Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Há muitos milénios que os homens vestigação mineralógica. Outro ainda entre os seus grãos e, por outro, a sua
vêm usando colorantes para foi o rápido progresso realizado na in- aderência aos objectos. Note-se que há
decorar objectos e habitações. vestigação em química inorgânica, de- materiais colorantes que são produzi-
Começaram por recorrer a signadamente na química do crómio, dos fixando um dado corante num
produtos naturais mas, pouco a do cádmio, do cobalto, do zinco, do substrato inorgânico ine rt e, insolúvel,
pouco, passaram a servir-se cobre e do arsénio. Sobre esta maté- finamente dividido e semi-transparen-
também de materiais sintéticos ria, porém, praticamente nada tem te, como o óxido de alumínio e o sulfa-
que Iam descobrindo e sido considerado no ensino da Quími- to de cálcio. A tais materiais, que ape-
produzindo. Para isso ca em Portugal, seja para tornar este sar de deverem a sua cor ao corante
contribuíram na Antiguidade, ensino porventura mais atractivo, seja utilizado são aplicados da mesma ma-
técnicos diversos, alquimistas e para mostrar aos alunos que a Quími- neira que os pigmentos, dá-se ene lín-
médicos. Com o nascimento da ca também tem contribuído para o gua inglesa o nome de lake pigments do
química moderna, no séc. XVIII, progresso das Artes. qual a primeira palavra parece ter deri-
tal contributo passou a ser dado O presente trabalho tem por fim vado do termo italiano lacca.
por químicos, às vezes em chamar a atenção dos professores de Neste trabalho ocupar-me-ei
consequência de descobertas química do ensino secundário para a apenas dos pigmentos, com exclusão
importantes na sua própria existência da referida relação e, além destes últimos. Os corantes e os pig-
disciplina. Nesta série de artigos disso delinear uni esboço da história mentos produzidos mediante a fixa-
faz-se uma descrição dos referidos desses mate ri ais que lhes permita criar ção de um corante num substrato
produtos e materiais, em particular uma ideia satisfatória sobre a sua ori- inorgânico inerte, serão objecto de
dos pigmentos. gem, natureza e usos. Note-se que a um trabalho posterior.
O presente artigo diz respeito aos produção dos mais antigos materiais
pigmentos utilizados pelos artistas colorantes sintéticos tem as suas raízes
pré-históricos e, atendendo à firmadas nas tecnologias da Antiguida- 2. PIGMENTOS UTILIZADOS
grande importância que a arte de, na Alquimia e na Medicina. Assim, PELOS ARTISTAS
pré-histórica adquiriu em Portugal parece razoável que nesse esboço PRÉ-HISTÓRICOS
com a descoberta das gravuras sejam incluídos também os colorantes
rupestres de Foz Côa, inclui a mais antigos, i.e., todos os anteriores Desconhece-se quando terá co-
título excepcional um esboço ao nascimento da química moderna. meçado o homem a pintar. Sabe-se,
sobre as suas técnicas de pintura. Como o seu número é grande e o es- no entanto, que na Europa alguns
paço disponível reduzido, isso obrigará artistas da fase inicial do Paleolítico
a que o trabalho tenha de ser dividido Superior, designadamente da época
1. INTRODUÇÃO em vários artigos. Aurignacense (Fig. I), já faziam pin-
Importa recordar que é costume turas parietais de excelente qualida-
Poucas áreas haverá na Química classificar os materiais colorantes em
tão intimamente relacionadas com a dois grupos — corantes e pigmentos —
Iduee BP
Arte, em particular com a Pintura, consoante a sua natureza (orgânica ou 10 000
como a dos materiais colorantes. Por inorgânica) e o modo de aplicação. Os
12000
sua vez, nunca a relação desta área corantes são produtos orgânicos que se
com a Pintura terá sido tão estreita aplicam dissolvendo-os primeiro num 11.000
como no decurso das três primeiras meio adequado e, em seguida, imer- 16000
décadas do séc. XIX, durante as quais gindo nas soluções preparadas os ob- 18000
as paletas dos pintores foram sendo jectos a tingir (caso dos textéis), ou as-
20000 SOLUTRENS€
consideravelmente enriquecidas, em sentando as soluções na superfície dos
resultado da descoberta de novos pig- objectos que se pretende colorir (caso 22000
com um impacto na técnica desses ar- destes é feita directamente, em resulta- 26000
tistas verdadeiramente excepcionais. do da ocorrência de uma interacção fí-
28000
Um dos principais factores que contri- sica ou química entre eles e os materi-
buíram para isso foi o aparecimento ais de que são feitos os objectos. Pelo 30000
em França, no último quartel do séc. contrário, no caso dos pigmentos (pro- 32000
XVIII, de uma nova química sistemá- dutos inorgânicos) tal interacção não 31.00 0
tica saída da revolução promovida por se verifica e, por isso, estes colorantes
Lavoisier. Outro foi o enorme desen- só podem aplicar-se misturando-os Fig. 1 - Crono-estratigrafia do Paleolítico Superior
volvimento que se verificou pouco previamente com uma substância francês. As idades estão expressas em anos BP".
tempo depois nos métodos de análise aglutinante, onde não sejam solúveis, Adaptado de M. Lorblanchet (27), 242.
química, muito estimulado pela in- que assegure, por um lado, a coesão
QUÍMICA • 62 • 19% 11
t i K o s
PlR/NÉDS
MAR
das quais foi talvez a alteração das Nobel da Química, 1906 — relativos a
MEDITERRÁNEO nossas concepções sobre o nascimen- esta última gruta e à gruta de La
to e evolução da arte. Na verdade, Mouthe. Moissan verificou que os
dessa época, a arte parietal que se pigmentos vermelho e negro, utiliza-
oo conhecia não tinha a mesma quali- dos na execução das pinturas destas
dade que a da gruta de Chauvet e, grutas (Fig. 4), eram constituidos por
por outro lado, havia testemunhos hematite (aFe 2 O 3 ) e óxido de man-
no Kin
nas célebres grutas de Altamira e ganês respectivamente, misturado
Lascaux, datados do Magdalenense com calcite e pequenos grãos de
médio (Fig. 1), de que a arte da pin- quartzo. Não encontrou, porém, ne-
tura tinha atingido nesse tempo e nhuns vestígios de materiais orgâni-
nesses lugares um grau elevado de cos que pudessem ter sido utilizados
Fig. 2 - Lugares arqueológicos, com pintura
excelência. Admitia-se, por isso, que como aglutinantes. A resultados aná-
paleolítica, mais importantes na Europa Ocidental.
a gestação da arte teria durado vários logos chegou igualmente Courty [6],
milénios. Assim, a descoberta da nesse mesmo ano, em análises que
gruta de Chauvet e das suas impres- efectuou de pigmentos vermelhos e
sionantes pinturas, aliada à constata- negros da gruta de Laugerie-Haute.
ção de que elas tinham sido feitas há Mais tarde, em 1908, Cartailhac
mais de 30 000 anos, veio mostrar e o abade Breuil [7] referiram por sua
que esta ideia estava errada e que, vez, embora sem apresentarem ne-
durante o Paleolítico Superior, teria nhuma prova concreta para a sua
havido com toda a probabilidade di-
versos florescimentos, apogeus e de-
clínios na arte da pintura, consoante
as épocas e os lugares.
Além disso, a circunstância de
actualmente não se conhecer ne-
nhuma forma de arte antes do início
do Paleolítico Superior e o facto de
se terem encontrado vestígios da
passagem do Homo Sapiens no Próxi-
mo Oriente, vestígios esses que, se-
gundo os resultados da termolumi-
nescência, têm uma idade superior a
90 000 anos [3], vieram levantar a
questão de saber se a arte já existiria
durante esse intervalo de tempo ou
se teria sido uma invenção tardia. O
que parece mais lógico na situação
presente, atendendo à descoberta
atrás referida, é admitir que sim e
também que possam existir formas
elaboradas de arte que ainda não
Fig. 3 - Cavalos e rinocerontes. Gruta de foram encontradas, ou que possam Fig. 4 - Bisontes policromados. Gruta de Altamira,
Chauvet-Pont-d'Arc. ter existido mas que não chegaram tecto.
até nós por não se terem conservado.
12 QUÍMICA-62.1996
a r t i
QUÍMICA . 62 . 1996 13
r t ig o s
14 QUÍMICA 62 996
artigos
QUÍMICA • 62 . 1996 15
t i g o s
* Todos os números das figuras citadas se referem a mapas, desenhos e fotografias pertencentes ú obra
de A. Leroi-Gourhan, Préhistoire de I'Art Occidental, Mazenod, Paris, 197...
artigos
provêm não só de datações de 14 C de prima), seja de natureza técnica manganês e os minerais adicionados
vestígios de ocupação humana acha- (melhoria do produto), seja de na- — muito mais duros e de granulome-
dos na vizinhança de pinturas parie- tureza económica (maior facilid ade
t tria muito menor — e que, por isso,
tais mas também de datações de ob- de elaboração da pintura). Situaçõ- não devam fazer parte da matéria
jectos de arte móvel decorados, es semelhantes vieram a verificar- pictural.
achados em estratos com carvões ou se também em diferentes épocas Assim, a presença dos fragmen-
utensílios e armas de datas conveni- históricas, como por exemplo no tos de carvão de madeira detectados
entemente estabelecidas e, portanto, séc.XV com o pigmento "amarelo nestas amostras só pode ter uma in-
de maior confiança. de chumbo e de estanho", que até terpretação — a de que eles perten-
Na Tabela 2 [26] mostram-se os 1440 era fabricado na variedade II cem a um desenho subjacente às
resultados obtidos nos ensaios de (apresentando uma composição he- pinturas amostradas, o qual teria
identificação dos minerais associados terogénea na qual se encontrava si- sido traçado com um pedaço de ma-
aos pigmentos vermelhos e negros lício), provavelmente por mestres deira queimada. Aliás esta interpre-
das pinturas das grutas estudadas, vidreiros, e que a partir daí passou tação pôde depois ser confirmada
juntamente com a indicação da a ser produzido sem perda de quali- examinando directamente essas pin-
época em que tais pinturas teriam dade na variedade I (de composição turas à lupa binocular, e o mesmo
sido realizadas. homogénea e sem silício), por um veio a demonstrar-se em relação a
Os resultados apresentados na processo mais simples e menos caro todas as pinturas negras da Sala
parte inferior da Tabela 2, relativos [30, 31]. Negra que se encontravam acessíveis
às pinturas sobre objectos de arte a este tipo de exame, com excepção
móvel achados em níveis arqueológi- 2.5. Desenho subjacente das do grande cervo e da cabeça de
cos bem datados, mostram que as re- cavalo na sua vizinhança, bem como
ceitas de minerais adicionados à ma- Outro resultado muito interes- das de dois pequenos cavalos sobre-
téria pictural parecem ter efectiva- sante obtido no mesmo projecto de postos na abóboda.
mente variado com o tempo e possu- investigação foi a descoberta, nalgu- Parece, pois, que os artistas
ir, portanto, um certo valor cronoló- mas amostras de pigmentos negros Magdalenenses já usavam técnicas
gico. Na verdade, verifica-se que a colhidas em pinturas da Sala Negra de pintura para realizar as suas obras
receita F corresponde às pinturas do da gruta de Niaux, de fragmentos de que, na sua essência, não diferiam
Magdalenense médio e a receita B às carvão de madeira com o tamanho grandemente das que mais tarde vie-
do Magdalenense superior. de cerca de 100 pm subjacentes à ram a ser adoptadas pelos pintores
Os apresentados na parte de matéria pictural, que neste caso é dos tempos históricos. Com efeito,
cima da mesma tabela, referentes às constituida por óxido de manganês antes de aplicarem as camadas de
pinturas parietais, embora não sejam misturado com uma das três qualida- cor, começavam por fazer um dese-
tão sugestivos a esse respeito como des de minerais atrás referidas. Repa- nho preparatório. Além disso, mistu-
os anteriores, estão em grande parte re-se que o facto de tais fragmentos ravam os pigmentos com outros pro-
de acordo com eles, levando a crer terem aquela dimensão e serem de dutos para melhorar as propriedades
que na gruta de Niaux haja pinturas um material pouco duro leva a crer da matéria pictural. Estes factos re-
quer do Magdalenense médio quer que o carvão de madeira presente velam bem o carácter deliberado e
do Magdalenense superior. Estes re- nessas amostras não tenha sido reflectido das obras de tais artistas.
sultados, embora de certo modo pre- moido juntamente com o óxido de
liminares, permitiram a Clottes et alui.
[26] chegar a conclusões muitíssimo Tabela 2 - Minerais associados aos pigmentos vermelhos e negros de pinturas parietais
interessantes que vieram pôr em das sete grutas por enquanto estudadas
causa as teorias clássicas sobre a cria-
ção do santuário de Niaux. Note-se Gruta Receita Contexto
que no que se refere às pinturas de F B T Magdalenense
Le Portei, os resultados ainda não
foram publicados, mas já se deu a Niaux ✓ ✓ ✓ médio ou superior
conhecer que eles parecem revelar o Les Trois Frères médio
uso de outras receitas corresponden- Fontanet médio ou superior
do a estilos considerados mais anti- Le Portei outra superior
gos.
É possível que a mudança de La Vache superior
uma receita para outra, em certas Enlène médio
alturas, tenha sido feita por moti- Mas d'Azil - Péquart ✓ médio
vos seja de natureza prática (esgo- Mas d'Azil - Piette ✓ médio ou superior
tamento de fontes de matéria
QUÍMICA • 62 • 1996 17
artigos
,4.44-(IRAAT
2.6. Considerações finais * Instituto Tecnológico e Nuclear, Química, Estrada 12. P. Vandiver, Paleolithic pigments and processing,
Nacional N' 10, 2686 Sacavém Codex Master Science Thesis, Department of Material Science
Terminarei por fazer notar ** Para exprimir as datas de 14 C convencionou-se and Engineering, M.I.T., 1983.
que, apesar das enormes dificulda- que se deveria fixar para o início da escala do tempo
des do ponto de vista analítico em a ano de 1950 d.C. ( aquele em que Libby et allü. 13. I. Brunet, B. Callede, G. Orial, Studies in Conserva-
ras em obras de arte móvel achadas a.C./d.C. subtraindo-lhes 1950. Para fazer a (1984-19851 79.
pigmentos azuis, é que tivesse sido 14. Arnold, Nature 357 (1992) 68.
18 QUÍMICA 62.1996