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Anais do SEFiM, Porto Alegre, V.02 - n.2, 2016.

Razão, sentidos e os fundamentos da verdade: uma leitura platônica


sobre a prática musical de Monteverdi a Scacchi no século XVII

Reason, senses and the foundations of truth: a platonic reading about


the musical practice from Monteverdi to Scacchi in the XVII century
Palavras-chave: Platão; Monteverdi; Scacchi.
Keywords: Plato; Monteverdi; Scacchi.

Vicente Casanova de Almeida


Universidade de São Paulo
casanova_vicente@hotmail.com

O presente estudo tem como objetivo realizar uma imersão nas tópicas platônicas acessa-
das por Claudio Monteverdi, seu irmão Giulio e o compositor Marco Scacchi durante o
século XVII. Para que nossa incursão seja eficiente, iremos estudar primeiro como as tó-
picas platônicas chegaram até tais compositores através da tradução latina de Marsílio Fi-
cino, no século XVI. Em seguida, trataremos da querela entre Artusi e Monteverdi, onde
será possível explicitar o uso de tópicas específicas do diálogo Górgias e da República pla-
tônica. Veremos como Giulio argumentou através de Platão à favor de seu irmão Claudio,
vituperando, por sua vez, os críticos advindos da escola da primeira prática musical. Razão
e sentidos serão argumentos de essencial importância neste embate, como fundamentos
da verdade. Por último, com o objetivo de demonstrar que estas tópicas continuaram sen-
do partilhadas vastamente no âmbito musical europeu, traremos o argumento de Scacchi
à luz. Este compositor, situado na corte polonesa do século XVII, também foi impelido à
levantar sua voz na defesa de sua prática musical, com raízes evidentes na segunda prática,
conhecida como prática moderna. Ampliando a censura já feita por Giulio no passado,
Scacchi vitupera os compositores reativos às inovações e liberdades contrapontísticas e
harmônicas da moderna prática. Deste modo, em um de seus tratados, elenca vários argu-
mentos estruturados basicamente em Platão.
O cânone platônico foi devidamente traduzido do grego para o latim no século XV por
Marsílio Ficino (1433-1499) a pedido de Cosimo de Medici, o iniciador da importante
dinastia que governou Florença durante um largo período no Rinascimento. Conforme
Stasi (2009), determinados lugares do texto platônico traduzido por Ficino serviram de
embasamento para a argumentação em defesa da prática moderna. A partir da consulta
à tradução de Ficino chegamos aos excertos 449d do Górgias e 398d-400d da República
platônica (FICINO, 1557, p. 233; 332-3) que explicitam a raiz argumentativa usada
pelos interlocutores em questão.
Para Monteverdi, entre 1605 e 1606, não restou outra saída a não ser demonstrar aos seus
críticos que sua prática musical é edificada sobre as preceptivas aceitas do contraponto
de seu tempo, porém, uma força maior governada pela potência da oração e dos afetos

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determina o seu uso. Assim, censurando Artusi, Monteverdi garante que sua música está
fundada sobre o consentimento da razão e dos sentidos, ou seja, das preceptivas aceitas
e da direção lúcida de Platão, auctoritas no campo da arte musical. Assim demonstrado,
existe um modo diverso do de Artusi para operar com as regras contrapontísticas e, segun-
do, Monteverdi,” (...) o compositor moderno, portanto, a defende com o consentimento
da razão de dos sentidos (...)” (MONTEVERDI, 1606, p. 3, tradução nossa).
Giulio Cesare, seu irmão, sai em defesa da segunda prática musical, elencando de for-
ma progressiva as tópicas platônicas no formato original da tradução de Ficino. O fato
ocorreu em 1607 com a publicação do livro de Scherzi Musicali de Claudio, e, a partir
de então, a prática musical moderna toma como bandeira o governo dos afetos oriundos
dos textos poéticos sobre a orientação estrita das regras do contraponto, fato de suma
importância na tomada de consciência das liberdades composicionais realizadas em be-
nefício da evidenciação e ornato das paixões (páthe): “[…] neste tipo de composição do
meu irmão, portanto, a música versa em torno da perfeição da Melodia, considerando
que a Harmonia, de patroa torna-se serva da Oração” (MONTEVERDI, 1607, p. 45-6,
tradução nossa).
Em 1649, no Breve Discorso Sopra La Musica Moderna, Scacchi, em um embate público
com Paul Siefert, compositor defensor da primeira prática musical, retorna às preceptivas
do contraponto como emblemas do engenho musical europeu, porém, censurando Sie-
fert, traça a necessidade evidente de operar com as paixões de que os textos poéticos são
portadores. Além de expor pela primeira vez de forma estruturada os três estilos compo-
sicionais (e suas implicações contrapontísticas), a saber, o estilo de câmara, de igreja e de
teatro, Scacchi presta reverência ao movimento de resistência dos músicos de seu tempo
às investidas dos músicos reativos da escola de Artusi, louvando Claudio e Giulio Cesare
Monteverdi, suas autoridades musicais mais próximas. Deste modo, o retorno à Platão,
ou revixit platônico, pode ser mais uma vez verificado, fato que move nossas conclusões
sobre quais são, de fato, os fundamentos da verdade, baseados na razão e nos sentidos,
tópicas amplamente acessadas por tais compositores.
A razão e os sentidos, entendidos como fundamentos da verdade nas artes musicais, ter-
minam servindo de provocação aos opositores da música moderna na língua afiada de
Scacchi: “(...) estarei aguardando os argumentos que os Opositores irão produzir contra
este discurso e contra a Música moderna, para que, com a ajuda da Divina Majestade,
possa eu provar-lhes recorrendo à razão e aos sentidos o quanto estão enganados em suas
opiniões.” (SCACCHI, 1649, p. 114, tradução nossa).
Finalizaremos traçando os pormenores conceituais envolvidos nestes embates que come-
çaram no final do século XVI e adentraram o século XVII, servindo-nos dos textos origi-
nais e das traduções e estudos especializados disponíveis.

Referências
FICINO, Marsilio. Divini Platonis Opera Omnia. Marsilio Ficino Interprete. Nova editio, adhibita
Graeci codicis collatione ad duobus doctissimis viris castigata. Cuius collationis ratio ex epistola
operi praefixa facile constabit. Lugduni: Antonium Vicentium, 1557. Disponível em: http://books.

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google.com.br/books/about/Divini_Platonis_Opera_omnia_Marsilio_Fic.html?hl=pt-BR&id=-
GOn5a6sUaBwC.
MONTEVERDI, Claudio. Madrigali Guerrieri et Amorosi. Libro VIII. Opera Completa. Urtext:
Chiavi originali. v. 8, n. 1. A cura di Andrea Bornstein. Bologna: Ut Orpheus Edizioni, 2011.
______. Quinto Libro de Madrigali. A cinque voci. Veneza: Ricciardo Amadino, 1606. Disponível
em: http://imslp.org/wiki/Madrigals,_Book_5,_SV_94%E2%80%93106_(Monteverdi,_Clau-
dio).
______. Scherzi Musicali. Con la Dichiaratione di vna Lettera, cha si ritroua stampata nel Quinto
Libro de suoi Madregali. Veneza: Ricciardo Amadino, 1607. Disponível em: http://imslp.org/wiki/
Scherzi_musicali,_Book_1_(Monteverdi,_Claudio).
STASI, Marcello. Palavra, harmonia e o platonismo ficiniano na monodia dramática da Seconda Pra-
tica. 2009. 207 p. Tese - Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Estadual de
Campinas, UNICAMP, 2009.

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