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ON-LINE
Banalidade
do Mal
Revista do Instituto Humanitas Unisinos
Nº 438 - Ano XIV - 24/03/2014
ISSN 1981-8769 (impresso)
ISSN 1981-8793 (online)
Reprodução: Banality of evil / Banksy, 2013

Saul Kirschbaum: Oswaldo Giacoia: Adriano Correia:


A banalidade das O mal como resultado da Totalitarismo – O filho
engrenagens do nazismo civilização moderna da modernidade
E MAIS

Emmanuel Lartey: Daniela Arbex: Robson Pereira:


A experiência de um Deus Colônia de Barbacena - Construção da Shoah
pós-colonizado Holocausto Brasileiro como acontecimento
Banalidade do Mal
Editorial

“A
experiência de Aus- a constatação de Primo Levi: “Aconte- cumentário, nas partes 1, 2 e 4, será
chwitz representa um ceu e pode acontecer de novo”. exibido e debatido nesta semana no
limiar ético absoluta- Nesta edição, o filósofo Miroslav Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
mente inaudito; uma Milovic, do Departamento de Direito Reyes Mate, professor de Filosofia do
espécie de falência ou perempção da Universidade de Brasília, afirma Conselho Superior de Pesquisas Cien-
da ética nas sociedades ocidentais que é preciso contemplar o seu tem- tíficas da Espanha, propõe que parte
contemporâneas”, afirma Oswaldo po para compreendê-lo, e só a partir da nossa humanidade – como con-
Giacoia, filósofo, em entrevista na desta compreensão é possível fazer quista de homo sapiens, e não como
IHU On-Line desta semana. A edição o bem. Andrej Angrick, historiador conjunto de indivíduos – morreu de-
vem no contexto do Ciclo de Estudos alemão, trata dos Einsatzgruppen, pois de Auschwitz.
50 anos do Golpe Civil-Militar. Im- as forças-tarefa de extermínio nazis- O teólogo Karl-Josef Kuschel,
pactos, (des)caminhos, processos e tas, e destaca a contrariedade com professor da Universidade de Tübin-
da programação da 11ª Páscoa IHU, que membros da tropa encaravam o gen, afirma que a experiência do Ho-
que este ano debate o tema do mal genocídio. locausto ou de outros crimes contra
na contemporaneidade, à luz da obra Adriano Correia Silva, professor a humanidade mostra a nós “pessoas
de Hannah Arendt – especialmente As de Filosofia na Universidade Federal esclarecidas” que nenhum padrão ci-
Origens do Totalitarismo e Eichmann de Goiás, chama atenção para a bar- vilizado está garantido. Segundo ele,
em Jerusalém. Um relato sobre a ba- bárie instituída por meio da banalida- “tanto a literatura quanto a teologia
nalidade do mal. de do mal na modernidade, que pode se empenham por respostas para a
“Não é o Holocausto que acha- levar a um passo do totalitarismo. Saul experiência do “abismo Deus” e do
mos difícil de entender em toda a sua Kirschbaum, pesquisador da cultura “enigma pessoa humana”. O psica-
monstruosidade. É nossa Civilização hebraica, ressalta que, para a irrupção nalista Abrão Slavutzky, por sua vez,
Ocidental que o Holocausto tornou de barbáries como o Holocausto, não aborda as relações entre o humor
quase incompreensível”, assinala é preciso agentes demoníacos, ape- e a crueldade e explora os modos
Zygmunt Bauman em Modernidade e nas simples funcionários de carreira. como os próprios judeus utilizavam
Holocausto. Para ele, a geração que Professor da Universidade Estadual do riso para sobreviver ao horror do
viveu essa experiência direta pratica- de Campinas – Unicamp, o filósofo nazismo.
mente já desapareceu, “mas – e este Oswaldo Giacoia Junior esclarece que Complementam ainda esta edi-
é um terrível e sinistro ‘mas’ – aqueles a maldade que conhecemos é resulta- ção entrevistas com a jornalista Da-
aspectos de nossa civilização outrora do de uma dinâmica de interiorização niela Arbex, sobre seu livro Holocaus-
familiares e que o Holocausto tornou e espiritualização da crueldade. to Brasileiro – Vida, genocídio e 60 mil
de novo misteriosos ainda fazem bem O psicanalista Robson de Freitas mortes no maior hospício do Brasil, e
parte de nossa vida. Não foram elimi- Pereira trata da importância do do- com o professor da Universidade de
nados. Também não o foi, portanto, cumentário Shoah (1985), de Claude Emory, Atlanta, Estados Unidos, Em-
a possibilidade do Holocausto”. Ob- Lanzmann, considerado o registro manuel Lartey, sobre experiência de
servando os fatos históricos na con- definitivo da crueldade nos Campos um Deus único e multifacetado no
temporaneidade, permanece válida de Concentração e Extermínio. O do- contexto pós-colonial.
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André Langer e Darli Sampaio,
Diretor de redação: Inácio do Centro de Pesquisa e Apoio
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na Unisinos. (ricardom@unisinos.br).
Schneider (jacintos@unisinos.br).
Revisão: Carla Bigliardi Kober

2
Índice
LEIA NESTA EDIÇÃO
TEMA DE CAPA | Entrevistas
5 Miroslav Milovic – Contemplar para compreender, entender a si mesmo para fazer o bem
12 Andrej Angrick – Violência e resistência da força-tarefa nazista
16 Adriano Correia Silva – Totalitarismo – O filho bastardo da modernidade
19 Saul Kirschbaum – A banalidade das engrenagens da máquina nazista
23 Oswaldo Giacoia Junior – O mal como resultado do processo civilizatório moderno
28 Robson de Freitas Pereira – Lanzmann e a construção da Shoah como acontecimento
32 Reyes Mate – “De Auschwitz saímos pobres em humanidade”
35 Karl-Josef Kuschel – Teodiceia e Antropodiceia – O mal na teologia depois de Auschwitz
38 Abrão Slavutzky – Humor como fuga da crueldade no século XX
44 Baú da IHU On-Line

DESTAQUES DA SEMANA
46 Destaques On-Line
48 Daniela Arbex – Holocausto Brasileiro – Vida, genocídio e 60 mil mortes no maior
hospício do Brasil
52 Emmanuel Lartey – A experiência de um Deus único e multifacetado no pós-
colonialismo

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da Semana
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IHU em
Revista
4 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Contemplar para compreender,

Tema de Capa
entender a si mesmo para fazer
o bem
Para o professor Miroslav Milovic, agir no mundo requer, antes de tudo, saber o que é
o mundo, o que é a própria natureza, para nos entendermos

Por Márcia Junges e Ricardo Machado

O
mal não existe tão somente em suas operadores que pensadores. “Nesse mundo
formas escancaradas. É, também, su- tão ordenado, quase não temos que pensar
til e ardiloso, tem seu feitio banal e mais. O pensamento não muda a estrutura
quase invisível. O pensamento e a tentativa dominante do ser. Essa inabilidade do pen-
de compreensão de nosso espaço no mun- samento termina, no último momento, nas
do requer, como sugere Miroslav Milovic, catástrofes políticas do nosso século. Tantos
recuperando os gregos antigos, a contem- crimes, mas quase sem culpados. O indivíduo
plação. “(...) Como pensa Sócrates, para agir que não pensa e se torna cúmplice dos cri-
precisamos saber o que é o mundo, o logos mes: essa é a banalidade do mal diagnostica-
dele. Precisamos entender o que é a própria da por Hannah Arendt como a consequência
natureza para poder nos entender. Por isso dessa tradição filosófica que quase mumifi-
este olhar teórico, a vida contemplativa tem cou a estrutura do ser e nos marginalizou”,
a primazia para os gregos”, explica o profes- sustenta o professor.
sor, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Miroslav Milovic nasceu na Iugoslávia, em
“É o caminho para conhecer o Bem. Simvalein 1955, graduou-se em Filosofia pela Faculdade
é o verbo grego que ilumina este caminho de Filosofia de Belgrado e possui doutorado
do essencial. Sair deste caminho, indo para na mesma área pela Université de Paris IV e
o particular, significa se aproximar do Mal. pela Universität Frankfurt. Foi professor de Fi-
Diavalein é o verbo que aparece por aqui. E losofia na Iugoslávia, Turquia, Espanha, Japão
é a origem da palavra diabo, da metáfora do e, atualmente, é docente do Departamento
Mal”, complementa. de Direito da Universidade de Brasília (UnB).
Nesse sentido, Milovic critica a rigidez bio- Milovic é autor e organizador de diversas
política invisível de nossas sociedades, que obras, entre elas Comunidade da Diferença
acabam, por estratégias sofisticadas, afastan- (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004), Filo-
do-nos do aprofundamento do pensamento, sofia da Comunicação (Brasília: Plano, 2002).
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da contemplação, que tenta nos tornar mais Confira a entrevista.

IHU On-Line – Filosoficamente, te a metafísica. No início, Platão1 e Aristóteles2 usam a expressão “fi-
como se pode definir o que é o Mal?
Miroslav Milovic – Os gregos 1 Platão (427-347 a.C.): filósofo ate- 04-09-2006, disponível em http://bit.ly/
investigam o mundo, mas dizem niense. Criador de sistemas filosóficos pteX8f. Leia, também, a edição 294 da
influentes até hoje, como a Teoria das Revista IHU On-Line, de 25-05-2009, inti-
algo que, vai determinar a nossa Ideias e a Dialética. Discípulo de Sócra- tulada Platão. A totalidade em movimen-
cultura. Por um lado, por exemplo, tes, Platão foi mestre de Aristóteles. to, disponível em http://bit.ly/xdSEVn.
Entre suas obras, destacam-se A Repú- (Nota da IHU On-Line)
eles colocam as perguntas sobre a blica (São Paulo: Editora Edipro, 2012) e 2 Aristóteles de Estagira (384-322 a.C.):
física. Por outro, acham que existe Fédon (São Paulo: Martin Claret, 2002). filósofo nascido na Calcídica, Estagira,
algo além das pesquisas sobre a fí- Sobre Platão, confira a entrevista As im- um dos maiores pensadores de todos os
plicações éticas da cosmologia de Platão, tempos. Suas reflexões filosóficas – por um
sica que determina o próprio fun- concedida pelo filósofo Marcelo Perine à lado originais e por outro reformuladoras
damento dela. Além da física, exis- edição 194 da revista IHU On-Line, de da tradição grega – acabaram por configu-

EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 5


losofia primeira”. A metafísica como rias discussões sobre política, Hannah o começo do niilismo na Europa. A
Tema de Capa
palavra vai aparecer depois, dentro Arendt se refere à discussão fenome- estrutura já determinada, estática,
da sistematização da obra aristotéli- nológica, nos ajudando a compreen- entre o ser e a aparência, tem con-
ca. Mesmo assim, podemos ficar com der a importância histórica dessa radi- sequências catastróficas para o pró-
essa diferença. O mundo tem os fun- calização do cartesianismo dentro da prio pensamento. Ele se torna mera
damentos que a física ou, poderíamos fenomenologia husserliana. Arendt subsunção das aparências às formas
dizer, a ciência não conhece. O mundo acredita que a separação platônica superiores do ser. Nesse mundo tão
tem a estrutura metafísica. Isso, de entre o ser e a aparência marca um ordenado, quase não temos que pen-
novo, está no início da cultura euro- passo histórico não só para a vida dos sar mais. O pensamento não muda a
peia e chega até hoje. Aqui aparece gregos, mas para todo o caminho pos- estrutura dominante do ser. Essa ina-
o sentido da filosofia, a qual se iden- terior da civilização. A desvalorização bilidade do pensamento termina, no
tifica com a metafísica. Os amigos da da aparência e a afirmação do ser são último momento, nas catástrofes po-
sabedoria, como pensa Platão, que os aspectos da reviravolta na vida dos líticas do nosso século. Tantos crimes,
não se deixam seduzir pelo conheci- gregos e do Ocidente europeu. Com mas quase sem culpados. O indivíduo
mento das aparências, estão no ca- isso, tem início uma específica tirania que não pensa e se torna cúmplice
minho da metafísica. Então já temos da razão e dos padrões na nossa vida. dos crimes: essa é a banalidade do
uma ligação íntima entre a filosofia, Isso é o que Nietzsche4 elabora como mal diagnosticada por Hannah Arendt
a metafísica e a razão. Ao lado, po- como a consequência dessa tradição
deríamos colocar a palavra ontologia. seguições nazistas, em 1941, partiu para filosófica que quase mumificou a es-
A ontologia é a pergunta sobre o ser os EUA, onde escreveu grande parte das trutura do ser e nos marginalizou.
suas obras. Lecionou nas principais uni-
que se abre para um olhar metafísico. versidades deste país. Sua filosofia as-
Mencionei Arendt porque aqui
Teoria poderia ser outra palavra neste senta numa crítica à sociedade de mas- temos a ideia do Mal que se confronta
contexto. Vem deste olhar contem- sas e à sua tendência para atomizar os com as leituras gregas. Entre os dois,
indivíduos. Preconiza um regresso a uma
plativo. Com a teoria como filosofia, concepção política separada da esfera
poderíamos mencionar talvez Kant5,
como metafísica, o ser humano pode econômica, tendo como modelo de ins-
se entender. Entender a própria ori- piração a antiga cidade grega. Entre suas
obras, citamos: Eichmann em Jerusalém mento de Friedrich Nietzsche, e pode
gem divina, talvez, e entender como – Uma reportagem sobre a banalidade do ser acessada em http://bit.ly/HdcqOB.
agir. Ou, como pensa Sócrates, para mal (Lisboa: Tenacitas, 2004) e O Sistema Confira, também, a entrevista concedida
agir precisamos saber o que é o mun- Totalitário (Lisboa: Publicações Dom Qui- por Ernildo Stein à edição 328 da revista
xote, 1978). Sobre Arendt, confira as edi- IHU On-Line, de 10-05-2010, disponível
do, o logos dele. Precisamos entender ções 168 da IHU On-Line, de 12-12- 2005, em http://bit.ly/162F4rH, intitulada O
o que é a própria natureza para poder sob o título Hannah Arendt, Simone Weil biologismo radical de Nietzsche não pode
nos entender. Por isso este olhar teó- e Edith Stein. Três mulheres que marca- ser minimizado, na qual discute ideias de
ram o século XX, disponível para downlo- sua conferência “A crítica de Heidegger
rico – a vida contemplativa tem a pri- ad em http://bit.ly/ihuon168 e a edição ao biologismo de Nietzsche e a questão
mazia para os gregos. 206, de 27-11-2006, intitulada O mundo da biopolítica”, parte integrante do Ci-
É o caminho para conhecer o moderno é o mundo sem política. Han- clo de Estudos Filosofias da diferença –
nah Arendt 1906-1975, disponível para Pré-evento do XI Simpósio Internacional
Bem. Simvalein é o verbo grego que download em http://bit.ly/ihuon206. IHU: O (des)governo biopolítico da vida
ilumina este caminho do essencial. Veja também, na edição 207 de 04-12- humana. Na edição 330 da revista IHU
Sair deste caminho, indo para o par- 2006, a entrevista Um pensamento e uma On-Line, de 24-05-2010, leia a entrevis-
presença provocativos, de Michelle-Irène ta Nietzsche, o pensamento trágico e a
ticular, significa se aproximar do Mal. Brudny, disponível em http://bit.ly/ afirmação da totalidade da existência,
Diavalein é o verbo que aparece por ihuon207. (Nota da IHU On-Line) concedida pelo Prof. Dr. Oswaldo Giacoia
aqui. E é a origem da palavra diabo, da 4 Friedrich Nietzsche (1844-1900): fi- e disponível para download em http://
lósofo alemão, conhecido por seus con- bit.ly/nqUxGO. Na edição 388, de 09-04-
metáfora do Mal. ceitos além-do-homem, transvaloração 2012, leia a entrevista O amor fati como
dos valores, niilismo, vontade de poder resposta à tirania do sentido, com Danilo
IHU On-Line – Quais são as prin- e eterno retorno. Entre suas obras fi- Bilate, disponível em http://bit.ly/Hza-
guram como as mais importantes Assim JpJ. (Nota da IHU On-Line)
cipais abordagens filosóficas sobre o
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falou Zaratustra (9ª ed. Rio de Janeiro: 5 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo
problema do Mal? Civilização Brasileira, 1998), O anticristo prussiano, considerado como o último
Miroslav Milovic – São as pala- (Lisboa: Guimarães, 1916) e A genealo- grande filósofo dos princípios da era
gia da moral (5ª ed. São Paulo: Centau- moderna, representante do Iluminismo.
vras de Hannah Arendt3. Em suas vá- ro, 2004). Escreveu até 1888, quando foi Kant teve um grande impacto no roman-
acometido por um colapso nervoso que tismo alemão e nas filosofias idealistas
nunca o abandonou até o dia de sua mor- do século XIX, as quais se tornaram um
rar um modo de pensar que se estenderia te. A Nietzsche foi dedicado o tema de ponto de partida para Hegel. Kant esta-
por séculos. Prestou inigualáveis contri- capa da edição número 127 da IHU On- beleceu uma distinção entre os fenôme-
buições para o pensamento humano, des- -Line, de 13-12-2004, intitulado Nietzs- nos e a coisa-em-si (que chamou noume-
tacando-se nos campos da ética, política, che: filósofo do martelo e do crepúscu- non), isto é, entre o que nos aparece e o
física, metafísica, lógica, psicologia, po- lo, disponível para download em http:// que existiria em si mesmo. A coisa-em-si
esia, retórica, zoologia, biologia, história bit.ly/Hl7xwP. Sobre o filósofo alemão, não poderia, segundo Kant, ser objeto
natural e outras áreas de conhecimento. conferir ainda a entrevista exclusiva re- de conhecimento científico, como até
É considerado, por muitos, o filósofo que alizada pela IHU On-Line edição 175, de então pretendera a metafísica clássica.
mais influenciou o pensamento ocidental. 10-04-2006, com o jesuíta cubano Emilio A ciência se restringiria, assim, ao mun-
(Nota da IHU On-Line) Brito, docente na Université Catholique do dos fenômenos, e seria constituída
3 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e de Louvain, intitulada “Nietzsche e Pau- pelas formas a priori da sensibilidade
socióloga alemã, de origem judaica. Foi lo”, disponível para download em http:// (espaço e tempo) e pelas categorias do
influenciada por Husserl, Heidegger e bit.ly/dyA7sR. A edição 15 dos Cadernos entendimento. A IHU On-Line número
Karl Jaspers. Em consequência das per- IHU em formação é intitulada O pensa- 93, de 22-03-2004, dedicou sua matéria

6 SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 | EDIÇÃO 438


que articula o nascimento da moder- isso são as discussões posteriores. O as consequências catastróficas dessa

Tema de Capa
na filosofia da subjetividade. O Mal que Agamben7 quer entender é essa ligação moderna entre a natureza e a
neste contexto é o abandono dessa mudança moderna da relação entre política. Para esclarecer essa inclusão
autonomia da subjetividade. zoé e bios. Se nós somos iguais e livres moderna da zoé, Agamben vai voltar
por natureza, como então podemos a um conceito que Foucault utiliza,
IHU On-Line – Quais são as for- entender essa inclusão da zoé em mas indica os limites históricos dele. É
mas que o Mal assumiu em nosso bios? É o contexto em que Agamben o conceito da soberania. Em lugar do
tempo? se confronta com Foucault8 avisando poder soberano da normação, pensa
Miroslav Milovic – É conhecida a Foucault, a partir do século XVIII e XIX,
diferença aristotélica entre zoé e bios, 7 Giorgio Agamben (1942): filósofo ita- temos o poder disciplinar da norma-
entre o natural ou privado e público liano. É professor da Facoltà di Design lização. Em lugar do poder judiciário
e Arti della IUAV (Veneza), onde ensina
ou político. É a diferença que Aristó- Estética, e do Collège International de
ligado ao poder soberano, temos a
teles concretiza falando sobre a desi- Philosophie de Paris. Formado em Direi- perspectiva cuja função não é de pu-
gualdade dos homens. O escravo não to, foi professor da Università di Mace- nir as infrações dos indivíduos, mas de
rata, Università di Verona e da New York
possui de forma alguma a faculdade University, cargo ao qual renunciou em
corrigir suas virtualidades. É o novo
de deliberar na política. Assim ele protesto à política do governo norte- tipo de poder que Foucault classifica
chega à justificação da escravidão. A -americano. Sua produção centra-se nas como sociedade disciplinar. É o novo
relações entre filosofia, literatura, poe-
Modernidade mudou essa perspecti- sia e, fundamentalmente, política. Entre
tempo do panoptismo e do olhar vi-
va. Nós somos iguais por natureza. Ou suas principais obras, estão Homo Sacer: gilante do poder controlando os in-
seja, zoé e bios não ficam contrapos- o poder soberano e a vida nua (Belo Ho- divíduos, os corpos e a população. A
rizonte: Ed. UFMG, 2002); A linguagem
tos. A experiência moderna é uma es- e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG,
dúvida que Agamben, neste contexto,
pecífica inclusão da zoé no bios. Aqui 2005); Infância e história: destruição da tem sobre Foucault é que assim não
podemos pensar em Hobbes6 tam- experiência e origem da história (Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2006); Estado de
bém e na questão da nossa autopre- exceção (São Paulo: Boitempo Editorial, cault trata principalmente do tema do
servação. Sobreviver, preservar a vida 2007); Estâncias – A palavra e o fantasma poder, rompendo com as concepções clás-
natural parece ser o projeto político na cultura ocidental (Belo Horizonte: Ed. sicas desse termo. Para ele, o poder não
UFMG, 2007); e Profanações (São Paulo: pode ser localizado em uma instituição
no início da Modernidade. A liberda- Boitempo Editorial, 2007). Em 04-09- ou no Estado, o que tornaria impossível a
de é o fato natural. Nós somos livres 2007, o sítio do Instituto Humanitas Uni- “tomada de poder” proposta pelos mar-
como os seres naturais. Só depois, no sinos – IHU publicou a entrevista Estado xistas. O poder não é considerado como
de exceção e biopolítica segundo Giorgio algo que o indivíduo cede a um soberano
contexto do idealismo alemão, vai ser Agamben, com o filósofo Jasson da Silva (concepção contratual jurídico-política),
feita uma específica separação entre Martins, disponível em http://bit.ly/jas- mas sim como uma relação de forças. Ao
natureza e liberdade e uma específica son040907. A edição 236 da IHU On-Line, ser relação, o poder está em todas as
de 17-09-2007, publicou a entrevista partes, uma pessoa está atravessada por
ligação entre liberdade e política. Nós Agamben e Heidegger: o âmbito origi- relações de poder, não pode ser conside-
não somos livres como seres naturais, nário de uma nova experiência, ética, rada independente delas. Para Foucault,
mas dentro de uma específica afirma- política e direito, com o filósofo Fabrí- o poder não somente reprime, mas tam-
cio Carlos Zanin, disponível em http:// bém produz efeitos de verdade e saber,
ção espiritual sobre a natureza. Mas bit.ly/ihuon236. A edição 81 da publica- constituindo verdades, práticas e subje-
ção, de 27-10-2003, teve como tema de tividades. Em várias edições a IHU On-Li-
capa O Estado de exceção e a vida nua: ne dedicou matéria de capa a Foucault:
de capa à vida e à obra do pensador com a lei política moderna, disponível para edição 119, de 18-10-2004, disponível em
o título Kant: razão, liberdade e ética, acesso em http://bit.ly/ihuon81. Além http://bit.ly/ihuon119, edição 203, de
disponível para download em http://bit. disso, de 16 de abril a 23 de outubro de 06-11-2006, disponível em http://bit.ly/
ly/ihuon93. Também sobre Kant foi publi- 2013, o IHU organizou o ciclo de estudos ihuon203, e edição 364, de 06-06-2011,
cado o Cadernos IHU em formação nú- O pensamento de Giorgio Agamben: téc- intitulada ‘História da loucura’ e o dis-
mero 2, intitulado Emmanuel Kant – Ra- nicas biopolíticas de governo, soberania curso racional em debate, disponível em
zão, liberdade, lógica e ética, que pode e exceção, cujas atividades integraram o http://bit.ly/ihuon364. Confira, tam-
ser acessado em http://bit.ly/ihuem02. I e o II seminários preparatórios ao XIV bém, a entrevista com o filósofo José Ter-
Confira, ainda, a edição 417 da revista Simpósio Internacional IHU – Revoluções nes, concedida à IHU On-Line 325, sob o www.ihu.unisinos.br
IHU On-Line, de 06-05-2013, intitulada A tecnocientíficas, culturas, indivíduos e título Foucault, a sociedade panóptica e
autonomia do sujeito, hoje. Imperativos sociedades. (Nota da IHU On-Line) o sujeito histórico, disponível em http://
e desafios, disponível em http://bit.ly/ 8 Michel Foucault (1926-1984): filósofo bit.ly/ihuon325. De 13 a 16 de setembro
ihuon417. (Nota da IHU On-Line) francês. Suas obras, desde a História da de 2010 aconteceu o XI Simpósio Inter-
6 Thomas Hobbes (1588–1679): filósofo Loucura até a História da sexualidade (a nacional IHU: O (des)governo biopolítico
inglês. Sua obra mais famosa, O Leviatã qual não pôde completar devido à sua da vida humana. Confira a edição 343 da
(1651), trata de teoria política. Neste morte) situam-se dentro de uma filosofia IHU On-Line que traz o mesmo título que
livro, Hobbes nega que o homem seja do conhecimento. Suas teorias sobre o o evento, publicada em 13-09-2010, dis-
um ser naturalmente social. Afirma, ao saber, o poder e o sujeito romperam com ponível em http://bit.ly/ihuon343, e a
contrário, que os homens são impulsio- as concepções modernas destes termos, edição 344, intitulada Biopolítica, estado
nados apenas por considerações egoístas. motivo pelo qual é considerado por cer- de exceção e vida nua. Um debate, dis-
Também escreveu sobre física e psico- tos autores, contrariando a sua própria ponível em http://bit.ly/ihuon344. Além
logia. Hobbes estudou na Universidade opinião de si mesmo, um pós-moderno. disso, o IHU organizou, durante o ano de
de Oxford e foi secretário de Sir Francis Seus primeiros trabalhos (História da 2004, o evento Ciclo de Estudos sobre Mi-
Bacon. A respeito desse filósofo, confi- Loucura, O Nascimento da Clínica, As chel Foucault, que também foi tema da
ra a entrevista O conflito é o motor da Palavras e as Coisas, A Arqueologia do edição número 13 dos Cadernos IHU em
vida política, concedida pela Profa. Dra. Saber) seguem uma linha estruturalista, formação, disponível para download em
Maria Isabel Limongi à edição 276 da re- o que não impede que seja considerado http://bit.ly/ihuem13 sob o título Michel
vista IHU On-Line, de 06-10-2008. O ma- geralmente como um pós-estruturalista Foucault. Sua contribuição para a educa-
terial está disponível em http://bit.ly/ devido a obras posteriores como Vigiar e ção, a política e a ética. (Nota da IHU
ihuon276. (Nota da IHU On-Line) Punir e A História da Sexualidade. Fou- On-Line)

EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 7


ficam claros os perigos do novo poder.
“Como pensa mar a primazia do universal represen-
Tema de Capa
O que Agamben vê nessa perspectiva tado na filosofia, mas quer expulsar
é o poder que nos deixa expostos à
morte, que nos deixa nos campos de Sócrates, para agir do estado ideal tudo o que não o re-
presenta. O sentido do particular não
concentração. A pergunta então é:
como isso aconteceu? precisamos saber reside na sua diferença, mas na repre-
sentação do universal. O pensamento
Mas ficou clara a mudança. Na também representa e a filosofia é a
origem da política temos as condições o que é o mundo” melhor representação. Hannah Aren-
da produção da vida nua. Ou da vida dt procurará neste contexto o início
exposta à morte. A zoé incluída, como do mal, ou da banalidade do mal, que
pensa a biopolítica de Foucault, fica dt. Por um lado, temos uma implíci- determina a Europa moderna. Pensar
agora incluída como excluída pelas ta intersubjetividade do juízo e, por se relaciona com o universal. Assim o
estruturas políticas e jurídicas. Assim, outro, essa intersubjetividade não é particular desaparece. Eichmann só
a biopolítica da modernidade vai em fundamentada nos conceitos. Temos seguiu essa tirania do dever, que as
direção a uma tanatopolítica. É o pon- a possibilidade do prático ou político futuras ontologias têm que enfrentar.
to em que Agamben tenta superar o que não depende da racionalidade. Agamben fala sobre isso no final do
projeto de Foucault. Temos a separação entre o teórico e seu livro Opus Dei (São Paulo: Boitem-
o prático que Habermas11 depois irá po, 2013). A burocracia nos fecha no
IHU On-Line – Como é possível criticar, porque essa separação cria mundo dado. E a nossa tarefa, hoje, é
compreender que Adolf Eichmann9 as condições de uma forte estetiza- reinventar o mundo.
justificou a partir da filosofia kantia- ção da política. Estetização da política
na o cumprimento de seus deveres pode significar a política desligada das IHU On-Line – Em que sentido
como funcionário do Reich alemão? pessoas, o que Arendt coloca, falando há uma relação entre o mal e a hiper-
Miroslav Milovic – É bom enten- sobre a modernidade, mas pode ser racionalidade que caracteriza a socie-
der que Arendt primeiro procura a a política desligada da teoria e dos dade contemporânea?
inspiração em Kant. Com a faculdade argumentos. Miroslav Milovic – Vou respon-
estética do juízo, o ponto, pensa Kant, Mas essa arquitetônica do siste- der pensando a crítica que Hegel13
é como compreendemos a natureza ma kantiano articula as novas formas, articula contra o jusnaturalismo. O
e não o que ela é em si mesma. “O modernas, da primazia do universal. estado da natureza em que se afirma
que é a natureza?” é uma pergunta Eichmann, mesmo sem entender, ob- o novo sentido teórico da Modernida-
cognitiva e, portanto, não pertence à viamente, as leituras kantianas sobre de não é o estado de liberdade e dos
Terceira Crítica10. A natureza existiria a subjetividade autônoma, segue isso. direitos. Não existem os direitos natu-
mesmo se não houvesse nenhum su- Na filosofia kantiana o universal ainda rais, pensa Hegel. A questão do direi-
jeito transcendental. Ela só não seria não se constitui pela presença dos Ou- to é um contexto social. O sentido do
determinada conceitualmente. Mas tros. Eichmann segue este dramático direito é uma relação com os outros.
sem o sujeito a natureza não seria monólogo do pensamento.
bela. Ainda assim, aquilo que se tor-
na o discurso possível sobre o belo IHU On-Line – Qual é a atualida-
Nietzsche e Espinosa poderosas interse-
ções. Professor da Universidade de Paris
não é mais o pensamento teórico. En- de da constatação arendtiana da ba- VIII, Vincennes, Deleuze atualizou ideias
quanto as condições de possibilidade nalidade do mal, de que Eichmann, como as de devir, acontecimentos, singu-
da experiência, no que diz respeito à ao invés de um monstro, era, na ver-
laridades, conceitos que nos impelem a
transformar a nós mesmos, incitando-nos
forma, podem ser buscadas na razão, dade, um burocrata medíocre que a produzir espaços de criação e de produ-
as condições referentes ao conteúdo não tinha capacidade para entender ção de acontecimentos-outros. (Nota da
são fundamentadas pela relação geral o mal que praticava?
IHU On-Line)
13 Friedrich Hegel [Georg Wilhelm Frie-
das faculdades espirituais. Aqui temos
www.ihu.unisinos.br

Miroslav Milovic – Como obser- drich Hegel] (1770-1831): filósofo ale-


dois motivos importantes para Aren- va Deleuze12, Platão não só quer afir- mão idealista. Como Aristóteles e Santo
Tomás de Aquino, tentou desenvolver um
sistema filosófico no qual estivessem in-
9 Adolf Otto Eichmann (1906-1962): ofi- 11 Jürgen Habermas (1929): filósofo tegradas todas as contribuições de seus
cial do alto escalão na Alemanha Nazis- alemão, principal estudioso da segunda principais predecessores. Sua primeira
ta e membro da SS (Schutzstaffel). Foi geração da Escola de Frankfurt. Herdan- obra, A fenomenologia do espírito (Petró-
largamente responsável pela logística do as discussões da Escola de Frankfurt, polis: Vozes, 2008), tornou-se a favorita
do extermínio de milhões de pessoas du- Habermas aponta a ação comunicati- dos hegelianos da Europa continental no
rante o Holocausto, em particular pelos va como superação da razão iluminista século XX. Sobre Hegel, confira a edição
judeus, na chamada Solução Final. Or- transformada num novo mito, o qual en- nº 217 da IHU On-Line, de 30-04-2007,
ganizou a identificação e o transporte cobre a dominação burguesa (razão ins- intitulada Fenomenologia do espírito, de
de pessoas para os diferentes campos de trumental). Para ele, o logos deve cons- Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1807-
concentração, sendo por isso conhecido truir-se pela troca de ideias, opiniões e 2007), em comemoração aos 200 anos de
frequentemente como o executor chefe informações entre os sujeitos históricos, lançamento dessa obra. O material está
do Terceiro Reich. (Nota da IHU On-Line estabelecendo-se o diálogo. Seus estudos disponível em http://bit.ly/1eEonKO.
10 Terceira Crítica ou Terceira fórmula se voltam para o conhecimento e a ética. Sobre Hegel, leia, ainda, a edição 261 da
de Kant: Refere-se a Crítica do faculdade (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line, de 09-06-2008, Carlos Ro-
do juízo (Crítica da faculdade do juízo. 12 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo berto Velho Cirne-Lima. Um novo modo
Rio de Janeiro: Forense Universitária, francês. Assim como Foucault, foi um dos de ler Hegel, disponível em http://bit.
1993) (Nota da IHU On-Line). estudiosos de Kant, mas tem em Bérgson, ly/1g0xNhE. (Nota da IHU On-Line)

8 SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 | EDIÇÃO 438


Hegel acha que isso é assim pelo con-
“Nesse mundo tão Mas, por outro lado, é fácil indi-

Tema de Capa
ceito. Então temos que entender duas car as dúvidas sobre Hegel. Rápido. O
perspectivas: uma histórica, que Hegel
entende como o caminho da saída de ordenado, quase ser humano não existe só em si, mas
sim consciente da sua liberdade. A
natureza e da afirmação da liberdade,
e o outro, o caminho do pensamento, não temos que vida ética, o reconhecimento e, as-
sim, a intersubjetividade é um acon-
do conceito, de uma articulação con- tecimento político. Hegel acredita que
ceitual do pensamento. O caminho da pensar mais” isso se realiza na Revolução Francesa.
liberdade e o caminho do pensamen- São conhecidas as dúvidas de Marx15
to: duas perspectivas hegelianas inse- sobre essa emancipação política. Ha-
paráveis. Ele volta para uma palavra nado. Aqui já temos um argumento a bermas também está fundamentando
quase abandonada na filosofia: a pa- mais, ligado à mencionada relação en- toda a sua teoria nessa impossibilida-
lavra ontologia. Por outro lado, Hegel tre a lógica e a ontologia. Temos que de da realização da intersubjetividade
quer analisar a lógica do pensamento sair do Estado de Natureza, não só por na Modernidade. É um perigo político,
com a qual se chega até o conceito. causa da violência que lá se encontra, como vamos ver ainda, pensar a Mo-
Desde o início a filosofia hegeliana é mas porque no direito natural e na na- dernidade como a realização da de-
uma relação íntima entre a ontologia tureza, conforme pensa Hegel, temos mocracia e da intersubjetividade. Para
e a lógica. Só que sua ontologia não só a relação com as coisas e não com Habermas ainda é uma possibilidade,
será grega. Hegel, mesmo tendo mui- nós mesmos. Direitos naturais não para muitos uma impossibilidade de
ta simpatia pelo pensamento grego, criam o ambiente para uma específi- ver a democracia na Modernidade.
não concorda com uma pressuposta ca autocompreensão do ser humano, Ao lado da questão da inter-
primazia do geral e do coletivo, que que Hegel procura. Quem somos nós? subjetividade podemos mencionar
no sentido explícito encontramos em E ainda mais, quem somos nós depois também a questão da diferença. Não
Platão e Aristóteles. Mesmo queren- da Revolução Francesa?14 O direito na- podemos deixar o Estado e o conceito
do afirmar o coletivo, de novo Hegel tural não é a nossa autoconsciência. A depender das contingências e das de-
quer fazer isso justificando-o e não nossa autoconsciência fica ligada não cisões individuais. A ideia do Estado é
postulando-o. A primazia do coletivo à natureza, mas ao caminho histórico muito mais digna, acha Hegel. A natu-
tem que ser a consequência do pró- – que chega até a Revolução Francesa. reza dele é diferente, é a realização da
prio conceito. Por outro lado, Hegel A natureza não é o lugar do ser huma- vontade espiritual. Assim, acho, outro
se confronta com a ilimitada afirma- no. Por isso, como mencionamos, fica nem pode aparecer como outro, mas
ção do indivíduo da época moderna, até contraditório falar sobre os direi- dentro deste caminho glorioso do
ligada ao avanço do liberalismo. Ele tos naturais. espírito. Parece-me que Hegel neste
pensa sobre uma outra síntese entre Hegel critica a racionalidade mo- ponto não supera a filosofia kantia-
o coletivo e o individual, mas não no derna, ou a nossa hiper-racionalidade na. Em Kant não podemos pensar o
sentido de um novo ecumenismo. voltando para os pressupostos dela. O encontro com o outro. Outro está
Essa relação tem que ser entendi- sentido do pensamento hoje é devol- dentro de um procedimento reflexivo
da como a consequência do próprio ver aos seres humanos este aspecto da filosofia. Outro em Hegel também
conceito. Então, a ontologia que volta ontológico que se perdeu. A discussão aparece só no caminho reflexivo do
não é grega. Ela é história do próprio sobre os direitos humanos pode se espírito. Essa dificuldade do encontro
conceito e não de uma estrutura está- iniciar só por aqui. A dignidade do ser com outro chega talvez até o próprio
tica da metafísica, já determinada. O humano está na ontologia dele. Habermas. Ademais, como Hegel, Ha-
raciocínio de Hegel é fácil. O mundo bermas também não procura uma in-
pré-moderno é uma articulação da
metafísica objetiva, onde temos de
14 Revolução Francesa: nome dado ao 15 Karl Marx (Karl Heinrich Marx, 1818-
nos encaixar. É o contexto que ele,
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conjunto de acontecimentos que, entre 1883): filósofo, cientista social, econo-
por causa disso, várias vezes chama 5 de maio de 1789 e 9 de novembro de mista, historiador e revolucionário ale-
de consciência infeliz e da humilhação 1799, alterou o quadro político e social mão, um dos pensadores que exerceram
da França. Começa com a convocação maior influência sobre o pensamento
do homem, da essência do homem dos Estados Gerais e a Queda da Basti- social e sobre os destinos da humanida-
que fica sempre fora dele. O povo ju- lha e se encerra com o golpe de estado de no século XX. A edição número 41 dos
deu é talvez melhor exemplo para isso do 18 Brumário, de Napoleão Bonaparte. Cadernos IHU Ideias, de autoria de Leda
Em causa estavam o Antigo Regime (An- Maria Paulani, tem como título A (anti)
do que o povo grego. São os gregos, cien Régime) e a autoridade do clero e filosofia de Karl Marx, disponível em
finalmente, que encontram o brilho da nobreza. Foi influenciada pelos ideais http://bit.ly/173lFhO. Também sobre o
do coletivo. Mesmo assim, Hegel liga do Iluminismo e da independência esta- autor, confira a edição número 278 da
dunidense (1776). Está entre as maiores IHU On-Line, de 20-10-2008, intitulada
a liberdade só com a Modernidade. revoluções da história da humanidade. A A financeirização do mundo e sua crise.
Talvez o início que está no jusnatura- Revolução Francesa é considerada como Uma leitura a partir de Marx, disponível
lismo seja a teoria dos direitos huma- o acontecimento que deu início à Idade em http://bit.ly/rhygyP. Leia, igualmen-
Contemporânea. Aboliu a servidão e os te, a entrevista Marx: os homens não são
nos. Mas este mundo – que Hobbes é direitos feudais e proclamou os princípios o que pensam e desejam, mas o que fa-
testemunha – é o mundo da violência, universais de “Liberdade, Igualdade e zem, concedida por Pedro de Alcântara
e temos que sair dele, como o próprio Fraternidade” (Liberté, Egalité, Frater- Figueira à edição 327 da IHU On-Line, de
nité), lema de autoria de Jean-Jacques 03-05-2010, disponível em http://bit.ly/
Hegel confirma no parágrafo mencio- Rousseau. (Nota da IHU On-Line) JwXRSa. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 9


tersubjetividade econômica, mas uma
“O ser humano Schmitt estão no início dessa leitura
Tema de Capa
intersubjetividade política. Ele acha sobre a modernidade despolitizada.
que Hegel ficou só com a filosofia da
subjetividade, que agora se chama es- não existe só IHU On-Line – O campo como
paradigma político moderno é uma
pírito, e que por causa disso o projeto
da intersubjetividade ainda fica aber- em si, mas sim das ideias mais inquietantes de Gior-
to. Mas, com todas as dificuldades da gio Agamben. Em que medida essa
Modernidade que vamos discutir, ou- consciente da sua concepção expressa a essência da
tra pergunta aparece também, agora máquina de extermínio que moveu
contra Habermas: qual é o sentido de liberdade” a política nazista e as outras políticas
procurar a intersubjetividade onde ela persecutórias do século XX para cá?
não pode acontecer? Modernidade Miroslav Milovic – A despoliti-
não é o mundo da intersubjetividade xista sobre o profundo conflito na Mo- zação fica visível nos campos de con-
como acha Hegel e como ainda acre- dernidade. Só ele acha que Marx, de centração, como pensa Agamben,
dita Habermas. uma certa maneira, ainda ficou neste por exemplo. Pensamos que somos
A teleologia do espírito no final horizonte liberal enfatizando as ques- da cidade, mas no último momento
das contas apaga com as diferenças. tões da economia. E as questões não o campo é o nosso espaço político.
Neste sentido Hegel vai proclamar só econômicas, são ainda as políticas. Os homens do campo são os novos
o fim da história e a impossibilidade Só Schmitt vê um específico esqueci- exemplos do homo sacer. Agamben
das diferenças sociais. O exemplo das mento da política na Modernidade. fala aqui dos muçulmanos. Abaladas
mulheres é ilustrativo. Na Filosofia do Assim, onde Hegel vê o projeto da re- de fome, ajoelhadas na terra, as pes-
Direito, Hegel vai confirmar que elas alização política da liberdade, Schmitt soas do campo parecem os muçulma-
não superam a natureza e o privado. vê as condições da profunda despo- nos rezando. Parecem mortos-vivos.
Elas não chegam até o público e até litização moderna. É o início de uma É a vida exposta à morte. Aqui fica
a perspectiva geral do conceito. As- outra leitura, agora política, sobre a mais claro o sentido da palavra biopo-
sim, podemos concluir que a moder- Modernidade. lítica. É uma política sem a política. É
nidade não chega nem até a ideia da O sistema apaga com as subjeti- uma consequência da despolitização
intersubjetividade nem até a ideia da vidades. A perspectiva da reinvenção moderna e da perda da liberdade.
diferença. Isso é ainda hoje a diagnose da política é a perspectiva dessa ar- Estamos longe do otimismo hegelia-
do nosso mundo. ticulação das novas subjetividades. É no falando sobre a realização política
talvez a possibilidade do povo. Ele é, da nossa liberdade. Auschwitz17, Gu-
IHU On-Line – A despolitização para Schmitt, a subjetividade política lag18, Guantánamo19... Ou os povos do
da modernidade é um sintoma de que o sistema esqueceu. Ele é a subje-
que tipo de fenômeno mais profundo tividade da constituição, fala Schmitt 17 Auschwitz-Birkenau: nome de um
de nosso tempo? várias vezes. Ele é a possibilidade da
grupo de campos de concentração loca-
lizados no sul da Polônia, símbolos do
Miroslav Milovic – A Modernida- democracia direta e assim a possibi- Holocausto perpetrado pelo nazismo. A
de, seguindo o raciocínio hegeliano, lidade da própria democracia. Todo o partir de 1940 o governo alemão coman-
realiza a nossa liberdade. O indivíduo trabalho de Schmitt tentando repen-
dado por Hitler construiu vários campos
de concentração e um campo de exter-
é reconhecido como tal, como geral, sar a origem da política é o trabalho mínio nesta área, então na Polônia ocu-
no âmbito social. Somos livres não que confronta o liberalismo e a demo- pada. Houve três campos principais e 39
só na nossa interioridade, mais no cracia. O liberalismo não é a democra-
campos auxiliares. Como todos os outros
campos de concentração, os campos de
mundo também. E ainda mais. Todos cia, não porque não pode superar o Auschwitz eram dirigidos pela SS coman-
somos livres. Por isso a Modernidade próprio conflito entre o trabalho e ca- dada por Heinrich Himmler. (Nota da IHU
representa o fim da história. A razão pital, como diria Marx, mas porque se
On-Line)
18 Gulag (em português, Administração
se realizou e só temos que entender
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separa das próprias condições da legi- Geral dos Campos de Trabalho Correcio-
e segui-la. A nossa vida é a repetição timação. A legitimação desaparece no nal e Colônias): era um sistema de cam-
do passado. Pouco depois, Marx vê no liberalismo, ou se reduz aos critérios
pos de trabalhos forçados para crimino-
sos, presos políticos e qualquer cidadão
fundo da Modernidade não a realiza- técnicos do próprio sistema. Marx e em geral que se opusesse ao regime da
ção da liberdade, mas o conflito pro- União Soviética. Todavia, a grande maio-
fundo entre o capital e o trabalho. É ria era de presos políticos. No campo Gu-
lag de Kengir, em junho de 1954, existiam
o conflito que a própria Modernidade 650 presos comuns e 5200 presos políti-
não pode resolver. Por isso Marx fala constitucional e internacional da Ale- cos. Antes da Revolução, o Gulag chama-
sobre a revolução, sobre a mudança manha do século XX. A sua carreira foi va-se Katorga, e aplicava exatamente a
maculada pela sua proximidade com o mesma coisa: pena privativa de liberda-
ontológica na produção do social. Carl regime nacional-socialista. Entre outros, de, pena de trabalhos forçados e pena de
Schmitt16 entendeu este recado mar- é autor de Teologia política (Politische morte. (Nota da IHU On-Line)
Theologie, tradução de Elisete Antoniuk, 19 Guantánamo: capital da província
Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2006) e “O de Guantánamo, situada no sudeste de
16 Carl Schmitt (1888-1985): jurista, Leviatã na Teoria do Estado de Thomas Cuba. A 15km da cidade, foi implantada a
filósofo político e professor universitá- Hobbes”. Trad. Cristiana Filizola e João base naval dos Estados Unidos da América
rio alemão. É considerado um dos mais C. Galvão Junior. In GALVÃO JR. J.C. “Le- de Guantánamo. É no interior desta base
significativos (e também um dos mais viathan cibernetico” Rio de Janeiro: NPL, que se encontra a prisão de Guantánamo,
controversos) especialistas em direito 2008. (Nota da IHU On-Line) medindo 117,6 km² e alugada pelo gover-

10 SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 | EDIÇÃO 438


Terceiro Mundo? Também incluídos fala é quem sobreviveu. Mas quem seguros? Seguramente não na casa

Tema de Capa
como excluídos. sabe o que aconteceu, o Muçulmano, de um utilitarista cujo cálculo nos
Estamos, parece, longe da su- não pode falar. Quem é a verdadeira pode extraditar aos criminosos. Segu-
peração da natureza onde aparece o e única testemunha não pode teste- ramente não na casa de um kantiano
espiritual. A diferença entre a natu- munhar. Estamos neste silêncio sobre que sempre tem que dizer a verdade.
reza e a liberdade, entre o animal e o o Mal. Teria muitas dúvidas sobre a casa de
humano, tão importante para nossa um habermasiano, porque tudo pode
cultura, existe ainda? E, ademais, fica IHU On-Line – O aprisionamen- acontecer com a nossa vida até en-
impossível testemunhar sobre isso. A to e deportação dos judeus só pôde contrarmos uma solução discursiva.
verdade está dentro do campo, e não acontecer porque, antes de mais Teria também muitas dúvidas na casa
fora. E quem está dentro morre e não nada, essas pessoas eram tornadas de um pós-moderno orientado pela
pode testemunhar. O fato de poder apátridas. Como essa prerrogativa perfeição estética da sua própria vida.
falar, ou o a priori da comunicação continua a endossar a política que é O único lugar seguro parece a casa
não significa nada nessa situação. A aplicada aos refugiados hoje? aberta para Outrem. Essa casa que
possibilidade da comunicação ainda Miroslav Milovic – Seguindo nos oferece a hospitalidade sem a re-
não significa que podemos falar. Um Hegel estamos chegando até a Revo- ciprocidade. A hospitalidade poderia
argumento que Agamben articula lução Francesa e a decisão política do ser a palavra para ética hoje.
contra os pensadores de certo a priori reconhecimento. Aqui, de novo, Hegel
da comunicação é o que podemos en- se confronta com Kant. Sabemos que
contrar em Apel20 e Habermas. Quem Kant chega até a reciprocidade das
vontades, falando sobre o direito e as Leia mais...
condições externas da nossa liberda-
no norte-americano por 4 085 dólares por de. Só Hegel acha que Kant não mos- • Uma nova democracia: ainda é
ano. Desde janeiro de 2002 estão encar- tra de uma maneira argumentativa possível superar a apatia política?
cerados nesta base prisioneiros afegãos
como se chega até essa reciprocidade. Entrevista com Miroslav Milovic
e iraquianos acusados de ligação com
os grupos Taleban e Al-Qaeda, em uma A solução de Hegel é pelo reconheci- publicada na edição 250 da IHU On-
área excluída do controle internacional, mento mútuo dos indivíduos com o -Line, disponível em http://bit.ly/
concernando as condições de detenção
de seus prisioneiros. Segundo a Cruz Ver- qual o indivíduo se afirma como a fi- ihuon250.
melha internacional, esses prisioneiros nalidade em si. Ele chega, assim, até • “Arendt. O otimismo pensando a
seriam vítimas de tortura. (Nota da IHU a ideia de que o reconhecimento é o
On-Line) dignidade da política”. Entrevista
20 Karl-Otto Apel (1922): filósofo alemão direito de ter direitos. Hannah Arendt com Miroslav Milovic publicada na
que combina as tradições filosófica, ana- vai voltar a este projeto. edição 206 da IHU On-Line, disponí-
lítica e continental. Professor emérito Onde esconder-se neste mundo
da Universidade de Frankfurt am Main. vel em http://bit.ly/ihuon206.
(Nota da IHU On-Line) perigoso, onde encontrar os lugares

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EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 11


Violência e resistência da
Tema de Capa

força-tarefa nazista
O historiador Andrej Angrick propõe que, mesmo que poucos integrantes do
Einsatzgruppen tenham efetivamente se recusado a promover o genocídio,
o sadismo não imperava na tropa

Por Márcia Junges e Andriolli Costa / Tradução de Walter O. Schlupp

Q
uando pensamos nos horrores da Shoah, judeus no leste europeu passava pouco a pouco a
é comum remetermos aos campos de ser revisto - ainda que de forma insuficiente para
concentração ou de extermínio nazistas. interromper o genocídio.
No entanto, milhares de judeus foram massacra- “Não demorou muito e o tipo de vítima foi
dos ainda longe dos campos graças à violenta sendo rapidamente ampliado: além de homens
ação dos Einsatzgruppen, as unidades móveis de em idade de serviço militar, incluíam-se ve-
extermínio do III Reich. Estas milícias paramilita- lhos, mulheres e finalmente crianças”, resgata
res tinham como tarefa assassinar pessoas sus- Angrick. “Os atiradores começaram a se dar conta
peitas de serem inimigas do regime e tinham to- de que estavam sendo usados para um genocídio,
tal liberdade para agir violentamente. de modo que muitos das subunidades dos Einsat-
Segundo o historiador alemão Andrej Angrick, zgruppen insistiram em ser substituídos por cau-
quando a polícia ou integrante da SS assassinava sa da carga psicológica que não mais conseguiam
ou torturava judeus por conta própria, a orienta- suportar.”
ção era processar e condenar o sádico. No entan- Andrej Angrick estudou História, Língua Ger-
to, caso fosse um integrante dos Einsatzgruppen, mânica, Educação e Filosofia. A partir de 1997,
o ocorrido não era nem indiciado. “Nesse caso, trabalhou como assistente de pesquisa na Funda-
o respectivo [autor do ato] apenas recebia uma ção Hamburgo para a Promoção da Ciência e da
advertência ‘entre colegas’: atiradores que co- Cultura Jan Philipp Reemtsma. Concluiu seu dou-
metiam excessos eram coibidos ou impedidos de torado na Universidade Técnica de Berlim, com
acessar a vala [de vítimas]”. uma dissertação sobre os Einsatzgruppen. É au-
Com o final da II Guerra Mundial, os líderes tor, entre outros, de Besatzungspolitik und Mas-
do Einsatzgruppen foram processados em 1948 senmord. Die Einsatzgruppe D in der südlichen
por crimes contra a humanidade e de guerra. Sowjetunion 1941-1943 (Política de ocupação
Em entrevista concedida por e-mail à IHU e assassinatos em massa – Einsatzgruppe na
On-Line, no entanto, Angrick relata que, mesmo União Soviética 1941-1943, Hamburgo: Ham-
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violentos, os homens que participavam da milí- burger Edition, 2003) e Die “Endlösung” in Riga:
cia não eram sádicos, apenas acreditavam res- Ausbeutung und Vernichtung 1941-1944 (A “So-
ponder a operações militares. Acreditavam ainda lução Final”, em Riga. A exploração e destruição;
que protegiam o país contra os judeus donos do 1941-1944, Darmstadt: WBG, 2006).
capital, conceito que no contato com os guetos Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o documen- motivos que levaram os soldados dos Andrej Angrick – O filme é uma
tário Das radikal Böse (O Mal Radical, Einsatzgruppen a torturar prisioneiros? tentativa de usar documentos origi-
2013), de Stefan Ruzowitzky1, retrata os nais, citações próprias, autos judiciais,
de melhor filme estrangeiro com Os Fal- etc. para tentar entender a natureza
sários (2007). Produziu em 2013 o docu-
1 Stefan Ruzowitzky (1961): diretor e mentário O Mal Radical. (Nota da IHU daqueles homens que tiveram partici-
roteirista austríaco, vencedor do Oscar On-Line)

12 SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 | EDIÇÃO 438


pação essencial no genocídio no leste bre, dava o comando de fogo depois para integrantes dos Einsatzgruppen

Tema de Capa
europeu, geralmente soterrado pela de proferir as palavras: “Os senhores devem ter sido as vítimas do NKWD
notoriedade de Auschwitz. O filme serão executados por atentarem con- [Ministério do Interior soviético], en-
tenta esclarecer isso com base na má- tra o império alemão, por ordem do contradas nas prisões de Lemberg
xima de Kant (que, em minha opinião, Führer”. ou Riga, por exemplo. Elas confirma-
se baseia em Agostinho2), segundo a Para os atiradores simplórios vam a propaganda nazista de que
qual o mal é uma opção do indivíduo isto pode ter parecido duro, porém “o bolchevismo judeu”5 era bestial
dentro da sua noção de liberdade e do “necessário”, uma vez que toda essa e precisava ser extinto. Entretanto,
seu impulso para ela. Procura-se mos- encenação parecia, à primeira vista, com o avanço das tropas para o leste
trar o fato e o porquê desse mal poder estar sendo levada a cabo dentro dos europeu, [os integrantes dos Einsatz-
se concretizar nesses homens dos Ein- padrões militares. Não demorou mui- gruppen] entravam em contato com
satzgruppen. Os fatos são encenados to e o tipo de vítima foi sendo rapida- moradores do gueto, passavam a co-
no filme e comentados por especialis- mente ampliado: além de homens em nhecer judeus que demonstravam ter
tas de várias disciplinas. idade de serviço militar, incluíam-se cultura, ou eram “judias charmosas”.
velhos, mulheres e finalmente crian- Aí aquela impressão [criada naquelas
IHU On-Line – Membros do Ein- ças. Então os atiradores começaram prisões soviéticas supostamente “ju-
satzgruppen que se recusavam a par- a se dar conta de que estavam sendo daicas”] acabou sendo revogada; con-
ticipar de esquadrões da morte eram usados para um genocídio, de modo seguiram distinguir entre a impressão
transferidos para realizar outras ta- que muitos das subunidades dos Ein- negativa dada pelos judeus [integran-
refas. Contudo, o senhor afirma que satzgruppen (no caso, os policiais do tes do] NKWD [soviético] e o cotidiano
o soldado não precisava temer ser PRB 9 e integrantes da Waffen-SS3 e que estavam vivenciando. Só que isso
excluído nem punido. Desta forma, da [unidade especial] z.b.V. Dern) in- não bastava para coibir a dinâmica
como podemos entender o posicio- sistiram em ser substituídos por cau- dos assassinatos. O resultado foram
namento dos soldados em cometer sa da carga psicológica que não mais lucubrações insolúveis [na cabeça dos
crimes? conseguiam suportar. integrantes dos Einsatzgruppen]. So-
Andrej Angrick – Em primeiro mente em casos excepcionais alguém
lugar é preciso constatar que foi pe- IHU On-Line – Em que medida a se negou a participar, como Martin
queno o número dos que se negaram. doutrinação propagandística se mos- Mündschütz6 do Ek 12, que antes tam-
Será que isso significa que a maioria trou eficaz na consolidação das ações bém tinha participado das execuções,
dos que aceitaram realizaram o ato dos Einsatzgruppen? e alegou ter uma natureza sensível.
com convicção? Eu diria que não. Na Andrej Angrick – Isso está ligado
verdade, inicialmente as coisas eram ao que dissemos acima. Provavelmen- IHU On-Line – Os Einsatzgru-
conduzidas de uma forma habilidosa, te houve pouca doutrinação. Natu- ppen guardam alguma peculiaridade
no sentido de induzir os atiradores a ralmente houve eventos de instrução em relação a outros grupos que atua-
matar. Ou seja, adotava-se uma forma antissemita e, antes de uma execu- ram no regime nazista? Por quê?
de execução que na época era con- ção, para justificar o procedimento, Andrej Angrick – Talvez se possa
siderada aceitável em caso de guer- apresentava-se algum filme como Jud dizer que eles provinham de unida-
ra: mediante sentença oficial de um Süß4. Uma das motivações mais fortes des sociais menores. Por exemplo:
tribunal. Concretamente, as vítimas as unidades militares em nível de
– homens em idade própria para o 3 Waffen-SS: organização cuja fundação regimento ou companhia vinham de
é derivada da chamada Schutzstaffel
serviço militar – eram alinhadas em (SS). No ínicio do Partido Nazista serviam
uma mesma cidade. Ou seja: todos www.ihu.unisinos.br
frente aos atiradores. Para cada víti- como forma de proteção a Adolf Hitler. O eram de Berlim, ou de Regensburg,
ma havia dois atiradores, um mirando ditador exigia que sua tropa de elite fosse ou de Düsseldorf, etc. Já no caso dos
composta por cidadãos com comprovada
na cabeça, outro no coração. Um ofi- origem germânica, uma condição física e Einsatzgruppen, compunham-se de
cial, geralmente empunhando um sa- mental excepcional e que cumprissem as guardas [civis] de Berlim; pessoal
normas da ideologia nazista cegamente.
(Nota da IHU On-Line)
4 Jud Süß, Jus Süss ou O Judeu Süss:
2 Santo Agostinho [Aurélio Agostinho] livro escrito por Lion Feuchtwanger em On-Line)
(354-430): bispo, escritor, teólogo, filóso- 1925. É um romance histórico sobre a 5 Judaísmo-bolchevique: durante o re-
fo, foi uma das figuras mais importantes vida de Joseph Süss Oppenheimer, um gime nazista, os judeus apátridas eram
no desenvolvimento do cristianismo no conselheiro do Duque Karl Alexander de execrados pela direita como bolchevi-
Ocidente. Ele foi influenciado pelo neo- Württemberg. Süss ajuda a criar um esta- ques, e pela esquerda como representan-
platonismo de Plotino e criou o conceito do corrupto que o enche de riquezas, mas tes do Capital. (Nota da IHU On-Line)
de pecado original e guerra justa. Confira após a morte da filha busca a redenção 6 Martin Mündschütz: soldado austría-
a entrevista concedida por Luiz Astorga no fervor religioso. Em 1940, Goebbels co do Einsatzgruppen. Não conseguindo
à edição 421 da IHU On-Line, de 04-06- dirige a adaptação cinematográfica do mais tolerar o cotidiano terrível, sofre
2013, intitulada A disputatio de Santo filme omitindo a redenção final. Visto por um colapso nervoso. O fato leva seus su-
Tomás de Aquino: uma síntese dupla, dis- mais de 20 milhões de pessoas, o filme periores a afastá-lo das execuções para
ponível em http://bit.ly/ihuon421. (Nota torna-se uma das mais influentes obras cuidar dos rebanhos, o que levou à sua
da IHU On-Line) da propaganda antissemita. (Nota da IHU ridicularização. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 13


da Waffen-SS colocado em dispo- guerra não mais lhes acarretaria tan- em que o judiciário alemão obteve
Tema de Capa
nibilidade; pessoal convocado para to trauma psicológico. Ora, Himmler7 algum êxito. Só mais tarde a Repú-
serviços de emergência (motoristas, havia tido a fantasiosa ideia de que as blica Federal da Alemanha obteve a
padeiros convocados de qualquer vítimas apenas adormeceriam com o soberania judiciária, passando então
lugar como indivíduos para integrar gás, ou seja, não precisariam sofrer a investigar integrantes dos Einsatz-
os Einsatzgruppen); intérpretes pro- tanto, desnecessariamente. Himmler gruppen. Doravante era preciso pro-
venientes da região do Báltico, Cáu- não estaria querendo fazer os outros var a culpa do acusado como pessoa
caso ou Volínia-Podólia (os quais aca- sofrer, mas apenas fazer o “necessá- individual, e não como parte de um
baram sendo um elemento radical e rio”. Aliás, essa postura de Himmler coletivo ou coadjuvante no assassi-
radicalizante); e finalmente pessoal implicaria que ele não representaria o nato [Beihilfe zum Mord], o que não
do serviço secreto, como, por exem- tipo do [mal] radical de Kant. Ele não deixa de ser bastante difícil de pro-
plo, investigadores e funcionários da seria mau, mas um “punidor justo”. var. Outros crimes, como homicídio,
Gestapo, os quais foram convocados ou privação da liberdade com morte
para o front no leste por serem dis- IHU On-Line – Qual foi o papel por consequência (como no caso das
pensáveis em seu domicílio ou por da Justiça alemã durante o conflito deportações), já estavam prescritos,
causa das suas relações pessoais com e suas exceções e depois, quando ou seja, a pessoa não era inocente,
os chefes dos Einsatzgruppen. a Alemanha perdeu a guerra e teve mas também não mais podia ser
que se confrontar com esses atos? processada.
IHU On-Line – Em que medida Andrej Angrick – Durante a guer-
houve uma influência do contexto ra o judiciário não esteve envolvido IHU On-Line – Qual é o grau de
social nos fatos que se deram na Ale- [ativamente na perseguição a judeus responsabilidade histórica do Estado
manha da II Guerra Mundial? e outros] porque continuava em vi- e, em última instância, de cada um
Andrej Angrick – Considero bas- gor o parágrafo 211 do Código Penal dos soldados que cometeu tortura?
tante limitada essa influência. Por StGb, referente a assassinatos. Mes- Andrej Angrick – O Estado, isto é,
exemplo: antigos integrantes do par- mo assim o judiciário da SS e da po- os agentes principais, desenvolveram
tido Social Democrata da Alemanha, lícia intervinha quando o integrante o plano, criaram o ambiente, alicia-
na categoria de Mannschaftsdiens- da SS ou da polícia assassinava judeus vam com recompensas e puniam os
tgrad (soldados), também fizeram por conta própria, divertia-se com o que se negavam [a participar]. Mas
parte dos atiradores; em contra- sofrimento deles ou mesmo mostra- é responsável o indivíduo que tenha
ponto, hesitaram integrantes dos va fotos sensacionalistas do ato entre participado dos crimes intencional-
Völkische [DVFP, partido direitista, seus conhecidos. Nesse caso se acre- mente e com “prazer”. Mas o que
antissemita], principalmente quando ditava ter de processar e condenar o é mais grave (deixo agora de lado a
a pressão do grupo era grande (ele- sádico. Entretanto, quando esse tipo questão da culpa) é o fracasso huma-
mento esse muito mais importante), de pessoa aparecia como integrante no da grande maioria dos integrantes
porque nessa situação seguiam as de Einsatzgruppen, deixava-se de in- dos Einsatzgruppen. Se essas pessoas
orientações de outros, embora resis- diciar o fato. Nesse caso, o respectivo tivessem se negado, o projeto “so-
tindo interiormente, agindo não por [autor do ato] apenas recebia uma lução final” no leste da Europa não
convicção própria. advertência “entre colegas”: atirado- teria sido viável na forma como foi
Mesmo para a liderança da SS o res que cometiam excessos eram coi- encaminhado. Num sistema [político]
genocídio total estava sendo um ex- bidos ou impedidos de acessar a vala diferente [p. ex., em uma democra-
perimento social. Tinham plena cons- [de vítimas]. cia], elas dificilmente teriam deixado
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ciência de que estariam sendo exe- Para o pós-guerra na Alemanha se envolver no crime; eram cidadãos
cutados homens em idade de serviço é preciso constatar que inicialmen- normais, geralmente de boa fama na
militar, conforme dito acima. Mas será te o judiciário nem tinha direito de sociedade. Considerando as consequ-
que os assassinos também funciona- processar crimes dos Einsatzgru- ências assassinas, seu envolvimento é
riam quando se tratasse de executar ppen, uma vez que sua competência muito grave, mesmo que pessoalmen-
criancinhas? É só por aí que se pode abrangia [apenas] crimes cometidos te tivessem pouca ou nenhuma identi-
explicar a utilização de vagões de gás por alemães, contra alemães, em ter- ficação com o agente criminoso.
e (depois) a introdução de campos de ritório alemão. Concretamente isso
extermínio. Estes eram preferidos não valeu para assassinatos de eutanásia, IHU On-Line – Sob que aspectos
tanto por causa da sua suposta eficiên- no Estado nazista a utopia germânica
7 Heinrich Luitpold Himmler (1900-1945):
cia, mas porque o assassinato precisa- comandante da Schutzstaffel (SA) e da era uma promessa de felicidade, de
va de menos executantes, não seriam Gestapo alemã e um dos mais poderosos uma sociedade perfeita?
homens da Alemanha nazista. Foi uma
tantas as pessoas cujas consciências figura chave na organização do Holocaus-
Andrej Angrick – Para muitos
acabariam oneradas; seu empenho na to. (Nota da IHU On-Line) integrantes dos Einsatzgruppen esta-

14 SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 | EDIÇÃO 438


va claro que a guerra contra a União Brückner10 e Leni Riefenstahl11. E o sentido de Kant, relativo ao indivíduo,

Tema de Capa
Soviética também representava uma cidadão comum naturalmente pen- mas de feições escatológicas, numa
promessa de felicidade [Heil]. Quanto sava que em termos econômicos ele cosmovisão teológica.
mais cultos eram, mais acreditavam também levaria uma vida melhor, que
nisso. [Para eles] Essa guerra acaba- depois da “vitória final” cada alemão IHU On-Line – Gostaria de
ria eliminando o inimigo de morte, acabaria virando prefeito numa socie- acrescentar algum aspecto não
o adversário ideológico. Mas a ques- dade de helotes [isto é, escravos]. questionado?
tão não era somente proteger-se de Andrej Angrick – Ao fim e ao
Stálin. Se analisarmos os registros de IHU On-Line – Se por um lado cabo permanece válida a constatação
Himmler nos anos 1940/42, observa- Kant menciona o “mal radical”, Han- de Primo Levi12: “Aconteceu e pode
mos que, além dos eventos da guerra, nah Arendt formula o conceito de acontecer de novo.” Portanto impor-
o que mais o ocupava eram os próxi- “banalidade do mal” ao se referir a
ta ficar alerta ao conversarmos com
mos assentamentos no leste europeu. Adolf Eichmann. Sob uma perspec-
conhecidos, com a família e com os
Ele e Hitler queriam realizar uma uto- tiva histórica, como esses posiciona-
amigos, na discussão sobre soluções
pia germânica no leste europeu: novas mentos refletem o mal que nunca
políticas e sobre casos isolados. Pois é
cidades e vilas refletiriam a estética cessou de existir em cada um de nós?
aí que começa. Quem leva ao ato é a
[com que pessoalmente se identifica- Andrej Angrick – Na minha opi-
ideia. Importante é ficar atento com o
vam]: Arno Breker8 e Richard Wagner9, nião, essa discussão gira em torno
das diferentes interpretações do que que se passa dentro de nós mesmos,
se entende por “banal”. Eichmann, não deixar a própria consciência ser
8 Arno Breker (1900-1991): arquiteto e
artista plástico alemão, conhecido pelos com seu jeito de falar, de pequeno- corrompida, independentemente de
trabalhos artísticos para o III Reich. (Nota quem esteja fazendo pressão, ou de
do IHU On-Line) -burguês, parece banal, o que mostra
9 Richard Wagner (1813-1883): compo- que não é preciso ser um Mefistófe- qual promessa estejamos recebendo.
sitor alemão, considerado amplamente Fácil de dizer, difícil de fazer.
como um dos expoentes do romantismo les para planejar e executar um crime
na música. Como compositor de óperas, dessas dimensões. Entretanto, o cri-
criou um novo estilo, grandioso, cuja in- 12 Primo Levi (1919-1987): judeu
fluência sobre a música foi forte a ponto me em si, que foi o genocídio contra italiano, um dos poucos sobreviventes
de os músicos de seu tempo e posteriores judeus, nada tem de banal. Sua abran- de Auschwitz, o campo de concentração
serem classificados como wagnerianos onde milhões de prisioneiros, judeus
ou não wagnerianos. Escreveu o libreto
gência e radicalidade são de uma di- como ele, foram assassinados pelos
de todas as suas óperas, inclusive o ciclo mensão inconcebível. Aí, sim, é que se nazistas. Sobreviveu para regressar a
do Anel dos Nibelungos, onde reconstrói apresenta o mal radical, só que não no Turim, sua cidadenatal, e escrever um
partes da antiga mitologia germânica. dos mais extraordinários e comoventes
Para a encenação deste e doutros es- testemunhos dos campos de extermínio
petáculos grandiosos que concebeu, foi On-Line) nazista. Em seu primeiro e mais
construído o teatro de ópera de Bayreu- 10 Wilhelm Brückner (1884–1954): chefe impressionante livro, Se questo è un
th. É interessante notar que D. Pedro II, auxiliar de Hitler até 1940. Era um de uomo (Se isto é um homem), escrito em
impressionado com a obra de Wagner, seus conselheiros mais próximos junto a 1947, Levi relata o ano que passou em
cogitou construir no Brasil este teatro. Joseph Goebbels e Sepp Dietrich. (Nota Auschwitz. Em 1963, Primo Levi publica
Sua vida pessoal teve também aspectos da IHU On-Line) seu segundo livro A Trégua, em que narra
espetaculares, como terminar o primei- 11 Leni Riefenstahl [Helene Bertha os últimos dias em Auschwitz, após os
ro casamento e ter que mudar de país Amalie Riefenstahl] (1902-2003): nazistas terem abandonado o campo,
por seu relacionamento com a esposa de cineasta alemã que dirigiu diversos filmes e sua viagem de volta para casa, na
von Büllow (Cosima, filha de Liszt), que de propaganda para o Partido Nazista. Itália. Seu último livro, Os afogados e os
se tornaria sua segunda esposa. Vem daí Após a Guerra, tornou-se fotógrafa e sobreviventes, foi publicado em 1986.
seu parentesco com Liszt. (Nota da IHU mergulhadora. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

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EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 15


Totalitarismo – O filho bastardo
Tema de Capa

da modernidade
O filósofo Adriano Correia Silva chama atenção para a barbárie instituída e
a banalidade do mal como o desafio que os tempos sombrios apresentam à
compreensão

Por Márcia Junges e Andriolli Costa

A
o debruçar-se sobre a banalidade do tarismo é filho da modernidade política e não
mal, Hannah Arendt reforça que o ter- pode ser assimilado sem mais à pura barbá-
mo não se refere a uma doutrina ou rie”, conclui.
teoria, mas a características bastante factu- Adriano Correia Silva possui graduação
ais, cujo único traço distintivo seria uma ex- em Filosofia (bacharelado e licenciatura)
traordinária superficialidade. “A banalidade pela PUC de Campinas e mestrado em Filo-
do mal tem a ver, antes de tudo, com a con- sofia pela mesma universidade. É também
cepção de um mal no qual frequentemente mestre em Educação e doutor em Filosofia
não há conexão entre motivos e feitos e no pela Unicamp. Leciona desde 2006 na Uni-
qual a magnitude da maldade do agente e versidade Federal de Goiás – UFG, onde atua
de seus interesses egoístas é flagrantemen- como diretor da Faculdade de Filosofia. Silva
te desproporcional com relação à magnitude foi organizador dos livros Transpondo o abis-
de seus feitos”, esclarece o filósofo Adriano mo: Hannah Arendt entre a filosofia e a po-
Correia Silva. lítica (Rio de Janeiro: Forense Universitária,
“Penso que o central na interpretação 2002) e Hannah Arendt e a condição humana
arendtiana é o estabelecimento de vínculos (Salvador: Quarteto, 2006). Publicou ainda o
entre a ascensão do totalitarismo e elemen- livro Hannah Arendt (Rio de Janeiro: Jorge
tos centrais à modernidade política europeia, Zahar, 2007) e assina a apresentação da edi-
como o antissemitismo, o imperialismo e a ção brasileira do livro A Condição Humana
sociedade de massas”, defende ele, em en- (São Paulo: Forense Universitária, 2003), da
trevista concedida por e-mail à IHU On-Line. própria Arendt.
“Ainda que bastardo, por assim dizer, o totali- Confira a entrevista.
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IHU On-Line – O que é o mal ra- busca por identificar o fundamento há no homem uma propensão para o
dical? Qual é a concepção de Kant so- da propensão para o mal no homem, mal, mas antes como uma tendência
bre esse conceito? Kant se vê diante da dificuldade de deliberativa, por assim dizer, e não
Adriano Correia Silva – Arendt ter de conciliar natureza e liberdade. como algum impulso natural. Essa
emprega o conceito de “mal radical” Com efeito, se compreendemos o mal tendência deliberativa equivale a uma
no finalzinho de As origens do totali- como decorrente de algum condicio- propensão a permitir que conside-
tarismo (São Paulo: Companhia das namento natural, ainda que seja uma rações não morais provenientes das
Letras, 1997), para se referir ao mal fraqueza, necessariamente o homem inclinações ou apetições venham a
que teria se traduzido na tentativa de seria inimputável, pois não poderia pesar mais que as considerações mo-
erradicação da pluralidade humana ser considerado efetivamente res- rais consoantes ao imperativo cate-
nos campos de extermínio. Ainda que ponsável (na medida em que não é górico e sua demanda de que nossas
faça referência a Kant, Arendt associa livre) pelas ações que desencadeasse. máximas ou regras de ação possam
o termo radical a extremo ou abso- Kant, por razões óbvias, busca evitar ser universalizadas para todo agente
luto, o que não é o caso em Kant. Na tal compreensão, sustentando que racional. Assim, o mal radical em Kant

16 SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 | EDIÇÃO 438


não se refere a alguma forma particu- Adriano Correia Silva – Penso Adriano Correia Silva – Em

Tema de Capa
lar de mal ou a alguma de suas mani- que a diferença fundamental concer- meados do século passado, Arendt
festações nas ações dos homens, mas ne à lógica ou à dinâmica da tentação. chegou a afirmar que o problema
mais propriamente ao fundamento da O fundamental no uso feito por Han- do mal poderia vir a ser a questão
possibilidade de todo mal moral. nah Arendt do conceito de mal radi- fundamental da reflexão filosófica
cal em As origens do totalitarismo é a do pós-guerra. Não esteve de todo
IHU On-Line – E como podemos identificação entre mal radical e mal certa nem de todo errada. Muitos
compreender adequadamente a absoluto ou extremo, como mencio- refletiram sobre o problema do mal,
ideia de banalidade do mal de Han- nei acima. De outro lado, o essencial notadamente em decorrência da per-
nah Arendt? na sua preterição do conceito de mal plexidade ante os eventos da última
Adriano Correia Silva – No en- radical em Eichmann em Jerusalém grande guerra mundial, principal-
saio Pensamento e considerações mo- (São Paulo: Companhia das Letras, mente os campos de concentração
rais1, de 1971, Arendt sustenta que 1999) em nome do conceito de bana- e extermínio, mas a questão do mal
com a expressão banalidade do mal lidade do mal se deve basicamente à não se tornou a preocupação central
“não se referia a teoria ou doutrina atenção dispensada por ela às origens da filosofia no pós-guerra – se é que
alguma, mas a algo bastante factual, etimológicas da palavra radical (de se pode dizer que houve alguma. A
o fenômeno dos feitos maus, come- raiz, não mais de extremo), e ausência própria Arendt detém-se sobre o
tidos em escala gigantesca e que não de raízes daquela forma de manifes- tema apenas rapidamente em As ori-
poderiam ser reportados a qualquer tação de mal tipificada na conduta de gens do totalitarismo, ainda que em
tipo particular de fraqueza, patologia Eichmann. Com efeito, isto é que teria um movimento nodal de sua análise,
ou convicção ideológica no agente, feito com que ela deixasse de usar o na conclusão. O ponto de inflexão de
cujo único traço pessoal distintivo era conceito, justamente porque julgava seu interesse foi justamente o Caso
talvez uma extraordinária superficia- ser característica fundamental do fe- Eichmann e as implicações de sua
lidade”. É claro que não se trata de nômeno do mal com o qual estava li- tipificação do personagem históri-
uma doutrina, mas talvez não seja o dando a ausência de qualquer profun- co. A partir de Eichmann em Jerusa-
caso de assumir sua perspectiva sim- didade. Quando responde às críticas lém parte significativa da produção
plesmente como a descrição de um de Gershom Scholem2 a seu livro so- arendtiana até A vida do espírito foi
“fato”. Em todo caso, a banalidade bre o julgamento de Eichmann, Han- orientada pela pergunta sobre se o
do mal tem a ver antes de tudo com nah Arendt afirma que teria, de fato, pensamento pode em alguma medi-
a concepção de um mal no qual fre- como ele indica, mudado de opinião da operar como um obstáculo para a
quentemente não há conexão entre e passado a utilizar o termo banali- perpetração deliberada do mal.
motivos e feitos e no qual a magnitu- dade do mal não por ter deixado de
de da maldade do agente e de seus sustentar que o mal perpetrado pelos IHU On-Line – Que relações
interesses egoístas é flagrantemente Arendt estabelece entre a questão da
nazistas era extremo, como já havia
desproporcional com relação à mag- política e do mal em nosso tempo?
ressaltado em As origens do totalita-
nitude de seus feitos. O fundamental Adriano Correia Silva – Ain-
rismo, mas por julgar que ao menos
no conceito de banalidade do mal, no da que a questão do mal tenha sido
o mal com o qual estava lidando não
que diz respeito aos efeitos, é a capa- abordada na história da filosofia em
possuía qualquer profundidade ou
cidade altamente devastadora da au- termos de teologia, teodiceia ou filo-
dimensão demoníaca. A banalidade
sência de profundidade dos agentes; sofia moral, não é possível compreen-
desse mal cristalizado na figura de Ei-
no que diz respeito à sua dinâmica, der a reflexão arendtiana sobre o mal
chmann se assentaria no fato de que
desafia a convicção generalizada de sem considerar que para ela a “bana-
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ele não possui raízes, motivos egoístas
que toda maldade resulta do ceder lidade do mal” configura-se sobrema-
e utilidade. Isso não quer dizer, é cla-
à tentação; e quanto ao caráter do neira como um mal ético/político. Se,
ro, que todo mal seja banal.
malfeitor, confronta a crença comum por um lado, a banalidade do mal diz
atinente à suposição de que todo ato respeito a uma sempre possível au-
IHU On-Line – Em que medida a
mal se encontra arraigado em alguma sência de reflexão, ao abandono do
temática do mal é um tema recorren-
perversão especial do agente, notada- indivíduo por si próprio em sua recusa
te ao longo dos escritos dessa pensa-
mente o egoísmo. a pensar, concerne ainda, por outro
dora alemã?
lado, ao desamparo das massas, con-
IHU On-Line – Quais são as dife- 2 Gershom Scholem (1897-1982): pes- cebidas tanto como resíduo da produ-
renças fundamentais entre ambos os quisador da mística judaica, se estabele- ção capitalista quanto como produto
conceitos? ceu no estudo da Cabala em Jerusalém.
É autor de Die jüdische Mystik in ihren da dominação totalitária. Importante
Hauptströmungen (Frankfurt am Main: para Arendt é indicar que o caráter
1 Responsabilidade e Julgamento (São Suhrkamp, 2000) e Zur Kabbala und ihrer
Paulo: Companhia das Letras, 2004). Symbolik (Frankfurt am Main: Suhrkamp frequentemente inócuo em política
(Nota da IHU On-Line) 1998). (Nota da IHU On-Line) da ausência de pensamento torna-se

EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 17


devastador nas condições das so- homem e natureza. Das atividades hu- de concentração como espaço próprio
Tema de Capa
ciedades de massas, nas quais tal ir- manas fundamentais – dentre as quais da exceção, no qual o limiar em que
reflexão é fomentada e o adesismo ela menciona ainda a fabricação, que se tocam norma e exceção se espraia
dos que meramente se deixam levar corresponde à condição humana da e os torna indistintos. Penso que tan-
é zelosamente canalizado como força mundanidade, e a ação, que corres- to as análises sobre o racismo feitas
motriz da estruturação burocrática do ponde à condição humana da plurali- por Foucault na última aula do curso
Estado moderno. Ainda que o cuidado dade -, o trabalho é a única que não Em defesa da sociedade (São Paulo:
de si não redunde em cuidado com o opera como diferença específica entre Martins Fontes, 2005), por exemplo,
mundo, nas condições das sociedades os homens e os outros viventes. Stricto quanto o exame dos vínculos entre As
modernas de massas o descuido de si sensu, o limite entre humanidade e origens do totalitarismo e A condição
é sempre potencialmente devastador animalidade é definido na nossa ca- humana, de Arendt – como examinei
para o mundo. pacidade de edificação de mundo, na apresentação da tradução brasilei-
de reificação. Não é outra a razão de ra dessa última obra – põem em ques-
IHU On-Line – Quais são as li- a vitória do trabalhador-consumidor, tão a interpretação agambeniana, que
nhas mestras de Origens do totalita- convertido em modo de vida, ser tão é muito inspiradora, em todo caso.
rismo na interpretação da moderni- decisiva para pensar a modernidade
dade política? política, pois é o próprio mundo que é IHU On-Line – Em que sentido a
Adriano Correia Silva – No pre- posto em questão. Ela conclui A condi- política ocidental é originariamente
fácio de As origens do totalitarismo, ção humana (Rio de Janeiro: Forense biopolítica?
Arendt indica que é tarefa do livro Universitária, 2000) sustentando que Adriano Correia Silva – Sete anos
enfrentar com coragem – isto é, sem há vários indícios “do perigo de que após a publicação de Homo sacer I: o
ceder a generalizações mecanicistas o homem possa estar disposto e real- poder soberano e a vida nua, Giorgio
ou articulações teóricas dogmáticas – mente esteja a ponto de converter-se Agamben publicou a obra O aberto
o fardo de nosso tempo, notadamen- naquela espécie animal da qual, des- (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
te o desafio que os tempos sombrios de Darwin, ele imagina descender”. 2013), cujo sugestivo subtítulo é: o ho-
apresentam à compreensão. Penso mem e o animal. Em um trecho dessa
que o central na interpretação aren- IHU On-Line – A partir da obra obra aparece a seguinte afirmação: “o
dtiana é o estabelecimento de víncu- de Agamben, quais são as aproxima- conflito político decisivo que governa
los entre a ascensão do totalitarismo ções entre os diagnósticos de Aren- todo outro conflito é, em nossa cul-
e elementos centrais à modernidade dt e Foucault sobre a modernidade tura, o conflito entre a animalidade e
política europeia, como o antissemi- política? a humanidade do homem. A política
tismo, o imperialismo e a sociedade Adriano Correia Silva – No pre- ocidental é, pois, co-originariamente
de massas. Ainda que bastardo, por fácio de sua obra Homo sacer: o po- biopolítica”. A implicação fundamen-
assim dizer, o totalitarismo é filho da der soberano e a vida nua (Belo Ho- tal dessa afirmação, em Agamben,
modernidade política e não pode ser rizonte: Editora UFMG, 2002), Giorgio é a conclusão de que desde a polis
assimilado sem mais à pura barbárie. Agamben evoca a companhia de dois grega há uma imbricação entre vida
vigorosos intérpretes dos tempos mo- biológica e política e, em vista disso,
IHU On-Line – Qual é a contribui- dernos: Michel Foucault e Hannah não podemos conceber uma réplica
ção de Arendt para se pensar o limite Arendt. Em Michel Foucault ele julga política à modernidade biopolítica
entre humanidade e animalidade na encontrar a clara definição de uma na história política ocidental. Segura-
política dos últimos séculos? biopolítica que inclui a vida biológica mente, Arendt e Foucault, a despei-
Adriano Correia Silva – A defi- nos mecanismos e cálculos do poder to das inúmeras diferenças entre as
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nição da fronteira entre humanidade estatal; em Arendt, na descrição, em obras de ambos, silenciadas aqui, ja-
e animalidade não ocupa o primeiro A condição humana, da vitória do tipo mais identificariam na política ociden-
plano de preocupações de Arendt. ou mentalidade que nomeia animal tal, desde seus primórdios, a lógica da
Não obstante, tal questão subjaz a laborans, ele pôde identificar a asso- soberania, nem remeteriam a gênese
suas reflexões sobre a política mo- ciação entre primado da vida natural da soberania para aquém da moderni-
derna, notadamente quando reflete e decadência do espaço público na dade: a soberania, para ambos, é gê-
sobre a vitória do animal laborans, do era moderna. Ainda em Arendt, ele mea da modernidade. Com relação à
trabalhador-consumidor. Para Aren- encontra a inédita posição dos cam- biopolítica, Foucault sustenta que ela
dt o trabalho é uma das atividades pos de concentração como institui- é coetânea da modernidade política,
humanas básicas, na medida em que ção central da dominação totalitária. quando o biológico passou a se refle-
responde a uma das condições fun- Não obstante, julga não encontrar tir no político, e as questões relativas
damentais da existência – a vida. Ela em ambos os pensadores elementos à gestão da vida individual e coletiva
sempre repetia a definição marxiana suficientes para caracterizar o para- passaram a ser o alvo privilegiado do
do trabalho como metabolismo entre digma biopolítico moderno, o campo poder político.

18 SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 | EDIÇÃO 438


A banalidade das engrenagens

Tema de Capa
da máquina nazista
Saul Kirschbaum, pesquisador da cultura hebraica, ressalta que para a irrupção de
barbáries como o holocausto não é preciso agentes demoníacos, apenas simples
funcionários de carreira

Por Márcia Junges e Andriolli Costa

A
Maldade foi um dos grandes temas do pensamento de Hannah Arendt que per-
sobre os quais a filósofa Hannah Aren- passa todas as suas obras. Chama atenção
dt se debruçou. Se anteriormente o também para o fato de que, mesmo hoje,
Mal era encarado, do ponto de vista religioso, 50 anos depois, a filósofa ainda não foi to-
como algo demoníaco, capaz de corromper os talmente compreendida. E destaca: “Não é
homens e explorar suas fraquezas morais, a dizer, claro, que não houvesse, entre os na-
partir do julgamento de Adolf Eichmann, no zistas, o mal demoníaco, monstruoso; mas o
entanto, a pensadora passa a refletir sobre o que preocupa é que, para o funcionamento
tipo de maldade que se estabeleceu durante da máquina nazista, para a irrupção da bar-
o regime nazista. Os atos eram monstruosos, bárie, bastam agentes comuns, simples fun-
mas para Arendt, aquele agente pequeno, cionários de carreira”.
adoentado e, acima de tudo, superficial não Saul Kirschbaum possui graduação em En-
transparecia o mal diabólico tão alardeado. genharia Elétrica pela Universidade Federal do
“Se é assim, a barbárie não é um atributo Rio Grande do Sul - UFRGS, mestrado e douto-
exclusivo de ‘bárbaros’. Pode perfeitamen- rado em Língua Hebraica, Literatura e Cultura
te irromper entre povos muito civilizados”, Judaica pela Universidade de São Paulo – USP
esclarece Saul Kirschbaum, pesquisador da e pós-doutorado pela Unicamp. É autor de
cultura hebraica. “Basta que ‘a raça eleita’ Viagens de um caminhante solitário: Ética e
ou ‘a religião verdadeira’, ou qualquer outra estética na obra de Samuel Rawet (São Paulo:
construção fundamentalista se sinta ameaça- Humanitas, 2011), Transliteração do Hebrai-
da”. É o que ocorreu com o desmoronamento co para Leitores Brasileiros (São Paulo: Ateliê
da Iugoslávia e, segundo Kirschbaum, o que Editorial, 2009) e A presença judaica na Idade
parece estar acontecendo na esteira da Pri- Média Ibérica: a poesia laica e o idioma he-
mavera Árabe, “com as tentativas de grupos braico (São Paulo: Edições Targumim, 2008).
fundamentalistas de obter o poder no Egito Foi também organizador de Dez Ensaios para
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e na Síria, para instalar estados de estrita e Samuel Rawet (Brasília: LGE Editora, 2007) e
excludente observância religiosa”. de Ensaios sobre literatura israelense contem-
Em entrevista concedida por e-mail à IHU porânea (São Paulo: Humanitas, 2011).
On-Line, o pesquisador destaca a evolução Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que a obra principais pontos que causaram essa dela vindo a participar “gente que
Eichmann em Jerusalém. Um relato repercussão negativa? se gabava de não ter lido o livro e
sobre a banalidade do mal (São Pau- Saul Kirschbaum – Como a au- prometia não o ler nunca”. Foram
lo: Companhia das Letras, 1999), de tora explicou no “Pós-escrito”, o li- levantadas questões que, segundo
Hannah Arendt, foi tão criticada pela vro se tornou foco de controvérsia Arendt, nada tinham a ver com o
comunidade judaica? Quais foram os antes mesmo de sua publicação, livro, ou que distorciam seriamente

EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 19


seu pensamento. Foram-lhe impu- mentalidade de um criminoso, nunca IHU On-Line – Em que medi-
Tema de Capa
tadas opiniões que nunca expressa- teve a intenção de fazer o mal. Seu da o conceito de banalidade do mal
ra. Martin Buber1, por exemplo, até esforço para obter progressos pesso- arendtiano ajuda na reflexão sobre
então muito seu amigo, a acusou ais, típico de funcionários de carreira, a relação entre os totalitarismos, a
de não ter ahavat Israel, amor pelo “não era de forma alguma criminoso; burocracia e a impessoalidade num
povo de Israel. ele certamente nunca teria matado mundo marcado pela técnica?
A primeira delas dizia respeito seu superior para ficar com seu pos- Saul Kirschbaum – A meu ver,
à conduta do povo judeu durante os to”. Ela atribuiu a predisposição de Ei- esta é a grande contribuição de Han-
anos da Solução Final, ou seja, se os chmann “a se tornar um dos grandes nah Arendt. Segundo ela, os totalita-
judeus podiam ou deviam ter se de- criminosos desta época” a “pura irre- rismos implementam “o governo de
fendido, e envolvia conceitos como flexão”, não a “qualquer profundidade Ninguém”. Em suas palavras, “a es-
“mentalidade de gueto” e um “dese- diabólica ou demoníaca”. sência do governo totalitário, e talvez
jo de morte”, inconsciente, de todo Por fim, acho que importa pôr a natureza de toda burocracia, seja
o povo judeu. A autora lembra que em evidência a crítica ao interesse da transformar homens em funcionários
tinha “descartado essa questão como autora em investigar o tipo de pes- e meras engrenagens, assim os desu-
tola e cruel, porque atestava uma fatal soa que era Eichmann, que envolve manizando”. Então, qualquer forma
ignorância das condições da época”. a questão, ainda atual, de se “alguém de totalitarismo, seja qual for a ideo-
Na verdade, ela se limitara a discutir o que não estava presente tem o direito logia que o alimenta, qualquer forma
papel da liderança judaica, dos Conse- de ‘julgar’ o passado”. Ou seja, que fa- de fundamentalismo, de “posse da
lhos Judaicos, insistindo na “diferença lar sobre o Holocausto seria privilégio verdade”, deve ser vista como poten-
entre ajudar judeus a emigrar e ajudar dos sobreviventes. Para alguns desses cialmente desumanizadora, tendente
os nazistas a deportá-los”. Em 1972, críticos, “não deviam ter deixado que a transformar homens em funcioná-
Isaiah Trunk2 publicou Judenrat3 – The ele [Eichmann] falasse nada – ou seja, rios, meras engrenagens. Estas seriam
Jewish Councils in Eastern Europe un- que o julgamento fosse conduzido as condições necessárias e suficientes
der Nazi Occupation (Lincoln: Univer- sem defesa”. para a autoanulação do indivíduo e
sity of Nebraska Press, 1996), leitura para a irrupção do mal “banal”.
indispensável para quem quer enten- IHU On-Line – Qual foi o impac-
der melhor esse assunto. to da afirmação de Arendt de que Ei- IHU On-Line – Em que aspectos
Outra questão importante tinha chmann era um homem comum, um a obra dessa filósofa nos alerta para
a ver com o subtítulo do livro, o con- sujeito qualquer, um burocrata que a irrupção da barbárie, que pode
ceito novo de “banalidade do mal”. se autoproclamava cumpridor de or- acontecer em qualquer lugar e entre
Isto foi entendido pelos críticos como dens, e não um monstro, um psicopa- quaisquer povos?
uma tentativa de inocentar Eichmann, ta que se comprazia com sua tarefa Saul Kirschbaum – Em 1971, ao
ou substancialmente reduzir sua cul- de organizar a logística dos judeus escrever O pensar, primeira parte de
pabilidade. Tenho a impressão de que, para os campos de extermínio? A Vida do Espírito (Rio de Janeiro:
passadas cinco décadas, o que Arendt Saul Kirschbaum – Esta afirma- Civilização Brasileira, 2009), Hannah
quis expressar com “banalidade do ção, a meu ver, vai de encontro a uma Arendt lembrava que, assistindo ao
mal” ainda não foi plenamente enten- corrente de opinião amplamente di- julgamento de Eichmann, não tinha
dido. A seu ver, Eichmann não tinha a fundida, segundo a qual o nazismo confirmado “nossa tradição de pensa-
foi o resultado da tomada do poder mento – literário, teológico ou filosó-
1 Martin Buber (1878-1965): filósofo vie- na Alemanha por um bando de loucos fico – sobre o fenômeno do mal”. Ou
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nense de origem judaica, foi o primeiro


professor de uma cátedra de Judaísmo na assassinos, monstros psicopatas. Se o seja, que o mal “é algo demoníaco”,
Universidade de Frankfurt. Com a ascen- nazismo foi operado por homens co- que “os homens maus agem por inve-
são do nazismo, abandonou a cátedra e
mudou-se para Jerusalém, onde passou a muns, burocratas cumpridores de or- ja”, ou “por fraqueza”, ou “pelo ódio
lecionar como professor da Universidade dens, então pode se pensar que não poderoso que a maldade sente pela
Hebraica. A obra de Buber centra-se na
afirmação das relações interpessoais e se tratou de um evento singular, uma pura bondade”, ou “pela cobiça”. Ao
comunitárias da condição humana. (Nota interrupção anômala do fluxo histó- contrário, observou que a “superficia-
da IHU On-Line)
2 Isaiah Trunk (1905-1981): historia- rico – que no geral vai na direção do lidade do agente tornava impossível
dor polonês, reconhecido como um dos progresso -, mas de uma possibilida- retraçar o mal incontestável de seus
maiores pesquisadores do extermínio ju-
deu durante o regime nazista. Após fugir de inerente à civilização ocidental, ou atos, em suas raízes ou motivos, em
para a União Soviética, Israel e Canadá, talvez à própria espécie humana. A quaisquer níveis mais profundos. Os
estabeleceu-se nos Estados Unidos, onde
se tornou chefe arquivista do Institute for extensão dos crimes nazistas, então, atos eram monstruosos, mas o agen-
Jewish Research – YIVO, em Nova York. seria resultado da maior disponibili- te – ao menos aquele que estava
(Nota da IHU On-Line)
3 Judenrat ou Judenräte: Conselho Ju-
dade de meios técnicos de destruição agora em julgamento – era bastante
deu, em alemão. (Nota da IHU On-Line) em massa. comum, banal, e não demoníaco ou

20 SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 | EDIÇÃO 438


monstruoso”. Se é assim, a barbárie Améry5 em Além do crime e castigo – muito distante, os homens podem

Tema de Capa
não é um atributo exclusivo de “bár- tentativas de superação (Rio de Janei- tentar exterminar todos aqueles cujo
baros”. Pode perfeitamente irromper ro: Contraponto, 2013): “Nem o grito quociente de inteligência esteja abai-
entre povos muito civilizados, basta de ‘rebenta!’, nem as suspeitas que xo de determinado nível”.
que “a raça eleita” ou “a religião ver- se comentavam pela rua, ou seja, que Uma das características, portan-
dadeira”, ou qualquer outra constru- os judeus deviam ter cometido algo to, da política moderna é a perma-
ção fundamentalista se sinta amea- grave, pois em caso contrário não se- nente possibilidade de que um grupo,
çada. O esclarecimento, o progresso riam tratados tão severamente, eram motivado por alguma ideologia racial
da razão, não é suficiente para impe- alucinações histéricas. ‘Se estão sen- ou religiosa ou social, possa tomar
dir a irrupção do ódio interétnico ou do detidos é porque algo devem ter conta do aparelho do Estado e mobili-
interconfessional. tramado’, conjecturou em Viena uma zar a população para o imperativo de
Não é dizer, claro, que não hou- operária social-democrata.” promover a “limpeza” étnica ou reli-
vesse, entre os nazistas, o mal demo- giosa ou social.
níaco, monstruoso; mas o que pre- IHU On-Line – Em que sentido
ocupa é que, para o funcionamento a Shoá e a peculiaridade que o mal IHU On-Line – A partir dessa
da máquina nazista, para a irrupção assumiu nesse episódio são emble- constatação, em que aspectos o na-
da barbárie, bastam agentes comuns, máticas para compreendermos a po- zismo legitimou a irracionalidade e a
simples funcionários de carreira. lítica do nosso tempo? barbárie?
Saul Kirschbaum – Voltando ao Saul Kirschbaum – Para os nazis-
IHU On-Line – Que nexos podem julgamento de Eichmann, a autora tas, os judeus impediam a “legítima” e
ser estabelecidos entre a irrupção sugeriu que a peculiaridade do epi- necessária ascensão do povo alemão,
do mal na Shoá e a importância da sódio nazista não é o genocídio, “pela e por isso mereciam ser extermina-
categoria cristã da memória? Isto é, simples razão de que os massacres de dos. Eu não diria que “o nazismo legi-
da importância em se lembrar o que povos inteiros não são sem preceden- timou a irracionalidade e a barbárie”,
houve para que uma segunda injusti- tes”. O tipo de crime de que se trata- mas sim que mostrou que, nestas cir-
ça não seja imputada às vítimas? va poderia ser melhor descrito pela cunstâncias, os homens parecem pro-
Saul Kirschbaum – A importância expressão “massacre administrativo”, pensos a abrir mão de sua condição
dessa questão não passou desperce- que “tem a virtude de dissipar a su- de indivíduos, a afastar-se da realida-
bida para Hannah Arendt. No “pós- posição de que tais atos só podem ser de, a deixar de pensar. Há um líder, ou
escrito”, buscando analisar o sentido cometidos contra nações estrangeiras partido, ou centro religioso, que pen-
do julgamento de Eichmann, ela ma- ou de raça diferente”. Assim, “esse sa por eles. E assim nem percebem
nifesta sua opinião de que o julga- tipo de morte pode ser dirigido contra que estão participando ativamente na
mento devia acontecer no interesse qualquer grupo determinado, isto é, irrupção da irracionalidade e da bar-
da justiça e nada mais. E lembra que que o princípio de seleção é depen- bárie. É o que aconteceu no desmo-
ficou “contente ao ver que a senten- dente apenas de fatores circunstan- ronamento da Iugoslávia e o que pa-
ça citava Grotius4, que explica [...] que ciais”. E alerta para uma potenciali- rece estar acontecendo na esteira da
a punição é necessária ‘para defen- dade que já vem sendo explorada em “primavera árabe”, com as tentativas
der a honra ou a autoridade daquele obras de ficção científica: “na econo- de grupos fundamentalistas de obter
que foi afetado pelo crime, de forma mia automatizada de um futuro não o poder no Egito e na Síria, para ins-
a impedir que a falta de punição pos- talar estados de estrita e excludente
sa causar sua desonra’”. A indiferen- 5 Jean Améry (1912-1978): escritor e
observância religiosa. www.ihu.unisinos.br
ça, que acompanha a desumanização filósofo austríaco, pseudônimo de Hans
dos indivíduos, sua transformação em Mayer, trocado após o final da II Guerra IHU On-Line – Em outra entre-
Mundial. Recusou-se a escrever em ale-
funcionários, em meras engrenagens, mão por muitos anos. Mudou-se para a vista à IHU On-Line6, o senhor men-
conduz à impunidade dos agressores, Bélgica para fugir dos nazistas, e quando ciona que persiste na Europa o ódio
estes invadiram a cidade participou ati-
a qual imputa às vítimas uma segunda vamente da resistência. Foi capturado e ao Outro, ao Estrangeiro, àqueles
injustiça – a presunção de sua culpa- mantido prisioneiro nos campos de con- que tiram as vagas de trabalho dos
centração de Auschwitz, Buchenwald e
bilidade. Essa postura se manifesta Bergen-Belsen, e liberado em 1945. De
cidadãos “autênticos”. Qual é o limite
claramente no comentário de Jean suas obras, citamos Más allá de la culpa para que esse ódio se converta numa
y la expiación. Tentativas de superación expressão objetiva do mal?
de una víctima de la violencia (Valencia:
4 Hugo Grotius (1583-1645): jurista a Pre-Textos, 2004), At the Mind’s Limits: Saul Kirschbaum – A presença do
serviço da República dos Países Baixos. É Contemplations by a Survivor On Aus- estrangeiro, do imigrante – especial-
considerado o precursor, junto com Fran- chwitz and its Realities (Bloomington:
cisco de Vitória, do Direito internacional, Indiana University Press, 1998) e a em-
baseando-se no Direito natural. Foi tam- blemática On Suicide – A Discourse on 6 O nazismo como essência da pós-mo-
bém filósofo, dramaturgo, poeta e um Voluntary Death (Bloomington: Indiana dernidade. Entrevista com Saul Kirsch-
grande nome da apologética cristã. (Nota University Press, 1999). Améry cometeu baum na edição 265 da IHU On-Line, em
da IHU On-Line) suicídio em 1978. (Nota da IHU On-Line) http://bit.ly/ihuskirsch

EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 21


mente se for “ilegal” – sempre pode conhecidas, indicam que ambos terão nidade e Holocausto (Rio de Janeiro:
Tema de Capa
ser mobilizada, na forma de ódio ao de fazer concessões dolorosas para Zahar, 1998), escrito em 1989.
Outro, como fator de consolidação da que a paz possa ser construída, e eu “Não é o Holocausto que acha-
unidade da nação, ou como argumen- não me sinto capaz de oferecer qual- mos difícil de entender em toda
to para justificar dificuldades econô- quer sugestão de solução que já não a sua monstruosidade. É a nossa
micas. Isto aconteceu na Espanha do tenha sido exaustivamente conside- Civilização Ocidental que o Ho-
século XV e na Alemanha da primeira rada. Mas devemos ter presente que locausto tornou quase incom-
os fundamentalistas de parte a parte preensível [grifo no original] [...]
metade do século XX, para citar ape-
Se Hilberg8 tem razão ao afirmar
nas dois exemplos em que os judeus ocupam-se em dificultar ainda mais
que nossas instituições sociais
estiveram na posição de “outro”. Ma- esse difícil processo. Enquanto uns se
mais decisivas nos escapam ao
nifestações de xenofobia continuam a opõem à criação de um estado pales-
controle prático e ao alcance
ocorrer nos principais estados euro- tino por conta do “direito histórico dos
mental, então não são apenas
peus. Se as circunstâncias econômicas judeus a todo o território da Grande os acadêmicos profissionais que
forem favoráveis (ou seja, negativas), Israel”, e argumentos similares, outros devem se preocupar. Verdade, o
o ódio ao Outro pode converter-se em afirmam que a paz no Oriente Médio Holocausto aconteceu há qua-
expressão objetiva do mal, seja na for- só poderá ser construída com a extir- se meio século. Verdade, seus
ma de “massacres administrativos”, pação do Estado de Israel e a expulsão resultados imediatos estão fi-
seja na forma de rejeição de refugia- de todos os judeus. cando rapidamente para trás.
dos que tentam entrar ilegalmente no A geração que viveu essa expe-
país, o que frequentemente tem dado IHU On-Line – Gostaria de riência direta praticamente já
origem a desastres com imensas per- acrescentar algum aspecto não desapareceu. Mas – e este é um
questionado? terrível e sinistro “mas” – aque-
das de vidas.
Saul Kirschbaum – Sim, gostaria les aspectos de nossa civilização
de aproveitar a oportunidade para en- outrora familiares e que o Holo-
IHU On-Line – Nessa lógica,
cerrar esta entrevista com um comen- causto tornou de novo misterio-
como analisa a questão dos refugia-
tário de Zygmunt Bauman7 em Moder- sos ainda fazem bem parte de
dos e do conflito persistente entre nossa vida. Não foram elimina-
Israel e Palestina? dos. Também não o foi, portan-
7 Zygmunt Bauman (1925): sociólogo po-
Saul Kirschbaum – Aparente- lonês, professor emérito nas Universida- to, a possibilidade do Holocaus-
mente, o conflito persistente entre des de Varsóvia, na Polônia e de Leeds, to” (BAUMAN, 1989, p. 107).
na Inglaterra. Publicamos uma resenha
Israel e Palestina não pode ser resolvi- do seu livro Amor Líquido (São Paulo:
do, a curto prazo, de forma satisfató- Jorge Zahar Editores, 2004), na 113ª da IHU On-Line)
edição do IHU On-Line, de 30-08-2004, 8 Raul Hilberg (1926-2007): cientista
ria para os dois lados. Questões como disponível em http://bit.ly/ihuon113. político e historiador austríaco, é con-
o destino dos refugiados palestinos Publicamos uma entrevista exclusiva com siderado um dos maiores estudiosos do
Bauman na revista IHU On-Line edição Holocausto a partir de sua obra Magnum
e a sobrevivência de Israel como es- 181, de 22-05-2006, disponível para do- Opus – The Destruction of the European
tado seguro, dentro de fronteiras re- wnload em http://bit.ly/ihuon181. (Nota Jews. (Nota da IHU On-Line)

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22 SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 | EDIÇÃO 438
O mal como resultado do

Tema de Capa
processo civilizatório moderno
Para Oswaldo Giacoia Junior, a maldade que conhecemos é resultado de uma
dinâmica de interiorização e espiritualização da crueldade

Por Márcia Junges e Ricardo Machado

T
ransitando entre o pensamento de rano, que não é de um indivíduo, um grupo,
Nietzsche e Agamben, entre outros, um partido, mas própria do funcionamento
Oswaldo Giacoia Junior pensa a questão da máquina biopolítica, que leva a efeito a
do mal como um aspecto central da ética em produção de uma nova figura de sujeito assu-
nossos tempos, sobretudo no Ocidente. “A jeitado, uma peça da engrenagem dos dispo-
ética de nosso século se abre com a superação sitivos de biopoder”, sustenta Giacoia.
nietzschiana do ressentimento”, aponta Gia- Graduado em Direito pela Universidade
coia, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. de São Paulo – USP e em Filosofia pela Pon-
“O Mal não seria meramente a privação do tifícia Universidade Católica de São Paulo –
Bem, ou o agir que resulta de um movimento PUC-SP, Oswaldo Giacoia Junior é também
defectivo em relação ao ideal de perfeição e mestre e doutor em Filosofia por esta institui-
bondade, mas uma força positiva, que emana ção. É pós-doutor pela Universidade Livre de
das mesmas fontes de onde também proce- Berlim, Universidade de Viena e Universida-
dem as supremas criações humanas, tanto na de de Lecce, Itália, e livre docente pela Uni-
bondade quanto na beleza”, complementa. versidade Estadual de Campinas – Unicamp,
A genealogia do processo civilizatório, onde leciona no Departamento de Filosofia.
estabelecida por Nietzsche, indica que o re- Especialista em Nietzsche, sobretudo em seu
sultado da modernidade foi uma dinâmica de pensamento político, publicou, entre outros:
interiorização e espiritualização da crueldade. Nietzsche – para a Genealogia da Moral (São
Nesse sentido, Agamben aponta como para- Paulo: Editora Scipione, 2001), Nietzsche
doxo a lógica da “biopolítica” e do “biopo- como psicólogo (São Leopoldo: Unisinos,
der”, com a qual a soberania moderna define 2004), Sonhos e pesadelos da razão esclare-
o direito de fazer viver e deixar morrer. Em cida: Nietzsche e a modernidade (Passo Fun-
síntese, estamos sob a exposição constante do: Editora da Universidade de Passo Fundo,
da morte. “Existe algo de comum entre os 2005) e Nietzsche & para Além do Bem e Mal
campos de extermínio nazistas, a atual guerra (2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
global contra o terrorismo, o modo de funcio- 2005). Recentemente publicou Nietzsche ver-
namento dos campos de refugiados e a dizi- sus Kant: Um Debate a respeito de Liberdade,
mação étnica em diferentes localidades do Autonomia e Dever (Rio de Janeiro: Casa da
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planeta: trata-se da redução da vida política à Palavra, 2012) e Heidegger Urgente. Introdu-
condição de mera vida, de vida não digna de ção a um Novo Pensar (São Paulo: Três Estre-
ser vivida, de um excedente descartável, da las, 2013).
exclusão decidida a cada vez pelo poder sobe- Confira a entrevista.

IHU On-Line – A partir das filo- Ocidente. Penso que tanto Nietzsche de nosso século se abre com a supe-
sofias de Nietzsche e Agamben, que quanto Agamben, enquanto filóso- ração nietzschiana do ressentimento.
abordagens fundamentais surgem fos, situam-se no limiar de um novo Contra a impotência da vontade em
sobre a questão do mal? pensamento ético. De acordo com relação ao passado, contra o espírito
Oswaldo Giacoia Junior – A ques- a ponderação de Giorgio Agamben, de vingança em oposição àquilo que
tão do mal é, por certo, a questão cen- feita em O Que Resta de Auschwitz irrevogavelmente foi e não pode ser
tral da ética, tal como a conhecemos no (São Paulo: Boitempo, 2008), “a ética querido, Zaratustra ensina os homens

EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 23


a querer para trás, a desejar que tudo desconhecido não se deve unicamen- Oswaldo Giacoia Junior – A per-
Tema de Capa
se repita. Com Nietzsche, a crítica da te à desmesura e à atrocidade impli- gunta contempla um campo de inda-
moral, feita segundo uma perspectiva cadas nas experiências do ‘mal abso- gação que já havia sido explorado por
filosófica que procura colocar-se além luto’ – que tornaria desumano querer Adorno3 e Horkheimer4 em A Dialéti-
de bem e mal, culmina na capacidade a repetição de um passado atroz. O ca do Esclarecimento (Rio de Janeiro:
de assumir integralmente o passado, ensinamento do eterno retorno do Zahar, 1985), qual seja, a conversão
de libertar-se de uma vez por todas mesmo – que nos instiga, pelo amor do mito em esclarecimento e da racio-
da culpa e da má consciência”1. O Mal fati, a vencer a impotência da vonta- nalidade tecnocientífica em mitologia
não seria meramente a privação do de contra o passar do tempo, contra e dominação. Esse diagnóstico dos
Bem, ou o agir que resulta de um mo- a dimensão temporal do foi, acerca da pensadores da Escola de Frankfurt5
vimento defectivo em relação ao ideal qual a vontade não pode senão admi- já havia sido estabelecido por Nietzs-
de perfeição e bondade, mas uma for- tir sua impotência, já que não pode- che, como eles mesmos não deixam
ça positiva, que emana das mesmas mos mais mudar aquilo que foi – não de reconhecer, em sua genealogia do
fontes de onde também procedem as significa uma aceitação conformista processo civilizatório como resultado
supremas criações humanas, tanto na de tudo o que acontece, uma amarga
da interiorização e espiritualização da
bondade quanto na beleza. resignação diante de tudo o que foi
crueldade. Em Agamben, o paradoxo
Já para Agamben, o ‘mal absolu- e será, mas a afirmação radical dos
pode ser remetido à lógica da biopo-
to’, os regimes totalitários com suas processos subjetivos e singulares de
lítica e do biopoder, de acordo com
‘fábricas da morte’, são o ponto de responsabilização.
a qual a soberania moderna como
partida da ética de nossos tempos, Já em Agamben, depois de Aus-
chwitz, o problema ético mudou radi- poder de fazer viver e deixar morrer
que não podemos ignorar, muito me-
calmente: “não se trata mais de vencer funciona de acordo com uma lógica
nos denegar por meio de edulcora-
o espírito de vingança para assumir o de ‘abandono’, ou seja, sob a forma
ções consoladoras. Talvez possamos
passado, para querer que este retorne da constante exposição à morte. É a
dizer que, para o filósofo italiano, o
eternamente. Também não de man- exposição permanente à morte – essa
mal não é banal nem radical, mas se
ter firme, por meio do ressentimento, produção da vida nua como mera so-
inscreve entre as possiblidades mais
aquilo que não se pode humanamen- brevivência, a produção sistêmica da
assustadoras inscritas na lógica e na
dinâmica da política moderna. Re- te tolerar, até o ponto de exigir a sus-
pensão do tempo e do esquecimento, 3 Theodor Adorno [Theodor Wiesen-
lativamente a isso, a experiência de grund Adorno] (1903-1969): sociólogo,
Auschwitz2 representa um limiar ético que com ele advém, como medida filósofo, musicólogo e compositor, definiu
absolutamente inaudito; uma espécie moral para tornar indelével as mar- o perfil do pensamento alemão das últi-
cas do passado. Num tempo em que mas décadas. Adorno ficou conhecido no
de falência ou perempção da ética nas mundo intelectual, em todos os países,
sociedades ocidentais contemporâne- a exceção tornou-se a regra, talvez a em especial pelo seu clássico Dialética
as, que exige ser tomada em conside- refutação da ética nietzschiana situe- do Iluminismo, escrito junto com Max
Horkheimer, primeiro diretor do Institu-
ração, sob a tradicional perspectiva da -se no espaço aberto entre o amor to de Pesquisa Social, que deu origem
filosofia política, aquela do ideal de fati e a preservação do ressentimen- ao movimento de ideias em filosofia e
uma ‘vida boa’. to pela impossibilidade do perdão; sociologia que conhecemos hoje como
Escola de Frankfurt. Sobre Adorno, con-
no resto que permanece entre o não fira a entrevista concedida pelo filóso-
IHU On-Line – Em que aspectos assimilável, cuja repetição não pode fo Bruno Pucci à edição 386 da Revista
ambos os pensadores oferecem sub- ser querida, e o imperdoável, que não IHU On-Line, intitulada Ser autônomo
não é apenas saber dominar bem as tec-
sídios para uma reflexão sobre as raí- pode ser aceito nem esquecido, mas nologias, disponível para download em
zes do mal na humanidade? que, todavia, não deixa de se repe- http://bit.ly/ihuon386. A conversa foi
Oswaldo Giacoia Junior – Em tir. Doravante, estamos diante de um motivada pela palestra Theodor Adorno e
a frieza burguesa em tempos de tecnolo-
Nietzsche, a exigência de transição ser além da aceitação e da recusa, do gias digitais, proferida por Pucci dentro
eterno passado e do eterno presente
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para um território ético inteiramente da programação do Ciclo Filosofias da In-


– um evento que eternamente retor- tersubjetividade. (Nota da IHU On-Line)
4 Max Horkheimer (1895-1973): filósofo
1 Agamben, G. Quel che resta di Aus- na, mas que, justamente por isso, é e sociólogo alemão, conhecido especial-
chwitz (Homo Sacer III). Torino: Bollati absolutamente, eternamente inassu- mente como fundador e principal pen-
Boringhieri, 1998, p.92. (Nota do entre- mível. Além do bem e do mal não está sador da Escola de Frankfurt e da teoria
vistado) crítica. (Nota da IHU On-Line)
2 Auschwitz-Birkenau: nome de um a inocência do devir, mas uma vergo- 5 Escola de Frankfurt: escola de pensa-
grupo de campos de concentração loca- nha não somente sem culpa, mas, por mento formada por professores, em gran-
lizados no sul da Polônia, símbolos do assim dizer, sem tempo”. de parte sociólogos marxistas alemães.
Holocausto perpetrado pelo nazismo. A Abordou criticamente aspectos contem-
partir de 1940 o governo alemão coman- porâneos das formas de comunicação e
dado por Hitler construiu vários campos IHU On-Line – Em que sentido o cultura humanas. Deve-se à Escola de
de concentração e um campo de exter- mal que brotou no Holocausto pode Frankfurt a criação de conceitos como in-
mínio nesta área, então na Polônia ocu- dústria cultural e cultura de massa. Entre
pada. Houve três campos principais e 39 ser compreendido não como uma os principais professores e acadêmicos da
campos auxiliares. Como todos os outros expressão da barbárie ou da irra- Escola podemos destacar: Theodor Ador-
campos de concentração, os campos de cionalidade, mas, pelo contrário, da no (1903-1969), Max Horkheimer (1885-
Auschwitz eram dirigidos pela SS coman- 1973), Walter Benjamin, Herbert Marcuse
dada por Heinrich Himmler. (Nota da IHU hiper-racionalidade que caracteriza a (1917-1979), Franz Neumann, entre ou-
On-Line) modernidade e seu projeto político? tros. (Nota da IHU On-Line)

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exclusão – que define as formas atuais
“Existe algo de empírico, em sua potência de dicção,

Tema de Capa
de ocupação do espaço político. No na instância do discurso. O sujeito,
colapso dos estados-nação, a estru-
turação do campo político faz-se pela comum entre nesses termos, é a testemunha de
uma dessubjetivação; ele é o suporte
exceção, por uma lei que se aplica ao
suspender-se e, assim, faz do ‘aban- os campos de da condição de testis, supertes, autor,
daquele que vê, fala e age pelo outro,
donado’, do excluído, um homo sa- em nome do outro, que empresta seu
cer: alguém, como o refugiado, que é extermínio ser e seu agir à atuação e efetivação
capturado no vácuo da lei, na ‘forma’ de uma ausência – ele é, pois, o de-
vazia de uma lei vigente em sua sus- nazistas e a vir homem do inumano, essas figuras
pensão, uma vigência sem realização. que, como a testemunha e o muçul-
Temos, com isso, o isolamento de uma atual guerra mano, são divididos e inseparáveis;
forma de vida exposta à morte, um as- coextensivos e não coincidentes, ci-
sassinato inimputável juridicamente e global contra o são viva e indissolúvel. Juntos, eles
insacrificável, em termos rituais – ou formam uma dupla sobrevivência, da
seja, de perigo biológico ou político a terrorismo” qual uma é função da outra: o não ho-
ser eliminado. Essa ocupação tanato- mem é o que pode sobreviver ao ho-
lógica do espaço biopolítico, que inse- mem = o muçulmano é o homem que
re a gestão da vida natural nos cálcu- pode sobreviver ao homem, e que
los estratégicos da decisão soberana, rico específico de relações totalitárias fala pela testemunha, cujo dizer torna
fornece subsídios para uma compre- de poder biopolítico, como aquelas realidade aquilo que ele próprio nem
ensão particularmente rica das rela- que se operam nos campos de con- viveu, não foi, nem nunca poderá ser.
ções entre a democracia liberal e os centração. Mas sujeito também no Esse é o limiar de um novo ethos,
totalitarismos contemporâneos. sentido daquele elemento a partir do não dignidade humana, mas da vergo-
qual pode se criar e instituir uma nova nha, no sentido radical desse termo.
IHU On-Line – Qual é a relação forma da política. A vergonha é o véu que, como a folha
que pode ser estabelecida entre o da figueira, encobre a nossa pudenda
mal, a biopolítica e a máquina de ex- IHU On-Line – O que a irrupção identidade e nudez, que gostaríamos
termínio nazista e os demais totalita- do mal em episódios como o Holo- que permanecesse oculta para sem-
rismos do século XX? causto aponta sobre a natureza hu- pre. Vergonha é transitus, é antes de
Oswaldo Giacoia Junior – Trata- mana e o interesse em fazer sofrer? tudo um processo de subjetivação e
-se de uma pergunta muito difícil de Oswaldo Giacoia Junior – Creio dessubjetivação, pelo qual o sujeito
ser respondida, pois exigiria a realiza- que a melhor forma de considerar vem a si pela via da negatividade, por
ção prévia da tarefa de diferenciar, de essa pergunta seria dizer, com Agam- uma transcendência que o leva tanto
modo suficiente, as diferentes espé- ben, que Auschwitz constitui uma re- ao que o define quanto a uma alteri-
cies de totalitarismo no século XX. No alização concreta da condição inuma- dade que não tolera reconhecer como
entanto, existe algo de comum entre na. Levando ao extremo a lógica do constitutiva de si. Vergonha é o índice
os campos de extermínio nazistas, a paradoxo, pode-se afirmar que nela de um resto entre o eterno passado e
atual guerra global contra o terroris- o humano se demonstra como aquilo o eterno presente, um presente histó-
mo, o modo de funcionamento dos que resta de sua própria destruição rico formado por um evento do passa-
campos de refugiados e a dizimação sistemática. O humano é o resto sub- do que se obstina na repetição. Pode-
étnica em diferentes localidades do sistente entre o homem (testemunha, mos ver isso também sob outra ótica,
planeta: trata-se da redução da vida o sujeito que tem a linguagem, e, por voltada para nosso próprio presente,
política à condição de mera vida, de causa disso, pode assumir sua condi- pois hoje todos partilhamos a con-
vida não digna de ser vivida, de um ex- ção de sujeito falante) e o não homem dição mais íntima de ‘homini sacer’,
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cedente descartável, da exclusão deci- (o muçulmano, o morto-vivo, o míni- existimos como sobreviventes, como
dida a cada vez pelo poder soberano, mo denominador comum de funções mera vida instalada num espaço de
que não é de um indivíduo, um grupo, orgânicas, o homo sacer). exceção, permanentemente expostos
um partido, mas própria do funciona- O muçulmano, enquanto teste- à decisão soberana.
mento da máquina biopolítica, que munha integral, é também não ho-
leva a efeito a produção de uma nova mem e, portanto, é o que não pode IHU On-Line – Qual é a impor-
figura de sujeito assujeitado, uma testemunhar. O sujeito da enunciação, tância da categoria do ressentimento
peça da engrenagem dos dispositivos como sujeito empírico, é o que não é a nietzschiana e da memória e da im-
de biopoder. O homo sacer, que pode testemunha integral. Temos aqui uma possibilidade do esquecimento, em
ser identificado com o muçulmano de cisão constitutiva ou afastamento que Agamben, para que façamos uma
Auschwitz, é o sujeito político con- é, ao mesmo tempo, uma integração: reflexão do mal para além de uma
temporâneo, desde que por sujeito na impossibilidade ou impotência de compreensão maniqueísta?
entendamos pelo menos duas ace- dizer, que é própria do muçulmano, Oswaldo Giacoia Junior – O sen-
pões principais: sujeito no sentido de funda-se a possibilidade humana do tido do pensamento abissal – o eterno
assujeitado, que é um produto histó- discurso, na consistência do sujeito retorno – em Nietzsche consiste em li-

EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 25


berar o passado de uma petrificação do registro cronológico dos aconteci- tremamente lúcida e que exprime o
Tema de Capa
que ameaça tornar-se uma âncora do mentos passados, para detectar, fixar espírito autêntico da dialética negati-
presente e congelar antecipadamente e expor a estrutura jurídico-política va da Escola de Frankfurt, um espírito
o futuro; poder querer tudo o que foi, que deu ensejo a essa monstruosida- que, de certa forma, já encontramos
sem acréscimo nem subtração, signi- de de destruição. É a partir dessa es- em Nietzsche, e que também não
fica a libertação da vontade humana trutura que se pode trazer à luz aquilo é estranho a Walter Benjamin8, um
de seu vínculo de impotência vingati- que os acontecimentos efetivamente pensador imprescindível para a com-
va em relação à passagem do tempo, foram (e que continuam a ser) – uma preensão de Agamben. Türcke obser-
à finitude e à dor, pela transforma- vez que este é o elemento possibili- va que o essencial na experiência do
ção da resignação ou da revolta num tador, a lógica vigente em todo esse eterno retorno do mesmo é a criação
evento de responsabilidade própria. processo. das condições para a “transformação
Essa é a relação produtiva entre me- “Aquilo que aconteceu nos cam- da aceitação num evento de dignida-
mória e esquecimento, que se coloca pos ultrapassa em tal medida o con- de própria. O artifício do amor fati é
como um limite extremo para a von- ceito jurídico de crime que com fre- um modo emocional-mental de agar-
tade, no pensamento de Nietzsche quência simplesmente deixamos de rar, semelhante ao judô, que absorve
– como criação das condições possí- investigar a específica estrutura jurí- a força do oponente, aumenta seu
veis para um poder querer libertador. dico-política, a partir da qual aqueles impulso e inverte-a em força sobre o
Trata-se de uma transfiguração a ser acontecimentos surgiram. O campo oponente. Onde existe o amor fati,
compreendida no registro da subje- é unicamente o lugar no qual se rea- existe a arte da inversão. Para Niet-
tividade, em virtude de rememora- lizou a mais absoluta conditio inuma- zsche, ela é idêntica à arte em geral,
ção e da simbolização, que, como se na que jamais existiu sobre a Terra. pois a arte, conforme diz, é ‘a realida-
sabe, são operadores psicanalíticos de No final das contas, é isso que conta de mais uma vez, apenas em seleção,
subjetivação. tanto para as vítimas quanto para a reforço, correção. O artista trágico
Em Agamben, a evocação do in- posteridade. Seguiremos aqui, propo- não é nenhum pessimista – ele preci-
dizível na experiência de Auschwitz sitadamente, uma maneira contrária samente diz sim a tudo o que é ques-
significa menos uma contestação de- de proceder. Ao invés de derivar a de- tionável e mesmo ao que é terrível’. O
finitiva da ética nietzschiana do que finição do campo a partir dos aconte- verdadeiro artista é um artista da vida
um dos motivos que exigem de nós o cimentos que lá se passaram, pergun- – justamente por desarmar dizendo
reconhecimento da urgência de nos taremos, antes: o que é um campo; ‘sim’ e fazendo como quem diz ‘sim’”.
aventurarmos por um território ético qual é sua estrutura jurídico-política; Encarar o horror extremo pela
até hoje desconhecido – aquele para por que tais acontecimentos puderam perspectiva do amor fati é tomá-lo
o qual nos convoca uma ética da ver- se passar ali? Isso nos levará a consi- pela ótica do artista, que é também
gonha e do testemunho, tal como a derar o campo não como um fato his- a do filósofo, na medida em que filo-
entende o próprio Agamben, seguin- tórico, como uma anomalia que per- sofia não é para Nietzsche outra coisa
do as pegadas de Primo Levi6. tence ao passado (mesmo que, em que ‘arte da transfiguração’. Em filo-
certas circunstâncias, ainda possamos sofia, como na arte, não se trata de
IHU On-Line – Em que medida nos deparar com ela), mas, em certa reproduzir o real à la lèttre, mas de
Auschwitz é uma sombra que não medida, como a Matrix oculta, como torná-lo visível, perscrutando seu cer-
cessa de se projetar em nosso tem- o nomos do espaço político, no qual ne, dispô-lo em perspectiva a partir
po? O que resta desse evento? sempre ainda vivemos.” de uma distância artística, capaz de
Oswaldo Giacoia Junior – A ta- destacar o essencial e, por isso mes-
refa de pensar o que se passou nos IHU On-Line – Filmes como A mo, de relacioná-lo à esfera positiva
campos de concentração, sobre o vida é bela (Roberto Benigni, Drama,
‘que resta de Auschwitz’, exige ir além Itália, 1997, 116min) e O trem da vida
(Radu Mihaileanu, Drama, França,
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Der tolle Mensch. Nietzsche und der


6 Primo Levi (1919-1987): judeu italia- 1998, 103min) se valem da criação Wahnsinn der Vernunft (4ª ed., 2000),
no, um dos poucos sobreviventes de Aus- de fantasias entre seus personagens livro que foi traduzido para a língua por-
chwitz, o campo de concentração onde tuguesa com o seguinte título: O louco:
milhões de prisioneiros, judeus como
para que estes conseguissem sobre- Nietzsche e a mania da razão (Rio de
ele, foram assassinados pelos nazistas. viver ao horror do Holocausto. Nessa Janeiro: Vozes, 1993); Sexus und Geist:
Sobreviveu para regressar a Turim, sua lógica, como a arte, tão cara a Nietzs- Philosophie im Geschlechterkampf (3ª
cidade-natal, e escrever um dos mais ed., 2001); e Rückblick aufs Kommende:
extraordinários e comoventes testemu-
che e Agamben, lida com a questão Altlasten der neuen Weltordnung. (Nota
nhos dos campos de extermínio nazista. do Mal e da sua sublimação? do IHU On-Line)
Em seu primeiro e mais impressionante Oswaldo Giacoia Junior – A esse 8 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo
livro, Se questo è un uomo (Se isto é um alemão. Foi refugiado judeu e, diante da
homem), escrito em 1947, Levi relata o
respeito, gostaria de repetir aqui, a perspectiva de ser capturado pelos nazis-
ano que passou em Auschwitz. Em 1963, meu modo, uma interpretação de tas, preferiu o suicídio. Um dos principais
Primo Levi publica seu segundo livro A Christoph Türcke7, que considero ex- pensadores da Escola de Frankfurt. Sobre
Trégua, em que narra os últimos dias em Benjamin, confira a entrevista Walter
Auschwitz, após os nazistas terem aban- Benjamin e o império do instante, conce-
donado o campo, e sua viagem de volta 7 Christoph Türcke: filósofo alemão, dida pelo filósofo espanhol José Antonio
para casa, na Itália. Seu último livro, Os professor de Filosofia na Hochschule für Zamora à IHU On-Line nº 313, disponível
afogados e os sobreviventes foi publicado Grafik und Buchkunst em Leipzig. Dentre em http://bit.ly/zamora313. (Nota da
em 1986. (Nota da IHU On-Line) suas principais publicações destacam-se: IHU On-Line)

26 SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 | EDIÇÃO 438


e criadora da responsabilização e da muitos testemunhos. Porém jamais política clássica, que separa claramen-

Tema de Capa
subjetividade. tão claramente, talvez, como na pas- te privado e público, corpo político e
Não se trataria, pois, apenas de sagem de Os Submersos e os Salvos corpo privado, etc. Mas esse terreno
recusar o acontecido, tal e qual acon- (É isto um homem? – Primo Levi. é também aquele que nos expõe aos
teceu, mas de desintoxicar o peso Rio de Janeiro: Rocco, 2013), na qual processos de assujeitamento do bio-
inercial do passado, libertar a me- Levi evoca o estranho desespero que poder. Existe aí, portanto, uma ambi-
mória do ‘espírito de vingança volta- acometia os prisioneiros no momen- guidade e um risco”11.
do contra o tempo’, que é também a to da libertação: ‘naquele momento
perpetuação do ressentimento amea- em que sentíamos nos tornar nova-
çando tanto o presente quanto todo
futuro. Afinal, contestar ao veneno do
mente homens, isto é, responsáveis’.
Portanto, o sobrevivente conhece a Leia mais...
ressentimento a força e a prerrogativa necessidade comum da degradação,
de ensombrecer todo futuro é uma sabe que a humanidade e a respon- • Sobre técnica e humanismo. Edição
pesada tarefa de transvaloração e de sabilidade são algo que o deportado nº 20, Cadernos IHU Ideias, de 21-
transfiguração, que nada tem a ver teve de abandonar fora das cancelas 07-2004, disponível em http://bit.
com neutralização do potencial tóxico do campo”10. ly/ihuid20.
e destrutivo da história. Novamente É nesses termos que se recoloca • Nietzsche, o pensamento trágico e a
Türcke: “Ela não se poupa a memória: em nossos dias a questão do sujeito, afirmação da totalidade da existên-
aprofunda-a. Não evoca apenas, mas especialmente em vista de uma nova
cia. Entrevista com Oswaldo Giacoia
também presta contas acerca do que biopolítica; essa retomada tem de ser
Junior, edição nº 330, revista IHU
perfaz, em última instância, a força colocada em termos de processos de
e o sentido de toda lembrança: que subjetivação e de dessubjetivação, On-Line, de 24-05-2010, disponível
nos libertemos do pesadelo do passa- como um resto, um afastamento, em http://bit.ly/ihuon330.
do, ao invés de enrijecermos sob sua uma distância aberta entre processos • Superar a condição humana, uma
pressão”9. de subjetivação e dessubjetivação. fantasia antiga. Entrevista com
Em Agamben, o pensamento da Agamben se pergunta ‘quem’ seria Oswaldo Giacoia Junior, edição nº
repetição não é menos radical. Nesse o sujeito de uma nova biopolítica de 344, revista IHU On-Line, de 21-09-
sentido, Auschwitz, que, do ponto de resistência, de uma biopolítica menor. 2010, disponível em http://bit.ly/
vista de sua lógica e de sua estrutura, E responde: “Porque o Estado moder-
ihuon344.
foi um acontecimento, não cessou no funciona, parece-me, como uma
• Perfil. Matéria sobre Oswaldo Gia-
de se repetir na modernidade, libera espécie de máquina de dessubjetivar,
o acesso a uma ‘nova matéria ética’, quer dizer, como uma máquina que coia Junior, edição nº 345, revista
cujo limiar consiste justamente no quebra todas as identidades clássi- IHU On-Line, de 27-09-2010, dispo-
ponto em que, na figura do muçul- cas e, ao mesmo tempo, Foucault o nível em http://bit.ly/ihuon345.
mano, por ser a ‘testemunha integral’, mostra bem, como uma máquina de • - Independência do pensamento:
fica tolhida para sempre toda possi- recodificar, notadamente o modo ju- prerrogativa máxima da filosofia.
bilidade de distinguir entre homem e rídico, as identidades dissolvidas: há Entrevista com Oswaldo Giacoia Ju-
não homem, dignidade e indignidade; sempre uma ressubjetivação, uma nior, edição nº 379, revista IHU On-
justamente porque habita esse espa- reidentificação desses sujeitos des-
Line, de 07-11-2011, disponível em
ço fronteiriço de trânsito entre o hu- truídos, desses sujeitos esvaziados de
http://bit.ly/ihuon379.
mano e o inumano, entre a vida e a toda identidade. Hoje, parece-me que
morte, o muçulmano adquire signifi- o campo político é uma espécie de • Kant e Nietzsche e a autodetermi-
cado ético e político. A esse respeito, campo de batalha onde se desenro- nação como fundamento da auto-
Agamben escreve: “Primo Levi come- lam esses dois processos: ao mesmo nomia. Entrevista com Oswaldo Gia-
ça a testemunhar somente depois tempo, destruição de tudo o que era coia Junior, edição nº 417, revista
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que a desumanização foi realizada, identidade tradicional – eu digo isso, IHU On-Line, de 06-05-2013, dispo-
somente quando falar de dignidade por certo, sem nenhuma nostalgia; e nível em http://bit.ly/ihuon417.
não teria mais sentido. Ele é o único ressubjetivação imediata pelo Esta- • O que resta de Auschwitz e os para-
que se propõe conscientemente a tes- do; e não somente pelo Estado, mas
doxos da biopolítica em nosso tem-
temunhar em lugar dos muçulmanos, também pelos próprios sujeitos (...) o
dos submersos, daqueles que foram conflito decisivo que se joga doravan- po. Entrevista com Oswaldo Giacoia
demolidos e tocaram o fundo. Que, te, para cada um de seus protagonis- Junior publicada nas Notícias do
de resto, em Auschwitz cada um tives- tas sobre o terreno disso que que eu Dia, de 21-08-2013, no sítio do Insti-
se, de um modo qualquer, deposto a chamo de zoé, a vida biológica. E, com tuto Humanitas Unisinos – IHU, dis-
dignidade humana, fica implícito em efeito, não é outra coisa: não é ques- ponível em http://bit.ly/ihu210813.
tão, creio eu, de retornar à oposição
9 Türcke, C. A Vida é Bela: O Amor Fati 11 Agamben, G. Une Biopolitique Mi-
de Nietzsche no Cinema. Trad. Peter 10 Agamben, G. Quel che resta di Aus- neure. Entretien avec Giorgio Agamben,
Naumann. In: Impulso. Revista de Ciên- chwitz (Homo Sacer III). Torino: Bollati realize par Stany Grelet & Mathieu Potte-
cias Sociais e Humanas, n. 28, volume 12, Boringhieri, 1998, p. 54. (Nota do entre- Bonneville. In: Vacarme 10, hiver 2000.
2001, p. 127. (Nota do entrevistado) vistado) Mot313.html, p. 4. (Nota do entrevistado)

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Lanzmann e a construção da
Tema de Capa

Shoah como acontecimento


O psicanalista Robson de Freitas Pereira explora a importância do documentário
considerado o registro definitivo da crueldade humana nos campos de concentração e
extermínio

Por Márcia Junges e Andriolli Costa

D
urante o regime nazista, cerca de dois tos se suicidaram, muitos se revoltaram, e alguns,
terços dos 9 milhões de judeus que re- corajosos também, sobreviveram milagrosamen-
sidiam na Europa foram mortos. Pere- te, por um detalhe, porque o normal naquela si-
ceram de fome ou doença devido às condições tuação era morrer.”
degradantes dos campos de concentração ou de De acordo com Pereira, a realização de
extermínio, suicidaram-se para escapar da mor- Shoah – que se tornou documento referenciado
te em vida que ali levavam, ou então, por fim, até mesmo por historiadores, políticos e psica-
eram submetidos à Solução Final: o extermínio nalistas – colabora para a própria construção
nas câmaras de gás. Daqueles que se propuse- do Holocausto como acontecimento. Não que o
ram a retratar este período, nenhum cineasta foi genocídio não tenha de fato “acontecido”, mas
capaz de prover um registro tão completo quan- o obscurantismo que permeou durante muito
to o francês Claude Lanzmann. tempo este momento promoveu o desconheci-
Em seu documentário Shoah (1985), de mais mento de muito dos horrores perpetrados nos
de 9 horas de duração, ele abre espaço não ape- campos de concentração. Voltar o olhar para
nas para depoimentos de sobreviventes, mas os sobreviventes e seus relatos permite cons-
também dos que apoiaram e colaboraram para truir uma narrativa muito mais fidedigna do
o funcionamento da máquina nazista, para os Holocausto.
moradores das cidades do entorno dos Campos, Robson de Freitas Pereira é psicanalista,
para os próprios carrascos e, especialmente, para membro da Associação Psicanalítica de Porto Ale-
os Sonderkommando, judeus obrigados a lidar gre – APPOA. Além de exercer a clínica psicanalíti-
com os corpos nas câmaras de gás – anterior- ca, tem participado ativamente das interlocuções
mente retratados apenas como mais um grupo entre psicanálise e cultura. Pereira participa nes-
de sobreviventes, ignorando a carga de culpa e ta segunda-feira (24) do evento Ética, Memória,
violência a que foram submetidos. Esperança. Uma perspectiva de triunfo da justi-
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On- ça e da vida – 11ª Páscoa IHU, discutindo A pro-
Line, o psicanalista Robson de Freitas Pereira posta estético-política de Claude Lanzmann no
aborda a importância da produção de Shoah e Documentário Shoah. A apresentação, precedida
os cuidados e precauções do diretor na produção pela exibição da primeira parte do filme, ocorre
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do filme. “Para Lanzmann, perguntas do tipo ‘Por na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU,
que não se suicidaram? Por que não se revolta- às 17h30min.
ram?’ eram consideradas obscenas. Afinal, mui- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que consiste a Robson de Freitas Pereira – O fil- cinema e na própria história do pensa-
proposta estético-política de Claude me Shoah é um marco na história do mento. Ele transcende a questão dos
Lanzmann1 em Shoah? gêneros na realização cinematográfi-
ca, pois não pode simplesmente ser
Lanzmann revisita o tema em seu filme
1 Claude Lanzmann (1925): escritor e mais recente, Le Dernier des Injustes
enquadrado como um “documentá-
diretor francês, mais conhecido pelo (2013), que retrata a vida de Benjamin rio”. Ao produzir este efeito, relança e
documentário Shoah (1985), que demorou Murmelstein, o último presidente do modifica questões há muito debatidas
10 anos para ser produzido. O filme, com Conselho Judeu de Theresienstadt,
duração de 9 horas, retrata depoimentos responsável por negociar diariamente e reforça a posição de alguns realiza-
dos sobreviventes do holocausto judeu. com Eichmann. (Nota da IHU On-Line) dores fundamentais para o cinema

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– vide as propostas de Eduardo Cou- lítico também é uma constante em voltaram para nos dizer algo daquela

Tema de Capa
tinho2, mestre recentemente falecido. sua trajetória – engajamento tal que situação impossível de ser reproduzi-
Para dizer mais diretamente, e se manifesta inicialmente em ensaios da. Isto me parece importante porque
aqui passamos a comentar algumas filosóficos, em suas reportagens jor- corrobora uma afirmação a respeito
das propostas estético-políticas (e nalísticas e, posteriormente, em seus da complexidade da Shoah. A situação
éticas) de Claude, filmar uma dada re- filmes. Corajoso e apaixonado, não dos campos de extermínio era tal que
alidade não corresponde a esgotar o hesita em revisar suas posições pas- perguntas do tipo “Por que não se sui-
real da qual ela se origina. Em outras sando a criticar partidos e governos cidaram? Por que não se revoltaram?”
palavras, somos seres de linguagem com os quais estivera alinhado, vide são consideradas obscenas por Lanz-
(dizer assim é quase uma tautologia), sua crítica ao partido comunista e aos mann. Afinal, muitos se suicidaram,
onde as palavras representam as coi- desdobramentos que se seguiram à muitos se revoltaram, e alguns, cora-
sas, mas mantêm uma distância, um luta de libertação da Argélia. josos também, sobreviveram milagro-
intervalo com elas. Muito mais quan- samente, por um detalhe, porque o
do estamos utilizando uma câmera, A estética documental normal naquela situação era morrer.
um roteiro, uma direção e cortes para Para nos atermos à relação com Morrer de inanição, fraqueza, doen-
realizar determinada ideia. As ima- Shoah, vamos lembrar que Lanzmann ça, ou assassinado diretamente nos
gens em movimento também perfor- levou mais de dez anos entre sua pre- galpões de envenenamento por gás,
matizam aquilo que estão filmando. paração e o lançamento. A decisão nos caminhões especialmente prepa-
Este é um dos reconhecimentos que de fazer este filme implicou uma mu- rados, ou mesmo pelos cães ou armas
Lanzmann faz em ato, na concepção e dança de vida, tendo como uma das de seus algozes.
realização de seu filme. consequências o abandono do jorna- O reconhecimento desta condi-
lismo. Somente continuou na revista ção extrema levou Claude Lanzmann
Memórias de Lanzmann Temps Modernes, fundada por Sar- a buscar aqueles que estiveram nos
É importante que seja sublinha- tre3, e da qual se tornou diretor após campos de extermínio e, escraviza-
do o quanto isto também foi um pro- a morte do filósofo. dos, testemunharam a realização
cesso para o próprio diretor. Ele não Outra referência para as posi- da “solução final” concebida pelos
tinha as coisas inteiramente concei- ções estético-políticas mencionadas: nazistas – os participantes dos Son-
tualizadas com antecedência, para o reconhecimento da violência como derkommando4, comandos especiais,
nos afastarmos de um pragmatismo algo inerente à condição humana. encarregados das câmaras de gás e
barato que supõe uma relação biuní- Reconhecimento que se manifesta dos fornos crematórios (voltaremos a
voca entre planejamento e execução. nas produções públicas, mas também isto). Para retomar a afirmação inicial
Claude precisou estar no processo articuladas com a intimidade de suas a respeito da contribuição para a his-
de realização para dar-se conta de fantasias infantis, influenciadas pelo tória do pensamento: o filme influen-
alguns efeitos, precisou reconhecer cinema e pela literatura. Isto requer cia as discussões sobre o genocídio,
a necessária aprendizagem que a ex- coragem para admitir, e aqui reprodu- passa a fazer parte do acervo de re-
periência provoca. zo uma frase do livro citado: “A ques- ferências para historiadores, políticos,
Nas memórias do diretor, inti- tão da coragem e da covardia, vocês psicanalistas. Em outras palavras, in-
tuladas A lebre da Patagônia (São já devem ter entendido, é o fio ver- terfere na elaboração de um aconte-
Paulo: Companhia das Letras, 2011), melho deste livro, o fio vermelho da cimento complexo, tão complexo que
podemos acompanhar seu proces- minha vida”. obriga a um reconhecimento de que
so de formação. As condições para Isto permitiu que ele escutasse nenhuma disciplina, nenhuma teoria
suas escolhas. Aos 17 anos participa os depoimentos para seu filme sem isolada seria capaz de dar conta dele.
da resistência à ocupação da França julgar os sobreviventes, que para ele Aqui se esvai qualquer pretensão de
na II Guerra Mundial. Oriundo de fa- são verdadeiros revenants – retor- totalidade. Neste aspecto, é uma con- www.ihu.unisinos.br
mília judia, não praticante, de várias nantes -, pois estiveram no inferno e tribuição à nossa cultura no melhor
gerações francesas, cedo percebeu o sentido.
antissemitismo reinante antes e de- 3 Jean-Paul Sartre (1905-1980): filósofo
pois da Guerra. O engajamento po- existencialista francês. Escreveu obras
teóricas, romances, peças teatrais e con-
IHU On-Line – A partir do pon-
tos. Seu primeiro romance foi A náusea to de vista ético e estético, em que
(1938), e seu principal trabalho filosófico sentido Lanzmann inaugurou um
2 Eduardo Coutinho (1933-2014): cine- é O ser e o nada (1943). Sartre define o
asta brasileiro, considerado um dos mais existencialismo em seu ensaio O existen-
importantes documentaristas da atua- cialismo é um humanismo como a doutri-
lidade. Iniciou produzindo ficção, com na na qual, para o homem, “a existência 4 Sonderkommando: prisioneiros judeus
o que seria o filme Cabra Marcado para precede a essência”. Na Crítica da razão dos campos de concentração nazista que
Morrer, em 1964. Coutinho esconde os dialética (1964), Sartre apresenta suas eram cooptados a trabalhar nas câmaras
negativos da Ditadura e retoma o pro- teorias políticas e sociológicas. Aplicou de gás, operando na chamada Solução
jeto 1981, já em estética documental, suas teorias psicanalíticas nas biografias Final. Os Sonderkommando não eram di-
retratando a vida dos participantes das Baudelaire (1947) e Saint Genet (1953). retamente responsáveis pela morte dos
primeiras filmagens, seu envolvimento As palavras (1963) é a primeira parte de outros prisioneiros, mas deviam se res-
com os movimentos sociais e o sofrimen- sua autobiografia. Em 1964, foi escolhido ponsabilizar pelos corpos e por incinerar
to com o regime totalitário. (Nota da IHU para o prêmio Nobel de Literatura, que os ossos. A palavra, em alemão, significa
On-Line) recusou. (Nota da IHU On-Line) “unidade especial”.

EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 29


novo modo de expor a realidade do que procuravam tratar do tema, pra- jetar que é uma forma muito mórbi-
Tema de Capa
genocídio? ticamente não faziam distinção entre da, cruel de tratar tema tão delicado.
Robson de Freitas Pereira – Ao os sobreviventes dos campos de con- Mas ao contrário do que se poderia
realizar uma obra inédita que trans- centração e de extermínio. Isto não imaginar, mesmo que por vezes com
cende sua condição cinematográfica, desfaz a importância de muito des- extrema dificuldade (quem viu o fil-
passa a contribuir para uma elabora- tes filmes; porém, eles tratam todos me pode se dar conta), os revenants
ção do próprio acontecimento. Este como “sobreviventes” e na visão de sabiam que seu depoimento era fun-
“acontecimento” também é inédito Lanzmann tentam fazer um discurso damental. Além disso, como elaborar
na história moderna, pois inaugurou da sobrevivência. Segundo o diretor, um processo tão desumano e cruel
um procedimento sem precedentes: não havia uma interrogação sobre a sem expor os limites de sua raciona-
a tentativa de exterminar um povo morte, sobre os limites daquele pro- lidade? Porque é uma forma de fazer
e todos os outros considerados “de cesso técnico/industrial de destruição algum luto e valorizar a vida.
raça inferior”. Digo isto, porque além em seus detalhes. Mais uma característica: dar voz
dos seis milhões de judeus, houve Por este motivo, justifica-se a pre- aos carrascos, apesar das dificuldades
ciganos, comunistas, homossexuais sença de um Filip Müller5, integrante e perigos a que o diretor se expôs. Não
e, pouco antes da “solução final para por quase três anos do “comando es- havia documentários assim antes de
os judeus”, os processos de eugenia pecial” de Auschwitz/Birkenau. Mül- Shoah. E, além disso, mostrar em som
iniciados na própria Alemanha onde ler escapou de diversas tentativas de e imagem a cumplicidade das aldeias,
foram eliminados doentes mentais e “assassinato” diretas. Por detalhes, pequenas cidades, estações de trem
portadores de deficiências físicas. escapou de um lugar onde o destino e pequenas propriedades próximas
Entretanto, gostaria de retomar era morte. Ele fazia parte de um es- de onde os campos foram instalados.
a discussão na dimensão cinemato- quadrão encarregado de levar as pes- Esta foi uma das constatações a qual o
gráfica e seus efeitos. Como você dis- soas para a câmara de gás, esperar o diretor chegou durante o processo de
se, Shoah inaugura um novo modo de envenenamento, retirar os cadáveres e preparação das filmagens. Ele não se
expor a realidade do genocídio, a co- colocá-los nos fornos crematórios. De- dava conta disso antes de visitar estes
meçar pela recusa de utilizar imagens pois da incineração, trituravam-se os lugares próximos. Quando foi entre-
de arquivo. Há muitas fotografias e fil- ossos e outros restos que não haviam vistar o maquinista de trem, encon-
mes curtos documentando os campos sido incinerados. No auge do processo trou-se com alguém que trazia em sua
de concentração (trabalho forçado) e de extermínio, os fornos não davam vida uma história que nunca pudera
menos sobre os campos de extermí- conta dos milhares de cadáveres, en- contar. Ninguém havia perguntado
nio – de alguns deles não há qualquer tão os Sonderkommando eram obri- sobre seu trabalho naqueles tempos.
imagem. Acontece que durante suas gados eles mesmos a cavar as fossas, Trabalho de “empurrar” os vagões
pesquisas preliminares Lanzmann to- arrojar os corpos nelas e incinerá-los. abarrotados de gente até a entrada
mou contato com estes documentos Tudo isto sabendo que iriam trabalhar de Auschwitz/Birkenau. Quem assistiu
visuais e impressionou-se com a fal- até a exaustão e morte, pois, uma vez ou assistir ao filme pode acompanhar
ta de critério com que eles eram uti- segregados para esta tarefa, não po- a reconstituição e os depoimentos de
lizados. Explico: muitas vezes foram diam mais ter contato com outros pri- outros que nunca puderam falar do
expostas lado a lado imagens feitas sioneiros do campo, apenas os mem- cheiro nauseabundo de carne podre
pelos nazistas e outras feitas pelos bros de seu esquadrão. e queimada que entrava pelas casas
prisioneiros, assim como os filmes e Lanzmann deu voz a estes heróis/ todos os dias, durante vários anos.
fotos feitos pelos aliados quando li- vítimas, os poucos que poderiam falar Por último, mas não finalmente,
bertaram os campos. Sem um esclare- sobre este processo racionalmente a escolha deliberada de dar importân-
cimento a respeito das condições de planejado e levado a efeito. Eles po- cia à palavra, ao testemunho verbal.
produção destas imagens elas correm diam dizer o que acontecia depois Uma maneira de não sucumbir à he-
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o risco de prestar um desserviço ao que o comboio ferroviário chegava e gemonia da imagem e do espetáculo,
testemunho, ou de criar uma confu- os deportados eram separados entre mesmo que se esteja fazendo um fil-
são no expectador atual. Afinal, as quem ia para os trabalhos forçados e me que busque exercitar os limites da
imagens fornecidas por um serviço quem ia direto para o aniquilamento. linguagem cinematográfica.
de propaganda destinado a disfarçar Os mortos estavam transformados
ou mesmo ocultar um crime hedion- em cinza, ninguém mais poderia falar IHU On-Line – Em que sentido
do não podem ter o mesmo valor que por eles, falar da morte de forma tão esse documentário se contrapõe a
aquelas produzidas pelos prisioneiros próxima e brutal. Alguns poderão ob- produções anteriores, como a Lista
que arriscaram a vida para transmitir de Schindler, por exemplo?
o horror que estava acontecendo. 5 Filip Müller (1922): um dos últimos Robson de Freitas Pereira – Há
Sonderkommandos sobreviventes de Aus-
Outra característica do filme foi chwitz. Acompanhando o extermínio de alguns anos, quando ganhou o prê-
dar voz fundamentalmente aos mem- milhões de judeus e obrigado a lidar com mio Irving Thalberg por sua produção
bros dos Sonderkommando, os esqua- seus corpos, Müller escreve em 1979 o cinematográfica, Steven Spielberg6
livro Testemunha Ocular de Auschwitz –
drões especiais. Até então, os filmes, Três anos nas câmaras de gás. (Nota da
fossem de ficção ou documentários IHU On-Line) 6 Steven Spielberg: (1946): cineasta e

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fez um discurso em defesa da palavra to para quem faz ou gosta de cinema râneo, diz que estar situado no seu

Tema de Capa
no cinema. Fazia uma crítica aos fil- como para pesquisadores de uma tempo é lançar um olhar sobre a obs-
mes que, supostamente defendendo maneira geral. Há outra observação curidade deste tempo, e não sobre
o entretenimento, negavam a condi- neste elenco de características que as luzes. As luzes podem nos cegar.
ção fundadora da linguagem. Curio- concerne ao título do filme: ele aju- A exigência de transparência total e
samente, Shoah parece realizar este dou a consolidar o acontecimento dos de um olhar que tudo veja pode levar
desejo de Spielberg, ao radicalizar a campos de extermínio. a uma negação das limitações que
concepção de documentário que tem Até seu lançamento era comum são inerentes à condição humana. O
na palavra um eixo fundamental, ca- a utilização do termo “holocausto”, enigma, o resto faz parte da estrutu-
paz de dizer o indizível de uma for- mesmo reconhecendo sua inadequa- ra da linguagem; isto já foi reconheci-
ma que as imagens de arquivo são ção, porque seu sentido original é de do há tempos. Quem não se lembra
insuficientes. sacrifício, oferenda. Shoah é um signi- do adágio shakespeariano? Há mais
A lista de Schindler (1994) é um ficante sem tradução exata, mas está
coisas entre o céu e a terra do que
filme muito diferente disto. Ali temos muito próximo do sentido do aconte-
supõe nossa vã sabedoria.
o predomínio da emoção e das ima- cimento, tanto que a partir do filme
Quando Lanzmann realizava suas
gens. E aqui uma das muitas discus- deu-se a consolidação do nome Shoah
entrevistas para o filme, tinha uma
sões suscitadas pelo posicionamento para definir este acontecimento defi-
preocupação em não compreender
de Lanzmann. Ele considera que não nidor da realização do mal em nossa
história. Outro ponto a ser considera- muito rapidamente, não querer com-
há possibilidade de fazer um filme
do está relacionado à obstinação do preender tudo. Argumentava que
em que o diretor de fotografia queira
diretor ao longo de vários anos, ga- estava diante do relato de uma cruel-
discutir qual a composição de cores
rantindo que o filme mostrasse tudo dade inédita e tão difícil de escutar
mais adequada para o interior dos
aquilo que ele considerava essencial, que muito facilmente o entrevistador
barracões ou fornos crematórios. Para
sem abrir mão do tempo necessário poderia tentar se defender do horror
Claude isto seria, novamente, uma
obscenidade! que o trabalho exigia: o filme tem com teorias preconcebidas. Daí a ati-
Pessoalmente, acredito que há nove horas de duração. tude de aprender com o que estava
uma diferença quando se realiza um Quanto ao que poderia ser consi- sendo escutado. Além disso, revelar o
filme de ficção e que ele também derada uma limitação, talvez pudésse- que estava silenciado produz um res-
pode ter uma função simbólica além mos cogitar que as limitações estejam to, justamente pela impossibilidade
do entretenimento. Este foi o caso de relacionadas também aos efeitos da do testemunho em cobrir inteiramen-
A Lista de Schindler, porque a partir obra. Um deles, a transformação de te o real do qual ele tenta dar conta.
de seu lançamento reavivou a dis- um filme capital como sendo a última Neste sentido, qualquer tentativa de
cussão e a crítica ao nazismo, que palavra sobre a Shoah. Como se de- totalizar, de um entendimento univer-
parecia relegada a um saudosismo. pois dele nada mais pudesse ser feito sal, logo demonstra seu fracasso. Te-
Só para relembrar, a cena final do fil- ou dito. Isto é um efeito de cristali- mos que assumir esta limitação, não
me deixa de lado o relato ficcional e zação e sacralização de um trabalho por defeito de qualquer disciplina,
mostra os sobreviventes colocando magistral que tem sua riqueza justa- mas como possibilidade; uma abertu-
pedras nos túmulos dos compatrio- mente no fato de ter sido iconoclas- ra para o esclarecimento.
tas mortos nos campos de concen- ta com os cânones interpretativos de Estamos falando da mesma im-
tração e/ou extermínio. seu tempo. possibilidade que Lanzmann reconhe-
ceu e, como consequência, foi buscar
IHU On-Line – Qual é o maior IHU On-Line – Para o filósofo ita-
aqueles relatos que mais poderiam
mérito desse documentário e sua liano Giorgio Agamben, o verdadeiro
se aproximar deste impossível; pois
testemunho é justamente aquele de
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maior limitação? como está mencionado na questão o
Robson de Freitas Pereira – Nas quem não pode falar, porque já está
verdadeiro testemunho, aquele que
respostas acima fizemos algumas con- reduzido à perda de sua linguagem,
traria a verdade definitiva está veda-
siderações a respeito dos méritos, das de sua humanidade. Nesse sentido,
como analisa o relato dos sobrevi- do. Os mortos não falam, os vivos, no
inovações e posicionamentos do filme caso da Shoah, os “retornantes”, são a
ventes desse genocídio? Qual é a im-
Shoah. Entre os méritos podemos ci- materialização de um legado possível.
portância da categoria da memória
tar ou mesmo repetir o fato de haver Acrescentemos que a própria nature-
nessa produção?
se transformado numa obra incon- za horrorosa do extermínio determina
Robson de Freitas Pereira – Es-
tornável sobre o tema do extermínio que não haja relato definitivo. Assim,
tas questões nos alertam de que não
dos judeus na II Guerra mundial, tan- faz-se necessário que outras gerações,
estamos simplesmente analisando
o passado, estamos interrogando outros ouvintes se apropriem e se res-
produtor estadunidense, é um dos direto-
res mais populares e influentes da história um passado recente historicamente ponsabilizem deste legado e possam,
do cinema. Spielberg é vencedor do Oscar justamente para analisar também ao enfrentar o mal-estar que ele pro-
de melhor diretor pelos filmes A Lista de
Schindler (1994) e O Resgate do Soldado nossa atualidade. Giorgio Agamben, voca, combater o mal que uma racio-
Ryan (1999). (Nota da IHU On-Line) ao falar sobre o que é o contempo- nalidade desenfreada pode provocar.

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“De Auschwitz saímos pobres
Tema de Capa

em humanidade”
O filósofo Reyes Mate alerta sobre os impactos causados pelo holocausto, pois na
morte a primeira vítima é sempre a humanidade do algoz

Márcia Junges e Andriolli Costa / Tradução de André Langer

A
experiência do Holocausto judeu ain- tas e formadas é uma boa prova da facilidade
da hoje deixa feridas que não foram com que optamos pelo mal e convivemos com
totalmente cicatrizadas. No entanto, a melhor boa consciência com ele.”
para o filósofo Reyes Mate, retomar o assun- Para o filósofo, o holocausto foi um crime
to mesmo correndo o risco de expor ainda contra a humanidade. Não por infligir sofri-
mais estas escaras é fundamental para man- mento ao corpo e ao homem como indiví-
ter a memória do acontecimento. “A memória duo. “Por ‘humanidade’ podemos entender
complica as coisas, já que abre feridas. Mas a conquista civilizatória do homo sapiens,
a única maneira de superar esse passado do- a saber, todo esse patrimônio de virtudes e
loroso é tendo-o presente e não esquecê-lo”, conhecimentos com que fomos modelando
defende. Afinal, se considerarmos que a his- o ser humano.” Citando Jorge Luiz Borges,
tória foi construída sobre vítimas, “teremos Mate alerta que não se mata impunemente.
de dizer que continuamos a construir a histó- “A primeira vítima é a humanidade do algoz.
ria da mesma maneira, caso não recordarmos De Auschwitz saímos pobres em humanidade,
as injustiças passadas”. e isso explicaria muitas coisas.”
Em entrevista concedida por e-mail à IHU Reyes Mate é professor do Instituto de Fi-
On-Line, Mate destaca a presença do mal ba- losofia do CSIC (Conselho Superior de Pesqui-
nal não apenas nos campos de concentração, sas Científicas). Em sua pesquisa, dedica-se
mas em outras esferas da vida contemporâ- à pesquisa da dimensão política da razão, da
nea. Isto porque, se não é preciso ser diabólico história, da religião e da memória na filosofia
para praticar o mal, a distância entre o cidadão depois de Auschwitz. É autor do livro Justicia
comum e o criminoso torna-se ainda mais tê- de las víctimas. Terrorismo, memoria, recon-
nue e exige reflexão e autorreflexão para de- ciliación (Barcelona: Anthropos, Editorial del
finir os limites. “Essa cultura da reflexão ou Hombre, 2008), entre outros. Em português,
do juízo está cada vez mais ausente inclusive citamos Memórias depois de Auschwitz (São
nas próprias universidades”, propõe Mate. “A Leopoldo: Nova Harmonia, 2005).
generalização da corrupção entre pessoas cul- Confira a entrevista.
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IHU On-Line – Se por um lado foi construída sobre vítimas, teremos atuais você identifica a banalidade
devemos lembrar Auschwitz do pon- de dizer que continuamos a construir do mal?
to de vista da categoria da memória, a história da mesma maneira, caso Reyes Mate – A banalidade do
por outro é preciso superar o trauma não recordarmos as injustiças pas- mal consiste em reconhecer a pro-
sofrido por todo o povo judeu. A par- sadas. Na medida em que a filosofia ximidade extrema entre o homem
tir da filosofia política, como é possí- política tem a ver com o conceito de normal e o criminoso. É fácil envol-
vel lidar com esse paradoxo? justiça, nessa mesma medida é preci- ver o cidadão normal em uma nuvem
Reyes Mate – É verdade que a so pensar anamneticamente a políti- ideológica que o leve a cometer atos
memória complica as coisas, já que ca. Sem memória da injustiça, não há criminosos. Vemos que o normal é
abre feridas. Mas a única maneira de política moral. “deixar-se levar”, ao passo que en-
superar esse passado doloroso é ten- frentar as situações criticamente exi-
do-o presente e não esquecê-lo. Se IHU On-Line – Além do Holo- ge um esforço reflexivo do qual nos
admitirmos, com Hegel, que a história causto, em que outras situações dispensamos constantemente. Essa

32 SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 | EDIÇÃO 438


cultura da reflexão ou do juízo está que é o que explica sua grandeza. Reyes Mate – Walter Benjamin3

Tema de Capa
cada vez mais ausente inclusive nas A naturalidade com que enfrenta a dizia que, “para os oprimidos, o esta-
próprias universidades. A generali- destruição da liberdade em proveito do de exceção é a norma”. E o campo
zação da corrupção entre pessoas de um ser mais resistente e mais exi- de concentração exemplifica bem o
cultas e formadas é uma boa prova toso tem muito a ver com a desfaça- que é o estado de exceção, isto é, a
da facilidade com que optamos pelo tez com que o hitlerismo colocou-se suspensão do direito, a experiência de
mal e convivemos com a melhor boa à liquidação de um povo, estimado que a essência da lei é a decisão in-
consciência com ele. Infelizmente, a inferior, para salvaguardar a pure- condicional do soberano. O que esta-
tese da banalidade do mal se com- za da raça superior. A tecnociência mos vendo na Europa, nestes anos de
prova constantemente. está em poder daqueles que Gün- grave crise econômica, é que a solu-
ther Anders2 chama de “vergonha ção que se está propondo é um mode-
IHU On-Line – Em outra entre- de Prometeu”, ou seja, pelo comple- lo de sociedade no qual o legal é o que
vista à nossa publicação, o senhor xo de inferioridade do ser humano convém ao capital financeiro. Não há
afirmou que a memória é ambígua, e que dá maior importância ao que o respeito aos direitos adquiridos, nem
pode levar ao ressentimento1. A par- sujeito humano faz do que ao que a promessas solenes. O único critério
tir dessa constatação, como se pode ele é. Vergonha por não estar à al- com peso e que fatalmente se impõe
compreender os mecanismos do res- tura de seus produtos (que são mais é o interesse dos poderosos. Esta crise
sentimento e da vingança em respos- confiáveis, mais resistentes, melhor colocou às claras os limites do refor-
ta à banalidade do mal? programados...). mismo. Estamos convocados a pensar
Reyes Mate – É verdade que a de maneira alternativa.
memória pode ser utilizada para re- IHU On-Line – Em que sentido a
formar o dano (ressentimento) ou razão moderna, e, em última instân- IHU On-Line – Como foi possível
para combatê-lo. A memória eman- cia, o hiper-racionalismo que caracte- para Hannah Arendt escrever Eich-
cipadora é a do sofrimento, mas não riza nosso tempo, tem relação com a mann em Jerusalém e se “distanciar”
a do sofrimento próprio, e sim a me- irrupção dos totalitarismos? de sua origem judaico-alemã no sen-
mória do sofrimento alheio. Quando Reyes Mate – Hannah Arendt tido de não se colocar como uma das
um povo se apropria do sofrimento de examinou detidamente a origem do vítimas?
seus pais ou avós como algo próprio, totalitarismo. Uma de suas causas Reyes Mate – Apesar das críticas
corre o perigo do vitimismo, de ins- é o ideal ilustrado de igualdade que de que foi objeto, é um livro indis-
trumentalizar a dor alheia em função, não deixa lugar para o conceito de pensável. Suas críticas ao processo,
por exemplo, dos ideais nacionalistas pluralidade (que é simultaneamente à legitimação do tribunal ou ao papel
dos netos. A memória do sofrimento igualdade e diferenciação). O difícil dos conselhos judaicos são de peso e
não existe para endossar teorias polí- lugar da diferença na cultura moder- é preciso levá-las a sério. Penso que
ticas presentes, mas para propor uma na explica o antissemitismo moderno fez bem em não “colocar-se no lugar
política que não se baseie sobre o so- e, por conseguinte, propicia formas das vítimas”, porque ninguém deveria
frimento de ninguém. Repito, a me- excludentes em todas as esferas da fazê-lo. Uma coisa é deixar-se interpe-
mória que salva não é a dos próprios vida. O que quero dizer é que o tota- lar pela vítima e outra é identificar-se
sofrimentos, mas a dos sofrimentos litarismo está ligado, evidentemente, com a vítima, que é o que habitual-
do próximo. ao hiper-racionalismo da razão instru- mente fazemos. Mais produtivo é
mental, mas também a outras formas colocar-se do lado do verdugo e nos
IHU On-Line – Qual é o papel da de racionalismo “mais nobres” (como perguntar o que teríamos feito em
técnica na disseminação da banalida- chamamos a “razão ilustrada”) para as seu lugar, que responsabilidades ad-
de do mal em nosso tempo? quais, no entanto, a verdade pode ser quirimos, etc. A vítima não quer que
Reyes Mate – Se pensamos, por pensada fazendo abstração do tempo se lhe dê razão, mas que se faça jus-
exemplo, nos programas da biologia e do espaço. tiça. Creio que Arendt entendeu bem
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sintética que já postulam a possibi- tudo isso.
lidade de substituir o homem que IHU On-Line – Em 2005 o senhor
conhecemos por máquinas superio- afirmou que o campo de concentra- IHU On-Line – Qual é a impor-
res que ultrapassam os limites do ção está se convertendo no símbolo tância da distinção que a pensado-
ser humano, encontramo-nos com da política moderna. Que lições polí- ra faz ao afirmar que, antes de ser
uma banalização da perda, referida ticas e filosóficas brotam dessa legiti-
ao valor da liberdade ou à importân- mação da barbárie?
cia do tempo finito, que nos deveria 3 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo
alemão. Foi refugiado judeu e, diante da
dar o que pensar. Podemos chamar 2 Günther Anders (1902-1992): pseudô- perspectiva de ser capturado pelos nazis-
banalização o desprezo desses cien- nimo de Günther Stern. Foi um jornalis- tas, preferiu o suicídio. Um dos principais
tistas pelos limites do ser humano, ta, filósofo e ensaísta alemão de origem pensadores da Escola de Frankfurt. Sobre
judaica. Doutorou-se em filosofia, em Benjamin, confira a entrevista Walter
1923, sob a orientação de Edmund Hus- Benjamin e o império do instante, conce-
1 A memória como antídoto à repeti- serl, tendo sido aluno de Heidegger e dida pelo filósofo espanhol José Antonio
ção da barbárie. Entrevista com Reyes Cassirer. Foi colega de Hannah Arendt, Zamora à IHU On-Line nº 313, disponível
Mate na edição 291 da IHU On-Line, em com quem foi casado entre 1929 e 1936. em http://bit.ly/zamora313. (Nota da
http://bit.ly/reysmate1. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 33


um crime contra o povo judeu, o podemos entender a conquista civili- em Deutsches Requiem6, não se mata
Tema de Capa
Holocausto era um crime contra a zatória do homo sapiens, a saber, todo impunemente: a primeira vítima é a
humanidade? esse patrimônio de virtudes e conhe- humanidade do algoz. De Auschwitz
Reyes Mate – Kafka4 dizia que, cimentos com que fomos modelando saímos pobres em humanidade, e isso
“quando se ataca um judeu, abate-se o ser humano. Falar, então, de crime explicaria muitas coisas.
o ser humano”. Tenhamos em conta contra a humanidade é reconhecer
que a expressão “crime contra a hu-
manidade” tem dois sentidos, já que
que nos campos de concentração
morreu, boa parte desta humanidade Leia mais...
por “humanidade” podemos enten- morreu de fome. Como disse Borges5
der a integridade física da espécie. • A memória como antídoto à re-
Nesse caso, o genocídio, isto é, o ata- petição da barbárie. Entrevista
5 Jorge Luiz Borges (1899-1986): escri-
que a algum dos povos que compõem tor, poeta e ensaísta argentino, mundial- com Reyes Mate na edição 291
a espécie humana, é um crime contra mente conhecido por seus contos. Sua da IHU On-Line, em http://bit.ly/
obra se destaca por abordar temáticas reysmate1.
a humanidade, contra a integridade como filosofia (e seus desdobramentos
da espécie. Mas, por “humanidade” matemáticos), metafísica, mitologia e • Justiça, o dever da memória. Entre-
teologia, em narrativas fantásticas onde vista com Reyes Mate na edição 358
figuram os “delírios do racional” (Bioy da IHU On-Line, em http://bit.ly/
4 Franz Kafka (1883-1924): escritor Casares), expressos em labirintos lógicos
tcheco, de língua alemã. De suas obras, e jogos de espelhos. Ao mesmo tempo,
ihuon358.
destacamos: A metamorfose (1916), que Borges também abordou a cultura dos
narra o caso de um homem que acorda Pampas argentinos, em contos como O
transformado num gigantesco inseto, e morto, O homem da esquina rosada e O
O processo (1925), cujo enredo conta a sul. Sobre Borges, confira a edição 193 ponível para download em http://bit.ly/
história de um certo Josef K., julgado e da IHU On-Line, de 28-08-2006, intitula- ihuon193. (Nota da IHU On-Line)
condenado por um crime que ele mesmo da Jorge Luiz Borges. A virtude da iro- 6 Em O Aleph, São Paulo: Companhia das
ignora. (Nota da IHU On-Line) nia na sala de espera do mistério, dis- Letras, 2008. (Nota da IHU On-Line)

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34 SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 | EDIÇÃO 438


Teodiceia e Antropodiceia –

Tema de Capa
O mal na teologia depois de
Auschwitz
Para o teólogo Karl-Josef Kuschel, após o holocausto a crença na “boa criação”
e no “bom criador” está falida de uma vez por todas

Por Márcia Junges e Andriolli Costa / Tradução: Walter O. Schlupp

A teologia clássica sempre relativizou o


conceito de “Mal”, de forma que ele
não fosse encarado como o oposto, mas
como ausência do Bem. No entanto, após a ex-
periência do Holocausto, a visão de um Deus
na atualidade, muitas vezes se apresenta por
detrás da máscara de ‘cidadão de bem’”, con-
clui o teólogo, em diálogo direto com a “bus-
ca por justiça” que percebemos na sociedade
brasileira.
pai bondoso e que sempre olha pelos seus Karl-Josef Kuschel leciona Teologia da Cultu-
filhos perdeu força, dando lugar a questiona- ra e do Diálogo Inter-religioso na Faculdade de
mentos sobre a relação do homem com o divi- Teologia Católica da Universidade de Tübingen.
no. Assim, na chamada teologia depois de Aus- É autor, entre outros, de Jesus im Spiegel der
chwitz, “a crença na ‘boa criação’ e no ‘bom Weltliteratur. Eine Jahrhundertbilanz in Texten
criador’ está falida de uma vez por todas. As und Einführungen [Imagens de Jesus na literatu-
perguntas a Deus e aos seres humanos ficaram ra mundial. Textos e informações introdutórias
mais contundentes, insistentes, eivadas de dú- para um século em perspectiva] (Düsseldorf,
vida”, esclarece o teólogo Karl-Josef Kuschel. 1999) e Jud, Christ und Muselmann vereinigt?
Retoma-se, assim, uma antiga discussão Lessings “Nathan der Weise” (Judeu, cristão e
que no estudo religioso recebe o nome de teo- mulçumano unidos? “Natã, o sábio”, de Lessing)
diceia: “como pode o bom Deus Criador permi- (Düsseldorf, 2004).
tir o mal?”. Da mesma forma, Kuschel destaca Os textos de Kuschel já foram publicados
uma antropodiceia: “Como as boas criaturas de pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU em al-
Deus podem perpetrar crimes como esses?”. gumas oportunidades. A primeira, no Cadernos
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On- Teologia Pública nº 21, traz o tema Bento XVI e
Line, o teólogo explora o lugar do mal na teo- Hans Küng: contexto e perspectivas do encon-
logia e em como este conceito vai se transfor- tro em Castel Gandolfo. Já na edição nº 28, a
mando. Kuschel perpassa pela banalidade do discussão é Fundamentação atual dos direitos
mal, de Hannah Arendt, e alerta que o mal con- humanos entre judeus, cristãos e muçulmanos:
tinua aparecendo em nossa época “sob formas análises comparativas entre as religiões e pro-
que, ou não percebemos, ou não queremos blemas. Já na edição nº 49, o tema foi Os re-
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perceber”. latos do Natal no Alcorão (Sura 19, 1 - 38; 3,
Guerras, massacres e atentados fazem o 35 - 49) Possibilidades e limites de um diálogo
mal irromper a qualquer momento. No entan- entre cristãos e muçulmanos. Por fim, no nº 61,
to, a maldade velada é talvez a que mereça ain- Kuschel traz o artigo Narrar Deus: meu caminho
da mais atenção. “O horror, portanto, é que ‘o como teólogo com a literatura. Os links para es-
mal’ nem sempre é reconhecível como tal, nem sas publicações estão no final desta entrevista.
sempre apresenta a careta do diabo e, em ple- Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é o mal se- princípio oposto ao bom Deus Cria- 430): bispo, escritor, teólogo, filósofo,
gundo a teologia? dor. Sob a influência do grande mes- foi uma das figuras mais importantes no
Karl-Josef Kuschel – A teologia tre latino Agostinho1, dizia-se: “o mal” desenvolvimento do cristianismo no Oci-
dente. Ele foi influenciado pelo neopla-
clássica relativizou bastante o “mal”, tonismo de Plotino e criou o conceito de
a fim de evitar que se tornasse um 1 Santo Agostinho [Aurélio Agostinho] (354- pecado original e guerra justa. Confira

EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 35


não tem substância própria, é apenas e Emil Fackenheim7, e retomada por as experiências do mal. Continuam
Tema de Capa
“privatio boni”, “carência do bem”. teólogos cristãos como Dorothee utilizando as antigas respostas, como
De acordo com nossas experiências Sölle8, no lado protestante, e Johann se essa realidade nada tivesse a ver
históricas no século XX (Verdun2, Aus- Baptist Metz9, no lado católico, para com eles ou elas.
chwitz3, Tuzla4, 11 de setembro5, etc.), citar apenas alguns representantes A mesma coisa vale para teólo-
o mal tem se revelado numa radica- dos países de língua alemã. Essa te- gos islâmicos. Praticamente não existe
lidade que levou ao questionamento ologia quer dar a entender que, “de- um tratamento radical da questão da
radical da imagem tradicional de Deus pois de Auschwitz”, a teologia e a an- teodiceia, a qual também é uma ques-
e do ser humano. tropologia não podem simplesmente tão da antropodiceia. O personagem
continuar como antes. A crença na Jó também aparece no Alcorão, po-
IHU On-Line – Na teologia, os “boa criação” e no “bom criador” está rém não como quem se rebela contra
campos de concentração desperta- falida de uma vez por todas. As per- Deus, mas apenas como pessoa que
ram quais abordagens da discussão guntas a Deus e aos seres humanos paciente e piedosamente vai aguen-
sobre o mal? ficaram mais contundentes, insisten- tando. Já na literatura maior a coisa é
Karl-Josef Kuschel – Há, desde os tes, eivadas de dúvida. Em linguagem diferente. Aí os autores teuto-judaicos
anos 1970, uma “teologia depois de teológica, voltou à tona a questão da como Nelly Sachs10, Paul Celan11 e Elie
Auschwitz”. Foi desenvolvida por teólo- teodiceia: como pode o bom Deus Wiesel12, ganhador do Prêmio Nobel
gos judeus, como Richard Rubenstein6 Criador permitir o mal? E também da Paz, assim como o ganhador do
eclodiu a questão da antropodiceia: Prêmio Nobel de Literatura Imre Ker-
como é que as boas criaturas de Deus tész13, húngaro de origem judaica,
a entrevista concedida por Luiz Astorga
à edição 421 da IHU On-Line, de 04-06-
podem perpetrar crimes como esses? apresentam exemplos impressionan-
2013, intitulada A disputatio de Santo tes de como lidar com aquilo que é
Tomás de Aquino: uma síntese dupla, dis- IHU On-Line – Como as religiões radicalmente mau, da forma como se
ponível em http://bit.ly/ihuon421. (Nota
da IHU On-Line)
e a literatura em geral, em face do evidenciou no Holocausto.
2 Batalha de Verdun: conflito entre as Holocausto, processaram a questão
tropas francesas e alemãs ao norte da do mal e do sentido da vida? IHU On-Line – Arendt levantou o
cidade de Versun-sur-Meuse, é uma das
principais batalhas da Primeira Guerra
Karl-Josef Kuschel – Não posso conceito de banalidade do mal. Quão
Mundial. Estima-se que houve, entre os falar em nome “das religiões”. Eu con- atual é esse conceito? Até que ponto
dois lados, 750 mil baixas em 299 dias. sigo visualizar principalmente as reli- se refletem aí os eventos da Segun-
3 Auschwitz-Birkenau: nome de um grupo
de campos de concentração localizados
giões monoteístas, proféticas, que são da Guerra Mundial e do Holocausto,
no sul da Polônia, símbolos do Holocaus- Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. e também a reação dos Aliados, sob
to perpetrado pelo nazismo. A partir de Em termos de percepção do proble- outras circunstâncias?
1940 o governo alemão comandado por
Hitler construiu vários campos de concen-
ma, que são as experiências do mal, Karl-Josef Kuschel – A questão
tração e um campo de extermínio nesta existem assimetrias entre as religiões da “banalidade do mal” continua rele-
área, então na Polônia ocupada. Houve e no seio das próprias religiões. Nem vante para fins de diagnóstico. Mas é
três campos principais e 39 campos auxi-
liares. Como todos os outros campos de
todos os teólogos e teólogas judeus e preciso evitar que seja mal-entendido:
concentração, os campos de Auschwitz cristãos se sentem desafiados a tratar Hannah Arendt o utilizou ao acompa-
eram dirigidos pela SS comandada por nhar, em Jerusalém, o processo con-
Heinrich Himmler. (Nota da IHU On-Line)
4 Massacre de Tuzla: refere-se ao ataque (Nota da IHU On-Line)
tra o antigo funcionário da SS, Adolf
do exército sérvio-bósnio (Exército da 7 Emil Fackenheim (1916-2003): reco- Eichmann, que organizou a “solução
Republika Srpska) que deixou 71 mortos nhecido filósofo judeu e ex-rabino. (Nota
e 240 feridos na cidade de Tuzla, na Bós- da IHU On-Line)
nia e Herzegovina. Todas as vítimas eram 8 Dorothee Sölle (2003): escritora alemã 10 Nelly Sachs (1891-1970): escritora
jovens, entre 18 e 25 anos. (Nota da IHU e teóloga da libertação. Sölle é criadora alemã de religião judaica, vencedora do
On-Line) do termo Cristofacismo, que seria causa- Nobel de literatura em 1966. (Nota da
5 11 de setembro de 2001: membros do do pela assunção de uma teologia auto- IHU On-Line)
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grupo islâmico Al-Qaeda sequestraram ritária e imperialista pelo cristianismo. 11 Paul Celan (1920-1970): poeta rome-
quatro aeronaves, fazendo duas colidi- (Nota da IHU On-Line) no radicado na França. Sobrevivente do
rem contra as duas torres do World Trade 9 Johann Baptist Metz (1928): teólogo Holocausto, foi um dos mais importantes
Center, em Manhattan, Nova Iorque, e católico alemão, professor de Teologia poetas modernos da língua alemã. (Nota
uma terceira contra o quartel general do Fundamental, professor emérito na Uni- da IHU On-Line)
departamento de defesa dos Estados Uni- versidade de Münster, Alemanha. Aluno 12 Elie Wiesel (1928): judeu nascido na
dos, o Pentágono, na Virgínia, próximo à de Karl Rahner, desfiliou-se da teologia Romênia. Foi sobrevivente dos campos de
capital dos Estados Unidos, Washington. transcendental de Rahner, em troca de concentração nazistas. Em 1986, ganhou
O quarto avião sequestrado foi intencio- uma teologia fundamentada na prática. o Prêmio Nobel da Paz, pelo conjunto de
nalmente derrubado em um campo pró- Metz está no centro de uma escola da sua obra, quase 40 livros, que resgatam
ximo a Shanksville, Pensilvânia, após os teologia política que influenciou forte- a memória do holocausto e defendem
passageiros enfrentarem os terroristas. mente a Teologia da Libertação. É um dos outros grupos vítimas de perseguições. É
Esse foi o primeiro ataque letal de uma teólogos alemães mais influentes no pós- professor de Direitos Humanos na Univer-
força estrangeira em território america- -Concílio Vaticano II. Seus pensamentos sidade de Boston (EUA). Entre seus livros
no desde a Guerra de 1812. O saldo de giram ao redor de atenção fundamental destacam-se A Noite (Ediouro, 2006, 120
mortos aproxima-se de 3 mil pessoas. ao sofrimento de outros. As chaves de sua p.) e Tempo dos Desenraizados (Record,
(Nota da IHU On-Line) teologia é memória, solidariedade e nar- 2004, 330 p.). (Nota da IHU On-Line)
6 Richard Lowell Rubenstein (1924): rativa. Dele publicamos uma entrevista 13 Imre Kertész (1929): escritor húngaro
pesquisador e escritor americano de ori- na 13ª edição, de 15-04-2002, disponível de religião judaica, vencedor do Nobel de
gem judaica, reconhecido por suas cola- em http://bit.ly/ihuon13. (Nota da IHU Literatura de 2002. É sobrevivente do Ho-
borações com a teologia do Holocausto. On-Line) locausto. (Nota da IHU On-Line)

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final da questão dos judeus” pelos bemos, ou não queremos perceber. imprescindível. O forte dela é ilustrar

Tema de Capa
nazistas. A intenção dela não era rela- Ditadores mundo afora mandam co- as situações individuais. Em seguida
tivizar a monstruosidade do holocaus- meter crimes clamorosos sob o manto vem o processo de interpretação. É
to. Banal, aqui, não é o mal que ali se do direito. A análise feita por Hannah aí que a teologia entra no “jogo”. Afi-
evidenciou. O que interessa é que “o Arendt continua plenamente válida. nal, desde os tempos de Jó a teologia
mal” nos é apresentado em persona- enfrenta a questão de duas faces:
gens relativamente medíocres, que IHU On-Line – A partir da contro- primeiro, como conciliar a existência
nesse sentido são “banais”: são meros vérsia acerca de Eichmann em Jeru- do mal com a fé numa Criação boa e
burocratas delinquentes, que continu- salém: um relato sobre a banalidade num Criador justo? Segundo, o que
am reclamando sua legitimidade com do mal, como analisa o rompimento há no ser humano que o capacita a
base na “ordem do Führer”, mesmo entre Hans Jonas15 e Hannah Arendt? sempre voltar a cometer crimes de
depois que [souberam que] milhões Karl-Josef Kuschel – Se estou lesa-humanidade?
de pessoas foram assassinadas. O bem informado, Hans Jonas, cuja mãe Assim sendo, tanto a literatu-
horror, portanto, é que “o mal” nem foi assassinada em Auschwitz, não ra quanto a teologia se empenham
sempre é reconhecível como tal, nem rompeu sua amizade com Hannah por respostas para a experiência do
sempre apresenta a careta do diabo e, Arendt por causa da interpretação “abismo Deus” e do “enigma pessoa
em plena atualidade, muitas vezes se que ela fez sobre Eichmann, mas por- humana”. Isso dá vida a ambas. O
apresenta por detrás da máscara de que, por ocasião do processo contra medo da teologia e da literatura não
“cidadão de bem”. Eichmann, ela – que, como Jonas, era é o de viver com respostas incomple-
de ascendência judaica e refugiada tas, e sim a insofismável indiferença
IHU On-Line – Em que medida a da Alemanha nazista em 1933 – cri- das pessoas que não se impressio-
Literatura desvela a pátina de civiliza- ticou as organizações judaicas e fun- nam com mais nada.
ção que recobre a política no Terceiro cionários judeus por terem oferecido
Mundo?
Karl-Josef Kuschel – Justamente
e organizado muito pouca “resistên-
cia”. Não tenho condições de avaliar Leia mais...
a experiência do Holocausto ou de se essa crítica dela é válida ou não.
• “A Fundação Ética Mundial está
outros crimes contra a humanidade Porém, no meio judaico, suscitou rea-
(mais de 100 mil mortes atualmen- ções indignadas que fizeram estreme- chegando na hora certa ao Brasil”.
te na Síria!) mostra a nós “pessoas cer algumas relações de amizade de Entrevista com Karl-Josef Kuschel na
esclarecidas”14 que nenhum padrão Hannah Arendt. Mas, justamente na edição 279 da revista IHU On-Line,
civilizado está garantido. A pátina qualidade de judia, ela acreditava ter em http://bit.ly/ihuon279.
da civilização é muito fina. “O mal” de apresentar a sua convicção. • O papel contemporâneo da religião.
pode irromper a qualquer momento. Entrevista com Karl-Josef Kuschel na
Por isso é preciso manter-se alerta. O IHU On-Line – Nesse sentido,
edição 302 da revista IHU On-Line,
combate ao mal e a defesa dos direi- qual é a importância do diálogo entre
tos humanos são uma luta inconclusa. Teologia e Literatura para se refletir em http://bit.ly/ihuon302.
Nada está garantido de uma vez por sobre o Mal? • Bento XVI e Hans Küng: contexto e
todas. Quem não reconhecer isso es- Karl-Josef Kuschel – A experi- perspectivas do encontro em Castel
tará enganando a si próprio. ência do mal é tratada pela teologia Gandolfo. Cadernos Teologia Públi-
e pela literatura a partir de perspec- ca nº 21, disponível em http://bit.
IHU On-Line – No Brasil e muitos tivas diferentes. O papel assumido
ly/ihuteo21.
outros países da América Latina, as pela literatura tem sido o de descre-
• Fundamentação atual dos direitos
ditaduras se valeram de técnicas de ver a realidade sem papas na língua,
tortura e perseguição. Que análise perceber a complexidade do mal nas humanos entre judeus, cristãos e
pode ser feita dessas situações a par- diversas formas em que se apresenta muçulmanos: análises comparativas
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tir do conceito de banalidade do mal, e evitar toda e qualquer abstração (6 entre as religiões e problemas Cader-
de Hannah Arendt? milhões de vítimas do holocausto, 3 nos Teologia Pública nº 28, disponí-
Karl-Josef Kuschel – Aquilo que mil mortos em 11 de setembro!) ao vel em http://bit.ly/ihuteo28.
um carniceiro como Eichmann per- apresentar as pessoas concretas em
• Os relatos do Natal no Alcorão (Sura
petrou com a maior frieza, repete-se sua sina. Nesse aspecto, a literatura é
de outra forma em outros países, in- 19, 1 – 38; 3, 35 – 49) Possibilida-
felizmente. Com isso não quero relati- 15 Hans Jonas (1902-1993): filósofo ale-
des e limites de um diálogo entre
vizar o crime cometido contra o povo mão, naturalizado norte-americano, um cristãos e muçulmanos. Cadernos
dos primeiros pensadores a refletir sobre
judeu, mas dizer apenas o seguinte: o as novas abordagens éticas do progresso Teologia Pública nº 49, disponível
mal continua aparecendo em nossa tecnocientífico. A sua obra principal inti- em http://bit.ly/ihuteo49.
época sob formas que, ou não perce- tula-se O princípio responsabilidade (Rio
• Narrar Deus: meu caminho como
de Janeiro: Contraponto, 2006). Confira
a edição 371 da Revista IHU On-Line, de teólogo com a literatura. Cadernos
14 Aufgeklärte: no original do entrevis- 29-08-2011, intitulada Tudo é possível?
tado, também significa pessoas informa- Uma ética para a civilização tecnológica, Teologia Pública nº 61, disponível
das segundo os padrões do Iluminismo, ou disponível em http://bit.ly/ihuon371. em http://bit.ly/ihuteo61.
Esclarecimento. (Nota do tradutor) (Nota da IHU On-Line)

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Humor como fuga da crueldade
Tema de Capa

no século XX
Em tempos de desencanto, ceticismo e egoísmo, o psicanalista Abrão
Slavutsky acredita que temos a oportunidade de construir novos sentidos
para nossa existência

Por Andriolli Costa e Márcia Junges

D
e acordo com Abrão Slavutzky, a psicaná- No caso judeu, Slavutzky resgata que o hu-
lise não tem um conceito para o mal. No mor estava presente mesmo durante os tem-
entanto, como algo inerente à condição pos terríveis do holocausto. Segundo ele, os
humana, é possível compreender a maldade a prisioneiros eram obrigados a fazer suas neces-
partir das punções que ela gera sobre o indiví- sidades um do lado do outro, em uma grande
duo. “O mal não se faz só para o outro de forma mesa com buracos. Tal situação degradante era
sádica, mas a si mesmo de forma masoquista acompanhada por um único soldado nazista,
e melancólica”, esclarece. “Há em todo ser hu- que por sua tarefa de vigília recebeu o apelido
mano a ambivalência, como quando o amor e o de Senhor da merda. “Ora, essa história se es-
ódio são dirigidos à mesma pessoa. Logo, tanto palhou e divertiu muitos que se sentiram supe-
fazemos o bem ao outro como o mal”, afirma ele, riores ao soldado de merda. Pode parecer pou-
em entrevista por e-mail à IHU On-Line. co, mas para quem estava no inferno e podia
O mal fazia parte da centralidade do pensa- dar um meio sorriso já era muito”.
mento de Hannah Arendt, autora, entre outros, Abrão Slavutzky é psicanalista e médico
de Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre psiquiatra com formação em Buenos Aires.
a banalidade do mal (São Paulo: Companhia Graduou-se em medicina em 1971, na Fun-
das Letras, 1999). Eichmann era um burocrata dação Católica de Medicina do Rio Grande do
responsável pelo transporte dos judeus para os Sul. Desde 2001, é colaborador do jornal Zero
campos de concentração, mas defendia firme- Hora e de diversas revistas. Entre outros, é um
mente que nunca havia matado um único judeu dos autores e organizadores de Seria trágico...
– afinal, o que lá acontecia uma vez transporta- se não fosse cômico – humor e psicanálise (Rio
dos já não era de sua responsabilidade. A desu- de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005), Quem
manização do homem em favor da técnica fez pensas tu que eu sou? (São Leopoldo: Unisinos,
Arendt cunhar o conceito do mal “banal”, que 2009) e Psicanálise e cultura (Rio de Janeiro:
se diferencia de um mal tradicional, diabólico. Vozes, 1983). Alguns dos livros que organizou
A Shoah, como é conhecido o holocausto ju- são O Dever da Memória – O Levante do Gue-
deu, é um marco na historiografia mundial e ele- to de Varsóvia (Porto Alegre: AGE, 2003) e A
www.ihu.unisinos.br

vou a novos níveis a crueldade do ser humano. paixão de ser – depoimentos e ensaios sobre a
Este é o tema de estudo de Slavutzky, que sonda identidade judaica (Porto Alegre: Artes e Ofí-
os espaços do cruel no ser humano a partir do cios, 1998).
humor. “Creio que a crueldade deveria ser es- Slavutzky lança seu novo livro ainda em
tudada ao lado do humor, em especial o humor março, intitulado Humor é coisa séria (Porto
negro. Quem sabe não é uma forma de diminuir Alegre: Editora Arquipélago, 2014).
o peso de certo inferno que é a crueldade?”. Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é o mal palavra estudada desde a filosofia que o mal não se faz só para o ou-
para a psicanálise? através da moral e da metafísica. En- tro de forma sádica, mas a si mesmo
Abrão Slavutzky – A psicanáli- tretanto, para se pensar o mal desde de forma masoquista e melancólica.
se não tem um conceito para o mal, a psicanálise, é indispensável saber Além do mais, há em todo ser hu-

38 SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 | EDIÇÃO 438


mano a ambivalência, conflitos de
“Pode parecer tanto da sexualidade como da agres-

Tema de Capa
ambivalência, quando o amor e o sividade, e uma das expressões mais
ódio são dirigidos à mesma pessoa.
Logo, tanto fazemos o bem ao outro pouco, mas para criativas e saudáveis.
Óbvio que nós não somos só cru-
como o mal. Por outro lado, Freud1
conceitualizou o mal-estar em uma quem estava no éis sempre, mas na História sobra a
crueldade quando está em jogo o po-
obra-chave para o tema do mal, es-
pecialmente na modernidade. Em vá- inferno e podia der. Crueldade e poder andam juntos
tanto no mundo público como no pri-
rias passagens dessa obra escrita em
1929, O mal-estar na cultura (Porto dar um meio vado. Para exercer a crueldade é pre-
ciso poder sobre si, no caso da mor-
Alegre: L&PM, 2010), em sua matu-
ridade de pensador, ele escreveu fra- sorriso já era tificação, ou sobre outro expressando
um gozo agressivo. Esse é um tema
ses como: “a inclinação agressiva é
uma disposição pulsional autônoma, muito” central tanto nas relações interpes-
soais como na política e na História.
originária do ser humano”. Destaca Poder e crueldade estão associados
que, sob circunstâncias propícias, à paranoia, uma dimensão essencial
quando estão ausentes as forças aní- foi “A crueldade é humana”, e pensei da condição humana e das rivalida-
micas contrárias que inibem a agres- até se não era um título cruel. Ain- des fraternas. Recordo que o primeiro
são cruel, cai a máscara dos seres da é difícil suportar que a crueldade crime da Bíblia é quando Caim mata
humanos como bestas selvagens. O constitui a condição humana, por isso, Abel, por inveja, rivalidade diante do
próximo pode ser um objeto sexual, às vezes, se diz crueldade desumana. Todo-poderoso. Às vezes, penso que,
satisfazer nele sua agressão, explorar Antes de seguir, conto uma história se Ele tivesse aceitado a oferenda do
sua força de trabalho sem ressarci-lo, sobre a crueldade humana do livro “brabo” Caim, quem sabe a história
despojá-lo de seu patrimônio, humi- recém-citado O mal-estar na cultura. da humanidade tivesse sido outra.
lhá-lo, infligir-lhe dores, martirizá-lo Freud se refere a um escrito de Hein- Muitos pensadores, como Jac-
e assassiná-lo. Ressalta que tudo isso rich Heine2, a quem considerava um ques Derrida3 e Edgar Morin4, escre-
é possível graças à pulsão destrutiva, grande poeta, como realmente foi.
decorrente da pulsão da morte. Heine confessa: “Eu tenho as inten-
ções pacíficas. Meus desejos são: uma 3 Jacques Derrida (1930-2004): filóso-
fo francês, criador do método chamado
IHU On-Line – Qual é a rela- modesta cabana com o teto de palha, desconstrução. Seu trabalho é associado,
ção entre a crueldade e a condição mas com um bom leito, boa comida, com frequência, ao pós-estruturalismo e
ao pós-modernismo. Entre as principais
humana? leite e pão muito frescos; em frente à influências de Derrida encontram-se Sig-
Abrão Slavutzky – Um dos capí- janela, flores, e algumas formosas ár- mund Freud e Martin Heidegger. Entre
vores à minha porta; e se o bom Deus sua extensa produção, figuram os livros
tulos de Quem pensas tu que eu sou? Gramatologia (São Paulo: Perspectiva,
(São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009) quer me fazer mesmo sortudo, que 1973), A farmácia de Platão (São Paulo:
me dê a alegria de que destas árvores Iluminuras, 1994), O animal que logo sou
estejam dependurados seis ou sete de (São Paulo: UNESP, 2002), Papel-máquina
1 Sigmund Freud (1856-1939): neuro- (São Paulo: Estação Liberdade, 2004) e
logista e fundador da Psicanálise. Inte- meus inimigos. De todo o coração lhes Força de lei (São Paulo: WMF Martins Fon-
ressou-se, inicialmente, pela histeria e, perdoarei, mortos, todas as maldades tes, 2007). Dedicamos a Derrida a edito-
tendo como método a hipnose, estudava ria Memória da IHU On-Line edição 119,
pessoas que apresentavam esse quadro. que me fizeram. Sim: se deve perdo- de 18-10-2004, disponível para download
Mais tarde, interessado pelo inconscien- ar a seus inimigos, mas não antes que em http://bit.ly/ihuon119. (Nota da IHU
te e pelas pulsões, foi influenciado por estejam enforcados”. Freud cita mais On-Line)
Charcot e Leibniz, abandonando a hip- 4 Edgar Morin (1921): sociólogo francês,
nose em favor da associação livre. Estes de uma vez essa passagem em que autor da célebre obra O Método. Os seis www.ihu.unisinos.br
elementos tornaram-se bases da Psicaná- Heine, com uma fina ironia, brinca da livros da série foram tema do Ciclo de Es-
lise. Freud, além de ter sido um grande tudos sobre “O Método”, promovido pelo
cientista e escritor, realizou, assim como
nossa caridade através de uma goza- IHU em parceria com a Livraria Cultura
Darwin e Copérnico, uma revolução no ção. Começa suave, alegre, até que de Porto Alegre em 2004. Embora seja
âmbito humano: a ideia de que somos pode expressar ao final sua fantasia estudioso da complexidade crescente do
movidos pelo inconsciente. Freud, suas conhecimento científico e suas intera-
teorias e o tratamento com seus pacien- agressiva, cruel, comum nos seres ções com as questões humanas, sociais e
tes foram controversos na Viena do sé- humanos. O humor é uma expressão políticas, se recusa a ser enquadrado na
culo XIX, e continuam muito debatidos sociologia e prefere abarcar um campo
hoje. A edição 179 da IHU On-Line, de de conhecimentos mais vasto: filosofia,
08-05-2006, dedicou-lhe o tema de capa 2 Heinrich Heine [Christian Johann economia, política, ecologia e até biolo-
sob o título Sigmund Freud. Mestre da Heinrich Heine] (1797-1856): poeta ro- gia, pois, para ele, não há pensamento
suspeita, disponível para consulta no link mântico alemão, conhecido como “o úl- que corresponda à nova era planetária.
http://bit.ly/ihuon179. A edição 207, timo dos românticos”. Boa parte de sua Além de O Método, é autor de, entre ou-
de 04-12-2006, tem como tema de capa poesia lírica, especialmente a sua obra tros, A religação dos saberes. O desafio
Freud e a religião, disponível em http:// de juventude, foi musicada por vários do século XXI (Bertrand do Brasil, 2001).
bit.ly/ihuon207. A edição 16 dos Cader- compositores notáveis como Robert Schu- Confira a edição especial sobre esse pen-
nos IHU em formação tem como título mann, Franz Schubert, Felix Mendelsso- sador, intitulada Edgar Morin e o pensa-
Quer entender a modernidade? Freud hn, Brahms, Hugo Wolf, Richard Wagner mento complexo, de 10-09-2012, disponí-
explica, disponível em http://bit.ly/ e, já no século XX, por Hans Werner Hen- vel em http://bit.ly/ihuon402. (Nota da
ihuem16. (Nota da IHU On-Line) ze e Lord Berners. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 39


veram preocupados sobre a cruelda- ciou a agricultura, há mais ou menos mo de quase toda a população da
Tema de Capa
de nos últimos anos. Devemos sim doze mil anos. O arqueólogo Richard Europa, que cantavam felizes indo
nos ocupar daquela que pode ser a Leakey7, em O Povo do Lago – O ho- à guerra. Já a Segunda Guerra foi
maior ferida narcisista da humanida- mem, suas origens, natureza e futuro, quase uma continuação da primeira,
de, quem sabe não é o problema dos pergunta se de caçador a agricultor ajudada muito pela crise capitalista
problemas? A psicanálise esboçou houve um salto gigantesco positivo ou de 1929, pela ascensão do nazismo
várias respostas para se entender a um passo fatal. A agricultura trouxe liderado por Hitler diante da quase
crueldade através da pulsão de morte. um incrível aumento da agressivida- paralisia das potências como Ingla-
Sua visão do ser humano foi marcada, de, da luta pelo poder, da criação de terra e França. Tudo se somou em
certamente, pela Primeira Guerra novas armas com a fixação do homem termos de fatores históricos, sociais
Mundial (que está fazendo cem anos na terra. O paradoxo é que ao mesmo e econômicos para uma guerra que
em 2014), pois em 1920 Freud escre- tempo ocorreu um salto de criativida- começou em 1914 e terminou em
veu Mais além do princípio do prazer5, de, um salto no conhecimento huma- 1945, com um intervalo de uns vinte
quando introduz o conceito de pul- no, acompanhado de um incremento anos.
são de morte. Pulsão da qual pode se da destrutividade na busca da vitória
desdobrar em novos conceitos como sobre o outro, a outra tribo, a outra IHU On-Line – Qual é o lugar
pulsão de destruição e compulsão a civilização. do mal na racionalidade moderna, e
repetição. Lacan6 introduziu a expres- A guerra, como tudo, tem sua qual é a sua relação com a técnica e a
são “vontade de destruição” como um história, como tão bem escreveu, impessoalidade?
gozo poderoso. De qualquer forma, a entre outros, John Keegan8 em seu Abrão Slavutzky – Há cem anos,
pulsão de morte e a pulsão de vida de- livro  Uma história da guerra (São mais ou menos, houve escritores
vem ser pensadas desde suas quatro Paulo: Companhia de Bolso, 2006). como Franz Kafka10 que perceberam
características: Pressão, Alvo, Objeto Na sua leitura fica claro que a guerra o poder da burocracia, da Justiça, do
e Fonte. não é a continuação da política por poder, da modernidade, esmagan-
outros meios, como escreveu Clau- do o ser humano. Reler seus livros
IHU On-Line – Em que sentido o sewitz9 em Da guerra (São Paulo: como  A metamorfose (São Paulo:
mal se manifesta e se engendra em WMF Martins Fontes, 1996). A guer- Companhia das Letras, 1985) e O
contextos sociopolíticos e culturais, ra precede o Estado, a diplomacia, processo (São Paulo: Companhia de
sobretudo a partir do século XXI? em vários milênios. Ela é quase tão Bolso, 2011) gera espanto pela sua
Abrão Slavutzky – Antes de en- antiga como o homem, pois a guer- clarividência do futuro. Seus estu-
trar no século XXI, convém recuar ao ra atinge o coração humano, sua diosos chegam a afirmar que ele
tempo em que a crueldade se incre- alma, através do desejo de poder, pressentiu, em sua ficção, o terrí-
mentou de forma quase irreversível. do orgulho, da emoção suprema, da vel nazismo que estava por ocorrer.
Recuar aos tempos em que se ini- capacidade de matar. Para se enten- Nosso mundo ainda hoje pode se
der os últimos cem anos, é necessá- definir como kafkiano. Esse adjetivo
5 In: Obras psicológicas completas. Rio rio conhecer como a guerra evoluiu exprime, na visão de Milan Kunde-
de Janeiro: Imao, 1996. (Nota da IHU junto ao poder econômico na socie- ra11, um mundo que não passa de
On-Line)
6 Jacques Lacan (1901-1981): psica- dade. Na verdade, as duas guerras uma única e imensa instituição la-
nalista francês. Realizou uma releitura mundiais foram guerras anunciadas, biríntica, da qual os indivíduos não
do trabalho de Freud, mas acabou por desejadas mesmo. A Primeira Guer- podem escapar e a qual não podem
eliminar vários elementos deste autor
(descartando os impulsos sexuais e de ra, gerada por disputas de terras, compreender. A existência física do
agressividade, por exemplo). Para Lacan, de mercado, despertou o entusias- homem não passaria de uma som-
o inconsciente determina a consciência, bra e uma máquina de autoculpa.
mas este é apenas uma estrutura vazia
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e sem conteúdo. Confira a edição 267 da O que escapa a muitos estudiosos


revista IHU On-Line, de 04-08-2008, in- 7 Richard Leakey [Richard Erskine Fre- do autor de Cartas a meu pai (Porto
titulada A função do pai, hoje. Uma lei- re Leakey] (1944): político e paleontólo-
tura de Lacan, disponível em http://bit. go queniano, ganhou repercussão inter-
ly/ihuon267. Sobre Lacan, confira, ainda, nacional ao encontrar diversos fósseis hu-
as seguintes edições da revista IHU On- manos na África. (Nota da IHU On-Line) 10 Franz Kafka (1883-1924): escritor
-Line, produzidas tendo em vista o Co- 8 John Keegan (1934-2012): professor e tcheco, de língua alemã. De suas obras,
lóquio Internacional A ética da psicanálise: historiador britânico especialista em con- destacamos A metamorfose (1916), que
Lacan estaria justificado em dizer “não cedas flitos bélicos. (Nota da IHU On-Line) narra o caso de um homem que acorda
de teu desejo”? [ne cède pas sur ton désir]?, 9 Carl Phillip Gottfried (or Gottlieb) transformado num gigantesco inseto, e
realizado em 14 e 15 de agosto de 2009: von Clausewitz (1780-1831): soldado O processo (1925), cujo enredo conta a
edição 298, de 22-06-2009, intitulada De- e intelectual prussiano. Escreveu um história de um certo Josef K., julgado e
sejo e violência, disponível para downlo- livro que se tornou o mais influente tra- condenado por um crime que ele mesmo
ad em http://bit.ly/ihuon298, e edição balho da filosofia militar no mundo oci- ignora. (Nota da IHU On-Line)
303, de 10-08-2009, intitulada A ética da dental. Este livro, On War (no original 11 Milan Kundera (1929): autor tche-
psicanálise. Lacan estaria justificado em alemão, Vom Kriege), exerceu enorme co. Sua obra principal, “A Insustentável
dizer “não cedas de teu desejo”?, dispo- influência no pensamento militar e po- Leveza do Ser”, ganhou em 1988 uma
nível para download em http://bit.ly/ lítico durante e após o século XIX. (Nota adaptação para o cinema. (Nota da IHU
ihuon303. (Nota da IHU On-Line) do IHU On-Line) On-Line)

40 SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 | EDIÇÃO 438


Alegre: L&PM, 2004) é seu sentido
“Quem sabe não de judaica? Quais foram as principais

Tema de Capa
de humor, e isso Walter Benjamin12 ideias de Hannah Arendt que foram
salienta em uma carta a Gershom
Scholem13: “Cada vez mais me pare-
é uma forma de contestadas pelos judeus?
Abrão Slavutzky – Não há uma
ce que o elemento essencial em Ka-
fka era o humor”. Creio que a cruel-
diminuir o peso de só comunidade judaica, ao contrário,
há muitas. Uma primeira divisão se-
dade deveria ser estudada ao lado
do humor, em especial ao humor
certo inferno que ria a comunidade religiosa e a profa-
na; uma segunda seriam as grandes
negro. Quem sabe não é uma forma
de diminuir o peso de certo inferno
é a crueldade?” diferenças entre o judaísmo ortodo-
xo e o que não é; o mesmo entre os
que é a crueldade? não religiosos, pois há os que podem
questionar tanto o povo judeu como
IHU On-Line – Em que aspectos co, seja o que somos capazes de fazer Israel e os que só podem elogiar. Do
a Shoah é um dos eventos mais em- ao outro. Em outras palavras: somos pouco que sei da pergunta, Hannah
blemáticos para analisarmos o mal masoquistas e sádicos em proporções Arendt foi criticada por intelectuais,
que espreita dentro de cada um? diferentes, que se manifestam em si- pela forma como tratou os judeus no
Abrão Slavutzky – Em boa me- tuações propícias. seu livro. Fria, distante, em mais de
dida, a Shoah, o genocídio que sofreu Voltando à Shoah: o povo judeu trezentas páginas de livro não se per-
o povo judeu, foi uma surpresa para viveu dois mil anos sendo expulso de cebe sua compaixão. Crítica feroz aos
todos. Há fortes indícios de que a So- quase todos os lugares, e aprendeu líderes judeus, às vezes com razão,
lução Final, como o nazismo chamou a viver na incerteza. Já diante do na- desprezando o governo israeli, e uma
zismo esteve completamente desam- tolerância com Adolf Eichmann sur-
os campos de extermínio com suas
parado, não imaginou a que nível preendente. No final do livro, página
câmaras de gás, ocorre quando surge
poderia chegar a crueldade humana. 310, no pós-escrito, afirma que Eich-
a possibilidade de a Alemanha perder
Crueldade que se viu na própria polí- mann simplesmente nunca percebeu
a guerra. Foi quando começou o fra-
cia judaica dentro dos guetos e cam- o que estava fazendo. Assegura que
casso diante da União Soviética, na
pos de concentração. ele não sabia pensar, e portanto seu
batalha de Stalingrado14, entre outras.
Creio que a Shoah não desapare- mal era banal, Eichmann era superfi-
IHU On-Line – Quais são os im- cial. Sei que é uma ousadia escrever
cerá, ela permanecerá como um de-
pactos do mal na organização da so- que a grande Hannah foi banal na sua
safio para se pensar a loucura que faz
ciedade desde o século passado? reflexão, mas é o que penso, pois Ei-
parte da condição humana. Não te-
Abrão Slavutzky – Há muitos im- chmann esteve junto a onze grandes
mos o direito de seguir sendo ingênu-
pactos, como a loucura pelo lucro a líderes do nazismo na reunião de ja-
os sobre quem somos ou sobre quem
qualquer custo e o desprezo pelo ser neiro de 1942, em que foi decidida a
podemos chegar a ser em certas cir-
humano. Um empobrecimento espi- Solução Final, e era o responsável por
cunstâncias. Há em todo ser humano ritual expresso pelo esvaziamento da todo o transporte dos condenados à
um par complexo que se chama ma- fraternidade e da igualdade. Há um morte.
soquismo/sadismo. Ou seja: desfruta- crescimento do sentimento de de-
mos do mal, seja o que ocorre conos- samparo diante da violência, do vazio IHU On-Line – Em que medida o
de sentido, do aumento do consumo conceito de banalidade do mal aren-
12 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo
alemão. Foi refugiado judeu e, diante da das drogas. Vivemos tempos de de- dtiano ajuda na reflexão do mal como
perspectiva de ser capturado pelos nazis- sencanto. Cresceu o ceticismo, o ego- constitutivo da natureza humana?
tas, preferiu o suicídio. Um dos principais
pensadores da Escola de Frankfurt. Sobre
ísmo, a frustração dos ideais sociais Abrão Slavutzky – Conceito de www.ihu.unisinos.br
Benjamin, confira a entrevista Walter e um salve-se quem puder. Ou seja: banalidade do mal? Hannah Arendt
Benjamin e o império do instante, concedida salvem-se os mais fortes e poderosos nunca conceitualizou banalidade do
pelo filósofo espanhol José Antonio Za-
mora à IHU On-Line nº 313, disponível em e que se esqueçam os sem teto, sem mal, pelo que se sabe. O subtítulo
http://bit.ly/zamora313. (Nota da IHU comida, sem terra, sem saúde. Esta- de seu livro Eichmann em Jerusalém
On-Line)
13 Gershom Scholem (1897-1982): pes-
mos diante de grandes desafios sobre é “Um relato sobre a banalidade do
quisador da mística judaica, se estabele- o que podemos e devemos fazer. Por mal”. Foi esse subtítulo que deu ao
ceu no estudo da Cabala em Jerusalém. outro lado, temos a oportunidade de livro um espaço na mídia e nos de-
É autor de Die jüdische Mystik in ihren
Hauptströmungen (Frankfurt am Main: construir sentidos novos para nossa bates por ser Hannah Arendt uma
Suhrkamp, 2000) e Zur Kabbala und ihrer existência. pensadora de primeira linha. Sou fã
Symbolik (Frankfurt am Main: Suhrkamp dessa mulher pelo seu livro Origens
1998). (Nota da IHU On-Line)
14 Batalha de Stalingrado: operação mi- IHU On-Line – Qual foi a reper- do Totalitarismo, uma análise con-
litar conduzida pelos alemães e aliados cussão da publicação de Eichmann sistente do antissemitismo, do im-
contra as forças russas em 1942 pela pos-
se da cidade de Stalingrado, durante a II em Jerusalém (São Paulo: Companhia perialismo e do totalitarismo. Gosto
Guerra Mundial. (Nota da IHU On-Line) das Letras, 1999) junto à comunida- mais desse livro do que de A Condi-

EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 41


ção Humana, que também é bom, grafia estava em cima de sua mesa dentor, diferente sobre tudo que era
Tema de Capa
e de Homens em Tempos Sombrios. de trabalho até sua morte. Lembro o antissemitismo antes do nazismo.
Agora, em seu livro sobre Eichmann que o autor de Ser e Tempo foi rei- Por fim: a Shoah é mais complexa e
ela não foi a fundo sobre o nazismo, tor na universidade durante o início difícil de entender do que se imagina.
como foi Saul Friedlander15. Em seu do governo nazista, expulsando e Há um documentário feito por Alfred
premiado livro de História Alema- perseguindo professores judeus. E, Hitchcock em 1945 – Memórias dos
nha Nazista e os Judeus, escreveu de forma arrogante, se manteve em Campos -, feito na libertação dos ju-
sobre Arendt: “Hannah Arendt co- silêncio, pelo que se sabe, sobre esse deus de Auschwitz, Bergen-Belsen,
loca parte da responsabilidade pelo período negro da Alemanha. Buchenwald e Dachau. São cenas fil-
extermínio dos judeus da Europa madas por soldados britânicos e sovi-
diretamente sobre os ombros de vá- IHU On-Line – Arendt insistiu, éticos na hora mesma da libertação,
rios grupos de liderança judaica: os no epílogo do livro, em que seu rela- e hoje já está na internet. Entretanto,
Conselhos Judaicos, os Judenräte. to sobre o julgamento de Eichmann a Inglaterra decidiu não fazer público
Essa tese, em grande parte não com- não tratava de uma teoria sobre a o documentário, ele está no Museu
provada, faz dos judeus colaborado- natureza do mal. Em todo caso, como Imperial da Guerra, e só em 2015
res em sua própria destruição. Na podemos compreender esse conceito será restaurado, para os 70 anos da
verdade, toda a influência que as ví- dentro do contexto da Shoah? libertação da Europa. As cenas são
timas poderiam ter sobre o curso de Abrão Slavutzky – Se quem pro- assustadoras, e dizem que Hitchcock
sua própria vitimização era margi- põe que o mal pode ser banal não esteve por semanas muito mal, sem
nal, mas em algumas intervenções, explica, não justifica sua expressão poder trabalhar. Vi um documentá-
sem dúvida, ocorreram (para o bem banalidade do mal, como vamos rio  feito no gueto de Varsóvia pelos
e para o mal)”. inventar agora uma justificativa? nazistas e fiquei angustiado, não foi
Ela julgou Eichmann apenas Hannah Arendt, em minha opinião, fácil vê-lo todo. Vi para escrever no
vendo seu comportamento no jul- entendeu pouco do que ocorreu livro O dever da memória – O levante
gamento, o que me pareceu super- mesmo no nazismo. Muitas vezes, os do gueto de Varsóvia (Porto Alegre:
ficial. Eichmann representou ser um líderes nazistas afirmaram que ou a Editora Age, 2003).
simples funcionário, só um executor humanidade será nazista ou judaica.
de ordens. Argumento que todos os Acreditavam que os judeus estavam IHU On-Line – Em que medida
nazistas e os que trabalharam para por trás do comunismo e do capita- a Shoah e a peculiaridade que o mal
as ditaduras na repressão também lismo. Portanto, havia um só inimi- assumiu nesse episódio são emble-
dizem. Por que Hannah não seguiu go principal que eram os judeus. Na máticos para compreendermos a po-
a sugestão de seu grande amigo Karl sua carta de despedida, Hitler repe- lítica do nosso tempo?
Jaspers16 e conceitualizou a banalida- tiu seu ódio aos judeus. Friedlander, Abrão Slavutzky – Não sou um
de do mal? Mistério, como mistério na obra recém-citada, escreveu um estudioso da política, no máximo
sua relação de proteção ao seu ve- capítulo sobre o Antissemitismo Re- tento entender como nós, seres hu-
lho professor Heidegger17, cuja foto- manos, nos situamos diante do que
ocorre à nossa volta. Se fosse escolher
samento jurídico-político de Heidegger
15 Saul Friedlander (1932): Historiador e Carl Schmitt. A fascinação por noções
uma palavra para conversar sobre os
israelense, atualmente é professor da fundadoras do nazismo, disponível para dias atuais, quanto à política, proporia
Universidade da Califórnia – UCLA. (Nota download em http://bit.ly/ihuon139. o desamparo como o verdadeiro mal-
da IHU On-Line). Sobre Heidegger, confira as edições 185,
16 Karl Jaspers (1883-1969): filósofo de 19-06-2006, intitulada O século de estar na cultura, hoje. Além do que
existencialista alemão. Acreditava que Heidegger, disponível para download em sejamos sinceros: quem está mais
a filosofia não é um conjunto de doutri- http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 03-07- ou menos orientado hoje em termos
nas, mas uma atividade por meio da qual 2006, intitulada Ser e tempo. A descons-
www.ihu.unisinos.br

cada indivíduo pode se conscientizar da trução da metafísica, que pode ser aces- políticos? Estamos desenvolvendo
natureza de sua própria existência. Es- sado em http://bit.ly/ihuon187. Confi- a sabedoria da incerteza e a pensar
creveu vários livros, entre os quais Filo- ra, ainda, o nº 12 do Cadernos IHU Em
sofia (1932), O alcance perene da filoso- Formação, intitulado Martin Heidegger. labirinto.
fia (1948) e O caminho para a sabedoria A desconstrução da metafísica, que pode
(1949). Jaspers começou a ensinar Psi- ser acessado em http://bit.ly/ihuem12. IHU On-Line – Como podemos
quiatria na Universidade de Heidelberg Confira, também, a entrevista concedida
em 1913, tornando-se professor de Filo- por Ernildo Stein à edição 328 da revista compreender o paradoxo de o povo
sofia em 1921. Em 1948, passou a ensinar IHU On-Line, de 10-05-2010, disponível judeu ter sofrido as piores atrocida-
Filosofia na Universidade de Basileia, na em http://bit.ly/ihuon328, intitulada O
Suíça. (Nota da IHU On-Line) biologismo radical de Nietzsche não pode
des de que a humanidade tem notí-
17 Martin Heidegger (1889-1976): filóso- ser minimizado, na qual discute ideias de cia, de modo sistemático, e a postura
fo alemão. Sua obra máxima é O ser e o sua conferência A crítica de Heidegger ao beligerante assumida pelo Estado de
tempo (1927). A problemática heidegge- biologismo de Nietzsche e a questão da
riana é ampliada em Que é Metafísica? biopolítica, parte integrante do ciclo de Israel?
(1929), Cartas sobre o humanismo (1947), estudos Filosofias da diferença – pré-evento Abrão Slavutzky – Havia em Is-
Introdução à metafísica (1953). Sobre do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)go- rael um grande movimento pela paz,
Heidegger, a IHU On-Line publicou na edi- verno biopolítico da vida humana. (Nota da
ção 139, de 02-05-2005, o artigo O pen- IHU On-Line) o Shalom Achshav – Paz Agora -, que

42 SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 | EDIÇÃO 438


foi sendo esvaziado pelos atentados Cultura e Valor (Coimbra: Edições 70, IHU On-Line – Gostaria de acres-

Tema de Capa
terroristas. Foram realizadas em Tel 2000). O século XX foi o auge da cruel- centar mais alguma coisa?
Aviv manifestações de cem mil pesso- dade e do humor, a começar por Char- Abrão Slavutzky – Concluo com
as ou mais a favor da paz. E foi numa les Chaplin21, que transformou o cine- uma metáfora usada pelo escritor Ita-
delas que um fanático ortodoxo isra- ma em arte das multidões. O humor lo Calvino22 no final de seu livro Cida-
eli assassinou o primeiro-ministro da é um antídoto à crueldade, permite des invisíveis (São Paulo: Companhia
época, Ytzhak Rabin18. Sempre houve expressar nossa agressividade com das Letras, 1990): Se o inferno exis-
inimigos da paz tanto entre os israelis graça, o humor não atira para matar, te ele é aqui. E existem duas formas
como entre os palestinos e árabes. mas para sorrir e nos divertir. Voltan- de enfrentá-lo: uma é se adaptando
Quanto ao paradoxo que pro- do à Shoah, escrevi um capítulo sobre
põe a pergunta, talvez exista mes- a ele e não se diferenciando mais. A
o humor, pois os judeus criaram nos outra é mais difícil, pois se precisa
mo, pois, depois de os judeus terem guetos e campos um humor diante da
vivido tantas atrocidades, os israelis buscar no inferno o que não é inferno
crueldade.
tendem a confiar mais em suas for- e ampliar um pouco aqui e um pouco
Esse tema vem sendo mais es-
ças. Pelo outro lado, os palestinos, ali. O humor faz parte do não infer-
tudado nos últimos anos e dou um
suas lideranças demoraram a cons- no, ele é mais frágil que a crueldade
exemplo do humor diante da cruelda-
truir um estado e hoje estão bem quanto ao poder de destruição, mas
de: em Auschwitz, havia um pavilhão
divididas. De qualquer forma, israelis é mais espirituoso, enriquece nossa
com uma longa mesa estreita onde
e palestinos têm suas razões, ambos dignidade e nos fortalece na resis-
estão certos, ambos lutam pelos seus havia dezenas de buracos. Neles se
tência à crueldade. Nosso desafio
direitos, ambos se consideram os sentavam os judeus, de costas um
para o outro, um em cada buraco, talvez seja o de criar, na atualidade,
verdadeiros donos da terra. São vizi- espaços de não inferno e ampliá-los
nhos em clima de guerra constante, que tinham minutos para fazer suas
necessidades fisiológicas. Cena depri- aqui e ali sem perder o humor. Gosto
mas a situação já foi pior. J. B. Ponta-
mente que era controlada por um só do humor porque além de mostrar,
lis 19tem uma tese interessante sobre
soldado com metralhadora. Um judeu como a psicanálise, o outro lado de
o fratricídio que ocorre nessa região,
como na maioria das guerras. O tema inventou que ele era o Senhor Dreck, tudo, ele questiona, põe em dúvidas,
da luta entre os irmãos ocupou uma o senhor da merda, pois ali estava só obriga a pensar, a ousar pensar, diria
boa parte de sua atenção ao final da para cuidar da merda deles. Ora, essa o velho e bom Kant.
vida desse destacado psicanalista e história se espalhou e divertiu muitos
escritor, que morreu há um ano. que se sentiram superiores ao soldado
de merda. Pode parecer pouco, mas Leia mais...
IHU On-Line – Qual é o nexo en- para quem estava no inferno e podia
tre humor e crueldade no século XX? dar um meio sorriso já era muito. • O imperativo do perdão. Entrevis-
Abrão Slavutzky – Recentemen-
ta com Abrão Slavutzky publicada
te concluí o livro Humor é coisa sé- novos sistemas de lógica idealizados por
ria, que trata do humor, seja no sen- Bertrand Russel e Gottllob Frege. Quan- na edição 388 da IHU On-Line, em
do o Tractatus foi publicado, influenciou
tido de humor na psicanálise como do profundamente o Círculo de Viena e seu http://bi.ly/ihuon388.
humor na cultura, na História. Enfim o positivismo lógico (ou empirismo lógico).
Confira na edição 308 da IHU On-Line, de • Uma vacina contra o desespero. En-
humor não só como estado de espíri- 14-09-2009, a entrevista O silêncio e a
to, mas como visão de mundo numa experiência do inefável em Wittgenstein, trevista com Abrão Slavutzky publi-
célebre frase de Wittgenstein20 em com Luigi Perissinotto, disponível em
http://bit.ly/ihuon308. Leia, também, a cada na edição 367 da IHU On-Line,
entrevista A religiosidade mística em Wi-
www.ihu.unisinos.br
18 Ytzhak Rabin (1922-1995): General e ttgenstein, concedida por Paulo Margut- em http://bi.ly/ihuon367.
político israelense. Quinto primeiro-mi- ti, concedida à revista IHU On-Line 362,
nistro de Israel, foi assassinado em 1995. de 23-05-2011, disponível em http://bit. • O Holocausto e o dever da memó-
(Nota da IHU On-Line) ly/ihuon362. (Nota da IHU On-Line)
19 Jean-Bertrand Lefebvre Pontalis 21 Charles Chaplin (1889-1977): o mais ria. Entrevista com Abrão Slavutzky
(1924-2013): Psicanalista, filósofo e es- famoso ator dos primeiros momentos do
critor francês. (Nota da IHU On-Line) cinema hollywoodiano, e posteriormente publicada na edição 323 da IHU
20 Ludwig Wittgenstein (1889-1951): um notável diretor. No Brasil é também
filósofo austríaco, considerado um dos conhecido como Carlitos (equivalente a On-Line, em http://bi.ly/ihuon323.
maiores do século XX, tendo contribuído Charlie), nome de um dos seus persona-
com diversas inovações nos campos da gens mais conhecidos. Seu principal per-
lógica, filosofia da linguagem, episte- sonagem foi The Tramp (O Vagabundo),
mologia, entre outros. A maior parte de um andarilho com as maneiras refinadas
seus escritos foi publicada postumamen- e a dignidade de um cavalheiro. Chaplin 22 Italo Calvino (1939-1985): escritor
te, mas seu primeiro livro foi publicado foi uma das personalidades mais criativas cubano, radicado na Itália, autor de livros
em vida: Tractatus Logico-Philosophicus, da era do cinema mudo; ele atuou, diri- como As Cidades Invisíveis (São Paulo:
em 1921. Os primeiros trabalhos de Witt- giu, escreveu, produziu e eventualmente Companhia das Letras) e da trilogia Os
genstein foram marcados pelas ideias de financiou seus próprios filmes. (Nota da Nossos Antepassados. (Nota da IHU On-
Arthur Schopenhauer, assim como pelos IHU On-Line) Line)

EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 43


Baú da IHU On-Line
Tema de Capa

Confira outras edições da IHU On-Line cujo tema de capa aborda autores e temas ligados à
filosofia em paralelo com a biopolítica, a ética e a razão.

• A política desnudada. Cinco séculos de O Príncipe, de Maquiavel. Edição 427, de 16-09-2013, disponível em
http://bit.ly/ihuon427
• O bode expiatório. O desejo e a violência. Edição 393, de 21-05-2012, disponível em http://bit.ly/ihuon393
• Henrique Cláudio de Lima Vaz. Um sistema em resposta ao niilismo ético. Edição 374, de 26-09-2011, disponível em
http://bit.ly/ihuon374
• Biopolítica, estado de exceção e vida nua. Um debate. Edição 344, de 21-09-2010, disponível em http://bit.ly/ihuon344
• O (des)governo biopolítico da vida humana. Edição 343, de 13-09-2010, disponível em http://bit.ly/ihuon343
• O Mal, a vingança, a memória e o perdão. Edição 323, de 29-03-2010, disponível em http://bit.ly/ihuon323
• Platão, a totalidade em movimento. Edição 294, de 25-05-2009, disponível em http://bit.ly/ihuon294
• O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos? Edição 220, de 21-05-2007, disponível em http://bit.ly/
ihuon220
• O mundo moderno é o mundo sem política. Hannah Arendt. 1906-1975. Edição 206, de 27-11-2007, disponível em
http://bit.ly/ihuon206
• A política em tempos de niilismo ético. Edição 197, de 25-09-2006, disponível em http://bit.ly/ihuon197
• O século de Heidegger. Edição 185, de 19-06-2006, disponível em http://bit.ly/ihuon185
• Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três mulheres que marcaram o século XXI. Edição 168, de 12-12-2005,
disponível em http://bit.ly/ihuon168
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• Nietzsche, filósofo do martelo e do crepúsculo. Edição 127, de 13-12-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon127


• Kant: razão, liberdade e ética. Edição 94, de 22-03-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon94

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Destaques On-Line
Destaques da Semana

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line no período de 17-03-2014 a 21-03-2014,


disponíveis nas Entrevistas do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

Marco Civil da Internet: “O texto atual On-Line, ele salienta que o Direito tradicional
deve estar atento e sensível à complexidade e às
subverte tudo. Teremos uma espécie de demandas ambientais.
América Online – AOL”
Entrevista especial com João Carlos Caribé,
publicitário, pós-graduado em Mídias Digitais, As Marchas da Família com Deus pela
atua como consultor e ativista pelos direitos e Liberdade. 50 anos depois
inclusão digital.
Publicada no dia 17-03-2014 Entrevista especial com Aline Pressot, mestre
Acesse o link http://bit.ly/1kPHggk em História pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ.
De referência internacional como normativa
que define os princípios, direitos e deveres dos
Publicada no dia 19-03-2014
usuários da internet, o Projeto de Lei do Marco Acesse o link http://bit.ly/1fMmUPP
Civil, tal como está escrito atualmente, passou
a ser criticado inclusive pelos ativistas que A Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que
acompanharam a sua elaboração desde 2009. ocorreu no dia 19 de março de 1964, surgiu como
Entre eles, está João Carlos Caribé, que em uma reação ao discurso do ex-presidente João
entrevista à IHU On-Line foi enfático em relação Goulart, na Central do Brasil na semana anterior, e
aos pontos inegociáveis a partir da proposta “como uma espécie de pedido às Forças Armadas
original. “Neutralidade da rede não se negocia de por uma intervenção ‘salvadora das instituições’;
jeito nenhum, privacidade não se negocia de jeito posteriormente ao 31 de março de 1964, passou por
nenhum, e a liberdade também não se negocia de uma ressignificação de seu discurso, transformando-
jeito nenhum. Não abrimos mão desse tripé.” se numa demonstração de legitimação do golpe
civil-militar”, relembra Aline Pressot, em entrevista
concedida à IHU On-Line.

Direito Ambiental e a gestão de


desastres naturais Inclusão dos catadores na PNRS é
Entrevista especial com Délton Winter de dramática
Carvalho, doutor em Direito pela Unisinos e pós-
doutor em Direito Ambiental e dos Desastres Entrevista especial com Roque Spies é um dos
www.ihu.unisinos.br

pela Univeristy of California. fundadores da Reciclagem em Dois Irmãos. É


Publicada no dia 18-03-2014 integrante do Fórum dos Recicladores do Vale do
Acesse link http://bit.ly/1gFRXgp Rio dos Sinos.
Publicada no dia 20-03-2014
As catástrofes ambientais não são mais uma Acesse o link http://bit.ly/OHLhYS
preocupação apenas dos profissionais da área
ambiental. Os riscos e prejuízos ocasionados Apesar de quase todos os 32 municípios do Vale
pelos desastres naturais têm sido um tema do Rio dos Sinos terem desenvolvido os planos da
constante no setor jurídico, especialmente entre Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS para
os pesquisadores que atuam na área do Direito erradicar os lixões até agosto deste ano e dar um
de Desastres. Um dos entusiastas das discussões destino adequado ao lixo produzido, “na maioria
sobre o assunto, Délton de Carvalho, professor deles, a coleta seletiva tem pouco impacto sobre
do curso de Direito da Unisinos, assegura que o volume total de resíduos gerados e coletados”,
“um Direito Ambiental eficaz tem relação direta informa Roque Spies à IHU On-Line. Segundo ele, os
com a gestão dos desastres”. Em entrevista à IHU índices de coleta e reciclagem na região são muito

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baixos, menos de 5%, o que torna a inclusão dos Como proposta para enfrentar os dilemas

Destaques da Semana
catadores no processo de recolhimento e reciclagem socioambientais da Amazônia, os Parques
dos resíduos uma situação “dramática, porque existe Tecnológicos presentes em algumas universidades,
muita dificuldade para tratar da questão social como
como o da Universidade Federal da Amazônia
enfatiza a PNRS”.
– UFAM, desenvolvem projetos com os povos
tradicionais da região para promover a “inclusão
social dos segmentos em situação de risco social
Parques tecnológicos na Amazônia e e ambiental e de marginalização social, que antes
as experiências de desenvolvimento tinham sua condição de cidadãos negada e que
passam a obter o acesso a bens e serviços sociais”,
sustentável
diz a pesquisadora Maria do Perpétuo Socorro
Entrevista especial com Maria do Perpétuo Rodrigues Chaves à IHU On-Line. Tais projetos,
Socorro Rodrigues Chaves, docente da acentua, proporcionam a capacitação e formação dos
Universidade Federal do Amazonas. trabalhadores “com uso de tecnologias e inovações
Publicada no dia 21-03-2014 que aumentam a produtividade e geram emprego e
Acesse o link http://bit.ly/1iKEZmA renda”.

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EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 47


Estante
Destaques da Semana

Holocausto Brasileiro – Vida,


genocídio e 60 mil mortes no
maior hospício do Brasil
“Os funcionários alegavam não ter tido a dimensão da tragédia, que apenas seguiam
a cartilha dos antigos funcionários. Eles também acabaram se desumanizando com o
tempo”, reflete a jornalista Daniela Arbex

Por Andriolli Costa e Ricardo Machado

D
urante o regime militar da Alemanha na- das pela sociedade, pela família, que eram igno-
zista, estima-se que cerca de 6 milhões de radas pelos próprios funcionários e médicos que
judeus perderam suas vidas nos campos testemunharam tudo e nada fizeram.”
de concentração. Ainda que um holocausto de Holocausto Brasileiro é o título escolhido por
tamanhas proporções jamais tenha se repetido Daniela para registrar este período que, tal qual
na história do mundo, desde então, a barbárie, a Shoah, é um crime contra a humanidade e que
a crueldade e a desumanização encontraram eco nunca deve ser esquecido. Em entrevista por
em vários lugares do mundo. No Brasil, um dos e-mail à IHU On-Line, publicada em 17-01-2014,
mais emblemáticos é o caso do Hospital Colônia ela relata detalhes da crueldade cometida contra
de Barbacena (MG), que ficou conhecido como o os pacientes (que, logo ao chegar ao Hospital,
“holocausto brasileiro”. perdiam seu nome de batismo e passavam a ser
Fundado em 1903, no interior de Minas Ge- chamados por nomes de animais); destaca a ven-
rais, a história do Colônia ganhou espaço na mí- da de corpos e ossadas dos mortos sem consenti-
dia nos últimos anos a partir de uma série de
mento das famílias e a visão dos funcionários do
reportagens publicadas no jornal Tribuna de
Colônia, que não conseguiam ter a dimensão de
Minas em 2012 e que deu origem ao livro Ho-
seus atos e alegavam apenas seguir a cartilha das
locausto Brasileiro – Vida, Genocídio e 60 Mil
práticas anteriormente aplicadas.
Mortes no Maior Hospício do Brasil (São Paulo:
“Estas pessoas foram se desumanizando, fo-
Geração Editorial, 2013). Obrigados a andarem
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ram deixando de ver, e aquilo foi incorporado na


nus, a defecarem no chão em que dormiam e a
enterrar seus próprios mortos, os internos eram rotina delas. Como? É para parar, olhar para trás
enviados ao hospital literalmente para morrer. e refletir o quanto a indiferença provoca barbá-
De acordo com a jornalista Daniela Arbex, auto- rie”, alerta a jornalista. “A indiferença é você ig-
ra da publicação, a vida dos internos do Colônia norar o que se passa, é fingir que não vê. É essa
envolvia “um cotidiano de muita limitação, de indiferença que contribui para a existência de
frio, de fome, de maus tratos físicos e tortura barbáries como a do Colônia”, finaliza.
psicológica”. Daniela Arbex é jornalista graduada pela Uni-
Os pacientes, que muitas vezes eram interna- versidade Federal de Juiz de Fora. Atualmente
dos sem qualquer critério, eram os excluídos da é repórter especial do jornal Tribuna de Minas,
sociedade. Pessoas indesejáveis, oponentes po- veículo pelo qual foi vencedora por três vezes do
líticos, mendigos, prostitutas, homossexuais e, é Prêmio Esso de Jornalismo, o mais conceituado
claro, aqueles verdadeiramente doentes mentais, do país, além de diversos reconhecimentos na-
segregados da convivência diária para longe dos cionais e internacionais.
olhos da sociedade. “Pessoas que foram esqueci- Confira a entrevista.

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IHU On-Line – Desde que foi lan- conjunto de imagens feitas no interior Daniela Arbex – Era uma vida

Destaques da Semana
çado, Holocausto Brasileiro tem sido do hospital em 1961, fiquei comple- com muita ociosidade, com um coti-
muito bem recebido e conquistou tamente impactada. A minha geração diano de muita limitação, de frio, de
vários prêmios e reconhecimentos. A tinha o direito de conhecer essa his- fome, de maus tratos físicos, de tor-
reportagem que deu origem ao livro tória, e quando eu comecei a contá-la tura psicológica. Pessoas que foram
teve tanta repercussão assim? O que percebi que o país desconhecia uma mandadas para lá exatamente para
você acha que fez o livro ganhar tan- de suas piores tragédias. Isso é o que morrer. Que foram esquecidas pela
to público quanto ganhou? me mobilizou: a vontade de tornar co- sociedade, pela família, que eram ig-
Daniela Arbex – A reportagem nhecida essa história, para que todos noradas pelos próprios funcionários,
foi publicada em novembro de 2011 pudessem conhecê-la, não só agora, pelos médicos que testemunharam e
em uma série de sete matérias no jor- mas também no futuro. nada fizeram... Era uma realidade que
nal Tribuna de Minas (MG). Na épo- foi construída a partir da omissão de
ca já houve uma repercussão muito IHU On-Line – O que foi o Colô- muita gente, e uma omissão que per-
grande, a receptividade das pessoas nia? Como o livro Holocausto Brasi- durou por muitos anos. Entre 1930 e
foi enorme, o que inclusive me sur- leiro traz luz a esse escuro período da 1980 o Colônia viveu o seu pior pe-
preendeu bastante. O livro teve uma história do Brasil? ríodo, isto é, são 50 anos do período
repercussão muito ampliada em rela- Daniela Arbex – O Colônia foi um mais controverso dessa instituição e
ção à série do jornal, primeiro porque hospital criado pelo Estado em 1903 com o maior número de mortes.
a Tribuna é um jornal pequeno, do in- para atender pessoas que tivessem
terior, e que não tem tanta visibilida- doenças mentais. Eu acredito que ele IHU On-Line – O que era feito
de, mas o livro alcançou o país inteiro. tenha sido criado com boas intenções, com os corpos dessas pessoas?
Essa é uma resposta para o livro ter com o propósito de tratamento mes- Daniela Arbex – Na verdade os
tido um impacto ainda maior. mo, mas o Hospital teve sua finalida- corpos foram vendidos. Entre 1969
Mas eu acho especialmente que de desviada desde os seus primeiros e 1980 foram vendidos 1.853 corpos
tanto o livro quanto a reportagem to- anos. Nós conseguimos documen- para 17 faculdades de medicina do
cam o leitor porque é a primeira vez tos de 1911-1914 que já revelam a Brasil, e sem que as famílias tivessem
que as vítimas do Holocausto tiveram existência de superlotação, e outros autorizado. Então foi um comércio
voz. Essa é uma história que sempre documentos que mostram a falta de clandestino, um comércio fúnebre
foi contada pelo olhar dos jornalistas, critérios médicos para a internação de de corpos. E, quando essas faculda-
nunca pelo olhar dos sobreviventes. pessoas. Houve uma paciente de 23 des ficaram abarrotadas de cadáve-
Nunca houve a preocupação de ver anos, uma brasileira chamada Maria res, a ossada dessas pessoas, desses
como aquelas pessoas estavam, se de Jesus, que foi internada porque cadáveres, também começou a ser
havia alguém vivo, sabe? Então eu tinha tristeza como sintoma. Então comercializada.
penso que o diferencial do livro é dar percebemos que a finalidade de tra-
voz as vítimas. Fora que essa é uma tamento não foi alcançada. Na verda- IHU On-Line – Qual a relação do
história que toca em qualquer época, de, o Colônia acabou se tornando um regime político vigente à época com
porque é uma história que fala não só depósito de rejeitados, de excluídos, o tratamento dado aos pacientes? Os
das pessoas do Colônia, mas fala de de pessoas que incomodavam outras momentos finais do Colônia, em que
todos nós. Fala do humano que existe com mais poder. Toda a sorte de inde- ele esteve isolado da população, se
em nós, do nível de maldade e horror sejáveis teve o Colônia como destino. deu durante o governo militar.
a que nós podemos chegar, mas tam- Daniela Arbex – Há uma relação
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bém da possibilidade de solidarieda- IHU On-Line – É possível pen- forte, porque foi a época em que o
de. Ele mostra todas as contradições sar em um perfil para os internos do hospital ficou o maior período blinda-
humanas, por isso eu acho que ele é Colônia? do. Durante 18 anos nenhum repórter
tão forte. Por isso o livro teve tanta Daniela Arbex – Com certeza. entrou no Colônia, então penso que
repercussão. Mães solteiras, meninas que haviam há essa relação. Mas acredito também
perdido a virgindade antes do casa- que não é só o momento político. A
IHU On-Line – De onde veio a mento, homossexuais, prostitutas, história do Colônia foi construída em
motivação para escrever a obra? andarilhos, pessoas que tinham perdi- cima da teoria eugenista de limpeza
Daniela Arbex – O que me mo- do documentos, todo o tipo de gente social, de se livrar de tudo que inco-
veu a contar essa história foi exata- que teve a infelicidade de encontrar o modava a sociedade. O Colônia foi
mente não conhecê-la. Foi o fato de Colônia no seu caminho. uma forma de fazer isso acontecer,
descobrir que a minha geração não para que a sociedade pudesse ficar
sabia nada a respeito dela. Quando IHU On-Line – Como era a vida livre desse tipo de gente que incomo-
eu tive acesso, 50 anos depois, ao desses internos? dava tanto.

EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 49


O que sustentou esse modelo foi corpo de bombeiros da polícia militar ter tido a dimensão da tragédia, que
Destaques da Semana
exatamente essa cultura, que existe de Minas Gerais. É uma pessoa muito apenas seguiam a cartilha dos antigos
até hoje. Mesmo hoje em dia as pes- batalhadora, muito digna. Ele conse- funcionários e aprenderam que era
soas continuam fingindo não ver, ig- guiu reconstruir, refazer essa história, daquela forma que devia ser feito.
norando o sofrimento do outro. É só mas passou a maior parte da vida sem Eles também acabaram se desumani-
ver o caso dos grandes hospitais psi- saber que era órfão de uma mãe viva. zando com o tempo. Alguns tentaram
quiátricos, onde ainda há relatos de Ele não sabia que a mãe estava viva, e fazer alguma coisa (poucos na ver-
violação da dignidade humana. Esta a mãe também não sabia que o filho dade), mas eu acho que essa rotina
é uma realidade que persiste mais de vivia; os dois se encontraram mais de acabou desumanizando essas pessoas
100 anos depois. 40 anos depois. Então essa lacuna que de alguma forma. Elas não tinham a
foi deixada na vida dessas pessoas, dimensão exata da gravidade dos atos
IHU On-Line – Que importância que deixaram de conviver com seus e do que estava acontecendo ali. Ago-
a luta antimanicomial teve para dar pais, com suas mães, é uma coisa que ra, olhando para trás, muitos confi-
fim ao holocausto brasileiro? não se resgata. Apesar de essas pes- denciaram que se arrependem e que
Daniela Arbex – A luta antima- soas terem, de alguma forma, dado a podiam ter feito mais, que podiam ter
nicomial teve e tem seu lugar. Ela foi volta por cima, e elas são muito valo- evitado mortes, e isso para mim foi
fundamental para se começar a pen- rosas por isso, vai sempre haver uma surpreendente.
sar na extinção de um modelo que lacuna na vida delas.
segregava mesmo, modelos que vio- IHU On-Line – Foi uma escolha
lavam a dignidade, que confiscavam IHU On-Line – Quem eram os res- muito feliz o termo Holocausto Bra-
a humanidade do indivíduo. Ela tem ponsáveis/gestores do Colônia (Esta- sileiro, porque esse comportamento
um valor incrível para a história e do, Município, União)? Alguém foi dos funcionários lembra muito o que
para a humanização dos modelos de responsabilizado pelos maus-tratos? Hanna Arendt fala da banalidade do
atendimento. Daniela Arbex – Não, ainda não mal no próprio Holocausto.
Foi muito importante, no mo- teve uma responsabilização. Eu vejo Daniela Arbex – Exatamente. Eu
mento em que não se falava disso, muitas pessoas hoje cobrando uma tive pouquíssimas críticas em relação
que essas pessoas começassem a responsabilização, algumas críticas ao nome, mas uma pessoa colocou
gritar e fizessem a sociedade discutir que, inclusive, afirmam que o livro publicamente que achava que nada
sobre uma realidade tão ignorada. não dá nomes, mas eu não podia ser podia ser comparado ao nazismo. E
Ignorada e cômoda também. Porque injusta. Eu não podia citar um nome, o livro mostra exatamente o contrá-
enquanto o hospício permanece cer- sendo que essa foi uma barbárie co- rio, pode ser comparado sim, pois o
cado por muros, nós não precisamos metida durante cinco décadas. Du- Colônia foi também um campo de
saber o que está acontecendo ali. rante 50 anos passaram pelo hospital extermínio em massa. As condições
Acredito que teve um valor incrí- milhares de pessoas, funcionários, nas quais as pessoas foram mantidas,
vel, agora há um longo caminho a ser médicos e profissionais de toda sorte, a forma com que elas foram tratadas,
percorrido, o desafio é imenso. Ainda isso sem falar da própria população de as vítimas tendo que enterrar seus
não se venceu essa guerra e precisa- Barbacena (MG) e dos familiares dos próprios mortos, enfim, penso que se
mos fazer com que os serviços essen- pacientes espalhados pelo país intei- assemelha muito ao que aconteceu
ciais, terapêuticos, ou o serviço subs- ro. Eu acho muito difícil que haja uma na Alemanha nazista.
titutivo sejam capazes de substituir individualização dessa responsabilida-
esse modelo hospitalar ultrapassado. de. Para mim, o mais correto e talvez IHU On-Line – A banalidade do
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Então acho que a sociedade brasileira o caminho possível fosse a responsa- mal se caracteriza por um compor-
precisa cobrar a implantação da rede bilização do estado de Minas Gerais, tamento que segue a cartilha, segue
substitutiva e, mais do que isso, que que foi responsável pela manutenção a técnica, sem que haja nenhuma
ela funcione com qualidade. do Hospital, porque essas pessoas es- reflexão humana sobre o aconteci-
tavam sob a custódia do estado. mento. Como você vê isso no caso do
IHU On-Line – Por onde andam Colônia?
os “filhos do Colônia”? As crianças IHU On-Line – Você chegou a Daniela Arbex – Volto à ques-
que nasceram lá? conversar com funcionários? Como tão da construção da cultura da épo-
Daniela Arbex – Então, eu en- eles enxergavam o tratamento que ca. Aquelas pessoas não eram vistas
contrei duas. A filha da paciente Sue- era aplicado aos pacientes? como gente, porque elas nunca foram
li Rezende, que nasceu lá. Hoje ela é Daniela Arbex – Na verdade eles tratadas como gente. Ao contrário,
graduada e formou uma família. En- não enxergavam. Eu conversei com muitas não tinham nem nome de
contrei também o João Bosco, que muitos funcionários e a resposta era gente. Quando entravam no hospital
é bombeiro e membro da banda do sempre a mesma. Eles alegavam não eram rebatizadas e recebiam nomes

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de animais. Uma delas, por exemplo, seu convívio social. Outra é maltratar, para trás e refletir sobre o quanto a

Destaques da Semana
foi apelidada de gansa, outra de boi... deixar passar fome, passar frio, é você indiferença provoca barbárie. A indi-
Começava ali, ao não considerar essas violar a dignidade dessa pessoa de to- ferença é você ignorar o que se passa,
pessoas como gente. Passa também das as formas. Para mim, isso é grave, é fingir que não vê. É essa indiferença
pelo pensamento de achar que essas é crime de lesão à humanidade em que contribui para a existência de bar-
pessoas, por serem tidas como loucas, qualquer tempo. báries como a do Colônia.
não mereçam um tratamento digno, Quanto a essa banalização do
humanizado. Os psicofármacos tam- mal, eu entendo que as pessoas foram IHU On-Line – Você tem planos
bém foram introduzidos no país na se desumanizando, foram deixando para outras publicações?
década de 1950; então tem tudo isso. de ver, aquilo foi se incorporando na Daniela Arbex – Tenho. Estou ini-
Todo o estigma da loucura, toda rotina delas. “É assim mesmo, eu não ciando as entrevistas para um próxi-
a falta de recursos da época, todas consigo mudar e o que eu vou fazer?” mo livro que já está sendo preparado.
essas limitações levaram aos abusos Elas passaram a cometer os mesmos Não vai ser sobre esse tema, mas tam-
sistemáticos. Agora, eu entendo que equívocos de outras pessoas e, quan- bém trata de uma história encoberta
a segregação fazia parte da cultura da do se viu, isso durou quase um sécu- no país. É um livro que fala sobre o
época e faz parte da cultura de hoje, lo. Então se você pensar que a aber- funcionamento de instituições, de
mas o que eu nunca consigo entender tura dos porões da loucura começou acolhimento de forma irregular, mas
e jamais irei aceitar são os abusos que na década de 1980, você vai ver que não é sobre a loucura. Não especifica-
foram cometidos. Porque uma coisa é durante oito décadas isso foi admissí- mente, porque é sobre outras loucu-
você segregar, é tirar essa pessoa do vel. Como? Isso nos leva a parar, olhar ras que o ser humano faz e comete.

Acesse www.ihu.unisinos.br/entrevistas e confira diariamente importantes debates conjunturais

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EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 51


Teologia Pública
Destaques da Semana

A experiência de um Deus
único e multifacetado no
pós-colonialismo
O professor Emmanuel Lartey debate seu livro Postcolonializing God: New Perspectives
in Pastoral and Practical Theology a partir da perspectiva do pós-colonialismo

Márcia Junges e Luciano Gallas l Tradução: Isaque Gomes

A
ideia de um Jesus Cristo branco, de ouvi-las mais de perto. “As teologias do Ter-
olhos azuis e feições europeias é ni- ceiro Mundo, Negra e pós-modernas tentam
tidamente uma construção social. O abordar aspectos particulares da condição
exemplo anterior é, tão somente, ilustrativo, humana. O diálogo entre elas, creio eu, nos
mas nos ajuda a pensar na discussão proposta deu (e ainda nos dá) condições de obtermos
pelo professor de religião Emmanuel Lartey, imagens mais exatas e relevantes do que os
em seu livro Postcolonializing God: New Pers- seres humanos, criados à imagem de Deus,
pectives in Pastoral and Practical Theology estão vivenciando no mundo criado por ele.
(Norwich: SCM Press, 2013). “Um Deus ‘pós- O diálogo aqui nos tem ajudado a ver como,
colonizado’ não se pareceria somente com as às vezes, as ações de uma parte da humanida-
construções europeias de Deus que nós te- de têm efeitos prejudiciais em outras partes
mos, mas também com as do mundo todo”, desta mesma humanidade; como às vezes os
destaca Emmanuel Lartey, em entrevista por seres humanos bem-intencionados em uma
e-mail à IHU On-Line. “Os esforços pastorais parte do mundo podem oprimir e desumani-
e missionários, sejam católicos ou protestan- zar outros seres humanos”, avalia.
tes, trabalharam incansavelmente para pro- Emmanuel Lartey é professor de Religião
duzir cristãos ao redor do mundo que fossem na Emory’s Graduate Division e no Religious
cópias carbono dos cristãos europeus. Desse Life Program. Dedica-se ao cuidado pastoral,
modo, foram feitos cristãos para adorar uma aconselhamento e teologia em diferentes
construção europeia de Deus. A sabedoria contextos culturais, com especial referência
multifacetada de Deus refletida em sua ima- às expressões africanas, britânicas e ameri-
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gem presente na humanidade foi desfigurada canas. Atualmente, pesquisa as implicações


e estreitada a fim de fazer Deus refletir ape- teológicas e efeitos práticos do cuidado pas-
nas a humanidade europeia”, complementa. toral. A edição 431 da IHU On-Line, de 04-11-
Ampliar a compreensão e facilitar o enten- 2013 dedicou um tema de capa à discussão
dimento da fé em Deus é para Lartey um as- do pós-colonialismo. Você pode conferir as
pecto crucial do trabalho dos teólogos. Nesse entrevistas publicadas pelo link http://bit.ly/
sentido, ele sustenta que a Igreja precisa es- ihuon431.
tar mais integrada à experiência das pessoas, Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é um Deus [Deus pós-colonizante] é uma forma soas ao redor do mundo. Um Deus
pós-colonizado? de descrever o Divino (Deus) que re- “pós-colonizado” não se pareceria
Emmanuel Lartey – Em essên- flete as experiências de vida, história, somente com as construções euro-
cia, a expressão Postcolonializing God cultura, filosofias e opiniões das pes- peias de Deus que nós temos, mas

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também com as do mundo todo. Um
“Um Deus ‘pós- das as pessoas como sendo criadas à

Destaques da Semana
Deus assim seria descrito fazendo-se sua semelhança.
uso das línguas, das visões de mun-
do e experiências dos africanos, sul- colonizado’ não IHU On-Line – De que forma sua
americanos e asiáticos, bem como de
todas as outras pessoas do mundo. A se pareceria obra Postcolonializing God [Deus
pós-colonizante] oferece novos ca-
minhos para se pensar a presença
tarefa é um trabalho em curso – quiçá
interminável –, daí minha preferên- somente com divina na ação e implementação de
cia pelo tempo ativo “pós-colonizan- novos modelos de prática pastoral e
te”, em vez de um tempo finalizado as construções missionária?
(passado, completo), no caso, “Deus Emmanuel Lartey – A minha res-
pós-colonizado”. europeias de Deus posta à pergunta anterior também se
aplica aqui. Grande parte da histó-
IHU On-Line – Até que ponto vai que nós temos” ria cristã projetou a imagem de um
a perspectiva de um Deus pós-coloni- Deus “homogeneizante” que deseja
zado com base na realidade crítica? que todos os seres humanos sejam
Emmanuel Lartey – O projeto plos de teologias “pós-colonizantes” “o mesmo” (isto é, tal como a ima-
pós-colonizante é, de fato, um projeto que desafiam e subvertem as teolo- gem europeia). Os esforços pastorais
em curso e tem estado em operação gias estreitamente definidas como e missionários, sejam católicos ou
durante muitas décadas. Teologias “colonialistas”. As atividades do Deus protestantes, trabalharam incansavel-
da libertação1, teologias do “Tercei- pós-colonizante estão acontecendo a mente para produzir cristãos ao redor
ro Mundo” de todos os formatos e do mundo que fossem cópias carbono
cada dia nas práticas dos cristãos ao
tamanhos, teologias dalit, feminis- dos cristãos europeus. Desse modo,
redor do mundo.
tas, das mulheres, “mujeristas”, bem foram feitos cristãos para adorar uma
como as teologias queer2 são exem- construção europeia de Deus. A sabe-
IHU On-Line – Qual o lugar dos
doria multifacetada de Deus refletida
oprimidos ante um Deus pós-colo-
1 Teologia da Libertação: escola impor- em sua imagem presente na huma-
nizado? Como este Deus se coloca
tante na teologia da Igreja Católica, de- nidade foi desfigurada e estreitada
senvolvida depois do Concílio Vaticano II. diante da exploração do homem pelo
a fim de fazer Deus refletir apenas a
Surge na América Latina, a partir da op- homem? humanidade europeia. A tônica do
ção pelos pobres, e se espalha por todo o
mundo. O teólogo peruano Gustavo Guti- Emmanuel Lartey – Em meu li- Deus pós-colonizante é reconhecer
érrez é um dos primeiros que propõe esta vro, menciono que Deus (na Bíblia) que o Deus da Bíblia funciona para
teologia. A Teologia da Libertação tem teve a iniciativa nesta empreitada
um impacto decisivo em muitos países “pós-colonizar” (ou seja, desafiar as
do mundo. Sobre o tema confira a edição pós-colonizante. A Criação em si é construções humanas hegemônicas)
214 da IHU On-Line, de 02-04-2007, inti- uma expressão da ação divina de tra- o mundo e promover as muitas vozes
tulada Teologia da libertação, disponível
para download em http://bit.ly/bsMG96.
zer para a existência um mundo de na tarefa da teologia e nas práticas do
Leia, também, a edição 404 da revista diversidade e pluralidade. No livro de ministério.
IHU On-Line, de 05-10-2012, intitulada Gênesis, capítulo 11, Deus reafirma
Congresso Continental de Teologia. Con-
cílio Vaticano II e Teologia da Libertação este compromisso com a diversidade IHU On-Line – Considerando o
em debate, disponível em http://bit.ly/ e sua preferência por ela. O livro de legado político e teológico da desco-
SSYVTO. (Nota da IHU On-Line) Atos, capítulo 2, diz que a “nova hu-
2 Queer: gíria inglesa usada em referên-
lonização, qual a contribuição destas
cia a homossexuais. Está associada à te- manidade” gerada pela operação do áreas de conhecimento para a teo-
oria queer, desenvolvida nos anos 1980, Espírito Santo advinda do trabalho de logia e para uma relação mais pró-
nos Estados Unidos, a partir da publica-
ção do livro Gender Trouble, de Judith Jesus Cristo é uma comunidade plu- xima entre a instituição Igreja e as
pessoas?
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Butler. Possui um alto grau de influência ral e diversa. As pessoas oprimidas
do filósofo francês Michael Foucault e constituem peça central desta visão Emmanuel Lartey – As teolo-
suas ideias sobre a sexualidade. Sobre a
teoria queer, confira a edição nº 32 dos de uma nova humanidade. Deus se gias da libertação se debruçaram, de
Cadernos IHU Ideias, intitulada À meia opõe à “exploração do homem pelo modo correto, sobre teorias e estudos
luz: a emergência de uma teologia gay. políticos e sociológicos para iluminar
Seus dilemas e possibilidades, escrita
homem”, ponto crucial do projeto co-
por André Sidnei Musskopf, disponível em lonial e imperialista. Acredito que a a condição humana na formulação
http://bit.ly/1etDPIk. Musskofp também iniciativa pós-colonizante venha a ser de teologias relevantes e úteis, bem
apresentou o evento IHU Ideias em 11- como para inspirar o agir visando à
09-2008, debatido na entrevista Via(da) uma outra onda do Espírito Santo que
gens teológicas. Itinerários de uma te- reafirma a oposição de Deus para com “salvação” da humanidade (ou seja, a
ologia queer no Brasil – a entrevista a exploração e uma afirmação de to- realização mais completa da imagem
foi publicada no sítio do IHU em 07-09- de Deus na humanidade). As ciências
2008 e está disponível em http://bit.
ly/R24T9H. Ainda sobre o assunto, con- em http://bit.ly/1glo8Et. E a entrevista políticas e sociológicas, assim como
fira a entrevista Transgressão, implosão, Torcidas Queer e a homofobia nos está- outras ciências humanas, têm um pa-
mistura, desconstrução e reconstrução, dios de futebol, com Gustavo Andrada pel importante a desempenhar, que é
com Musskofp, publicada na edição 227 Bandeira, publicada no dia 02-05-2013
da IHU On-Line, de 09-07-2007, intitu- no sítio do IHU, disponível em http://bit. o de ajudar os teólogos a explorar e
lada Frida Kahlo – 1907-2007, disponível ly/10ufBEy. (Nota da IHU On-Line) analisar, de modo mais cuidadoso, a

EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 53


condição humana. Trata-se de um as-
“Os esforços Emmanuel Lartey – Eu sustenta-
Destaques da Semana
pecto crucial do trabalho dos teólogos ria que é a iniciativa divina de promo-
cuja disciplina requer que facilitemos
um entendimento da fé em Deus e da pastorais e ver a liberdade de consciência e de de-
safiar o dogma criado exclusivamente
relação entre Deus e a humanidade.
Se a Igreja como instituição deve estar missionários, por um grupo de seres humanos e im-
posto sobre os demais. Portanto, po-
mais integralmente relacionada com tencialmente, a fé na sabedoria multi-
as pessoas, então precisamos ouvir sejam católicos facetada e na grandeza infinita do Deus
mais de perto a experiência delas. As de toda a Criação pode ser fortalecida
ciências humanas podem nos ajudar ou protestantes, pela exploração das atividades de Deus
neste sentido. que pós-coloniza, bem como pelos tra-
trabalharam balhos daqueles que, em resposta ao
IHU On-Line – Qual a importân- Deus que pós-coloniza, também se en-
cia e os principais frutos do diálogo incansavelmente gajam em atividades pós-colonizantes.
entre as teologias do Terceiro Mun-
do, a Teologia Negra e as teologias para produzir IHU On-Line – Até que ponto po-
pós-modernas? de-se dizer que a racionalidade cris-
Emmanuel Lartey – As teolo-
gias do Terceiro Mundo, Negra e pós-
cristãos ao redor tã tem raízes na teologia judaica, na
filosofia grega e na política romana?
-modernas tentam abordar aspectos
particulares da condição humana. O
do mundo que Emmanuel Lartey – A raciona-
lidade cristã historicamente foi, de
diálogo entre elas, creio eu, nos deu
(e ainda nos dá) condições de obter-
fossem cópias fato, moldada pela teologia judaica,
pela filosofia grega e pela política ro-
mos imagens mais exatas e relevan-
tes do que os seres humanos, criados
carbono dos mana. O argumento que apresento é
o de que isto não precisa continuar a
à imagem de Deus, estão vivenciando
no mundo criado por ele. O diálogo
cristãos europeus” ser o caso. A racionalidade cristã pode
e precisa se desenvolver para além
aqui nos tem ajudado a ver como, às dos limites dos pensamentos e pers-
vezes, as ações de uma parte da hu- pectivas judaicos, gregos e romanos.
manidade têm efeitos prejudiciais em do Norte, Caribe, Europa e uma voz Sustento que transcender estes limi-
outras partes desta mesma humanida- emergente da América do Sul) se cen- tes seja um desejo expresso do Deus
de; como às vezes os seres humanos traram nas experiências dos africanos de toda a Criação. As atividades divi-
bem-intencionados em uma parte do (escravizados e livres) nos contextos nas registradas na Bíblia e na história
mundo podem oprimir e desumanizar diaspóricos. No capítulo 2 do livro do mundo apontam para um Deus
outros seres humanos. Além disso, Postcolonializing God, mostro como cuja ação parece estar direcionada à
esse tipo de diálogo pode evitar uma os africanos levados para longe de promoção da diversidade, e não da
espécie de discurso “totalizante” ou seus países de origem criativamente homogeneidade. Deus, me parece,
“absolutizante” que, infelizmente, tem empregaram – às vezes por meio da deseja que a conversa sobre ele e a
caracterizado as representações cristãs imitação, outras vezes por improvisa- experiência que se tem dele sejam
do passado. Na medida em que cada ção e ainda sob outras formas – o que empreendidas por toda a humanida-
um escuta o outro, podemos aprender eles tinham de sua herança africana e de, e não apenas por judeus, gregos e
algo a partir da vastidão da experiência o que eles estavam encontrando nos romanos. Então, isso é exatamente o
humana e captar alguns aspectos da novos ambientes para manifestar e, que o Deus pós-colonizante tenta fa-
sabedoria multiforme de Deus. ativamente, incorporar sua humani- zer, começando pela experiência afri-
cana no mundo.
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dade, seu sentido e fé através de ri-


IHU On-Line – A partir da expe- tuais. Uma atenção para os primeiros Para algumas pessoas que serão
riência da diáspora africana, qual a anos da experiência de escravidão e críticas quanto ao meu texto, a racio-
novidade introduzida pela Teologia para os desenvolvimentos dos mo- nalidade está intrinsecamente base-
Negra e como ela expressa a fé dos vimentos espirituais que não eram ada na teologia judaica, na filosofia
povos do continente? cristãos aponta para uma novidade grega e na política europeia. Para eles,
Emmanuel Lartey – A Teologia substancial, bem como para uma cria- a teologia cristã somente pode ser fei-
Negra articula as experiências dos tividade engajadora dos africanos na ta nestes termos. Esta tem sido a lógi-
negros no mundo. Busca explorar a diáspora. ca que desautoriza experiências genu-
fé dos negros e o que significou ser ínas do Deus Triuno, porque elas não
negro neste mundo para as pessoas IHU On-Line – Aquele que crê no estavam em condições de se adequar
que fazem parte da diáspora africana. Deus pós-colonizado tem sua fé for- às estruturas predeterminadas defini-
Enquanto a teologia africana buscou talecida, a ponto de que sua crença das dentro de um âmbito europeu. Eu
analisar como a experiência africana esteja mais baseada na liberdade de discordo. A meu ver, a racionalidade
de vida e fé se parece no continente consciência e menos nos dogmas reli- cristã precisa refletir a criatividade di-
africano, as teologias negras (América giosos estabelecidos por outros? vina em sua fonte e desígnio.

54 SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 | EDIÇÃO 438


Tema
de
Capa

Destaques
da Semana

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IHU em
Revista
EDIÇÃO 000 | SÃO LEOPOLDO, 00 DE 00 DE 0000 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000 55
Agenda de
IHU em Revista

Eventos Confira os eventos desta semana realizados pelo IHU.


A programação completa dos eventos pode ser conferida
no site do IHU (www.ihu.unisinos.br).

25-03-2014
Evento: I Congresso de Direito, Biotecnologia e Sociedades Tradicionais
Debatedores: Vários
Horário: Dias 25 e 26, das 9h às 21h45min
Local: Escola de Direito da Unisinos

Evento: Exibição do filme: Noite e Nevoeiro (Alain Resnais, França, 1955, 32 min)
Debatedor: Marcus Mello – Sala PF Gastal – Usina do Gasômetro/POA
Horário: 19h30min às 22h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU

26-03-2014
Evento: Exibição do Documentário Shoah (Claude Lanzmann, Documentário/Testemunhos, França,
1985, parte 2, 116min)
Horário: 16h às 18h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU

Evento: Neocontratualismo em Questão


Mesa Redonda: Contratualismo moderno
Debatedores: Carlos Adriano Ferraz – UFPel, Ricardo Monteagudo – UNESP
Coordenador: Inácio Helfer – Unisinos
Horário: 14h30min às 16h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU

Evento: IHU ideias – Da campanha da Legalidade ao Golpe de 64


Palestrante: Profa. Dra. Claudia Wasserman – IFCH-UFRGS
Horário: 19h30min às 22h
www.ihu.unisinos.br

Local: Auditório Central

Evento: Neocontratualismo em Questão


Mesa Redonda: O neocontratualismo em questão
Debatedores: Thadeu Weber – PUCRS, Evandro Barbosa – UFPel
Coordenador: Marcelo de Araújo – UERJ/UFRJ
Horário: 16h30min às 18h30min
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU

Evento: Conferência – Um Contrato Global? Propostas e Problemas


Debatedor: Sebastiano Maffettone – LUISS Guido Carli, Itália
Coordenador: Adriano Naves de Brito – Unisinos
Horário: 19h30min às 22h
Local: Sala Conecta, no Centro Comunitário da Unisinos

56 SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 | EDIÇÃO 438


27-03-2014

IHU em Revista
Evento: Exibição do Documentário Shoah (Claude Lanzmann, Documentário/Testemunhos, França,
1985, parte 4, 140 min)
Horário: 14h30min às 17h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU

Evento: Organização sindical e partidos políticos antes e pós–golpe de 1964 – IHU ideias
Debatedor: Prof. Dr. Jorge Luiz Ferreira – UFF (Depto. História)
Horário: 17h30min às 19h
Local: Auditório Central, Unisinos

Evento: Da democratização de 1945 ao golpe civil–militar de 1964


Debatedor: Prof. Dr. Jorge Luiz Ferreira – UFF (Depto. História)
Horário: 19h30min às 22h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU

31-03-2014
Evento: Audição comentada: O Golpe de 64 e a MPB
Debatedores: Prof. Frank Jorge – Unisinos
Horário: 19h30min às 22h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU

Acompanhe o IHU no Blog

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EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 57


Publicações em destaque
IHU em Revista

Cidadania e ética em discussão nos Cadernos IHU ideias


Nesta edição, apresentamos quatro edições dos Cadernos IHU ideias publicados recentemente. Mais informações
estão disponíveis no link http://bit.ly/ihuideia

Aspectos do direito de resistir e a luta social por moradia urbana


Cadernos IHU ideias publica, em sua 200ª edição, o texto Aspectos do direito de re-
sistir e a luta social por moradia urbana: a experiência da ocupação Raízes da Praia, de
autoria de Natália Martinuzzi Castilho, mestranda em Direito pela Unisinos e bacharel em
Direito pela Universidade Federal do Ceará. O trabalho corresponde a uma síntese da pes-
quisa realizada no ano de 2011, junto a um movimento social urbano da cidade de Fortale-
za-CE, o Movimento dos Conselhos Populares (MCP). Parte-se da problematização acerca
do fenômeno de resistência às ordens judiciais, frequente em conflitos sociais urbanos
envolvendo a luta pelo direito humano à moradia.

Desafios éticos, filosóficos e políticos


da biologia sintética
Em sua 201ª edição, Cadernos IHU ideias publica o texto
Desafios éticos, filosóficos e políticos da biologia sintética, de
Jordi Maiso, doutor em filosofia do Instituto de Filosofia do Consejo Superior de Investiga-
ciones Cientificas de Madrid. O presente texto aspira a uma reflexão crítica sobre o papel
das ciências humanas ante os avanços da bioengenharia emergente, sondando os desafios
éticos, filosóficos e políticos que a biologia sintética suscita. O objetivo é oferecer uma
panorâmica das problemáticas que emergem com esta nova realidade para tentar ver seu
possível impacto a médio e longo prazos.

Constituição Federal e Direitos Sociais: avanços e recuos da cidadania


A discussão sobre a Constituição Federal e Direitos Sociais: avanços e recuos da cida-
dania, de autoria de Maria da Glória Gohn, professora titular da Universidade Estadual de
Campinas – Unicamp, é o tema da 203ª edição dos Cadernos IHU ideias. A Constituição
Brasileira de 1988, ao completar 25 anos, oferece-nos um momento bastante oportuno
para se fazer um balanço e para avaliar esse período, e isto requer um olhar não apenas
para o texto concluído e seu desenrolar posterior, mas também para o processo que lhe
deu origem.
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Compreensão histórica do regime


empresarial-militar brasileiro
Na edição 205, em diálogo com a memória dos 50 anos do Golpe de 64, que instaurou
a ditadura no país, publica-se o artigo do professor emérito da Universidade de São Paulo,
Fábio Konder Comparato. O trabalho busca compreender como o regime político que se
instalou no país após o Golpe de 1964 fundou-se na aliança das Forças Armadas com os
latifundiários e os grandes empresários, nacionais e estrangeiros, e como esse consórcio
político engendrou duas experiências pioneiras na América Latina: o terrorismo de Estado
e o neoliberalismo capitalista.

58 SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 | EDIÇÃO 438


Retrovisor

IHU em Revista
Releia algumas das edições já publicadas da IHU On-Line

O bode expiatório. O desejo e a violência


Edição 393 – Ano XII – 21-05-2012
Disponível em http://bit.ly/ihuon393

A atualidade e a importância da obra de René Girard é o tema em discussão


na IHU On-Line de maio de 2012. O pensamento de Girard permite, sem dúvida,
pensar com acuidade e pertinência aspectos fundamentais da contemporaneidade.
Contribuem para o debate Dominique Janthial, James Alison, Stéphane Vinolo, Mi-
chael Kirwan, Gabriel Andrade, William Johnsen, Jean-Pierre Dupuy.

Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três mulheres que mar-
caram o século XX
Edição 168 – Ano V – 12-12-2008
Disponível em http://bit.ly/ihuon168

Esta edição recupera o importante e valoroso trabalho de três grandes pensa-


doras do século XX: Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Em comum, além
do fato de serem mulheres, todas eram judias, em um período em que ser judeu
transformava a vida em um destino. Leia ainda neste número entrevistas de Syl-
vie Courtine-Denamy, Emmanuel Gabellieri, Maria da Penha Villela-Petit, André de
Macedo Duarte e Eduardo Jardim.

Kant: Razão, Liberdade e Ética


Edição 93 – Ano IV – 22-03-2004
Disponível em http://bit.ly/ihuon93
www.ihu.unisinos.br
“O projeto Iluminista. 200 anos depois de Kant” foi o tema de capa desta edi-
ção. Na ocasião foi publicada uma reportagem da revista alemã Der Spiegel para
celebrar o bicentenário da morte de Immanuel Kant. A IHU On-Line foi uma das
poucas publicações que à época fez uma edição comemorativa sobre o tema no
Brasil. A revista ainda contou com as entrevistas de Manfredo de Oliveira, Guido de
Almeida, Ricardo Terra e Valério Rohden.

EDIÇÃO 438 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE MARÇO DE 2014 59


Contracapa
Cadernos IHU ideias
Compreensão histórica do regime
empresarial-militar brasileiro
Nesta edição da IHU On-Line, destacamos quatro Ca-
dernos IHU ideias publicados recentemente pelo Instituto
Humanitas Unisinos - IHU. Os assuntos abordados pelas
publicações cobrem as mais diversas temáticas de interes-
se, ainda que unidos pelos mesmos fios condutores: a ética,
o respeito à vida e o ser humano.
Os volumes selecionados tratam da luta social por mo-
radia, de limites éticos da biologia sintética, dos avanços e
limites constitucionais. Além disso, com a aproximação dos
50 anos do Golpe de 64, o Instituto Humanitas Unisinos inse-
re-se na discussão com o mais recente número dos Cader-
nos, que traz como tema A compreensão histórica do regime
empresarial-militar brasileiro.
Confira as publicações em destaque na página 58 desta
edição.

XV Simpósio Internacional IHU


Estão abertas as inscrições e cha-
mada de trabalhos para o XV Simpósio In-
ternacional IHU Alimento e Nutrição no con-
texto dos Objetivos do Desenvolvimento do
Milênio. Até 31-03-2014, o investimento fica
em R$ 60 para alunos e R$ 150 para pro-
fissionais. Após este período, os valores so-
bem para R$ 90 e R$ 180. Para submissão,
é preciso se inscrever até 05-04-2014. Mais
informações: http://bit.ly/IHUXVS.

Exibição e debate do filme


Noite e Neblina
(Alain Resnais, França, 1955, 32 min)
O Instituto Humanitas Unisinos - IHU exibe no dia
25-03-2014 o filme Noite e Neblina, de Alain Resnais (França,
1955, 32 min), a partir das 19h30, na Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros, no IHU. Logo após a exibição, o coordena-
dor de Cinema, Vídeo e Fotografia da Secretaria Municipal de
Cultura de Porto Alegre, Marcus Mello, debaterá a película.
Mais informações em http://bit.ly/PascoaIHU2014.
Realizado sob encomenda do Comitê da História da
Segunda Guerra Mundial, Noite e Neblina apresenta um per-
turbador registro dos locais onde até pouco tempo antes fun-
cionavam os campos de concentração nazistas. No filme, as
imagens do pós e da guerra são acompanhadas da narração
de um texto do poeta francês e sobrevivente Jean Cayrol.

twitter.com/ihu bit.ly/ihuon

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