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Introdução

Ora, os anjos dispõem, para exprimir seus sublimes


pensamentos, de uma capacidade intelectual rápida
e inefável, que permite que se manifestem aos outros,
seja apenas pelo fato de existir, seja por meio desse
espelho resplandecente no qual todos se refletem em
plena beleza e se contemplam avidamente; eles não
têm nenhuma necessidade de um signo lingüístico
qualquer (...). Também não é necessário dotar
de linguagem os animais inferiores, que seguem
unicamente seus instintos naturais; de fato, os animais
de uma mesma espécie têm o mesmo modo de agír e de
sentir... (Dante, De I' éloquence en langue vulgaire, 1,
2, Paris, 1995, p. 388).

O que é um livro? Para o senso comum, a questão é uma


falsa questão. Mas, se o livro é efetivamente um objeto usual,
onipresente, sua evidência mesma o envolve nesse fabuloso manto
de trevas descrito pelo poeta.

1 Etimologia
O termo livro designa um objeto constituído por um
conjunto de folhas portando ou não um texto e reunidas por uma
encadernação ou uma brochura. Para o Dicionário de Moreri,'
"é um amontoado de várias folhas reunidas e sobre as quais
há alguma coisa escrita". Essa definição se aplica, em primeiro
lugar, a um objeto material, como a etimologia o confirma: nas
línguas latinas, a palavra vem do latim liber (fr. livre, ital. libra,
esp. libro, porto liuro) , termo que designa a película de uma árvore

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entre a casca exterior e a madeira propriamente dita - portanto, coleção e encadernados. Um anuário, periódico que aparece em
um primeiro suporte da escrita. Quando visitam a biblioteca princípio uma vez por ano, é freqüentemente considerado como
de Saint-Gall em 1416, à procura de textos antigos, humanistas um livro.
italianos descobrem O livro designa mais usualmente um objeto impresso:
no entanto, falar-se-á igualmente de "livros manuscritos" ou de
um livro feito em casca de árvore: certas cascas em latim eram
"manuscritos" (documentos escritos à mão), até livros em rolos
chamadas libri, e é daí, segundo ]erônimo, que os livros tiraram
(volumina), cuja forma material é, por conseqüência, completamente
seu nome. Embora esse livro fosse preenchido de coisas que
diferente daquela do livro em cadernos. O desenvolvimento atual
não eram realmente literatura, eu o acolhi com a mais extrema
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das técnicas de informática induziu à aparição do termo "livro
devoção, em razão de sua pura e santa Antigüidade ...
eletrônico" para designar alguns dos novos suportes de textos.
O mesmo pode ser observado nas línguas de origem Do mesmo modo, os livros são em princípio conservados nas
germânica, nas quais a palavra deriva do antigo alto alemão bokis bibliotecas, cujo acervo não se confunde com aquele dos arquivos.
(ingl, book, al. Bucb), termo que designa a faia. Em grego, enfim, De fato, a situação é bem diferente: muitos documentos que
a palavra livro chegou por meio de biblion (~t~Â.tOv)derivada figuram nas bases de manuscritos das bibliotecas são documentos
de biblos (~t~Â.oa, ou ~u~Â.oa),3o nome do papiro do Egito: de de arquivos, enquanto que os depósitos de arquivos possuem, às
onde numerosos outros derivados, como biblioteca (~t~Â.tOeKll, vezes, um grande número de livros e de impressos de todo tipo
etimologicamente, o armário dos livros), mas também o nome (e não apenas publicações e circulares administrativas). Hoje, as
do livro por excelência, a Bíblia, e aquele do livreiro em latim coleções das bibliotecas se ampliam cada vez mais para além dos
medieval, bibliopolis (~t~Â.t01wÂ.ta). livros somente: elas possuem acervos de discos, às vezes de fitas
Os conceitos relativos à escrita derivam, em regra geral, de vídeo, propõem espaços de conexão à Internet e são nomeadas
de uma raiz indo-européia *skrb, que se encontra em grego freqüentemente pelo termo "midiateca".
(graphein, ypa<j>Etv) em latim e nas línguas derivadas (lat. scribere, Em suma, a definição do objeto não está absolutamente
fr. écrire, ital. scriuere, etc.), nas línguas germânicas (ingl. to script, resolvida. Por extensão, o livro designa igualmente o conteúdo
al. scbreiben, etc.) e eslavas (skribu, gratter) e nos termos como intelectual do objeto livro, dito de outro modo, o texto ("um
"gratter", "graver",' etc. A raiz faz referência à primeira maneira de livro de tal autor") ou uma parte dele (os diferentes livros da
traçar sinais sobre um suporte. Eneida ou da Bíblia). Se, na origem, um "livro" corresponde,
nesta última acepção, a um rolo (volumen), a definição torna-se
2 Definições progressivamente mais intelectual que material. Em compensação,
Se procurarmos precisar o sentido da definição de livro, seu a natureza do texto não precisa absolutamente ser levada em conta.
Essas dificuldades de todo tipo, a vontade também de dispor de
caráter instável rapidamente aparece. Para o senso comum, o livro
estatísticas mais facilmente comparáveis, levaram a UNESCO a dar
designa o objeto mais usual, isto é, o livro impresso. Entretanto,
uma definição normalizada do livro: trata-se de uma publicação
os limites permanecem sem nitidez. O livro se opõe, em princípio,
impressa, não-periódica, de cinqüenta páginas ao menos.
ao periódico e ao jornal (impresso que aparece com uma certa
Nós adotaremos, na presente obra, uma perspectiva
periodicidade): porém, a distinção não é tão clara (basta consultar
mais ampla: nosso objetivo é estudar a história da escrita na
os repertórios dos periódicos para se convencer disso), falar-se-á
sua articulação com as categorias sociais, políticas, culturais e
usualmente de "livros" para designar os periódicos reunidos em

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econômicas dominantes a cada época, dito de outro modo, na amplamente ausentes dessa problemática, a começar por tudo o
sua função de mediação. Para fazer isso, nós compreendemos sob que pertence ao campo literário - o autor, o texto, mas também
a definição de livro todo objeto impresso, independentemente de o leitor.
sua natureza, de sua importância e de sua periodicidade, assim • Com Lucien Febvre e Henri-Iean Martin, a perspectiva
como todo objeto portador de texto manuscrito e destinado, ao é profundamente renovada, e a história do livro se dá a
menos implicitamente, a uma certa publicidade. compreender, a partir de então, pela sua articulação com uma
história social, ela mesma ampliada a todos os aspectos da vida
3 Histórias de livros em sociedade. A história do livro se faz, então, a princípio, história
econômica (as condições da produção, a produção mesma dos
Não se trata de retomar aqui de maneira detalhada sobre a
livros e sua difusão), mas também história das culturas e das
história da história do livro. Para nos determos aos eixos principais:
práticas culturais (construção, recepção, circulação e apropriação
ela se passou na França em quatro grandes etapas sucessivas.'
de textos), portanto também história das categorias sociais,
• Primeiramente, a história do livro é conduzida, nos séculos XVII políticas, até simbólicas das diferentes épocas. O "território
e XVIII, pelos colecionadores e os bibliófilos: a difusão da prática do historiador" do livro toca todos os eixos de uma reflexão
de vendas públicas, a constituição de gabinetes de curiosidades e histórica, ela mesma em processo de ampliação radical. Pode-
de bibliotecas que podem tornar-se muito importantes, impelem se dizer que, fundamentalmente, a história do livro se dá a
à confecção de catálogos e aos estudos monográficos (produção compreender desde então como a história de uma mídia - ou
de uma imprensa célebre, etc.). melhor, da mídia que é ele mesmo, no coração da vida das
• Num segundo momento, passa-se à erudição propriamente sociedades modernas."
dita: o fenômeno é muito visível no século XVIII, na ocasião
do jubileu da descoberta da imprensa (1740). A documentação 4 Perspectivas
dos pesquisadores se estende às peças de arquivos e esforça-se
em reconstituir a carreira dos grandes tipógrafos do passado, A ampliação quase sem limites do quadro da pesquisa
a começar por Gutenberg, graças à exploração dos acervos de tem por efeito tornar a situação atual relativamente cambiante e
Maiença e, sobretudo, de Estrasburgo. Esse tipo de trabalho é às ambígua. Simplificando ao extremo, diremos que quatro campos de
vezes conduzido por livreiros, à imagem de Prosper Marchand, pesquisa estão mais particularmente começando a ser explorados.
na Holanda. A tradição do grande livreiro erudito se prolonga A primeira, em parte sob a influência dos trabalhos alemães
até a época contemporânea, com figuras como as de Didot, sobre a "história da recepção" (Rezeptionsgechichte), incide sobre
os problemas da leitura e de suas práticas - em uma perspectiva
Renouard, etc.
• Na terceira etapa, a história do livro é considerada como um que, às vezes, permanece próxima daquela da história literária. A
todo, do qual o objeto-livro faz unidade: os manuais propõem segunda segue um eixo explorado a princípio pelos historiadores
então, em geral, uma descrição justaposta, freqüentemente muito ingleses do livro e se interessa pelas suas formas materiais: a
precisa, condições de fabricação do livro, sua forma material "bibliografia material"? estuda as formas materiais dos textos para
(inclusive sob o ângulo da história da arte), de sua difusão recuperar sua genealogia e suas variantes e para estabelecer a melhor
(descrição das estruturas de difusão) e de sua conservação (a edição possível. Mais recentemente, a problemática foi ampliada
história das bibliotecas). Muitos domínios maiores permanecem ao estudo da "composição":" como a organização material do texto

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de um certo livro nos informa sobre as condições implícitas de sua econômico da atividade dos editores (nas fórmulas como "a crise
leitura, e mesmo sobre as categorias mais gerais que emolduraram da edição").
essa "composição" e da qual ela é como que reflexo. Na sua acepção bibliográfica, o termo edição significa mais
Nós mencionaremos simplesmente os dois últimos eixos precisamente o conjunto de exemplares de um livro impresso a
principais: o primeiro visa a construir uma história comparada partir de uma mes,ma composição e destinado a ser difundido
do livro, enquanto que, até os anos 1980, esse domínio só tinha simultaneamente. E a articulação das noções de composição
sido abordado nos limites quase exclusivamente nacionais - tipográfica e difusões simultâneas que definem a edição: desde
e, às vezes, nas perspectivas nacionalistas. A contribuição do o momento em que o texto é modificado, encontramo-nos diante
comparatismo é, a princípio, de ordem metodológica: lá onde a de uma variante editorial. Se a composição foi conservada, por
unicidade do objeto descrito tornava isso evidente (por exemplo exemplo, sob a forma de placas estereotípicas, e se imprime
a organização do mercado do livro no século XIX num certo um segundo conjunto de exemplares, fala-se de impressão ou
país), ele permite tomar consciência de seu caráter relativo e de reimpressão. Por extensão, o comércio livreiro designa como
então, paradoxalmente, de colocar em maior evidência suas edição, entretanto, uma reimpressão das mesmas formas.
especificidades. Mas, bem entendido, ele permite também melhor Se for o caso, o livreiro comercial (o editor) dá a essa
articular as trajetórias relativas de diferentes Estados ou conjunto reimpressão uma aparência de novidade fazendo-a preceder de
de Estados, notadamente em cujos domínios a perspectiva nacional uma outra página de título, às vezes de novas peças liminares: só o
é amplamente inapropriada (a história das idéias, por exemplo). exame preciso do texto (corte de linhas, etc.) permite reconhecer se
Enfim, a história do livro deverá fazer render as novas se trata ou não de uma simples reimpressão. Pode-se se encontrar
possibilidades de pesquisa, que são abertas pelas mídias informáticas, diante de uma nova composição do mesmo texto, mas, neste caso
em particular no que concerne às bases de dados bibliográficos. também, as variantes possíveis são múltiplas, porque o texto é
Os catálogos informatizados das grandes bibliotecas constituem retomado mais ou menos exatamente, com a mesma ou com uma
uma fonte documental extremamente rica, que até agora esteve outra disposição das páginas, etc.
relativamente pouco explorada segundo os métodos da história
quantitativa. Sublinharemos contudo o fato de que, qualquer que 11 Notas _
seja a riqueza da coleção, a exaustividade é um engodo e que a
utilização desses dados supõe precauções metodológicas muito 1 L. MORE1U, Le Grand dictionnaire bistorique, ou le mélange curieux de lbistoire sacré e/ profane ..
2,m.· éd. Paris, Coígnard, 1725.
precisas. Ela supõe, de fato, que o pesquisador conheça a história , L. BERTALOT., "Cincius Romanus und seine Bríefe". In, em Quel/en und Forscbungen aus itaiieni-
do livro. scben Arcbiuen umd Btbliotbeeen, XXI, 1929-1930, p. 222-225.
l Chantraine (Dct. Étym. Grec) considera difícil que a palavra grega derive do toponímico Byblos,
pena fenícia por onde transita uma grande parte do comércio entre o Egito e a Grécia .
• Nota do tradutor: grauer (arranhar; raspar) e grauer (gravar) não foram traduzidas no texto para que
Nota de vocabulário não se perdesse a raiz, sobre a qual o autor incide em sua exposição.
'F. BARB1ER, "Écrire I/Apparition du livre", posfácio a L. FEBVRE, H.-J. MARTIN, L'Aparition du livre,
A primeira acepção do termo edição designa a ação de nova ed., Paris, 1999.
F. BARBIER, C. BERTHO LAVENIR, Histoire de médias. De Diderot à Internet, nova ed. Paris, 2000.
estabelecer um texto sobre o plano científico com vistas a difundi- 6

, A acepção do termo bibliografia evolui profundamente: a princípio, estudo de livros impressos,


10. Depois, por extensão, a ação de reproduzir esse texto sob a depois lista alfabética ou racional de livros surgidos sobre um certo assunto ou num certo contexto
(u~n ateliê, uma cidade, uma região, um período, etc.). Por extensão, obra na qual essa lista foi pu-
forma impressa em um certo número de exemplares como um bltcada. No caso da bibliografia material, trata-se de um derivado da primeira acepção.
todo e de uma só vez (primeira edição, etc.) Enfim, é o ramo

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-,
Frédéric Barbier

8 Nota do tradutor: Usamos o termo composição para traduzir 'mise en livre', 'mise en page' e Outras
expressões que incluem em seu significado a organização material do texto em um livro

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