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A mesma criatura em corpos diferentes: uma análise das materialidades de edições de Frankenstein

Paulo Ailton Ferreira da Rosa Junior

A mesma criatura em corpos diferentes: uma análise das materialidades


de edições de Frankenstein

The same creature in different bodies: an analysis of the materialities of


editions of Frankenstein

Paulo Ailton Ferreira da Rosa Junior1

Resumo

O propósito deste trabalho é evidenciar como diferentes edições de uma mesma obra oferecem, pela configuração
de seus paratextos editoriais, diferentes experiências de leitura. Para tal, propõe-se, de forma mais específica,
uma comparação dos peritextos editoriais, definidos a partir de Genette (2009), em três edições brasileiras de
Frankenstein, de Mary Shelley: uma da L&PM Pocket (2017a), outra da DarkSide (2017b) e uma
última da Zahar (2020). O estudo se apoia, ainda, em autores como Chartier (2003), Manguel (1997)
para pensar as relações da materialidade do objeto livro com os seus leitores, uma vez que a prática da leitura
literária relaciona-se de forma indissociável com esse tema.

Palavras-chave: Literatura e materialidades. Paratextos editoriais. Peritextos. Frankenstein

Abstract

The aim of this work is to evidence how different editions of a same book offer, by the configuration of their
editorial paratexts, different reading experiences. For such, it is proposed, more specifically, a comparison of
the editorial peritexts, defined from Genette (2009), in three Brazilian editions of Frankenstein, by Mary
Shelley: one from L&PM Pocket (2017a), another from Darkside (2017b) and a last one from Zahar
(2020). The study is also supported by authors such as Chartier (2003), Manguel (1997) to think the
relations of the materiality of the book object with its readers, once the literary reading practice is inextricably
related to this theme.

Keywords: Literature and materialities. Editorial paratexts. Peritexts. Frankenstein

Recebido em: 04/10/2020

Aceito em: 16/02/2021

1Licenciado em Letras (Unipampa), Especialista em Linguagens Verbo/Visuais e suas Tecnologias (IFSul),


Mestre em Educação (UFPel) e Doutorando do Programa de Pós-graduação em Letras, na área de concentração
dos Estudos Literários, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-4182-1070

Leitura, Maceió, n. 68, jan./abr. 2021 – ISSN 2317-9945 357


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Introdução

Quando Mary Shelley concluiu Frankenstein (or: the modern Promotheus, como
acompanha seu título original em inglês) em 1917, como o ponto final resultante do desafio
proferido por Lord Byron a “criar uma história de fantasmas” no chuvoso verão do ano
anterior, com certeza não sabia que estaria trazendo à vida um expoente da literatura
fantástica (de terror, de ficção científica), tanto quanto o personagem título da narrativa
avivava uma criatura monstruosa no seu enredo.

Assim, pelos duzentos anos que se seguiram, a história do monstro que no imaginário
comum confunde-se com o nome do seu criador vem cooptando leitores de forma
“assombrosa”, pois, como previnem Araújo, Almeida e Becari (2018, p. 10), a verdade é que
quem lê esta obra é imediatamente “envolvido na história, não quer parar a sua leitura, fica
cativo do romance”. A perenidade do fascínio por Frankenstein, concordam esses estudiosos,
se dá, pois, tratando de um tema universal, que é o das nuances da natureza humana, cada
época poder servir-se dele para ilustrar e mostrar os seus novos problemas, receios, medos e
apreensões (ARAUJO, ALMEIDA, BECARI, 2018, p. 57).

À primeira edição de Frankenstein, em três volumes, que veio anonimamente à fraca


luz dos dias que iluminavam a Inglaterra pré-vitoriana (a imaginação gótico-romântica
compõe sempre esse lugar específico do tempo e espaço envolto em brumas), no ano de
1818, seguiu-se uma reedição em dois volumes para o ano de 1823 – estes já sob a assinatura
de Shelley – e a ela uma revisão definitiva do texto para uma terceira reedição de volume
único, em 1831. Esta última tem servido, majoritariamente, a partir daí, como fonte para um
sem número de edições nas mais variadas línguas e dirigidas aos mais variados públicos.

Assim, tendo em vista que o objeto livro construiu-se historicamente como um dos
suportes materiais mais tradicionais para os textos literários e entendendo, a partir de
Chartier, que no ato de leitura “a significação, ou melhor, as significações, histórica e
socialmente diferenciadas de um texto, qualquer que seja, não podem ser separadas das
modalidades materiais que o dão a ler a seus leitores” (CHARTIER, 2003, p. 46), o propósito
deste trabalho é evidenciar como diferentes edições (brasileiras) de Frankenstein oferecem
diferentes experiências de leitura dessa obra e, consequentemente, abrem o texto a
interpretações também diversas.

Propõe-se, assim, um estudo comparativo de três edições de Frankenstein atualmente


em circulação no mercado nacional: uma da L&PM Pocket (2017a), outra da Zahar (2020) e
uma última da DarkSide (2017b), a fim de descrever e analisar suas materialidades. Para tal,
a análise se debruçará nas nuances editoriais que Genette (2009) compreende como
paratextos. Segundo o autor, uma das suas funções é apresentar a obra ao leitor funcionando
como porta de entrada para o texto literário em si. Conceitualmente, ele o define como
“aquilo por meio de que um texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores, e de
maneira mais geral ao público” (GENETTE, 2009, p. 9).

Sendo outra importante função do paratexto editorial conduzir a leitura, ao


comunicar uma informação, expor uma intenção ou mesmo esclarecer uma interpretação,
considera-se que a partir de um olhar sobre os peritextos, paratextos que se localizam “em
torno do texto, no espaço do mesmo volume” (GENETTE, 2009, p. 12), que dão forma ao
objeto livro como o reconhecemos, intrínsecos à experiência de leitura de uma edição em
específico, tornar-se-á possível demonstrar como ela suscita ou oferece uma imersão
particular na narrativa.

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Desenvolvimento

Propõe-se aqui analisar os peritextos das obras citadas a fim de evidenciar as


diferentes experiências de leitura que elas oferecem, principalmente, porque compreende-se
que discutir aspectos da materialidade dos livros significa discutir, em essência, o poder de
atração e de atuação que esse objeto tem sobre o seu leitor, pois, como postula Manguel:

Os livros declaram-se por meio de seus títulos, seus autores, seus lugares
num catálogo ou numa estante, pelas ilustrações em sua capa, declaram-se
também pelo tamanho. [...] como ocorre com todas as formas, estes traços
cambiantes fixam uma qualidade precisa para a definição do livro. Julgo
um livro por sua capa, julgo um livro por sua forma (MANGUEL, 1997,
p. 149).

Assim, é certo que as edições selecionadas para análise neste trabalho – apresentadas
no quadro a seguir – não surgem aqui fruto de uma escolha arbitrária. São livros de uma
biblioteca pessoal, a saber, do autor, que as selecionou a partir do seu gosto, pensando na
sua própria experiência sensível com esses materiais de leitura. Por isso, além de guiar-se
pelas evidências materiais – peritextuais – das edições a serem estudadas, esta análise não
estará isenta das impressões de leitura particulares do pesquisador, enquanto leitor das obras
pesquisadas. Pelo contrário, elas figurarão como interpretação dos dados. Isso posto, para
iniciar, cabe caracterizar o corpus quanto a algumas especificidades de cada edição.

Quadro 1: caracterização das edições analisadas.

Capa

Editora L&PM Zahar DarkSide Books


Selo/Coleção L&PM Pocket Clássicos de bolso Zahar Medo Clássico
Ano de 2017 2020 2017
publicação
Tradutor(a) Miécio Araújo Jorge Santiago Nazarian Márcia Xavier de Brito
Honkis
Dimensões 12 x 18 cm 12,5 x 18 cm 16,5 x 23,5 cm
Formato Brochura/Bolso Capa dura/Bolso de luxo Capa Dura/Deluxe
Edition
Nº de páginas 253 p. 310 p. 299 p.

Fonte: produzido pelo autor.

Sobre os elementos elencados no quadro, que resultam de um primeiro exame sobre


os livros, vale ressaltar, inicialmente, uma averiguação: a diferença entre o número de páginas
de cada uma das três edições em análise. Assim, apesar de darem corpo à mesma narrativa,
em essência, o mesmo texto literário (a fonte de ambos é o texto integral em inglês de Shelley
publicado em 1818) e não se tratarem de adaptações dessa história no sentido de atingir um
público infantil, por exemplo, em que os textos sofrem alterações sintáticas significativas, as

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edições em questão variam de 253 a 310 páginas. Essa característica poderia ou não ter
relação direta com a extensão que a tradução ganharia, levando em conta as decisões
semânticas tomadas pelo seu recriador ou recriadora. Entretanto, ao compararmos os
objetos, fica evidente que a variação acontece devido a diferentes aspectos editoriais desses
produtos impressos, como o tamanho dos livros, a tipografia utilizada neles, a configuração
das suas margens, a presença de imagens, enfim, a maior ou menor quantidade de elementos
paratextuais inseridos na obra.

Percebeu-se, a partir disso, que essa diferença no número de páginas se deu por dois
principais motivos materiais que se influenciam mutuamente: primeiro, as dimensões das
edições que apresentam diferente configuração ou ajuste do texto ao tamanho das suas
páginas. Enquanto, como é possível averiguar no quadro anterior, duas delas são mais
próximas em medidas, quais sejam, a da L&PM Pocket e a da Zahar, a segunda sendo apenas
um pouco mais larga que a primeira, ambas usam espaçamento entre linhase
parágrafosbastante distinto: a segunda preenche menos o espaço da página do que a primeira.
A epístola que abre o romance toma, assim, três páginas e meia da versão da L&PM Pocket,
enquanto na versão da Zahar quase cinco páginas. Já na edição da DarkSide,
significativamente maior que as duas citadas anteriormente e de folhas bastante preenchidas
pelo texto, ocupa menos que três páginas inteiras. As imagens a seguir evidenciam essa
diferença de dimensões e preenchimento do espaço das páginas entre as edições.

Figura 1 – Foto das três edições analisadas.

Fonte: produzida pelo autor.

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Figura 2 – Configuração dos textos às dimensões das edições, respectivamente, L&PM Pocket, Zahar e
DarkSide.

Fonte: produzida pelo autor.

O segundo motivo pelo qual a quantia de páginas das edições varia se dá devido ao
volume de peritextos identificáveis em cada uma, com destaque para a edição da DarkSide
que, não fosse pela quantia de peritextos, devido às suas dimensões e ao preenchimento das
folhas, provavelmente estaria mais próxima em número de páginas da edição da L&PM
pocket. O quadro a seguir mostra, então, os peritextos mais evidentes com os quais este
estudo trabalhará a seguir.

Quadro 2 – Elementos presentes em cada uma das edições.

L&PM Pocket Zahar DarkSide


Primeira e quarta capa X X X
Guardas X X
Anterrosto X
Folha de rosto X X X
Epígrafe X X
Dedicatória X
Sumário X X
Introdução ou X X X
Apresentação
Prefácio X X
Posfácio X X
Biografias X X
Ilustrações X
Outros X

Fonte: produzido pelo autor.

Nesta análise, observaram-se as peculiaridades de cada edição e compararam-se os


elementos paratextuais (peritextos) que compõem a materialidade das obras, buscando
encontrar diferenças, semelhanças e registros de intenções. A seguir, esses encontros serão
interpretados a partir das impressões de leitura de cada obra.

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A criatura no corpo da L&PM Pocket

Figura 3 – Frankenstein da L&PM Pocket: capa, lombada e quarta capa.

Fonte: produzida pelo autor.

Se comparado ao das outras duas, o projeto gráfico dessa edição é o menos


chamativo. A capa (de papel mole) reproduz uma imagem estilizada da figura do monstro
mais famosa, aquela representada por Boris Karloff na versão de 1931 para o cinema, em um
fundo vermelho simples. Não há orelhas, apesar de ser brochura. A lombada, em horizontal,
repete o título do livro, a autoria, a editora e informa que trata-se do volume 54 dessa coleção
de edições de bolso (formada por títulos de variados gêneros). Genette (2009, p. 24) comenta
que a edição de bolso é “simplesmente a reedição a preços baixos de obras antigas ou recentes
que passaram antes pelo teste comercial da edição corrente” e que “quem diz ‘bolso’ diz
sempre ‘coleção’” (GENETTE, 2009, p. 25), reafirmando as características evidenciadas
desta edição. A contracapa repete o vermelho da capa na anotação “um dos maiores clássicos
de terror de todos os tempos” e traz um comentário em três parágrafos, em fundo branco,
sobre a concepção e recepção da obra; o endereço eletrônico da editora; o selo junto do
slogan “a maior coleção de livros de bolso do Brasil” e da (importante) advertência de que
se trata do texto integral; o código de barras.

Apesar de pouco caprichada visualmente, atendendo à demanda de um produto mais


barato, esta edição da L&PM para Frankenstein é bastante completa em peritextos. Traz a
importante epígrafe extraída de “O Paraíso Perdido”, que dialoga com o dilema principal do
monstro da narrativa, dois textos de entrada para o romance assinados pela própria autora –
uma introdução para a edição de 1831 em que ela fala de sua trajetória pessoal culminando
no fatídico verão em que a ideia da história a assombra pela primeira vez e as alterações que
fez para esta que seria considerada a versão definitiva e um prefácio para a edição de 1817,
de digressão mais modesta, em que ela toca brevemente nos tópicos em torno dos quais gira
a narrativa –, bem como um posfácio escrito por Harold Bloom, com ares de texto crítico,
em que ele explicita questões como as do duplo, da referência ao mito de Prometeu, da
relação da obra com aquela de que sai a epígrafe, entre outras chaves de leitura.

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Ao leitor mais desavisado essa pode não ser a edição que mais chame a atenção em
uma estante virtual ou de livraria, embora seu preço seja consideravelmente mais baixo, mas
como material de leitura oferece uma experiência bastante potente com a narrativa de Shelley.

A criatura no corpo da Clássicos Zahar

Figura 4 – Frankenstein da Classicos Zahar: frente, lombada, segunda e quarta capa (internas) e quarta capa
(externa).

Fonte: produzida pelo autor.

Esta “Edição bolso de luxo” é encadernada em capa dura e chama atenção pelo
amarelo mostarda que tinge toda a sua composição exterior. A quarta capa informa que o
texto é integral e, com dois parágrafos oferece o mote principal da obra (o cientista que cria
o monstro que persegue o cientista) e algumas chaves interpretativas (“mais famosa história
de horror de todos os tempos”, “temas atuais como a solidão, o preconceito e a prepotência
humana”). Além disso, há também o selo “clássicos Zahar”, o código de barras e a ilustração
dos dois lados de uma mão talvez em estado de putrefação. A lombada traz o primeiro nome
da autora abreviado, seguido pelo sobrenome, título do livro e selo da coleção. A capa é
ilustrada com um grande olho, que tudo indica ser o da criatura, cuja impressão de letargia
nos leva a crer que ela ainda não foi animada. Há grampos unindo direita e esquerda de suas
pupilas, o que nos remete à composição da criatura, e seus cílios se tornam veias (ou raios).
Aqui e ali, nas ilustrações da frente e do verso, há também respingos de tinta (ou sangue).

No interior da edição há um fenômeno designado por Genette (2009, p. 11) como


“paratexto sem texto” identificado como as segunda e quarta capas (internas): quatro folhas
de papel couché, duas na abertura do livro e duas no fechamento dele (a primeira e a última
grudadas à primeira e à quarta capa). Nelas, com o advento da troca de cor, as veias que saem
dos cílios da capa preenchem o espaço total dessas páginas em cor verde, com fundo preto,
tornando-se definitivamente raios, os mesmos raios elétricos que avivam a criatura de
Frankenstein na narrativa, aqui, o fazem ao nosso intercurso de leitura. A seguir, vem a falsa
capa com a reprodução do título sem seu subtítulo original, a folha de rosto com o subtítulo
original, autoria e tradução, e, por último, o sumário, que nos adianta: o livro compõe-se de
uma apresentação e do texto literário. Não estão presentes nesta edição a epígrafe e a
dedicatória ou o prefácio e a introdução da própria autora, identificados na edição da L&PM
Pocket. Sobre isso, Genette (2009, p. 13) comenta que “se um elemento de paratexto pode
aparecer a todo momento, pode também desaparecer, definitivamente ou não”.

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Apesar de oferecer aos olhos do leitor uma experiência visual mais estimulante e
proporcionar uma leitura que cansa menos os olhos devido à formatação mais espaçada do
seu texto, uma fonte mais agradável e uma folha mais amarelada (Mercury 9.5, segundo
informações da última página, e papel offwhite 70g/m²), a edição da Zahar economiza na
exploração dos peritextos. A apresentação anunciada no sumário não se estende nem por
duas páginas (uma folha, frente e verso), toca brevemente no tema da distorção que a
representação cinematográfica fez no imaginário popular em relação ao que o texto literário
efetivamente traz quanto a Vitor e sua criatura, e já encontra sua conclusão com um breve
passeio pela vida da autora. Se colocadas lado a lado, é bastante certo que o leitor leve para
casa a edição da Zahar, entretanto, encontrará uma experiência de leitura mais completa na
da LP&M Pocket.

A criatura no corpo da DarkSide

Figura 5 – Frankenstein da DarkSide: capa, lombada, segunda e quarta capa (internas) e quarta capa (externa).

Fonte: produzida pelo autor.

Das três edições que compõem o corpus de análise deste trabalho, a da DarkSide é, de
longe, aquela com projeto gráfico mais elaborado. A capa é dura, encimada pelo selo da
coleção “Medo Clássico”; Genette (2009, p. 26) comenta que o selo de coleção “é, pois, uma
duplicação do selo editorial, que indica imediatamente ao potencial leitor que tipo ou que
gênero de obra ele tem a sua frente”. No caso deste, ele designa publicações de títulos
clássicos do terror, como “Drácula”. Traz também a autoria, o título da obra e a logo da
editora, em torno da imagem de um pé com veias (que saltam para fora da imagem) e
músculos à vista que parece oriunda de um antigo estudo de anatomia humana. Tem efeito
envelhecido e, na transição para a lombada, elementos que sugerem o formato de um caderno
ou diário, com pregas unindo frente e verso.

Na lombada temos o título do livro na horizontal, acompanhando a imagem de uma


coluna vertebral, a autoria e a caveira, símbolo da Coleção, na vertical. A quarta capa dá a
impressão de alto-relevo, apesar de não ser, imita um forro em veludo vermelho e traz um
retrato de Shelley emoldurado em dourado junto com o código de barras do produto, o
logotipo da editora e um carimbo em nome da autora, como se usado em obras da sua
biblioteca pessoal. Vale ressaltar, sobre essa edição, a presença da fita marca-páginas, na cor
vermelha. Aliás, interessante é o fato de que elementos das duas outras edições parecem
identificáveis nela. Tanto a escolha pela cor vermelha, presente na capa da L&PM Pocket,

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quanto o jogo visual com as veias que “se soltam” da imagem central e se espalham pelo
livro.

Como verificável no quadro 1, o miolo da edição está bastante completo em


peritextos, tanto que foi criado o campo “outros” para dar conta de elementos que fugiam à
classificação de Genette (2009). Estão presentes nesta edição, oriundas de edições originais,
a epígrafe da obra de John Milton, a dedicatória de Shelley a seu pai, William Godwin, o
prefácio à de 1818 e a introdução à de 1831. Para além, há uma introdução original da
DarkSide bastante substancial e assinada pela tradutora Márcia Xavier Brito, em que ela
reconta pormenores da história da concepção de Frankenstein passando pelos temas que
inspiraram a narrativa como o galvanismo e o mito de Prometeu; uma resenha de Percy
Shelley, marido de Mary, para a obra e um anexo de quatro contos de autoria de Mary com
enredos que habitam o mesmo mundo de ideias que seu romance: Valério: O romano reanimado,
Roger Dodsworth: O inglês reanimado, Transformação e O imortal mortal, anunciados por uma
introdução de Carlos Primati, o profissional responsável pela tradução desses textos. Tudo
pode ser conferido em um sumário.

Figura 6 – Frankenstein da DarkSide: sumário e layout das páginas.

Fonte: produzida pelo autor.

Bem como o sumário, que não apresenta apenas uma relação dos conteúdos do livro,
mas também ilustrações e diferentes fontes tipográficas, as páginas que compreendem as
cartas dos personagens e os inícios de capítulos também possuem elementos estilísticos: o
carimbo de Shelley está presente numa imitação de marca d’água em vermelho na primeira
página de cada epístola e ao iniciar cada capítulo a primeira letra do primeiro parágrafo
compreende uma arte diferente que sempre traz um pedaço de corpo humano enredado a
ela. A cor vermelha da quarta capa, cor de sangue, que também tinge as veias que saem da
figura da capa e passeiam pelas páginas internas da edição, se faz bastante presente.

Nas últimas páginas da obra encontramos ainda uma breve biografia da autora, da
tradutora, e de três outros nomes bem importantes para esta edição em especial: Andreas
Esalius e William Cowper, dois anatomistas europeus, e Pedro Ranz, um ilustrador brasileiro.
São de autoria deles as imagens que ilustram a edição.

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Figura 7 – Frankenstein da DarkSide: ilustrações.

Fonte: produzida pelo autor

À esquerda da imagem 7 temos um exemplo das ilustrações que oriundam dos


estudos de anatomia dos dois cientistas creditados ao final do livro. Elas estão presentes em
páginas vermelhas entre o início do livro e o sumário, a segunda introdução e o texto do
romance, o fim do romance e os contos, os contos e as páginas finais do livro. Já as
ilustrações originais, todas em preto e vermelho, estão distribuídas apenas entre as cartas que
compõem a narrativa, num total de oito, às vezes em uma página, às vezes compreendendo
duas páginas inteiras.

Considerações finais

Com tantos elementos imagéticos e também textuais como apoio à narrativa, a edição
da DarkSide compõe uma atmosfera muito potente para a leitura da obra de Shelley,
propondo uma experiência particularmente mais imersiva do que as outras duas edições
analisadas, da L&PM Pocket e Zahar. Entretanto, há que salientar, essa imersão propõe, de
todas as formas, uma leitura bastante guiada do texto literário no sentido de atribuir a ele a
sua significação mais elementar: a de uma ficção científica assustadoramente clássica. Todos
os peritextos tratam das inspirações científicas e dos anseios da autora em escrever uma
história que despertasse terror. Fica, assim, a cargo da perspicácia do próprio leitor perceber
as discussões mais existencialistas que também são tão caras à obra: temas como o abandono,
a solidão, o sentimento de não pertencimento, e etc.

No caso da edição da L&PM Pocket, por exemplo, o já canônico texto de Harold


Bloom, que serve como posfácio, chama atenção para essas chaves de leitura não tão óbvias.
Aliás, levando em conta ser uma edição de bolso que, a priori, propõe-se mais econômica,
esta situa bem o leitor para o encontro com a narrativa com os dois textos introdutórios de
Shelley e traz o de Bloom como um complemento interessante a quem não tenha alcançado
todas as possibilidades mais clássicas de leitura da narrativa. Com pouco apelo visual,
entretanto, não parece ser dirigida a um leitor inexperiente, dificilmente cairá em mãos mais
sensíveis ao objeto livro como fetiche do que ao peso do título.

Já a edição da Zahar parece confiar na capacidade de que o texto literário fale quase
por si mesmo e deixa de lado elementos peritextuais que poderiam potencializar a recepção

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da história da criatura de Frankenstein para um leitor contemporâneo possivelmente ainda


em construção, visto que o projeto gráfico parece apelar aos jovens leitores. A introdução é
bastante rasa em informações e a biografia da autora se detém mais em sua trajetória pessoal
do que em relação à obra. Ainda que esta seja uma edição de bolso “de luxo”, designada
assim muito provavelmente pela capa dura, segue os preceitos de uma edição econômica (de
bolso) tradicional, com pouco material de apoio ao texto literário.

Tendo em vista essas considerações, procurou-se demonstrar, como averigua


Chartier (2003, p. 44-45), que “com efeito, cada forma, cada suporte, cada estrutura da
transmissão e da recepção do escrito afeta profundamente seus possíveis usos e
interpretações”. Ou seja, que todo objeto produzido para conter um determinado texto, neste
caso as três edições de Frankenstein analisadas, influencia também o modo como esse texto é
recebido no que diz respeito à construção dos seus sentidos possíveis, abrindo mais ou
menos a interpretações variadas, dependendo, também, do leitor que o tiver em mãos. Para
isso, este estudo concentrou-se nos paratextos editoriais, mais especificamente nos
peritextos, os elementos paratextuais que ajudam a configurar uma edição, que lhe dão forma
enquanto livro na soma de seus componentes. Finalmente, como Genette (2009, p. 35)
considera, “essas localizações peritextuais não esgotam o repertório do paratexto editorial do
livro”, bem como este texto não esgota as possibilidades de análise das edições que manejou
e espera, ao invés disso, ter aguçado e sensibilizado o olhar do leitor para esta questão
intrínseca à da leitura de um texto literário, que é a da sua materialidade.

Referências

ARAUJO, Alberto Felipe. ALMEIDA, Rogério de. BECARI, Marcos. (org.). O mito de
Frankenstein: imaginário & educação. (Mitos da pós-modernidade; v. 1). São Paulo:
FEUSP, 2018.

CHARTIER, Roger. Formas e sentido - Cultura escrita: entre distinção e apropriação.


Campinas: Mercado de Letras, Associação de Leitura do Brasil, 2003.

GENETTE, Gerard. Paratextos Editoriais. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

SHELLEY, Mary. Frankenstein. Porto Alegre: L&PM, 2017a.

SHELLEY, Mary. Frankenstein. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2017b.

SHELLEY, Mary. Frankenstein: ou O Prometeu moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

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