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O desafio das ecoaldeias

O desafio de desenvolver uma comunidade vivendo em harmonia - consigo e


com a natureza - é difícil, mas alcançável
por Robert Gilman
Um dos artigos em Living Together (IC#29)
Verão de 1991, Página 10

Copyright (c)1991, 1996 by Context Institute | To order this issue ...

Para a humanidade no final do século 20, dificilmente há algo mais atraente - embora
aparentemente mais elusivo - do que a perspectiva de viver em harmonia com a
natureza e uns com os outros. Quais são as possibilidades de realizar esse sonho e
quais são as ações mais apropriadas que poderiam nos ajudar a todos em direção a
esse futuro? Esta edição explora essa questão, considerando a situação atual e as
prováveis perspectivas de uma abordagem adequada para alcançar este sonho de
uma vida harmoniosa: a ecovila. Também exploraremos o conceito mais amplo de
comunidades sustentáveis e a ideia de comunidade em geral.

Não existe, neste momento, uma definição amplamente aceita de uma ecoaldeia. Aqui
definiremos uma ecoaldeia como um

● assentamento completo
● em escala humana
● em que as atividades humanas são integradas de forma que não causem
impacto no mundo natural
● de uma forma que suporte ao desenvolvimento humano saudável que possa
ser continuado de forma exitosa por um futuro indefinido/permanente.

"Assentamento completo" * Um "assentamento completo" é aquele em que todas as


principais funções da vida normal - residência, obtenção de alimentos, produtos
manufaturados, lazer, vida social e comércio - estão presentes e em proporções
equilibradas. A maioria dos assentamentos humanos atuais no mundo industrializado -
urbano, suburbano e rural - é dividida por função: algumas áreas são residenciais,
algumas são comerciais, outras são industriais, etc. Estes distritos são muito grandes
para atender à definição de “escala de vizinhança”, mesmo se considerarmos aqueles
de função única. Em contraste, a ecoaldeia é um microcosmo que espelha toda a
sociedade.

Isso não significa que as ecoaldeia tenham de ser totalmente auto suficientes ou
isoladas da comunidade circundante. Como ideal, uma ecoaldeia terá tantos empregos
quantos forem as pessoas que desejam trabalhar que vivem na eco-aldeia; mas
alguns dos aldeões trabalharão fora da aldeia e alguns dos empregos na aldeia serão
realizados por pessoas que residem fora da aldeia.

Existem também muitos serviços especializados que obviamente não podem ser
localizados em cada ecoaldeia - hospitais, aeroportos, etc. No entanto, com a
cooperação entre as aldeias, qualquer destas estruturas de grande porte poderia ser
administrada com sucesso por grupos e redes, permitindo que uma sociedade
moderna em pleno funcionamento possa ser constituída por unidades de ecoaldeias.
"Em escala humana" * A escala humana ou de vizinhança, se refere a um tamanho
de grupo no qual as pessoas conseguem conhecer e ser conhecidas pelos outros na
comunidade, e onde cada membro da comunidade sente que consegue influenciar as
decisões tomadas. Há evidências práticas consideráveis, tanto nas sociedades
industriais modernas quanto em outras culturas, de que o limite superior para tal grupo
é de aproximadamente 500 pessoas. Em situações muito estáveis e isoladas, pode ser
mais alto, talvez até 1.000, enquanto em situações típicas das sociedades industriais
modernas costuma ser mais baixo, até menos de 100.

"... em que as atividades humanas são integradas de forma que não causem
impacto no mundo natural..." * Essa ideia traz o "eco" para a ecoaldeia. Um dos
aspectos mais importantes desse princípio é o ideal de igualdade entre os humanos e
outras formas de vida, de modo que os humanos não tentem dominar a natureza, mas
procurem encontrar seu lugar nela. Outro princípio importante é o uso cíclico de
recursos materiais, em vez da abordagem linear (produzir, usar uma vez, descartar)
que tem caracterizado a sociedade industrial. Isso leva as ecovilas ao uso de fontes de
energia renováveis (solar, eólica, etc.) em vez de combustíveis fósseis; à
compostagem de resíduos orgânicos devolvidos ao solo, em vez de enviá-los para
aterro, incinerador ou estação de tratamento de esgoto; à reciclagem do máximo
possível do fluxo de resíduos; e para evitar substâncias tóxicas e prejudiciais.

"...de uma forma que suporte ao desenvolvimento humano saudável..."* Este


quarto princípio reconhece que as ecoaldeias são, afinal, comunidades humanas e,
sem uma vida saudável genuína como sua preocupação central, é improvável que
essas comunidades sejam bem-sucedidas. O que é “desenvolvimento humano
saudável”? Para tentar uma definição completa, seria necessário um livro, pelo menos!
Basta dizer aqui que vejo isso como envolvendo um desenvolvimento equilibrado e
integrado de todos os aspectos da vida humana - físico, emocional, mental e espiritual.
Esse desenvolvimento saudável precisa ser expresso, não apenas na vida das
pessoas, mas na vida da comunidade como um todo.

"... que possa ser continuado de forma exitosa por um futuro


indefinido/permanente." Este último princípio - o princípio da sustentabilidade – gera
um compromisso de honestidade nos ecoaldeões. Sem ele, seria fácil (ou, pelo
menos, mais fácil) criar em curto prazo comunidades em escala de vizinhança que
parecessem estar harmoniosamente integradas à natureza e que disponibilizassem
todos os recursos necessários, mas que na verdade seriam apenas lugares em que
não estaria tão visível o modo de viver capitalista existente em outras partes da
sociedade; ou dependente de atividades insustentáveis que causassem impactos em
outro lugar; ou que não incluíssem um aspecto importante da vida (como infância ou
velhice). O princípio da sustentabilidade traz consigo um profundo compromisso com a
justiça e a não exploração - para com outras partes do mundo, humano e não humano,
e para toda a vida futura.

Comunidade Sustentável * O termo mais geral "comunidade sustentável" inclui


ecoaldeias, mas também inclui grupos e redes de ecoaldeias e "comunidades" não
baseadas geograficamente (como empresas) que, no entanto, são à escala humana
em seus componentes, diversas e harmoniosamente integradas ao mundo natural.
Nesse sentido, uma ecoaldeia é um lugar distinto, seja como aldeia rural ou como
bairro urbano/suburbano. Uma cidade não poderia ser uma ecoaldeia, mas uma
cidade composta de ecovilas poderia ser uma comunidade sustentável.
PARA FRENTE, NÃO PARA TRÁS

Se as ecovilas são uma ótima ideia, por que ainda não vivemos nelas?

Uma resposta frequentemente sugerida é que, na verdade, a maioria das pessoas já


vive em "ecoaldeias" - isto é, o melhor modelo para uma ecoaldeia é a comunidade
rural tradicional - e para recuperar a harmonia com a natureza e entre si, tudo o que
precisamos fazer é retornar a esse modo de vida tradicional. Discordo.

Embora seja verdade que há muito a aprender com essas comunidades (elas ainda
contêm cerca de metade da população mundial), poucas pessoas hoje - incluindo a
maioria dos aldeões tradicionais! - descreveria essas comunidades como completas
ou favoráveis ao desenvolvimento humano saudável. O trabalho é árduo, a expectativa
de vida é curta, as oportunidades de desenvolvimento pessoal e educação são poucas
(quase inexistentes para as mulheres) e a diversidade de meios de subsistência é
pequena.

Além disso, a harmonia entre essas comunidades e o ambiente natural muitas vezes
depende de baixas densidades populacionais - um luxo que não temos mais. Os
agricultores tradicionais em todo o mundo usam três tipos principais de agricultura:
corte e queima, irrigação por chuva em terra seca e irrigação artificial. Destes, o corte
e queima é o mais ambientalmente exigente e requer a menor densidade populacional.
Mas mesmo a irrigação artificial, que suporta a maior densidade populacional, pode
ser prejudicial ao meio ambiente, como atesta o colapso ecológico de muitas
civilizações anteriores baseadas na irrigação.

E, finalmente, as comunidades tradicionais (agrícolas) dificilmente são modelos de


harmonia entre os humanos. A vida nestas comunidades é muitas vezes, de um ponto
de vista moderno, dolorosamente patriarcal. Além da casa, há rixa e desconfiança
dentro das comunidades, entre as comunidades vizinhas e em relação ao mundo
além.

Em contraste, as verdadeiras ecovilas são um fenômeno distintamente pós-industrial


(e provavelmente até pós-agrícola). Embora tirem lições de toda a experiência
humana, não são um retorno a nenhum período ou modo de vida anterior.

As ecovilas crescem a partir das necessidades e oportunidades provocadas por:

● novas restrições ecológicas - que surgem de altos níveis de população e


capacidade tecnológica;
● novas técnicas e tecnologias, desde uma melhor compreensão dos
ecossistemas até canais de comunicação mais diversos; de tecnologias
eficientes para o uso de recursos renováveis à novas formas de organização
humana; e
● novos níveis de consciência e percepção, simbolizados em parte pela imagem
da Terra vista do espaço, com tudo o que isso significa em termos de
consciência global e uma percepção dos muitos bilhões de anos de história da
vida neste pequeno planeta na vastidão do universo.

Apesar de sua falta de sustentabilidade cada vez mais evidente, a sociedade industrial
tem o ímpeto de centenas de anos de criação de instituições e desenvolvimento de
capital. Dada a enorme infraestrutura e padrões sociais existentes, até agora tem sido
muito mais fácil para as pessoas continuarem vivendo das mesmas velhas formas
insustentáveis do que criar comunidades sustentáveis pioneiras.

A resposta, então, sobre o porque ainda não vivemos em ecovilas é bastante simples:
essas necessidades e oportunidades são tão novas que não tivemos tempo, como
sociedade, de noa ajustar a elas. Estamos bem no início de uma nova era e podemos
esperar que muito do desenvolvimento da técnica e da consciência que caracterizará
esta era ainda esteja à nossa frente.

DESAFIOS DAS ECOALDEIAS

Embora possa parecer mais difícil ser pioneiro em comunidades sustentáveis do que
viver dentro de um status quo insustentável, vários grupos têm feito isso há décadas
(com precursores muito mais antigos), como alguns dos artigos a seguir mostram.
Para avaliar as dificuldades que esses pioneiros enfrentaram, vamos examinar os
vários desafios que a visão da ecoaldeia engloba.

O desafio do biossistema * Para cumprir o ideal de que as atividades da ecoaldeia


sejam integradas ao mundo natural, é necessário que a ecoaldeia encontre maneiras
ecologicamente amigáveis de:

● preservar habitats nos domínios da aldeia


● produzir comida, lenha e outros biorrecursos no local
● processar os resíduos orgânicos no local
● neutralizar qualquer resíduo tóxico da aldeia
● reciclar todo resíduo sólido da aldeia
● tratar todos os efluentes produzidos na aldeia
● evitar impactos ambientais adversos fora da aldeia e da entrega de produtos
trazidos de fora.
● evitar impactos ambientais adversos fora da aldeia devido ao uso e descarte de
quaisquer produtos.

O desafio do ambiente construído * Para cumprir o ideal de que as atividades da


ecoaldeia sejam integradas ao mundo natural, também é necessário que a ecoaldeia:

● construa com materiais de baixo impacto


● use fontes de energia renováveis
● manuseie resíduos sólidos e gasosos das edificações de uma maneira segura
e ecologicamente correta.
● use minimamente transportes motorizados
● utilize de formas construtivas com o mínimo impacto à terra e à ecologia local.

Para cumprir o ideal de que a ecoaldeia apoie o desenvolvimento humano saudável, é


necessário que as construções da comunidade:

● tenham um equilíbrio entre os espaços públicos e privados


● encorajam a interação na comunidade
● suportem o máximo de diversidade de atividades.

O desafio do sistema econômico * Para cumprir o ideal de que a ecoaldeia apoie o


desenvolvimento humano saudável e pleno, é necessário que haja uma atividade
econômica significativa na ecoaldeia. Para cumprir o ideal de justiça e não exploração,
que faz parte do princípio da sustentabilidade, é necessário que as atividades
econômicas dos membros de uma ecoaldeia não dependam da exploração de outras
pessoas e lugares, nem da exploração do futuro pelo presente. As implicações dessas
metas não são tão claras como, por exemplo, a implicação para o ambiente construído
de que as fontes de energia devem ser renováveis. Em vez disso, podemos identificar
algumas das questões prováveis que uma ecoaldeia enfrentará em relação ao seu
sistema econômico:
● O que são atividades econômicas sustentáveis, tanto em termos do que vai
sustentar os membros da comunidade quanto do que é sustentável em termos
ecológicos?
● Quais partes da comunidade devem ser mantidas em comum e quais partes
particulares?
● Mais especificamente, como deve ser tratada a propriedade de terrenos e
edifícios?
● Como podemos ser simultaneamente econômica e ecologicamente eficientes,
de forma a reduzir despesas e impacto ambiental?
● Quais são as formas mais adequadas de organização empresarial para
negócios associados a ecoaldeias?
● Existem alternativas e/ou suplementos úteis para a economia monetária para
facilitar o intercâmbio econômico dentro e entre as ecovilas?

O desafio da governança * Tal como acontece com a economia, os ideais de justiça


e não exploração apontam as ecovilas em uma direção geral, mas não fornecem uma
orientação clara sobre como esses ideais devem ser colocados em prática. Aqui,
novamente, no entanto, podemos identificar algumas das questões prováveis que uma
ecoaldeia enfrentará em relação à sua governança:
● Como as decisões serão tomadas e quais métodos serão usados para quais
tipos de decisões?
● Como os conflitos serão resolvidos?
● Como as decisões da comunidade serão aplicadas?
● Quais serão os papéis e as expectativas da liderança?
● Como a ecoaldeia se relacionará com o(s) governo(s) no seu entorno?

O desafio da "cola" * Para lidar com todos esses desafios, os membros da ecoaldeia
precisam de algo que os mantenha unidos, alguma base de valores compartilhados e
visão que possa fornecer uma "cola". Desenvolver e manter esta cola é outro nível de
desafio que levantará questões como:

● Qual é a interação apropriada entre unidade e diversidade?


● Quais valores, comportamentos ou práticas comuns serão esperados no
grupo?
● Qual é a, se houver alguma, visão compartilhada do grupo?
● Como o grupo deve descobrir, desenvolver e evoluir essa visão?
● Quão próximo o grupo deve ser do ponto de vista interpessoal?
● Como pode essa proximidade ser melhor desenvolvida?
● Como o grupo se relacionará com outras pessoas de fora do grupo?

O desafio do “sistema todo”* Existe um desafio ainda mais profundo, e muitas vezes
despercebido, que é o do "sistema todo". Talvez o maior desafio enfrentado por
qualquer pessoa que esteja tentando criar uma ecoaldeia seja que ela requer
mudanças em muitas áreas diferentes da vida. Frequentemente, os fundadores da
comunidade tentam ou se sentem forçados a trabalhar em todos os aspectos dessas
mudanças simultaneamente. Quase todas essas mudanças demoram mais do que o
esperado e geralmente são mais caras do que o esperado. Além disso, cada área de
mudança interage com as outras áreas de maneiras imprevisíveis. Nesse processo,
recursos financeiros, recursos emocionais e relacionamentos interpessoais podem ser
colocados sob grande estresse. Quando as tentativas de criar comunidades
fracassam, uma das razões quase sempre é que o grupo simplesmente tentou fazer
muito rápido, em relação aos recursos de que dispunha.

O desafio do “sistema todo” é ter uma noção clara do escopo do empreendimento e,


então, desenvolver uma abordagem que permita que a comunidade se desenvolva em
um ritmo sustentável. Em outras palavras, a sustentabilidade não é apenas uma
característica da comunidade "completa"; precisa fazer parte do pensamento e dos
hábitos do grupo desde o início.

A construção de uma ecoaldeia bem-sucedida requer um equilíbrio de atividades entre


três fases principais - 1) pesquisa e design, 2) criação e implementação e 3)
manutenção - para cada uma das áreas de desafio.

Pode ser útil usar um diagrama simples para representar a relação básica entre esses
desafios:

Biossistema Ambiente Construído

Sistema Econômico Governança

Cola

Sistema Todo

Este é um diagrama de "blocos de construção", no qual, algumas partes do sistema


"repousam" em outras partes. O biossistema e o ambiente construído fornecem os
"requisitos" mais óbvios e visíveis para uma ecoaldeia. Eles são os blocos de
construção "superiores".

Descendo no diagrama, vemos que ele representa a ideia de que o sucesso no


biossistema e nas áreas de ambiente construído depende - é "construído" - para lidar
com os desafios econômicos e de governança. O sucesso nessas áreas, por sua vez,
depende de lidar com os desafios da cola.

Finalmente, todas as áreas de desafio mais específicas dependem de lidar com


sucesso com o desafio de todo o sistema. Ele abrange, em vez de fundamentar, todos
os outros. Não é um bloco de construção, mas uma totalidade viva.

Diante desses desafios, não deve ser surpresa que, pelo que pudemos descobrir,
ainda não existam comunidades que expressam plenamente o ideal de ecoaldeia.
Esta é a má notícia. A boa notícia é que muitas comunidades e outros grupos fizeram
progressos consideráveis em cada um desses desafios. Existem até algumas
comunidades que poderiam, dentro de alguns anos, serem consideradas ecovilas
plenas.
Aqueles que agora voltariam seus esforços para alcançar esse objetivo – seja
começando uma nova comunidade ou desenvolvendo uma já existente - felizmente
não precisam começar do zero. Nós convidamos você a continuar lendo sobre o tema.

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