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Resumo
O propósito deste trabalho é evidenciar como diferentes edições de uma mesma obra oferecem, pela configuração
de seus paratextos editoriais, diferentes experiências de leitura. Para tal, propõe-se, de forma mais específica,
uma comparação dos peritextos editoriais, definidos a partir de Genette (2009), em três edições brasileiras de
Frankenstein, de Mary Shelley: uma da L&PM Pocket (2017a), outra da DarkSide (2017b) e uma
última da Zahar (2020). O estudo se apoia, ainda, em autores como Chartier (2003), Manguel (1997)
para pensar as relações da materialidade do objeto livro com os seus leitores, uma vez que a prática da leitura
literária relaciona-se de forma indissociável com esse tema.
Abstract
The aim of this work is to evidence how different editions of a same book offer, by the configuration of their
editorial paratexts, different reading experiences. For such, it is proposed, more specifically, a comparison of
the editorial peritexts, defined from Genette (2009), in three Brazilian editions of Frankenstein, by Mary
Shelley: one from L&PM Pocket (2017a), another from Darkside (2017b) and a last one from Zahar
(2020). The study is also supported by authors such as Chartier (2003), Manguel (1997) to think the
relations of the materiality of the book object with its readers, once the literary reading practice is inextricably
related to this theme.
Introdução
Quando Mary Shelley concluiu Frankenstein (or: the modern Promotheus, como
acompanha seu título original em inglês) em 1917, como o ponto final resultante do desafio
proferido por Lord Byron a “criar uma história de fantasmas” no chuvoso verão do ano
anterior, com certeza não sabia que estaria trazendo à vida um expoente da literatura
fantástica (de terror, de ficção científica), tanto quanto o personagem título da narrativa
avivava uma criatura monstruosa no seu enredo.
Assim, pelos duzentos anos que se seguiram, a história do monstro que no imaginário
comum confunde-se com o nome do seu criador vem cooptando leitores de forma
“assombrosa”, pois, como previnem Araújo, Almeida e Becari (2018, p. 10), a verdade é que
quem lê esta obra é imediatamente “envolvido na história, não quer parar a sua leitura, fica
cativo do romance”. A perenidade do fascínio por Frankenstein, concordam esses estudiosos,
se dá, pois, tratando de um tema universal, que é o das nuances da natureza humana, cada
época poder servir-se dele para ilustrar e mostrar os seus novos problemas, receios, medos e
apreensões (ARAUJO, ALMEIDA, BECARI, 2018, p. 57).
Assim, tendo em vista que o objeto livro construiu-se historicamente como um dos
suportes materiais mais tradicionais para os textos literários e entendendo, a partir de
Chartier, que no ato de leitura “a significação, ou melhor, as significações, histórica e
socialmente diferenciadas de um texto, qualquer que seja, não podem ser separadas das
modalidades materiais que o dão a ler a seus leitores” (CHARTIER, 2003, p. 46), o propósito
deste trabalho é evidenciar como diferentes edições (brasileiras) de Frankenstein oferecem
diferentes experiências de leitura dessa obra e, consequentemente, abrem o texto a
interpretações também diversas.
Desenvolvimento
Os livros declaram-se por meio de seus títulos, seus autores, seus lugares
num catálogo ou numa estante, pelas ilustrações em sua capa, declaram-se
também pelo tamanho. [...] como ocorre com todas as formas, estes traços
cambiantes fixam uma qualidade precisa para a definição do livro. Julgo
um livro por sua capa, julgo um livro por sua forma (MANGUEL, 1997,
p. 149).
Assim, é certo que as edições selecionadas para análise neste trabalho – apresentadas
no quadro a seguir – não surgem aqui fruto de uma escolha arbitrária. São livros de uma
biblioteca pessoal, a saber, do autor, que as selecionou a partir do seu gosto, pensando na
sua própria experiência sensível com esses materiais de leitura. Por isso, além de guiar-se
pelas evidências materiais – peritextuais – das edições a serem estudadas, esta análise não
estará isenta das impressões de leitura particulares do pesquisador, enquanto leitor das obras
pesquisadas. Pelo contrário, elas figurarão como interpretação dos dados. Isso posto, para
iniciar, cabe caracterizar o corpus quanto a algumas especificidades de cada edição.
Capa
edições em questão variam de 253 a 310 páginas. Essa característica poderia ou não ter
relação direta com a extensão que a tradução ganharia, levando em conta as decisões
semânticas tomadas pelo seu recriador ou recriadora. Entretanto, ao compararmos os
objetos, fica evidente que a variação acontece devido a diferentes aspectos editoriais desses
produtos impressos, como o tamanho dos livros, a tipografia utilizada neles, a configuração
das suas margens, a presença de imagens, enfim, a maior ou menor quantidade de elementos
paratextuais inseridos na obra.
Percebeu-se, a partir disso, que essa diferença no número de páginas se deu por dois
principais motivos materiais que se influenciam mutuamente: primeiro, as dimensões das
edições que apresentam diferente configuração ou ajuste do texto ao tamanho das suas
páginas. Enquanto, como é possível averiguar no quadro anterior, duas delas são mais
próximas em medidas, quais sejam, a da L&PM Pocket e a da Zahar, a segunda sendo apenas
um pouco mais larga que a primeira, ambas usam espaçamento entre linhase
parágrafosbastante distinto: a segunda preenche menos o espaço da página do que a primeira.
A epístola que abre o romance toma, assim, três páginas e meia da versão da L&PM Pocket,
enquanto na versão da Zahar quase cinco páginas. Já na edição da DarkSide,
significativamente maior que as duas citadas anteriormente e de folhas bastante preenchidas
pelo texto, ocupa menos que três páginas inteiras. As imagens a seguir evidenciam essa
diferença de dimensões e preenchimento do espaço das páginas entre as edições.
Figura 2 – Configuração dos textos às dimensões das edições, respectivamente, L&PM Pocket, Zahar e
DarkSide.
O segundo motivo pelo qual a quantia de páginas das edições varia se dá devido ao
volume de peritextos identificáveis em cada uma, com destaque para a edição da DarkSide
que, não fosse pela quantia de peritextos, devido às suas dimensões e ao preenchimento das
folhas, provavelmente estaria mais próxima em número de páginas da edição da L&PM
pocket. O quadro a seguir mostra, então, os peritextos mais evidentes com os quais este
estudo trabalhará a seguir.
Ao leitor mais desavisado essa pode não ser a edição que mais chame a atenção em
uma estante virtual ou de livraria, embora seu preço seja consideravelmente mais baixo, mas
como material de leitura oferece uma experiência bastante potente com a narrativa de Shelley.
Figura 4 – Frankenstein da Classicos Zahar: frente, lombada, segunda e quarta capa (internas) e quarta capa
(externa).
Esta “Edição bolso de luxo” é encadernada em capa dura e chama atenção pelo
amarelo mostarda que tinge toda a sua composição exterior. A quarta capa informa que o
texto é integral e, com dois parágrafos oferece o mote principal da obra (o cientista que cria
o monstro que persegue o cientista) e algumas chaves interpretativas (“mais famosa história
de horror de todos os tempos”, “temas atuais como a solidão, o preconceito e a prepotência
humana”). Além disso, há também o selo “clássicos Zahar”, o código de barras e a ilustração
dos dois lados de uma mão talvez em estado de putrefação. A lombada traz o primeiro nome
da autora abreviado, seguido pelo sobrenome, título do livro e selo da coleção. A capa é
ilustrada com um grande olho, que tudo indica ser o da criatura, cuja impressão de letargia
nos leva a crer que ela ainda não foi animada. Há grampos unindo direita e esquerda de suas
pupilas, o que nos remete à composição da criatura, e seus cílios se tornam veias (ou raios).
Aqui e ali, nas ilustrações da frente e do verso, há também respingos de tinta (ou sangue).
Apesar de oferecer aos olhos do leitor uma experiência visual mais estimulante e
proporcionar uma leitura que cansa menos os olhos devido à formatação mais espaçada do
seu texto, uma fonte mais agradável e uma folha mais amarelada (Mercury 9.5, segundo
informações da última página, e papel offwhite 70g/m²), a edição da Zahar economiza na
exploração dos peritextos. A apresentação anunciada no sumário não se estende nem por
duas páginas (uma folha, frente e verso), toca brevemente no tema da distorção que a
representação cinematográfica fez no imaginário popular em relação ao que o texto literário
efetivamente traz quanto a Vitor e sua criatura, e já encontra sua conclusão com um breve
passeio pela vida da autora. Se colocadas lado a lado, é bastante certo que o leitor leve para
casa a edição da Zahar, entretanto, encontrará uma experiência de leitura mais completa na
da LP&M Pocket.
Figura 5 – Frankenstein da DarkSide: capa, lombada, segunda e quarta capa (internas) e quarta capa (externa).
Das três edições que compõem o corpus de análise deste trabalho, a da DarkSide é, de
longe, aquela com projeto gráfico mais elaborado. A capa é dura, encimada pelo selo da
coleção “Medo Clássico”; Genette (2009, p. 26) comenta que o selo de coleção “é, pois, uma
duplicação do selo editorial, que indica imediatamente ao potencial leitor que tipo ou que
gênero de obra ele tem a sua frente”. No caso deste, ele designa publicações de títulos
clássicos do terror, como “Drácula”. Traz também a autoria, o título da obra e a logo da
editora, em torno da imagem de um pé com veias (que saltam para fora da imagem) e
músculos à vista que parece oriunda de um antigo estudo de anatomia humana. Tem efeito
envelhecido e, na transição para a lombada, elementos que sugerem o formato de um caderno
ou diário, com pregas unindo frente e verso.
quanto o jogo visual com as veias que “se soltam” da imagem central e se espalham pelo
livro.
Bem como o sumário, que não apresenta apenas uma relação dos conteúdos do livro,
mas também ilustrações e diferentes fontes tipográficas, as páginas que compreendem as
cartas dos personagens e os inícios de capítulos também possuem elementos estilísticos: o
carimbo de Shelley está presente numa imitação de marca d’água em vermelho na primeira
página de cada epístola e ao iniciar cada capítulo a primeira letra do primeiro parágrafo
compreende uma arte diferente que sempre traz um pedaço de corpo humano enredado a
ela. A cor vermelha da quarta capa, cor de sangue, que também tinge as veias que saem da
figura da capa e passeiam pelas páginas internas da edição, se faz bastante presente.
Nas últimas páginas da obra encontramos ainda uma breve biografia da autora, da
tradutora, e de três outros nomes bem importantes para esta edição em especial: Andreas
Esalius e William Cowper, dois anatomistas europeus, e Pedro Ranz, um ilustrador brasileiro.
São de autoria deles as imagens que ilustram a edição.
Considerações finais
Com tantos elementos imagéticos e também textuais como apoio à narrativa, a edição
da DarkSide compõe uma atmosfera muito potente para a leitura da obra de Shelley,
propondo uma experiência particularmente mais imersiva do que as outras duas edições
analisadas, da L&PM Pocket e Zahar. Entretanto, há que salientar, essa imersão propõe, de
todas as formas, uma leitura bastante guiada do texto literário no sentido de atribuir a ele a
sua significação mais elementar: a de uma ficção científica assustadoramente clássica. Todos
os peritextos tratam das inspirações científicas e dos anseios da autora em escrever uma
história que despertasse terror. Fica, assim, a cargo da perspicácia do próprio leitor perceber
as discussões mais existencialistas que também são tão caras à obra: temas como o abandono,
a solidão, o sentimento de não pertencimento, e etc.
Já a edição da Zahar parece confiar na capacidade de que o texto literário fale quase
por si mesmo e deixa de lado elementos peritextuais que poderiam potencializar a recepção
Referências
ARAUJO, Alberto Felipe. ALMEIDA, Rogério de. BECARI, Marcos. (org.). O mito de
Frankenstein: imaginário & educação. (Mitos da pós-modernidade; v. 1). São Paulo:
FEUSP, 2018.
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.