilmente consideradas vítimas, ou como “não-merecedoras” (undeserving
da vítima – voluntária/involuntária, direta/indireta, abrupta/gradual, com victims), que não adquirem o label de vítima. Segundo a interpretação
consequências/sem consequências – , as quais representariam uma identidade de Christie, a vítima ideal seria a pessoa ou categoria de indivíduos mais
(identity) transgredida e um transgressor, gerando um contexto passível de propensa a receber de forma legítima o status de vítima e carentes de pro-
racionalização e interpretação370. Esta interpretação, a sua vez, seria essencial teção – igualmente legítima373. A crítica de Christie segue a mesma linha
para definir os destinos da vítima e dos processos de vitimização. O conteúdo das determinantes concretas, pontuando concretamente “quem deve ser
da vitimização e das transgressões ou bem sequer é percebido pela opinião reconhecido como vítima”, “sob quais condições e circunstâncias”, “quem
pública, ou é reduzido às estatísticas criminais sem mais relevância para o detém o poder para diferenciar quem merece e quem não merece o status,
sistema de justiça criminal, ou ainda ganha sentido e reflete construção social a simpatia e o suporte públicos”, “como esta construção da vítima ideal
merecedora da simpatia e atenção pública, justificando a atuação dos meca- pode ser desafiada e refinada”. Com Nils Christie, as formulações abstra-
nismos de controle para a sanção e restauração371. tas sobre a vítima passam a ceder lugar a determinações concretas, do tipo
“quem recebe o status de vítima” e “por quê”, “quem é competente para
Jock Young debate as noções de vítima e igualdade (equal victim), que decidir a quem será dirigida a simpatia pública” e o “suporte estatal”374.
leva, ao final, à falsa percepção do impacto da pesquisa victimológica, baseado
em dois elementos principais de observação. Por primeiro, que a desigualdade Sandra Walklate, referência crítica em estudos vitimológicos, mantém
entre as vítimas reclama uma crítica realista para se alcançar as determinantes postura semelhante na precisão do conceito de vítima e dos processos de viti-
concretas dos desafios enfrentados por cada uma das vítimas. Depois, que é mização. A maior parte da vitimização da criminalidade de ruas acaba sendo
necessário reajustar os níveis de compreensão em relação às personalidades “intra-classe”, “intra-étnica” e “interpessoal”, o que torna ainda mais restrito
concretas envolvidas no processo de vitimização. Há pessoas que são vítimas o alcance de proteção da vítima. Ao fim e ao cabo, ela regressa para a mesma
de um crime e ofensoras em outros, ou vítimas de um problema social e que casa ou para a mesma comunidade, os efeitos da vitimização permanecem
tendem a sofrer com outros problemas sociais, e outras ainda que sofrem de circunscritos no contexto de suas interações sociais.
forma muito distinta a vitimização. Mesma vulnerabilidade da vítima deve Walklate também demonstra que ser vítima é algo a ser conquistado.
ser submetida a padrões de vulnerabilidade diferencial, não apenas frente à Inicia-se com o processo de reconhecimento da vitimização e condições de
percepção individual da vitimização, mas também em relação ao contexto vítima, segue com os protestos pelo label de vítima em termos políticos
que lhe dá suporte372. Isso sem falar nas limitações da maioria dos estudos e sociais, podendo abranger inclusive a busca pela identidade de vítima,
com respeito à inadequação básica da percepção da natureza da mulher e da até atingir às medidas e respostas mais ou menos adequadas. Tomando por
confiança em determinado modelo de comportamento feminino. bases estas reflexões, sugere dois focos de atenção: 1) processo de interação a
A compreensão do lugar da vítima nas ciências criminais, assim partir do qual uma parte resulta vitimizada (compreendendo o que de fato
como dos processos de vitimização, deve atender a sua dinâmica concre-
373. “(…) is, in my use of the term, a sort of public status of the same type and level of abstraction as that for
ta. Vítima é sempre vítima de alguém, por algo, e com consequências. example of a ‘hero’ or a ‘traitor’. It is difficult to count these ideal victims. Just as it is difficult to count
heroes. But they can be exemplified (…) the little old lady on the way home in the middle of the day
after having cared for her sick sister. If she is hit on the head by a big man who thereafter grabs her bag
370. ROCK, Paul. On becoming… cit., p. 13. and uses the money for liquor or drugs – in that case, we come, in my country, close to the ideal victim”,
371. ROCK, Paul. On becoming… cit., p. 13. CHRISTIE, Nils. “The ideal victim”. FATTAH, Ezzat. From crime policy to victim policy. London:
372. YOUNG, Jock. “Risk of crime and fear of crime: a realist critique of survey-based assumptions”. MA- Palgrave, 1986. p. 18-19.
GUIRE, Mike. Victims of crime: a new deal?. John Poiting, 1988, p. 164-176. 374. CHRISTIE, Nils. The ideal victim… cit., p. 19.
128 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 4 – Fundamentos da pesquisa vitimológica 129

ocorreu e como se chegou à aquisição do status de vítima)375; 2) avaliação da morte ou injúria física), o que pode alcançar inclusive tratamento cruel ou
distribuição paritária da vitimização. Ou seja, quando se constrói, a partir de opressor a outras pessoas ou sob qualquer circunstância, ou ainda à pessoa
processos de vitimização, a identidade de vítima, situada em regra de acordo que é lesada por meio do engano ou ardil378. Porém, se bem é certo que este
com idade, classe, sexo e etnia. Embora na prática ocorra o inverso: as pessoas argumento confere maior precisão à compreensão da vítima e dos proces-
normalmente vitimizadas são jovens e negros, confundindo-se usualmente sos de vitimização, a argumentação pelo harm principle pode justificar o
com o estereótipo do perpretador do crime. indesejável moralismo de reservar a legislação à proteção e enforcement da
Rainer Strobl, a seu modo, conceitua a “vítima atual” (actual victim) moralidade pública, independente da verificação das concretas condições de
como a pessoa que se considera a si mesma como vítima e também é consi- cumprimento de dever por parte do ofensor. Semelhante raciocínio apenas
derada como vítima pelos outros. A não-vítima (nonvictim) é a pessoa que desloca a vítima e o dano do centro da interpretação das ciências criminais.
não se considera vítima e tampouco é considerada vítima por terceiros rele- No âmbito empresarial, a construção do conceito de vítima e dos pro-
vantes. A vítima rejeitada (rejected victim) refere-se à pessoa que se considera cessos de vitimização é bem mais delicada. A desigualdade entre as vítimas
a si mesma como vítima e não é considerada por terceiros; a “vítima desig- reflete-se em tratamento diferenciado, variando conforme a capacidade de in-
nada” (designated victim) é a pessoa que não se considera como vítima, mas teração social de que dispõem, daí então seu aspecto diferencial. A corporação e
é considerada como vítima por terceiros. Strobl, no entanto, não concebe a o comportamento de agrupamento econômico produzem efeito muito similar,
noção de sobrevivente, nem dependente376, nem vulnerável, nem mesmo da porém forjando outras motivações, racionalidades, e mecanismos de alienação
dinâmica de vítima que podem chegar a ser ofensores e vice-versa. e legitimação. Na maioria dos casos, não se fala em invisibilidade, mas na
No que diz respeito aos crimes sem vítima, a apreensão dos conceitos ausência de vítima (absence as victims). Quando se fala em vítimas, o alcance
torna-se ainda mais delicada. No seminal Victimless crimes de Edwin Bedau e vem bem limitado à questão de auto-proteção e devida cautela nos negócios,
Hugo Schur, “os crimes sem vítima são criados nas hipóteses em que se pre- dificilmente se chega à ideia de uma empresa inocente e injustamente vitimi-
tende erradicar o desequilíbrio entre bens ou serviços altamente desejados e zada, ou de corporação que não mereça o ressentimento público, ou mesmo
as condições para se alcançá-los por força de lei. São considerados sem vítima de mobilização estratégica para regulação e restauração de comportamentos
porque “as pessoas envolvidas na troca (ilícita) de bens e serviços não se vêem corporativos que produzem danos massivos e de efeitos transgeracionais.
elas próprias como vítimas”377. Prostituição, aborto, uso de drogas, jogos de azar
seriam exemplos mais rotineiros, somados à corrupção, rixa, importunação ao 4.3.1. A CONSTRUÇÃO DE TIPOLOGIAS
pudor ou vadiagem não seriam mencionados com tanta frequência. A construção de tipologia sobre a vítima e os processos de vitimiza-
Mesmo assim, é possível questionar a noção de crime sem vítima a ção orienta a elaboração racional do novo campo de conhecimento e na
partir da própria conceituação de vítima. Se Bedau e Schur estiverem corre- compreensão dos limites de legitimação da atribuição de responsabilidade
tos, crime sem vítima é porque a vítima não percebe que é vitimizada. Joel orientada pela figura da vítima. As tipologias devem expressar a relação entre
Feinberg procura delimitar esta referência à “percepção da vitimização”, ar- vítima, o ofensor e a sociedade na determinação de seu sentido operacional.
ticulando critérios mais objetivos de compreensão do sofrimento a partir do O problema é que, se há indiscriminado reconhecimento dos pro-
dano. Dá-se o nome de vítima a quem sofre algum infortúnio (não apenas cedimentos de vitimização, perde-se especificidade e a própria capacidade
de formulação de políticas públicas ou iniciativas corporativas adequadas
375. “(…) the interactional processes associated with who acquires, and who fails to acquire victim status,
and the impact that these processes have on an individual´s identity is relatively under-explored”. WA-
LKLATE, Sandra. “Defining victims and victimisation”. DAVIES, Pamela; FRANCIS, Peter; GREER, 378. “Now that the senses of the word ‘victim’ have been clearly laid out on display, there is no point in
Chris. Victims, crime & society. 2. ed. Los Angeles: sage, 2017, p. 42. further discussion of the fruitless quibbles over whether certain crimes are ‘victimless’ or not, except in-
376. STROBL, Rainer. “Constructing the victim: theoretical reflections and empirical examples”. Internatio- sofar as those controversies rest on genuine disagreements over the empirical facts. In the first sense, all
nal Review of Victimology, 11/2004, p. 295-311. crimes except the killing of living things (animals or people) as sacrificial offerings to a deity are ‘vic-
377. BEDAU, Edwin; SCHUR, Hugo. Victimless crimes: two sides of a controversy. London: Prentice, timless’. In the second sense, only those disapproved actions which harm no one at all are victimless”,
1974, p. 7. FEINBERG, Joel. Harm to others. Oxford: Oxford Press, 1984, p. 117-118.
130 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 4 – Fundamentos da pesquisa vitimológica 131

para a restauração. Conceitos excessivamente abrangentes nada definem; inteligente das formas de controle social. Tudo isso porque as vítimas são
se qualquer relação é uma relação vitimal, nada é uma relação vitimal. especiais, trazendo consigo a especificidade das interações sociais em que
A fundamentação de uma vitimologia corporativa, para muito além de estão envolvidas382. O domínio desta dinâmica é essencial para a elaboração
conceitos porosos, deve encontrar sua especificidade e buscar as formas de métricas sobre a efetividade do controle social da vitimização.
de racionalização da dinâmica do conceito, visando à implementação prá- Esta especialidade também diz muito respeito à formação de uma
tica. Antes mesmo de classificações universalistas, característica marcante vitimologia corporativa, cujo ponto principal seria também a “criação de
do surgimento do pensamento vitimológico, importam mais articulações vítimas em posições de confiança”383, porém desde determinadas oportuni-
teóricas fundadas em empiria adequada e sensíveis ao contexto. dades oferecidas em organizações empresariais. A diferenciação e a gradação
Daí é que poderíamos identificar com maior precisão os processos de dos processos de vitimização seriam o ponto de partida para a revisão das
reconhecimento, inclusão e tão logo legitimação orientada pela perspectiva estratégias de proteção da vítima, a priorização na formulação de políticas
da vítima. Bem diferente do simples reconhecimento formal é a elaboração públicas ou iniciativas corporativas e, mais que nada, na legitimação do sis-
de um conceito expandido de vítima, envolvendo qualquer relação criminal tema de justiça criminal. Simples assim, a composição dos delitos contra o
em que se identifica um comportamento corporativo socialmente danoso e a patrimônio não é a mesma dos delitos sexuais, e os escândalos corporativos
incidência de processo de vitimização, do nascimento à morte do indivíduo. causados em cumplicidade com decisões humanas não são o mesmo que
E como o status de vítima demanda necessidades de priorização, alocação crimes cometidos por força de desastres ou catástrofes naturais.
de recursos escassos no sistema de justiça criminal. Mediante o emprego de Ao menos é com base nisso que se justifica a necessidade de compreen-
níveis mais adequados de racionalização e priorização, alcança-se regulação são das vítimas que realmente necessitam reconhecimento, participação,
do comportamento corporativo socialmente danoso mais inteligente, con- inclusão e engajamento em restauração. Não seria diferente na vitimologia
forme um “conceito constitutivo de regulação” de comportamentos: controle corporativa e na formulação de uma justiça restaurativa corporativa (corporate
social formal orientado pela noção de justo merecimento (just desert) e grada- restorative justice). A combinação entre o sistema de justiça criminal e seu
tiva desformalização na medida em que a aflição à vítima vai se mitigando379. entorno (estratégias extrapenais de solução de conflitos) necessitam profunda
Tipologias são as formas tradicionais de se iniciar um novo campo de redefinição justamente a partir desta reavaliação da vítima e dos processos
conhecimento científico. A construção de tipos permite a racionalização e de vitimização. A definição dos diferentes níveis de vitimização assumiu,
a organização das informações, orientando a classificação ou instrumentali- tradicionalmente, a seguinte estrutura: 1) vitimização primária (relação entre
zando-a a partir de suas finalidades. Em uma como na outra, no pensamento indivíduo e fato); 2) vitimização secundária (relação indivíduo e Estado); 3)
vitimológico é a diferenciação de comportamentos que permite a elaboração vitimização terciária (relação entre indivíduos, família e grupamento social).
de estratégias de identificação e prevenção à vitimização, “a partir do reco- Por vitimização primária ou direta entende-se o impacto direto na
nhecimento prévio de padrões (de comportamento) e necessidade potencial vítima, físico, emocional, financeiro, mudança de estilo de vida ou uma
de intervenção”380. Desde a clássica definição de von Hentig, já seria possível combinação deles. Pode se estender de perda financeira a bens furtados ou
identificar “múltiplas categorias”381 de vítima, alinhadas, em maior ou menor roubados, tempo fora do trabalho por conta do evento delitivo, injúria física
medida, às especificidades dos processos de vitimização, se eles refletem a ou mesmo de stress pós-traumático384. Joanna Shapland and Matthew Hall
construção dos comportamentos desviantes, se alcançam a qualificação jurí-
dica em normas penais, ou se estão mais ou menos integradas à combinação 382. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 129. A vitimologia tradicional é farta em
ilustrações: o feto, nas políticas de interrupção da gravidez ou cuidado pré-natal, violência pré-natal ou
obstétrica, sem-terra (que dificilmente tem condições de recorrer às instâncias de controle por aversão à
379. SHEARING, Clifford. “A constitutive conception of regulation”. GRABOSKY, Peter; BRAITHWAI- seletividade do law enforcement ou receio de retaliação – gerando situações de vitimização secundária
TE, John (org) Business regulation and Australia´s future. Canberra: Australian Institute of Criminolo- por sua própria condição – , humilhação e abuso de idosos, bullying, tráfico de seres humanos, comuni-
gy, 1993, p. 67 e ss. dades tradicionais, entre outros.
380. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 4. 383. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 142-144.
381. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 6. 384. WALKLATE, Sandra. “Defining victims and victimisation”. DAVIES, Pamela; FRANCIS, Peter; GRE-
132 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 4 – Fundamentos da pesquisa vitimológica 133

acrescentam aí os aspectos sociais (incluindo mudanças no estilo de vida) a classificação original proposta por Sellin e Wolfgang390.
e percepções sobre a possibilidade de futura vitimização385. Noções mais Jan Van Dijk e J. de Waard recorrem ao escalonamento para propor
contemporâneas, como stress ou impactos negativos da estrutura socioeco- uma nova classificação orientada à prevenção da vitimização: 1) prevenção
nômica para suportar a vitimização, acabam variando muito a depender da primária; 2) prevenção secundária; 3) prevenção terciária. Por prevenção pri-
personalidade da vítima, dificultando sua classificação. mária entende-se o processo de esclarecimento comunitário sobre o crime e a
Vitimização secundária refere-se ao tratamento dado pelo sistema de criminalidade, priorizando campanhas de redução da vitimização. Prevenção
justiça criminal. Aqui se analisa a intimidação gerada pelo próprio proces- secundária concentra-se em grupos de risco ou mais vulneráveis a determinados
so386 e os dissabores experimentados pela vítima nas situações em que ou não processos de vitimização. E dá-se o nome de prevenção terciária à implemen-
acreditam em sua versão ou são vulneradas pelas instituições que em verda- tação prática de instrumentos de assistência, compensação e gerenciamento de
de deveriam fornecer-lhe apoio. É também conhecida como “vitimização crises de forma ampla, desde a compreensão material ao suporte emocional391.
indireta” ou “colateral”, relacionada à noção de privação ou despojamento Os escalões da vitimologia (primária, secundária e terciária), se bem
(bereavement)387, justamente porque acaba se tornando suspeita pelo que que auxiliam na compreensão didática e organização do raciocínio sobre a
aconteceu ao mesmo tempo em que não se sabe do que se trata, bem ao vítima e os processos de vitimização não dão conta de uma série de ques-
gosto da estética kafkiana. A ideia de vitimização indireta como resultado tões. Dizem muito pouco a respeito da vitimização subjetiva e os estágios de
do crime tem alguma ressonância não apenas por levar em consideração
alienação (muitas vezes, os processos mais intensivos de vitimização atingem
novas percepções, como a diversidade cultural e étnica, mas por permitir
pessoas que sequer se dão conta da vitimização), a “reincidência da vítima”,
partilhar as experiências do crime e dos processos de vitimização. Há uma
comportamento abusivo ou mesmo a insistência da vítima em permanecer
série de fatores, em verdade, que permitem avaliar os níveis de vitimização
em relação abusiva, os efeitos da desvitimização, os desafios de sistematiza-
secundária: alienação do processo, falta de oportunidade de expressão ou
ção e classificação trazidos por processos de “múltipla vitimização” (multiple
ser ouvida, desinformação, desarticulação entre sistema de justiça criminal
victimization)392, ou ainda a sofrível empiria neste campo, gerada ou por
e agências de suporte, percepção de injustiça, seja pela falta de julgamento
questões de falta de informação (underreporting) ou avaliação inadequada
quer pela ausência de reparação388.
(undercounting) de processos de vitimização e violência. A vitimologia a tudo
Enquanto a vitimização primária pressupõe a personalização, a secun- isso acoberta em uma concepção “guarda-chuva” de vitimização crônica.
dária trata a vítima a partir da pessoalidade, podendo valer para instituições
Tampouco o abuso da liberdade de imprensa e a indústria da espetacu-
(escola, igreja, estabelecimento negocial etc.) ou outras mediações entre os
larização do crime – que manipula as percepções da vitimização – integram
indivíduos. No entanto, nenhuma das duas é tão difusa e indeterminada
como a vitimização terciária, que transcende a pessoalidade e reverbera seus 390. SELLIN, Thorsten; WOLFGANG, Marvin. Measurment… cit., p. 156.
391. Van Dijk e De Waard excluem expressamente da classificação proposta a investigação criminal, a con-
efeitos na comunidade ou mesmo ordem pública, harmonia social, admi- denação, a punição e a execução das penas, VAN DIJK, Jan; DE WAARD, J. “A twodimensional typolo-
gy of crime prevention projects; with a bibliography”. Criminal Justice Abstracts, 23/1991, p. 488-489.
nistração pública ou Governo, dentre outros389, preservando afinidade com Questão anteriormente explorada em SAAD-DINIZ, Eduardo; MARIN, Gustavo de Carvalho. Imputa-
ción moral como imputación… cit.
ER, Chris. Victims, crime & society. 2. ed. Los Angeles: sage, 2017, p. 38. 392. “Social disorganization referred to a situation where residents were not integrated into the social insti-
385. SHAPLAND, Joanna; HALL, Matthew. “What do we know about the effect of crime on victims?”. tutions of their communities such as the church, school, and neighborhood groups, thereby rendering
International review of victimology, 14/2007, p. 175-217. these institutions ineffective in controlling the behavior of the residents. Social disorganization was at
386. WALKLATE, Sandra. “Defining victims and victimisation”. DAVIES, Pamela; FRANCIS, Peter; GRE- first attributed to the rapid turnover of the population in these zones, the heterogeneity of local residents,
ER, Chris. Victims, crime & society. 2. ed. Los Angeles: sage, 2017, p. 39. and their lack of economic resources. When later research continues to find high levels of delinquency
within certain areas olf the city in spite of a more stable growth rate, Shay and McKay shifted away
387. WALKLATE, Sandra. “Defining victims and victimisation”. DAVIES, Pamela; FRANCIS, Peter; GRE- from an emphasis on social disorganization to a focus on the lack of opportuniites on the part of people
ER, Chris. Victims, crime & society. 2. ed. Los Angeles: sage, 2017, p. 39. living within these areas. In addition, thy also argued that due to these conditions persisting over a
388. CONDRY, Rachel. “Secondary victims and secondary victimization”. SHOHAM, Shlomo (org). Inter- period of time, values conducive to delinquent behavior hab become part of the subuclutral tradition
national Handbook of Victimology. Boca Raton: CRC Press, 2010, p. 220-236. that was being transmitted from one generation to another (Kornhauser). Thus Shaw and McKay’s so-
389. “Relatives of serious offenders who sometimes represent themselves as ‘the other victims of crime’”, cial disorganization approach overlaps with both strain and cultural transmission perspectives”. GENN,
HOWARTH, G.; ROCK, Paul. “Aftermath and the construction of victimization: the other victims of Hazel. “Multiple victimization”. MAGUIRE, Mike; POINTING, John. Victims of crime: a new deal?
crime. Howard Journal of Criminal Justice. 39/2000, p. 58-77. Philadelphia: Open University Press, 1988, p. 99-100.
134 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 4 – Fundamentos da pesquisa vitimológica 135

esta classificação, apenas mais recentemente foram incorporados ao discurso socialmente desviante e diferenciar os contextos em que os crimes são cometi-
vitimológico como a categoria da vitimização quaternária. A falta de refe- dos por corporações, contra corporações, ou no âmbito interno da corporação.
rência à memória histórica e efeitos transgeracionais igualmente não tem Ezzat Fattah enfatiza a questão dos tipos de vulneráveis, variando confor-
recebido a devida atenção da investigação vitimológica, em grande parte me o nível de vitimização, as ofensas cometidas e variáveis estruturais, como a
também frente às dificuldades em se apreender as concretas condições e cir- maior ou menor exposição em função de determinado contexto, ocupações, ou
cunstâncias em que se produz este nível de vitimização. De qualquer forma, ainda fatores macro, como desigualdade, pobreza, desenvolvimento socioeco-
ao mesmo tempo em que se vai perdendo a importância do label vítima393, nômico. Assim como são necessários multi-níveis de concepção da vitimologia,
banalização e rotinização dos processos de vitimização tomam o lugar de o mesmo se dá em relação às diferentes percepções, soluções e papeis da vítima
evidências científicas que fundamentem uma categorização mais consistente. a partir da perspectiva da vulnerabilidade. Além disso, Fattah esclarece que
Apesar de suas insuficiências, e mesmo considerando que a maior parte apenas uma parcela reduzida dos ofensores responde pelos crimes cometidos
dos processos acaba diluída na invisibilidade da vitimização indireta, estes e o recidivismo da vítima, fatores que fazem com que a vítima esteja particu-
escalões poderiam ser experimentados no âmbito da vitimologia corpora- larmente vulnerável a determinado processo de vitimização397, algo que ainda
tiva. O escalonamento, em tese, deveria reconhecer que os diferentes tipos está longe de ser uma prioridade nas estratégias de desvitimização.
de comportamento corporativo socialmente desviante produzem diferentes De forma muito semelhante aos crimes tradicionais, as escalas da
tipos de vítima, dano e, tão logo, diferentes processos de vitimização. vitimologia corporativa são igualmente imperfeitas: a intensidade da viti-
Ao lado da vitimização secundária no nível dos efeitos à comunidade mização e o envolvimento dos diretores e empregados, os níveis de trauma
(v. supra). Dano em larga escala produz vitimização em larga escala. Víti- e persistência dela (assim como no caso das drogas, anos depois as vítimas
mas que muitas vezes não são vistas, que permanecem na invisibilidade. O ainda sofrem com os efeitos deletérios causados pelo comportamento
comportamento cada vez mais propenso à assunção de riscos eleva o nível socialmente danoso), comportamento abusivo e vitimização reiterada
de tensão e as oportunidades para o delito394, impulsionando motivações e (corporações, apesar de lesadas, não promovem mudanças significativas
escolhas inclinadas ao comportamento socialmente danoso395, não apenas de comportamento e seguem em relações abusivas), comportamento au-
pela explanação puramente limitada à agressividade e ambição da empresa, to-vitimizante e relativa falta de consciência, precipitação vitimal. Há
senão também pelo próprio desequilíbrio entre as aspirações internas da ainda muito a ser investigado, se for mesmo o caso de uma estruturação
empresa e as pressões externas por melhor performance396. Mais do que isso, mais precisa sobre quem é vitimizado, quem necessita realmente de pro-
a dinâmica e a velocidade da vitimização no âmbito corporativo aceleram o teção e como proteger de modo efetivo.
intercâmbio de papéis: a vítima de hoje pode ser o ofensor de amanhã. Seja como for, a construção de tipologias no âmbito da vitimo-
No nível da vitimização terciária, é bem possível identificar os sta- logia corporativa, na mesma linha do que originalmente foi proposto
keholders como vítimas. Determinar quem de fato eram as vítimas. Aqui por Laufer, serve ao propósito de reequacionar as estratégias de controle
se permite identificar quem são as vítimas do comportamento corporativo social do comportamento corporativo socialmente danoso. A vitimologia
corporativa fornece elementos mais substanciais – e, por conseguinte,
393. VAN DIJK, J. “Ideological trends with the victim’s movement: an international perspective”. MAGUI-
RE, Mike; POINTING, John. Victims of crime: a new deal? Philadelphia: Open University Press, 1988, mais legítimos – para a propositura de formas de atribuição de responsa-
p. 115-126. bilidade penal empresarial menos obsessivas pelo controle social formal e
394. WANG, Xia; HOLFTRETER, Kristy. “The effects of corporation- and industry-level strain and opportu-
nity on corporate crime. 49/2012, p. 151-185; BAUCUS, Melissa; NEAR, Janet. “Can illegal corporate estrategicamente melhor desenhadas para responder às questões de como
behavior be predicted? An event history analysis”. Academy of Management Journal, 34/1991, p. 09-36.
395. MCKENDALL, Marie et al. “Motive, opportunity, choice, and corporate illegality. Organization scien- punir, que tipo de punição, em que intensidade, e que tipo de restauração
ce, 1/1997, p. 624-647. a que tipo vítima deve ser pensada.
396. MISHINA, Yuri et al. “Why ‘good’ firms do bad things: the effects of high aspirations, high expec-
tations, and prominence on the incidence of corporate illegality”. Academy of Management Journal,
1/2010, p. 701-722. 397. FATTAH, Ezzat. Criminology… cit., p. 162.
136 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 4 – Fundamentos da pesquisa vitimológica 137

4.3.2. LIÇÕES DA VITIMOLOGIA CRÍTICA Na vitimologia crítica, Walklate apenas concebe a vítima, sem con-
A vitimologia crítica, desde seus estudos originais398, leva o estudo ferir-lhe a devida dimensão para fins de formulação de estratégias de
da vítima e dos processos de vitimização à reflexão crítica sobre seu papel prevenção ou redução dos danos404. Basicamente, a crítica está centrada nas
na dinâmica da sociedade, determinando o padrão de responsabilidade determinantes do processo de labelling405, e não propriamente em relação
coletiva em torno dos quais se articula a “resistência daqueles destituídos à necessidade, legitimidade ou carência de verificação empírica e métricas
das estruturas de poder”. Cumpriria à vitimologia crítica manter a filo- adequadas no campo da vitimologia. Ainda mais importante do que social
sofia consciente da exploração da vítima e resistir a ela399, mobilizando labelling, a crítica vitimológica reconhece na inclusão da vítima no Sistema
forças políticas para garantir mais intensiva participação da vítima no de justiça criminal o despertar de um “apelo humanista”. A vitimologia é
sistema de justiça criminal400. responsável por fazer ênfase nos aspectos emocionais e solidários que levam
à dedicação pelo alívio do sofrimento humano.
Os desenvolvimentos da vitimologia crítica expandiram o alcance de
suas reflexões para a incorporação dos processos de vitimização na dinâmica É então que a vitimologia crítica inaugura a noção de “nova vitimolo-
do mercado. É fascinante observar as afinidades entre crime e transfor- gia” (new victimology) fundada nos direitos humanos406. O sofrimento real
mações nas interações da sociedade, sobretudo a forma como a gestão da vítima está para muito além das formas tradicionais de comportamen-
da vítima induz à mercancia401. Desde então, critica-se a apropriação da to desviante, a vitimização é bem mais complexa e encontra suas causas
imagem da vítima (sua inocência, apelos de ordem e segurança etc.) como em abuso de poder, desigualdade, pobreza, discriminação e outras tantas
grande empreendimento da indústria capitalista402, afetando a cadeia pro- violências estruturais. Em função destes pressupostos, a nova vitimologia
dutiva, distribuição, consumo e especulação financeira. As várias formas guia o pensamento vitimológico à transição dos conceitos tradicionais da
de exploração são mais criativas do que a simples exploração das mídias. A criminologia a direitos humanos universais407, como estratégia inequívoca
vitimologia crítica oferece um poderoso arsenal para avaliar o uso estendido de priorização política da proteção da vítima. O apelo aos direitos humanos
da vitimização para o etiquetamento negativo de práticas, lugares, pessoas foi recepcionado pelos estudos de criminologia e vitimologia e, para além
e organizações (na perspectiva da clássica crítica do social labelling)403. de novas referências normativas, favoreceu a necessidade de se verificar as
dimensões do dano reprovável408.
398. FRIEDRICHS, David. “Victimology: a consideration of the radical critique”. Crime & Delinquency,
1983, p. 29.
399. MAWBY, R.; WALKLATE, Sandra. Critical victimology: international perspectives. London: Sage, will fall under closer scrutiny. While we have no direct evidence, we would hypothesize that this phe-
1994, p. 114. nomenon applies more strictly to males than females and, certainly, more to the young than the old.
400. QUINNEY, Richard. Who is the victim… cit., pp. 314-23. In addition, we suspect that the entire process is sensitive to class position as well. (…) “radical victi-
mology should be prepared to examine the effects generated by this form o systematic victimization.
401. “Commercial enterprises have rediscovered victims as an undeserved market for crime prevention Certainly, one can expect that offender-associates who come under close scrutingy by the criminal
goods and services. After suffering through an unpleasant experience, many victims become willing, justice system will experience a loss of status, fewer opportunities, and diminished life chances. In
even eager, consumers searching for services and devices that will protect them from any further harm”, fact, we would predict that the total experience is criminogenic”, McSHANE, Marilyn; WILLIAM
McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 16. III, Frank. “Radical victimology: a critique of the concept of victim in traditional victimology”. Crime
402. “Victimization and crime prevention is big business, with purveyors of security and self-protection & Delinquency, 38/1992, p. 268-269.
devices targeting victims as well as citizens´ fears of becoming victims. And, as with most forms of 404. WALKLATE, Sandra. “Researching victims of crime: critical victimology”. Social Justice, 17/1990, p.
enterprise in capitalist systems, government either directly or indirectly encourages consumerism”. 25-42.
MCSHANE, Marilyn; WILLIAMS III, Frank. “Radical victimology: a critique of the concept of victim
in traditional victimology”. MCSHANE, Marilyn; WILLIAMS III, Frank. Victims of crime and the 405. O qual não deixa de ser relevante: “a behavior or event may pass unnoticed in society until a formal
victimization process. New York: Garland Publishing, 1997, pp. 210-221. Na mesma linha, “business label is introduced and endowed with the power to change how people will now perceive an event
have rediscovered victims as an untapped market for goods and services. After suffering through an through a new value lens”, PFOHL, Stephen. “The Discovery of Child Abuse”. Social problems,
unpleasant experience, many victims become willing, even eager, consumers and search for products 24/1977, p. 310-323.
that will protect them from any further harm”, KARMEN, Andrew, “The rediscovery of crimes victims”. 406. ELIAS, Robert. “Transcending our Social reality of Victimization: toward a new victimology of human
CULBERTSON, R. et al (org). Order Under Law, 3. ed. Waveland: PH, 1984, p. 10. rights”. Victimology, 10/1985, p. 213-224. Também em ELIAS, Robert. Paradigms and paradoxes of
403. “We suggest that there is a systematic form of negative labeling that takes place among close associa- victimology”. International Victimology, 1996, p. 9-34.
tes of offenders. This labeling process constitutes victimization of those individuals by the criminal 407. “If there is a science dealing with pain (dolorology), if we are struck with the phenomenon of fear, with
justice system and the public. The process of ‘guilty by association’ results in a reaction to close as- all the phobias, real or imaginary, then a new effort – victimology can no doubt in a realistisc, rational,
sociates as if they, too, partake of the same evil nature as that ascribed to the offender. It may be that even emotional and solidary way help to alleviate human suffering”. SEPAROVIC, Zvonimir. Victimo-
families experience the greatest effect. Because of popular myths and misconceptions, both public logy: studies of victims. Zagreb: Samobor, 1985, p. 28 e 31.
and system assume that criminality can, and does, run in families. Thus, if a single sibling or parent 408. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., pp. 50 e 51; MAIER-KATHKIN, Daniel et al.
(or even a close relative) becomes a client of the criminal justice system, all other family members “Towards a criminology of crimes against humanity”. Theoretical Criminology, 13/2009, p. 227-255.
Capítulo 5
VITIMOLOGIA CORPORATIVA: UM NOVO
CAMPO DE PESQUISA PARA AS CIÊNCIAS
CRIMINAIS

É certo que há dispersas manifestações sobre a vitimização corporativa


que podem ser observadas ao longo da revisão do pensamento criminológico.
Mesmo que sem a inteligência sistemática de uma vitimologia corporativa, es-
pecialmente o telos de legítima inclusão no processo decisório e na concepção
de uma justa responsabilidade penal empresarial e restauração, a identificação
e a mentalidade classificatória permitem alguns avanços na apreensão da
especificidade do comportamento corporativo socialmente danoso.
Mesmo assim, o estado atual revela um cenário de fracasso em conceber
os indivíduos, a comunidade ou mesmo outras corporações como sendo víti-
mas da violência corporativa. Este fracasso em se conceber uma vitimologia
corporativa é também expressão do insucesso em constranger a obsessão pela
criminalidade de rua. Apesar de alguns estudos isolados409, não se obser-
vam investigações mais substanciais para além do estudo formal do campo,
capturadas pela crítica genérica ao papel das corporações na manutenção
do mainstream. Há, sim, determinados avanços significativos nas políticas
identitárias no âmbito corporativo e propositivas avaliações de custos e bene-
fícios da vitimização. Os novos desenvolvimentos da vitimologia tampouco
apontam para evidências de que o papel das corporações nos processos de
vitimização recebe atenção da pesquisa científica410. Nem mesmo em discus-
sões recentes reclamando uma vitimologia crítica se dedicam reflexões mais
acuradas ao que aqui se propõe como vitimologia corporativa. Esta noção
deve alcançar dimensões mais amplas e complexas.
As vítimas não se encontram fragmentadas, em isolamento social.
409. WHYTE, Dave. “Victims of corporate crime”. WALKLATE, Sandra. Handbook of victims and victimo-
logy. Cullompton: Willan, 2007, p. 56 e ss.
410. SPENCER, Dale; WALKLATE, Sandra (org) Reconceptualizing critical victimology: interventions and
possibilities. London: Lexington, 2016, 241 p.; LETSCHERT, Rianne; VAN DIJK, Jan. “The new fa-
ces of victimhood: Globalization, transnational crimes and victim rights”. LETSCHERT, Rianne; VAN
DIJK, Jan (org) The new faces of victimhood. Heidelberg: Springer, 2011, p. 3-14.
140 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 141

Comunidades inteiras padecem de baixa representatividade no sistema de sua maior ou menor adequação à cultura organizacional, proteção dos sha-
justiça criminal e são vitimizadas pelo comportamento corporativo ofensivo. reholders e engajamento dos stakeholders. De qualquer modo, é bastante válida
Desvio de dinheiro e afetação da capacidade distributiva do Estado podem a forma como Clinard e Yeager já prenunciavam uma série de questões que
vulnerar dramaticamente uma nação inteira. As doações corporativas, se seguem sendo atuais, tais como: i. violações gravosas, geralmente, recebem
alheias ao controle social e à regulação, conduzem o processo político e penas ínfimas; ii. corporações dispõem de sofisticadas técnicas defensivas
afetam os procedimentos eleitorais democráticos e os princípios de gover- para evitar a incidência de multas proporcionais à gravosidade; iii. nível de
nança pública. O lobby corporativo captura as escolhas públicas, a política reincidência é comprometedor (aqui remontando ainda a Sutherland)413.
institucional e a representatividade popular. A captura regulatória fragiliza a Em sentido semelhante, mantendo a postura classificatória, David
confiança no Estado de Direito, plena de estratégias de desvio, subtração e ex- Shichor se antecipou às classificações do dano corporativo (corporate harm),
torsão que culminam em níveis subótimos de persecução penal, colaboração da vitimização corporativa (corporate victimization), e vítimas corporativas
inidônea com as autoridades públicas, iniciativas corporativas inautênticas (corporate victims), prenunciando as noções de “vitimização múltipla”, viti-
e corrupção das medidas de law enforcement411. Realmente, perde-se muito mização direta ou primária, indireta ou secundária e, com certo pioneirismo,
quando se falha na concepção de uma vitimologia corporativa, a principiar a compreensão das distintas escalas de vitimização entre as corporações414.
pela falta de reconhecimento social da legitimidade e da reconstrução da con-
fiança, sem que a vítima esteja inscrita no cerne de uma responsividade justa. Estudos de criminologia corporativa, nesta mesma linha, buscam sis-
tematizar os casos de dano social provocado pelas corporações, como nos
A estratégia de pesquisa deste livro não é de todo inovadora. Como
ensaios organizados por Peter Grabosky e Adam Sutton415, porém sem a
parte de estudos originários em criminologia corporativa, as clássicas lições
devida preocupação explanatória de identificar tanto a vítima e os processos
de Marshall Clinard e Peter Yeager a seu modo já buscaram dialogar com
de vitimização quanto as insuficiências de aplicação da responsabilidade
a construção do conflito vitimal no âmbito corporativo, especificando os
corporativa. As avaliações criminológicas, no entanto, permanecem de certa
processos de vitimização conforme a natureza da ofensa, ainda que o esforço
forma obsessivas pela análise dos custos econômicos e sociais da atividade
classificatório não alcance nem as modernas formas de criminalidade nem
empresarial416. O custo social da atividade empresarial, até então, estava
as modernas formas de organização empresarial. Clinard e Yeager propuse-
reduzido a estratégias de mitigação de riscos e responsabilidades, dizendo
ram uma primeira classificação para os processos de vitimização corporativa
muito pouco sobre o que efetivamente pode ser feito no sentido negativo
conforme a natureza da ofensa: 1) consumidor (segurança e qualidade do
(redução do dano e compensação da vítima) e positivo (estratégias de pre-
produto); 2) consumidor e práticas negociais desleais (poder econômico); 3)
venção da vitimização corporativa). A identificação mais precisa dos níveis
infrações ambientais; 4) violação contra o empregado; 5. infração contra a
de vitimização, assim como nos delitos tradicionais, atende a questões de
Administração pública e o Fisco, quando o próprio Governo é vitimizado412.
escala, e, enquanto tal, à necessidade de adequação das formas de controle
Esta classificação, no entanto, não abrange corrupção empresarial ou lavagem
de dinheiro, nem mesmo dá conta dos avanços trazidos pelas ciências cogni- 413. CLINARD, Marshall; YEAGER, Peter. Corporate crime… cit., p. 124.
tivas em termos de criminalidade corporativa e capacidade de aprendizagem 414. SHICHOR, David. “Corporate Deviance and Corporate Victimization: A Review and Some Elabora-
tions”. International Review of Victimology, 1/1989, p. 67-88; Marilyn Price e Donna Norris buscam
e estruturação das organizações empresariais. Tampouco alcançam uma com- identificar as características individuais do ofensor no âmbito corporativo e suas repercussões no âmbito
da vitimização ou falta de percepção dela, PRICE, Marilyn; NORRIS, Donna (2009). “White collar cri-
preensão vitimológica mais ampla e em interlocução com os avanços da ética me: corporate and securities and commodities fraud”. Journal of the American Academy of Psychiatry
and the Law, 37/2009, p. 538-544.
negocial, demonstrando o que poderiam ser as estratégias de desvitimização, 415. GRABOSKY, Peter; SUTTON, Adam. Stains on a White Collar: Fourteen Studies in Corporate Crime
or Corporate Harm. Annandale: The Federation, 1989, 265 p.
411. O recente escândalo da Volkswagen é bastante elucidativo. Embora o dano tenha sido majoritariamente 416. WELSH, Brandon; FARRINGTON, David. “Assessing the economic costs and benefits of crime pre-
percebido em território europeu, a mobilização da empresa se deu mesmo em virtude da atuação do vention”. WELSH, Brandon; FARRINGTON, David; SHERMAN, Lawrence (org). Costs and benefits
Sistema de justiça criminal norte-americano. A legislação europeia é bastante permissiva inclusive em of preventing crime. Oxford: Westview, 2001, p. 10 e ss.; COHEN, Mark. “The crime victim´s perspecti-
relação ao próprio nível de contaminação ambiental, com frágeis mecanismos sancionatórios, EWING, ve in cost-benefit analysis: the importance of monetizing tangible and intangible crime costs”. WELSH,
Jack. Faster, higher, farther: the Volkswagen scandal. New York: W.W. Norton, 2017, p. 224 e ss. Brandon; FARRINGTON, David; SHERMAN, Lawrence (org). Costs and benefits of preventing crime.
412. CLINARD, Marshall; YEAGER, Peter. Corporate crime… cit., p. 123. Oxford: Westview, 2001, p. 35 e ss.
142 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 143

do comportamento corporativo socialmente danoso. Se bem é certo que à lógica da múltipla vitimização, difusa e nem sempre conveniente421.
este raciocínio é decisivo para evidenciar que os custos da criminalidade Definitivamente, ainda não há forma de sustentar apenas com bases
corporativa superam em até vinte vezes os da criminalidade mainstream417, em evidências empíricas a propositura de um novo campo de pesquisa e a
também é certo que há muito espaço para a imaginação criminológica construção teórica de uma vitimologia corporativa. A elaboração conceitual,
em termos de soluções negativas (compensação e redução dos danos) ou ao menos por agora, não encontrou outra alternativa que tomar como ponto
positivas (mecanismos de prevenção à vitimização e redução do abuso cor- de partida o aprendizado obtido a partir da reconstrução das teses tradicio-
porativo mensuráveis). nais da criminologia e da vitimologia, buscando identificar a natureza da
Richard Young, de forma bastante criativa, prenunciava o surgimento vitimização e avaliar, na revisão de literatura, novas formas de se precisar
da vitimologia corporativa como um novo campo a ser explorado pelas quem e como proteger a vítima. Com base nesta revisão dos campos tradi-
ciências criminais: “retirar das sombras a vitimização corporativa (corporate cionais, torna-se possível a crítica das estratégias de controle social, com a
victimization), este processo de encontrar dados sobre vitimização corpo- propositura de medidas mais sofisticadas – e menos obsessivas – de controle
rativa é quase como tentar localizar dados sobre crimes manipulados por social formal. Desta reconstrução do conhecimento criminológico e vitimo-
agências ‘regulatórias’ especializadas, como a Health and Safety Executive lógico serão tomados os elementos teóricos para a identificação da natureza
and the Inland Revenue. Não é que o dado não exista, o problema é que da vitimização corporativa e na revisão das formas de regulação do abuso
existe em locais um tanto obscuros”418. R. Young dá conta da ausência de corporativo422. O desenvolvimento da vitimologia corporativa passa por essas
elementos empíricos para a constituição do novo campo de pesquisa, que noções elementares de que é preciso conhecer quem é a vítima, como é lesada
deve ser antes submetido a elaborações conceituais para, em um segundo e qual reação ou medida preventiva pode ser considerada a mais adequada.
momento, identificar de forma mais precisa – e igualmente eficaz – dados Além do impacto social imediato nas formas de reconhecimento, reparação,
empíricos para a maturação científica do objeto. restituição e restauração, o impacto científico desta redefinição em função
Mesmo assim, R. Young intuitivamente pontua importantes elementos do contexto em que se produz a vitimização corporativa pode reposicionar as
para a compreensão da vitimização no âmbito corporativo. Primeiro, porque teses tradicionais sobre o controle social como um importante contraponto
as corporações não podem ser consideradas vítimas ideais e, na maioria das na formulação de uma vitimologia corporativa.
hipóteses, não será representada como vulnerável e nem desperterá a simpatia Seja como for, a vitimologia corporativa encontra-se ainda muito fra-
pública, “faltam-lhes a face ensanguentada”419. A avaliação de risco moral gilmente descrita, presa a um universo conceitual de relações interpessoais
tampouco favorece o reconhecimento da vitimização corporativa, ou bem e ainda mais frágil no que respeita à formulação de estratégias de controle
porque os negócios estão assegurados, distribuem as perdas com os consumi- social e regulação do comportamento corporativo. Diante da extensão dos
dores na precificação ou margem de lucro, ou bem porque a vitimização não efeitos negativos dos processos de vitimização corporativa e da atualidade dos
está às vistas do público e está acobertada pela cifra oculta420. Os processos escândalos corporativos em vários níveis, a desestabilização social e as práticas
de vitimização corporativa não são, portanto, individuais, atendendo antes sociais disruptivas (social disruption, como explorado por Kornhauser), o de-
senvolvimento de um novo campo de pesquisa deve poder elaborar referências
417. WHYTE, Dave. Victims of corporate crime… cit., p. 56; também em SHICHOR, David. Corporate 421. “(…) the non-ideal status of coporate victims has led to them being ignored in much of mainstream
deviance and corporate victimization… cit., p. 70. criminology, and that status may also make some restorativists uncomfortable. It is easy to support the
418. YOUNG, Richard. “Testing the limits of restorative justice: the case of corporate victimis”. HOYLE, furthering of victims´ interests when what one has in mind is the stereotypical individual victim assu-
Carolyn et al (org) New visions of crime victims. Oxford: Hart Publishing, 2002, p. 138. med to have been ´done down´ by an unfeeling offender, but less appealing to do so when the offender
419. “They lack human vulnerability, having no bloodied faces to display, no feelings to be injured, no is poor and the victim a profitable supermarket chain. The latter may seem to many of those working
fears to be allayed, no lifestyles to be undermined. The social worth of commercial corporations may in this field as, to use Rock´s phrase, an ‘ideologically uncongenial figure’. This may help explain why
be placed in doubt by their pursuit of profit. They can even be constructed as knowingly precipitating some schemes and some research studies have turned a blind eye to corporate victims”. YOUNG, Ri-
their own victimization as is evident in the following observations”, YOUNG, Richard. Testing the chard. Testing the limits… cit., p. 149.
limits… cit., p. 136. 422. De forma ainda um tanto rudimentar, Marshall Clinard foi de certa também pioneiro na coordenação
420. (…) the ‘dark figure’ of unreported or unrecorded coporate victimization is unknowable but is certainly deste tipo de levantamento empírico do abuso de poder corporativo, CLINARD, Marshal et al. Illegal
immense”. YOUNG, Richard. Testing the limits… cit., p. 142. corporate behavior. Washington: Government Printing Office, 1979.
144 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 145

mais substanciais para uma redefinição da forma como se concebem as in- ética negocial, ganhando o domínio público com as palavras de Rickleffs sobre
frações corporativas, os níveis de dano provocado à vítima e os contextos em o cinismo do mundo corporativo nos EUA425. Das principais lições de William
função dos quais se produzem as infrações corporativas e é forjado um novo Laufer é opor a humildade ao cinismo no ambiente corporativo, marcando
padrão de coesão social mediado pelas corporações. Este parece ser o caminho posição contra os jogos morais (morality plays) e a retórica dos shareholders
preferencial para fundamentar cientificamente formas mais sofisticadas de re- inocentes na condução da vida corporativa: reconhecer os próprios problemas
gulação do abuso corporativo e das respostas que pode oferecer o Sistema de é o primeiro passo para a legitimação ética da decisão negocial426.
justiça criminal. Como alternativa para a resolução dos conflitos vitimais, na William Laufer ocupa posição de liderança na criminologia corpora-
medida em que se estabelecem os vínculos possíveis entre os danos causados tiva norte-americana. Destaca-se por suas críticas sobre as distintas formas
pelas corporações (harmful corporate wrongdoing) e novas formas de regulação de ruptura das formas sociais provocadas pelo comportamento corporativo
do sistema de justiça criminal, serão discutidos os pressupostos e os limites do socialmente danoso. Desde o seminal Corporate bodies, guilty minds, Laufer
que poderia configurar uma “Justiça restaurativa corporativa”. investiga os processos de vitimização e as violações sistemáticas de direitos
A vitimização é altamente volátil no âmbito corporativo, assim como percebidas nas relações entre vítimas, gatekeepers e ofensores (victimizers)
dinâmica é a inversão de papeis entre ofensor e vítima e paradoxal a integra- envolvidos nas ondas de escândalos corporativos. Laufer parte do pressu-
ção entre corporação e comunidade. A porosidade dos conceitos abre espaço posto de que as ciências criminais simplesmente fracassam na concepção da
para técnicas de neutralização e indiferença moral da sociedade em relação ao responsabilidade penal empresarial. O desafio da criminologia econômica foi
comportamento corporativo socialmente danoso423. Após a discussão das for- resumido por Laufer da forma seguinte: “a história da responsabilidade penal
mulações originais em William Laufer, a partir do referencial conceitual de uma corporativa e o desenvolvimento dela refletem a tensão perene entre o poder
vitimologia corporativa serão desenvolvidas as possibilidades de se escalonar a regulatório do governo e poder corporativo. Não passa de controle social do
vitimização no âmbito corporativo, depois articuladas as convergências possí- negócio (social control of business) e noção de individualismo forjada na virada
veis com a teoria dos stakeholders, marcadas as convergências com as noções de do século XXI. Não passa de regulação governamental versus deferência à
violência corporativa, comportamento corporativo socialmente danoso, tensão comunidade negocial e aos mercados. Não passa do balanço do poder para
organizacional e trauma corporativo, e recomendações no âmbito de emprego regular as corporações e o espectro da superação regulatória. E, finalmente,
prático dos conceitos, notadamente em relação à tutela penal dos direitos hu- não passa de controle do comportamento empresarial desviante por meio da
manos no âmbito corporativo e Justiça restaurativa corporativa. combinação entre regulação e aplicação do direito penal”427.
A ambivalência na atribuição de responsabilidade às empresas segue
5.1. AS IDEIAS DE WILLIAM LAUFER PARA UMA VITI- sendo marcada pelas teses tradicionais de cisão entre propriedade (ownership)
MOLOGIA CORPORATIVA
425. RICKLEFFS, R. “Public gives executives low marks for honest and ethical standards”. Wall Street
Sutherland, um tanto refratário à concepção da responsabilidade penal Journal, 11/1983, p. 31.
das corporações, afirmava que elas são construções “racionalistas, amorais, e 426. LAUFER, William. “The importance of cynicism and humility: anti-corruption partnerships with the
private sector”. Development and outreach: fighting corruption, business as a partner. Washington:
não-sentimentais”424 e que, portanto, o mais importante era a compreensão das World Bank Institute, 2006, p. 18-21.
427. “Sadly, if history is any guide, not much changes after the dust of the scandals settles. Regulators shy away
estruturas de oportunidade para as infrações econômicas, e não propriamente a once again from escalating the regulatory process. Prosecutors, who investigated and indicted high-profile
white-collar criminals with a combination of vigilance and sense of righteousness, find that economic
discussão da personalidade corporativa (corporate personhood). O racionalismo crimes have lost political currency and are no longer office or departmental priority. Before and after the
scandals, corporate prosecutions – particularly of large, publicly traded entities – remain an exception, rare
a que se refere Sutherland foi em seguida amplamente debatido nos estudos de in some jurisdictions and extraordinary in others. Actions agains small, privately held companies predomi-
nate. And most of the regulatory activity with companies of any scale turns on audit and disclosure policies
that snag some corporations that commit crimes, prompt seemingly law-abiding companies to voluntarily
423. LAUFER, William. “Where is the moral indignation over corporate crime?”. BRODOWSKI, Dominik disclose crimes, and – ione must assume – deter others from crime commission. But the numbers of cases
et al (org) Regulating corporate criminal liability. Heidelberg: Springer, 2014, p. 19-32; para mais are still dreadfully small given even conservative estimates of the incidence of corporate crime. Successful
detalhes sobre a indignação moral e seu impacto nas formas jurídicas, SUNSTEIN, Cass. “Some effects regulation likely results in plea agreements that entail carefully drafted cooperation, integrity, or deferred
of moral indignation on law”. Vermont Law Review, 33/2008, p. 406-433. prosecution agreements requiring nothing less than a compliance reincarnation”, LAUFER, William. Cor-
424. SUTHERLAND, Edwin. White-collar crime: the uncut version… cit., p. 236-238. porate bodies and guilty minds. Chicago: Chicago Press, 2006, p. 7-8.
146 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 147

e controle (control) e, simultaneamente, desenvolvimento estratégico de nar- em face das corporações432 e identificar se atuam quando e onde há justo
rativas corporativas para escapar à responsabilização, gerenciar sua reputação, merecimento433.
e coordenar as relações com reguladores e fiscalizadores428. Em críticas ao compliance game e às ilusões da governança corporativa,
A tese central de Laufer consiste no abandono do modelo vicariante Laufer alinha-se à tradição criminológica que investiga as polaridades e
em favor de responsabilidade penal empresarial que esteja fundamentada em implicações da criminalidade de ruas com a corporativa, somando a pode-
julgamentos objetivos de culpa, desde uma compreensão que combine as rosa convergência entre fundamentos do pensamento criminológico e as
qualidades pessoais do juízo de reprovação com suas características, atributos investigações científicas em ética negocial. Por um lado, “(...) a imoralidade
e ações429. Coube a ele tomar das teses construtivistas o referencial teórico do uso ilícito de drogas representa ao público a complexa, porém bastante
para se conceber a responsabilidade penal empresarial, interpretada como familiar, combinação entre vício, doença, desemprego, improdutividade e
crítica aos modelos tradicionalistas de personalidade430. crime. A coerência moral destes custos sustenta a guerra diária financiada
A partir destas teses centrais, Laufer especializou a forma como se pelo Estado, ainda que a despeito das evidências de que promover esta
observa a criminalidade corporativa. O comportamento corporativo so- guerra é eficaz”. Por outro, “não há uma coerência moral equivalente no
cialmente danoso está presente na sociedade moderna de forma contínua caso do comportamento desviante corporativo”434.
e é indissociável de seu desenvolvimento. Os escândalos corporativos são Daí porque Laufer sugere a elaboração de formas mais sofisticadas de
cíclicos e sistematicamente acompanhados de movimentos de reforma. exercício do controle social e regulação dos negócios, como expressão do
Laufer integra esforços colaborativos e revisões sistemáticas que apontam pensamento “progressista” no direito penal corporativo435. A proposta de
para a falta de evidência quanto à efetividade das medidas preventivas e Laufer consiste precisamente em conceber a responsabilidade penal a partir
do potencial de intimidação (deterrence) do sistema de justiça criminal, do reconhecimento da complexidade do comportamento das organizações e,
apesar de que “fiscalizadores e reguladores gastam em regra muitas pala- exigindo maior imaginação criminológica, levar em consideração a ausência
vras em retórica moral sobre o comportamento corporativo socialmente de evidências, nem sobre as qualidades essenciais do comportamento corpo-
danoso, mas bem poucas em reprovação autêntica e indignação moral”431. rativo socialmente desviante, nem sobre a funcionalidade das estratégias de
O mais importante, no entanto, não é o apego ao referencial teórico, mas
sim a compreensão de sua atuação concreta no sistema de justiça crimi- 432. Análise recente da atuação do Sistema de justiça criminal em face dos EUA, veja-se GARRETT,
Brandon. Too big to jail: how prosecutions compromisse with corporations. Cambridge: The Belk-
nal, como se podem observar as priorizações de políticas de enforcement nap, 2014, p. 19 e ss.
433. LAUFER, William. Corporate bodies and guilty minds… cit., p. 130.
434. LAUFER, William. A very special... cit., p. 20 e ss. Não só não há coerência moral como também pode
428. “Personhood allows corporate wealth to overly influence governmental policy”, LAUFER, William. ser utilizado como estratégia de concorrência ou dominação estratégica de mercado. Laufer, juntamente
Corporate bodies and guilty minds… cit., p. 5-7 e 54. com Danielle Warren, demonstra que o social labeling pode ser utilizado para expor os países e mover
429. Para a concepção dos modelos de responsabilidade penal corporativa baseados nas teses construtivistas mercados com base em índices de transparência e corrupção, WARREN, Danielle; LAUFER, Wiliam.
– “(corporation) is more than a lifeless entity. (...) Corporate personhood is a metaphor with great des- “Are corruption índices a self-fulfilling prophecy? A social labeling perspective of corruption”. Journal
criptive power. Personhood not only provides the fiction for attributing criminal liability, it also reflects of Business Ethics, 88/2009, p. 841-849.
a legal status that grants constitutional rights and privileges. It transforms the concept of property, limits 435. Laufer dá o nome de (compliance conundrum) aos desincentivos que as autoridades fiscalizadoras e
liability, and determines who has citizenship and who may be sued. The recognition of personhood also reguladoras oferecem à autorregulação empresarial: “(...) a ‘compliance conundrum’, it is argued, un-
reveals much about the function and purpose of the firm. How personhood is conceived shapes and dermines corporate commitments to compliance science, technology, cooperation, and more effective
reshapes what is considered human and how corporations are ultimately defined. And, for those who social controls. This conundrum reflects a deeply imbedded conflict in firms over how to diligently
see law more generally as regulation, the grant of personhood is a perennial prerequisite” – e na percep- identify deviance, recognize the inevitability of a base rate of wrongdoing, honor disclosure require-
ção de comportamento genuíno e autêntico: “models of corporate culpability cast the intentionality of ments and, at the same time, avoid entity liability. This conundrum facilitates a ‘compliance game’,
corporations as genuine corporate fault. A genuine corporate fault rejects vicarious liability and instead a regulatory status quo where corporate and government players placate each other with complian-
explores culpability in relation to features, aspects, and attributes of the corporate form”, LAUFER, ce expenditures and an outcome that often has little to do with ensuring compliance. This game is
William. Corporate bodies, guilty minds… cit., p. 7, 47 e 57. marked by disincentives for firms to take the measurement of compliance seriously, and a regulatory
430. “Reasonable attributions of blame replace vicarious liability”, LAUFER, William. Corporate bodies, lethargy to resort to and require anything resembling a compliance science. This game is profitable
guilty minds… cit., p. 57. Em tom provocativo, porém de alto impacto (State of Wisconsin v. Richard for many stakeholders, including an ever-burgeoning legion of compliance, regulatory, and legal risk
Knutson, 04.18.1995), a concepção da personalidade pode ser mero reforço retórico, desde que se veri- professionals. It does, however, take casualties, including the legitimacy of formal social controls
fiquem as qualidades essenciais de uma corporação que sejam suficientes à atribuição de responsabili- that regulate firms, particularly for corporations of scale and power. Ultimately, the most significant
dade, WALT, Steven; LAUFER, William. “Why personhood doesn´t matter: corporate criminal liability loss is one of justice undone, or undistributed corporate criminal justice”, LAUFER, William. “The
and sanctions”. American Journal of Criminal Law, 18/1990, 263-287. missing account of progressive corporate criminal liability”. New York University Journal of Law and
431. LAUFER, William. A very special… cit., p. 19. Business, 14/2017, p. 7.
148 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 149

controle436. E que também assuma, assim como pensamos, o pressuposto de que fazem do direito penal tão único. Pode até soar banal, mas não há uma
que a responsabilidade penal empresarial, tal qual é concebida, está apoiada vitimologia corporativa que seja reflexo ou que provoque indignação moral
em formas de controle social ainda longe do recomendável, tanto para a como no caso da criminalidade de ruas”440. A vitimologia corporativa poderia
inclusão das demandas trazidas pelas vítimas, quanto para endereçar uma ser um poderoso instrumento de superação da “justiça não distribuída” (un-
legítima resposta ao comportamento corporativo socialmente desviante437. distributed justice)441, reequacionando a relação que confere legitimidade aos
Ao longo da consolidação de seu pensamento criminológico, Laufer dedi- mecanismos de atribuição de culpabilidade ao comportamento corporativo
ca-se a investigar campos negligenciados da pesquisa vitimológica, que vulnera socialmente danoso442. Os custos da criminalidade corporativa representam
pessoas inocentes na sociedade, como é o caso do genocídio (“pesquisa sobre uma escala vinte vezes maior do que os custos da criminalidade mainstream.
os processos de vitimização, percepções da severidade do crime, estimativa de Ou bem as condutas socialmente danosas sequer chegam a ser incriminadas,
perda e dano podem e deveriam ser estendidas ao genocídio”), na medida de ou bem o status dos “criminosos de confiança” é elevado e inversamente
sua convergência com as teses criminológicas, considerando “como a crimi- proporcional ao risco de responsabilização443, ou ainda, tal qual pensamos,
nologia do genocídio poderia aportar conhecimento à vitimização, homicídio, as corporações estão de tal forma infiltradas na coesão social que os bens por
agressão e violência”438. O abuso de poder corporativo, a principiar pelo negó- elas aportados fazem com que a comunidade venha a questionar os males, em
cio do genocídio (business of genocide), permanece em enorme porosidade439, estado de alienação profunda e estranhamento. Quer dizer, esta polaridade
o que apenas cria oportunidade para a legitimação de práticas negociais repro- poderia ser entendida a partir da cisão entre dois caminhos: por um lado,
váveis e de consequências deletérias a vítimas inocentes. as infrações econômicas cometidas pelas corporações causam mais dano à
sociedade do que os crimes de rua (do que todos eles somados!). De outro, a
Foi Laufer quem percebeu a ausência de uma vitimologia corporati-
responsabilidade penal da pessoa jurídica demonstra sua falta de funcionali-
va (corporate victimology). Cumpriria à vitimologia corporativa, como novo
dade em reintegrar as relações interpessoais e reconstruir as normas sociais,
campo de pesquisa para as ciências criminais, encontrar os pontos de integra-
desperdiçando a incrível oportunidade de oferecer uma resposta adequada ao
ção entre ofensor e vítima, conhecer as causas da violência corporativa, como
sofrimento da vítima, formular uma resposta que reconstrua a subjetividade
concebê-la e como mensurá-la. Assim como concebemos, o abuso de poder
violada e perda do senso de si.
corporativo sequer recebeu tratamento mais específico nas ciências criminais.
Para a elaboração mais consistente de uma vitimologia corporativa, “falta A vitimologia corporativa deveria prover à responsabilidade penal
investigação sobre o constrangedor impacto da culpabilidade corporativa empresarial uma melhor compreensão das possibilidades de reconforto
e, em particular, uma análise mais completa que conecte o comportamento às necessidades da vítima, por meio de mais articulados procedimentos
corporativo socialmente danoso com suas vítimas. Falta tanto reprovação e ocasiões apropriadas, a partir das quais se possa revelar os sentimentos
quanto reação objetiva ao comportamento corporativo desviante, emoções e expressar sua restauração emocional (emotional restoration). Trata-se, na
436. Sobre a ausência de evidências, Joachim Vogel sugeriu alternativas para pesquisas empíricas na crimino-
logia econômica: “(…) How many corporations are reported with how many offences? Which is the level 440. LAUFER, William. “A very special regulatory milestone”. University of Pennsylvania – Department of
of crime in which branches of the economy? How many corporations are indicted, convicted, acquitted, Criminology Working Paper, 2017, p. 18-19.
sentenced, and which is the rate of settlements or agreements? Which are the typical or predominant of- 441. LAUFER, William. A very special… cit., p. 20.
fences? Are there certain types of corporations—young or old, small or big, successful or failing—which 442. “Our sense of being wronged by corporations and their senior agents is taken seriously but does not
are more prone to offending than others? Which is the rate of reoffending? Which are the dark figures? encourage the kind of emotions necessary to support a fair and reasonable regime of corporate criminal
Indeed, these are very basic questions very well established in the criminology of individual crime, and we justice. (…) Aligning the measure of corporate culpability in relation to both liability and punishment is
have ample statistical material in the crime and sentencing statistics for individuals. It seems that compa- the ultimate achievement. In the absence of corporate victimology, though, criminal justice expenditu-
rable statistics for corporations do not yet exist, at least not across all countries which recognize corporate res go to where the outrage is, where the fear is, and where crime control wars actually earn some real
criminal liability”, VOGEL, Joachim. “Rethinking corporate criminal liability”. BRODOWSKI, Dominik political favor”, LAUFER, William. A very special… cit., p. 20.
et al (org) Regulating corporate criminal liability. Heidelberg: Springer, 2014, p. 338.
443. “(…) there is overwhelming evidence (…) that many of the worst forms of harm have not been crimi-
437. LAUFER, William. The missing account… cit. nalized. Furthermore, these forms of harm all too often are prepretrated by governments, corporations,
438. LAUFER, William. The forgotten… cit., p. 78. small businesses, and professionals. (…) The more respectable people appear to be, the more likely
439. ALLEN, Michael Thad. The business of genocide: the SS, slave labor, and the concentration camps. they are to be trusted. The more respectable people appear to be, the less likely they will be suspected
North Carolina: North Carolina Press, 2002, p. 92 e ss.; BILSKY, Leora. The Holocaust, Corporations, of committing serious crimes. (…) ”. FRIEDRICHS, David. Trusted criminals: white collar crime in
and the Law: Unfinished Business. Chicago: University of Michigan Press, 2017, 239 p. contemporary society. 4. ed. Belmont: Wadsworth, 2009, p. 44 e ss.
150 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 151

linha das ideias de Laufer, da reconfiguração do senso perdido de justiça, 5.2. CORPORAÇÃO COMO OFENSORA E CORPORAÇÃO
informação e respeito à vítima, provocando mudanças efetivas no com- COMO VÍTIMA: OS NÍVEIS DE VITIMIZAÇÃO CORPORATIVA
portamento empresarial que permitam mensurar o “remorso negocial”
Assim como a pessoa natural, as corporações também ostentam per-
(business remorse), em detrimento de negociações aparentes com as auto-
sonalidade, são “pessoas”, nascem, são extintas, e, como no trocadilho de
ridades públicas444, para além da simples “limpeza ambiental” aparente
Shichor et al, mais se submetem a fusões e aquisições do que pessoas naturais
(corporate greenwashing)445.
a casamentos ou divórcios448. Não pode ser aprisionada, mas pode se subme-
Semelhante avaliação do remorso e da autenticidade da reação em- ter à recuperação judicial ou até ser dissolvida. Não é difícil que seja fungível,
presarial à responsividade remete à interessante – e igualmente promissora que outra organização ocupe seu lugar em contexto negocial, contanto haja
– investigação da sinceridade das apologias e narrativas corporativas que se certa equivalência de finalidades, valores e capacidade organizacional. Do
sucedem ao comportamento desviante446. Nick Smith, por exemplo, propõe mesmo modo como podem pagar compensações e prêmios, podem subme-
que a apologia de um ofensor resulte em dever moral por parte da vítima, do ter-se a sanções como multa e, ativamente, fomentar atividades comunitárias
Estado e da comunidade ao perdão ou à redução da punição, configurando ou emendar suas práticas e estruturas internas449. Podem, inclusive, securiti-
uma espécie de “perdão coletivo”447. zar suas práticas corporativas.
Mesmo assim, as variáveis da reequação proposta em Laufer – quem é Expressam a consciência da ilicitude da corporação (corporate mens
vitimizado, qual a natureza e a dimensão do dano, qual a proporção e a qua- rea) e a “mente criminosa” (guilty mind) a partir de estados cognitivos até
lidade da punição – permanecem ainda em aberto. A vitimologia corporativa, mais facilmente verificáveis do que na pessoa física, como em hipóteses de
como novo campo de investigação em ciências criminais, poderia reforçar o devido cuidado em relação a determinado objeto ou ação ou mesmo em
compromisso dos Estados em incrementar as estratégias de controle social relação a resultados e metas definidos pela corporação450. Desde sua condi-
das corporações na mesma medida em que supera a indiferença moral diante ção de pessoa, como resultado de uma confluência de fatores sistêmicos e
dos processos de vitimização corporativa. processos decisórios da organização, causam dano da mesma forma que o
podem sofrer451, mais importando à vitimologia corporativa o domínio do
444. LAUFER, William; STRUDLER, Alan. “Corporate crime and making amends”. American Criminal
Law Review, 44/2007, p. 1307-1318. conhecimento sobre as estratégias corporativas para responder aos problemas
445. LAUFER, William. “Social accountability and corporate greenwashing”. Journal of Business Ethics,
43/2003, p. 253-261. e oportunidades que decorrentes dos processos de vitimização.
446. Tem sido amplamente bastante discutido, por exemplo, o discurso de Matthias Müller, em janeiro de
2016, na Detroit Auto Show: “We know we deeply disappointed our customers, the responsible go- Além de escala (larga, média e menor potencial ofensivo) e das categorias
vernment bodies, and the general public here in the U.S. (…). I apologize for what went wrong at
Volkswagen (…) We are totally committed to making things right”. Em detalhes sobre a repercussão do tradicionais da vitimologia (primária, secundária e terciária), há outros níveis
caso, especialmente as críticas do advogado geral de Nova Iorque, Eric Schneiderman: “Volkswagen´s de experiência da vitimização que poderiam ser investigados no desenvolvi-
cooperation with the states´ investigation has been spotty – and frankly, more of the kind one expects
from a company in denial than one seeking to leave behind a culture of admitted deception”, estão re- mento da vitimologia corporativa452. De especial interesse para compreensão
gistrados em EWING, Jack. Faster, higher, farther… cit., p. 228-229.
447. “Evaluations of remorse play an important role in character and fitness reviews for applicants to the bar
with problematic records, but evaluations of remorse were often ad hoc applications of implicit princi- 448. “Corporations, for example, are ‘people’ in legal terms; they have ‘births’, can ‘die’, although they
ples applied impressionistically. Decisions regarding applicant´s remorse were unpredictable and often merge rather than marry. As well as being able to own property and make contracts, and so on, in their
contradicted each other within the same jurisdictions”. Smith propõe um questionário para mensurar as corporate capacity, they can also be sued and – to a limited extent – be prosecuted. Many other organiza-
apologias: “1) Has the offender corroborated the factual record?; 2) Has the ofender accepted blame for tions, public, private and voluntary, such as police forces, hospital trusts, prisons and voluntary bodies,
the crime?; 3) Does the offender possess appropriate standing to apologize and accept blame?; 4) Does are in a similar position, whether for profit or not”, SHICHOR, David et al. “Victims of investment
the offender identify each harm?; 5) Does the offender identify principles underlying each harm?; 6) Does fraud”. PONTELL, Henry; SHICHOR, David (org). From contemporary issues in crime and Criminal
the offender share a commitment to the principles underlying each harm?; 7). Does the offender recognize Justice. New Jersey: Prentice, 2001, p. 283.
victims as moral interlocutors?; 8) Has the offender expressed and demonstrated categorical regret?; 9) 449. SHICHOR, David et al. Victims of investment fraud… cit., p. 288.
Has the offender performed the apology?; 10) Has the offender demonstrated sufficient reform?; 11) Has
the offender provided appropriate redress for her offenses?; 12) Does the offender inted for the apology to 450. SHICHOR, David et al. Victims of investment fraud… cit., p. 285.
advance the victim´s well-being and affirm the breached value rather than merely serve her self-interests?; 451. SHICHOR, David et al. Victims of investment fraud… cit., p. 284.
13) Does the applicant demonstrate appropriate emotions?”. Ao final, “(…) if a a criminal offender under- 452. Mesmo que sob a delimitação da questão racial, as múltiplas escalas e níveis possíveis de vulneração à
goes the sort of moral transformation indicative of a categorical apology, do efforts on her behalf to reduce vitimização são bem analisados em DYKES, Witt. “American blacks as perpetual victims”. SCHERER,
her punishment necessariyly undermine her repentance?”, SMITH, Nick. “Justice through apologies: re- Jacqueline (org). Victimization of the weak: contemporary social reactions. Springfield: Charles Tho-
morse, reform, and punishment”. Cambridge: Cambridge Press, 2014, p. 238. mas, 1982, pp. 53-79.
152 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 153

do comportamento corporativo socialmente danoso seria: 1) vitimização pela ou de gênero), o próprio contexto social em que se produz a vitimização, ou
empresa; 2) vitimização contra a empresa; 3) vitimização dentro da empresa. ainda a qualidade das redes de suporte à vítima. Alcança também a violência
Vitimização pela empresa: neste nível, avaliam-se mais propriamente as simbólica operada no ambiente interno, gerando situações de vitimização, que
causas e consequências do comportamento corporativo socialmente danoso se estendem desde as tensões por performance e assédio a dirigentes, sharehol-
que gera processos de vitimização e dano social (social harm). As práticas de ders e empregados até intersecções de gênero ou raça454.
abuso e de violência corporativa, gerando contextos sociais de vitimização Apesar do didatismo, o esforço classificatório diz muito sobre a natu-
direta e indireta (“invisível”), permitem identificar dois subníveis analíticos: reza e a dinâmica da vitimização no âmbito corporativo. A principiar pela
1) a empresa ofende indivíduos, comunidade, stakeholders ou o próprio Estado, invisibilidade, assim como classificado por Victor Jupp et al, nota-se a de-
remontando ao escalão tradicional da vitimologia terciária; 2) interorganizacio- pendência de uma série de fatores e das especificidades dos próprios agentes
nal, em que a empresa ofende outra empresa. A vitimização interorganizacional e comportamentos envolvidos: 1) desconhecimento (no knowledge) sobre o
mantém intersecções com o nível analítico da vitimização contra a empresa. crime, tanto individual quanto coletivo; 2) ausência de estatísticas (no sta-
A vitimização contra a empresa: neste nível, ou a empresa assume a per- tistics); 3) ausência de justificações teóricas (no theory), uma vez que se trata
sonalidade de vítima (corporate victimhood), e seu comportamento é levado de campo negligenciado pelas ciências criminais; 4) ausência de pesquisa (no
em consideração na compreensão da criminalidade interorganizacional ou, research) sobre causa ou controle; 5) ausência de controle (no control) e me-
a depender de circunstâncias em que indivíduos acumulam suficiente poder, canismos formais e sistemáticos; 6) despolitização (no politics); e, finalmente,
de indivíduos contra ela própria. Valem aqui os mesmos elementos de com- 7) ausência de pânico (no panic!), uma vez que os crimes não geram pânico
preensão da vitimologia tradicional, trajetória e estilo de vida, comportamento moral e os criminosos não são representações do mal (evil)455.
e escolha racional, lugar, formação de subculturas, propensão453, assim como a John Hagan descreve como as evidências de Marvin Wolfgang sobre
dinâmica da inversão de papéis, marcante na relação entre corporações. os “ofensores crônicos” e de que “apenas uma pequena parcela de ofensores
Os níveis de vitimização pela e contra a empresa, desde a perspectiva é responsável pela maioria das ofensas (6% de toda a população)”, em De-
multiníveis proposta nesta tese, convergem para um “nível meso”, em que linquency in a Birth Cohort, 1972, foi distorcida e apropriada por Ronald
uma série de mediações dos processos de vitimização levam a relações não Reagan para justificar o populismo punitivo da incapacitação seletiva456.
apenas entre indivíduos e empresas, mas também entre comunidades, gover- Em relação à vítima, pouco se sabe sobre a “vitimização crônica”457 e os
nos e redes de corporações multinacionais. efeitos da personalidade causados por processo de socialização marcado
A vitimização dentro da empresa permite observar várias situações com por uma série contínua de vitimização (ou como concebido na vitimologia
vítimas mais facilmente identificáveis, seja no envolvimento de indivíduos em desenvolvimental por Finkelhor, a “polivitimização” como uma condição
esquemas corporativos fraudulentos (situações em que se caracteriza a “dupla e não um evento isolado. Diferentemente da vítima de comportamento
vitimização”, tanto da empresa que oferece a oportunidade para o engajamen- 454. SIMPSON, Sally; ELIS, Lori. “Theoretical perspectives on the corporate victimization of women”.
to em comportamento socialmente danoso, quanto na imposição de padrões SZOCKYJ, Elizabeth et al (org) Corporate victimization of women. Boston: Northeastern University
Press, 1996, p. 5 e ss.
altamente arriscados de conduta e performance), quer na sobrevivência de 455. JUPP, Victor et al. “The features of invisible crimes”. DAVIES, Pamela et al (org) Invisible crimes:
their victims and their regulation. Houndmills: Macmillan, 1999, p. 3-28. Esta invisibilidade é apontada
players no mercado, ou ainda na vitimização de investidores, a determinação de como um dos principais fatores a relegar o estudo da vítima e dos processos de vitimização no âmbito
suspensão de atividades de empresas, dentre outros. Neste âmbito, observam-se corporativo a cargo de economistas, cientistas políticos e filósofos da moral, RUGGIERO, Vicenzo.
Crime & Mercados: ensaios em anticriminologia. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2008, p. 116.
também contextos correlatos à vitimização corporativa, como outras infrações 456. HAGAN, John. Who are the criminals... cit., p. 107-108.
que ocorrem no ambiente corporativo (em decorrência de discriminação racial 457. “Some people may become ‘chronic victims’. Blum found three characteristics that describe this kind
of victim: one, that they were ‘always looking for a deal’; second, some of them could not resist the
aggressive sales techniques; and third, they had an unrealistic belief in other people. The plight of these
453. Uma série de testes e experimentos, com recomendação para pesquisas futuras, encontram-se em HO- victims can be neutralized by claiming that the first type of victims were ‘greedy’, and in the case of the
PKINS, Matt. “Crimes against business: the way forward for future research”. British Journal of Crimi- other two types of victims that they had not learned from their experiences while they should have done
nology, 42/2002, p. 782-797. so”, SHICHOR, David et al. Victims of investment fraud… cit., p. 212.
154 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 155

abusivo que insiste em mantê-lo458, shareholders persistem em comporta- “devastadoras para a vítima, família e público”463. Debbie Deem et al descreve-
mento arriscado mesmo havendo sido afetados por esquema fraudulento, ram esta reverberação dos efeitos na perda da confiança nas interações sociais
não evidenciam (non-disclosure) e seguem, sem aprendizagem ou mudan- e afetação, em maior ou menor medida, da capacidade de julgamento ético
ça significativa de comportamento vitimal frente à infração corporativa, por parte das vítimas. Os crimes financeiros, pela sua própria complexidade,
mesmo a recente noção de vitimização quaternária pode auxiliar a com- despertando a necessidade de estudo em maior profundidade científica sobre
preender a vitimização corporativa, a se pensar em investidores apegados questões de comportamento abusivo e conflito vitimal (assim como vítimas
à sensação subjetiva de engano e temor à reincidência em vitimização. Se, e ofensores que persistem no relacionamento arriscado, os investidores e em-
por um lado, os níveis tradicionais de vitimização (primário, secundário e presas também podem simplesmente não encontrar condições psíquicas para
especialmente o terciário, em que exercem papel decisivo os stakeholders), deixar a relação). Debbie Deem et al acrescentam que vitimização por fraudes
igualmente, tem muito a oferecer do ponto de vista explicativo, por outro, no passado aumentam o risco de futura vitimização, daí porque seria também
a falsa vitimização, movida pela retórica dos shareholders inocentes459, leva o caso de vitimização repetida ou crônica464.
a estados comprometedores de fanatismo moral. Faltam estudos sobre a seriedade da ofensa e da persistência da se-
As infrações econômicas, cada qual, revela afetação específica e proces- riedade da vitimização experimentada, níveis de disclosure, levando-se em
sos de vitimização muito próprios. A vitimização no âmbito do colarinho consideração as razões que levam à colaboração ou à recusa, ou ainda percep-
branco é apenas mencionada em alguns estudos460. Michael Levi, também ção da satisfação com as autoridades, reguladores e fiscalizadores, ademais do
se reportando ao fato de que a vitimização do colarinho branco não car- ambiente ético em que se realizam os negócios. Sabe-se muito pouco sobre
rega a “bagagem emocional” dos crimes tradicionais, evidenciou que esta o comportamento dos stakeholders, expectativas e aflições.
criminalidade dos poderosos, quando chega aos tribunais, não passa de
Tampouco a dinâmica da vitimização corporativa pode ser apreendida
fraude convencional, do tipo “blue-collar crime”, sendo que as vítimas que
neste esforço classificatório inicial. A construção de escalões vitimológicos e
reclamam a atuação do Sistema de justiça criminal, são em maioria (85%)
multi-escalas de vitimização deveria abranger estados emocionais negativos,
organizações pleiteando compensação461. Roberto Galang analisa a vitimi-
essenciais à restauração do conflito vitimal: sensação de alienação, vergonha,
zação no âmbito da corrupção política, avaliando o impacto negativo na
humilhação, rejeição, abandono, depressão, recusa, hostilidade, projeção,
performance empresarial462. Esta discussão, no entanto, não alcança o pro-
ressentimento465. O reconhecimento dos processos de vitimização corpora-
blema da empresa como vítima.
Corporações vítimas da especulação financeira é igualmente campo fértil 463. “Measuring the financial losses of financial crime is often extremely difficult, especially if victims are
geographically dispersed and report only to their local police agencies, thereby making it impossible ti
de investigação científica. O caráter sistêmico pode chegar como imperceptível aggregate the data about individual perpetrators. Assessments of the financial impact must alos take into
account the fact that for some crimes, few incidents are reported but the losses are high. Other financial
no cotidiano das pessoas, mas as consequências do crime financeiro podem ser consequences to individuals include the loss of homes, life savings, pensions, children´s college funds,
and inheritances. Victims gone into debt, declared bankruptcy, had bank accounts frozen or closed so
that thtey can no longer pay bills or conduct business, been pursued by collection agencies, been sued,
458. TREMBLAY, Richard. “Developmental origins of aggression”. LOEBER, Ralf; WELSH, Brandon or been charged criminally for unknowingly depositing and drawing on counterfeit checks”, DEEM,
(org). The future of criminology. New York: Oxford Press, 2012, p. 20-29. Debbie; NERENBERG, Lisa; TITUS, Richard. “Victims of financial crime”. DAVIS, Robert et al (org)
459. LAUFER, William. Where is the moral indignation… cit. Victims of crime. 4. ed. Los Angeles: sage, 2013, p. 195-196.
460. GEIS, Gilbert. “Victimization patterns in white collar-crime”. DRAPKIN, I; VIANO, E. (org) Victimo- 464. “Because past fraud victimization raises the risk of future victimization, special attention should be
logy: a new focus – exploiter and exploited. v. 5. Lexington: D. C. Heath, 1975, p. 89-105; VAUGHAN, focused on ‘repeat’ or ‘chronic’ victims. (…) Some financial crime involve thousands of victims; en-
Diana et al. “Victims of fraud: victim responsiveness, incidence and reporting”. VIANO, Emilio (org) suring their rights is among the most challenging problems facing criminal justice and victim services
Victims and society. Washington: Visage, 1976, p. 403 e ss. providers today. Mass victim notification management systems, using advanced technologies, should be
461. “(…) The smaller frauds are typically what might be described as ‘hit-and-run’ thefts against banks and used to identify and notify the thousands of victims throughout the United States and around the world,
credit card companies by ‘blue-collar males’. The larger ones typically involve more social and commer- helping them to contribute impact statements, receive institution, and achieve other fundamental rights”,
cial interaction between victims and offenders, and are carried out by white-collar males using business DEEM, Debbie et al. Victims of financial crime… cit., p. 205.
organizations who defraud, on average, twice as many victims as do the others. (…) The measurement 465. “They may also include a lack of emotional states associated with the properties of nonviolence such as
of this damage, however, extremely difficult to ascertain. This issue of measuring victim impact raises empathy and compassion stemming from positive experiences of love, security, attachment, bonding,
problems for retributivists”, LEVI, Michael. White-collar victimization… cit., 172-173, 177. identification, altruism, mutualism and so on. Polarity between victim and offender is not clear. (…)
462. GALANG, Robert. “Victim or victimizer: firm responses to government corruption”. Journal of Manage- The phrases ‘offender and victim’ are used with reluctance in this paper. We are mindful of the complex
ment Studies, 49/2012, p. 434 e ss.; veja-se também NELKEN, David; LEVI, Michael. “The corruption of identities people construct for themselves throughout their lives, yet in the proceedings available with
politics and the politics of corruption: an overview”. Journal of Law and Society, 23/1996, p. 1-17. restorative justice programs and the rituals of emotional reparations, people come to conferences with
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tiva atrai as emoções e, com elas, novas formas de percepção e legitimação ciências sociais, nem muito menos pela criminologia econômica.
da responsabilidade466. Este nível negligenciado deve ser levado à restaura- Inicialmente, não cabia nesta reorientação normativa a partir dos sta-
ção, a principiar pela inclusão da percepção da vítima sobre os impactos do keholders uma revisão profunda na gestão negocial, mas simplesmente gerar
comportamento corporativo socialmente danoso na sua vida ou na dinâ- responsividade às demandas externas ao lucro empresarial, de tal forma que
mica da organização467. Emoções, no entanto, não devem ser consideradas os executivos assumam a responsabilidade por seus atos no ambiente exter-
apenas para as medidas sancionatórias, podendo integrar-se à perspectiva no à empresa. Edward Freeman, no entanto, busca maior profundidade na
mais ampla, na qual se soma ao juízo sobre o merecimento de pena, cons- revisão da condução da atividade empresarial. Desde orientação filosófica
trução social da vitimização ou prevenção da revitimização e, como elemento marcada pela justiça distributiva, lançou as bases do clássico “Stakeholders
central, nas práticas restaurativas. management”, sustentando-o na priorização de stakeholders e treinamento
e participação simulada nos processos de tomada de decisão: (1) relevância
5.2.1. STAKEHOLDERS COMO VÍTIMA absoluta dos efeitos da ação em outros e também no gestor; (2) compreensão
A teoria dos stakeholders vem como crítica aos cânones do pensamento do contexto societário, comportamento e valores dos stakeholders, demons-
econômico clássico, tais como Milton Friedman, Michael Porter, Michael trando claramente “o que apoiamos”; (3) delimitação precisa das respostas ao
Jensen, e Oliver Williamson – markets, business strategy or industry structure; “o que apoiamos”; (4) análise das relações entre os stakeholders em três níveis
agency relationships; transaction costs (“confiança no mercado”; “estrutura de – racional ou “integral” (organizational as a whole), processos ou procedimen-
negócio ou indústria”; “relações de agência”; “custos de transação”) – , mar- tos operacionais padrão, e transacional, baseado nas negociações cotidianas;
cando posição no debate científico a partir da oposição entre shareholders e (5) revisão do planejamento estratégico para inclusão dos stakeholders; (6)
os stakeholders468. A gênese da teoria dos stakeholders remonta a uma nova equilíbrio dos interesses dos stakeholders ao longo do tempo470.
compreensão do negócio na sociedade moderna, trazida pelo aumento cres-
Para além do sobrecultivo metateórico (ou “extra-teórico”, extra-theo-
cente da consciência social sobre o impacto das organizações empresariais nas
retic) dos cânones da ética negocial, a estratégia de Freeman é encontrar
comunidades e mesmo nações inteiras. Este protagonismo das corporações
“no mundo real pessoas que estão cada vez mais conscientes dos efeitos do
operou uma verdadeira “revolução normativa” (Normative Revolution) da
capitalismo em todas as partes de suas vidas”, de tal forma que o problema
sociedade moderna469, nem sempre acompanhado por maior dedicação das
da ética negocial expressa o problema da ética do capitalismo471, deman-
these roles already ascribed or acquired. Furthermore, the scripted model of conferencing implicitly
dando maior esforço para uma oposição científica mais vigorosa frente à
and explicitly requires participants to accept these labels. When participants reascribe their roles during
the conference (“I´m a victim here, too!”, says the offender), the emotional dynamics of the process
agressividade empresarial e a indiferença das corporações às pessoas e à
become more contested”, COOK, Kimberly; POWELL, Chris. “Emotionaly, Rationality and Restora- dinâmica da vida em sociedade.
tive Justice”. DeKESEREDY, Walter; PERRY, Walter (org). Advancing critical criminology. Lanham:
Lexington, 2006, p. 83-100.
466. A restauração do conflito vitimal não deve ser moralmente neutra, AHMED, Eliza; HARRIS, Nathan;
Atrelar a esta orientação normativa uma inteligente rearticulação da
BRAITHWAITE, John; BRAITHWAITE, Valerie (org). Shame management through reintegration. condução da atividade empresarial orientada pelos stakeholders. Em quase
Cambridge: Cambridge Press, 2001, p. 315 e ss.; em sentido próximo, HOCHSCHILD, Arlie. “Emotion
work, feeling rules, and social structure”. American Journal of Sociology, 85/1979, p. 551-575. trinta anos de produção científica, os desenvolvimentos da teoria dos sta-
467. “(…) emotions are not just involuntary or irrational responses; they are often companion with our ratio-
nal knowledge of the world and willful choices made in response to a particular circumstance”, COOK, keholders especializaram a investigação de iniciativas inovadoras de se fazer
Kimberly; POWELL, Chris. Emotionaly… cit., p. 85. negócio, identificando o que pode ou não funcionar como estratégia para
468. FREEMAN, Edward; REED, D. “Stockholders and stakeholders: a new perspective on corporate gover-
nance”. California Management Review, 15/1983, p. 88-106. compartilhar os benefícios com a comunidade e os demais stakeholders.
469. Bastante representativos sobre o impacto científico da teoria dos stakeholders, ABLE, Bradley; DO-
NALDSON, Thomas; FREEMAN, Edwar; JENSEN, Michael; MITCHELL, Ronald; WOOD, Donna.
et al. “Dialogue: Toward superior stakeholder theory”. Business Ethics Quaterly, 18/2008, p. 153-190. que os “managers must ascribe some intrinsic worth to stakeholders”.
No discurso de Donaldson (p. 175), especialmente, dá-se por invencível a necessidade de determinar 470. FREEMAN, Edward. Stakeholders management: a stakeholder approach. Boston: Pitman, 1994, p. 4.
o lugar das corporações, como aspecto intrínseco à revolução normativa da sociedade moderna: “The Estas questões, posteriormente, integraram o projeto de ampliação da noção de estratégia corporativa
corporate function must be justified by something more than the model of unconstrained voluntary tran- (corporate strategy) das teses de Freeman, FREEMAN, Edward; GILBERT, D. R. Corporate strategy
sactions in an idealized world of individuals. We begin to understand that we must at some point ask for and the search for ethics. Nova Jersey: Prentice-Hall, 1988.
the normative basis of markets in general, and for the normative basis of the corporation”, de tal forma 471. FREEMAN, Edward, Stakeholders management… cit., p. 4.
158 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 159

Genericamente, stakeholders são grupos ou indivíduos que detêm um É em torno deste princípio que se organizam os quatro pilares da revisão da
stake no sucesso ou fracasso do negócio. Mais tarde, a noção de stake foi ética negocial a partir da teoria dos stakeholders: (1) a falácia da separação
incorporada a uma estratégia mais ampla, definindo-se o stakeholder como (não há como haver decisão negocial sem conteúdo ético); (2) o argumento
todo aquele que afeta ou é afetado pelos propósitos da corporação (corpora- da questão em aberto (determinar valores criados/destruídos; quem é ou não
tion´s purpose)”472. Sob esta liderança de Edward Freeman, a teoria evoluiu lesionado; direitos realizados/suprimidos depende de verificação em função
significativamente, dominando três âmbitos especiais da gestão negocial, de- de contextos concretos de tomada de decisão); (3) a tese da integração (não
nominados “mecanismos básicos da teoria dos stakeholders”: (1) os processos há sentido em se falar em negócio sem ética; não há sentido em se falar em
de criação de valor (value creation) e negócio (trade); (2) o problema da ética ética sem negócio; não há sentido em se falar em negócio e ética sem falar em
do capitalismo (Freeman, fortemente influenciado pelas ideias sociológicas pessoas); (4) princípio da responsabilidade (aceitar a responsabilidade pelos
de William Evan473 e da confluência de ideias na Wharton School474); (3) o atos com base no impacto nos atos de outros)480.
problema da mentalidade gerencialista (managerial mindset) 475. Com base nestes pressupostos, Freeman introduz uma estratégia bas-
A criação de valor é tensionada pelas contradições de um mundo social tante promissora na condução do comportamento corporativo. Não se trata
no qual os efeitos nefastos e a permanente instabilidade – “turbulência”476 – de postura meramente gerencialista ou da orientação mais ou menos orto-
do capitalismo convivem com o desprezo das questões éticas, frequentemente doxa de modelações para a criação de vantagem competitiva. É muito mais
isoladas em um plano “extra-teórico, senão completamente irrelevante”477. do que isso. Freeman cria a plataforma a partir da qual se torna possível
Esta tensão é frequentemente marcada pela polaridade entre, de um lado, tur- mensurar a efetividade das práticas empresarias na realização do conteúdo
bulência, e de outro, movimentos de “rerregulação do negócio” (reregulation ético: “A teoria dos stakeholders consiste na criação de valor e negócio e como
of business), cujo impacto afeta sensivelmente a “mentalidade gerencial” (ma- gerenciar o negócio de forma efetiva. ‘Efetivo’ pode ser visto como ‘criar o
nagerial mindset) e no plano mais prático de formação profissional e tomada máximo de valor possível’”481.
de decisões éticas478. Daí porque Freeman se refere à “ética negocial como A criação de valor retoma a ideia de que o negócio é um conjunto de
oxímoro”, ao sustentar que a maior parte das abordagens da ética expressam relações entre grupos que tem um stake nas atividades negociais. É partir
orientações normativas que não se concretizam nas práticas corporativas479. destas interações que se pode observar as estratégias de criação de valor, de-
monstrando o emprego responsável dos recursos da empresa e as formas de
472. FREEMAN, Edward, Stakeholders management… cit., p. 54.
473. EVAN, William. “The organization-set: toward a theory of inter-organizational relations”. THOMPSON, alocação com base no comportamento, potencial cooperativo e ameaça de
J. D. (org) Approaches to organizational design. Pittsburgh: University of Pittsburgh, 174-190; EVAN,
William; FREEMAN, Edward. “A stakeholder theory of the modern corporation: Kantian capitalism. BE- competição entre cada um dos grupos de stakeholders. A questão, portanto,
AUCHAMP, T et al (org) Ethical theory and business. New Jersey: Prentice-Hall, 1993, p. 97-106. não é impor uma modelação abstrata sobre a forma de gestão, ou mesmo da
474. Tradicionalmente, a revisão crítica da ética do capitalismo foi abrigada na Wharton School por uma
série de pesquisadores e ampla produção científica. Especialmente em relação aos vínculos possíveis imposição abstrata de uma ontologia da integridade empresarial482, mas sim
entre direito e a teoria dos stakeholders, ORTS, Eric. “Beyond shareholders: interpreting corporate
constituency statutes. George Washington Law Review. 61/1992, p. 14-135; ORTS, Eric. “A North Ame- examinar, em função de cada contexto empresarial, como cada um dos stakes
rican legal perspective on stakeholder management theory”. PATFIELD, F. M. (org) Perspectives on
Company Law. The Hage: Kluwer Law, II, 1997, p. 165-179. em questão opera no processo de criação de valor483.
475. FREEMAN, Edward et al. Stakeholders theory: the state of the art. New York: Cambridge Press, 2010, p. 3.
476. FREEMAN, Edward. Stakeholders theory… cit., p. 4. 480. FREEMAN, Edward. Stakeholders theory... cit., p. 6-10.
477. FREEMAN, Edward. Stakeholders theory... cit., p. 4. Freeman et al, apesar de reconhecer o potencial 481. FREEMAN, Edward. Stakeholders theory... cit., p. 9.
explanatório da teoria dos sistemas (notadamente Russell Ackoff e C. West Chruchman), criticam a 482. Em oposição a ERHARD, Werner; JENSEN, Michael; ZAFFRON, Steve. “Integrity: a positive model
elaboração de um sistema dos stakeholders: “(...) to create the future of the stakeholder system which that incorporates the normative phenomena of morality, ethics and legality”. Harvard Business School
includes the utility, consumer group, and other stakeholders is a much more difficult, if not impossible, NOM working paper, 2014, p. 04 e ss.
task. The systems model of stakeholders, by emphasizing participation, is a far-reaching view of the na- 483. FREEMAN, Edward. Stakeholders theory... cit., p. 25-26. Freeman, juntamente com Emshoff, intro-
ture of organizations and society. It continues to be quite useful in problem formulation, and represents duziu a questão da “legitimidade da gestão” (managerial legitimacy), explicitando a estratégia como
an ongoing stream of research using the stakeholders concept. It is not, however, focused on solving os gestores realizam os propósitos da corporação de modo inclusivo aos stakeholders, FREEMAN,
strategic management problems which are narrower than total system design”, FREEMAN, Edward. Edward; EMSHOFF, J. “Who´s butting into your business?” Wharton Magazine, 4/1979, 58-59. Amitai
Stakeholders theory... cit., p. 40. Eztioni, no entanto, discute a legitimação do processo de stakeholding, avaliando os resultados nem
478. FREEMAN, Edward. Stakeholders theory... cit., p. 4. sempre positivos em termos de investimento financeiro, questões laborais, gestão de recursos escassos,
479. FREEMAN, Edward. Stakeholders theory... cit., p. 6. dentre outros, ETZIONI, Amitai. “A communitarian note on stakeholder theory”. Business Ethics Qua-
160 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 161

Os pontos de convergência 484 entre a teoria dos stakeholders e a 5.3. VIOLÊNCIA CORPORATIVA E CORPORTAMENTO
criminologia econômica não poderiam ser mais promissores. É claro que CORPORATIVO SOCIALMENTE DANOSO
se os stakeholders são concebidos como vítimas, a vitimização corporativa
Quando Milton Friedman, quase como um apologeta, publicou no
poderia integrar, sem maiores dificuldades, as análises de stakeholders. A
New York Times que a responsabilidade social da empresa é incrementar
determinação das práticas corporativas orientadas ao stakeholder como
seu lucro486, suas teses sobre o capitalismo liberal e a maximização do inte-
vítima poderia ser incorporada como estratégia de criação de valor em
resse dos shareholders repercutiram como verdadeira justificação formal da
relação ao que realmente deveria ser priorizado. No entanto, um dos
agressividade corporativa (corporate greed) e egoísmo racional no ambiente
aspectos de divergência mais problemáticos tem lugar na cisão entre
empresarial. A crítica às teses de Milton Friedman e uma análise definitiva da
agente e principal e entre shareholders e stakeholders. Em regra, conside-
agressividade corporativa mereceriam teses próprias487, embora sem elas não
ram-se vítimas apenas os shareholders. Os stakeholders estão, por outro
se possa pensar a vitimologia corporativa. Por agora, a referência à violência
lado, subrepresentados no sistema de justiça criminal e completamente
corporativa e à compreensão do comportamento corporativo socialmente
negligenciados do direito penal econômico. Se os stakeholders são con-
danoso já poderiam oferecer referencial suficientemente seguro.
cebidos como vítimas, a vitimização corporativa poderia integrar, sem
maiores dificuldades, as análises de stakeholders. Alfred Marcus e Robert Ralph Nader, em 1965, com seu Unsafe at any speed488, empenhou larga
Goodman discutiram mais especificamente os possíveis conflitos entre campanha de denúncia aos abusos da indústria automobilística e a certa re-
shareholders e vítimas em contexto de crise e escândalos corporativos. signação a alocação de recursos em padrões de segurança no setor. Ainda que
Tomando como pressuposto a cisão entre vitimização concreta e difusa rudimentar, esta discussão é bastante relevante para a compreensão histórica
(assumindo que “a vítima difusa de um escândalo não representa uma das dimensões da violência corporativa, que vai para muito além do dano
ameaça à empresa como as vítimas concretas de um acidente”), Marcus e imediato causado ao consumidor. A questão foi judicializada pela própria
Goodman elaboraram recomendações para atuação negocial pró-ativa no General Motors (Nader v. General Motors Corp., Court of Appeals of New
caso de vítimas concretas, diferentemente dos casos de vítima difusa, para York, 1970). Nader acusou as técnicas de neutralização da GM e ostensiva
as quais bastariam políticas de acomodação de interesses485. Ainda pior perseguição pessoal contra ele, defendendo-se com base na convicção da
do que a analítica de Marcus e Goodman centrada na figura de geração consistência científica dos seus argumentos.
de valor aos shareholders, os stakeholders acabam envolvidos em “dupla Marshall Clinard, em Corporate Corruption, reproduzindo o mesmo
vitimização” (double victimization), expostos quando diretores de alto senso de indignação quanto ao fato de as corporações produzirem mais
escalão os pressionam a envolver-se em infrações econômicas e quando a dano social do que a criminalidade de rua e apesar disso permanece alheias
corporação impõe práticas reprováveis para extrair o maior proveito deles. à reprovação moral, demonstra a resistência das corporações em regular o
Além de empregados, consumidores e fornecedores, o papel da comu- comportamento socialmente danoso, documentando com amplo inventá-
nidade local será analisado na sequência. rio de más práticas e casos polêmicos de violência corporativa489. Apesar
de haver gradativas alterações no campo dos sentimentos e das melhores
terly, 8/1998, p. 679-691.
484. A estratégia de identificação de convergências, também aqui, é central. Linda Treviño et al discutem as 486. FRIEDMAN, Milton. “The social responsibility of business is to increase its profits”. New York Times,
várias convergências possíveis e propõem a noção convergente de organizational-stakeholder relations, 13.09.1970.
TREVIÑO, Linda; WEAVER, Gary. “The stakeholder research tradition: converging theorists: not con- 487. FRIEDMAN, Milton. Capitalism and freedom – 40th anniversary edition. Chicago: University of Chi-
vergent theory”. Academy of Management Review, 24/1999, 222-227. cago Press, 2002, 202 p. Além da crítica orientada à teoria dos stakeholders de Edward Friedman, as
485. MARCUS, Alfred; GOODMAN, Robert. “Victims and shareholders: the dilemmas of presenting corpo- teses de Friedman foi objeto de inúmeras oposições científicas. Veja-se, a título ilustrativo, STOUT,
rate policy during a crisis”. Academy of Management Journal, 34/1991, p.281-305. O problema, assim Lynn. The shareholder value myth: how putting shareholders first harms investors, corporations, and
o pensamos, é que esta “mera acomodação de interesses” encontra certo respaldo nas autoridades de en- the public. San Francisco: Berrett-Koehler, 2012, 133 p.
forcement. Em crítica a semelhante, Jeffrey Reiman entende que “if the criminal justice system began to 488. NADER, Ralph. Unsafe at any speed: the designed-in dangers of the American Automobile. Detroit:
prosecute – and if the media began to portray – those who inflict indirect harm as serious criminals, our Grossman, 1965. Sobre o caso, veja-se também CULLEN, Francis et al. Corporate crime under attack:
ordinary moral notions would change on this point as well”. Danos indiretos não podem ser resumidos a the Ford Pinto case. Cincinatti: Anderson, 1987, 398 p.
uma simples falha regulatória ou déficit de organização, REIMAN, Jeffrey. The rich get richer... cit., p. 69. 489. CLINARD, Marshall. Corporate corruption: the abuse of power. New York: Praeger, 1990, p. 91 e ss.
162 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 163

práticas, a publicidade negativa e pressão de grupos sociais ainda são bem concepção do dano físico causado por ‘ações violentas’ de empresas”493. A
pouco significativas diante do enorme potencial lesivo das práticas corpo- intervenção estatal em regra é desacreditada ou logo desmoralizada por sus-
rativas danosas. peição de preferências políticas494.
A definição de Ronald Kramer encontra seus limites na exposição a E isso sem falar na hostilidade aos pobres (hostility toward the poor).
perigo à integridade dos empregados provocada pela organização490. Stuart Jeffrey Reiman, também próximo a uma denúncia, evidencia certa afinidade
Hills491 define violência corporativa (corporate violence) a partir do dano entre violência e a dinâmica concreta do Sistema de justiça criminal. Em refe-
imediato e risco de dano ao consumidor, empregados e público em geral, rência aos crimes de colarinho branco, Reiman distingue as várias expressões
derivado de decisões advindas de pessoas que ocupam hierarquia relevante na da seriedade da infração e do comportamento violento: 1) é altamente custoso
empresa. A noção de violência corporativa pode ser resultado tanto de viola- (“it takes far more dollars from our pockets than all the FBI Index crimes
ções intencionais (willfull violation) quanto de conduta negligente (corporate combined”); 2) altamente difundido na sociedade (“probably much more so
negligence) por parte da corporação, orientada pela noção de lucro a qual- than the crimes of the poor”); 3) raramente investigados e sujeitos a uma série
quer preço. Os campos em que a violência corporativa seria mais facilmente de tratamentos diferenciados à “clientela de classe alta”; 4) nos poucos casos
perceptível remontam ao âmbito da saúde, segurança na cadeia produtiva em que chegam a uma sentença condenatória, resposta penal é insuficiente e
(safety) e dano ambiental. Apesar de que a gestão da cadeia produtiva em regra desproporcional frente aos custos que impuseram à sociedade495. Paralelamente
atende a procedimentos bastante estritos e muito controlados, produzindo a este desconcerto, a dificuldade de apreensão do dano é comumente apontada
inequívoca consciência do potencial lesivo e até fatal dos produtos, a relação na literatura496, assim como dano direto e indireto497. Francis Cullen et al agre-
entre os benefícios trazidos pela corporação e os danos que ela causa turvam gam investigações empíricas nas quais se demonstra o aumento da incidência e
a percepção pública sobre os processos de vitimização e violência corporativa. a intensidade dos crimes do colarinho branco, com protagonismo da violência
No cerne da questão, o velho entrave criminológico da falta de indig- indireta veiculada nos processos de fixação ilegal de preços (price-fixing)498. Este
nação frente à criminalidade corporativa em relação à criminalidade de ruas, tipo de abordagem sobre a seriedade do crime poderia ser muito útil como
que faz com que o enorme dano causado pelos “respeitáveis” executivos, “os
493. HILLS, Stuart. Corporate violence… cit., p. 2.
quais impessoalmente matam mais (cidadãos) do que os homicidas con- 494. “In a nation where the prevailing view has traditionally been that ‘business is business’, not crime, many
vencionais” 492, seja facilmente diluído no campo das percepções públicas Americans seem to alternate between shock and outrage at the latest exposé of corporate wrongdoing,
and cynical resignation that, when it comes to ‘making a buck’, anything goes”, HILLS, Stuart. Corpo-
sobre o comportamento corporativo socialmente danoso. Em anotações ao rate violence… cit., p. 3.
495. REIMAN, Jeffrey. The rich get richer… cit., p. 109. Próximo, LEVI, Michael. “Transnational White-
sistema de justiça norte-americano, que sem maiores dificuldades poderiam -collar crime: some explorations of victimization impact”. PONTELL, Henry; SHICHOR, David (org).
Contemporary issues in crime & criminal justice: essays in honor of Gilbert Geis. New Jersey: Prentice
ser replicadas no Brasil, Hills afirma que “uma orientação individualista pro- Hall, 2001, p. 353.
fundamente enraizada do sistema de justiça criminal geralmente obstrui a 496. David Friedrichs discute que em alguns casos “the harm of much white-collar crime is a function of
making the pursuit of profit or economic efficiency paramount over all other objectives. More to the
point, corporations and professionals have often been prepared to put their workers, customers, and the
490. “(…) corporate violence is corporate behavior which produces an unreasonable risk of physical harm general public at higher risk of harm if their course of action is seen to enhance profit or result in lower
to employees, the general public, and consumers, which is the result of deliberate decision-making by risk of loss, or to achieve some other organizational objective”, FRIEDRICHS, David. Trusted crimi-
persons who occupy positions as corporation managers or executives, which is organizationally based, nals… cit., p. 11.
and which is intended to benefit the corporation itself”. KRAMER, Ronald. “A Prolegomenon to the 497. “The specific, direct harms that can be linked to the financial system activities are well understood:
Study of Corporate Violence”. Humanity and Society 7/1983, p. 166. millions of lost homes, jobs, and savings, along with broad and devastating effects on the physical and
491. HILLS, Stuart. Corporate violence: injury and death for profit. New Jersey: Rowman&Littlefield, mental well-being of millions of people. It is impossible to explore larger issues here that can be linked
1987, p. vii. to all this, such as the dramatic increase in the unequal distribution of wealth and income, the case that
492. “Public understanding of corporate violence is vague, obscured by crime statistics and the preoccupa- high income is not earned, for the most part, in terms of merit and effort, and the multiple harmful effects
tion of law enforcement officials and the public with violent street crimes reinforcing the popular belief on society and its citizens of intensifying socioeconomic inequality. More narrowly, it has been a core
that harmful, illegal acts are perpetrated mainly by the pathological, the poor, and the powerless. I hope argument (…) that unless the inherently criminal and criminogenic nature of the present architecture of
(…) to heighten awareness of the vast of serious harm caused by the illegal acts of “respectable” busi- the system of high finance in our society is fully recognized and addressed, we are destined to endure
ness exectuives who impersonally kill and many more Americans than street muggers and assaltants. ongoing cycles of financial crises, with often devastating losses imposed on a wide range of people –
These highly publicized, conventional street crimes, however, still evoke the most immediate fear in but with those at the top of the financial system coming out ahead”. FRIEDRICHS, David… Trusted
the public, command the largest share of our law enforcement resources, and more importantly, divert criminals… cit., p. 11.
attention from the crimes of the privileged and powerful groups in America”, HILLS, Stuart. Corporate 498. CULLEN, Francis et al. “The seriousness of crime revisited: have attitudes toward white-collar crime
violence: injury and death for profit. New Jersey: Rowman & Littlefield, 1987, p. vii. changed?”. Criminology, 20/1982, p. 83-102.
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indicador da intensidade da violência corporativa. para evitar a responsabilização)500. A vitimologia corporativa encontra seu
Alguns poucos pesquisadores se dedicaram a mensurar a vitimização ponto de partida precisamente na superação destes argumentos.
gerada pelo comportamento corporativo socialmente danoso. Grant Stitt e Dentre os clássicos do pensamento vitimológico, os estudos combina-
David Giacopassi, intuitivamente, listaram um pequeno inventário de vitimi- dos entre violência e vitimização, mediados pela noção de dano, é uma das
zação corporativa: acidentes de trânsito provocados por falha na produção do principais estratégias de pesquisa501. Nesta busca de possíveis convergências
veículo, morte induzida pelo consumo de tabaco, quase 300 mil mortes por para a propositura de uma vitimologia corporativa, a estratégia parece igual-
doenças cancerígenas provocadas pelo asbesto, danos às mulheres provocados mente válida. No que diz respeito mais particularmente à mediação do dano,
por fraudes nos contraceptivos, trabalhadores padecendo de pneumoconiose, o conceito de comportamento corporativo socialmente danoso (corporate
tragédias ambientais, catástrofes naturais com a cumplicidade de decisões cor- harmful wrongdoing) pode ser bastante significativo. Apesar da dificuldade
porativas. Curiosamente, a consequência lógica deste inventário é que “ser um de apreensão de seus elementos mais básicos, há algum acúmulo conceitual.
cidadão americano equivale a ser vítima do dano corporativo”499. Dano à vítima, nos termos do relatório do National Institute of Justice
O referencial teórico a partir do qual Stitt e Giacopassi desenvolvem a – The Criminal Justice Response to Victim Harm, abrange “os efeitos integrais
avaliação dos processos de vitimização supera a diferenciação entre condutas da vitimização, incluindo aí o trauma psicológico, o dano físico e as perdas
intencionais e simples violação de dever de cuidado pela utilização de um financeiras. Para algumas vítimas, as perdas, multas e acordos podem não passar
conceito único de “ato corporativo” (corporate act), o qual, dolosamente ou de meros inconvenientes; para outras, o crime pode representar sua completa
não, produz um dano corporativo. Mesmo assim, os comentários de Stitt incapacitação; e, para vítimas de homicídio, a perda da vida ou os custos da
e Giacopassi não passam de reprodução do senso comum na matéria. Não sobrevivência desafiam a capacidade de mensuração”502. Somando-se a esta
apenas porque Stitt e Giacopassi, como na maior parte dos casos, não têm gradação entre custos mais ou menos tangíveis ou intangíveis, está a classi-
a dimensão dos processos de vitimização “sem vítima” e não apreendem a ficação em função das consequências da vitimização, que podem ser físicas
dinâmica do risco corporativo e suas dimensões que ainda permanecem sem (em gradação de lesões imediatas à morte) ou mentais (crises, transtornos de
a devida atenção da criminologia econômica: o risco moral (moral hazard) stress, transtornos pós-traumáticos, crises de longa duração, depressão e abuso
e o risco sistêmico (systemic risk). Mas também e principalmente porque de substâncias). Lynne Henderson acrescenta as consequências sociais (que se
não superam o estado de inconsciência sobre a vitimização. Simplesmente estendem do isolamento ao suicídio, passando pela invalidação), que afetam
se apoiam na classificação de Clinard e Yeager, no conceito de vítima de sensivelmente as interações sociais e o envolvimento com as instituições, o que
Emílio Viano, no critério de dano (harm) a partir de Stuart Mill e Feinberg, pode inclusive agravar as demais consequências da vitimização503. Ted Miller
incluindo aí a noção de dano social e consentimento, na tipologia de vítimas
500. STITT, Grant; GIACOPASSI, David. Assessing victimization… cit., p. 60 e ss.
elaborada por Sellin e Wolfgang (primária, secundária, terciária), e, ao lado 501. REISS, Albert et al. Understanding and preventing violence: social influences. Washington: National
de Shichor, chamam a atenção para os stockholders como vítimas. O que mais Academy Press, 1993, 582 p.
502. “Certain levels of harm are measurable, e.g., number of days in the hospital, full or partial paralysis;
incomoda, no entanto, é o fato de que os autores não oferecem alternativa à but the lastin trauma, the destructive and damaging psychic effects, are much more difficult to assess.
How does one measure the damage to an elderly person caused by the fear he or she feels about entering
negativa disciplinar da criminologia em relação às vítimas da criminalidade a dark house because of a burglary? How can a woman be compensated for her inability fo form an
intimate relationship with a man because she has been raped? How can we measure the loneliness and
corporativa, reproduzindo, da mesma forma mecânica, os argumentos que grief a parent feels whose child has been murdered? Victim har is not just the broken arms, black eyes,
explicam apenas a razão por que se negligencia a área (dano reduzido ou lost wallets, or medical bills; it is also fear and loneliness, shame and depression, frustration and hatred”,
FORST, B. E. et al. Criminal Justice Response to Victim Harm. US Department of Justice, 1985, p. 5.
difuso, dificuldades na identificação e investigação criminal, anacronismo 503. No entanto, Lynne Henderson expõe um dos riscos da especificação do dano, que distorcer a rationale
da inclusão legítima da vítima em favor de uma mera retaliação: “Focusing on the particular harm cau-
das instituições públicas responsáveis pelo enforcement, falta de cobertura sed emphasizes retaliation. This appeal to personal vengeance may be necessary to elicit the victim´s
cooperation with the prosecution in some cases, but not all: victims may cooperate because of feelings
midiática, corporações são atores de peso político, assessoria especializada of social duty or altruism as well. And whether formalizing individual retaliation at the sentencing stage
is beneficial either to victims or to society is questionable. Explicit encouragement of a victim´s urge to
499. STITT, Grant; GIACOPASSI, David. “Assessing victimization from corporate harms”. BLANKE- realise does not necessarily aid the victim´s recovery and, as noted earlier, may foreclose the possibility
NSHIP, Michael (org) Understanding corporate criminality. New York: Garland, 1993, p. 57. of taking responsibility for the experience. Form society´s perspective, the state attempts to mediate
166 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 167

et al acrescentam os custos que a reação ao crime gera à própria sociedade: adequada para, sem limitações ou constrangimentos, exercer o perdão506. A
gastos com medidas preventivas e Sistema de justiça criminal, medo do crime, pesquisa científica deveria priorizar as estratégias mais eficazes para reestru-
serviços de assistência à vítima, custos do encarceramento, custos da obsessão turar normativamente o direito penal econômico em torno da personalidade
pela persecução, dentre outros504. Harvey Wallace e Cliff Robinson, por fim, da vítima. Este seria o caminho preferencial para uma rede de suporte e
identificam os transtornos gerados por contextos de fraude (distress situation estratégias de subjetivação, refletindo no nível de imaginação criminológica
fraud) como categoria de vitimização e o surgimento de agência orientadas a sobre o que é lesão (harm), quem é lesionado, e o que poderia ser endereçado
oferecer suporte e alívio a esta nova categoria505. como resposta justa e merecida. Enquanto perdemos a imaginação crimi-
Apesar deste esforço classificatório, a vitimologia corporativa tem nológica, também perdemos a oportunidade de enfatizar não apenas o que
muito a aprender da relação incestuosa entre violência corporativa e com- funciona (what works), mas também aquilo que realmente importa (what
portamento corporativo socialmente danoso. Comportamento corporativo really matters), a determinação humanista das ciências criminais a partir das
socialmente danoso resulta de análise multidimensional e multi-fatorial, pessoas que são sistematicamente vitimizadas pelo comportamento corpo-
remontando à combinação entre produção de danos, desarranjo no con- rativo socialmente danoso.
trole social do negócio, desarticulação entre as estratégias regulatórias. Violência corporativa e comportamento corporativo socialmente
Faltam, no entanto, análises mais consistentes sobre os limites das práticas danoso deveriam estar incorporados como estratégia de pesquisa no campo
corporativas abusivas, os nexos causais entre elas e a produção de compor- da vulneração do Estado de Direito, dos fundamentos que dão legitimidade à
tamento corporativo socialmente danoso, e sua real importância para o punição e da erosão na confiança das instituições. As próprias vítimas perdem
desenvolvimento da personalidade da vítima e proteção da comunidade. o senso de quem deve estar no epicentro da regulação. O verdadeiro desafio
Está ainda por se definir o papel integrativo das práticas corporativas na científico é encontrar o lado humano escondido nos escândalos corporativos
composição das interações sociais e na construção de coesão social. O papel e seus efeitos na distorção das normas sociais, na ruptura da coesão social. Os
do controle social do negócio e da regulação privada na desvitimização e escândalos corporativos não são apenas moralmente reprováveis, mas moral-
redução do dano ainda é inexplorado. Comportamento corporativo social- mente repugnante é a forma como a partir deles a subjetividade é alienada das
mente danoso pressupõe sua não-identidade, o comportamento pró-ativo normas jurídicas. Mensurar o dano ao nível da comunidade é mais complexo
e prossocial. Trata-se de um campo inteiro a ser explorado pela agenda de do que a simples agregação de consequências colaterais do comportamento
pesquisa da vitimologia corporativa. corporativo socialmente danoso. Há toda uma dinâmica social que agrava
As vítimas, na maioria das vezes, são pessoas nos estratos econômi- e aumenta as consequências negativas aos indivíduos, quando retornam ao
cos mais básicos. Recuperar a noção de vitimização no âmbito corporativo contexto particular das corporações afetadas por esquemas fraudulentos ou
poderia ser considerada uma das estratégias de alívio da pobreza (poverty corrupção, cujo impacto cumulativo vai da tensão organizacional às múlti-
alleviation). A falha na concepção adequada de uma vitimologia corporativa plas interações sociais que impendem sobre a formação do capital social (a
representa, em últimas circunstâncias, a perda de uma oportunidade para capacidade de indivíduos e grupos em adquirir objetivos importantes por
conceber diferentes crimes e as mais distintas naturezas da vitimização. Na meio da conexão com outros). Em últimas consequências, o comportamento
maioria dos casos, são “pessoas lesionadas (harmed), que carecem de atenção, corporativo socialmente danoso afeta severamente a conexão com o outro, na
simpatia e suporte”. Vítimas merecem cuidado (care) e uma oportunidade medida em que vulnera um importante suporte econômico e social.

among individuals in order to prevent vigiliantism and runaway vengeance, and a greater focus on
Todas estas tensões econômicas e emocionais são traduzidas no co-
invidividual retaliation may thwart this goal”, HENDERSON, Lynne. “The wrongs of victim´s rights”. tidiano em custos humanos, como falta de auto-confiança e, ao final, de
Stanford Law Review, 37/1985, p. 938 e ss.
504. MILLER, Ted et al. “Victim costs and consequences: a new look”. National Institute of Justice Research legitimidade. O efeito disruptivo é a erosão da confiança, que dá às pessoas
Report. US Department of Justice, 1996, p. 9.
505. WALLACE, Harvey; ROBERSON, Cliff. Victimology: legal, psychological, and social perspectives. 3.
ed. Boston: Prentice, 2011, p. 50-51 506. GOVIER, Trudy. Victims and victimhood… cit., 232 p.
168 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 169

menos stake no comportamento colaborativo e faz com que as vítimas do de criminosos507.


crime sejam relutantes na busca por proteção jurídica, deixando-as com cada Há dois mundos que convivem nas ideias criminológicas. De um lado,
vez mais escassas alternativas de amparo. Há uma quantidade considerável manipulação da histeria coletiva frente à criminalidade de ruas e à espeta-
de tragédias humanas e vítimas invisíveis da rotina diária das corporações cularização dos escândalos corporativos, por outro, negligência e negação
ratificadas por cumplicidade, silêncio ou neutralização moral. aos danos sociais e morais do “combate à criminalidade” e do superencar-
A vitimologia corporativa tem por objetivo precisamente auxiliar as ceramento. Em ambos os casos, o que se pode observar são distorções na
comunidades a avaliar o dano da criminalidade corporativa, auxiliá-las a percepção pública das normas sociais, falta de credibilidade e legitimação do
produzir adequadamente o sentido social por meio da punição, reparação e sistema de justiça criminal, justificação de fanatismo moral e despolitização.
normas sociais mais sofisticadas do ponto de vista regulatório. A prioridade Em últimas consequências, transformações disruptivas, desintegração social e
deveria ser a experimentação de soluções imaginativas para a restauração dos desregulação do comportamento socialmente danoso508, aportando ao debate
conflitos que afeta as minorias subrepresentadas e lesadas pelas infrações eco- público uma deletéria oposição entre seletividade e estigmatização e neutra-
nômicas. A tensão de social networks produzidas pela vitimização corporativa lização (ou contra-estigma, como preferimos) dos riscos no mundo negocial.
ameaça os fundamentos do controle social informal, demandando ao menos De outra ponta, as técnicas de neutralização moral (moral neutralization)
a revisão das justificações dominantes e uma análise crítica mais inspiradora remontam ao clássico estudo de Gresham Sykes e David Matza. Conforme esta
do significado moral do dano colateral. O lado humano perdido é um dano analítica, há diferentes tipos de racionalização de comportamento. O indivíduo
central, que poderia ser resgatado a partir de avaliação séria do dano, pon- submetido a julgamento recorre a justificações morais sobre sua conduta crimi-
derando em relação aos alegados benefícios da persistência obsessiva por law nosa como estratégia de defesa, classificadas em cinco diferentes categorias: 1)
enforcement e corporate deterrence, o que à toda evidência científica não tem negação da responsabilidade; 2) negação do dano; 3) negação da vítima (que
conduzido a um melhor ambiente ético. fez por merecer a ofensa); 4) condenação de quem acusa (devolve a culpa de
5.4. NEUTRALIZAÇÃO MORAL E O PROBLEMA DA DE- sua ação a quem o acusa, como o policial corrupto ou mesmo porque no caso,
afetando a isonomia, um indivíduo é condenado por ação que outros, sob as
PENDÊNCIA COMUNITÁRIA
mesmas circunstâncias, não o seriam); 5) apelo a elevados valores (e em obe-
O impacto das narrativas sobre os escândalos corporativos na so- diência à obrigações morais divergentes em relação às obrigações jurídicas)509.
ciedade tem sido objeto de ampla discussão. Erich Goode e Nahman
Apesar de Shadd Maruna e Heith Copes apresentarem contradições à
Ben-Yehuda, no Moral Panics, analisam o pânico moral decorrente dos
lógica interna da teoria – 1) como teoria etiológica, seria difícil neutralizar
processos de construção social do comportamento desviante. Goode e Ben-
algo que ainda não sucedeu; 2) nem toda justificativa ou escusa é reprovável
-Yehuda discutem a racionalidade dos ímpetos ou das ações coletivas em
em si, assim como seria pouco sustentável pensar em “aceitação plena da
torno de determinados escândalos criminosos. O pânico moral difunde a
responsabilidade” como contraponto510 – , uma série de estudos exploraram
sensação generalizada de insegurança, medo e incerteza frente a inimigos
da sociedade que estão na iminência de lesionar alguns membros da socie-
507. GOODE, Erich; BEN-YEHUDA, Nachman. Moral panics: the social construction of deviance. Ox-
dade ou até mesmo “nós”. Desde insights muito interessantes sobre a crise ford: Blackwell, 1994, p. 31 e ss.
da “tulipomania” na Holanda renascentista (século XVII) até a história 508. HAGAN, John. Crime and disrepute… cit., p. 108.
509. SYKES, Gresham; MATZA, David. “Techniques of neutralization: a theory of delinquency”. Ameri-
recente, demonstram como moralidade e comportamento desviante são can Sociological Review, 22/1957, p. 664-670. As categorias são discutidas em detalhes em BALL,
Richard. “An empirical exploration of neutralization theory”. Criminology, 4/1966, p. 22-32; MINOR,
geridas por grupos de pressão – os “gestores da moral” (moral entrepeneurs) William. “The neutralization of criminal offense”. Criminology, 18/1980, p. 103-120; PRATT, Travis.
– e manipulam as preferências da sociedade a partir de histeria coletiva “Delinquency and drift: challenging criminology then and now”. BLOMBERG, Thomas et al (org) De-
linquency and drift revisited: the criminology of David Matza and beyond. London: Routledge, 2017, p.
que mobiliza a priorização de políticas criminais – verdadeiras “cruzadas 35 e ss.
510. MARUNA, Shadd; COPES, Heith. “What have we learned from five decades of neutralization resear-
morais” (moral crusades) – contra determinados crimes e grupos específicos ch?”. Crime and Justice, 32/2005, p. 221-320.
170 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 171

as técnicas de neutralização moral511, porém sem referência às vítimas ou aos a questionar as fronteiras entre a rotinização e a neutralização a crimi-
processos de vitimização512. nalidade corporativa e o anacronismo das estratégias de controle social
Joseph Heath soma às cinco categorias de Sykes e Matza duas outras formal516. Em amplo repertório de casos, Barak apresenta o histórico
(que “todos os demais estão praticando a conduta; e que se trata de “reivin- recente do abuso financeiro, risco moral (moral hazard) e especulação de
dicação de um direito”, uma vez que a proibição jurídica seria injusta ou alto risco. É talvez a mais completa reflexão crítica sobre o fracasso da
uma intervenção desnecessária) e investiga as possíveis convergências das regulação dos abusos e concentração de poder em Wall Street, veiculando
técnicas de neutralização com a ética negocial. A negação de responsabilidade consistente análise política econômica sobre como e por que as MNCs
seria justificada pela ideia de fungibilidade dos atores, em situação altamente contribuem para a vitimização humana, física, social e ecológica, muito
competitiva, segundo a qual se um agente não opera, outro realizará a con- embora o comportamento corporativo socialmente danoso seja sistema-
duta em seu lugar. Negação do dano é potencializada pelo caráter difuso da ticamente silenciado pelas estratégias de rotinização e neutralização517.
criminalidade econômica e pelo fato de que, por força da regra volenti non fit O caso da Apple é bastante emblemático. Mesmo que envolvida em
iniuria, as transações comerciais são consentidas. A negação da vítima advém escândalos financeiros e fiscais bilionários – os mais vultosos da história – ,
em alegações de que o ofensor não se vale das oportunidades para delinquir a marca é a mais admirada do mundo. Apoiado nas construções psicológi-
contra a vítima, ou, se o caso de infrações em que a empresa é vitimizada, cas da aprendizagem social em Albert Bandura, Barak discute as estratégias
empregados recorrem à noção de correção de iniquidades e injustiças no trato de neutralização como justificação moralista, difusão da responsabilidade e
de seus próprios direitos laborais. A condenação dos acusadores leva a empre- desumanização das vítimas. A repercussão negativa e as reações emotivas de
sa a criticar a legitimidade da atuação funcional das autoridades reguladoras rejeição são cotidianamente neutralizadas, de tal forma que as infrações ou
e fiscalizadoras. A corporação pode ela própria servir de referência para o não apenas estão moralmente contidas, mas levadas ao contraponto de que
apelo à nobre motivação. Regras de mercado e justa lealdade na concorrência estas MNCs promovem um bem à sociedade muito maior do que o mal que
justificam que “todos estão agindo da mesma forma”513. Heath extrai desta
self-deception, and white-collar crime”. BLOMBERG, Thomas et al (org) Delinquency and drift revi-
convergência uma importante lição para a formação em ética negocial: sua sited: the criminology of David Matza and beyond. London: Routledge, 2017, p. 140 e ss.; Iñigo Ortiz
de Urbino, apesar de conceber as racionalizações a partir da figura do dirigente – e não da corporação
missão é “neutralizar as técnicas de neutralização”514. -, também emprega as técnicas de neutralização para o campo econômico: “(...) el ámbito empresarial
es propicio para la proliferación de este tipo de racionalizaciones. Así, en él puede darse la negación de
Em mais elevada acuidade analítica e movido por contundente la responsabilidad, por ejemplo aludiendo a la imposibilidad de cumplimiento de las exigencias impo-
sitivias o de la regulación pública (“si cumpliera con todas esas normas tendría que cerrar”), la rebaja
crítica criminológica, Gregg Barak debateu as técnicas de rotinização de la propia responsabilidad atendiendo a que la conducta infractora está generalizada (“no voy a ser el
único tonto que cumpla”), la falta de legitimidad de los sujetos con potestad sancionadora (“se gastan
e neutralização das corporações multinacionais (MNCs) em Unchecked el dinero en tonterías y ahora vienen a sancionarme”), la justificación del daño apelando a lealtades
superiores (“peor sería cerrar la empresa y dejar a mis trabajadores en el paro”) o, por dar un último
Corporate Power. Embora sua estratégia não seja de todo inovadora – ejemplo, la dilución de la propia responsabilidad en el gran entramado de conductas empresariales (“al
há outros tantos estudos que avaliaram as técnicas de neutralização no fin y al cabo, sólo soy un pequeño eslabón en un gran cadena”), ORTIZ DE URBINA GIMENO, Iñigo.
“La responsabilidad penal de las personas jurídicas y su impacto en el derecho penal económico”. SIL-
campo econômico515, a “imaginação criminológica” de Barak o levou VA SANCHEZ, Jesus-Maria; MIRÓ LLINARES, Fernando. La teoría del delito en la práctica penal
económica. Wolters Kluwer, Madrid, 2013, p. 472.
516. Sem a mesma consistência teórica, fundado apenas na vaga referência à “normalização” do comportamen-
511. Cloward e Ohlin criticam a noção de moral neutralization, uma vez que falham em distinções: 1) entre to corporativo socialmente danoso, porém muito significativo como repertório de casos e denúncia das dis-
normas do delinquente e regras de conduta (prescrições) e estruturas de crenças (descrições) e valores funções regulatórias quanto ao abuso no âmbito corporativo, STEINZOR, Rena. Why not jail? Industrial
(avaliações); 2) atribuição de legitimidade às normas e atribuição de validade moral; 3) problemas catastrofes, corporate malfeasance, and government inaction. Cambridge: Cambridge Press, 2015, p. 15.
normativos e morais entre delinquentes na subcultura e outros não; 4) presença de culpa e ausência 517. “As a preview, state-routinized crime (SRC) works in real time while rely8ing on the integration of
nas distintas de desenvolvimento sequencial de justificação do comportamento, CLOWARD, Richard; historical recurrences. SRC also includes what political scientists reference when they discuss complex
OHLIN, Lloyd. Delinquency and Opportunity… cit., p. 136. financial systems as involving regulatory capture, or the condition whereby regulatory agencies beco-
512. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 56. me enamored with or unduly influenced by those sectors of the economy that they are responsible for
monitoring. Finally, moving beyond regulatory capture or regulatory failure, SRC borrows from what
513. HEATH, Joseph. “Business ethics and moral motivation: a criminological perspective”. Journal of Bu- scientists of knowledge refer to as cognitive capture and the influence of free-market ideology to shape
siness Ethics, 83/2008, p. 603 e ss. the course of regulation and public policy more generally. While SRC focuses on regulatory capture and
514. HEATH, Joseph. Business ethics… cit., p. 611. regulatory failure as well as cognitive capture, it also recognizes cognitive social learning and moral
515. Em análise detalhada, HEATH, Joseph. Business ethics… cit., p. 602 e ss.; PIQUERO, Nicole et al. disengagement theories that are part and parcel of human agency and the crimes of the institutionally
“Examining the role of differential association and techniques of neutralization in explaining corporate powerful”, BARAK, Gregg. Unchecked corporate power: why the crimes of Multinational corpora-
crime”. Journal of Deviant Behavior, 26/2005, p. 159-188; BENSON, Michael. “Subterranean values, tions are routinized away and what we can do about it. London: Routledge, 2017, p. 11.
172 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 173

podem causar518. Contudo, apesar de ampliar os níveis de conhecimento os fundamentos da teoria do capital social (acúmulo de interações cotidianas
público sobre o comportamento corporativo socialmente danoso, Barak mais entre indivíduos e comunidade) e a necessidade de investigação mais acurada
recorre a uma retórica provocativa do que assume uma propositura coerente sobre as manifestações da dependência comunitária (community dependence)
com os apelos sobre reputação – a exemplo do Corporate Hall of Shame – e das corporações. A imbricação das corporações na configuração das normas e
fim do acoplamento coludente entre MNC e Estado regulador519. interações sociais524 também já é parte integrante das teses sobre planejamento
No que diz respeito à dependência comunitária, Barak oferece argu- estratégico, ainda que a partir de leituras sistêmicas enviesadas (apenas parcial-
mentos igualmente contundentes: “assim como nos investimentos imorais, mente sistêmicas, vale dizer, mais analíticas do que propriamente sistêmicas)
o dano ambiental, a exploração laboral, e os danos provocados pelas MNCs pela perspectiva do “ambiente organizacional” (organization´s environment)525.
expressam a violações dos Estados e corporações em colusão, representando Todavia, a compreensão do lugar das empresas na coesão social e na
assaltos simbióticos aos recursos naturais e culturais que antes foram aces- produção de relações de dependência não é tão simples assim. A principal
síveis à população e agora são objetos institucionalizados da austeridade, característica da relação de dependência é que ela permite à sociedade civil
contraction, neoliberalismo e privatização”520. Mais precisamente, identifica desenvolver ciclos de confiança social, cooperação, tolerância, formas ativas
a lógica perversa dos processos de monetarização, monopolização, securitiza- de participação cidadã, dentre outras normas. Em sociedades especializadas
ção e “commodificação” dos recursos naturais e uma correlata fragilidade do e diante da complexidade das interações sociais promovidas pelas MNCs, o
ambiente regulatório521. Em última instância, para a vitimologia corporativa incremento da divisão social do trabalho acaba obstruindo a voluntariedade
cada um destes processos seria bastante representativo para a compreensão e a cooperação, gerando ciclos de desconfiança, sectarismos e intolerância. A
dos processos de vitimização e produção de dano pelas corporações. Laureen dinâmica das empresas e das redes comunitárias muda muito com o tempo,
Snider, a seu modo, discutindo uma “sociologia da criminalidade corpora- em seu life-course (deslocamento internacional, contingências que demitem
tiva”, observa como as atividades empresariais estão de tal forma imbricadas uma série de pessoas, períodos áureos que absorvem todo um contingente
nas interações sociais que não apenas são por elas legitimadas, senão que que estava prestes à pobreza extrema). Assim como os padrões de normali-
delas já são indissociáveis: as modernas corporações transformaram o mundo dade e comportamento desviante são mutáveis, as percepções sobre a vítima
desenvolvido e em desenvolvimento522. e os processos de vitimização na comunidade também o são526. A empresa,
A dependência comunitária se manifesta de formas muito distintas. Tanto com sua capacidade econômica, pode superar muitas vezes o Estado e ela
assim que é comum o argumento de que a incriminação da empresa pode am- própria restaurar o conflito e as relações comunitárias antes mesmo de que o
pliar os processos de vitimização523. É bem possível encontrar afinidades entre sistema de justiça criminal possa operar, seguindo a mesma lógica da captura
de políticas públicas essenciais em razão da atuação limitada do Estado527.
518. SCHALLY, Jennifer. “Legitimizing corporate harm: the discourse of contemporary agribusiness”. Lon-
don: Palgrave, 2018, 97 p.; FISHER, Andrew. Big hunger: the unholy alliance between corporate Ame- 524. Há estudos altamente especializados neste campo, PAINE, Lynn Sharp. Value shift: why companies
rica and anti-hunger groups. Boston: MIT, 2017, p. 77. must merge social and financial imperatives to achieve superior performance. New York: McGraw-
519. BARAK, Gregg. Unchecked... cit., p. 146. “When things go wrong, pathological climates encourage -Hill, 2003, p. 133; a coletânea RAYMAN-BACCHUS, Lez; WALSH, Philip (org) Corporate res-
finding a scapegoat, bureaucratic organisations seek justice, and the generative organization tries to ponsibility and sustainable development: exploring the nexus of private and public interests. London:
discover the basic problems with the system (Westrum, 2004, p. 23, A typology of organizational cultu- Routledge, 2016; BAUMANN-PAULY, Dorothée. Managing corporate legitimacy: a toolkit. London:
res)”. Psicologia pode ser aplicada e melhorar significativamente o sistema de justiça criminal. Psicolo- Routledge, 2013, p. 116 e ss.
gia, nesta delimitação do Barak, como ciência comportamental, integrando as percepções do indivíduo, 525. Por todos, POST, James. Corporate behavior and social change. Reston: Reston, 1978, 294 p.
suas capacidades, com criminalidade, intenções e formas de punição. A noção de corporate shaming e
reintegração é explorada com referência às teorias da anomia e do comunitarismo em BRAITHWAITE, 526. “(…) applying the definition of victimization across cultures is even more problematic because the
John. Crime, shame, reintegration. New York: Cambridge, 1989, 226 p.; debatendo a “reabilitação da norms and standards used by the observer to interpret and judge the behavior are often different from
corporação”, KARPOFF, J., “Does reputation work to discipline corporate misconduct?” BARNETT, those of the people being observed. Anthropologists studying societies that are very different from ours
M., POLLOCK, T., (org) The Handbook of Corporate Reputation. Oxford University Press, 2012. are becoming more and more sensistivie to this dilemma. Paul Heelas, 1989, for example, points out that
attention to context has the great virtue of dispelling ‘myths’ generated by essentialism. In support of his
520. BARAK, Gregg. Unchecked... cit., p. 121. contention, Heelas quotes Chagnon´s study of the Yanomamo Indians of the Venezuela jungle (1983).
521. BARAK, Gregg. Unchecked... cit., p. 120. The study clearly shows that what may be defined or viewed by the researcher as aggression might
522. SNIDER, Laureen. “The sociology of corporate crime: an obituary: or whose knowledge claims have not be experienced as such by the ‘victims’”, FATTAH, Ezzat. Criminology past, present and future: a
legs?”. Theoretical criminology, 4/2000, p. 169-206. critical overview. Hampshire: Macmillan, 1997, p. 53-60.
523. MOORE, Charles. “Taming the giant corporation? Some cautionary remarks on the deterrability of 527. RUDDER, Catherine. Public policymaking by private organizations: challenges to democratic gover-
corporate crime”, Crime & Delinquency, 33/1987, p. 379-402. nance. Washington: Massachusetts, 2016, p. 151; mais sobre, EPSTEIN, Edwin. “The corporate social
174 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 175

E isso por duas razões principais: 1) a juridificação dos conflitos, em alguns da vitimização colateral provocada por um grupo reduzido de dirigentes que
casos, pode representar mais um entrave do que solução, uma vez que a pre- moveram o comportamento corporativo socialmente danoso530.
dominância da cisão kantiana entre dever moral e dever jurídico impede a O envolvimento das corporações não diz somente respeito às MNCs. O
recuperação dos sentimentos morais e emoções indispensáveis à restauração; mercado é vulnerado e com ele novos efeitos em escala na dinâmica da comu-
2) a comunidade é um stakeholder estratégico, tal qual em E. Freeman528. nidade local. Sem falar que na maioria das vezes os dirigentes e funcionários
O problema não se resume à capacidade econômica para oferecer suporte são residentes e igualmente vitimizados, Susan Kuo et al destacaram que as
à vítima e coordenar políticas sociais de contingência para a contenção do dano. formas de aferição da coesão e capital sociais, pela maior exposição imediata
A questão abrange formas reais de reinclusão das vítimas na vida comunitá- à vitimização, são mais facilmente perceptíveis e afetam mais diretamente a
ria. Em determinados contextos, as relações sociais e articulação da produção personalidade e os processos de socialização da vítima. A vulnerabilidade da
local é de tal forma dependente das empresas, que vitimização e sobrevivência comunidade local está radicada na sua condição de “falta de autossuficiência,
sequer chegam a ser suscitadas, porque as simplesmente não tem outra alter- suscetibilidade ao dano e capacidade de resiliência”531.
nativa. Apenas a título ilustrativo, a tragédia corporativa da Nike em Rana Segundo a associação National Crime Victims´ Rights, o impacto do crime
Plaza, Bangladesh, causou a morte de 1.134 vítimas, provocada pela queda nas vítimas e comunidades atende a uma classificação em cinco campos analíti-
das instalações da indústria têxtil. Sem mencionar as estratégias corporativas cos – 1) emocional; 2) financeiro; 3) físico; 4) social; 5) espiritual – e podem ser
de controle, o que demandaria uma investigação mais específica, o caso expõe escalonados em distintos graus conforme o dano à comunidade: em aumento
a fragilidade institucional e regulatória a que estava submetida a comunidade do medo da criminalidade, isolamento, erosão da moral comunitária, perda
local529. Apesar do elevado custo moral e social, os estudos etnográficos e outras de qualidade de vida, dimuição das atividades sociais e de lazer comunitárias,
avaliações de risco apenas apontavam como a comunidade se mobilizou, em mudanças significativas nos hábitos cotidianos, rituais e atividades, aumento
estado de profunda dependência, para o retorno da empresa ao local. Parado- dos custos pessoais resultantes de estratégias de prevenção à criminalidade, au-
xalmente, a agressividade de práticas corporativas caminha parelha à formação mento de gastos comunitários e carga fiscal (financiamento de law enforcement,
de espaços de dependência comunitária, tão intensiva é a interpenetração tribunais, estabelecimentos prisionais, redes de assistência à vítima), além da
das organizações na coesão social. Os efeitos nefastos do recente escândalo afetação imediata dos negócios, com a consequente diminuição das vagas de
corporativo envolvendo a Volkswagen e a comunidade de Wolfsburg, na Ale- trabalho formal, aumento da segurança, custos de saúde, redução na produção,
manha, é bastante elucidativo: 600.000 empregados sofreram com os efeitos
530. “Volkswagen (…) achieved a perfect trifecta of corporate malfeasance: a serious violation of law com-
policy process: beyond business ethics, corporate social responsibility, and corporate social responsive- pounded by false advertising and topped off wih a cover-up. Yet many of the people in charge while
ness”. California Management Review, 22/1987, p. 99-114; p. 155. all that was taking place were still incharge more than a year after the fraud came to light. The super-
528. “(…) the local community grants the firm the right to build facilities and, in turn, it benefits from the tax visory board´s failure to impose more serious consequences raised the cost borne by the vast majority
base and economic and social contributions of the firm. Companies have a real impact on communities, of Volkswagen workers who had nothing to do with the scandal, as well as the communities they live
and being located in a welcoming community helps a company create value for its other stakeholders. in. In November 2016, Volkswagen said it would cut a net fourteen thousand jobs in Germany, about 4
In return for the provision of local services, companies are expected to be good citizens, as is any in- percent of the domestic total, in response to dismal profit margins from sales of VW brand cars. Still,
dividual person. It should not expose the community to unreasonable hazards in the form of pollution, worker representatives on the supervisory board stood behind Müller. They tried to minimize the job
toxic waste, and so on. It should keep whatever commitments it makes to the community, and operate losses, but did not use their clout to force changes in the management board. The city of Wolfsburg was
in a transparent manner as far as possible. Of course, companies do not have perfect knowledge, but already feeling the pain by 2016. Because of Volkswagen´s loss in 2015, revenue from the city´s largest
when management discovers some danger or runs afoul of new competition, it is expected to inform and taxpayer by far was zero. The city was forced to raise fees for services suc as public kindergartens, while
work with local communities to mitigate any negative effects as far as possible”, FREEMAN, Edward. postponing projects such as construction of a new fire station or improvements to the city library and a
Stakeholders theory... cit., p. 25-26. local community college. “There are 600,000 hardworking, honest people at Volkswagen”, said Klaus
529. Os estudos mais autorizados sobre as possibilidades de intervenção e restauração no local convergem Mohrs, the mayor of Wolfsburg. ‘It´s terrible that the employees as well as a whole city have to suffer
para a necessidade de redes multi-dimensionais e multi-stakeholders para suprir as insuficiências locais because a few committed fraud’”, EWING, Jack. Faster, higher, farther: the Volkswagen scandal. New
e integrá-las à necessária revisão das cadeias produtivas globais, NOLAN, Justine. “Rana Plaza: the York: W.W. Norton, 2017, p. 258.
collapse of a factory in Bangladesh and its ramifications for the global garment industry”. BAUMAN- 531. “(…) communities that enjoy high levels of social capital may find that their members are willing to risk
N-PAULY, Dorothéé; NOLAN, Justine (org) Business and human rights: from principles to practice. the conseuqences of others´noncooperation, although individual economic rationality might suggest a
London: Routledge, 2016, p. 29. As técnicas de ética negocial podem servir de referencial à vitimolo- more conservative approach. Thus, more cohesive communities may be able to function and to maintain
gia corporativa para a determinação de práticas corporativas neste sentido, especialmente a noção de order even when the normal operation of the state has been suspended”, KUO, Susan et al. “After the
construção de “múltiplos cenários” para o planejamento estratégico, SCHOEMAKER, Paul. “Multi- storm: the vulnerability and resilience of locally owned business”. FINEMAN, Martha Albertson. GRE-
ple scenario development: its conceptual and behavioral foundation”. Strategic Management Journal, AR, Anna (org) Vulnerability: reflections on a new ethical foundation for Law and Politics. Burlington:
14/1993, p. 193-213. Ashgate, 2013, pp. 96.
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risco de responsabilidade jurídica, fuga de consumidores, dano à propriedade, algumas ocasiões, a GST de Agnew também foi levada ao debate no âmbito
diminuição do turismo532. Quanto maior o dano ao mercado local, parado- corporativo. A obstrução de metas e as tensões na organização podem ser
xalmente, maior a dependência das MNCs para a restauração da comunidade. percebidas como injustas e conduzir a comportamento desviante e emoções
A vitimologia corporativa poderia priorizar avaliações estratégicas fora de controle entre organizações ou no seu ambiente interno. Embora seja
sobre a capacidade restaurativa das MNCs e a melhor forma de utilizar difundido entre os criminólogos que se trata de questão de difícil mensura-
seus recursos na restauração dos processos de vitimização em larga escala, ção, alguns indicadores poderiam oferecer explicações razoáveis: média de
ou ainda se valendo de suas redes contratuais e práticas corporativas para lucro nos últimos anos, outras corporações da mesma indústria, análise com-
aliviar o sofrimento e contenção dos danos às vítimas533. Estas questões de parativa das expectativas dos shareholders e outros grupos estratégicos, meios
dependência comunitária e o papel das corporações na restauração tem legítimos ou gestão de escassez para alcançar os objetivos. Outros indicadores
sido endereçadas por mecanismos menos formalizados de composição do que permitam mensurar o abuso, a agressividade, a ambição que tensionam o
conflito, inclinados à noção de Justiça restaurativa e a um mais sofisticado ambiente ou exposições a oscilações de conjuntura e competição no mercado
padrão de regulação do comportamento empresarial534, algo que conforme também podem tensionar as organizações, premindo-as ao comportamento
entendemos, também deveria ocupar um espaço privilegiado na agenda de corporativo socialmente danoso537.
pesquisa da vitimologia corporativa. No âmbito intraorganizacional, Sally Simpson e Christopher Koper
analisaram os efeitos da tensão nas práticas de gestão e performance
5.5. TENSÃO ORGANIZACIONAL E TRAUMA CORPORA- da empresa, evidenciando que a formação de CEOs orientada às finan-
TIVO ças e administração tende a induzir maior envolvimento em infrações
A teorias universalistas do crime, em alguns poucos estudos, foram econômicas, à diferença de outras formações. Esta construção de perfil
objeto do debate criminológico no âmbito corporativo. Gary Reed e Peter da empresa poderia ser significativa para a construção de preditivos e
Yeager confrontraram o alcance da GTC de Gottfredson e Hirschi em re- demonstrar motivações e oportunidades que fariam com que uma cul-
lação às infrações corporativas e coletaram evidências sobre as limitações tura organizacional fosse mais propensa à comportamento corporativo
práticas que as motivações, estruturas de oportunidade nos crimes de colari- socialmente danoso do que outras538. Sob orientação da sociologia das or-
nho branco envolvendo corporações535. Sally Simpson e Nicole Piquero, na ganizações, Russel Cropanzano et al chegam a conclusões em um sentido
mesma linha, desacreditam a GTC ao evidenciar empiricamente que o baixo próximo. Ao discutir a gestão da Justiça organizacional, demonstram os
auto-controle (low self-control) das organizações não guarda relação com os privilégios e benefícios gerados nas contratações, sistemas de recompensa
vínculos sociais, de tal forma que o controle social das organizações ainda e bônus por performance, gestão do conflito e, em última instância, na
segue um campo muito fértil de explicações causais e motivacionais536. Em erosão da confiança, equidade e legitimidade, fazendo com que a “justiça
seja uma grande oportunidade” de negócios539. A percepção de injustiça
532. Informações disponíveis em: http://cap.navaa.org/captips/13/13%20CAPTIPS-4-ImpactCrime.pdf. opera também no campo das tensões e emoções negativas, assim como
533. Há práticas isoladas sobre os arranjos jurídicos e institucionais em torno de um “direito do desastre” (di-
saster law) e resgate de contexto particularmente vulnerados por força de comportamento corporativo so- há evidências de que a orientação de comportamento nas organizações
cialmente danoso, sem que, no entanto, sejam orientados pela inteligência de uma vitimologia corporativa: marcada pela justiça impõe constrições psicológicas540.
“(...) the vulnerability of locally owned business in aftermath of disaster in order to maximize their role in
longer-term recovery and should avoid top-down relief measures that might inhibit the ability of locally
owned business t ore-establish their profitability”, KUO, Susan. Vulnerability… cit., p. 97. 537. AGNEW, Robert et al. General strain theory... cit., p. 40 e ss.
534. BRAITHWAITE, John. “The new regulatory state and the transformation of criminology”. British 538. SIMPSON, Sally; KOPER, Christopher. “The changing of the guard: top management characteristics,
Journal of Criminology, 40/2000, p. 230; SHEARING, Clifford. “Violence and the changing face of organizational strain, and antitrust offending”. Journal of Quantitative Criminology, 13/1997, p. 373-404.
governance: privatization and its implications”. Kölner Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsychologie, 539. CROPANZANO, Russel. “The management of organizational justice”. Academy of Management Pers-
1997, p. 14. pectives, 11/2007, p. 34 e ss.
535. REED, Gary; YEAGER, Peter. “Organizational offending and neoclassical criminology: challenging 540. FRANCIS, Lori; BARLING, Julian. “Organizational injustice and psychological strain”. Canadian
the reach of a General Theory of Crime”. Criminology, 34/2006, p. 357 e ss. Journal of Behavioral Science, 37/2005, p. 250-261. No campo da psicologia, há convenções sobre a
536. SIMPSON, Sally; PIQUERO, Nicole. “Low self-control, organizational theory, and corporate crime”. métrica do stress organizacional (do inglês, organizational stress measure – OSM), SPURGEON, P. et
Law & Society Review, 36/2002, p. 509-548. al. “The organizational stress measure: an integrated methodology for assessing job-stress and targeting
178 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 179

Nos ensaios de Jeffrey Reiman estão muito bem pontuadas as faces própria sobre o crime organizacional como uma grande síntese das correntes
do sistema de justiça criminal. “Entre a captura policial e o encarceramento teóricas do pensamento criminológico: 1) há maior propensão ao crime cor-
emerge o processo crucial que determina quem é culpado e inocente. Estudos porativo em situações de bloqueio de oportunidades legítimas para acesso às
em acusados com os mesmos antecedentes demonstram que o reú mais pobre metas; 2) há maior propensão nas hipóteses em que o acesso às oportunidades
é mais propenso a ser julgado culpado do que o réu com melhores condições ilegítimas é franqueado aos indivíduos no âmbito corporativo; 3) bloqueio de
econômicas”. Parece suficientemente óbvio que a decisão judicial não deveria oportunidades legítimas às corporações tende a levar à formação de subcul-
levar em consideração outro argumento que não fosse culpa ou inocência turas em determinada indústria; 4) tanto maior a resistência à regulação e ao
justificados conforme os elementos de prova disponíveis ao julgador. Mas este controle, tanto maior a criminalidade corporativa (a formação de subculturas
raciocínio, para além da explicação simplista, leva em consideração as concre- neutraliza o vínculo moral, mostra os caminhos das oportunidades ilegítimas
tas condições em que se produziu o processo de acusação e o suporte material e acoberta as infrações); 5) estigmatização e falta de confiança estimulam a
da defesa: justamente “porque fiança e qualidade nas teses defensivas custam formação às subculturas, em oposição à regulação cooperativa; 6) corporate
dinheiro, não deveria ser supresa que os pobres se fazem mais pobres” 541. shaming não apenas não inibe a criminalidade como cria “novos padrões ra-
No plano interno às organizações, D. Cohen diferencia alguns níveis de zoáveis” de comportamento corporativo e influencia os processos decisórios
strain nas organizações. Ao discutir a escala de anomia de Leo Strole, concebe-a dos executivos; 7) a reprovação ética da comunidade (general community
como perfeitamente aplicável às organizações: 1) sensação de isolamento social shaming) às infrações corporativas incrementa-se com uma democracia aberta
(percepção de que as relações não são confiáveis e estimulantes); 2) sensação e vigorosa; 8) e também o compromisso da indústria com a autorregulação;
de desilusão (indiferença dos líderes da comunidade); 3) sensação de estranha- 9) controle social informal se revigora com a regulação cooperativa; 10) re-
mento frente às metas impostas, 4) sensação de desempoderamento, frente à gulação cooperativa se consolida com a regulação da indústria e equilíbrio de
natureza imprevisível do sistema social; 5) sensação de anomia ou ausência de poder; 11) incentivos adequados aos controles autorregulatórios precedem
normas (normlessness), com a consequente deterioração dos valores sociais542. o enforcement público; 12) em organizações sob influência da subcultura, a
responsabilidade moral e comunicação da organização se fragilizam543; 13)
John Braithwaite vai mais fundo na compreensão das tensões, distri- influência especializada de compliance e gestores vinculados ao programa
buição de meios legítimos e oportunidades ilegítimas e acrescenta outras reduzem a propensão à criminalidade corporativa544.
perspectivas criminológicas para a compreensão criminológica dos crimes
organizacionais. A oposição entre cultura de compliance e subcultura de A capacidade de aprendizagem das organizações é ágil, dinâmica e
resistência à regulação e ao controle seria mediada pela humilhação ou ver- altamente especializada. O nível de desenvolvimento das estratégias comu-
gonha (corporate shaming). Sob o mote “não podemos desistir do projeto de nicativas no ambiente corporativo é amplamente estudado. William Laufer
Sutherland”, uma vez que “as teorias do crime explicam apenas proporções e Diana Robertson identificaram as interações entre ambiente, organizações
modestas” da criminologia econômica, Braithwaite propõe uma perspectiva e controle social da personalidade de acordo com quatro níveis diferentes:
1) o controle, assim como padrões legislativos ou éticos, é aplicável “de cima
organizational interventions”. Health Services Management Research, 25/2012, p. 7-15. 543. “Crime is less likely when compliance with the law is everybody´s responsibility within the corpora-
541. REIMAN, Jeffrey. The rich get richer and the poor get prison: ideology, crime and criminal justice. 4. te culture, when the organization is ‘full of antennas’, and when accountability mechanisms make it
Ed. Boston: Allyn&Bacon, 1995, p. 114 known widely within the organization that certain individuals or subunits have been responsible for
542. “Anomia in the business context. There are several reasons why anomia among employees in business a crime. Crime is less likely to the extend that shaming is directed against offenders by other consti-
firms might be expected to lead to crime. Employees may engage in criminal activities when they per- tuencies within the organization”, BRAITHWAITE, John. Criminological theory and organizational
ceive that ‘immediate personal relationships are no longe trustworthy or supportive”. It has been sugges- crime… cit., p. 352.
ted tha such perceptions produce feeling of frustration and hostility, as well as the attribution of hostile 544. Em proposição à futura agenda de pesquisa, a exploração de: “(...) distinction between cultural
intentions to others – an attibrution that provides concrete rationale to engage in antisocial behavior. processes of stigmatization that foster subcultures of resistance and shaming modalities that moti-
Furthermore, when individuals lack trust in others, they become emotionally distanced. Feeling sepa- vate individual compliance and organizational reform. Such a theoretical reorientation might make
rated from others and emotionally uninvolved is seen as a key factor in the willingness to cause harm. for a criminology of some practical use because a criminal justice system that makes compliance
Specifically in the context of criminal business approved potentially lethal products or manufacturing with the law economically rational for powerful organizations is probably for attainable. Ask any
processes, partly because they never confronted the victims of their decisions”, COHEN, Deborah. vice-president responsible for going to jail!”, BRAITHWAITE, John. Criminological theory and
Ethics and crime... cit., p. 190. organizational crime… cit., p. 355.
180 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 181

para baixo”; 2) a efetividade de qualquer estratégia de controle encontra uma cultura corporativa talhou uma nova individualidade que prestigia o priva-
série de variáveis explicativas (estratégias regulatórias, poder organizacional, do em detrimento do público. A ideia do “homem organização” de Whyte
auto-eficácia); 3) iniciativas éticas, como função do controle organizacional, demonstra de forma lapidar a internalização desta nova subjetividade a partir
deve articular ambiente e controles pessoais; 4) controle normativo. Cada um da incorporação da organização burocrática voltada ao negócio. Galbraith
deles exerce uma função específica e se combinam para determinar orienta- explica os efeitos nefastos da dedicação aos bens de consumo em manifesta
ções de comportamento que reduzam a oportunidade do crime545. oposição ao bem comum. Epstein, desde a filosofia política, demonstra o
Na sociologia clínica como na psicopatologia do trabalho, observa-se caráter indissociável dos sistemas corporativos e ordenação da sociedade,
analítica do sofrimento gerado pela tensão psíquica produzida no âmbito além do papel central das empresas na definição da vida política. Organização
das organizações empresariais. Em La société malade de la gestion, Vincent burocrática, pressão pelo consumo e a indissociável relação das corporações
de Gaulejac critica a condução da tecnologia de gestão por uma ideologia com os destinos políticos juntas seriam uma poderosa combinação para a
legitimadora da guerra econômica e obsessão pela alta performance empre- busca do êxito econômico a qualquer custo.
sarial: la morale des affaires é a expressão do business is war!546. Christophe O resultado da síntese dentre todos estes fatores é a produção de
Dejours analisa o desencadeamento de distúrbios e sua transição do stress ao trauma na vítima. Esta ideia de que uma pessoa é traumatizada e somente
sofrimento, o que, em última análise, significa a fragmentação da solidarie- após é submetida ao reconhecimento como vítima é bem recente. Didier
dade no ambiente organizacional547. Fassin et al analisam como o trauma gera uma fixação, temporária ou dura-
doura, que estende os efeitos trágicos ou dramáticos do evento negativo – o
Este domínio das manifestações psicológicas do organizational strain
que, na concepção freudiana, estaria representado nos sonhos que reprisam
poderia inspirar a vitimologia corporativa a desenvolver a noção de “or-
os eventos – , criando novas linguagens e distintas formas de se lidar com
ganização razoável” (reasonable organization), despatologizando uma série
o sofrimento da vítima.
de comportamentos no âmbito corporativo. Juntamente com a redução da
vitimização, reforça-se a capacidade de alívio do sofrimento humano no co- O trauma impacta na personalidade e nos processos de socialização,
tidiano empresarial. Desde a perspectiva reativa, a interpretação psicológica notadamente a partir da reposição de uma violência passada no sofrimen-
oferece a vitimologia um seguro referencial para avaliar as consequências de to presente. Fassin analisa em detalhes como estupro, genocídio, tortura,
uma decisão judicial que reconhecem o dever de cuidado e proteção548. redução a condição análoga à de escravo, ataques terroristas ou catástrofes
naturais tem em comum o recurso ao universo categorial do trauma para
Independemente do modelo explicativo, de William H. White, com o
a compreensão dos processos de vitimização e impacto na comunidade552.
The Organization Man549, a John Kenneth Galbraith, The affluent society550,
Apesar de que tradicionalmente se analisam o trauma e o ressentimen-
passando por Edwin Epstein, The Corporation in American Politics551, a
to como respostas negativas à vitimização, Diane Enns identifica como
545. LAUFER, William; ROBERTSON, Diana. “Corporate ethics initiatives as social control”. Journal of
tendência na psicologia os reflexos positivos do ressentido como “reação
Business Ethics, 16/1997, p. 1042. moral necessária”, momento determinante na formação da personalidade
546. “La gestion est en définitive un système d´organisation du pouvoir. Derrière sa neutralitè apparente,
il nous faut compreende les fondements et les caractéristiques de ce pouvoir qui a considérablement e elementos necessários para uma mais plena compreensão do papel do
évolué dans le temps. Entre l´organisation scientifique du travail et le management des enterprises mul-
tinationales, les modalités d´exercise et la nature même du pouvoir gestionnaire se sont considérable- perdão e da memória nos processos de vitimização553.
ment transformées. (…) Cette idéologie suscite bien des résistances et des désillusions”, GAULEJAC,
Vincent de. La société malade de la gestión: idéologie gestionnaire, pouvoir managérial et harcèlement 552. FASSIN, Didier; RECHTMAN, Richard. The Empire of Trauma: an inquiry into the condition of vic-
social. Paris: Le Seuil, 2009, p. 60 e ss. timhood. Princeton: Princeton, 2009, p. 30 e ss.; em sentido semelhante, ERIKSON, Kai. A new species
547. Para uma detalhada introdução a este debate, DEJOURS, Christophe (org) Observations clinique en of trouble: explorations in disaster, trauma and community. New York: Norton, 1994, 263 p.
psychopathologie du travail – souffrance et théorie. Paris: Puf, 2015. 553. The condition of victimhood increases the stakes, often rendering vulnerability so unbearable that the
548. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 260. crafting for security becomes all-consuming. In the process of building our elaborate defense systems,
we may ward off harm, but we may also destroy the vulnerability we need if we are to relate to one
549. WHYTE, William H. The organization man. Philadelphia: UPenn Press, 1956, 413 p. another. Susan Brison gives us a remarkable account of the experience of victimhood and recovery after
550. GALBRAITH, John Kenneth. The affluent society. 4. ed. Boston: Houghton, 1998, 265 p. being violently raped and beaten almost to the point of death while on leave from teaching philosophy
551. EPSTEIN, Edwin. The corporation in American Politics. New Jersey: Prentice-Hall, 1969, 365 p. in the US. In “Aftermath: Violence and the Remaking of a Self”, she describes how violence shatters
182 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 183

As teorias do controle incidem aí precisamente no âmbito da formu- processos, assim como na compreensão clínica da assimilação cognitiva dos
lação de estratégias de redução dos efeitos negativos do trauma na esfera processos de vitimização, podem ser relevantes para dimensionar as respostas
individual ou coletiva. Apreende-se do trauma uma série de construções psicológicas e aprendizados históricos diante dos processos de vitimização.
sociais que impactam na memória coletiva554 e na sensação de sobrevivência As ilustrações sobre momentos históricos incandescentes expressam a própria
e na recomposição da solidariedade e coesão social entre os indivíduos e evolução da compreensão do trauma e processos de vitimização. Estudos
na própria comunidade. A este processo de socialização Diane Enns dá o sobre a psicologia militar e produção de neuroses nos soldados em períodos
nome de uma “pequena parcela de controle” (modicum of control), o que de guerra, a literatura sobre o holocausto, a delicada questão da esquizofrenia
poderíamos chamar de medida possível de controle555. No lugar da descrição no cárcere, ciclos de abuso infantil, violência de gênero558, ou até mesmo a
da construção social de sentido, mais peculiar aos procedimentos judiciais e reverberação psíquica do terrorismo resgataram os estudos de transtorno de
formas jurídicas, na psicologia é bem possível a introdução destes elementos stress pós-traumático (post-traumatic stress disorder – PTSD)559, cuja reper-
de personalidade a partir das narrativas dos dramas humanos, o que poderia cussão no âmbito da vitimologia560 poderia ser altamente significativa na
permitir aos estudos vitimológicos uma maior projeção sobre as reais neces- compreensão dos efeitos da estigmatização e severo impacto no desenvolvi-
sidades das vítimas e restauração das percepções perdidas sobre si mesma556 mento da personalidade e processos de socialização.
ou sobre a memória coletiva. No entanto, a pesquisa vitimológica, à diferença dos avanços na com-
A psicologia social, a seu modo, dedica parcela considerável de suas re- preensão psicológica do trauma, segue bastante limitada por força das técnicas
flexões ao progresso da consciência e desenvolvimento emocional do mundo. de neutralização moral. No âmbito corporativo, a ausência de interação entre
É nela que se encontram reflexões sobre como a educação se posiciona nos vítima e ofensor aliena o processo de restauração, distancia a compreensão
processos de formação da personalidade e socialização, ensinando obediência,
resistência, amadurecimento, tolerância, disciplina e emancipação557. Estes Steven. The Psychology of Genocide: perpretators, bystanders, and rescuers. Cambridge: Cambridge
Press, 2008, p. 229.
558. Veja-se, por exemplo, BURGESS, Ann Wolbert; HOLMSTROM, Lynda. “Rape trauma syndrome”. The
American Journal of Psychiatry, 131/1974, p. 981-986; DUBBER, Markus Dirk. Victims in the war on
the self and our ‘fundamental assumptions about the world, including beliefs about our ability to control crime: the use and abuse of victim´s rights. New York: NYU Press, 2002, p. 180 e ss.
what happens to us”. ENNS, Diane. The violence of victimhood. Filadelfia: Penn, 2012, p. 81.
559. “Post-traumatic stress disorder (PTSD) is the most common term designated to the symptom response
554. AMÉRY, Jean. At the mind´s limits: contemplations by a survivor on Auschwitz and its realities. Bloo- and pattern noted following victimization. The history of the development of the term is believed to date
mington: Indiana University Press, 1980, 104 p. back to an account of Merlin of King Arthur´s court. Merlin was said to be have been a wild man who
555. ENNS, Diane. The violence of victimhood… cit., p. 85. went away to live alone in the woods for some years because he was affected by the sounds and sights
556. “The intimate narratives of victims demonstrate the unique condition of victimhood, characterized by the of a terrible battle. He avoided people and lived as a hermit for several years, only to return refreshed
reduction of suffering flesh, the humiliation of dehumanization associated with this reduction, the betrayal and with his special powers. Using current criteria, to qualify for a diagnosis of PTSD, an individual
of others whom we expect to come to our aid and consequent inability to trust, and a shattered or disso- must be exposed to a traumatic event in which he or she (1) experienced, witnessed, or was confronted
catied self. At the phenomenological level it seems that some or all of these features are universally expe- with actual or threatened death or serious injury and (2) the person´s response involved intense fear,
rienced by victims of violence. Responses to the condition vary, however, as we can see from these few helplessness, or horror. Sympthons of both disorders fall into three clusters: Reexperiencing symptons
examples. Some seek to justify resentment and the desire for retribution; others demonstrate a melancholic include instruisve thoughts, nightmares, feelings as if the event were recurring, and intense psycholo-
diminution of self-regard; still others struggle to regain trust in humankind. In any community subjected to gical and-or pshysiological distress at exposure to cues that retrigger the event. Avoidance symptons
violence, we need to keep in mind that there is no equality at the psychological of psychic level. Not every include efforts to avoid thoughts or stimuli that are reminiscent of the event, avoiding people and places
victim of assault can say, with Brisson ‘I have regained my lost self’. What we do with the ressources we that cause distress, inability to recall important aspectos of the event, restricted affect, and feelings of de-
are born with and the events we live through helps to determine how well we will cope with future events, tachment. Arousal symptoms include difficulty falling or staying asleep, emotional outbursts, difficulty
but we struggle against powerful, sometimes unconscious impulses. This is not to say that we are entirely conctrating, hypervigilance, and exaggerated startle response. Biological correlates of these reactions
determined by them, but the challenge of changing them may be, for some, too agonizing to endure”, include increased heart rate, skin conductance, and blood pressure”, BURGESS, Ann Wolbert et al.
ENNS, Diane. The violence of victimhood… cit., p. 87. Sem a pretensão de ingenuidade, também se reco- Victimology… cit., p. 84.
nhece que “(…) there is more to the truth of their condition than the emotions and longings they express. 560. “This occurs when a mark of censure, a stigma, isplaced upon the victim. This stigma indirectly gives
Victimhood is not politically innocent, and its moral power can be immense. The scripts we have inherited approval to the victimization and thus encourages group acceptance of the victimization rather than guilt
from twentieth-century discourses on trauma have lent moral and political weight to human suffering at or concern. In short, the person harmed is identified as the cause of the suffering rather than attributing
the hands of another, clouding our judgement at times, rendering it difficult to know what victims need in the cause to other agencies. For example, black Americans deserverd slavery, by this reasoning, as their
order to recover”, ENNS, Diane. The violence of victimhood… cit., p. 87. skin color or birth stigma proved; it was acceptable to eliminate Jews in the Nazi holocaust because of
557. “The psychological import of reconciliation and trials for the perpetrators of genocide is now unders- the stigma of their race. On a more individual basis, the woman who is raped is stigmatized when it
tood. With origins in the Nuremberg trials, truth and reconciliation commissions have played a key is believed that somehow she brought this on herself. Individuals in danger of becoming stigmatized
legal and emotional role in the lives of victims. South African psychologist Brandon Hamber found include those who are deviant, or strange, those who are different from what is thought to be normal or
that permitting the traumatized recipients of apartheid to bear witness and testify and feel heard was average, those who frighten us because we cannot understand them, and those who wish to change thin-
healing for the individual as well as the nation. Such symptons of trauma as PTSD, self blame, anger, gs in ways that frighten or disturb us”, SCHERER, Jacqueline. “An overview of victimology”. SCHE-
and bereavement, were debriefed. The force of reconciliation and accountability was so powerful that RER, Jacqueline; SHEPHERD, Gary (org) Victimization of the weak: contemporary social reactions.
the TRC staff needed emotional debriefing from listening to the multiple tales of trauma”, BAUM, Springfield: Charles Thomas, 1982, p. 18.
184 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 185

dos processos de vitimização, sem uma dimensão mensurável dos níveis de socialmente danoso à condição de violação de direitos humanos no âmbito
exposição ao risco e afetação da personalidade. A invisibilidade da vítima e corporativo. Por muito tempo se sustentaram modelos ilusórios e artificiais
angústias geradas pelo excesso de modelos probabilísticos de exposição ao de responsabilidade social corporativa, que nem atendiam aos interesses cor-
crime relega os estudos do comportamento corporativo socialmente danoso porativos muito menos repercutiam na vida comunitária. Os vínculos entre
a uma posição secundária na pesquisa científica, em regra a cargo de filósofos empresa e direitos humanos mais recentes remontam aos Guiding Principles
da moral ou cientistas sociais. A criminologia econômica tem sido indiferente on Business and Human Rights e aos princípios “proteger, respeitar e reme-
às vítimas desamparadas, em desespero ou subjugadas ao controle de tercei- diar” (protect, respect, remedy), conhecidos como Princípios Ruggie562. Os
ros. Desde a perspectiva da vitimologia econômica, tensões organizacionais princípios foram encampados pela ONU563, porém suas formulações abstra-
e trauma corporativo representam dois elementos bastante promissores. Ví- tas não influenciaram mudanças significativas no comportamento ético das
timas de escândalos corporativos podem arrastar o sofrimento muitos anos empresas564. Posteriormente, a questão ganhou maior consistência e maior
após a cessação do comportamento abusivo. Como medida de contraponto articulação em nível internacional, combinando responsabilidade social da
à inconsciência da vitimização, devem ser pensadas estratégias para articular empresa com propostas reais de remediar a situação das vítimas de viola-
o engajamento de stakeholders às formas de tensão e de trauma produzidas ções de direitos humanos no âmbito corporativo. As propostas consistiam,
nas e pelas corporações, como manifestação de uma gestão da marginalização basicamente, em ampliar o catálogo de mecanismos de prestação de contas
social produzida pelo comportamento corporativo socialmente danoso. A (accountability) das empresas a respeito das violações de direitos humanos,
vitimologia corporativa como aqui é proposta deveria tomar os conceitos de buscando referências normativas concretas no direito internacional dos di-
tensão organizacional e trauma corporativo em posição prioritária de preo- reitos humanos.
cupação científica. De outra forma, talvez não seja possível compreender o Em um primeiro momento, isso atraiu uma mais ampla mobilização dos
empoderamento da vítima no desenvolvimento de uma nova percepção de atores e Estados internacionais e permitiu adquirir mais solidez na justificação
solidariedade e coesão social no âmbito corporativo. moral das obrigações corporativas de remediar o dano, consolidando a ideia de
5.6. DIREITOS HUMANOS, RESPONSABILIDADE MORAL que as empresas tem, para além do mero dever negativo de não violar direitos
humanos, o dever positivo de prestar serviços para fomentar os direitos huma-
E EMPRESA
nos. Em seguida, a questão se ampliou para as fronteiras da regulação privada565
O antigo debate Sutherland-Tappan561 oscilava em torno da necessi- e a responsabilidade das empresas frente a sua cadeia produtiva (supply chain)
dade de criminalização do comportamento socialmente danoso ocorrido e a terceiros que pertencem às redes contratuais das empresas566. Atualmente,
no âmbito das organizações. Retirá-lo das ciências criminais significa a a discussão está radicada na formulação de alternativas práticas à remedia-
perda do significado de indignação moral da conduta e, tão logo, dos ção pronta e efetiva dos direitos violados no âmbito corporativo567. Deve-se a
processos de vitimização, justificando moralmente o seu contrário, a in-
diferença perante a vítima, o desamparo do sistema de justiça criminal 562. LÓPEZ, Carlos. “The ‘Ruggie process’: from legal obligations to corporate social responsibility?”.
DEVA, Surya; BILCHITZ, David. Human rights obligations of business. Cambridge: Cambridge Press,
(underprosecution), e a insuficiente responsividade frente ao dano provo- 2013, p. 58 e ss.
cado na comunidade. Reconhecer sua dignidade criminal, em vez disso, 563. MUCHILISNKI, P. Multinational Enterprises and the Law. Oxford: Blackwell, 1999, p. 593 e ss.
564. Sobre as inúmeras críticas aos “Princípios Ruggie”, veja-se, por exemplo, BLITT, Robert. “Beyond Ru-
reposiciona a vítima no centro da legitimação do sistema de justiça cri- ggie´s Guiding Principles on business and human rights: charting an embracive approach to corporate
minal, recoloca suas necessidades humanas e dimensiona de forma mais human rights compliance”. Texas International Law Journal, 48/2012, 30 p.
565. UTTING, Peter. “Rethinking business regulation: from self-regulation to social control”. Geneva: UN-
realista o alcance da restauração. RISD, 2015, p. 8 e ss. Justine Nolan debate as críticas sobre a “privatização dos direitos humanos” que
seria veiculada pelas medidas de prestação de contas de direitos humanos no âmbito corporativo (corpo-
Superado o debate Sutherland-Tappan, a grande questão tornou-se rate accountability), NOLAN, Justine. “With power comes responsibility: human rights and corporate
accountability”. University of New South Wales Law Journal, 28/2005, p. 581-585.
revelar os caminhos preferenciais para se elevar o comportamento corporativo 566. VANDENBERGH, Michael. “The New Wal-Mart Effect: the role of private contracting in global gover-
nance”. UCLA Law Review, 54/2007, p. 913.
561. TAPPAN, Paul. “Who is the criminal?”. American Sociological Review, 12/1947, p. 96-102. 567. BILCHITZ, David; DEVA, Surya. “The human rights obligations of business: a critical framework
186 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 187

esta remodelação das interações sociais e direitos humanos o surgimento da tende a maior agilidade e menor dependência das instituições. Assim como
compliance de direitos humanos, com foco na prevenção do dano advindo do na interpretação de Justine Nolan, as expectativas de comportamento cor-
comportamento corporativo socialmente danoso568. porativo, extremamente dinâmicas, podem encontrar maior ressonância em
Desde a perspectiva da responsabilização jurídica, os dois aspectos mais “escolhas deliberadas e na maioria das vezes mais atraentes aos stakeholders
relevantes são a cumplicidade e a due diligence de direitos humanos. Christo- relevantes (...), porque pode conter aspirações e metas voltadas ao melhor
pher Kutz dá uma boa dimensão dos problemas gerados pela cumplicidade e cenário possível com as mais brandas constrições caso as metas não sejam
sugere algumas saídas para estabelecer os vínculos entre ela e a prestação de atingidas”. Nolan identifica outras tantas vantagens, como o fator de que a
contas: facilitação, dano coletivo desestruturado, disfunção organizacional569. natureza informal permitiria a inclusão de um grupo maior de participantes
O recurso a due diligence de direitos humanos consistiria, igualmente, em ins- (inclusive atores não-estatais), inclusive garantindo enforcement, além de
trumento preventivo de cumplicidade por violação de direitos humanos ou, que a orientação por soft law poderia ser, em verdade, precursora de me-
já posterior ao fato, durante a investigação de eventual responsabilidade570. didas vinculantes, servindo como instância de teste e experimentação de
Sabine Michalowski, por sua vez, analisa a convergência entre cumplicidade mecanismos alternativos de accountability573.
e direitos humanos. Na linha da soft law, concebe due diligence teoricamen- Também na discussão europeia a questão tem gerado promissor debate
te como o dever de prudência e avaliação de risco, e, na prática, como o científico. Com a edição da Directive 2012/29/EU, deu-se o reconhecimento
instrumento preparatório para informar os processos de tomada de decisão legal das vítimas de delitos corporativos e da violência corporativa (corporate
negocial e transações da empresa. Isso somado à associação ou participação violence), reforçando-se a necessidade de se alinhar estratégias regulatórias
em comportamento socialmente danoso – cumplicidade – gera obrigação mais específicas para a vitimização no âmbito corporativo. As vítimas de
jurídica exigível, possivelmente influenciando na elaboração de medidas de violência corporativa são reduzidas a uma situação delicada e particular de
remediação às vítimas nas hipóteses em que as corporações conscientemente vulnerabilidade, em face dos efeitos da concentração de poder econômico e
colaboraram com a violação de direitos humanos praticada por terceiros571. assimetria de informações nas corporações. A perspectiva européia (veja-se
Muito ainda se discute sobre a natureza desta obrigação jurídica, se Eurostat data) tampouco considera que este vulnerável seja uma minoria,
vinculante aos moldes da hard law ou se mais afeita às recomendações não já que a criminalidade corporativa move processos de vitimização violen-
vinculantes de soft law. Ainda que haja certa propensão ao caráter vinculan- ta que prevalecem à violência da criminalidade tradicional, com efeitos
te572, a regulação do impacto negativo das empresas nos direitos humanos
can be read in through a purposive interpretation of international human rights instruments, the imple-
mentation of international human rights norms under domestic law, and declarations of commitment
for the future”. DEVA, Surya; BILCHITZ, David. Human rights obligations of business. Cambridge: to the International Bill of Rights by corporations in their voluntary codes. States have a critical role
Cambridge Press, 2013, p. 1-26. to play in developin their constitutional and legislative frameworks to recognize such binding obliga-
568. “(...) compliance with human rights norms should be a non-negotiable precondition for doing business, tions. Courts can alos help firm up some of these obligations. The development of state and regional
rather than becoming a matter of expediency, only being relevant when it might impact (adversely or regulation over time can have an important impact on the evolution of international binding norms in
positively) the bottom line of companies”, BILCHITZ, David; DEVA, Surya. The human rights obliga- the longer term. (…) The human rights obligations of companies should be firmly grounded in a sound
tions… cit., p. 13. normative bases (eg. Philosophical underpinnigs of human rights) rather than social expectations or the
self-serving ‘business case’ for human rights”. BILCHITZ, David; DEVA, Surya. The human rights
569. KUTZ, Christopher. Complicity: ethics and law for a collective age. Cambridge: Cambridge Press, obligations… cit., p. 13.
2000, p. 166 e ss.; a questão da colaboração consciente ou dolosa pode ser empiricamente demonstrada
a partir dos procedimentos de accountability das corporações, BOHOSLAVSKY, Juan Pablo; OPGE- 573. “Soft law tends to embody a diffusion of governance which does not render governments powerless
NHAFFEN, Veerle. “The past and present of corporate complicity: financing the Argentinian Dictator- but ‘nevertheless throw(s) up challenges of coordination and regulation”, NOLAN, Justine. Respon-
ship”. Harvard Human Rights Journal, 23/2010, p. 172 e ss. sibility to respect: soft law or not law?”. DEVA, Surya; BILCHITZ, David. Human rights obligations
of business. Cambridge: Cambridge Press, 2013, p. 141-142. Em argumentação muito semelhante,
570. “The concept of due diligence is introduced as a mechanism by which companies might discharge their SCOTT, C. et al. “The conceptual and constitutional challenge of transnational private regulation”.
responsibility to respect rights and reflects the continued reliance on a largely self-regulatory process to Journal of Law and Society, 38/2011, p. 2 e ss.; SHAFFER, Gregory; POLLACK, Mark. “How hard
curb corporate human rights violations”, NOLAN, Justine. Responsibility to respect… cit., p. 156. and soft law interact in international regulatory governance: alternatives, complements and antago-
571. MICHALOWSKI, Sabine. “Due diligence and complicity: a relationship in need of clarification”. nists”. Minessota Law Review, 94/2010, p. 727 e 743; FERRAN, Eilis; ALEXANDER, Kern. “Can
DEVA, Surya; BILCHITZ, David. Human rights obligations of business. Cambridge: Cambridge Press, soft law bodies be effective? Soft systemic risk oversight bodies and the special case of the European
2013, p. 241. Systemic Risk Board”. University of Cambridge Faculty of Law Research Paper, 36/2011, 34 p.;
572. “(...) there is a need to try developing a more binding character for the human rights obligations of cor- SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. “Autorregulação, responsabilidade empresarial e criminal com-
porations. Such obligations, of course, could be expressly recognised in a treaty which, given current pliance”. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, direito penal e
political realities, could be developed only in the distant future. In the interim, such ginding obligations lei anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 44 e ss.
188 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 189

transnacionais, em larga escala e sistêmicos574. Nieto Martin identifique com clareza a “trilogia” das modalidades sancionató-
A Diretiva Europeia de 2012 é fortemente concentrada na ideia de abuso rias em face da pessoa jurídica no direito europeu (multa, intervenção judicial,
de poder das corporações e suas mais distintas manifestações575. Em termos de desqualificação ou incapacitação), falta ainda nos debates sobre a violação de
vitimização secundária, tal qual destacado por Adán Nieto Martin, a incorpora- direitos humanos no âmbito corporativo maior imaginação criminológica em
ção de agenda de mídia constrói as imagens do ofensor e vítima, manipulando relação às modalidades de sanção, no mais das vezes limitada a multas em face
os conceitos de ambição, negligência e naturalização do envolvimento em das corporações579. A utilização de multas com a finalidade intimidatória, sem
infrações econômicas e grandes esquemas fraudulentos. Apesar disso, Adán mencionar a falta de evidência de sua efetividade, nem sempre representa o
Nieto Martin reconhece a maior vulneração das vítimas do abuso de poder eco- interesse de remediação e reparação das vítimas. A desqualificação deveria ser
nômico nos países em desenvolvimento. A dinâmica da indústria e comércio reservada a casos extremos de “empresas perigosas”. Na interpretação de Adán
transnacional acaba levando ao processo de offshoring também da produção e Nieto Martin, as soluções alternativas para os conflitos de vitimização corpora-
transações econômicas576. “O deslocamento da produção significa, em última tiva assumem um caráter fortemente comunicativo, buscando estrategicamente
instância, a realocação do crime e seu impacto”. Estendendo um tanto a sen- mecanismos de inclusão da vítima, além de sugerir mobilização de iniciativas
tença de Nieto Martin, o crime também seria um produto de exportação. de intervenção comunitária (community intervention), “dando-se voz aos sta-
keholders na gestão da corporação”, numa espécie de “responsabilidade social
A Diretiva tem o firme propósito de determinar a participação da vítima coativa”. O engajamento da comunidade na solução do conflito seria a forma
no processo577. Há, em princípio, dois níveis de participação da vítima no de converter as multas em benefícios da comunidade vitimizada, a qual, ela
processo: (1) nível básico, que se refere à contenção dos danos colaterais às ví- própria, assumiria a deliberação sobre a alocação dos recursos provenientes da
timas, oferecendo os meios necessários para a remediação e reparação do dano multa. A inclusão pela via dos processos deliberativos também poderia ocorrer
causado; e, para além da remediação e reparação, (2) formulação de sanções pela participação da vítima na performance empresarial, conduzindo suas ações
orientadas à figura da vítima578. Com acuidade, Nieto Martín observa que a ao benefício dos stakeholders580.
introdução do interesse da vítima na configuração das sanções contra as pessoas
jurídicas seria o caminho preferencial, sobretudo na identificação mais precisa Sob esta mesma orientação de formulação de um sistema sancionatório
na justificação das hipóteses em que a pessoa deveria ser punida. Apesar de que baseado na inclusão da vítima, uma terceira via possível seria a aplicação da
“Justiça restaurativa” no âmbito das infrações econômicas. A via de inclusão
574. A noção de risco sistêmico é amplamente debatida em WILLKE, Helmut et al (org). Systemic Risk: the da vítima por força dos direitos humanos pode parecer ou excessivamente po-
myth of rational finance and the crisis of democracy. Frankfurt: Campus, 2013. Originalmente, a noção
de risco moral remonta a ARROW, Kenneth. Social choice and individual values. New York: Wiley, lítica (e, enquanto tal, infra-complexa); econômica, diluindo a legitimação dos
1963, em referência à prática de facilitar o comportamento arriscado a quem não tem condições plenas
de avaliar o risco, ERICSON, Richard; DOYLE, Aaron. “The institutionalization of deceptive sales in direitos humanos no acoplamento aos interesses lucrativos das empresas581 ou
life insurance: five sources of moral risk”. The British Journal of Criminology, 46/2006, p. 993-1010. excessivamente metafísica, incapaz de atingir o plano da sensibilidade prática.
575. MAZZUCATO, Claudia. “Victims of corporate violence in the European Union: challenges for criminal
justice and potentials for European policy”. FORTI, Gabrio et al (org) Victims and corporations: legal Embora seja estrategicamente relevante para superar os estágios de indiferença
challenges and empirical findings. Milano: Wolters Kluwer, 2018, p. 22-67.
576. NIETO MARTÍN, Adán. Victims of corporate crimes. Manuscrito de breve publicação, apresentado na
International Conference “Victims and Corporations – Rights of Victims, Challenges for Corporations, 579. “The strain between deterrence and remedy is tackled in a more coherent way in the Guidelines for
Potentials for New Models of Criminal Justice”, na Università Cattolica del Sacro Cuore, 2016. sentencing organization. The Guidelines recognized openly remedy of the harm has a prior status as
577. Apesar de manter a tradicional postura alemã refratária à presença das empresas no processo penal, deterrence. The first task of the judges is to ensure reparation. If the firm does not dispose of enough
observa-se amplo estudo comparativo sobre a participação da vítima no processo, KILCHLING, Mi- resources, an alternative way to calculate the fine is forseen”, NIETO MARTÍN, Adán. Victims of cor-
chael. “Übertragung opferschützender Normen aus dem Strafverfahrensrecht in andere Verfahrensord- porate crimes… cit.
nungen”, Max Planck Institut/Wissenschaftliche Studie im Auftrag des Bundesministeriums der Justiz 580. “Today, corporations are not only economic actors, they are social actors too, with a high capacity to
und Verbraucherschutz, 2017, 113 p. affect a lot of citizens, who do not have any contractual link with them; the stakeholders. Social res-
578. “This idea in the field of natural persons in not easy to implement, and could lead us to the times where ponsibility and good corporate citizenship is the answer to this understanding of the corporations. The
the revenge was the principal aim of criminal law. However, in the case of legal persons victim’s orien- criminal responsibility of legal persons represents the B side of social responsibility”, NIETO MARTÍN,
ted sanctions are useful also in order to improve a better and responsiveness self-regulation inside the Adán. Victims of corporate crimes… cit.; em sentido semelhante, LETSCHERT, Rianne; GROENHUI-
firm. (…) The fine is a motive to achieve a better self-regulation, in order to prevent, detect and sanction JSEN, Marc. “Global governance and global crime: do victims fall in between?”. LETSCHERT, Rianne;
criminal conduct, that take place inside the firm. In view of these fines, a rational corporation should VAN DIJK, J. The new faces of victimhood. Heidelberg: Springer, 2011, p. 1-34.
think that it is more profitable to invest in a compliance program”. NIETO MARTÍN, Adán. Victims of 581. TEUBNER, Günther. “Self-constitutinalizing TNCs? On the linkage of ‘private’ and ‘public’ corporate
corporate crimes… cit. codes of conduct”. Indiana Journal of Global Legal Studies, 18/2011, p. 618 e ss.
190 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 191

à vítima e necessária para o enriquecimento multidisciplinar do novo campo de reação primária ao comportamento desviante passaram a ser questionados
pesquisa proposto neste livro, a tutela penal dos direitos humanos no âmbito pela Justiça restaurativa e sua atuação acentuadamente marcada pelos efei-
corporativo deveria antes dominar as dimensões do comportamento corporati- tos danosos às vítimas do comportamento desviante. Novos elementos e
vo socialmente danoso, as qualidades essenciais da sanção penal, compensação emoções constitutivas da personalidade foram introduzidas, especialmente
da vítima, conflito de jurisdições, ambivalência profunda e simbólica de atri- medo, dor, sofrimento e o perdão. Para além da mera intervenção jurídica, a
buir responsabilidade penal empresarial, estimulando novos e mais criativos Justiça restaurativa poderia endereçar o reconhecimento das personalidades
mecanismos de controle social e regulação do negócio. envolvidas na interação ofensor e vítima.
A proposta de aprendizagem de uma vitimologia corporativa a partir da Tony Marshall promove ampla revisão das teses restaurativas, deli-
convergência entre criminologia corporativa e ética negocial pode encontrar mitando os principais conceitos aplicáveis à Justiça restaurativa. Já quase
nesta articulação entre direitos humanos e vitimização – importante legado um lugar comum dentre os estudiosos da matéria, a definição proposta
da crítica vitimológica – um instrumento estratégico de desvitimização e re- por Marshall remonta ao “processo a partir do qual as partes interessadas
dução do dano no âmbito corporativo. Apesar disso, trata-se de debate ainda em determinada ofensa resolvem coletivamente como lidar com as conse-
distante de uma implementação efetiva no Brasil, cujos primeiros passos no quências e implicações futuras desta ofensa”585. Além de vítima e ofensor,
Decreto 9.571/2018, que institui as “Diretrizes Nacionais sobre Empresas e a comunidade se integra ao processo de resolução alternativa do conflito.
Direitos Humanos” estão bem longe de reposicionar a obrigação moral e a Para além da simples mediação586 entre vítima e ofensor, na Justiça res-
responsabilidade penal das empresas entre nós. taurativa as agências que compõem o sistema de justiça articulam as redes
sociais (no sentido sociológico de social network) das vítimas e redes sociais
5.7. JUSTIÇA RESTAURATIVA CORPORATIVA dos ofensores com a comunidade local587, desinstitucionalizando e des-
Apesar de teoricamente convincentes, as amplas mobilizações em torno formalizando o conflito dos mecanismos estatais para a própria dinâmica
do paradigma alternativo de Justiça restaurativa enfrentaram sérios obstáculos da sociedade. Conceitualmente, tem todo sentido, uma vez que o crime
no momento de sua implementação, padecendo diante da burocracia admi- guarda suas origens no âmbito da sociedade. Esta integração permitiria,
nistrativa das associações de vítimas582, ou mesmo da capitalização política em tese, reinterpretar o conteúdo da vitimização e atender de forma mais
promovida por determinados grupos de interesse583. O que particularmente plena as necessidades da vítima, prevenir a reincidência (na medida em que
importa nesta pesquisa é o potencial de desvitimização apresentado pela reintegra o ofensor na comunidade, recriando o senso de responsabilidade
Justiça restaurativa e sua possível experimentação no âmbito corporativo. da comunidade e o próprio sentido social da vida em comunidade), fran-
quear a possibilidade de o ofensor assumir a responsabilidade e reduzir o
Dentre os mais representativos estudos a determinar os fundamentos
impacto dos custos judiciais na criminalidade, com pronta resposta à ofensa
do que seria uma revisão do paradigma do sistema de justiça criminal,
e reparação588.
encontram-se as análises de Joe Hudson e Burt Galaway, Beyond Resti-
tution584. Desde então, os fundamentos da punição e tratamento como 585. MARSHALL, Tony. Restorative justice: an overview. London: Crown, 1999, p. 5 e ss. Veja-se também
ROCK, Paul. Constructing victims rights… cit.
586. Originalmente, a simples mediação entre ofensor e vítima era conhecida como “Justiça restaurativa
582. “The administration of victim-based organizations of the grows more complex as membership grows direta”, mais sobre em MARSHALL, Tony et al. “Crime and accountability: victim-offender mediation
and projects and goals become more diverse. For most, staffing needs include accountatnts and booke- in practice”. London: Home Office, 2002, 271 p.
epers familiar with non-profit administration and compliance with all funding regulations and reportins 587. MARSHALL, Tony. Restorative justice… cit., p. 5 e 7: “Restorative justice is not, therefore, a single
systems. Most need a full-time grant writer and fundraise as well as someone familiar with media, academic theory of crime or justice, but represents, in a more or less eclectic way, the accretion of actual
newsletters, publicity. Administrators must be able to train, schedule and monitor volunteers as well as experience in working successfully with particular crime problems. Although contributing practice has
engage in public speaking to raise awareness for the organization and its needs”. McSHANE, Marilyn been extremely varied (including victim-support, mediation, conferencing, problem-oriented policing
et al. American Victimology... cit., p. 124. and both community- and institution-based rehabilitation programmes), all these innovations were ba-
583. Mais sobre o surgimento remoto da Justiça restaurativa desde a perspectiva dos movimentos históricos sed on recognition of the need for engagement between two or more of the various parties. (…) Coming
de restituição da vítima, HARDING, J. Victims and offenders: needs and responsibilities. London: Be- from very different directions, innovating practitioners found themselves homing in on the same under-
dfore Square, 1982, 54 p. lying principles (personal participation, community involvement, problem-solving and flexibility). As
584. HUDSON, Joe; GALAWAY, Burt. “Beyond restitution – creative restitution”. GALAWAY, Burt; HUDSON, practice is refined, so is the concept of Restorative Justice”.
Joe. Criminal Justice, Restitution, and Reconciliation. Monsey: Criminal Justice Press, 1990, p. 9 e ss. 588. MARSHALL, Tony. Restorative justice… cit., p. 6.
192 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 193

Andrew Ashworth589, Jim Dignan590, Richard Hofrichter591 seguiram os sociais, o estilo de vida e as atividades rotineiras entre os ofensores e vítimas
debates sobre as novas formas de concepção e institucionalização do controle em situação de maior propensão.
social sugeridas pela Justiça restaurativa, explorando novas formas de envol- Há uma série de estudos orientados à análise do tratamento isonômico
vimento e participação comunitárias, propostas ao menos mais imaginativas e à satisfação com os procedimentos do sistema de justiça (fairness research)595.
de punição, normatividade e justificação moral dos conflitos. No âmbito da Neles podem ser encontradas experimentações sobre as várias modalidades de
vitimologia, as estratégias alternativas de Justiça restaurativa foram festejadas contatos interpessoais e nível adequado de informação entre ofensor, vítima
como forma de recuperar o sentido da vida social cotidiana da vítima592, para e comunidade596. A participação da vítima se reflete não somente no controle
além de estereótipos, bodes expiatórios, racionalizações sobre a precipitação dos processos decisórios, mas também no reconhecimento de seus interesses. A
vitimal ou auto-vitimização e imposição de valores morais abstratos universais partir desta nova racionalidade, a consulta prévia à vítima, sua participação no
às experiências concretas de vitimização593. O que particularmente representa procedimento, reconhecimento de seus interesses e alternativas menos forma-
um avanço muito significativo em relação à mentalidade classificatória dos lizadas ainda na esfera de composição comunitária podem tanto reduzir o peso
clássicos do pensamento vitimológico. A reorientação dos estudos da vítima da intervenção na esfera de liberdade pessoal do ofensor quanto veicular juízos
a partir das instâncias individuais de vitimização, para além da precipitação éticos menos obsessivos pela punição. A inclusão das vítimas amplia a confiança
vitimal de culpa da vítima ou da resolução de conflitos de dano de larga escala. no sistema de justiça criminal e pode favorecer novas perspectivas (tais como
A representação subjetiva da vítima ou o trauma psicológico da vitimização não justiça informacional, justiça interacional, justiça distributiva, justiça proce-
dependem das dimensões do sofrimento ou de sua percepção social. dimental), que privilegiam o perdão e a reconciliação597 no lugar da punição.
Este talvez seja o ponto de partida de qualquer iniciativa de desviti-
Foi John Braithwaite, no entanto, quem elevou a Justiça restaurativa
mização. Michael Gottfredson, por exemplo, já a seu modo estabelecendo
a um plano mais proeminente dentre os criminólogos598. Juntamente com
os vínculos possíveis entre as teorias do controle e a redução da vitimização,
Ian Aires, Braithwaite introduz a noção de regulação responsiva (responsive
demonstra como os preditivos de comportamento do ofensor podem valer
regulation) como inteligência básica de controle social. De acordo com a
também como preditivos da vitimização594. A inserção de práticas restaurati-
regulação responsiva, o comportamento socialmente danoso deve ser esca-
vas no âmbito comunitário poderia então afetar sensivelmente as interações
lonado para permitir uma efetiva gradação da resposta estatal. Sob a forma
589. ASHWORTH, Andrew. “Is restorative justice the way forward for criminal justice”. Current legal pro- de uma “pirâmide regulatória”, a base seria submetida a estratégias de desins-
blems, 54/2001, p. 347 e ss.
590. DIGNAN, Jim. “Towards a systemic model of restorative justice”. VON HIRSCH, Andrew et al (org) Resto-
titucionalização e desformalização, reservando-se os mecanismos formais e
rative justice and criminal justice: competing or reconcilable paradigms. Oxford: Hart, 2003, p. 135 e ss. mais intensivos de controle social às condutas concentradas no topo. O gênio
591. HOFRICHTER, Richard. Techniques of victim involvement in restitution. Washington: National Institu-
te of Justice, 1979, 45 p. criativo do modelo da regulação responsiva consiste na formulação do “pa-
592. McSHANE, Marilyn et al. American Victimology... cit., p. 195. radoxo regulatório”: apenas porque é certa a resposta formal concentrada no
593. Os programas de Justiça restaurativa representam uma forma mais abrangente de endereçar solu-
ções alternativas ao conflito ofensor-vítima, na tentativa de superar o anacronismo da intervenção topo é que funcionam os mecanismos informais da base. Toma emprestada
estatal. O propósito é justamente reclamar à comunidade o protagonismo na orientação da solução
(community-based), condicionando a possibilidade de comunicação entre as partes: “empowering
victims by having the offender address questions they may have about why they were targeted and 595. O conhecimento sobre a vítima pode impactar substancialmente no que se qualifica como sendo “fair”,
how they have been harmed by the events. Still, the methods seek to provide less punitive and TYLER, Tom; DAWES, Robyn. “Fairness in groups: comparing the self-interest and social identity
more rehabilitative program components”. As noções de justiça reparadora (reparative justice) perspectives”. MELLERS, Barbara et al (org) Psychological perspectives on Justice: theory and appli-
busca promover mais do que a simples compensação material, estimulando práticas de engajamen- cations. Cambridge: Cambridge Press, 1993, p. 88.
to voluntário na comunidade de tal forma que “implies that emotional and psychological healing 596. “(…) cognitive behavioral counseling methods have been one of the more successful trends of the last
must be facilitated and the victim should feel ‘whole’ again”, McSHANE, Marilyn et al. American twenty years and they have been associated with the what works in drug and alcohol, anger management
Victimology... cit., p. 117. and sex offender treatments. The goal of this approach is to have offenders become sensitized to the ef-
594. “In control theory terms, the processes that reduce the restraints to offend are similar to the processes fects that their actions have on victims”. VAN NESS, Daniel W.; STRONG, Karen Heetderks. Restoring
in lifestyle terms that affect the probability that persons will be in places at times and around people justice: an introduction to restorative justice. 4. ed. New Providence: LexisNexis, 2010, p. 118.
where the risk of victimization is high. (…) In this sense then, efforts to increase our understanding of 597. Em profundidade sobre, BRAITHWAITE, John. “Repentance rituals and restorative justice”. The Jour-
offenders and of victims may very well turn out to be mutually beneficial. If we understand one we may nal of Political Philosophy, 8/2000, p. 115-131. Em sentido contrário, ASHWORTH, A. “Victim impact
understand one we may understand the other. Thus our task may be half as onerous as it appears to be”, assessment and sentencing”. Criminal Law Review, p. 498-509.
GOTTFREDSON, Michael. “On the etiology of criminal victimization”. Journal of criminal law and 598. BRAITHWAITE, John. “The new regulatory State and the transformation of criminology”. British
criminology. 72/1981, p. 726. Journal of Criminology, 40/2000, p. 222-238.
194 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 195

a lógica da Guerra Fria ao sugerir que uma “arma benigna” (big benign gun) a resolução metodológica da regulação responsiva, segundo a qual não deve
deve ser posta no topo, gerando uma ameaça generalizada – e certa – de que haver Justiça restaurativa que não esteja combinada de forma sofisticada e
melhor se exercitem mecanismos diplomáticos (diálogo, persuasão) a recorrer inteligente com os mecanismos convencionais de controle social formal602.
à guerra e à destruição. Poderosamente, a tradicional oposição entre norma Avaliações sistemáticas tem sido utilizadas para extrair as evidências
como coerção e norma como cooperação se resolve no paradoxo regulatório das melhores práticas no âmbito da Justiça restaurativa. Lawrence Sherman
de Braithwaite e a partir do que concebeu como sendo a “autorregulação e Heather Strang lideram os experimentos para coletar as evidências do que
regulada” (enforced self-regulation)599. O engenho da regulação responsiva cria funciona (what works) como estratégia de desvitimização. Sherman e Strang
um referencial teórico e as condições intelectuais para uma forte implicação orientaram a busca de evidências pelos questionamentos seguintes: se práticas
e polaridade entre controle social formal e informal, o que, no âmbito da de Justiça restaurativa poderiam efetivamente encorajar maior participação
criminologia econômica, especialmente a partir das ideias de Laufer, servirá da vítima, inclusive a partir de maior confiança na justiça e nos instrumentos
para uma sofisticada combinação regulatória entre responsabilidade penal da jurídicos, se encorajariam mais ofensores a assumir a responsabilidade pelo seu
pessoa jurídica e pluralismo regulatório. comportamento, o incremento da legitimidade afetaria o nível de obediência
É claro que se a proposta não ganhar concretude, fica dissolvido o e cooperação, se seguiriam, em escala crescente, atraindo mais vítimas e mais
paradoxo regulatório. A fim de que este paradoxo se realize, são necessárias ofensores para o modelo da restauração603. No que diz respeito mais especifica-
ameaça simbólica eficaz, instituições certas, harmonia regulatória e coerência mente ao dano à vítima, além da redução de custos para o próprio sistema de
no subjetivismo decisório. Do contrário, desenrola-se uma série de desar- proteção e apoio à vítima, Sherman e Strang evidenciam o aumento da satis-
ranjos institucionais, inclinados a substituir certeza por severidade para dar fação da vítima e os resultados positivos da lógica “mais justiça, menos crime”
conta das respostas indiscriminadas e do elevado potencial simbólico que (more justice, less crime): 1) melhoria – e redução de custos – na prestação de
pode assumir a sensação de segurança. No lugar da proclamada autorregu- serviços por parte do Sistema de Justiça, especialmente em relação à proteção
lação regulada, o que se tem concretamente é o sistemático desacoplamento da personalidade da vítima e acompanhamento pós-traumático; 2) diminuição
estrutural entre as partes que deveriam cooperar entre si, realimentado por da reincidência no caso de ofensores que integraram práticas de restauração
falta de inteligência regulatória e operações obsessivas por law enforcement. (com maior eficácia em relação aos crimes com emprego de violência do que
em violações menos gravosas); 3) diminui a extensão e os efeitos da “malha”
Braithwaite, muito ciente disso, tem experimentado uma série de es-
do Sistema de justiça criminal; 4) necessidade de agentes especializados em
tratégias alternativas para superar a ausência da “arma benigna” que garante
restauração; 5) não há conflito com os modelos de controle social formal; 6)
o paradoxo regulatório. Especialmente em economias em desenvolvimento,
redução do desejo de vingança por parte das vítimas604.
sugere a articulação de redes regulatórias (regulatory networks) alternativas para
suprir a incapacidade regulatória e a instabilidade das instituições. ONGs e Porém, não há como esperar uma solução mágica e universal do pro-
outros atores de pressão social poderiam, em tese, constituir o que Braith- blema criminal a partir da Justiça restaurativa605. Sherman e Strang não
waite entende como modelo da “sociedade reguladora” (regulatory society)600. deixam de expor as limitações das evidências: a maior parte das vítimas
Sem embargo, não há evidências de que a alternativa sugerida tenha alguma
funcionalidade601. Seja como for, a principal contribuição de Braithwaite, 602. BRAITHWAITE, John. Restorative justice and responsive regulation. Oxford: Oxford Press, 2002, p.
239 e ss.
colocando-o num lugar muito privilegiado no pensamento criminológico, é 603. SHERMAN, Lawrence; STRANG, Heather. Restorative justice: the evidence. London: The Smith
Institute, 2007, p. 15. Em detalhes sobre as perspectivas teóricas da Justiça restaurativa, STRANG,
Heather. Repair or revenge: victims and restorative justice. Oxford: Oxford Press, 2002; STRANG, He-
599. BRAITHWAITE, John. Restorative justice… cit., p. 239 e ss. ather; SHERMAN, Lawrence. “Repairing the harm: victims and restorative justice”. Utah Law Review,
600. BRAITHWAITE, John. “Responsive regulation and developing economies”. World Development, 2003, p. 15-42.
34/2006, pp. 884-898. 604. SHERMAN, Lawrence; STRANG, Heather. Restorative justice… cit., p. 88.
601. Bem porque o próprio Braithwaite critica o fato de que as estratégias de Justiça restaurativa não tem sido 605. Nem do problema criminal, nem das privações sociais, desigualdade e discriminação, WALGRAVE,
acompanhadas de modificações substanciais em termos de políticas públicas, BRAITHWAITE, John. Lode. “Restorative justice is not a panacea against all social evils”. AERTSEN, Ivo; PALI, Brunilda.
New regulatory state... cit., p. 226. Critical restorative justice. Oxford: Hart, 2017, p. 65 e ss.
196 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 197

ainda sequer chega a tomar conhecimento do crime ou do ofensor, a maior societária” (societal catharsis)610. Os aspectos mais promissores desta nova
parte dos ofensores ainda se recusa a aceitar a responsabilidade, há consi- perspectiva consistem, por um lado, na revisão das formas dominantes de
derável relutância por parte de ofensor e vítima em participar das práticas justificação moral e, por outro, em análise mais inspiradora da significân-
restaurativas. Além disso, medo, angústia, raiva e outras emoções estão cia moral dos danos coletarais causados pelo comportamento corporativo
longe de receber o devido cuidado606, inclusive considerando os riscos de socialmente danoso em nível comunitário.
que as práticas possam agravar a situação da vítima607, no lugar de trazer- O problema das práticas restaurativas não se resume à crítica às teorias
-lhes conforto e devida prestação dos serviços de justiça. comunicativas que podem ou não lhe emprestar fundamento teórico, no
Neste novo campo de pesquisa das ciências criminais, a Justiça restaura- que genericamente costuma-se ser questionado sobre a “situação ideal de
tiva corporativa pode oferecer às corporações real capacidade de cooperação fala” ou ao fato de que a comunicação, apesar de poder gerar consenso, não
e recuperar a confiança por meio de alternativas mais sofisticadas de controle resolve os conflitos concretos. Talvez seja mais relevante extrair a reflexão
social dos negócios. Há expectativa de que práticas de Justiça restaurativa crítica da Justiça restaurativa a partir de suas práticas sociais, e não com base
possam ser bastante úteis na recuperação da coesão social perturbada por em suposições teóricas ou reduções epistemológicas. Seguindo a crítica de
comportamento corporativo socialmente danoso e fortalecimento das redes Laufer, o desenvolvimento da vitimologia corporativa pode superar situações
comunitárias. Precisamente porque as infrações corporativas afetam as inte- de Justiça não distribuída pela simples ausência do reconhecimento da vítima
rações sociais e as redes comunitárias, elas acabam também vulnerando os e verificação científica da “expressão genuína de remorso”611, para além da
fundamentos do controle social informal. retórica das apologias empresariais.
Justiça restaurativa oferece vasto campo de análise para identificar O que dá fundamento às práticas restaurativas são alternativas pluralistas
estratégias de devitimização e prevenção da vitimização frente à violência de resolução do conflito, para além das limitações dos mecanismos jurídicos
corporativa608. Porém, na medida em que o desenvolvimento do novo campo que motivam um comportamento cooperativo, orientadas à proteção de quem
de pesquisa configure a especificidade da vitimização corporativa, as estraté- foi realmente submetido a um processo de vitimização. A vitimologia corpora-
gias podem atingir outros níveis de sofisticação para além dos esforços pouco tiva poderá responder à essencial questão de como proteger quem é vulnerado
inspiradores de regulação baseados na obsessão punitiva e na intimidação às pela má prática corporativa. A Justiça restaurativa corporativa representaria um
corporações (corporate deterrence)609. extraordinário esforço em endereçar uma mensagem significativa contra a in-
Na reveladora expressão de David Uhlman, estratégias restaurativas justiça social resultante de comportamento corporativo socialmente danoso612.
poderiam ajudar as vítimas a acessar a responsabilidade penal empresa- Injustiça que, em últimas consequências, reflete-se com ênfase na alienação da
rial e o sistema de justiça criminal para a promover a necessária “catarse
610. UHLMAN, David. “The pendumlum swings: reconsidering corporate criminal prosecution”. UC Davis
Law Review, 49/2016, p. 1267 e ss.
606. “To be sure, this evidence has limits. Most victims will never learn who committed a crime against them, 611. “A complete answer to the simple question about the wisdom of restorative justice must consider factors
since most crimes go unsolved. RJ cannot help those victims directly. Even when an offender is identi- beyond congruence and fairness. This includes concerns that making corporate amends might frustrate
fied, some offenders will refuse to accept responsibility, or to engage in RJ on any basis. RJ cannot help the objectives of many decades of sentencing reforms, insofar as this practice supports a shift of dis-
their victims. And even when offenders are willing to engage in RJ, some victims (or their families) will cretion from judges to prosecutors; producers dispositions of diverted companies that lack uniformity
prefer not to. RJ cannot help those who will not help themselves”, SHERMAN, Lawrence; STRANG, and proportionality; results in diversions of convenience, diversions reversed for corporations of scale
Heather. Restorative justice… cit., p. 62. where formal adjudication is not practical, and makes it difficult, at least in some cases, to assess the
607. “For a small minority within well-conducted studies, it is clear that RJ was a negative experience that genuine expression of remorse”, LAUFER, William; STRUDLER, Alan. “Corporate crime and making
did not improve their situation and may have made it worse. Conferences are inherently more risky ven- amends”. American Criminal Law Review, 44/2007, p. 1318.
tures than normal criminal justice processing: the latter may do little to help victims, but little to harm 612. “A good example is the affaire Chixoy in Guatemala. The military dictatorship built a big dam with fi-
them either when they have no role to play. Confronting the (fortunately rare) unremorseful offender in nancial aids of the World Bank, that finished with the life of many towns, affecting thousands of people,
an RJ conference, however, may appear to be a significant risk – even if the payoff is substantial when but the worst was the severity or the repression against protests, with torture, violence, missing people
the encounter results in a sincere expression of apology”, SHERMAN, Lawrence; STRANG, Heather. etc. In 2008 took place and agreement between the government, the affected peoples and communities
Restorative justice… cit., p. 62. that have many elements of restorative justice. The reparation was negotiated within a “politic group of
608. PEMBERTON, Antony et al. Taking victims seriously… cit., p. 7 e ss. dialog” [daialok], where the people, the government, international observers were represented, and the
609. Em outro estudo seminal, Sally Simpson demonstra empiricamente a ausência de evidências empíricas OEA was the mediator. The agreement included as essential elements the apology and recognisment
sobre a efetividade das medidas de intimidação às práticas corporativas (corporate deterrence), SIMP- of the facts. If the terms of the agreement are not obeyed, the doors of the judicial system are open”,
SON, Sally. Corporate crime, law and social control. Cambridge: Cambridge Press, 2002, p. NIETO MARTÍN, Adán. Victims of corporate crimes… cit.
198 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 5 – Vitimologia corporativa: um novo campo de pesquisa para as ciências criminais 199

vítima dos processos de composição do conflito. mais consistentes, nem análises empíricas mais detalhadas sobre o que
É bem possível que a investigação dos processos de vitimização no seria possível oferecer para além dos cálculos superficiais de custos e bene-
âmbito corporativo poderia resultar de exercício de imaginação moral e fícios. Tampouco há maior mobilização científica mais preocupada com
construção de narrativas sociológicas, como mínimo, mais criativas. Em os efeitos humanos e sociais do comportamento corporativo socialmente
últimas consequências, uma Justiça restaurativa corporativa pode servir à danoso. A vitimização corporativa permanece negligenciada e invisível.
elaboração de duas grandes linhas de pesquisa: 1) desde a convergência Como uma questão de Justiça econômica, a vitimologia corporativa deveria
entre ética negocial e criminologia, orientar a uma melhor compreensão priorizar caminhos para a restauração dos conflitos que afetam minorias su-
normativa das preferências e entraves entre shareholders e stakeholders, brepresentadas nos escândalos corporativos. Por agora, a reconstrução dos
estabelecendo os vínculos possíveis com a personalidade da vítima, as conceitos e sugestão de práticas performadas por um novo sentido social,
motivações morais e as estruturas de oportunidade que levam ao compor- apenas vem com a promessa de trazer um novo campo de pesquisa para as
tamento corporativo socialmente danoso613; e 2) reorientação normativa do ciências criminais, centrado não em relação apenas ao que funciona, mas
papel da regulação privada e das práticas corporativas, recorrendo à ideia ao que realmente interessa.
de redes de contratos (contract networks) para avaliar os impactos das novas
iniciativas corporativas éticas no controle social, determinando o potencial
da autoconstitucionalização corporativa na produção de melhor ambiente
organizacional e negocial614. Dado o protagonismo das corporações na so-
ciedade, mecanismos menos burocratizados de accountability empresarial
poderiam expressar uma cultura empresarial mais genuína e autêntica. A
regulação do comportamento empresarial articulada a práticas restaurati-
vas pode, a um só tempo, motivar soluções de redução da vitimização615 e
estimular desenho de estratégias de “desvitimização corporativa” baseada
em comportamento colaborativo, como assim preferimos chamar.
A Justiça restaurativa corporativa pode oferecer os meios necessários
para mediar uma parcela considerável de tragédias humanas e auxiliar as
comunidades a avaliar o dano do comportamento corporativo socialmente
danoso. Esta mediação poderia promover as concretas condições a partir
das quais as vítimas podem produzir o sentido social adequado para a
reparação e uma melhor regulação das normas sociais. Não há estudos
613. “Setting aside the more complicated question of whether this sort of ‘‘stakeholder’’ orientation repre-
sents either a feasible or desirable way of achieving more ethical conduct in business, what this result
does show quite clearly is that the way individuals conceive of their obligations – and the neutralizations
that are made available to them by aspects of their situation – is an enormously important factor in the
decisions that they ultimately make”, HEATH, Joseph. “Business ethics and moral motivation: a crimi-
nological perspective”. Journal of business ethics, 83/2008, p. 611. Para os fundamentos sobre a discus-
são entre restauração e ética negocial, GOODSTEIN, Jerry; BUTTERFIELD, Kenneth. “Extending the
horizon of business ethics: restorative justice and the aftermath of unethical behavior”. Business Ethics
Quaterly, 20/2010, p. 453-480.
614. Mais sobre o papel da regulação privada, LAUFER, William. “El compliance game”. SAAD-DINIZ,
Eduardo; SABADINI, Patricio et al (org) Regulación del abuso en el ámbito corporativo: el rol del
penal en la crisis financiera. Resistencia: Contexto, 2016, p. 88.
615. Para a fundamentação ética do perdão, auto-perdão, redenção e justiça restaurativa, RADZIK, Linda.
Making amends: atonement in morality, law and politics. Oxford: Oxford Press, 2009, p. 153.
Capítulo 6
CONCLUSÕES

O senso de indignação levou Sutherland a investigar cientificamente


a criminalidade ocorrida no âmbito das corporações. A indignação moral
foi decisiva para que Laufer pudesse desenvolver o campo da criminologia
corporativa. Foi este mesmo senso de indignação moral que inspirou a
propositura de uma vitimologia corporativa. Fruto desta convergência entre
criminologia corporativa e vitimologia, a vitimologia corporativa abrange
o estudo da vítima e dos processos de vitimização no âmbito corporativo,
envolvendo comportamento corporativo socialmente danoso em múltipla
escala e a articulação de estratégias, formais e informais, de redução do
dano e da vitimização.
A revisão do lugar da vítima no pensamento criminológico permitiu
atingir uma série de conclusões e chegar à propositura de um novo campo
de pesquisa nas ciências criminais bastante promissor.
A centralidade da anomia para a interpretação funcional e preen-
chimento moral dos conflitos vale também para os estudos vitimológicos,
uma vez que o comportamento da vítima constitui fato amoral e sujeito ao
enviesamento na reação social. Deve-se aos estudos sobre a anomia a com-
preensão da regulação das relações sociais e intervenções que corrigem os
desvios morais, determinando-se as estruturas sociais essenciais à regulação
do comportamento empresarial e funcionamento das instituições, ou, na sua
falta, as oportunidades para o comportamento ilegal e tolerância a condutas
jurídica ou moralmente reprováveis. Quanta anomia é tolerável ou não no
ambiente empresarial permanece como indagação científica.
A postura refratária das organizações empresariais, muitas vezes um
desincentivo provocado pelo desarranjo das iniciativas de enforcement e
regulação, é concebida como formação de subcultura. A pesquisa científica
deve então cuidar de demonstrar as concretas circunstâncias em que esta
subcultura oportuniza as infrações econômicas, forja individualidades e
202 VITIMOLOGIA CORPORTIVA - EDUARDOO SAAD-DINIZ Capítulo 6 – Conclusões 203

legitima práticas jurídica ou moralmente reprováveis, cujas consequências e redução da vitimização, mas também das políticas de reconhecimento e
são processos de vitimização. inclusão da vítima.
A integração das teorias do controle social formal mostrou-se fértil É preciso, portanto, desafiar a mentalidade classificatória e empenhar
campo para investigação científica sobre o controle social do negócio, as esforços científicos tanto para evidenciar a natureza dinâmica da vitimi-
tensões organizacionais e uma ampla e inexplorada agenda de trauma cor- zação corporativa (em que, na maioria dos casos, há inversão dos papéis
porativo. Controle social do negócio segue sendo promissora estratégia de entre ofensor e vítima e em múltiplas escalas), quanto para revelar os danos
redução de espaços para manifestações do egoísmo tão característico da sociais, morais, emocionais e pós-traumáticos, se for mesmo o caso de efe-
sociedade moderna. tivo reconhecimento e inclusão da vítima no sistema de justiça criminal.
O caráter associativo é limitado, apenas um número restrito de agen- Parece bastante recomendável atrelar a vitimologia corporativa às es-
tes desenvolve as habilidades ou encontram oportunidades para cometer tratégias de tutela penal dos direitos humanos no âmbito corporativo e
infrações econômicas. É preciso avançar no legado de Sutherland para aprender com as evidências das práticas restaurativas. Seguindo as críticas
apreender mais adequadamente a personalidade corporativa e o papel da de Laufer, contudo, o “remorso negocial” e a expressão autêntica de com-
empresa como vítima (corporate victimhood). promisso em relação aos processos de vitimização, em oposição ao cinismo
Para além das questões do lugar como vítima (place as victim), o efeito e a modelos de “limpeza ambiental” de fachada (corporate greenwashing),
disruptivo das corporações na dinâmica da comunidade segue como agenda representam os caminhos preferenciais para se atingir mudanças substan-
inexplorada. A ambígua relação de dependência comunitária deve ser in- ciais no ambiente negocial.
vestigada, extraindo evidências sobre formas de superação da desintegração A responsabilidade penal empresarial é pouco orientada às formas de
da coesão social – ou estados de socialização imperfeita – gerado pelas ministrar e endereçar justiça econômica a determinado grupo. A orientação
práticas corporativas. Com um pouco mais de imaginação criminológica, pela vítima corporativa na busca de evidências, inspirando futuras inves-
há ainda muito espaço para se elaborarem estratégias de ligação prossocial tigações empíricas, deve produzir novos resultados ou perspectivas acerca
a nível comunitário. de deliberações dominantes sobre justificações morais das formas tradi-
Apesar dos níveis cada vez mais crescentes de violência corporativa, cionais de punição e legitimar práticas empresariais. Mais importante de
extrapolando o senso comum das vítimas invisíveis, a rotinização e a neu- tudo é que a inclusão da corporação como ofensora e como vítima supere
tralização moral inviabilizam a percepção dos processos de vitimização. É os estados de negligência do sistema de justiça criminal, cuja atuação ou
cada vez mais difundida a justificação moral de que as corporações produ- omissão, paradoxalmente, podem constituir fator de vitimização. Se assim
zem mais benefícios do que dano à sociedade. Assumindo as contribuições o for, além de se somar à mobilização pela revisão dos padrões nacionais de
da vitimologia crítica, as investigações científicas devem se ocupar da cons- controle social do negócio, a vitimologia corporativa tomará suas lições da
trução social de sentido do conflito vitimal e desenvolver estratégias para convergência de métodos e poderá exercer liderança na necessária revisão
“neutralizar as neutralizações”. dos padrões de imaginação moral das ciências criminais.

As métricas convencionais do dano e os níveis de vitimização (pri-


mária, secundária e terciária), embora essenciais para o desenvolvimento
disciplinar, são simplesmente insuficientes para a vitimologia corporativa.
Há razoável expectativa de que a orientação pelos stakeholders como vítimas
e condução do negócio pela criação de valor possam servir de parâmetro
para mensurar a efetividade não apenas das medidas de reparação do dano
Business &
Criminal Justice

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