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O ser filósofo para Sêneca: por um fazer filosófico vivo


L’ÊTRE PHILOSOPHE POUR SÉNÈQUE: pour un faire philosophique vivant

Rafael Batista Lopes de Oliveira59

Resumo
Sêneca se coloca como estóico e autônomo em vários momentos no decorrer de suas prosas
filosóficas. Assim, mostra-se pertinente indagarmos como ele pensa o seu ser filosófico enquanto
estoicismo autônomo. Para isso, este artigo pretende analisar os desdobramentos da noção de ócio
filosófico na obra Sobre o ócio e de sua concepção de filósofo na Carta a Lucílio 45, 4-5. Não
obstante, por meio dos comentários de Christopher Gill, Robert Jim Hankinson e Cícero Cunha
Bezerra e da noção de história da filosofia de Pierre Hadot, estabelecer uma base interpretativa para
que o estoicismo eclético Sêneca possa ser compreendido.

Palavras-chave: Sêneca. Ecletismo. Estoicismo. Autonomia.

Résumé
Sénèque se présente comme stoïque et autonome à divers moments de sa prose philosophique. Ainsi,
il est pertinent de se demander comment il pense son être philosophique comme un stoïcisme
autonome. Pour cela, cet article se propose d'analyser le déploiement de la notion d'oisiveté
philosophique dans l'ouvrage éloge de l'oisiveté et de sa conception du philosophe dans la Lettre à
Lucilius 45, 4-5. Néanmoins, à travers les commentaires de Christopher Gill, Robert Jim Hankinson et
Cícero Cunha Bezerra et la notion d'histoire de la philosophie de Pierre Hadot, établir une base
interprétative pour que le stoïcisme éclectique de Sénèque puisse être comprise.

Mots clefs: Sénèque. Éclectisme. Stoïcisme. Autonomie.

1. Introdução
Pierre Hadot60 encontra na Filosofia Antiga aquilo que podemos denominar de práticas
de si que, sem se deixar absorver principal e univocamente por perspectivas metafísicas e
deterministas do estado das coisas, são capazes de preparar o indivíduo para lidar com a
fluidez da vida. Assim, o foco dos Antigos não estaria no ideal ascético, que é um estado
cristalizado e predefinido a ser alcançado pelo indivíduo, mas no processo de
aperfeiçoamento constantemente atualizado em relação ao seu presente. Há, com isso, para
Hadot (2014, p. 336), dentro da própria noção grega da palavra ‘discurso’ (logos), uma
distinção que reflete essa diferenciação. Existiria uma espécie de discurso que se dirige a si
59
Graduando em Filosofia pela UFU (Universidade Federal de Uberlândia). E-mail:
rafaelbatistalopes1001@hotmail.com Linha de pesquisa: História da Filosofia.
60
Pierre Hadot (Paris, 21 de fevereiro de 1922 – Orsay 24 de abril de 2010) foi um filósofo, historiador e
filólogo francês, especialista em Filosofia helenística e Platonismo. Hadot recupera, em sua obra, a ideia da
filosofia como um modo de vida. Ele atribui um significado filosófico e não religioso ao termo “exercício
espiritual", que consiste em uma prática pessoal e voluntária, destinada a provocar uma transformação do
indivíduo, uma transformação do eu.

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mesmo ou a um discípulo que é de caráter existencial, prático, concreto, que é o exercício


espiritual; e, outra noção de discurso que é diferente, pois é considerado em sua estrutura
abstrata e formal, em seu conteúdo inteligível. Para Hadot, a Filosofia Antiga é marcada
predominantemente pela primeira espécie, enquanto, a partir da Filosofia Medieval61, o
conteúdo inteligível assume o pensamento filosófico.
Sendo assim, a filosofia se compõe, a partir de duas instâncias que, embora
incomensuráveis, são também inseparáveis: o modo de vida e o discurso. Ora, a
inseparabilidade se apresenta na necessária intersecção do discurso e da vida, visto que, nas
palavras de Hadot: “Não há discurso que mereça ser denominado filosófico se está separado
da vida filosófica; não há vida filosófica se não está estreitamente vinculada ao discurso
filosófico” (HADOT, 2014, p. 251). A incomensurabilidade, por sua vez, dá-se pelo fato de,
na Antiguidade, o ser filósofo não se caracterizar enfaticamente pela concatenação discursiva,
mas pela existência do modo de vida filosófico. A vida filosófica é irredutível ao campo
discursivo, pois há nela uma individuação que escapa da universalidade do discurso. Por meio
da visão hadoniana, então, na filosofia antiga “a principal função da linguagem filosófica
consistia em colocar os ouvintes desse discurso numa certa forma de vida, num certo estilo de
vida” (HADOT, 2014, p. 334) que adquire sustentação na forma com que o filósofo que
discursa e no modo condizente a sua maneira de viver: não se conhece a si e a realidade,
senão vivendo62. Assim, “não se faz mais então teoria da lógica, isto é, do falar bem e do
pensar bem, mas pensa-se e fala-se bem; não se faz mais a teoria do mundo físico, mas
contempla-se o cosmos, não se faz mais a teoria da ação moral, mas age-se de uma maneira
reta e justa” (HADOT, 2014, p. 264). O ato filosófico por excelência situava-se no eu que
age, não no conhecimento abstratamente e impessoalmente rigoroso do ser.
Por meio disso, a filosofia para os Antigos se trata mais da transformação do real do
que do desvelamento do ideal. Em outras palavras, Hadot propõe a análise dos Antigos
através do modo de vida que é aquilo que dá sentido ao discurso filosófico: “ressituar os

61
Para Hadot, a partir do século Ⅱ, os recorrentes esforços apologético, de demonstrar as verdades cristãs a
todos, e de exclusão das antigas filosofias, como possuidoras apenas de uma parcela do logos, ocasionaram no
“divórcio entre o modo de vida e o discurso filosófico” (HADOT, 2011, p. 356). A partir desse momento na
história, a filosofia se subordina à teologia, tornou-se serva (ancilla theologiae) e foi reduzida ao seu discurso
teórico carente de significação concreta.
62
Não se trata aqui em inferir que o discurso é sempre instância passiva ao se chocar com a existência do
filósofo que discursa, uma vez que a articulação conceitual também impacta o modo de vida filosófico. Porém, o
modo de vida, na Filosofia Antiga, tem sua primazia, uma vez que invade o discurso com imperícias e falhas
propiciadas pela incomensurabilidade.

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discursos filosóficos em seus jogos de linguagem, na forma de vida que os havia engendrado;
logo, na situação concreta pessoal ou social, na práxis que os condicionava ou em relação ao
efeito que queriam produzir” (HADOT, 2014, p. 10-11). Portanto, a filosofia como modo de
vida não se desprende do eu que filosofa, ela é um esforço discursivo fundamentado na
vivência do filósofo. A filosofia dos Antigos, com base nisso, possui sua ênfase na
transmissão do eu, do se relacionar com o mundo e consigo, ao invés da tomada das teorias
filosóficas como sistemas detentores de realidades em si mesmas.
Com isso, Hadot aponta o lamento dos historiadores da filosofia com as obras antigas
por conterem incoerências, falta de rigor e até mesmo contradições. Para ele, isto se dá pela
maneira diferente entre os antigos filósofos e os historiadores modernos e contemporâneos
entenderem a filosofia. A aflição desses historiadores se apresenta, na visão hadoniana, por
analisarem as obras antigas como um típico francês ensinado desde cedo pelo seu sistema
educacional “a fazer uma dissertação bem alinhavada, sem repetições nem contradições, com
um plano claro: o discurso filosófico dos Antigos não corresponde a esses critérios de ordem
e clareza” (HADOT, 2001, p. 9-10). Assim, considerar mais o rigor teórico-abstrato do que o
contexto vivo em que a filosofia antiga se encontrava é o motivo pelo qual esse problema se
institui. A filosofia antiga era um exercício psicagógico e formativo, isto é, seu intuito era
formar as almas de ouvintes e leitores específicos. Ela não tinha como principal preocupação,
como se teve desde a Idade Média, a elaboração de teorias filosóficas que pretendiam ser
sublimemente apodíticas.
Ora, espera-se explicitar, ao longo deste artigo, que Sêneca se enquadra na maneira
hadoniana de conceber a filosofia antiga, haja vista que viveu no momento histórico do
ensino de filosofia pelo comentário de texto63, iniciado em II a.C, colocando-se como crítico
do fazer filosófico com a mera finalidade comentarista, e próximo à Idade Média, que é
momento histórico de divórcio entre modo de vida e articulação conceitual64. Nesse sentido,
pela análise da obra Sobre o ócio e da Carta 45 4-5, pretende-se apresentar Sêneca como
crítico da filosofia que se apresenta como estrutura inquestionável, acusando-a de
autoritarismo que se sustenta em obscuridades teóricas. No decorrer do primeiro escrito,
Sêneca faz uma justificação utilitária do ócio, com vistas à prática, dedicado à filosofia ao
perpassá-lo nas correntes filosóficas estóicas e epicuristas, nas repúblicas opostas, na vida e

63
HADOT, 2014, p. 214.
64
Ibidem, p. 356

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na morte de Sócrates, na fuga de Aristóteles e em modos de vida. Essa discussão, desprendida


de fanatismo que leva ao ódio pelos outros que não se inserem à doutrina de pensamento
estóica, é vista por Sêneca como caminho que o conduz a um tipo de autonomia de
pensamento. No outro, ele exalta a constante procura pelo conhecimento do filósofo, sem se
deixar levar pelas obscuridades notadamente abstratas. Assim, ele reconstrói a
incomensurabilidade e a inseparabilidade das duas espécies do discurso filosófico, conferindo
ênfase ao modo de vida. Sêneca deixa seu pensamento se caracterizar e se afirmar pela
maneira predominante de ser da tradição filosófica e histórica a partir de sua vida, não pela
rígida coerência lógico-proposicional de um ou conjunto restrito de filósofos que estabelece
uma intransponível contraposição entre um pensamento ou uma escola filosófica perante
outro(a).

2. A obra Sobre o ócio


Na parte inicial da obra65, Sêneca exorta à necessidade do ócio filosófico66, uma vez
que quem o adota se retira do caos da vida pública (vita publica)67. Mais especificamente,
essa caoticidade se caracteriza pelo abalo sofrido no propósito do indivíduo que busca a
virtude em uma sociedade na qual os cidadãos se deixam levar pelas vicissitudes68. Assim, o
ócio que é dedicado à filosofia adquire um aspecto formativo da personalidade: tanto contesta
e destitui princípios incorporados sem reflexão, quanto firma princípios reflexivos que foram
abalados no embate político-social. Portanto, em Sêneca, o ócio filosófico é condição
necessária para o agir conscientemente filosófico, é a ferramenta humana que nega a
fragilidade perante o vício.

65
Vale salientar que o texto chegou mutilado aos nossos dias. O começo e o fim do tratado podem ter
desaparecido. Não obstante, a obra “... foi composta por volta do ano 61, provavelmente algum tempo depois do
Sobre a tranquilidade da alma.” (SÊNECA, 2020, p. 11)
66
“Este ócio dos antigos romanos tem o sentido de ‘tempo vago’, de ‘retiro’ e de ‘repouso’, apropriado a uma
ocupação intelectual, aos estudos, à filosofia.” (SÊNECA, 2020, p. 97). Para uma análise mais aprofundada, Cf.
OLIVEIRA, 2011.
67
A vida pública é entendida como a participação do indivíduo na sociedade civil, ao modo romano, na res
publica, ao modo grego, na polis.
68
Hankinson, apresenta que os estóicos tinham dúvidas se o sábio estóico, ser perfeito sobre-humano, algum dia
existiu eticamente ou se ele era um ideal a ser buscando, mas nunca completamente atingido (HANKINSON,
2006, p. 65.). Houve também, no estoicismo, uma corrente que concebia a existência somente de ações
perfeitamente corretas (katorthomata) e outra corrente que além destas também existiria ações preferíveis
(kathékonta) que podem ser realizadas pelos não-sábios por não serem perfeitamente virtuosas. (GILL, 2006, p.
43). Pelas obras senequianas, é nebuloso afirmar se Sêneca realmente acredita na possibilidade da existência do
sábio e não somente em um progresso moral. Por isso, o ócio filosófico pode ser uma ferramenta para aproximar
o não-sábio da virtude ou também para transformar o não-sábio em sábio.

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Por conseguinte, Sereno69 questiona a exortação senequiana, pelo fato do ócio não ser
exaltado, mas combatido pelas autoridades estóicas. O filósofo estóico, de acordo com a
contestação de Sereno, é aquele que sempre deve estar engajado com a vida pública de modo
a nutri-la com a virtude. Em resposta, Sêneca escreve:
‘Acaso queres que eu, semelhante a meus mestres, lhes esteja à frente em algo mais?
Que é então? Irei não por onde me tenha eles prescrito, mas por onde me tenham
conduzido’. Agora provarei a ti que não abandono os preceitos dos estoicos, pois na
verdade nem eles próprios têm abandonado os seus (e todavia muito escusado eu
estaria até se não lhes seguisse os preceitos, mas os exemplos) (SÊNECA, 2020, p.
99-101).

Mediante a isso, a resposta senequiana apresenta uma primazia da prática (exemplum)


frente à teoria (praeceptum). Sêneca cria uma tensão a partir da indagação de Sereno segundo
a qual não estar completamente submisso aos princípios estóicos não significa
necessariamente na impossibilidade de se agir estoicamente. Não obstante, Sêneca
complementa “Mostrarei que essas máximas agradam também aos estoicos, não porque a
mim uma lei haja eu dito de nada cometer contra a palavras de Zenão ou de Crisipo, mas
porque a própria conjuntura admite…” (SÊNECA, 2020, p. 101). Para Sêneca, embora os
preceitos sejam constitutivos do modo de vida estóico, deve-se levar em consideração as
particularidades históricas e psicológicas do indivíduo. A partir disso, ele estabelece algum
caráter autônomo ao seu pensamento, a saber: a sua reflexão agrada as autoridades estóicas;
não há uma subsunção restritiva de seu pensamento aos preceitos deles. Em outras palavras,
aquilo que faz do cordovês indivíduo ativo no fazer filosófico estóico é a vivência que o leva
à adequação aos estóicos, não a fama de fundadores que lhes conferiu autoridade.
Desse modo, Sêneca aproxima uma tese epicurista e outra estóica em aceitação do
ócio filosófico. Ora, retirar-se da vida pública era consonante ao modo de vida epicurista,
uma vez que os epicureus limitavam o engajamento com a vida pública por este causar
desejos vãos como, por exemplo, o desejo de honrarias, riqueza e poder70. De mesmo modo, é
também consonante com o estoicismo, visto que se deve limitar o engajamento quando se está
sob impressões não-catalépticas71. Assim, Sêneca evidencia a diferença das correntes
filosóficas e, por meio do ócio, o ponto de contato delas:
Sobretudo nesse assunto duas seitas dissidem, a dos epicuristas e a dos estoicos;
entretanto, por vias opostas, uma e outra levam ao ócio. Epicuro diz: ‘Não

69
Amigo de Sêneca que, na provável época da composição da obra De Otio, encontra-se “... já definitivamente
conquistado pelo estoicismo…” (SÊNECA, 2020, p. 11).
70
PERENTE DE BARROS, 2020, p. 5-6.
71
HANKINSON, 2006, p. 66-68.

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participará da vida pública o sábio, a não ser que sobrevenha alguma circunstância
considerável’. Zenão diz: ‘Participará da vida pública, a não ser que o impeça
alguma circunstância considerável’ (SÊNECA, 2020, p. 101).

O exercício da vida pública em ambas correntes, embora por razões diferentes, não é
impossibilitado nem necessário. Ele se torna dependente das circunstâncias para que seja
exercido. Assim, ao se fazer tal aproximação, não há repúdio ao retiro para a filosofia desde
que aquilo que o torne viável o valide, não seja prejudicial ao indivíduo. Posteriormente,
Sêneca apresenta o argumento que, em sua concepção, é válido, tanto para os epicuristas
quanto para os estóicos, para que seja exercido o ócio filosófico: “Isto seguramente se exige
do homem: que seja útil a homens. Se possível a muitos; quando não, a poucos, quando não,
aos parentes; quando não, a si.” (SÊNECA, 2020, p. 103). Sêneca conecta o estoicismo e o
epicurismo ao ser útil (prodesse). Essa é a incorporação senequiana de um pressuposto que,
para ele, é por excelência filosófico. Ora, seja para a stoa, seja para o filósofo do jardim,
aquele que se submete ao retiro filosófico por não conseguir ser útil a outros, é útil a si, por
tentar ocasionar a metamorfose de personalidade com vistas à virtude, isto é, askesis. Caso
não consiga ser útil aos outros nem a si, há um ócio que não é filosófico e, consequentemente,
filosoficamente repudiado.
Por conseguinte, Sêneca apresenta a justificação do ócio filosófico em duas repúblicas
opostas, uma viciosa (nos adscripsit condicio nascendi)72 e outra virtuosa (magnam et uere
publicam)73. Sêneca o justifica perante a república viciosa por causa da produtividade do agir
virtuoso propiciado por ele, uma vez que ninguém deve negar que “[...] a virtude deva
experimentar na prática seus progressos...” (SÊNECA, 2020, p. 111). Mais especificamente, o
ser humano que se dedica à vida pública na república viciosa, por ter dependência dos
julgamentos alheios e por se tratar de uma sociedade em que o vício impera74, poderá vir-a-ser
vicioso, sendo prejudicial para si, para seus concidadãos e para a posteridade 75, sendo o ócio
filosófico aquilo por meio do que impedirá a contaminação pelo vício. Na república em que a
virtude impera, o ócio filosófico é, segundo ele, ainda mais obstinado, uma vez que se torna

72
Sêneca se refere à república viciosa como: “... à qual nos atribui nossa condição de nascimento, que não se
estende a todos os homens, mas a alguns determinados.” (SÊNECA, 2020, p. 105). Assim, é uma república que
o vício impera, pois segrega os homens tendo em vista a realização de um grupo particular em detrimento de
outro. Vale ressaltar a crítica senequiana a república romana de sua época como viciosa.
73
Sêneca se refere à república virtuosa como aquela: “... que abarca deuses e homens…” (SÊNECA, 2020, p.
103). Assim, é uma república que atende aos homens e aos deuses, visto que está em consonância com aquilo
que há de melhor: a virtude. Ela é universal, não segrega os homens, uma vez que os aprimora.
74
Seres humanos e sociedade sob comando das impressões não-catalépticas ou desejos vãos.
75
SÊNECA, 2020, p. 111.

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possível investigar questões filosóficas mais complexas e elementares 76, embora distantes da
natureza humana. No entanto, apesar do pensamento senequiano se mostrar favorável às teses
cosmológicas do estoicismo, ele também as critica por conceber a incapacidade de sustentar
cabalmente princípios metafísicos, pois mesmo “... que chegue até o último termo da idade
humana sem que a fortuna lhe venha extorquir o que a natureza deu, mesmo assim, ele,
homem, é demasiado mortal para adquirir o conhecimento dos imortais.” (SÊNECA, 2020, p.
109-111). Não obstante, isso fica enfaticamente evidenciado quando Sêneca interpreta a
capacidade de pensar humana expondo as teses cosmológicas estóicas e epicuristas:
Nosso pensamento invade os redutos do céu e não se contenta em conhecer o que se
lhe apresenta: “Sondo”, diz ele, “aquilo que se estende além do firmamento: seria
acaso esse outro outro mundo uma profunda vastidão, ou também se fecharia em
seus limites? Qual seria o aspecto dessas regiões exteriores? Todas as coisas seriam
aí informes e confusas, ou, ocupando espaço igual em toda a parte, estariam
dispostas em alguma ordem harmoniosa? A este nosso mundo estariam ligadas, ou
dele afastadas, e este nosso mundo rolaria no vácuo? Existiriam os indivisíveis, de
que se constitui tudo o que já nasceu e tudo que está ainda por nascer, ou contínua
seria a matéria e mutável somente no seu todo? Os elementos seriam contrários
entre si, ou não lutariam entre si, mas por diversos caminhos concorreriam a um fim
comum?”.
Estima quão pouco tempo recebeu o ser destinado a investigar tais coisas, ainda que
reserve ele o tempo todo para si: admita-se que nada lhe será conquistado com
facilidade, que nada ele deixe escapar por negligência, que administre
avarissimamente suas horas, que chegue até o último termo da idade humana sem
que a fortuna lhe venha extorquir o que a natureza deu, mesmo assim ele, homem, é
demasiado mortal para adquirir o conhecimento dos imortais.
Portanto, vivo segundo a natureza se todo a ela me dei, se dela sou admirador e
cultor. E a natureza quis que eu fizesse uma e outra coisa: tanto agir como ter tempo
para a contemplação; faço uma e outra, porque a contemplação nem sequer existe
sem ação. (SÊNECA, 2020, p. 109-110)

Com isso, embora Sêneca afirme ser teoricamente intransponível essas sutilezas
metafísicas, é a vida que o torna estóico, ou seja, é sua vivência que o possibilita contornar o
ininteligível campo de teses tão distantes do entendimento humano. Assim, Sêneca
encaminha a sua defesa do ócio filosófico para a indissociabilidade entre a contemplação, a
ação e prazer. Para isso, ele elenca três modos de vida: “... um consagra-se ao prazer, outro à
contemplação, um terceiro à ação.” (SÊNECA, 2020, p. 113). Apesar da possibilidade de se
tomar um como propósito e os outros como suplementos do modo de vida, Sêneca entende
que a virtude, ao se fazer presente na vida, organiza de maneira útil o modo pelo qual se vive.
Por meio disso, uma figura virtuosa, para Sêneca é aquele que, apesar de poder ter como
propósito ou a contemplação, ou o prazer ou a ação, fundamenta-o na virtude. Quando a

76
Ibidem, p. 109.

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virtude não é considerada, a maneira de se viver se corrompe no vício independente de qual


propósito dos três é escolhido. A contemplação, o prazer e a ação tomados de maneira
excludente um em relação ao outro se tornam descomprometidos com a virtude por serem
favoráveis com a disseminação do vício: seja o prazer pelo mero prazer; a contemplação pela
mera contemplação ou pela ação pela mera ação.
Desta maneira, Sêneca recorre às figuras de filósofos para fundamentar sua
argumentação. A Epicuro, para a tese do prazer enquanto ativamente necessário para a virtude
e da contemplação que agrada tanto estóicos como epicuristas. Porém, não se pode considerar
Sêneca como um epicurista, uma vez que, apesar da contemplação agradar os estóicos
enquanto propósito e os epicuristas enquanto suplemento, ela é tomada como ancoradouro
para ele e estóicos e somente como porto para os epicuristas77. Isso, portanto, consiste em
uma apropriação estóica do epicurismo, visto que considera o prazer para a virtude e a
contemplação como propósito. A Cleantes, Crisipo e Zenão para a tese segundo a qual se
pode ser mais útil ao gênero humano do que os que ocupam cargos públicos. Mais
especificamente, Cleantes, Crisipo e Zenão, embora se ausentassem dos altos cargos públicos,
não afastaram a república da virtude, como comumente fazem os gestores das repúblicas, eles
as aproximaram assiduamente: seja por eles não se infectarem com os vícios, seja por levarem
virtude aos seus contemporâneos e à posteridade por meio de seus escritos e, sobretudo, pelos
seus exemplos de existência78. Somado a isto, Sêneca cita Sócrates e Aristóteles como
filósofos que foram repudiados por suas repúblicas tomadas pela barbárie, e a república dos
Cartagineses “... na qual é incessante a guerra civil, e a liberdade é contrária ao honesto, e do
justo e do bom só se diz a mais alta vileza e, contra os inimigos há crueldade inumana…”
(SÊNECA, 2020, p. 117). Portanto, Sêneca estabelece a justificação do ócio filosófico por ser
o instrumento humano de acesso à virtude, perpassando-o em correntes filosóficas, contextos
republicanos e vida de filósofos.

2.1 O estoicismo imperial marcado pela era do comentário


Por meio da análise da obra Sobre o ócio, são recorrentes as passagens em que Sêneca
quer se mostrar explicitamente como filósofo estóico e autônomo. Assim, convém se
perguntar: o que é ser um filósofo estóico e autônomo para Sêneca? Ora, ele se utiliza de

77
Ibidem, 2020, p. 115.
78
Ibidem, 2020, p. 113.

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teses estóicas dos fundadores do estoicismo, não vê problema em criticá-las e traçar um


caminho alternativo com vistas ao que lhe parece verdadeiro e se utilizar até mesmo de teses
e figuras de filósofos de outras correntes para fundamentar sua argumentação. Sêneca não
enxerga problema em se apropriar da história da filosofia para expor suas ideias filosóficas,
nem mesmo discordar em eventuais aspectos dos antigos fundadores do estoicismo. Mediante
isso, Christopher Gill apresenta uma visão bastante recorrente acerca da filosofia no período
imperial romano:
Segundo uma visão estereotipada, o estoicismo foi filosoficamente pouco criativo
durante o império romano. A “escola” tinha um estatuto institucional mal definido e
havia certa dose de ecletismo e de fusão de diferentes filosofias. O tema
predominante era a ética, e as obras principais que sobreviveram consistiam de
exercícios de moralização prática baseados em idéias mapeadas séculos antes. Não é
de espantar que na fase final desse período o estoicismo seja substituído, como
filosofia viva, por um platonismo redivivo e uma forma de cristianismo cada vez
mais sofisticada e teoricamente consciente. (GILL, 2006, pág 35)

Mediante a isso, a ausência de uma instituição ou autoridade que venha a regular a


estrutura conceitual, lógica e argumentativa pode pôr em dissolução a sistematicidade de uma
corrente filosófica e, por conseguinte, a legitimidade dos pensadores que se intitulam parte
dela. Isso ainda incorre em risco de um ecletismo irresponsável, que se expressa imersamente
em contradições que excluem qualquer resquício de rigor teórico que se espera de um
pensamento considerado filosófico. Não obstante, Hadot corrobora a visão estereotipada do
que consistia o ensino de filosofia durante a era imperial romana:
É necessário, agora, voltar às fontes. O ensino vai consistir em explicar os textos das
“autoridades”, por exemplo os diálogos de Platão, os tratados de Aristóteles, as
obras de Crisipo e de seus sucessores. Enquanto na época precedente a atividade
escolar consistia, antes de tudo, em formar os alunos nos métodos de pensamento e
de argumentação, e os membros importantes da escola frequentemente tinham
opiniões muito diferentes, nessa época o ensino de uma ortodoxia torna-se essencial.
A liberdade de discussão, que sempre existira, é muito mais restrita. (HADOT,
2014, p. 216)

Dessa maneira, Hadot apresenta que o ensino de filosofia na época imperial em geral
consistia em um apego às autoridades gregas da Antiguidade. Isto se deu pelo ensino de
filosofia romano ter se debruçado ao comentário e explicação dos textos antigos. Embora o
comentário de texto tenha raízes históricas de 300 a.C, o ensino da filosofia foi largamente
profissionalizado79, como aponta Hadot e Gill, na Era Imperial de maneira a surgir
instituições de ensino mal definidas com professores de filosofia autodeclarados que
praticavam a transmissão dos dogmas das principais correntes filosóficas da época. Hadot,

79
HADOT, 2014, p. 213-218.

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inclusive, chega a denominar esse período como a era do comentário. A partir disso, Hadot
escreve: “Já não se discutem os próprios problemas, já não se fala diretamente das coisas, mas
do que Platão, Aristóteles ou Crisipo disseram dos problemas e das coisas. A questão ‘O
mundo é eterno?’ substitui-se pela questão exegética ‘Pode-se admitir um artífice do mundo
no Timeu?” (HADOT, 2014, p. 2019-2020). A filosofia enquanto ensino se subsumia à
maneira do sistema de uma autoridade que era preconcebido.
Sendo assim, tanto Gill quanto Hadot apontam para o ensino filosófico do período
imperial romano como um ensino marcado profundamente pela exegese textual a partir da
qual foi recorrente a formação de sistemas filosóficos por meio das obras antigas. Não
obstante, Gill, ao se remeter à visão estereotipada, apresenta uma concepção de, não só de
ensino, mas também de fazer filosófico acrítico e meramente repetidor da tradição sob pena,
ademais, de alguns filósofos dessa época, na tentativa de sistematização de seu pensamento,
articularem-o mal de modo a serem acusados de um ecletismo cego e irrefletido. Como
Sêneca se insere nesse contexto?

2.2 Ser um filósofo e ser um estóico em Sêneca:


Sobre a filosofia helenística e imperial, Hadot escreve:
As teorias filosóficas estão a serviço da vida filosófica. É por isso que, na época
helenística e romana, elas se reduzem a um núcleo teórico e sistemático, muito
concentrado, capaz de ter uma forte eficácia psíquica, e suficientemente manuseável
para que se possa tê-lo sempre à mão. O discurso filosófico é sistemático não por
desejo de obter uma explicação total e sistemática de toda realidade, mas para
fornecer ao espírito um pequeno grupo de princípios fortemente ligados em
conjunto, que adquirem com essa sistematização uma maior força persuasiva, uma
melhor eficácia mnemotécnica. Sentenças curtas resumem, aliás, os dogmas
essenciais, às vezes numa forma impactante, a fim de permitir se recolocar na
disposição fundamental na qual se deve viver. (HADOT, 2014, p. 265)

Com isso, ao situar Sêneca no interior dessa indagação por meio da análise de sua
obra Sobre o ócio, constata-se que ele não está preocupado em expor um corpo conceitual
complexo e minucioso, uma vez que o seu modo de fazer filosofia não se trata de uma
exposição exaustiva de conceitos por estar ancorada na incapacidade e, consequentemente,
improdutividade das especulações metafísicas nas sociedades que se apresentam a ele,
embora isso seja muito estimado em sociedades utópicas. De fato, é pertinente a tese segundo
a qual Sêneca esteja motivado em pensar ideias filosóficas em latim80 e sem um ornamento

80
GILL, 2006, p. 53-54.

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conceitual tão minucioso que o torne especulativo, ou seja, que o torne obscuro a tal ponto
que sua filosofia se torne inútil e incompreendida pela sua geração e pelas futuras.
Tampouco, pode-se identificar a filosofia senequiana como exegética dos textos da
Antiguidade, uma vez que Sêneca, ao se referir às autoridades, mostra-se impulsionado a
tecer uma argumentação própria em diálogo com elas, não a meramente a expô-las ou
explicá-las. Sêneca, inclusive, deixa clara sua atitude autônoma de criticar os preceitos dos
estóicos fundadores e até argumentar paralelamente a outras filosofias quando a verdade se
mostrar desse modo a ele. Não obstante, Sêneca se colocaria como crítico da filosofia
enquanto limitada à exegese textual, pois ela se pautaria na teorização dos preceitos sem
compromisso com o prático. Assim, ao analisar a visão estereotipada, Gill escreve:
A exemplo do que ocorre com todos os estereótipos, também esse contém um
elemento de verdade, mas obscurece aspectos importantes, como o estoicismo ter
permanecido força filosófica atuante pelo menos durante os dois primeiros séculos
da era cristã. Embora não houvesse uma “escola” institucionalizada, como no
período helenístico, havia numerosos professores estóicos, e o currículo educativo
estóico, com suas três partes características, manteve-se, com importantes obras de
continuidade nas três áreas (isto é, em lógica, ética e física). Na qualidade de
movimento filosófico dominante no período, o estoicismo esteve fortemente
incrustado na cultura greco-romana e, em certa medida, também em sua vida
política, de modo que o ideal de viver uma vida propriamente estóica continuou
poderoso. (GILL, 2006, p. 35).

Neste sentido, sabe-se que Sêneca não se caracteriza como um professor estóico com
vistas à formação de outros estóicos por meio da transmissão do pensamento dos fundadores.
Para ele, se essa transmissão, à maneira de comentário e explicação de texto, tivesse o intuito
de aperfeiçoamento cultural, seria retórica81 ao invés de filosofia, uma vez que a propagação
de preceitos só seria proveitosa caso propiciasse o exemplo. Certamente, poder-se-ia
classificar o ensino de filosofia pelo mero ensino como um ócio injustificado, por não estar
comprometido com a virtude, que, para o cordovês, deve-se realizar em obras. Sêneca era um
aristocrata no centro do poder82 que seguia, exortava e consolava estoicamente por seu
estoicismo se colocar verdadeiramente a ele como condutor à ascese. Convém a ele,
entretanto, apoderar-se da história da filosofia e das figuras dos filósofos em suas exposições
filosóficas para embasar sua problematização e argumentação, pois, mesmo que por ventura

81
Segundo Bezerra: “Ao ler as obras de Sêneca, constatamos que grande parte delas, em especial as cartas,
expõe, de maneira evidente, a preocupação do filósofo em diferenciar a Filosofia das demais atividades como a
Retórica e a Oratória. Vale ressaltar que Sêneca faz questão de enfatizar a Filosofia não como objeto de
esnobismo, mas, sim, como uma atividade que tem um objetivo concreto…” (BEZERRA, 2005, p. 2)
82
GILL, 2006, p. 39-40.

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fossem alheios aos preceitos estóicos ortodoxo, são fiéis ao seu modo de vida. Se for
necessário, ele toma como referência até mesmo preceitos de outras escolas quando sua
vivência lhe mostrar que a autoridade estóica não conseguiu investigar um problema
adequadamente. Como Sêneca nos apresenta na Carta 45, 4-5:
Seja qual for o valor dos meus escritos, lê-os como obra de um homem em busca da
verdade, não detentor dela, mas em busca contínua e tenaz. Não alienei os meus
direitos a favor de ninguém, não tenho gravado o nome de nenhum proprietário.
Confio, e muito, no pensamento dos grandes homens, mas reivindico o meu direito
próprio de pensar. De resto eles não nos legaram verdades acabadas, mas sim
sujeitas à investigação; e porventura teriam descoberto o essencial se não tivessem
investigado também o supérfluo. Mas gastaram tempo imenso em jogos de palavras,
em discussões capciosas que aguçam inutilmente o engenho. Construímos
argumentos tortuosos, empregamos termos de significação ambígua, finalmente
desatamos toda a trama! Temos assim tanto tempo livre? Já sabemos como encarar a
vida e a morte? O que devemos procurar, com todas as forças, é o modo de nos não
deixarmos enganar pelas coisas, e não pelas palavras. (SÊNECA, p. 151-152)

Dessa maneira, se Sêneca traz a referência epicurista por conceber o prazer como
elemento importante para, inclusive, a instauração da virtude no agir humano, não se trata de,
ao citar Epicuro, abandonar a virtude como critério de verdade e, com isso, o estoicismo.
Trata-se de expandir a problemática e discutir com a tradição. Apegar-se ao pensamento dos
estóicos antigos sem o crivo da crítica é participar de uma facção não de uma assembléia83.
Em outras palavras, não considerar adequadamente a problemática epicurista sobre o prazer
que lhe parece pertinente, é alienar os direitos próprios em favor de alguém que não é a si
mesmo. Não obstante, ocupar-se com a sofisticação teórica que o faça distante da sua
república é incorrer em ócio injustificado, visto que se transfere a preocupação das coisas,
que pode ser entendida como a instauração concreta da virtude na república, para as sutilezas
metafísicas dos conceitos. Mediante isso, é indispensável indagar o que é filosofia para
Sêneca. Segundo Cicero Cunha Bezerra:
Para Sêneca, a filosofia é sinônimo de remédio que atua como antídoto contra as
dores e vícios. Mas como compreender esse caráter medicinal? Um caminho que
nos parece interessante consiste em pensar no contexto histórico do século I d.C. A
sociedade romana estava enferma, submersa na corrupção moral e institucional.
Várias seitas, escolas, religiões, filosofias compunham o cenário no qual atuara
Sêneca. Frente a este contexto, a filosofia, para Sêneca, teria como finalidade maior
a formação do caráter dos homens. Nesse sentido, a função primordial da filosofia
seria tornar o homem melhor; a Filosofia é, antes de tudo, guia de aperfeiçoamento;
ela é parâmetro que diferencia o sábio (sapiens) e o ignorante (stulti)... (BEZERRA,
2005, p. 8)

83
SÊNECA, 2020, p. 101

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Sendo assim, vale a pena salientar que a filosofia enquanto caráter medicinal
(medicamentum) não se trata de não dar mais importância a perguntas elementares, que
exigem um exacerbado detalhamento conceitual, como: o que é a virtude? Se há uma ou
muitas? O que é cura? Onde está deus? Se o mundo é eterno ou deve ser olhado como coisa
efêmera inserida no tempo?84 Como já exposto, a investigação destas perguntas, embora
obscuras, são de grande estima em uma república virtuosa. Trata-se de se ater à enfermidade
presente, visto que, caso os pensadores voltem seus esforços puramente às especulações
metafísicas em uma república viciosa, eles instaurarão o engano com as palavras, sendo
convenientes com o estado atual da república. De outra maneira, a relação dos três modos de
vida que se apresenta na necessidade da virtude se realizar em obras, por meio
indissociabilidade desses modos, faz da filosofia enquanto mera especulação metafísica uma
atitude de não-resistência ao vício que está por se instituir, torna-se descompromissada com a
virtude.
Neste sentido, Gill faz ponderações à crítica sobre a falta de originalidade dos escritos
da Filosofia Imperial:
Podemos dizer que esses tratados dão acesso apenas a áreas da teoria estóica que já
haviam sido desenvolvidas no pensamento estóico anterior, ou eles são
substancialmente originais? Que, nesse contexto, significa “originalidade”? O tipo
relevante de “originalidade” não é, julgo, avançar um conjunto completamente novo
de ideias, mas sim realizar uma jogada nova e significativa em um debate
persistente baseado em uma estrutura de pensamento (estóica) preexistente. (GIL,
2006, p. 41)

Ora, caso se entenda Filosofia como atividade de criação conceitual e metafísica, de


fato, a filosofia senequiana não há muito o que oferecer, uma vez que a exposição detalhada
das teses elementares estóicas, ao se levar em consideração o pensamento de Sêneca, são
inúteis as suas pretensões. Sêneca vê na tradição filosófica um arcabouço teórico que precisa
se adequar à prática, isto é, promover aprimoramento. Tal aprimoramento está intimamente
ligado ao aspecto político que o filósofo deve se preocupar: impedir que a república segregue
a população de modo a atender desejos vãos, ou seja, que o filósofo seja virtuosamente útil
aos homens. Esse ser útil (prodesse) é a atitude filosófica por excelência. Consequentemente,
ater-se somente às obscuridades metafísicas e à propagação irrefletida de preceitos é um
descompromisso com a filosofia. O filósofo, ao investigar as questões metafísicas, deve estar

84
Ibidem, p. 105.

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vigilante para não se perder nas obscuridades apesar de sempre lhe ser necessário investigar
metafisicamente.
Mediante a isso, a filosofia de Sêneca é eclética85, no sentido de que sua construção se
dá em diálogos com a tradição. Não um ecletismo irresponsável, mas que estabelece um
diálogo em que eu filósofo não se suprime, ele confronta teses de diferentes correntes
filosóficas, exemplos ilustres e de organizações políticas que, para ele, são necessárias para
formar um saber útil à vida. Além disso, não se trata de exprimir proposições inquestionáveis
teoricamente, visto que Sêneca apresenta a tese de obscuridade sobre os princípios
metafísicos. Trata-se de formar o pensamento em consonância com o conjunto de
experiências do indivíduo histórico que, embora seja sempre limitado pela condição humana,
coloca-se à procura compromissada do verdadeiro. Certamente, Sêneca se apropriou de
alguns preceitos condutores de outras filosofias, fazendo ali todo um revestimento estóico.
Como visto, Sêneca submete uma asserção de Epicuro ao critério que não é epicurista: ele
pensa o prazer enquanto indissociável para a virtude. Sêneca “vestia” com o estoicismo
aquilo que, apesar de oriundo de uma escola distinta e, às vezes, até mesmo rival, seguia o
mesmo fluxo de sua filosofia para que pudesse advogar a favor de seu estoicismo.

3. Considerações Finais
Pode-se inferir, a partir do que foi exposto, que o estoicismo senequiano não é
irresponsável, a ponto de desconsiderar a articulação conceitual: seja da herança estóica ou
de outras teorias filosóficas que ele toma como referência. Em verdade, tem-se Sêneca como
um pensador comprometido em sua argumentação para não recorrer a leviandades, mas que
nega o detalhamento lógico para que não se deixe inútilmente enganar pelas palavras. Isso, do
contrário, tornaria-o aquele que falsamente busca o conhecimento. Nesse sentido, Hadot
escreve sobre o fazer filosófico na época helenística e romana:
As teorias filosóficas estão a serviço da vida filosófica. É por isso que, na época
helenística e romana, elas se reduzem a um núcleo teórico, sistemático e muito
concentrado, capaz de ter uma forte eficácia psíquica, e suficientemente manuseável
para que se possa tê-lo sempre à mão. O discurso filosófico é sistemático não por
desejo de obter uma explicação total e sistemática de toda realidade, mas para
fornecer ao espírito um pequeno grupo de princípios fortemente ligados em
conjunto, que adquirem com essa sistematização uma maior força persuasiva, uma
melhor eficácia mnemotécnica. Sentenças curtas resumem, aliás, os dogmas

85
Cf. INWOOD, 2005, p. 23- 27.

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essenciais, às vezes numa forma impactante, a fim de permitir se recolocar na


disposição fundamental na qual se deve viver. (HADOT, 2014, p. 265)

Assim, Sêneca não é um professor repetidor de teorias e um minucioso historiador da


filosofia, uma vez que, de acordo com a argumentação dele, faria-o um ocioso injustificado,
de forma a distanciá-lo do fazer filosófico. O ser filosófico em Sêneca, então, trata-se da
filosofia por meio da busca incessante do conhecimento que se dá sempre em diálogo com a
tradição e sem perder o comprometimento tanto com o presente quanto com o futuro. É um
fazer filosófico predominantemente vivo, uma vez que, por estar comprometido com as
transformações de seu contexto, sempre será necessário ao filósofo confrontar crítica e
concretamente a tradição e seus contemporâneos. Não se trata, porém, de desconsiderar a
abstração dos conceitos, visto que Sêneca faz metafísica quando remete-se à condição
humana ao estipular o princípio epistemológico da investigação humana partir do claro para o
escuro, afirmar o dever de utilidade ao filósofo e a penosa mortalidade dos seres humanos.
Assim, a análise metafísica é necessária ao filósofo e Sêneca, ao se colocar como estóico,
posiciona-se metafisicamente. Porém, o contato com o universal é tido como um ideal a ser
analisado e reanalisado pelo recorrente perigo de se enganar com as palavras, desviando-se da
virtude. Gill, sobre o ecletismo helenístico e imperial, escreve:
Em estudos anteriores, frequentemente se considerou o fim do período helenístico e
imperial (quando as grandes escolas filosóficas de Atenas encontravam-se já
defuntas ou dispersas) como eras de disseminado ecletismo filosófico. O termo
‘ecletismo’ não raro é interpretado negativamente, sugerindo discussão de tipo
individualista, ‘faça você mesmo’ da filosofia. No entanto, conforme o pensamento
do referido período passou a ser alvo de exame mais cuidadoso e o próprio conceito
de ‘ecletismo’ passou a ser examinado, os estudiosos tornaram-se muito mais
cautelosos em relação a esse tipo de alegação. No período em questão, assim como
em outros, a maior parte dos pensadores filosoficamente comprometidos viu-se em
determinada posição intelectual e (a não ser que viesse a fundar movimento novo)
em filiação a uma escola específica, com fundador e estrutura conceitual próprios.
Isso não equivale a negar que alguém pudesse interpretar o que significava ser um
estóico ou um acadêmico, por exemplo, em sentido amplo que o habitual, ou
incorporar à teoria da escola idéias extraídas de outras fontes. Um movimento
possível era o de redescrever o posicionamento de sua própria escola em termos
extraídos a um outro posicionamento. (GILL, 2006, p. 48)

Nesse sentido, Sêneca se apresenta como conhecedor das doutrinas filosóficas, das
figuras históricas e modelos republicanos e, por isso, reconhece que as sutilezas metafísicas
não configuram um ponto final no filosofar, visto que a filosofia deve ser sempre um
exercício concreto, atual e incessante, que não deve se prender às obscuridades da condição
humana. O filósofo senequiano vive em busca do entendimento, mas, quando a teoria mostra
a obscuridade das questões mais elementares do entendimento, resta a ele se conservar na

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clareza, vigilante tanto para não se tornar conveniente ao vício que está disposto a corromper
o ser humano, quanto para poder interferir utilmente para a concretização da virtude em
obras. Portanto, o ecletismo senequiano, através dessas análises, consiste em um tipo de
atividade mais “... ponderada do que se tem por costume conceber” (GILL, 2006, p. 48).
Sêneca é um filósofo à maneira antiga hadoniana, que abdica, em parte, da sistematicidade
conceitual com vistas ao predomínio do modo de vida.

Referências
BEZERRA, Cicero Cunha. A filosofia como medicina da alma em Sêneca. Ágora Filosófica.
Recife: UNICAP. n.2, 2005.p. 7-32, Jul.dez
GILL, Christopher. A Escola no período imperial romano. In:INWOOD, B. (Org.). Os
Estóicos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.
GRIMAL, P. Sénèque ou la conscience de l’empire. Paris: Les Belles Lettres, 1979.
HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? 6. ed. São Paulo: Edições Loyola Jesuítas, 2014.
HADOT, Pierre. Exercícios espirituais e filosofia antiga. São Paulo: É Realizações, 2014.
HADOT, Pierre. Wittgenstein e os limites da linguagem. São Paulo: É Realizações, 2014.
HANKINSON, Robert Jim. Epistemologia estóica. In:INWOOD, Brad (Org.). Os Estóicos.
São Paulo: Odysseus Editora, 2006.
INWOOD, B. Reading Seneca: stoic philosophy at Rome. New York: Oxford University
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OLIVEIRA, de Luizir. Aprender a cuidar de si: Sêneca e o ócio criativo. Cadernos do PET
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SÊNECA. Sobre a Tranquilidade da Alma, Sobre o Ócio. Texto bilíngue. São Paulo: Nova
Alexandria, 2020.
SÊNECA, Cartas a Lucílio. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014.

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