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Sobre a cor dos vinhos tintos. O estudo das antocianinas e compostos análogos
não parou nos anos 80 do século passado

Article · October 2018

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4 authors, including:

Paulo Cameira dos Santos A. Jorge Parola


Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV) Universidade NOVA de Lisboa
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F. Pina
Universidade NOVA de Lisboa
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e nologia

Sobre a cor dos vinhos tintos


O estudo das antocianinas e
compostos análogos não parou
nos anos 80 do século passado
O vinho pode ser considerado um laboratório onde estão a ter lugar diversas reações químicas.
Por um lado, os polifenóis pré-existentes na uva (ou formados durante as fermentações),
e muitos outros que vão aparecendo com o tempo, podem copigmentar com as antocianinas;
por outro, estas vão reagir de um modo irreversível com alguns desses componentes do vinho.

1. Introdução antocianinas mais comuns nas uvas tintas é a malvidina-3-O-(6-p-


A cor das uvas tintas (género Vitis) é dada por uma família de mo- -coumaroil)-glucósido (Esquema 1).
léculas designada em língua inglesa por “anthocyanins”, que é tra- Atualmente, é muito simples separar esta e outras antocianinas por
duzida em português por antocianas ou antocianinas, consoante as HPLC. Geralmente, é usado um gradiente bastante ácido de modo a
escolas científicas(a). Embora nas variedades europeias de Vitis vi- obter a antocianina na forma de catião flavílio de cor vermelha. Se
nifera, as antocianinas sejam exclusivamente monoglucosiladas, em pegarmos numa solução da antocianina na forma de catião flavílio
Vitis rupestris, Vitis berlandieri, Vitis riparia, bem como nos seus (pH ≈ 1) e juntarmos uma base, de modo a ter o pH à volta de 5, vere-
cruzamentos e em numerosas outras plantas que ocorrem na Natu- mos, durante o tempo de mistura, uma bonita cor azul. Todavia, para
reza, existem outras antocianinas com açúcares nas posições 3 e 5 nosso desencanto, a cor azul não é estável e, em pouco tempo, desa-
(diglucósidos) e até, mais raramente, em outras posições como a 7. parece. Porém, se logo que a cor azul se forma juntarmos ácido, de
De notar que a Legislação da União Europeia proíbe a utilização de modo a voltar ao pH inicial, a cor vermelha reaparece imediatamente.
uvas em vinificação que não sejam frutos de variedades da espécie Diferentemente, se esperarmos que a cor azul desapareça e só depois
Vitis vinífera. O mesmo acontece com as normas da OIV. Uma das juntarmos o ácido, o reaparecimento da cor vermelha leva algum tem-
po. A resposta a estas questões levou muitas décadas do século XX.
As antocianinas existem em diferentes tecidos das plantas superiores
e, em particular, são responsáveis pelas diversas tonalidades vermelhas
e azuis das flores e frutos. A descoberta das suas estruturas e a síntese
das primeiras antocianinas teve lugar logo no início do século XX [1].
Contudo, já em 1664, Robert Boyle descrevia as mudanças de cor
quando os extratos de flores eram tratados com ácidos e bases [2]. O
conhecimento que atualmente possuímos sobre as antocianinas tem
sido um trabalho de inúmeros investigadores, entre os quais dois pré-
mios Nobel, Richard Willstätter (1915) [3] e Robert Robinson (1947) [4].
A aquisição do conhecimento dos processos cinéticos que nos per-

(a)
Willstätter introduziu o termo anthocyanidins para as agliconas das anthocyanins.
Usando o termo antocianas fica a questão de encontrar um termo em português
Esquema 1 – Malvidina-3-O-(6-p-coumaroil)-glucósido. para essas moléculas.

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Esquema 2 – Equilíbrio das antocianinas em meio ácido. Em meio muito ácido, pH ≤ 1, o sistema converge para o catião flavílio,
uma vez que tanto a reação da base quinoidal como do hemicetal para dar o catião flavílio dependem da concentração de protão
(princípio de Le Chatelier).

mitem explicar o comportamento das antocianinas acima referido não considerarem a trans-chalcona, identificaram a segunda reação
não foi linear. Uma das descobertas mais importantes nos anos 1970 como sendo a hidratação e a terceira como se fosse a tautomerização,
deve-se a Brouillard e Dubois [5], à qual adiante nos referiremos, mas abertura/fecho do anel C (ver Esquema 2), quando, de facto, a se-
somente em 1990, com a introdução da trans‑chalcona por Brouil­ gunda é constituída pela hidratação seguida da tautomerização, que
lard e Lang, o esquema cinético foi definitivamente estabelecido (Es- é muito mais rápida (subsegundos), e a terceira é a isomerização da
quema 2) [6]. cis-chalcona para dar a trans (ver Esquema 3).
A questão da existência ou não da trans-chalcona no esquema cinético Este facto histórico teve consequências, porque as constantes de
não é um facto menor, como veremos adiante. Embora a percentagem equilíbrio e de velocidade medidas na altura, além de um signifi-
desta espécie no equilíbrio esteja à volta de 5% nas antocianinas mais cado diferente, correspondem a processos diferentes; por exemplo,
comuns, o facto de ter sido negligenciada deu origem a grandes de- a constante de hidratação antiga old Kh é, na realidade, Kh(1 + Kt), e
sentendimentos, que ainda perduram em alguns trabalhos nesta área. old
Kt = Kt Ki/(1 + Kt).
A trans-chalcona tinha sido inequivocamente identificada nos sais sin- Por outro lado, ainda nos dias de hoje se pode ler em teses de dou-
téticos de flavílio (que seguem o mesmo esquema cinético das antocia- toramento e artigos científicos os esquemas cinéticos e o tratamento
ninas) por McClelland e colaboradores [7] e [8], no início dos anos 80. cinético dos anos 70. Para mais detalhes, consultar a referência [10].
Timberlake [9], em 1981 (após aquecimento de uma solução de malvina O estado da arte, no que respeita aos processos cinéticos que se se-
a pH = 4,5), conseguiu isolar por HPLC uma espécie que ele atribuiu guem após a adição de uma base (para pH moderadamente ácidos), é
(erroneamente) à cis-chalcona(b). Esta espécie, numa solução de meta- mostrado no Esquema 3.
nol ácido, convertia-se em pouco mais de 1 hora no catião flavílio. Tra- Neste esquema, estão representados os níveis energéticos das di-
tava-se de um comportamento idêntico e variações espectrais seme- versas espécies que são facilmente calculados através da relação
lhantes ao reportado por McClelland no caso dos flavílios sintéticos, ∆G0 = -RTlnK, onde ∆G0 é a energia livre de Gibbs, R a constante
onde a trans‑chalcona­era a espécie maioritária a valores de pH mode- dos gases perfeitos, T a temperatura absoluta em graus Kelvin e K a
radamente ácidos [7]. No entanto, somente em 1990, a trans-chalcona constante de equilíbrio do processo [10]. Após o salto de pH, é estabe-
passou a ser considerada no esquema cinético das antocianinas [6]. lecido um equilíbrio entre o catião flavílio e a base q­ uinoidal. Dado
Desde o início do século XX, foi verificado que a adição de base que este equilíbrio ocorre diversas ordens de grandeza mais rápido
a uma solução do catião flavílio a pH ≈ 1 (de modo a obter um pH do que os processos seguintes, estas duas espécies comportam-se
menos ácido), dava origem a uma cinética com 3 tempos muito dife- como uma única espécie, cuja razão é dada por [AH+]/[A] = Ka/[H+].
rentes. A primeira cinética consiste na observação da cor azul, que A descoberta acima descrita de Brouillard e Dubois foi que, em meio
ocorre durante o tempo de mistura da base. A seguir, na escala de ácido, a base quinoidal não hidrata. Por conseguinte, a etapa seguinte
minutos (esta velocidade depende do pH), ocorre uma outra reação é constituída pela hidratação do flavílio, seguida da tautomerização
correspondendo ao desaparecimento da cor azul e, finalmente, uma e, dado que a última é muito mais rápida, logo que B se forma, equi-
terceira que, em horas, dá origem a pequenas variações no espectro libra imediatamente com Cc. Trata-se, por conseguinte, de um pro-
de absorção, principalmente na zona do ultravioleta. cesso controlado pela hidratação do catião flavílio(c). Neste ponto, as
O problema é que Brouillard e colaboradores, pelo facto de, na altura, espécies AH+, A, B e Cc estão no que designamos por pseudoequilí-

(b)
A forma e a posição dessa banda é característica da trans-chalcona, quando comparamos com dezenas de outras chalconas de derivados de flavílio.
(c)
A base quinoidal é um produto cinético que faz com que a velocidade da segunda etapa diminua com o aumento de pH (porque diminui a fração de catião flavílio).

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(A) (B)

Esquema 3 – As 3 etapas cinéticas após um salto de pH direto. Esquema 4 – Representação das formas termodinamica-
Se o pH for acidificado para pH = 1, o sistema reverte para o mente mais estáveis para uma (A) e duas (B) moléculas de
catião flavílio, a espécie mais estável a esse pH. ­malvidina-3-O-(6-p-coumaroil)-glucósido em solução aquosa,
simulado por dinâmica molecular.
brio, uma vez que a última etapa, a isomerização, é muito mais lenta.
Uma vez equilibrado o sistema no pH mais alto, se reacidificarmos
para pH = 1, todas as espécies revertem para o catião flavílio, a espé-
cie mais estável a esse pH.
Por outro lado, se basificarmos para obter a base quinoidal e formos
suficientemente rápidos a reacidificar (antes de deixar o catião fla-
vílio hidratar), obtemos logo a cor vermelha do catião flavílio (Es-
quema 3)(d).
Para o leitor mais interessado nas expressões matemáticas que permi-
tem calcular as constantes de equilíbrio, assim como as constantes ciné-
ticas, e construir o diagrama de energias, consultar as referências [10, 11].

2. A questão da copigmentação
Copigmentação é definida como o aumento da cor e/ou deslocamento
do espectro de absorção para o vermelho por adição de outros com-
postos fenólicos pouco corados ou incolores como flavonas e flavo- Figura 1 – Desvios químicos dos protões 4, em função da con-
nóis [12]. Associado a este fenómeno está a autoagregação. Ambos centração da antocianina-3-glucósido; calistefina ( ), oenina
( ), mirtilina ( ), kuromanina ( ), petunidina-3-glucósido ( )
os fenómenos têm sido explicados pela existência de uma interação
e peonidina-3-glucosido ( ), a pH = 1,0. Reproduzido com per-
de sobreposição (stacking) envolvendo, sobretudo, as ligações π do missão de Leydet et al. © 2012, Elsevier. Desvios semelhantes
sistema aromático [13, 14]. No Esquema 4 representam-se os resul- são observados para os protões 6 e 8.
tados da simulação por dinâmica molecular deste tipo de interação,
intramolecular (A) e intermolecular (B) [15]. Este empilhamento dá origem a um sinal no espectro de dicroísmo
O fenómeno da autoagregação foi estudado para as seis circular, indicando a existência de quiralidade, assim como um alar-
­antocianinas‑3‑glucósido mais comuns. Na Fig. 1 apresentam-se os gamento da banda de absorção devido à formação de agregados entre
dados de 1H MMR. Verifica-se que os desvios químicos dos protões os tipos J e H (Fig. 2) [16].
4, 6 e 8 convergem para um valor semelhante no caso das soluções
diluídas. Quando a concentração da antocianina aumenta, há enor- 3. Representação da cor das antocianinas
mes desvios químicos resultantes do empilhamento das moléculas. in vitro
No caso do vinho tinto, ambos os fenómenos de copigmentação aci-
(d)
As reações ácido-base ocorrem em microsegundos. ma descritos contribuem para que, a pH = 3,5 por exemplo, a cor das

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azul são mínimas (Fig. 3a). Para obter cor


(a) (b) (c)
vermelha, é necessário que haja uma es-
tabilização do catião flavílio (Fig. 3b). No
caso do azul das flores, a interação terá de
aumentar a fração molar da base quinoi-
dal à custa de B, Cc e Ct, desviando a cor
vermelha para pH mais baixo (Fig. 3c) [17].

4. Vinho, um laboratório de
química
O vinho pode ser considerado um labora-
Figura 2 – (a) Espectro de absorção da mirtilina em função da concentração (em unida-
des M-1cm-1); (b) elipticidade da mirtilina em função da concentração (até 1,6 x 10-3 M); tório onde estão a ter lugar diversas rea-
(c) elipticidade molar na primeira (539 nm) e na segunda (461 nm) bandas de cotton. ções químicas. Por um lado, os polifenóis
pré-existentes na uva (ou formados duran-
antocianinas nos vinhos muito jovens tenha muita expressão. te as fermentações), e outros novos que vão aparecendo com o tempo,
A fim de aprofundar um pouco mais o efeito da copigmentação das podem copigmentar com as antocianinas; por outro, estas vão reagir
antocininas (in vitro), as frações molares da cor vermelha do catião de um modo irreversível com alguns desses componentes do vinho.
flavílio e da base quinoidal estão representadas na Fig. 3 [17]. Um exemplo de dois compostos fenólicos formados durante um pro-
Verificamos que, na ausência de qualquer efeito de copigmentação ou cesso fermentativo são o 4-etilfenol e o 4-etilguaiacol, temíveis ao ol-
autoassociação, a pH = 3,5, por exemplo, a expressão da cor vermelha e fato dos enólogos, porque em concentrações acima dos 620 µg/L (para
e nologia

(a) (b) (c)

Esquema 5 – Esquema das posições mais reativas do catião


flavílio e do hemiacetal, as espécies maioritárias das antocia-
Figura 3 – Simulação da distribuição das frações molares da
ninas ao pH do vinho (R1,R2 = H, OH, ou OCH3).
Malvidina-3-O-(6-p-coumaroil)-glucósido: (a) 2,5x10-5 M em
função do pH; (b) e (c) como em (a) mas interatuando com
copigmentos. A barra indica a cor aproximada da solução em Esquema 3. A este propósito, há que referir que, quando se consideram
função do pH. longos períodos de tempo, pH básico, presença de enzimas e outros
compostos polifenólicos, as antocianinas não são estáveis. No caso
o primeiro), ou 140 µg/L (segundo), causam um intenso odor a suor particular do vinho tinto, durante o primeiro ano após a fermentação
de cavalo ou estrebaria, conhecido na gíria como aroma “brett” [18]. alcoólica, o conteúdo das antocianinas reduz-se apreciavelmente.
Ora o precursor do 4-etilfenol é o 4-vinilfenol, composto também Na secção seguinte daremos conta de algumas dessas reações e dos
indispensável à formação de piranoantocianinas (do tipo derivado novos compostos que se formam, que justificam a mudança de cor
vinilfenólico) [19]. Esta reação de formação de piranoantocianinas é, durante o envelhecimento.
pois, concorrente direta da reacção de formação do aroma “brett”.
A. Morata e colaboradores [20], num artigo publicado em 2013, de- 4.1. As reações irreversíveis das antocianinas
monstraram que os vinhos contendo um maior teor em piranoantocia- As reações irreversíveis mais significativas das antocianinas estão
ninas, também estavam menos atreitos a contrair aroma “brett”, por representadas no Esquema 5.
terem menores teores em 4-vinilfenol livre. Nestes casos, o stock de Em dois dos grupos hidroxilo do hemiacetal (posições 6 e 8) podem
4-vinilfenol existente no vinho, estando disponível para ser “captura- ocorrer ataques eletrofílicos, ao passo que nas posições 2 e 4 do ca-
do” pelas antocianinas livres do vinho, é canalizado para a formação tião flavílio podem ocorrer ataques nucleófilos.
de piranoantocianinas (do tipo vinilfenólico), em vez de ser utilizado A reatividade química das antocianinas no vinho tinto foi recentemente
na produção do nefasto 4‑etilfenol [20].
Continuando a nossa comparação (vinho,
um laboratório de química), abordaremos
agora outro importante fenómeno: a copig-
mentação, ou seja, o aumento da cor e des-
locamento do espectro de absorção para o
vermelho de um dado polifenol, por adi-
ção de outros polifenóis pouco corados ou
incolores (tais como flavonas e flavonóis).
Quando se olha para a Fig. 3a, podemos
concluir que – mesmo num vinho novo
– tem de haver efeitos de copigmentação
para se explicar a existência de tintos de
cor robusta. Por outro lado, a cor do vi-
nho tinto muda durante o envelhecimen-
to, ficando mais acastanhada [21].
Falemos agora das reações reversíveis das
antocianinas, que estão representadas no Esquema 6 – Compostos formados no vinho ou em soluções modelo de vinho [22].

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revista e está sumarizada no Esquema 6 para a m ­ alvidina-3-glucósido,
onde se apresentam os compostos mais significativos obtidos por rea-
ção com moléculas simples existentes no vinho e noutros produtos
alimentares [22]. Estão representadas duas classes de compostos: (i)
antocianinas substituídas nas posições 6 ou 8 formadas por ataque ele-
trofílico; (ii) adição cíclica nas posições C-4 e o hidroxilo na posição
C-5 do catião flavílio, dando origem a um quarto anel (piranoantocia-
ninas). A primeira geração resulta do ataque direto à antocianina, en-
quanto a segunda resulta da posterior reação dos produtos da primeira.
O que caracteriza a maior parte destes compostos é o facto de serem
muito estáveis no que respeita à hidratação, isto é, não formam he-
miacetal e, por conseguinte, as respetivas chalconas, e apresentam
somente as mudanças de cor devidas às reações reversíveis de proto-
nação/desprotonação (transferência de protão) por mudança de pH.
O isolamento [23] e posterior identificação [19] da primeira piranoanto-
cianina (Esquema 7), foi efetuada por P. Cameira dos Santos durante
o seu doutoramento na École Nationale Supérieure Agronomique de
Montpellier, sob supervisão da Dra. Hélène Fulcrand, no ano de 1995
(trabalhos publicados no ano seguinte [19, 23]). Para o leitor interessado
na história desta descoberta, aconselhamos a leitura da referência [24].
Três anos depois, em 1998, foram descobertas as vitisinas, ou seja,
as piranoantocianinas mais abundantes dos vinhos tintos [25], que
resultam da reação da malvidina-3-glucósido com o ácido pirúvico
(que é um subproduto da fermentação alcoólica). Entre as vitisinas, o
Esquema 8 representa a mais abundante (Vitisina A).
É normal que as piranoantocianinas derivadas do 4-vinilfenol (Es-
quema 7) sejam menos abundantes no vinho tinto que as vitisinas
(Esquema 8), dado que o 4-vinilfenol, necessário para a formação
das primeiras, é muito pouco abundante nos vinhos, por ser produ-
zido apenas por descarboxilação do ácido p‑cumárico­por ação das
leveduras [19]. Além disso, este composto também pode ser “captu-
rado” para dar origem ao 4-etilfenol, na via de formação do aroma
“brett”. Já o ácido pirúvico (necessário para a formação das segun-

Esquema 7 – Estrutura da primeira piranoantocianina, isola-


da a partir de vinho tinto [23].
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Como se observa facilmente através do Esquema 8, a molécula da


Vitisina A não é simétrica, apesar de também conter um grupo com-
pacto de 3 anéis. Este facto faz toda a diferença, em termos de es-
tabilidade química, o que levou a que se presumisse a existência no
vinho de pigmentos poliméricos mais estáveis.
Por outro lado, os derivados vinilfenólicos (Esquema 7) também são
muito mais hidrofóbicos que a Vitisina A, pois esta última molécula
contém um grupo carboxílico (-COOH), o que lhe confere um ca-
ráter hidrofílico (o que não acontece nos derivados vinilfenólicos).
Como é referido na publicação [24], este facto foi decisivo para a sua
descoberta, pois os derivados vinilfenólicos adsorviam-se e colma-
Esquema 8 – Estrutura da Vitisina A [25]. tavam as membranas de filtração de vinhos, construídas em polie-
tersulfona, um material muito hidrofóbico. Estas membranas, adsor-
das), sendo originário da fermentação alcoólica, é muito mais abun- viam preferencialmente derivados vinilfenólicos de antocianinas e
dante nos vinhos. A molécula representada no Esquema 8 é, portan- não a Vitisina A, dado que esta última é muito menos hidrofóbica.
to, a precursora das Portisinas e das piranoantocianinas diméricas, A questão da estabilidade dos “anthocyanin-derived pigments” con-
como veremos adiante. tinua a ser estudada, e tem sido um dos temas de investigação do
No Esquema 9 estão representadas as duas formas mesoméricas da grupo liderado pelo Prof. Victor de Freitas, da Universidade do Porto,
primeira piranoantocianina isolada, aducto da ­malvidina‑3‑glucósido que, no ano de 2003, chegou à primeira identificação das molécu-
com o 4-vinilfenol, que tem um processo de formação específico, las que designou Portisinas, por terem sido descobertas em vinho do
como se viu. Por essa razão, estas piranoantocianinas também são Porto. Esta descoberta constitui um exemplo recente de identificação
designadas derivados vinilfenólicos. Mais concretamente, esta rea- estrutural de um outro tipo de piranoantocianinas, sendo descritas
ção consiste numa ciclização entre: a dupla ligação vinílica do 4-vi- como os compostos obtidos por reação dos derivados pirúvicos da
nilfenol, o hidroxilo em posição 5 e o carbono na posição 4 da an- malvidina-3-glucósido (vitisina A) e derivados da catequina (vinil-
tocianina. A cor destas piranoantocianinas é alaranjada, e têm um catequina), Esquema 10 [26]. Neste exemplo de piranoantocianinas,
maior poder corante (mensurável através dos espectros de absorção somente a forma catiónica e as respetivas bases quinoidais foram ob-
no visível) que a antocianina que lhe deu origem. servadas, confirmando a estabilidade destes compostos.
É o facto de os derivados vinilfenólicos possuírem um cromófo- Na Fig. 4 estão representadas as frações molares das espécies em
ro constituído por 3 anéis aromáticos (2 dos quais heterocíclicos), função do pH, assim como as respetivas cores [27]. Neste caso, ao
constituindo uma estrutura harmoniosa e em perfeita simetria, que pH do vinho, a forma maioritária é forma catiónica de cor laranja.
permite a existência de formas de ressonância, representadas no
Esquema 9. Os eletrões das orbitais π dos átomos de carbono deste
grupo aromático de 3 anéis (cromóforo), circulam livremente entre
eles, num fenómeno que em química se designa por ressonância. Ao
bloquear simultaneamente as posições 4 e 5 da antocianina, a cicliza-
ção confere uma maior estabilidade aos derivados vinilfenólicos. Isto
não acontece na molécula de Vitisina A.

Esquema 10 – Exemplo de 6 compostos piranomalvidina-3-


Esquema 9 – Formas mesoméricas da primeira piranoantocia- -glucósido ligados a (+)-catequina, (-)-epicatequina, e catecol
nina isolada (referida no Esquema 7) [19]. identificados no vinho tinto [26].

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Figura 4 – Distribuição das frações molares da piranomal-
vidina-3-O-glucósido-(+)-catequina e as cores das respetivas
espécies no equilíbrio [27].

Compostos deste tipo contribuem para a conhecida mudança de to-


nalidade dos vinhos tintos por envelhecimento [21].
Como se disse, as Portisinas e as piranoantocianinas diméricas, fo-
ram descobertas pela primeira vez em vinhos do Porto, pelo Grupo
da Univ. Porto [26]. Estes compostos resultam da reação da Vitisina
A com flavonóis na presença de acetaldeído. A cor das portisinas
é azul, e também abre perspetivas da sua utilização como corantes
alimentares.
Seguiram-se várias descobertas de novas piranoantocianinas, sendo
de realçar os dímeros de piranoantocianinas, que têm vários anéis
benzénicos conjugados, que lhe conferem uma belíssima cor azul-
-turquesa, a pH ácido. Apesar das sucessivas descobertas no vinho
de pigmentos com diferentes cores, a cor final de um vinho tinto
não é o somatório simples de cada uma dessas famílias, antevendo-
-se, mesmo assim, que terão um contributo não negligenciável no
seu conjunto, para a cor final do vinho.

5. Nomenclatura proposta
Em resumo, para os pigmentos derivados das antocianinas
até agora descobertos, que na literatura inglesa surgem como
“­anthocyanin-derived pigments”, propomos a seguinte nomenclatura:

1. Piranoantocianinas. Contém 2 subgrupos:


a) derivados vinilfenólicos (aductos antocianina + 4-vinilfenol)
[19], [23]. Representados no Esquema 7;
b) derivados do ácido pirúvico (aductos antocianina + ácido pi-
rúvico) [25]. Também podem ser chamados Vitisina A. Repre-
sentados no Esquema 8.
2. Portisinas e piranoantocianinas diméricas (aductos antocianina
+ derivados da catequina e do catecol) [26]. Representados no
Esquema 10.

Conclusão
A cor dos vinhos tintos é um fenómeno complexo, e constitui um
parâmetro de crucial importância, pois fornece ao consumidor in-
e nologia

formação sobre o tipo, grau de envelhecimento e até sobre possíveis [3] Willstätter, R. 1915. Nobel Lecture, disponível em http://www.nobel-
defeitos organoléticos de que este possa padecer. prize.org/.
No caso dos vinhos tintos jovens, a cor depende do tipo e da concen- [4] R. Robinson, R. 1947. Nobel Lecture, disponível em http://www.no-
tração das antocianinas presentes, já que as tonalidades destas variam belprize.org/.
com os substituintes, podendo existir fenómenos de autoagregação. [5] Brouillard, R. & Dubois, J.E. 1977. J. Am. Chem. Soc., 99, 1359-1364.
Por outro lado, a interação com outros polifenóis, a chamada copig- [6] Brouillard, R. & Lang, J. 1990. Can. J. Chem., 68, 755-761.
mentação, produz também variações de cor e induz, sobretudo nos [7] McClelland, R.A. & Gedge, S. 1980. J. Am. Chem. Soc., 102, 5838‑5848.
vinhos tintos jovens, um aumento da intensidade da cor vermelha. [8] McClelland, R.A. & McGall, G.H. 1982. J. Org. Chem., 47, 3730-3736.
Todavia, é durante o envelhecimento que, por um lado, as antocia- [9] Preston, N.W. & Timberlake, C.F. 1981. J. Chromatog., 214, 222-228.
ninas tendem a precipitar, dando origem a vinhos com menor in- [10] Pina, F.; Melo, M.J.; Laia, C.A.T.; Parola, A.J. & Lima, J.C. 2012. Chem.
tensidade de cor. Por outro lado, dá-se uma mudança de tonalidade, Soc. Rev., 41, 869-908.
devido à formação de piranoantocianinas e outros derivados que pos- [11] Pina, F. 2014. Recent Advances in Polyphenols Research, Vol. 4, Chapter
suem cores com tons mais laranja ou castanho. 11, Wiley-Blackwell, ISBN: 978-1-118-32967-2.
Tal como se afirma no título deste trabalho, a investigação nesta área [12] Pina, F.; Parola, A.J.; Melo, M.J.; Lima, J.C. & de Freitas, V. “Antho-
não parou e, com certeza, teremos desenvolvimentos posteriores na cyanins from Natural Sources: Exploiting Targeted Delivery for Impro-
compreensão do fenómeno da cor e, em particular, na preparação de ved Health” Capítulo 2, Chemistry of Anthocyanins, Edição Celli, G.,
corantes derivados de produtos naturais, que eventualmente poderão Brooks, S.-L., Royal Society of Chemistry, em impressão.
vir a ser usados como corantes alimentares. [13] Iacobucci, G.A. & Sweeny, J.G. 1983 Tetrahedron, 19, 3005-3038.
Mimetizando a química do vinho em laboratório será possível, um [14] Yoshida, K.; Mori, M. & Kondo, T. 2009. Nat. Prod. Rep., 26, 884-915.
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30 outubro/novembro/dezembro 2018
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