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A Vingança dos Deuses Cósmicos

Por Marcos Faria Martins Filho

A história que trago a vocês foi descoberta por mim em um antigo manuscrito
em árabe, feito por um homem chamado Imã Hassan, datada da época da
Revolta dos Malês, na Bahia de 1835.
Esse manuscrito ficou escondido junto a uma dezena de outros escritos
obscuros em árabe, nos arquivos do Convento do Carmo, em Salvador.
Durante uma reforma e restauro da capela do convento, um amigo restaurador
me chamou para colaborar devido a minha experiência como arqueólogo e
historiador da cultura árabe no ocidente. Eu era um dos poucos que poderia
traduzir a velha escrita tradicional árabe e que era conhecido por ele.
Os manuscritos estavam escondidos abaixo do altar que estava na antiga
biblioteca do convento. Selado com diversas marcas de sinetes e envolto em
peles, correntes e um pequeno pedaço de osso identificado como relicário de
Santa Genoveva, aparentava que era algo para que ninguém lesse ou ao
menos que não poderia ser destruído por forças humanas, tamanho o cuidado
empregado para seu lacre e proteção.
E o que eu traduzi me deixou sem palavras. Muito mais do que um conto ou
informações sobre a Revolta dos Malês, eu encontrei uma história cheia de
horror, misticismo, assassinatos e que abalou minhas crenças no mundo real e
imaterial.
Deixo aqui a história tal qual foi contada, que ainda me arrepia os pelos da
nuca ao relembrar o que li. Não há alteração em nenhuma palavra escrita pelo
Imã Hassan, que provavelmente vivenciou ou ouviu esse relato de primeira
mão. Deixo para as suas mentes o julgamento do que encontrei, que de fato,
pareceria loucura junto à comunidade científica ou mesmo ao homem comum,
que como eu, jamais esperava encontrar uma história como essa quando botei
os olhos naquela pilha de papel apócrifa, que deveria ter sido deixada onde
estava.
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A cantadeira do velho carro de boi gemia mais do que de costume naquele dia
quente. Arrastado e lamurioso, o veículo primitivo e já muito velho, carregava
pouco mais do que três corpos, sendo que, visivelmente, um estava morto a
horas. Ele abria um cortejo lento de vencidos em mais uma guerra local entre
tribos fronteiriças do Reino de Queto, aliados históricos do Império Oió contra o
Reino do Daomé. Por essa época, o povo do Daomé estava levando a melhor
sobre o povo Iorubá e centenas de milhares de Iorubás de Queto e Oió
estavam sendo escravizados e vendidos aos ocidentais, que incentivavam a
guerra com ganância e com algumas armas e muito fumo e cachaça vindos do
Brasil, da província da Bahia.
Ojoji estava na carroça pelo simples fato de ser filho de um Obá, um
governante entre os Queto. Caso contrário, devido a seu ferimento, teria sido
abandonado aos abutres como parte do cenário de horror e sangue que ficou
no campo de batalha, com centenas de corpos dilacerados por balas, facas e
lanças. O mesmo horror do campo de batalha estava estampado nos cerca de
cento e vinte sobreviventes que sabia que uma vida de privação de liberdade
os esperava além do “Portão sem Volta”. Muitos imploravam aos seus deuses
o porquê não morreram ou morriam durante a caminhada, pois assim estariam
livres de tamanho sofrimento, enquanto que uma parte aceitava calada sua
triste sina.
O guerreiro no carro de boi mal agarrava-se a vida, mas a cada solavanco,
parecia que a vida se desgarrava mais e mais de seu corpo. Seus adornos no
corpo o identificavam claramente como alguém de linhagem superior, até
mesmo para alguém que não conhecia a hierarquia social daquela região, bem
como o colar trabalhado em seu pescoço. A estatura maior que a média e a
visível força do guerreiro o destacavam também, mas agora, ferido e sujo de
sangue coalhado e terra não lembrava em nada a realeza que inspirava e
invejara a tantos.
Os pensamentos passavam por Ojoji de forma desconexa. O ferimento acima
do quadril vertera muito sangue e estava sujo e cheio de moscas. Um ancião o
acompanhara calado e por estar na mesma carroça abanava a ferida das
moscas e utilizava uma pasta terrosa de um tipo de farinha que misturava a
sua saliva para fechar a ferida e evitar que infeccionasse. Mas isso era como
um delírio febril para o guerreiro, que não entendia como seus deuses puderam
deixar que eles perdessem e fossem mortos e escravizados dessa forma.
Entre delírios, desmaios e rápidos recobrar de consciência, ele via a imagem
do feiticeiro de sua tribo garantindo a vitória em batalha, pois dizia que Osowusi
e Esú garantiriam sua vitória sobre os inimigos. Ambos eram cultuados pelo
povo Queto e apesar de acreditar com muita fé, Ojoji discordava de mais uma
guerra. Seu povo estava sofrendo a muitos meses com a falta de comida e
chuvas e o combalido reino não seria capaz de frear as forças do Daomé.
Infelizmente seu pai, Obá não concordava e cegamente ouvia o velho
sacerdote, o único que parecia bem alimentado entre seu povo.
Seu peito encheu-se de raiva que cresceu até se tornar um ódio primitivo ao
lembrar de tudo, mas suas forças o deixaram antes que pudesse gritar ou
mesmo chorar de raiva e desespero. Antes de expressar qualquer atitude ou
sentimento, ele desmaiou e teve um sonho ou alucinação, que o jovem
guerreiro ferido não saberia por anos dizer o que realmente ocorreu naquela
procissão macabra que marcaria o fim de sua liberdade e o início de todos os
seus tormentos.
Em seu delírio viu-se no espaço, flutuando de forma etérea em uma espécie de
voo que antes só havia visto igual em falcões. O guerreiro viu pela primeira vez
o vazio do espaço e sentiu estar próximo as estrelas. A dor lancinante não mais
o incomodava e ao olhar seu ferimento parecia que nunca existiu. As
maravilhas que observava nunca tinha visto e ficariam gravadas em sua
memória por incontáveis anos.
De súbito, em um piscar de olhos, viu-se em uma grandiosa sala com paredes
de um tipo de metal que nunca vira antes. Ele tocou e viu que as paredes eram
frias como o chão. Diferenciava-se apenas pelo fato que o chão era como um
espelho de ébano, enquanto que as paredes eram em um tom esverdeado.
Ojoji olhava a tudo maravilhado, muito pela grandiosidade do lugar do que por
qualquer outro elemento, pois tirando alguns signos e elementos gravados em
baixo relevo nas paredes, que ele se recordava de ver em sua infância por
intermédio de sua avó, nada mais lhe era familiar.
Os símbolos evocavam seus deuses. Ele pensou estar morto e ter chego ao
Olorum, uma espécie de paraíso para seu povo, mas estava totalmente
diferente das lendas contadas por sua avó e outros anciãos de sua tribo. Nada
da terra de fartura de leite mel e muita carne de caça. Era uma realidade que
não compreendia, mas que logo ele iria descobrir.
De súbito duas figuras gigantescas lhe apareceram. Eram do tamanho de
cinco homens e de uma majestade nunca vista por olhos humanos em
qualquer ser nascente neste planeta. Irradiavam uma luz tênue e se
assemelhavam a Ojoji apenas no fato de aparentarem ter forma humana, mas
decerto o próprio guerreiro sabia que estava na presença de seres superiores,
provavelmente de seus deuses, ele imaginou.
Todos se olharam por segundos, embora o jovem guerreiro com medo e sem
saber o que dizer. As duas figuras, apenas com leve curiosidade, com um
sentimento como o que de uma leve surpresa que muda a rotina de uma
pessoa em sua manhã, mas não capaz de mudar significativamente sua vida
ou alterar seu mais insosso plano. Foram as figuras titânicas que primeiro
falaram na língua compreendida por Ojoji, sem abrir suas bocas, apenas
expressando seu pensamento para que o jovem pudesse ouvir.
“Você deve estar perguntando quem somos e nós vamos lhe responder ante
sua falta de palavras”, disse o primeiro ser que parecia ser um porta-voz dentre
ambos. “Somos aqueles de milhares de nomes, somos aqueles que vivem
incontáveis eras viajando pelo espaço aprendendo com os sábios e
disseminando conhecimento entre as raças menos evoluídas como vocês,
humanos. Estamos a incontáveis eras estudando o cosmo e seus habitantes e
buscando evitar sua destruição e fomentando sua construção. Para vocês
humanos, somos chamados de “Deuses” e desde que os ensinamos a arte de
se comunicar e como usar o fogo, temos ganhado incontáveis nomes”.
O segundo entre ambos que permanecera calado até então, se pronunciou da
mesma forma, sem mexer os lábios, mas sendo entendido pelo visitante que
estava estático ouvindo a tudo e tentando compreender o que estava
acontecendo: “Nossa forma é energia, mas isso seria muito difícil de você
compreender. Por hora, você nos verá como nos imagina e isso será o
suficiente. Você se pergunta o que faz aqui e não temos porque lhe negar esta
resposta: você cumpre o destino que vocês humanos determinaram para si
próprios. Vocês realizam todo tipo de atividades a seu bel prazer e quando algo
lhes acontece que não estava em seus planos, “oram” a nós para que
resolvemos seus problemas. Desde um simples acontecimento diário, a uma
decisão em suas vidas, esperam que nós resolvemos todos os problemas.
Esquecem-se que o arbítrio de cada decisão é de vocês e que não viajamos o
cosmo para modificar cada ação realizada em suas pequenas vidas. Ignoram
as dádivas que damos a vocês e se esquecem de nós, rogando apenas a
solução de cada problema que causam a vocês mesmos”
E continuou o outro ser divino na mesma forma impassível que seu antecessor:
“Esquecem que enquanto vocês pedem auxílio em uma batalha, como sua
gente fez, o outro lado faz igual. De quem deveríamos tomar partido, de que
lado está a verdade? Aos olhos do vencedor, nós o abençoamos com a vitória
e aos olhos do perdedor, o amaldiçoamos com a derrota. Não há como
interceder a cada chamado, por cada pedido, pois estamos ocupados com a
manutenção do universo e de incontáveis vidas. O que fazem com suas vidas
não podemos alterar. Você está aqui, como outros já estiveram, com o objetivo
de voltar e manter acesa a chama do trato feito entre os humanos e nós. Em
troca de tudo que lhes ensinamos desde o dia em que evoluíram de simples
macacos ao nível de inteligência que lhes permitiu construir as maravilhas
efêmeras que realizaram, que se recordem de nós e transmitam a seus
descendentes sobre nossa existência, dentro dos limites que conseguem
compreender. Um mero capricho que impelimos por todo o universo, mas que
nos agrada sermos reconhecidos pelo que estamos fazendo a todas as formas
de vida”.
Ojoji que até então tudo ouviu, sem compreender as palavras dos seres que
estavam a sua frente, começou a falar: “Não consigo compreender o que vocês
dizem, mas vejo que vocês são os deuses de meus antepassados, Esú e
Osowusi. Sempre mantivemos entre os Queto as honras que lhes eram
cabidas. Nunca faltamos de lhes oferendar mesmo quando passávamos fome.
Contamos as histórias e tradições por incontáveis gerações de seus feitos e
ensinamentos quando um dia vieram até nós. Não entendo o porquê nos
deram as costas e deram vitória a inimigos que não os glorificam ou relembram
de seus atos como nós. Eles riem de nossos deuses, por terem os deles e os
chamam de fracos, lhes faltando o respeito. Por sua recusa em nos ajudar,
perdemos e centenas morreram. Quantos mais morrerão por causa da falta de
ouvidos a nossas suplicas? Eu renuncio a tudo o que aprendi e renego a
vocês. Antes tivesse morrido e ido para o “Grande Vazio” do que ver que
acreditei em uma farsa. Vocês não se importam com nós, pois do contrário não
haveria esta guerra”.
“Tolo, não ouviu nada do que foi dito”, proferiu com a mesma passividade que
falara as palavras anteriores, o primeiro que havia se comunicado entre ambas
as entidades. “Não sabe dos horrores que podemos imprimir a sua frágil mente
devido a esse desacato. Antes de voltar você pagará por esta insolência, mas
não perderá sua sanidade. Irá executar cedo ou tarde a tarefa que o
incumbimos, pois demoraria demais um outro como você chegar aqui pelo
estado de quase morte e que tivesse uma aceitação entre seus pares como
você tem e terá. Os povos que estão escravizando sua gente esqueceram-se
de nós e agora rendem homenagens a um Deus que inventaram e que
segundo eles, permite que escravize seu próximo. A hora deles não tardará”.
Com essas palavras e sem permitir que Ojoji retrucasse o argumento, as duas
entidades viraram bolas de luz e partiram a uma grande velocidade pelo salão,
quando sumiram no seu canto superior esquerdo. Ojoji ficou sozinho por um
instante, até que repentinamente caiu de joelhos segurando seu crânio e
sentindo uma dor que transpassava de têmpora a têmpora de sua cabeça.
Em um piscar de olhos ele estava em um outro ambiente. Tudo era escuro,
fétido e podre. Lembrava o campo de batalha onde caíra, mas com uma
atmosfera diferente e maligna. Os céus eram vermelhos, a terra seca e as
arvores eram retorcidas e negras como carvão. Havia corpos em diversos
graus de decomposição espalhados pelo campo de batalha, como se
incontáveis guerras tivessem sido travadas naquele campo amaldiçoado.
A cada visão que dirigia ao chão era o corpo de um amigo ou parente de sua
tribo que avistava. Viu seu pai e irmãos desmembrados e apodrecidos, com
vermes comendo lentamente as carnes com cheiro de podre. O desespero
tomou conta de Ojoji que tentava fugir às lagrimas e sem saber para onde. Ao
longe, viu um corpo de uma mulher pendurado em uma árvore pelo pescoço.
Ao ouvir sua súplica, reconheceu no lamento a voz de sua mãe. O desespero
se abateu sobre o guerreiro, que correu até a árvore para ver o sofrimento da
mulher que o colocara no mundo. Sem ambos os olhos e com todos os dedos
decepados, ela implorava para que ele findasse seu sofrimento: “Acabe com
meu sofrimento de uma vez meu filho”, era a frase dita pela pobre alma
repetidas vezes, como em um lamurio infernal e obsceno.
Desesperado, Ojoji pulou tentando alcançar o corpo de sua mãe para libertá-lo
do suplicio, mas a cada pulo, parecia que a altura em que o corpo se localizava
se distorcia e aumentava. Ele ficou ali tentando alcançá-la até perder sua força
e cair no chão exausto. Nesse exato momento, a corda que a prendia pelo
pescoço ruiu e ela caiu sobre Ojoji, quase que instantaneamente explodindo
em milhares de vermes de todos os tamanhos e formas repulsivas, que talvez
somente quem visitou o inferno pudesse descrever.
Coberto de sangue, carne apodrecida de sua genitora e vermes, Ojoji chorou
como uma criança implorando para que acordasse daquele pesadelo. Mas isso
ainda não seria possível, pois não havia terminado o castigo dos deuses
celestiais. Ainda coberto por toda aquela sujeira pestilenta e repulsiva, sua pele
começou a ferver e bolhas apareceram por cada centímetro possível. A dor era
terrível e ele caiu ao chão se contorcendo. No auge de sua dor ele buscou
algo, mas nada achava naquela desolação além do toque da morte.
As bolhas começaram a crescer e ficar em um tom amarelo esverdeado,
quando uma a uma estouraram revelando centenas de vermes, como os que
caíram sobre ele. Os vermes começaram a comer sua carne lentamente e a
cada invasão milimétrica das abomináveis larvas, ele sentia em seu corpo
pontadas lancinantes. Ojoji não sabe dizer o quanto durou este tormento, pois
desmaiou de dor e caiu em um sono profundo, onde lembrava apenas de duas
coisas: das dores infindáveis do martírio sofrido e das palavras dos seus
deuses.
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Gritos e um chicote estalando foram o que acordaram o guerreiro preso. Ele
olhou assustado achando que ainda estava naquela terra assustadora, mas viu
que estava em uma cela junto com centenas de cativos das mais variadas
tribos. Assustado, ele tentou se levantar sem êxito, mas foi ajudado por um
membro dos Oiós que se via obrigado aquilo pelo seu chefe, que com muitos
palavrões em português e nagô, gritava enquanto estalava o chicote.
Haviam se passados muito dias desde que ele fora capturado quase morto.
Seu ferimento estava fechado graças a ajuda do velho na carroça, mas a falta
de comida o deixara fraco. Pensou por algum momento se estava em um
sonho ou se aquilo era real, mas a ponta do chicote ricocheteando em seu
rosto o fez lembrar da diferença entre o pesadelo da realidade e o pesadelo do
mundo dos sonhos.
Decidiu rapidamente que pensaria depois no que havia passado e tentaria se
concentrar no que estava acontecendo ao seu redor. Viu que estava em uma
fortaleza, uma espécie de prisão e pelo cheiro e barulho de mar ao seu redor,
estava na Costa. Isso era ruim. Sabia que o mercado de escravos se localizava
na costa e que os cativos vencidos em batalhas ficavam à espera dos
mercadores de escravos portugueses nesse local.
Ele foi tirado de sua cela pois o comandante daquele mercado macabro,
Francisco de Souza, soube que um filho de um Obá estava entre os cativos e
sabia que poderia lucrar mais com ele. Tratou-o com o que se poderia chamar
de cortesia entre aqueles cativos, mandando lavá-lo com um balde de agua
fria, lhe fornecer uma túnica de saco de farinha e de comer uma tigela de um
mingau fétido e uma cabaça pequena de agua. Francisco de Souza esperava
que um de seus capatazes voltasse da tribo de Ojoji, no Reino de Queto com o
resgate pedido pelo filho do chefe, do contrário, lucraria o vendendo como
escravo comum. De qualquer forma, era importante mantê-lo vivo, ao menos
por hora.
Ojoji tentou manter a serenidade. Sabia que precisava se alimentar o máximo
que pudesse para ganhar forças. Enquanto refletia sobre a experiência que
teve, imaginando se aquilo era fruto de um sonho (ou pesadelo) ou de uma
febre causada pelo ferimento de batalha, ele aguardava ansiosamente o
retorno do emissário a sua tribo. Sabia que seu pai pagaria o resgate e embora
lamentasse a sorte dos demais cativos ali com ele, entendia que não havia
como pagar resgate para toda aquela gente.
Dois dias depois o emissário voltou do Reino de Queto. Infelizmente seu pai
não pagaria seu resgate, pois havia sido deposto e morto por seu tio, que se
aproveitou da agitação da guerra tribal para tomar o poder e fazer um acordo
com o Império do Daomé, que em parte, auxiliou a pequena revolução. E não
era intenção de seu tio trazer de volta um herdeiro legítimo. Pelo contrário, ele
mandou uma boa soma ao emissário para que Ojoji fosse eliminado de vez da
linha de sucessão.
Quando Francisco de Souza foi informado do ocorrido ficou possesso e iria dar
cabo da ordem de eliminar Ojoji, senão fosse a chegada de um navio com
negociantes de escravos naquele dia. Pensando bem, ele avaliou que poderia
lucrar duas vezes, com o dinheiro do novo Obá de Queto e com a venda de
mais um escravo. Pouco importava se ele era um mendigo ou um príncipe.
Importava o quanto ele lucraria.
Quando viu que seu destino era a praça do forte, sabia que algo havia dado
errado. Ninguém lhe falou nada, mas Ojoji sabia que se o resgate não fora
pago, algo acontecerá a seu pai. Ele mordeu os lábios e mais uma vez
amaldiçoou os seus deuses em pensamento.
Na praça do forte iria ser montado um mercado improvisado, mas antes,
enquanto os mercadores recebiam o tratamento dado a visitantes
compradores, com comida simples em abundância e muito vinho e cerveja
barata para facilitar o escoamento das riquezas nas transações, os cativos
eram levados a uma sala onde eram banhados e limpos com cal para evitar
parasitas nos corpos.
Um a um, após esta rápida limpeza, eles seguiam em fila até uma pequena
capela, onde um homem anotava um nome cristão a cada um e estimava sua
idade pelo que um outro olhava nos dentes de cada cativo. A Ojoji coube a
idade de 18 anos (embora tivesse quase 27 primaveras) e o nome de José,
junto a um número: 82.633. A partir daquele momento, para os cristãos ele
estava “batizado” e oficialmente era tratado como escravo.
Ojoji se calou. Sabia que nada adiantaria dizer ou fazer. Também tinha
consciência que depois que passasse pela “Porta do Não Retorno” jamais
voltaria a ver sua terra e seu povo. As transações foram rápidas, pois Francisco
de Souza sabia que em dois dias receberia novos cativos, vindos de mais
guerras locais e não regateou nos preços, pois já havia ganho uma boa soma.
Após a avaliação dos compradores que examinaram aquelas pessoas como
animais, olhando seus dentes e os músculos de pernas e braços, o traficante
de escravos recebeu 443$000 (quatrocentos e quarenta e três contos de réis),
cento e cinquenta quilos de fumo, doze barricas de aguardente e 10 quilos de
pólvora e mais alguns sacos de munição, por 402 escravos. No destino final, no
Brasil, cada um seria vendido a cerca de 37$000 (trinta e sete mil réis). Os
lucros desse comércio macabro e hediondo eram tão grandes quanto o número
de mortos na travessia e isso era a justificativa dos preços praticados pelos
traficantes de escravos para os compradores.
As lágrimas e gritos de desespero aos que passavam pela Porta do Não
Retorno eram tentadas a serem caladas pelo chicotear dos escravistas. Ojoji
chorou, mas não um choro compulsivo. Um choro de ódio e rancor, onde
apenas lágrimas caiam de seu rosto sem a emissão de nenhum tipo de som
nem mesmo quando o chicote acertou suas costas para que apressasse seu
passo. Ele já havia sofrido algo muito pior, que ninguém ali poderia sequer
imaginar. Se fosse tudo aquilo um sonho, realidade ou alucinação, o jovem
escravizado ficava remoendo como poderia se livrar daqueles grilhões e matar
o maior número de seus captores antes de morrer.
Ele foi preso, acorrentado junto com seus pares, praticamente nu e deitado em
um espaço abafado, húmido e com pouco espaço para se mexer. A viagem
durava cerca de dois meses e após os primeiros quinze dias, cerca de um
quinto dos escravos morreram de diarréia. Quem morreu ficou acorrentado aos
que estavam vivos até o desembarque, quando os vivos eram levados para o
porto e os mortos jogados em alto mar antes do retorno do navio a seu sinistro
comércio.
Ojoji sobreviveu. O ódio do escravizado o mantivera vivo e a certeza de sua
vingança a qualquer custo era o que o impelia a continuar a viver naquelas
condições. Resolveu que na primeira tentativa mataria quantos pudesse, o que
seria para ele uma forma de vingança bem-sucedida. Pensou em arregimentar
um número maior de cativos, mas isso poderia levar tempo e ele não deseja se
demorar em se vingar e rever seus familiares e antepassado mortos.
Ele desembarcou na Bahia de Todos os Santos, na cidade de Salvador. Corria
o início do ano de 1835 e ele não conhecia nada dos costumes daquela terra.
Ao desembarcar, um novo mercado de escravos, uma nova cela, um pouco de
comida com gosto de podre, mais grilhões e mais ódio.
Quando um velho gordo abriu sua boca com força para ver seus dentes ele
mordeu com tanta força que decepou o dedo indicador do negociante. Aquela
ação gerou tumulto e muita agitação no mercado de escravos. Ojoji, chamado
agora de José, cuspiu o dedo com um sorriso no rosto, mas isso teria um
preço... após uma longa sessão de torturas que não cabe a descrição pela
crueldade utilizada, ele só não foi morto, pois os lucros com a viagem estavam
escassos e os mercadores da morte queriam ganhar cada moeda que
pudessem, mas antes tinham que passar um exemplo.
Castigaram impiedosamente Ojoji e arrancaram-lhe um dedo na frente dos
demais escravos para que servisse de exemplo. A tortura foi tamanha que
novamente Ojoji desmaiou, mas desta vez não encontrou deuses ou viagens
de seu corpo, muito menos sofrimento em sua mente. O sofrimento era real e
físico e quando acordou, encontrou um homem cativo ao seu lado, que cuidava
de seus ferimentos. Ele se chamava Dassalu, mas para os brancos escravistas
era Joaquim. Mantinha com orgulho seu nome e somente atendia pelo nome
cristão que lhe fora dado com nojo e asco. Era mulçumano de uma região mais
ao norte de onde vinha Ojoji e no Brasil era conhecido como malê, referência a
todo escravo que professava o islamismo e conhecia o Alcorão e a escrita em
árabe.
Dassalu aparentava a mesma idade e compleição física de Ojoji e o ajudou,
pois dizia que “assim dizia O Profeta”. O escravizado agredido agradeceu ao
desconhecido e falou que ficaria em débito com ele. Ambos ficariam juntos,
pois foram comprados por João do Prado Cintra, português que ávido por bons
negócios foi o único disposto a dar lances em um escravizado malê e em outro
que agredira um potencial dono e talvez não sobrevivesse ao castigo imposto.
Na mentalidade do português, fizera um excelente negócio, pois comprou os
dois por menos da metade do que vendiam escravos como eles e sua fama de
selvageria no trato com seus escravos era notória. Achava queria fácil
“amnsssá-los”.
Ambos e mais uma mulher escravizada e adquirida no mesmo dia seguiram
com ele para a fazenda que tinha em Lauro de Freitas comarca próxima a
Salvador. Ciente do estado em que se encontrava uma de suas “peças”,
principalmente o que fora castigado, o fazendeiro escravista deixou que Ojoji
descansasse o restante do dia, pura e simplesmente para não perder seu
investimento.
Enquanto se recuperava Ojoji pensava em como se libertar e se vingar de seus
algozes e acabou por pensar no que havia vivido antes da viagem para esta
nova terra. Como ele poderia mesmo que quisesse honrar seus deuses, pedir
sua ajuda, ou mesmo praguejar contra eles se não pudesse ser ouvido. Foi
nesse ponto que algo entrou na senzala em que repousava com os pés
agrilhoados, que o fez gelar de medo.
Era uma forma escura, com longas asas negras, como um morcego. Olhos
vermelhos pareciam combinar sinistramente com dentes afiados e mãos
grandes como garras retorcidas. Era uma visão macabramente humana que
impingiria terror a qualquer um que visse pela primeira vez. A pele era
corrugada, escura, como que coberta por escamas, mas exalava um odor
doce, contrastando com a aparência trevosa que aparentava. Com uma voz
rouca, mas ao mesmo tempo suave, dirigiu-se a Ojoji em seu dialeto natal.
“Não tema filho de Queto. Vim para auxiliar sua vingança. Sou um serviçal das
forças cósmicas que você conheceu como seus “Deuses” e busco minha
redenção para voltar a minha morada astral. Sou um viajante do espaço que
paga por seus erros nessa terra amaldiçoada. Aos olhos de todos, aparento ser
mais um escravizado, mas você vê uma das minhas materializações de
energia, algo que os escravizadores dessa terra poderiam chamar de demônio.
Você tem a capacidade de me ver em uma de minhas materializações porque
absorveu parte da energia de meus mestres e pude pressentir sua presença
energética a muitas léguas de distância. Tranquilize-se, pois não sou bom nem
mal. Apenas trabalho em acordo com interesses maiores do que a existência
de seu planeta. Está para ocorrer acontecimentos que você não ousa sonhar e
que posso auxiliar com meu poder a preservar a vida neste universo e não
quero ficar para sempre neste planeta prisão”.
Ojoji só poderia ouvir, sem ao menos se manifestar na condição que estava.
Ele tomou coragem e perguntou o que a estranha figura precisava dele, ao que
ela prontamente acrescentou: “Quero que excute sua vingança e de todos os
que sempre juraram lealdade e respeito as forças cósmicas, contra seus
escravizadores e sua falta de respeito as forças ancestrais que os fizeram
evoluir de simples animais a seres inteligentes. Embora sem saber os motivos,
sua gente passou de geração em geração o respeito ao conhecimento que
meus mestres lhe transmitiram e embora suas mentes simplórias o identifiquem
como deuses, somos entidades responsáveis pela sintonia de todo universo e
para isso agimos hora com benevolência ora com a face do horror. A você
caberá trazer o horror a todos os que escravizaram nossos leais seguidores”.
E ao dizer isso e vendo a dificuldade de compreensão frente ao horror que
visualizava, a entidade alada tocou a fronte de Ojoji e fez com que ele viajasse
acima do tempo e do espaço e começasse a observar o homem em sua
aurora. Viu os primeiros homídeos e o contato com as forças superiores que
denominavam deuses e como eles lhe concederam ensinamentos sobre a fala,
a escrita, sobre a agricultura, a domesticação de animais e sua criação, o fogo
e a medicina. Viu templos e construções magnificas sendo edificadas com o
auxílio das mesmas entidades que a cada época e a cada sociedade,
modificavam sua forma e nomes. Viu também a ira e o horror que as mesmas
entidades lidavam com aqueles que lhe viravam as costas e como sociedades
inteiras eram dizimadas e riscadas do mapa como se nunca existissem,
deixando para trás somente lendas sobre sua existência. Verdadeiros
cataclismas aconteciam sob seus olhos e populações inteiras eram varridas por
pestes, fome ou mesmo sob o signo da loucura onde dizimavam a si próprios.
Foi neste momento em que a pressão sob sua mante já o deixava sob o
precipício da loucura, que Ojoji se afastou da criatura como que repelido por
um choque e voltou a sua realidade. A criatura transferiu parte de seu poder e
consciência a Ojoji, pois a ela era velado interferir no arbítrio humano, mas
poderia conceder a um mortal uma pequena e infinitesimal parte de seu poder
para que ele servisse de espada da justiça eterna, como uma arma viva da
vingança dos deuses cósmicos.
Por um momento Ojoji vacilou mas recobrou suas forças e viu não somente
sua força física e seus ferimentos se curarem. Ao se virar para agradecer não
havia mais criatura, mas sua consciência conseguia se comunicar e agradecer
a ela. Era hora de agir e se vingar de quantos fossem possíveis. Com o próprio
pulsar ele arrebentou os grilhões e partiu rumo a casa grande. Já era
madrugada e todos dormiam.
Na entrada ele encontrou um dos capatazes, um dos filhos bastardos do dono
daquelas terras, com alguma escrava pega a força pelo velho e gordo
escravista para satisfazer seus nefastos desejos. Sem acordar e saber o que
lhe aconteceu, sua força vital foi aspirada pelo novo Ojoji, que deixou apenas
uma carcaça ressequida sentada na mesma cadeira em que o capataz dormia
anteriormente ao guardar a casa. A energia vital absorvida fez com que ele
ficasse ainda mais forte quando adentrou a casa.
Nada nem ninguém fora poupado. Ojoji lembrava do grito de mulheres e
crianças de sua tribo, das pessoas no navio tumbeiro e teve a mesma piedade
com que fora reservada ao seus com seus algozes. Todos pereceram sem dor
e rapidamente. Esta era a única clemência que poderia conceder, exceto por
João do Prado Cintra. A este que tanto prezava o título de o “amansador de
escravos” ele reservou uma pena em vida. Pelo espaço de uma hora terrestre,
que no mundo de dor e sofrimento para o qual remeteu o velho português
pareciam séculos, Ojoji fez ele provar de cada uma das torturas que ele
impingiu a sua gente. Ojoji o levou para um recôndito da mente do escravista
que só poderia ser descrito como o inferno e lá ofereceu todo tipo de
sofrimento conhecido desde a aurora dos tempos.
Sua mente fora sodomizada a tal ponto que não haveria mais nada do antigo
dono de fazenda restando apenas um velho mentecapto que habitaria mais um
fétido manicômio. Vivenciar todas a torturas que impeliu ao seus escravizados
não foi possível de ser suportada pelo velho Cintra, que clamava clemência e
chamava por Jesus a todo o instante, mas aparentemente, seu Deus o havia
esquecido.
Enquanto era deixado exposto nu para ser comprado e examinado por seres
bestiais, ele era privado de comida, agua e sono por décadas, sem ter a
chance de morrer. A cada dia carregava enormes pedras de um lado para o
outro, enquanto sua carne era rasgada por chicotes com pontas metálicas.
Toda vez que vacilasse e caísse, animais que se assemelhavam a enormes
chacais começavam a comer sua carne, que apodrecia a cada mordida e
provocava ferida muito doloridas. Ao retornarem ao mundo real, Ojoji sorria em
triunfo, como o algoz de um criminoso confesso enquanto que o fazendeiro
balbuciava palavras ininteligíveis, como que em um estado de transe, babando
e com olhos vítreos.
Ele saiu da casa grande e direcionou-se a senzala. Como que estivesse
flutuando ele arrebentou a porta somente com um gesto e com a voz firme e
poderosa que somente um deus poria ter, ele libertou a todos e mandou
seguirem suas vidas longe daquele local. Os escravizados não sabiam o que
dizer. Alguns fugiram, outros davam graças em diferentes línguas africanas
achando que o mais novo cativo era Exu ou Ogum para outros. Todos tinham a
ciência de que não era um homem que estava ali e sim algo superior ao
conhecido humano.
Foi Dassalu o único que ficou e teve coragem de lhe dirigir a palavra. “- Você é
um Djin?”, ao que lhe foi respondido: “ – Não, sou a espada da justiça imortal.
Hoje todos serão libertos, vingados e os que decidirem voltar comigo para a
África, poderão vir ao final da minha vingança ou estão livres para viverem a
vida que desejar nesta terra amaldiçoada”.
O malê se encheu de coragem e pediu para ir com ele. A tempos, ele e seus
irmãos seguidores do Islã, mais alguns hauçás e nagôs planejavam uma
insurreição contra os opressores brancos. O episódio que ficaria marcado na
história a ‘Revolta dos Malês”, teve na verdade um desdobramento muito
diferente de tudo o que foi narrado de forma oficial, pois assim temiam os
opressores que muito mais do terror que aconteceu na noite daquele dia 24
para o dia 25 de janeiro de 1835 pudesse ocorrer novamente.
Ojoji não se importou que Damalu o seguisse, até porque ele poderia lhe
indicar fazenda a fazenda até o porto de Salvador, todos os locais onde
libertaria os escravos até o raiar do sol. Ele sabia ou ao menos sentia que com
os primeiros raios da manhã seu poder extraordinário o iria abandonar.
E assim ocorreu nas próximas cinco fazendas que visitou libertando os
escravizados e impingindo um horror a todos aqueles que escravizavam. De
acordo com as práticas de tortura que realizavam, ele as replicava em seu
universo paralelo dentro da mente de cada um dos condenados. Deixando ora
um comerciante de escravos definhar de fome e sede por séculos sem que
morresse, ou um capitão do mato ou feitor ser açoitado até que suas carnes se
desprendessem dos ossos. Aos violadores de mulheres ele dispendia uma
atenção especial: deixava a cargo de bestas infernais para que o
sodomizassem continuamente por séculos.
Embora cada ato justiceiro parecesse aos olhos de Damalu acontecerem
rapidamente, ele sabia que algo maior estava acontecendo nas mentes dos
homens que eram tocados pela vingança de Ojoji. Rapidamente ele mandou
um emissário a Salvador contatar o Imã Hassan e encontrar uma embarcação
que pudesse levar a todos de volta a África. Entre os libertos muitos fugiam,
pois nasceram em cativeiro ou não se lembravam mais do velho continente, por
terem sido arrancados muito jovens de suas tribos, mas havia muitos que
sonhavam em voltar livres!
A cada fazenda liberta, um novo horror recaia sobre os escravistas, mas era
certo que ninguém ficava para contar história, exceto os libertos que fugiam ou
acompanhavam Ojoji e Damalu até o porto da antiga capital. Na quinta e última
fazenda, antes de adentrarem em Salvador, os donos sentiram sua carne ser
devorada por vermes lentamente. A agonia sofrida por Ojoji agora era
suportada por mentes fracas, não a de um guerreiro e logo sucumbiam a
demência. Os poucos que retornaram deste mundo de terror levado por Ojoji e
seu poder sobrenatural, retornavam imbecilizados, gritando palavras
desconexas e muito longe das pessoas respeitáveis como se apresentavam.
Ao adentrarem em Salvador, eram aguardados por um grupo de malês no
chafariz do Pilar, perto do Pelourinho, liderados por Manoel Calafate. O grupo
formado por cerca de cinquenta malês trajando abadás brancos e seus
tradicionais patuás com frases do corão escritas pelo Imã Hassan, não poderia
passar despercebido da polícia local, que logo se mobilizou. Alguns haçuas e
iorubas atearam fogo em algumas casas, como a do mercado de escravos e a
de um conhecido traficante, chamado Pedro Bento.
A cada incursão o número de revoltoso ia crescendo. As batalhas foram
rápidas e cerca de cinco malês foram mortos e dezenas presos. Conta a
história oficial que dezenas foram deportados para a África, pois sua
participação na revolta não havia sido comprovada. Cerca de quatro homens
que nada tinham a ver com a revolta foram fuzilados para poder acalmar a
população branca de Salvador. Mas o que se segue nesse texto é a verdade
de fato.
Enquanto os malês que desejam derrubar o poder e fundar uma república
islâmica em Salvador, respeitando a todas as religiões em acordo comum com
os demais apoiadores do movimento, ficaram e lutaram contra os policiais
brasileiros, o grupo de Ojoji seguiu seu plano inicial e rumou para a região do
porto. Lá encontraram uma escuna chamada ironicamente de “Caridade”. Ela
estava abastecida, pois era um navio negreiro disfarçado e iria içar âncora
naquela manhã. Os revoltosos se aproveitaram e tomaram facilmente a
embarcação, que era guardada por apenas quatro marinheiros que estavam
muito bêbados em comemoração a seu último dia em terra.
Um deles em especial muito interessou a Ojoji, que reconheceu nele o homem
que havia decepado seu dedo, em represália por ter arrancado o dedo do
gordo fazendeiro escravista. Com pouco tempo devido ao amanhecer, ele
agarrou seu algoz que demorou em reconhece-lo e quando o fez, era tarde
demais. Pressionando seu crânio com as mãos, Ojoji parecia ter uma força
sobrenatural ao seu lado ou mesmo direcionado suas mãos. Enquanto o chefe
dos marujos do Caridade tomava conta de seu fim iminente e gritava com a
pressão exercida sobre seu crânio, Ojoji o apertou até estourar como uma fruta
podre. Não havia tempo para a tortura merecida, apenas a execução sumária
de um dos maiores matadores de escravos do hemisfério sul. Ninguém entre
os escravizados sabia seu nome, mas sua fama era conhecida por todos. Um
misto de alegria e pavor tomou conta dos homens que rumavam rumo a
liberdade e um deles ofereceu um pano para Ojoji se limpar dos pedaços da
cabeça do agora falecido capitão escravista.
Os demais marujos não ofereceram resistência depois do que viram e correram
ou saltaram no mar. Cerca de 120 homens embarcaram no Caridade rumo a
África, muitos deles experimentados no ofício de marujos, pois trabalhavam
nas docas ou na cabotagem. Não seria difícil chegar a costa do Benin de volta
para casa. Muitos eram de lá, outros de outras terras distantes como Angola,
Moçambique e São Tomé. Mas sabiam que somente juntos poderiam
sobreviver. Tinham a promessa de Ojoji de liberdade em sua terra e lutariam
por este homem inspirado pelos deuses em qualquer batalha.
Naquele momento, Ojoji já estava sem o seu poder devido aos primeiros raios
de sol, mas sabia que logo mais, quando anoitecesse, o poder estaria de volta.
Havia muito para se pensar durante a viagem, principalmente que horrores
delegar a seu tio usurpador. Quando estava em alto mar, recolhido a pequena
cabine do capitão, após inspecionar a carga e os mantimentos que levava, Ojoji
recebeu uma visita espectral.
Era o mesmo ser que lhe legou os poderes, porém agora em uma visão menos
aterradora. Era um homem negro como ele com asas como uma águia. Seus
olhos eram de uma luminescência cegante, mas ele rapidamente reconheceu
pela voz e pela energia que se tratava da mesma entidade que lhe falara no dia
anterior naquela senzala.
“Ojoji você libertou a si, a seus companheiros e sua vingança me libertou.
Divulgue a boa nova: que os deuses de seus ancestrais lhe deram o poder
para ser a espada vingadora contra o seu opressor. Você seguirá com seu
poder e o use com sabedoria no governo do seus. Cuide para que seja justo e
não deixe mais serem escravizados. Nós lhe daremos o poder e a força para
esse intento. Enquanto manterem sua promessa de passar a seus
descendentes nossa história, assim como a recebeu de seus ancestrais, seu
povo não será escravo de ninguém”.
Com essas palavras o ser tornou-se uma bola de luz amarela e ascendeu aos
céus, em uma velocidade impressionante, ultrapassando as nuvens e tudo o
que os olhos dos homens poderiam alcançar.
E assim Ojoji se tornou governante dos Queto quando voltou e viu seu tio
afastado do poder devido a uma demência repentina que o acometia e
ninguém sabia explicar os motivos. Enquanto Ojoji viveu, os Quetos foram
independentes, mas após a sua morte e com a entrada de muitos missionários
no país, muitos se converteram e esqueceram as crenças tradicionais. Já não
lembravam de seus deuses ancestrais que eram chamados de “demônios”
pelos missionários. Não demorou muito tempo e o reino caiu para o
daomedanos e foi incorporado ao Reino do Daomé, seus inimigos históricos.
Seu povo foi dizimado pela guerra e os que não foram mortos foram
escravizados e enviados ao Brasil, último país ocidental a ter tráfico de
escravos. Assim cumpria-se a profecia da entidade a Ojoji, que não estava
mais aqui para lamentar a escravidão de seu povo ocorrer pelo esquecimento
dos seres cósmicos que eles chamavam de deuses.

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