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Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário

A Comédia: visões e sons de Dante


Cronologia
Bibliogra a

Inferno
CANTO I
CANTO II
CANTO III
CANTO IV
CANTO V
CANTO VI
CANTO VII
CANTO VIII
CANTO IX
CANTO X
CANTO XI
CANTO XII
CANTO XIII
CANTO XIV
CANTO XV
CANTO XVI
CANTO XVII
CANTO XVIII
CANTO XIX
CANTO XX
CANTO XXI
CANTO XXII
CANTO XXIII
CANTO XXIV
CANTO XXV
CANTO XXVI
CANTO XXVII
CANTO XXVIII
CANTO XXIX
CANTO XXX
CANTO XXXI
CANTO XXXII
CANTO XXXIII
CANTO XXXIV

O verso dantesco (1965) – Dante Milano


Exposição sobre Dante (1965) – Eugenio Montale
A ontade de Dante de ser poeta (1965) – Pier Paolo Pasolini

Esquema do Inferno
Sobre os autores
Créditos
A Comédia: visões e sons de Dante
A estrutura. A arquitetura. A descompostura. A poesia. A antipoesia. A antropofagia. O espanto, a libido, o
urlo, o mal, o animal, o fantástico do real, o círculo, o orbe, o número, a luxúria, a dança cristocêntrica, o erro
original de ser, o texto que fabricando o inferno se sustenta, o purgatório também tornado histórico, a idade
mitológica do céu, a Idade Média daquele tempo, do atual tempo externo do homem e do tempo a vir; Beatriz
fortemente politizada (Par. xxx, 133-148); a contestação do mundo.

Que vemos? Como é que vemos? uando vemos?

Dante viu, retro iu, previu, intro iu, postviu, cosmo iu.

Murilo Mendes, “Dante”, em Retratos-relâmpago

A maior parte dos escritos de Dante é permeada de indícios autobiográ cos que
sugerem aos leitores, de hoje e de outros tempos, a necessidade de observar a vida
e a obra do poeta como dois caminhos que se entrecruzam continuamente. Isso
porque estamos diante de um autor que confunde numa só voz sua gura
histórica com a de seu principal personagem. No entanto, a escassez de
documentos a seu respeito não nos permite comprovar a maioria dos fatos escritos
por Dante, de modo que nos resta, como leitores, observar os três eixos
documentais que fundamentam sua biogra a: o testemunho dos antigos
biógrafos, os registros públicos e a obra do próprio autor.

ANTES DA COMÉDIA

Sabemos que Dante, ainda jovem, se dedicara a escrever poesias, sobretudo


amorosas, o que o levaria a integrar o grupo dos fedeli d’amore, círculo de poetas
que se correspondiam por meio de suas composições, do qual faziam parte Guido
Cavalcanti e Cino da Pistoia, entre outros. Por causa de um verso do Canto xxiv
do Purgatório, eles passaram a ser conhecidos como poetas do “dolce stil novo”,
movimento literário que apresentava um ideal de fusão melódica com o tema do
amor em estilo suave, inovando sobretudo ao propor uma nova concepção do
amor e se contrapor, com léxico brando, sintaxe linear e re nada musicalidade, à
poesia de seus antecessores, como Guittone d’Arezzo e Bonagiunta Orbicciani.
Dante recolhe algumas das composições poéticas desse período e as organiza
num livro a que dá o título de Vida no a, concluído por volta de 1295. Seu o
condutor será desenvolvido a partir dos encontros de Dante com Beatriz
(“gloriosa dama da minha mente”, Vn, i, 2), a jovem que passará a dominar o
pensamento e a memória do poeta e que será personagem capital tanto da Vida
no a quanto da Comédia. O primeiro dos encontros, segundo indica o autor, teria
ocorrido quando ambos tinham nove anos de idade. Aos dezoito anos, ou seja,
nove anos depois, acontece de Beatriz cumprimentá-lo ao passar por uma rua de
Florença, cidade nunca nomeada nesta obra. A partir dessa saudação, o poeta vê
“todos os termos da beatitude” (Vn, i, 12): com efeito, Beatriz será a dama que
propicia a bem-aventurança, conforme seu nome expressa e o poeta enfatiza. Ele,
contudo, espantado com aquela visão, foge para seu quarto, onde, após um sonho,
compõe um soneto destinado aos fedeli d’amore. Beatriz, desde sua primeira
aparição, carrega a simbologia mística da “dama angelical”, e Dante recorre à
solenidade do latim para declarar isso na Vida no a: “Apparuit iam beatitudo
vestra” (“Eis que apareceu vossa beatitude”, Vn, i, 6). Trata-se de uma “visão” ou
“imaginação”, gênero poético medieval que será também uma das bases da
Comédia.
Este é um elemento fundamental para o entendimento dessas duas obras: elas
partilham do mesmo gênero, porém a Vida no a retrata uma história individual
— inclusive de aprendizado poético, pois Dante vai aumentando seu grau de
exigência até interromper o livro por não ter mais como tratar do tema —, ao
passo que a Comédia retratará uma história coletiva — mas que nem por isso
deixa de expressar um aprendizado poético e místico pessoal, pois vai do tratar das
coisas “baixas”, “vis”, até alçar voo para alcançar a inefabilidade paradisíaca.
Este, o da “visão”, é um ponto de contraste muito forte entre nossa época e a de
Dante, quando ainda havia (mesmo que ilusória) a ideia de transcendência, algo
intrinsecamente ligado ao misticismo reinante na Europa daquele tempo. Tudo
isso, para nós, é de difícil compreensão, seja pelo anúncio da morte de Deus por
Nietzsche, seja por vivermos numa era de plástico, como diz Horacio em Rayuela
de Cortázar: “ is is a plastic’s age, man, a plastic’s age”.
Por isso às vezes é tarefa difícil entrar num texto antigo, tão distante da nossa
cultura. É necessário, portanto, não perder de vista a dimensão escritural, tanto da
Vida no a como da Comédia. Assim, Beatriz, antes de personagem histórica, é
personagem do itinerário da alma e da mente de Dante (em chave teologal), ou
(em chave literária) personagem do “romance de formação” que é a Vida no a e
do “romance histórico” que é a Comédia, como as quali ca o crítico e poeta
Edoardo Sanguineti.
Toda essa bagagem simbólica e teológica, porém, está alicerçada na poesia, ou
melhor, no “prosímetro”, termo empregado para obras que misturam prosa e
poesia, como já mostravam alguns dos modelos antigos que Dante provavelmente
conhecia: Satyricon de Petrônio (séc. i d.C.), Apocolocyntosis de Sêneca (séc. i
d.C.), Metamorphoseon de Apuleio (séc. ii d.C.) e De consolatione Philosophiae de
Boécio (sécs. v-vi d.C.). Nesses casos, contudo, é antes a alternância de estilos
entre prosa e poesia que prevalece. Já no caso de Dante, a prosa visa a tratar das
intermitências do coração e a comentar o que está posto em poesia. Além disso, o
ambiente da Vida no a é todo baseado na tradição elegíaca.
A elegia é um gênero poético que na literatura latina teve seu representante
máximo na gura de Ovídio, para quem ela é, dentre outras coisas, um poema de
lamento — amoroso ou fúnebre — que retrata o poeta urbano à procura de sua
amada, que é dom˘ına, ou seja, aquela que comanda, secundada pelo Amor
personi cado. A relação do poeta é a do servo (ou a do vassalo, se lembrarmos da
poesia trovadoresca), conforme escreve Dante no início da Vida no a: “Amor
senhoreou a minha alma” (Vn, i, 18). Elegia, portanto, a Vida no a, mas elegia
cristianizada, e o que importa para Dante é a causa nal, que é o itinerário rumo a
Deus.
Romance de formação, pois, teológico e lírico. Como tal, a Vida no a é
interrompida quando Dante percebe que seriam necessários mais recursos para
tratar de Beatriz e daquilo que sua gura implicava. Isso o faz partir em busca do
dizer único, sublime e novo, conforme requeria aquela fonte de beatitude. Nos
primeiros anos do século xiv, portanto, o poeta se dedica à composição de
tratados sobre loso a e língua.
À primeira será dedicado o Con ívio, um comentário a canções compostas por
ele anteriormente, o que recorda de imediato a Vida no a, mas desta difere
sobretudo quanto aos temas tratados e aos destinatários: lá são os fedeli d’amore,
enquanto aqui são aqueles que não puderam se sentar “à mesa onde o pão dos
anjos é consumido” (Cv, i, 1, 7). Dante diz expressamente querer reunir essas
pessoas — o vulgo, que não só não entende latim, mas desconhece a interpretação
dos textos poéticos — e lhes oferecer “um amplo convívio com aquilo que a eles
demonstrei e com o pão necessário a tal comida, sem o qual não poderia ser
comida por eles” (Cv, i, 1, 11). Nesse sentido, a ideia de escrever em língua do sì,
conhecida na época como vulgar ( olgare), é revolucionária, pois tratados desse
gênero eram escritos apenas em latim, e Dante aqui pretende elevar a dignidade
daquele idioma e fazê-lo abordar uma gama maior de temas. O mesmo se pode
a rmar em relação à Comédia, tanto que um professor de latim, Giovanni del
Virgilio, numa correspondência poética com Dante, o exorta: “Não jogues, como
pródigo, pérolas aos porcos” (Éclogas, i, 27), parafraseando a célebre sentença do
Evangelho de Mateus. Mas o Con ívio cou incompleto, já que Dante abandonou
o projeto com menos de um terço do que havia prometido no exórdio (quatro de
quinze livros).
uanto aos estudos linguísticos, Dante os reuniu no tratado latino Sobre a
eloquência do vulgar, no qual discorre a respeito de questões gerais de língua
(natureza, origem, história, famílias linguísticas) até chegar às variedades do sì,
aquelas da península itálica com as quais propõe amalgamar uma espécie de
“língua perfeita”. A obra funciona como um elogio do olgare illustre, um
conceito de língua culta que se contrapõe ao latim predominante nos círculos de
cultura erudita. Dante concebe essa língua a partir de quatro adjetivos: ilustre,
porque deve iluminar; cardeal, porque deve orientar; áulica, porque deve servir às
cortes; e curial, porque adequada também à administração pública. Como objeto
de análise e fonte para a formação dessa língua almejada, ele comenta obras de
poetas da península itálica e dos provençais.
Assim como o Con ívio, o tratado sobre a língua vulgar permaneceu
inconcluso. Há quem atribua a interrupção de ambos ao nomadismo que o exílio
impôs ao poeta, mas há quem imagine que o motivo de seu abandono teria sido o
início da composição do Inferno.

O INFERNO

Nesta breve introdução pretendemos apresentar sucintamente essa parte do


poema, na esperança de que auxilie na descida pelo abismo infernal. uem quiser
se aprofundar nas várias interpretações da obra há de saber que a bibliogra a
dantesca é como um rio caudaloso. Mais adiante indicamos alguns estudos,
especialmente os de fácil acesso ao público de língua portuguesa.

DATA DE COMPOSIÇÃO

Não se sabe ao certo quando Dante começou a escrever o Inferno, primeira das
três partes que compõem a Comédia: Inferno, Purgatório e Paraíso. Na Vida de
Dante, Giovanni Boccaccio nos conta que os sete primeiros cantos haviam sido
compostos ainda em Florença, ou seja, antes do exílio, em 1302. A prova de seu
argumento estaria no primeiro verso do Canto viii, que começa com as seguintes
palavras:

Eu digo, prosseguindo […],

dando a entender que Dante estaria retomando a escrita do poema a partir do


ponto em que a tinha interrompido. As objeções a essa datação são várias, e uma
delas seria a profecia de Ciacco no Canto vi, quando ele diz que as duas facções
orentinas entrarão em combate, o que de fato ocorreu a partir de 1301. No
entanto, outros estudiosos já apontaram que isso pode ter sido uma interpolação
do próprio poeta, ou seja, que ele teria retornado ao canto e inserido o vaticínio.
Como se vê, não é simples de nir o início da composição do poema, também
porque nenhum manuscrito autógrafo chegou até nós, conforme falaremos
adiante.

TÍTULO, GÊNERO, MODELOS

Desde o início de sua divulgação, o poema cou conhecido como “la Comedìa”,
com variações “Commedìa” e “Commèdia”, oscilação entre pronúncia latina
grecizante e pronúncia toscana. Em outros textos de Dante há indícios a respeito
do título, como uma passagem de seu tratado político Monarquia em que ele
a rma (i, xii, 6): “assim como eu já disse no Paraíso da Comédia”. O adjetivo
“divina”, que aparece impresso pela primeira vez em 1555, na edição veneziana de
Lodovico Dolce, é de inspiração boccacciana. Era comum desde a Antiguidade se
referir a um grande poeta, lósofo, pensador ou artista como “divino”. Boccaccio,
por exemplo, em mais de uma ocasião escreve “o divino Aristóteles” e, na Vida de
Dante, se refere à obra-prima do poeta como “a divina Comédia” (Vida de Dante,
§ 185). Há ainda uma citação numa carta que Dante teria enviado a Cangrande
della Scala, senhor de Verona, cuja autenticidade é alvo de intermináveis debates.
Seja ou não de Dante, a missiva se refere ao poema dantesco como “Comédia”, e
ainda explicita o que signi ca esse título em relação a seu gênero poético
(Epístola, xiii, 10):

O título do livro é: “Começa a Comédia de Dante Alagheri [sic], orentino de nascimento, não de
costumes. […] [A comédia] difere da tragédia na matéria pelo fato de que a tragédia no princípio é
admirável e tranquila, no m ou conclusão é fétida e horripilante; […] como ca evidente nas tragédias de
Sêneca. Já a comédia começa pela aspereza de alguma situação, mas sua matéria termina de maneira
próspera, como ca evidente nas comédias de Terêncio. E daqui alguns escritores adquiriram o hábito de
dizer como saudação “[te desejo] princípio trágico e m cômico”. […] E por isso ca evidente que
Comédia seja chamada a presente obra. Pois, se olharmos para sua matéria, no princípio ela é horripilante
e fétida, porque é o Inferno, e no m é próspera, desejável e agradável, porque é o Paraíso; quanto ao modo
da linguagem, é o modo modesto e humilde, porque é a fala vulgar na qual também as mulherzinhas
[muliercule] se comunicam.

A distinção entre poema trágico e poema cômico recupera a diferença entre


drama trágico e drama cômico, não quanto à forma do texto (a Comédia não é
peça de teatro), mas ao desenrolar da trama, como se lê no trecho acima. Essa
diferenciação é explicitada no próprio Inferno, quando, no nal do Canto xx,
Dante se refere à Eneida como “alta tragédia” e a contrasta, no início do canto
seguinte, com a “minha comédia”.
Outra diferença relevante diz respeito à língua: a Eneida, como se sabe, foi
composta em latim clássico, ao passo que a Comédia, também por fazer uso de um
estilo humilde (sobretudo no Inferno, em que predomina o registro baixo), foi
escrita em vulgar. Essa opção se re ete ainda nas personagens, objetos e ambientes
representados. Assim, a Eneida, por um lado, foi escrita no mais puro e intangível
latim, de expressão rebuscada, nobre e séria, que tinha por protagonista um herói,
fundador mítico do que viria a ser o grande império romano; a Comédia, por
outro, foi escrita predominantemente no vulgar orentino e não tem por
protagonista um herói pleno de majestade, mas um homem comum, que parece
estar em busca de salvação para o desconcerto do mundo em que vive.
Talvez por isso a substância dessa escolha estilística seja também de ordem
espiritual. Tendo como tema de sua obra a história de uma alma cristã que parte
da consciência do pecado, passa pela puri cação interior e chega à visão de Deus,
Dante encontra seu ponto de referência (não o modelo) numa realização
espiritual de estilo “humilde”: as Sagradas Escrituras, sobretudo a profética e a
evangélica, com sua linguagem corrente, conhecida como sermo humilis, vale
dizer, a língua falada pelo povo. Nesta chave, todos os aspectos da realidade — do
mais “baixo” ao mais “alto” — podem ser tomados por tema, e todos os tons da
poesia — do mais “áspero e rouco” ao mais “doce” — se tornam condizentes com
o louvor que a criatura rende a seu criador.
Tudo isso é retratado no âmbito de um gênero poético bastante difundido na
Idade Média: a visio, ou “visão”, já mencionada quando se falava da Vida no a.
Uma obra famosa desse gênero na época de Dante é a chamada Visio Pauli, ou
seja, a “Visão de Paulo”, texto apócrifo do início do século v que conta o raptus
(“arrebatamento”) do apóstolo ao céu conforme acenado na segunda epístola aos
coríntios. No campo literário, porém, o grande modelo é a descida de Eneias
ainda em vida ao mundo dos mortos, narrada no Livro vi da Eneida. uando o
poeta orentino, hesitante em empreender aquela viagem, diz a Virgílio no verso
32 do Canto ii do Inferno,
Eu não Eneias, eu não Paulo sou,

sintetiza numa só linha os dois alicerces da Comédia: a literatura latina e o


cristianismo. A relação entre a Eneida e a Comédia não acaba nas
correspondências narrativas (os rios do Averno virgiliano, Caronte, Cérbero, as
Harpias etc.); o fato de Dante ter escolhido Virgílio como guia pelo Inferno e pelo
Purgatório parece indicar a representação de um discípulo espiritual e poético.
Com efeito, Dante é um poeta, a Comédia é um poema, e o guia não podia ser
outro que não um poeta. Desse modo, é possível pensar que ele concebesse a
Comédia como a Eneida de seu tempo, o “poema sacro” (Par., xxv, 1), como
“sacro” fora de nido o poeta romano por Macróbio nas Saturnalia (i, 24, 13).
Para Dante e os leitores de seu tempo (na verdade, de praticamente toda a
Idade Média), as epopeias de Virgílio, Ovídio, Lucano e Estácio eram como o
arcabouço da literatura que continha narrativa histórica e sabedoria losó co-
religiosa. Tomar Virgílio como modelo de imitação (no sentido latino da
imitatio) era repetir aquela complexidade narrativa losó co-religiosa, e há quem
diga que era a ocasião providencial (da Providência) à qual a Eneida se mostrava
indissoluvelmente ligada: Virgílio tinha cantado o mundo desde o caos até a
perfeição da felicidade, ou seja, à vigília da redenção do Cristo, conforme leitura
cristianizada de sua obra. A Comédia, assim, teria anunciado a um mundo
dominado pelo mal a volta do Cristo com seu julgamento nal.

NUMEROLOGIA E ESTRUTURA

Já na Vida no a o número 3 e seus múltiplos tinham uma função crucial, basta


recordar o 9 e o 18, idades em que Dante e Beatriz haviam se encontrado. Na
Comédia não será diferente, tanto que o poema é formado por cem cantos
divididos em três cantiche ou reinos (Inferno, Purgatório e Paraíso), cada qual
formado por 33 cantos, mais um proêmio, que é o primeiro canto do Inferno e
serve de introdução à obra. O número 3 é central também na estrutura métrica:
os cantos são compostos por tercetos de hendecassílabos italianos
(correspondentes ao decassílabo na versi cação em língua portuguesa), o que
perfaz um total de 33 sílabas para cada estrofe. Além disso, o número 3 é
fundamental para o esquema de rima, pois ela se repete por três vezes,
entrelaçando um terceto a outro (aba bcb cdc…) e formando a chamada terza
rima.
A presença do número 3 e de seu múltiplo 9 é evidente também na arquitetura
de cada reino: o Inferno é dividido em nove círculos, o Purgatório, em nove partes,
e o Paraíso, em nove céus. uanto ao Inferno, no canto xi Virgílio explica a lógica
de punições, baseada na Ética aristotélica, mas contaminada pelo sistema cristão,
que apresenta três grandes grupos de pecados: a incontinência (do segundo ao
quinto círculo), a bestialidade (sexto e sétimo círculos) e a fraude (oitavo e nono
círculos). No primeiro círculo estão as almas que não pecaram, mas nasceram
antes do cristianismo.
O espaço infernal é concebido em forma de funil que se abre abaixo de
Jerusalém e vai até o centro da Terra. Aqui, no ponto mais distante de Deus, está
Lúcifer, chefe dos anjos rebeldes, cujo corpo, ao cair do céu, abriu o abismo
infernal e lá embaixo cou preso, conforme explica Virgílio no Canto xxxiv.
Antes de entrar no inferno propriamente dito, Dante, perdido numa selva
escura, se depara com três animais, um lince (lonza), um leão (leone) e uma loba
(lupa), cujas iniciais em “L” os associam a Lúcifer, de quem eles representariam,
segundo algumas interpretações, a luxúria, a soberba e a cupidez, elementos que
parecem sugerir as três grandes divisões do inferno, “as três disposições que o céu
não quer” (Inf., xi, 81).
A incontinência é a menos grave das três “disposições”. Ela representa o uso
desmedido de faculdades que, por si sós, não são condenáveis. Após passar o
portal do inferno, mas ainda antes de atravessar o rio Aqueronte, Dante vê o
bando dos que viveram “sem infâmia ou elogio” (Inf., iii, 36), ou seja, aqueles que
não tomaram nenhum partido, os covardes, que estão sob a custódia de Caronte,
barqueiro infernal.
O primeiro círculo é chamado de limbo, que em latim signi ca “borda,
margem”, dando a entender que não se trata ainda do reino de tormentos e
torturas que o poeta verá na sequência. Ali estão as crianças que morreram antes
do batismo e as pessoas que não conheceram o cristianismo, mas não pecaram,
pois seguiram as virtudes cardeais. É justamente aí, nesse lugar à parte, em um
“nobre castelo” (Inf., iv, 106) cercado por sete muralhas, que Dante encontra
grandes espíritos da Antiguidade e da Idade Média, poetas, heróis, heroínas,
lósofos, tanto europeus quanto árabes, a cuja companhia Virgílio voltará quando
tiver cumprido sua missão de guiar o poeta orentino até o topo da montanha do
purgatório.
Do segundo ao quinto círculo estão, respectivamente, os luxuriosos, os gulosos,
os avarentos e pródigos, os iracundos e acidiosos. Sentinela do segundo círculo é
Minos; do terceiro, Cérbero; do quarto, Plutão; do quinto, Flégias, onde se
encontra o pântano chamado Estige.
Depois de percorridos os primeiros cinco círculos, Dante e Virgílio entram na
cidade de Dite, nome derivado de Lúcifer a partir da Eneida. Para ali ingressar é
necessária a intervenção de um anjo que, numa cena cinematográ ca, desce
voando do alto e com um toque de sua varinha abre a porta da cidadela infernal.
A segunda grande seção infernal é a da bestialidade, e os primeiros condenados
que Dante vê são os heréticos, que estão no sexto círculo, sob a tutela das Fúrias.
O sétimo círculo, onde cam os violentos (contra o próximo, contra si e contra a
natureza), é dividido em três níveis: no primeiro, junto a outro rio, o Flegetonte,
estão os homicidas e os devastadores, guardados por Centauros; no segundo, os
suicidas e os perdulários, patrulhados por Harpias e por cadelas famintas; no
terceiro, os blasfemos, os sodomitas e os usurários, vigiados pelo Minotauro, que é
também guarda de todo o sétimo círculo.
Entre o sétimo e o oitavo círculos há um grande despenhadeiro, e para descer
por ali Virgílio convoca a ajuda de Gerião, monstro de rosto humano e corpo de
serpente que representa a fraude e domina essa região. O oitavo círculo é dividido
em dez fossas ou bolsas, chamadas Malebolge. Encontram-se aí, respectivamente,
os sedutores, aduladores, simoníacos, adivinhos, corruptos, hipócritas, ladrões,
conselheiros fraudulentos, semeadores de discórdia e falsi cadores.
Para chegar ao nono círculo é preciso passar pelo poço dos gigantes, sentinelas
da última região infernal. Dante e Virgílio são transportados pela mão de Anteu,
personagem da mitologia grega. Os traidores estão no mais profundo do abismo
infernal, no lago congelado Cocito, dividido em quatro zonas: na primeira estão
os que traíram parentes, cuja gura emblemática é Caim, donde o nome de Caína
para essa zona; na segunda, os traidores da pátria, chamada de Antenora, nome
tirado de Antenor, troiano que teria traído sua pátria; na terceira, os traidores dos
hóspedes, chamada de Ptolomeia, nome inspirado no rei bíblico de Jericó,
Ptolomeu; na quarta, os traidores de benfeitores, chamada Judeca por ter Judas
Iscariotes como símbolo da maior traição. Aqui está Lúcifer com suas três faces,
mastigando em cada uma das bocas um dos grandes traidores da história cristã e
romana: Judas, Bruto e Cássio. Os poetas terão que descer pelo corpo do diabo
para sair do inferno e voltar a ver as estrelas.

A VIAGEM

A Comédia é ainda uma longa narrativa de viagem, o que signi ca que esse gênero
é mais uma das fontes de Dante. Desde os poemas homéricos, a travessia parece
sugerir uma metáfora da condição humana, que implica a aquisição sucessiva de
novas experiências. Por isso, a Comédia é também viagem do conhecimento.
De acordo com informações esparsas que o poeta fornece ao longo do poema,
seu périplo teria ocorrido na Semana Santa de 1300, ano do primeiro jubileu da
Igreja Católica, inaugurado por Bonifácio viii como forma de indulgência para os
pecadores. A viagem durou aproximadamente uma semana, tendo o poeta
passado quase quatro dias no inferno, três no purgatório e algumas poucas horas
no paraíso.
Ao se ver perdido numa selva escura, Dante avista um “deleitoso monte” (Inf., i,
77) para onde se dirige, mas não consegue chegar lá porque surgem as três feras já
mencionadas. Desesperado e com medo, avista uma sombra, a quem pede ajuda.
Trata-se de Virgílio, que se apresenta ao poeta orentino e lhe explica que, para
sair dali, ele deverá percorrer os três reinos dos mortos.
A descida ao reino dos mortos é lugar-comum da literatura e conhecida como
katábasis, cujos exemplos mais notórios são os de Ulisses e de Eneias. Dante não
chegou a ler diretamente a Odisseia, obra que conhecia de segunda mão, ao
contrário da Eneida. Mas, se a viagem de Eneias ao reino dos mortos ocorre em
apenas um trecho da narrativa, no Livro vi, a katábasis de Dante ocupa o poema
todo.
Outra diferença que merece destaque é que Dante se faz narrador e
protagonista de seu poema, contando os acontecimentos em primeira pessoa. Isso
permite que o poeta encontre não só personagens do mundo antigo, mas também
almas de alguns de seus contemporâneos. Junto a estas, há outra personagem na
Comédia: Florença.
Ao contrário do que ocorre na Vida no a, onde Florença não é nomeada,
embora a história se passe nessa cidade, na Comédia ela ganha destaque, seja por
meio de orentinos que Dante vê ao longo do percurso, seja como entidade a
quem o narrador, por mais de uma vez, se dirige usando a segunda pessoa do
singular. Célebre exemplo é o primeiro terceto do Canto xxvi do Inferno, que
associa Florença por a nidade ao espaço infernal:

Goza, Florença, pois que tu és tão grande


que por mar e por terra sobrevoas,
e pelo inferno o nome teu se expande!

É verdade que no Paraíso Dante revelará nostalgia de sua cidade natal, mas não
daquela em que cresceu e da qual foi expulso, e sim da antiga Florença, que ainda
não havia sido corrompida pela ascensão das novas classes que perseguiam
vorazmente o lucro. Ao lado da Florença do passado e a do presente surge a do
futuro. Com efeito, as almas do inferno têm o dom da antevisão. Ao saber disso,
praticamente todas as vezes que o poeta pede a um danado que fale do futuro, é
sempre do futuro de Florença.
Uma dessas previsões ocorre no Canto vi do Inferno, quando Dante encontra
Ciacco, um conhecido guloso de sua época. Ciacco faz uma das profecias do
poema, referente à luta acirrada entre o partido dos guelfos brancos, de que Dante
fazia parte quando integrou o governo de Florença, e dos guelfos negros, que iria
culminar em mortes e exílios. O poeta questiona Ciacco a respeito da discórdia
que havia assolado Florença, ao que o espírito explica nos versos 74-75:

são avareza, in eja e arrogância


as que mantêm os corações acesos.

Essas são as causas da corrupção não só de Florença, mas também da Igreja,


outra personagem central da Comédia. Em vários momentos do poema ela é
mencionada. No Inferno, merece destaque o papa que ocupava a cadeira de Pedro,
Bonifácio viii. Além de ter promulgado a bula Unam Sanctam (1302) —
segundo a qual a Igreja deveria controlar tanto o poder espiritual quanto o
terreno, ao que Dante se opõe ferozmente na Comédia e no tratado político
Monarquia —, Bonifácio viii parece ter tido participação direta na ação que
resultou no exílio do poeta, ou seja, é alguém que deveria gurar no Inferno.
Mas o poeta tem aí um problema de ordem temporal na economia narrativa,
pois, como a viagem se passa no ano de 1300 e o papa só vem a morrer em 1303,
Dante não poderia colocar de modo verossímil a alma de seu rival no inferno. Isso
não o impediu, contudo, de, valendo-se do poder de antevisão dos danados,
reservar um lugar a Bonifácio. No Canto xix, no qual são punidos os simoníacos,
os espíritos estão de ponta-cabeça em buracos, sem que pudessem ver o que se
passava ao redor. Mesmo assim, um deles, Nicolau iii, outro papa contemporâneo
do poeta, percebe que há alguém próximo, tanto que pergunta nos versos 52-53:
[…] “Estás aqui já reto,
estás aqui já reto, Bonifácio?”

Assim, a Comédia parece ser em grande medida uma resposta ao exílio que
Dante considerava injusto. Porém, a obra-prima do poeta orentino vai além
dessas questões individuais e assume um valor coletivo. A viagem de Dante, de
fato, é a viagem de cada um de nós, que nos faz estremecer quando o poeta tem de
atravessar um rio sobre o dorso de um centauro, que nos faz vibrar nos momentos
em que critica a crueldade de certos políticos de sua época, ou que nos abala
quando ouvimos um avô narrar a morte injusta de seus lhos e netos antes da sua.

A TRANSMISSÃO DO TEXTO

O primeiro problema da transmissão do texto é a ausência de um manuscrito


autógrafo de Dante. Aliás, até hoje não foi encontrada sequer uma linha de
próprio punho do poeta. A isso se deve somar a imediata popularidade da obra,
atestada pelas inúmeras cópias manuscritas. Outro fator relevante é que a
Comédia foi desde cedo transmitida intensamente de forma oral, o que produziu
grande quantidade de variantes. Por m, a tradição dos comentários, inaugurada
no mesmo tempo da divulgação da obra, é outro elemento que trouxe mais
di culdades para o estabelecimento do texto.
A editio princeps é de 1472, publicada em Foligno por Johannes Numeister de
Mogúncia. Em 1502 sai uma nova edição pela tipogra a de Aldo Manuzio, sob
os cuidados do célebre gramático e escritor Pietro Bembo, baseada num
manuscrito de Boccaccio. Mas é apenas a partir do século xviii que a questão
ecdótica vem à tona. Daí em diante, muitas foram as tentativas de reconstrução
do texto, até chegarmos à edição de Giorgio Petrocchi (1966-7), que lê a
Comédia a partir de uma reconstrução lológica com base em 27 manuscritos
anteriores a 1355. Após essa data, há a intervenção de Boccaccio, primeiro editor
de Dante que atuou diretamente na reconstrução de algumas de suas obras que já
circulavam. Mesmo não sendo de nitiva, a edição de Petrocchi, na qual se baseia a
presente tradução, é até hoje considerada a mais con ável.

NOTA DA TRADUÇÃO

O mundo de Dante é muito diferente do nosso não apenas pelas questões


históricas, políticas, sociais ou religiosas com as quais o poeta dialoga, mas
também pelo idioma de que ele se vale para compor sua poesia. Tendo escrito em
uma língua pré-normativa, ainda não cerceada pelas prescrições gramaticais que
mais tarde determinariam o que hoje entendemos como língua-padrão, Dante se
permitia uma série de liberdades sintáticas, lexicais, fonológicas e morfológicas. E,
tendo sabido operar magistralmente essas liberdades para levar a seus
contemporâneos um vasto conhecimento doutrinal, o poeta fará com que suas
opções linguísticas tenham protagonismo na transição que marca o declínio do
latim como língua de cultura e a ascensão de línguas regionais, com a gradual
a rmação do vulgar orentino na península itálica.
Tal como o Deus cristão havia criado o primeiro homem a partir da terra,
Dante usa a língua como um barro mole, moldável ao seu intento de comunicar
coisas altas e baixas, grotescas e sublimes. E será o próprio Adão, que segundo o
livro do Gênesis fora modelado por seu criador, quem con rmará ao poeta-
viajante, no Canto xxvi do Paraíso, a liberdade de que dispomos para dar forma à
nossa expressão verbal, o que caracteriza as línguas humanas não como
determinadas pela natureza, mas pelo lento processo de nossas escolhas e usos.
Pela força expressiva da poesia que temos em mãos, pela ampla rede de saberes da
qual ela procura dar conta e pela rápida difusão que a obra alcança, muitas das
criações textuais de Dante acabaram por ancorar a língua escrita que servirá de
modelo literário para as gerações posteriores de italianos.
A preocupação de Dante em difundir poesia e conhecimento em uma língua
acessível aos não literatos de sua época vem de obras anteriores à Comédia, como
no tratado Con ívio, escrito em vulgar orentino, com o qual o poeta é um dos
precursores em apresentar um saber losó co aos que não liam latim. Mas essa
novidade seria desenvolvida no tratado latino Sobre a eloquência do vulgar, em que
ele assume a defesa da língua vulgar perante os eruditos de sua época. Seja pela
intenção apresentada no primeiro tratado, seja pela atenta observação das línguas
regionais exposta no segundo, é possível constatar que Dante ultrapassa
deliberadamente na Comédia as fronteiras linguísticas da península em busca de
um vulgar que se estabeleça entre os falantes do sì, isto é, aqueles do território que
hoje identi camos como Itália. Não é à toa que, em séculos mais recentes, o poeta
tenha sido alçado por movimentos nacionalistas como um símbolo daquela pátria
que buscavam a rmar, como um romântico e idealizado “pai da língua italiana”.
Se a revolução linguística provocada por Dante está ligada ao fato de ele ter
escrito a maior de suas obras não mais em latim, língua dos poetas clássicos de sua
própria formação intelectual, mas na língua natural das gentes de sua região, o
resultado disso é que, já a partir dos primeiros anos de difusão da Comédia, o
poema se tornou objeto de comentários exegéticos, o que só costumava acontecer
com os clássicos greco-latinos e com os textos bíblicos. E é surpreendente que
esses comentários não tenham sido feitos apenas no latim de seus
contemporâneos eruditos, mas também na língua acessível ao povo, a mesma que
o poeta buscou digni car.
Mas apesar de sua imensa inventividade poética e de seu enorme poder de
expressão — aliado ao conhecimento e ao emprego, na Comédia, de vários
idiomas dos povos que vão da Provença à Sicília —, é claro que nem tudo em
matéria de língua italiana é invenção de Dante. Sua língua poética se insere numa
linha cultural que remonta às letras de além-Alpes, anterior à popularização da
literatura em língua vulgar que passou a circular na Itália. A transmissão oral e
manuscrita da produção literária feita na França poucos séculos antes se impôs
como modelo de formas poéticas em outras partes do continente europeu (como
é o caso da poesia trovadoresca portuguesa), e na Itália isso não foi diferente.
Nesse caminho, dentro do cânone métrico o decassílabo vai se estabelecendo
como o verso principal da tradição poética de língua italiana. Partindo desse
metro já consolidado entre os poetas de seu tempo, é provável que Dante tenha
fundado o esquema de rimas que irá ordenar os 14 233 versos da Comédia.
Seguindo no sistema encadeado da terza rima, os tercetos, menores unidades
narrativas dos cantos, sempre reiteram foneticamente o m do primeiro verso no
terceiro, trazendo entre eles a desinência que irá se repetir na estrofe seguinte.
Entrando um pouco mais na o cina do poeta, percebemos outros limites
formais que se impõem à sua versi cação. Talvez o mais estranho ao leitor de hoje
seja a prosódia, isto é, o andamento melódico dos versos que se estabelece pela
necessidade de respeitar uma acentuação canônica, de modo a privilegiar a
posição tônica de cada unidade silábica nas posições pares do verso. Como se
sabe, o decassílabo possui dois acentos tônicos obrigatórios, um na 4a ou na 6a
sílaba e outro na 10a, como nos exemplos (em destaque e sublinhados) abaixo.
Mas isso não implica excluir outros acentos não obrigatórios ou secundários
(apenas em destaque), que dão o ritmo ao verso de modo a se evitar as sílabas
ímpares.

No meio do caminho desta vida


(tônicas em 6a e 10a, subtônicas em 2a e 8a)
me descobri em uma selva escura
(tônicas em 4a, 8a e 10a, subtônica em 6a)

No entanto, não é raro encontrar em Dante a combinação de acentos nas 4a e


7a sílabas do verso, o que muitas vezes parece quebrar a harmonia melódica do
terceto ou da sequência narrativa. Tal combinação rítmica nos permite pensar que
talvez a urgência expressiva tenha acabado por prevalecer sobre a regularidade dos
versos, como em:

Fomos ao pé de uma torre, ao nal


(tônicas em 4a, 7a e 10a, subtônicas em 1a e 8a)

Isso ajuda a desfazer a imagem de um Dante que, pelo alto teor losó co de sua
poesia e pela re nada habilidade poética, costuma ser visto por muitos leitores
como alguém que não transita pelos registros mais baixos da linguagem, nem pela
irregularidade métrica ou sintática, que frequentemente quebra o ritmo melódico.
Se tal imagem existe, ela se deve em certa medida às traduções da Comédia, que
por vezes terminam suavizando ou mascarando tais características de seus versos,
ou evitando expressões mais chulas ou populares. Por outro lado, não podemos
deixar de considerar que algo da poesia dantesca na língua de partida pode ter
sido alterado pela transmissão da obra, que chega até nós em edições cujo
estabelecimento textual nem sempre é consenso entre os estudiosos.
Tendo isso em vista, buscamos orientar o trabalho com o mesmo rigor formal
de Dante, ou seja, a precisão do número de sílabas de cada verso, a manutenção
das rimas nos tercetos, a atenção aos procedimentos retóricos e ao andamento
rítmico. Além disso, evitamos repetir rimas dentro de um mesmo canto, exceto
quando Dante o faz. Mas, assim como o poeta, também lançamos mão de
recursos métricos para aglutinar sílabas usando encontros vocálicos tanto dentro
de uma mesma palavra (sinéreses, como em “aon-de”, lido com apenas duas
sílabas) quanto entre palavras (sinalefas, como em “ca-da um”, lido com 2 sílabas);
ou para dividir sílabas, seja separando encontros vocálicos dentro da palavra
(diéreses, como em “Mo-ï-sés”, lido com 3 sílabas), seja entre palavras (dialefas,
como em “E - eu”, lido com duas sílabas). Esse último exemplo com o pronome
“eu”, que abre tantos dos tercetos do poema, será sempre lido assim, com dialefa.
Do mesmo modo, mantivemos a exaustiva repetição do pronome “eu”, que no
poema parece denotar a a rmação de uma subjetividade poética, algo que não
poderia deixar de se impor também na tradução.
Incluímos o acento grá co relativo à prosódia dos topônimos italianos,
evitando que nomes como Govérnol, por exemplo, fossem lidos segundo a regra
do português (levando a um andamento “quebrado” do verso em Governól).
Além disso, procuramos manter as marcas arcaizantes, as formas típicas da fala
oral e popular, os latinismos, os neologismos, assim como as guras de linguagem
centrais na poética de Dante, como o símile, a aliteração, o hipérbato etc.; e
reescrever as idiossincrasias e os jogos alusivos que o poeta estabelece com a
tradição, nos valendo do repertório poético-musical também do nosso tempo.
Por m, para fugir às abundantes notas de rodapé comuns em edições da
Comédia, esta traz uma breve sinopse na abertura de cada canto, com a numeração
dos versos entre colchetes e referências entre aspas à forma adotada na tradução.
Isso se insere na longa tradição de introduzir os cantos com sínteses do enredo
(didascalia), sendo a nossa um pouco mais extensa do que se costumava
apresentar. Esperamos que esse recurso permita ao leitor acompanhar a trama
nem sempre linear dos cantos e obter informações mínimas sobre personagens
(cujos nomes estão em gra a atualizada, o que pode diferir da grande liberdade
que Dante — e esta tradução — se permitiu nos versos) que poderiam ser mais
familiares a um contemporâneo do autor. Essas breves paráfrases, no entanto, não
pretendem sugerir interpretações aos versos. Acreditamos que a leitura da
tradução já poderá indicar o caminho interpretativo que optamos em cada passo,
sem que as ambiguidades presentes no texto sejam com isso prejudicadas.
Um aspecto não pouco relevante e inovador desta tradução é que,
diferentemente de outras edições da Comédia em língua portuguesa, esta é feita a
seis mãos. Isso signi ca que cada verso da obra foi preparado por um dos
tradutores e depois lido, revisado e complementado por observações dos outros
dois, processo que levou a duas, três, quatro ou mais versões antes de chegarmos
ao resultado aqui apresentado. Essa experiência, como era de se esperar, foi muito
rica de discussões e cheia da cumplicidade que ainda manteremos para as
próximas partes do poema, o Purgatório e o Paraíso.

Emanuel França de Brito, Maurício Santana Dias e Pedro Falleiros Heise


Rio de Janeiro, São Paulo e Florianópolis — 2019-21
Cronologia

1265 Dante Alighieri nasce em Florença, entre ns de maio e início de


junho.
1274 De acordo com a Vida no a, acontece o primeiro encontro com
Beatriz.
1277 Contrato de casamento com Gemma di Manetto Donati, com quem
terá quatro lhos. É provável, no entanto, que a consumação do
matrimônio só tenha ocorrido após a maioridade dos noivos.
1283- Composição de muitas poesias, entre as quais algumas depois
93 recolhidas na Vida no a.
1285- Composição do Fiore e do Detto d’amore, adaptações em vulgar do
90 Roman de la rose atribuídas a Dante.
1287 Breve estada em Bolonha, onde entra em contato com a poesia do
“dolce stil novo”, cujo precursor foi o poeta bolonhês Guido
Guinizelli.
1289 Participação na batalha de Campaldino e no assédio ao castelo de
Caprona.
1290 Morte de Beatriz.
1291-4 Estudos de loso a, provavelmente nos conventos de Santa Croce e
de Santa Maria Novella, em Florença.
1293-6 Composição das Tenzoni, disputa poética com Forese Donati.
c. 1295 Conclusão da Vida no a.
1295 Início da vida pública e participação nos principais conselhos
municipais, entre os quais o do Capitão do povo, o dos Sábios e o
dos Cem.
Ano do Jubileu instituído por Bonifácio viii. Participação de Dante
1300 no mais importante órgão administrativo de Florença, o Priorato.
Entre os principais fatos ocorridos durante seu mandato está o apoio
ao banimento de chefes das duas facções políticas (guelfos brancos e
negros), incluindo seu amigo e poeta Guido Cavalcanti. Viagem de
Dante pelo reino dos mortos, inferno, purgatório e paraíso, na
Comédia.
1301-2 Após integrar uma comissão diplomática junto a Bonifácio viii em
Roma, Dante é acusado de corrupção e outros crimes. Sem jamais
voltar à sua cidade, é condenado ao exílio e expulso da vida pública
de Florença. É julgado à revelia e sentenciado à pena de morte.
1303 Morte de Bonifácio viii. Eleição do papa Bento xi, que será
sucedido no ano seguinte por Clemente v.
1303-8 Composição dos tratados Con ívio e Sobre a eloquência do vulgar.
1305 Consagração do papa francês Clemente v, responsável pela
transferência da Santa Sé de Roma para Avignon em 1309, sob o
patrocínio do rei Filipe, o Belo.
1302-9 Dante transita por cidades do centro-norte da Itália, como Arezzo,
Treviso, Pádua, Veneza, Rovereto, Casentino e Lucca.
1309 Henrique vii de Luxemburgo é coroado imperador do Sacro
Império Romano-Germânico em Aquisgrano. No ano seguinte, será
novamente coroado em Milão e, em 1312, em Roma. Devido ao
apoio da Igreja e ao caráter conciliador do imperador, Dante espera a
paz entre os partidos e o m de seu exílio.
1313 Henrique vii morre em Buonconvento, nas proximidades de Siena.
No ano anterior, Dante teria ido encontrá-lo em Pisa para lhe
prestar homenagem. A morte prematura do imperador faz o poeta
perder a esperança pela paz e pelo m do exílio.
1313-8 Estada em Verona. Inferno e Purgatório já se encontram em
circulação em 1315. Provável início da composição do Paraíso,
dedicado em uma epístola ao governante daquela cidade, Cangrande
della Scala. Talvez seja do m desse período a composição do tratado
político Monarquia.
1315 A pena capital é estendida aos lhos de Dante, que com isso foram
obrigados a sair de Florença.
1318- Estada em Ravena. Composição do tratado geográ co Questão sobre
21 a água e a terra e de duas Éclogas em resposta a Giovanni del
Virgilio, professor de latim em Bolonha.
1321 Voltando de uma viagem diplomática a Veneza, Dante morre de
malária entre 13 e 14 de setembro. Seus restos mortais permanecem
até hoje em Ravena, junto à basílica de San Francesco.
Bibliogra a

EDIÇÕES ITALIANAS
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Petrocchi. Soc. Dantesca Italiana. 2a reimpr. rev. Florença: Le Lettere, 1994.
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Milão: Mondadori, 1991 (Inf.), 1994 (Purg.; Par.).
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<https://dante.dartmouth.edu/>.
topogra a dell’inferno di dante. Disponível em: <https://
www.alpacaprojects.com/inferno/>.
Canto I
Dante se vê perdido em uma selva escura. Sem saber muito bem como chegou ali,
diz apenas que se desviou do caminho certo (“a direita via”) [1-12]. Buscando sair
pela encosta de um monte iluminado pelo sol da manhã, o poeta se depara com
três feras — um lince, um leão e uma loba — que o empurram de volta para a
selva [13-60]. Uma sombra aparece diante dele: é o poeta latino Virgílio (70-19
a.C.), que menciona sua origem (“mantuanos”) e nascimento no tempo de Júlio
César (“sub Iulio”), além de aludir a personagens de seu poema Eneida, como
Eneias (“ lho de Anquises”), Camila, Euríalo, Turno e Niso. Dante, reverente ao
autor de quem diz ter tirado o modelo de escrita, lhe pede ajuda. Virgílio então
oferece um caminho alternativo e anuncia em linguagem profética a vinda de
alguém (“lebréu”) que salvará a Itália da ambição da loba [61-111]. Por m, o poeta
latino a rma que Dante deverá passar pelos três reinos dos mortos: o dos
“espíritos dolentes” (inferno), o dos que “esperam se elevar” (purgatório) e o das
“beatas gentes” (paraíso). Para os dois primeiros, Virgílio será o guia; para o
último, diz que outra alma se apresentará, pois ele não pode entrar no paraíso por
ter sido pagão. Sem alternativa, o orentino acata a ideia da viagem. Os dois
partem: Virgílio vai à frente, e Dante o segue [112-136].
No meio do caminho desta vida
me descobri em uma selva escura,
pois a direita via era perdida. 3

Ai, mas dizer como era é empresa dura


esta selva selvagem, aspra e forte
que no pensar renova tal paúra! 6

Tão amarga que é pouco mais a morte;


mas a tratar do bem que eu encontrei,
direi das outras coisas dessa sorte. 9

Eu não sei bem dizer como eu entrei,


tanto era sonolento o meu estado,
que a verdadeira via abandonei. 12

Depois de ao pé dum morro eu ter chegado,


lá onde terminava aquele vale
que de paúra havia meu cor cravado, 15

olhei ao alto e o vi, com o seu xale,


vestido já dos raios do planeta
que a todos bem conduz sem que os abale. 18

Então, eis que a paúra se aquieta,


mas no lago do cor era constante
a dor de passar noite tão abjeta. 21
E como alguém sem ar vindo ofegante
logo ao sair do pélago à deriva
se volta à água, ao risco já distante, 24

assim a minha força, fugitiva,


se voltou para trás a ver o passo
que não deixou jamais pessoa viva. 27

Após pousar um pouco o corpo lasso,


me encaminhei pela encosta deserta,
rmando o pé embaixo a cada passo. 30

Eis que ao começo da subida incerta


um lince bem ligeiro, presto e leve,
de manchas a pelagem recoberta, 33

à frente de meu rosto se reteve;


tanto impedia o caminho o felino,
que quase retornei em fuga breve. 36

Tempo era do princípio matutino,


e o sol se erguia ao alto coas estrelas
que já o seguiam quando o amor divino 39

moveu primeiro aquelas coisas belas;


boa esperança a mim restava então,
contra a fera de pintas amarelas, 42

na hora do tempo e na doce estação;


mas não tanto que medo não me desse
a vista que surgiu-me de um leão. 45

Contra mim parecia que viesse


com a fronte alta e com raivosa fome,
de modo a parecer que o ar tremesse. 48

Logo uma loba, que a ambição consome,


parecendo pesada em sua magreza
e a muitos a igindo sem que a dome, 51

esta pôs em mim tanta graveza


co medo que saía de sua vista,
que eu perdi a esperança de ir à alteza. 54

E como alguém que com prazer conquista,


e chega o tempo que perder o faz,
que em sua mente apenas choro exista; 57

assim me fez a pér da sem paz,


que pouco a pouco ao horizonte opaco
me impelia, onde o sol não fala mais. 60

Enquanto eu me arruinava em um buraco,


diante de meus olhos foi-me oferto
quem por longo silêncio vinha fraco. 63

Então quando eu o vi no grão deserto,


“Miserere de mim”, gritei-lhe pois,
“quem quer que sejas, sombra ou homem certo!”. 66

“Não homem, homem fui”, falou depois,


“e aqueles de quem vim foram lombardos,
mantuanos por pátria ambos os dois. 69

Nasci sub Iulio, embora em anos tardos;


vivi em Roma sob o bom Augusto
quando dos deuses falsos e bastardos. 72

Poeta fui, e cantei sobre o justo


lho de Anquises que de Troia veio,
após o altivo Ílion ser combusto. 75

Mas tu, por que voltar a tanto anseio?


Por que não vais ao deleitoso monte
que é princípio e razão de todo enleio?”. 78

“Então és tu, Virgílio, aquela fonte


que expande no falar tão largo ume?”,
lhe respondi com vergonhosa fronte. 81

“Ó dos outros poetas honra e lume,


valham-me o longo estudo e o grande amor
que me levou a ler o teu volume. 84

Tu és meu mestre, és o meu autor,


tu és o único de quem colhi
o belo estilo que me trouxe honor. 87

Olha a fera por quem eu me volvi;


me dá, famoso sábio, tua coragem,
tanto ela faz tremer meu corpo aqui”. 90

“Tu deverás fazer outra viagem”,


disse, depois de lacrimar me ver,
“se queres ir deste lugar selvagem; 93

porque essa fera que te faz temer


não deixa outrem passar por sua via,
lhe impede o passo até que o vê morrer; 96

e tem natura tão perversa e fria,


que nunca satisfaz o seu desejo,
quanto mais come, menos se sacia. 99

São muitos animais em seu cortejo,


e inda serão até que en m virá
lhe dar morte o lebréu com dor, prevejo. 102

De terra ou níquel não se cevará,


mas de saber, de amor e de virtude,
e entre dois feltros ele nascerá. 105
Da humilde Itália há de ser saúde
por que morreu a virginal Camila,
Euríalo e Turno e Niso em modo rude. 108

Ele a perseguirá por toda vila,


até recolocá-la no imo inferno,
lá de onde a inveja fez por expeli-la. 111

Donde eu, que ao teu melhor pondero e externo,


digo me sigas, que serei teu guia,
te levarei daqui a sítio eterno; 114

onde ouvirás os gritos de agonia,


verás velhos espíritos dolentes
clamando se outra morte lhes viria; 117

verás também os que seguem contentes


no fogo, porque esperam se elevar,
quando aprouver, até as beatas gentes. 120

Às quais, pois, se quiseres tu chegar,


alma haverá pra tal mais do que eu digna:
com ela carás quando eu voltar; 123

pois quem impera lá e quem designa,


por ter sido eu rebelde à sua lei,
não quer sua cidade a mim benigna. 126

Em toda parte impera e ali é rei;


ali é sua cidade e o alto assento:
felizes dos eleitos, sua grei!”. 129

E eu: “Poeta, peço com alento,


por esse Deus que tu não conheceste,
que eu fuja deste mal ou pior tormento, 132

e tu me leves lá onde disseste


para que de são Pedro eu veja a porta
e os que dizes estar em triste veste”. 135

Então segui de perto quem conforta.


Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura,
ché la diritta via era smarrita. 3

Ahi quanto a dir qual era è cosa dura


esta selva selvaggia e aspra e forte
che nel pensier rinova la paura! 6

Tant è amara che poco è più morte;


ma per trattar del ben ch i vi trovai,
dirò de l altre cose ch i v ho scorte. 9

Io non so ben ridir com i v intrai,


tant era pien di sonno a quel punto
che la verace via abbandonai. 12

Ma poi ch i fui al piè d un colle giunto,


là dove terminava quella valle
che m avea di paura il cor compunto, 15

guardai in alto e vidi le sue spalle


vestite già de raggi del pianeta
che mena dritto altrui per ogne calle. 18

Allor fu la paura un poco queta,


che nel lago del cor m era durata
la notte ch i passai con tanta pieta. 21
E come quei che con lena affannata,
uscito fuor del pelago a la riva,
si volge a l acqua perigliosa e guata, 24

così l animo mio, ch ancor fuggiva,


si volse a retro a rimirar lo passo
che non lasciò già mai persona viva. 27

Poi ch èi posato un poco il corpo lasso,


ripresi via per la piaggia diserta,
sì che l piè fermo sempre era l più basso. 30

Ed ecco, quasi al cominciar de l erta,


una lonza leggera e presta molto,
che di pel macolato era coverta; 33

e non mi si partia dinanzi al volto,


anzi mpediva tanto il mio cammino,
ch i fui per ritornar più volte vòlto 36

Temp era dal principio del mattino,


e l sol montava n sù con quelle stelle
ch eran con lui quando l amor divino 39

mosse di prima quelle cose belle;


sì ch a bene sperar m era cagione
di quella era a la gaetta pelle 42

l ora del tempo e la dolce stagione;


ma non sì che paura non mi desse
la vista che m apparve d un leone. 45

uesti parea che contra me venisse


con la test alta e con rabbiosa fame,
sì che parea che l aere ne tremesse. 48

Ed una lupa, che di tutte brame


sembiava carca ne la sua magrezza,
e molte genti fé già viver grame, 51

questa mi porse tanto di gravezza


con la paura ch uscia di sua vista,
ch io perdei la speranza de l altezza. 54

E qual è quei che volontieri acquista,


e giugne l tempo che perder lo face,
che n tutti suoi pensier piange e s attrista; 57

tal mi fece la bestia sanza pace,


che, venendomi ncontro, a poco a poco
mi ripigneva là dove l sol tace. 60

Mentre ch i rovinava in basso loco,


dinanzi a li occhi mi si fu offerto
chi per lungo silenzio parea oco. 63

uando vidi costui nel gran diserto,


“Miserere di me”, gridai a lui,
“qual che tu sii, od ombra od omo certo!”. 66

Rispuosemi: “Non omo, omo già fui,


e li parenti miei furon lombardi,
mantoani per patrïa ambedui. 69

Nacqui sub Iulio, ancor che fosse tardi,


e vissi a Roma sotto l buono Augusto
nel tempo de li dèi falsi e bugiardi. 72

Poeta fui, e cantai di quel giusto


gliuol d Anchise che venne di Troia,
poi che l superbo Ilïón fu combusto. 75

Ma tu perché ritorni a tanta noia?


perché non sali il dilettoso monte
ch è principio e cagion di tutta gioia?”. 78

“Or se tu quel Virgilio e quella fonte


che spandi di parlar sì largo ume?”,
rispuos io lui con vergognosa fronte. 81

“O de li altri poeti onore e lume,


vagliami l lungo studio e l grande amore
che m ha fatto cercar lo tuo volume. 84

Tu se lo mio maestro e l mio autore,


tu se solo colui da cu io tolsi
lo bello stilo che m ha fatto onore. 87

Vedi la bestia per cu io mi volsi;


aiutami da lei, famoso saggio,
ch ella mi fa tremar le vene e i polsi”. 90

“A te convien tenere altro vïaggio”,


rispuose, poi che lagrimar mi vide,
“se vuo campar d esto loco selvaggio; 93

ché questa bestia, per la qual tu gride,


non lascia altrui passar per la sua via,
ma tanto lo mpedisce che l uccide; 96

e ha natura sì malvagia e ria,


che mai non empie la bramosa voglia,
e dopo l pasto ha più fame che pria. 99

Molti son li animali a cui s ammoglia,


e più saranno ancora, in n che l veltro
verrà, che la farà morir con doglia. 102

uesti non ciberà terra né peltro,


ma sapïenza, amore e virtute,
e sua nazion sarà tra feltro e feltro. 105
Di quella umile Italia a salute
per cui morì la vergine Cammilla,
Eurialo e Turno e Niso di ferute. 108

uesti la caccerà per ogne villa,


n che l avrà rimessa ne lo nferno,
là onde nvidia prima dipartilla. 111

Ond io per lo tuo me penso e discerno


che tu mi segui, e io sarò tua guida,
e trarrotti di qui per loco etterno; 114

ove udirai le disperate strida,


vedrai li antichi spiriti dolenti,
ch a la seconda morte ciascun grida; 117

e vederai color che son contenti


nel foco, perché speran di venire
quando che sia a le beate genti. 120

A le quai poi se tu vorrai salire,


anima a a ciò più di me degna:
con lei ti lascerò nel mio partire; 123

ché quello imperador che là sù regna,


perch i fu ribellante a la sua legge,
non vuol che n sua città per me si vegna. 126

In tutte parti impera e quivi regge;


quivi è la sua città e l alto seggio:
oh felice colui cu ivi elegge!”. 129

E io a lui: “Poeta, io ti richeggio


per quello Dio che tu non conoscesti,
acciò ch io fugga questo male e peggio, 132

che tu mi meni là dov or dicesti,


sì ch io veggia la porta di san Pietro
e color cui tu fai cotanto mesti”. 135

Allor si mosse, e io li tenni dietro.


Canto II
O poeta invoca as musas, seguindo o modelo da poesia épica [1-9]. Dante
demonstra insegurança quanto a sua capacidade de seguir a viagem anunciada,
realizada antes por dois grandes personagens aos quais ele teme se comparar: 1.
Eneias (“de Sílvio o parente”), protagonista da Eneida que desce ao Averno, reino
dos mortos dos latinos; e 2. Paulo (“o Vaso de eleição”), apóstolo que na segunda
epístola aos Coríntios havia revelado sua ascensão aos céus [10-42]. Diante do
temor que o poeta manifesta em empreender tal viagem, Virgílio expõe a razão do
caminho a ser seguido: Beatriz, exemplo de virtude para os que vivem na Terra
(localizada sob o céu lunar, “céu que o arco menor tem”), havia descido do paraíso
ao limbo infernal a que Virgílio estava condenado a m de pedir-lhe que
socorresse seu amigo perdido na “selva escura”. Mas, como Beatriz explica a
Virgílio, a ajuda provinha de lugares ainda mais altos: Maria havia recorrido a
Luzia, santa de Siracusa (c. 283-c. 303 d.C.), a quem Dante tinha especial
devoção; esta, por sua vez, falara com Beatriz, que se encontrava junto a Raquel,
pedindo-lhe que fosse em auxílio daquele que, por ela, havia se destacado como
poeta (“que do grupo vulgar por ti saíra”) [43-126]. Ao saber da ação das “três
benditas damas” intermediada por Virgílio, Dante se encoraja a prosseguir [127-
142].
O dia terminava, e o ar já bruno
tirava os animais que estão na terra
de seus longos esforços; eu só, uno, 3

me preparava pra enfrentar a guerra


presente no caminho e na piedade,
que contará a mente que não erra. 6

Dai-me, ó musas, ó alta faculdade,


ó mente que escreveste o que avistei,
o engenho que há de ter autoridade. 9

“Poeta que me guias”, comecei,


“vê se minha virtude é bem potente
ao alto passo, e em ti con arei. 12

Tu dizes que de Sílvio o parente,


corruptível ainda, ao imortal
mundo foi com o corpo senciente. 15

Porém, se o adversário do grão mal


cortês lhe foi pensando no alto efeito
que dele iria brotar, e quem e o qual, 18

não é indigno a homem de conceito;


pois foi da santa Roma e seu império
no céu empíreo como pai eleito: 21
a qual e o qual, querendo falar sério,
foi consagrada como assento santo
onde está o sucessor do Pedro etéreo. 24

Por tal viagem, de que o louvas tanto,


entendeu coisas que foram razão
de sua vitória, além do papal manto. 27

Pois o seguiu o Vaso de eleição,


para levar à fé conforto, en m,
que é o princípio à via de salvação. 30

Mas eu, por quê? uem o concede a mim?


Eu não Eneias, eu não Paulo sou;
nem eu nem outros veem-me digno ao m. 33

Porque, se junto a ti agora eu vou,


receio uma viagem insensata.
És sábio; vês à fala o que faltou”. 36

E como alguém que após atar desata


e por novo pensar muda a proposta,
tal que do começar já se retrata, 39

assim z eu naquela escura costa,


porque pensei na empresa indeferida,
que ao começar foi duramente posta. 42

“Se entendi bem tua fala proferida”,


magnânima falou a sombra honesta,
“tua alma é por vileza acometida; 45

a qual frequentemente o homem molesta


e assim a honrada empresa faz depor,
como miragem que afugenta a besta. 48

A m de libertar-te do temor,
te direi por que vim e o que provei
quando por ti no início senti dor. 51

Estava entre os suspensos, como é lei,


e dama me chamou, beata e bela,
tal que me comandasse eu supliquei. 54

Luziam os seus olhos mais que estrela;


e começou dizendo suave e lhana,
com voz angelical, na fala dela: 57

‘Ó grande alma cortês e mantuana,


cuja fama no mundo inda perdura,
e durará no mundo soberana, 60

o meu amigo, avesso à ventura,


na encosta mais deserta foi impedido
em seu caminho, envolto por paúra; 63

e temo que já esteja tão perdido,


que tarde em seu socorro eu fui levada,
pelo que dele sei, no céu ouvido. 66

Vai, pois, e com a tua palavra ornada


e com o que é mister para o salvar,
ajuda-o pra que eu seja consolada. 69

Sou Beatriz, a que te faz andar;


venho de lá aonde voltar desejo;
amor moveu-me, que me faz falar. 72

uando ao Senhor eu for, em seu cortejo,


de ti direi a Ele todo o bem’.
Calou-se então, e comecei no ensejo: 75

‘Ó dama de virtude, só por quem


a espécie humana excede o abranger
daquele céu que o arco menor tem, 78

tanto me apraz tua ordem atender,


que obedecê-lo, já, seria demora;
só basta a ti expor-me o teu querer. 81

Mas dize-me a razão de vir agora


descendo à profundeza deste centro
de onde tornar anseias céu afora’. 84

‘Por quereres saber tão longe adentro,


te direi brevemente’, respondia,
‘por que não temo vir até aqui dentro. 87

Temer devemos só o que irradia


potência de fazer aos outros mal;
do resto, não, pois não causa fobia. 90

Eu sou feita por Deus, sua mercê, tal,


que o vosso sofrimento não me atinge,
nem chama deste incêndio me é letal. 93

Dama há gentil no céu que se constringe


por este impedimento ao qual te mando,
tanto que lá o juízo acerbo infringe. 96

Ela chamou Luzia a seu comando


e disse: — Ora precisa o teu el
de ti, e a ti o estou recomendando —. 99

Luzia, avessa a todo ser cruel,


moveu-se e veio ao sítio em que me vira,
lá onde eu me sentava com Raquel. 102

Disse: — Beatriz, louvor que Deus inspira,


por que não vais a quem te amara tanto
que do grupo vulgar por ti saíra? 105
Não ouves a agonia de seu pranto,
não vês que o assedia então a morte
onde à torrente o mar cede co espanto? —. 108

No mundo jamais houve alguém tão forte


pro bem, ou pra fugir ao dano atento,
como eu, após palavras desta sorte, 111

aqui desci do meu beato assento


ando-me no teu falar honesto,
que louva a ti e a quem te ouviu o alento’. 114

Depois de estar tudo isso manifesto,


virou-me o olhar em lágrimas luzente,
de modo que me fez correr mais presto. 117

E, tal como ela quis, eu vim urgente:


desviei-te da fera, em tua defesa,
que te impediu o passo ao monte em frente. 120

Então: como é? Por que, por que a fraqueza,


por que no coração falta coragem,
por que não tens ardor, não tens franqueza, 123

depois que três benditas damas agem


de ti cuidando na corte do céu,
além do que provê minha linguagem?”. 126

ual or sob a geada feita em véu


fechada e murcha, quando o sol a embranca,
levanta e se abre sobre o caule seu, 129

assim z eu com minha força estanca,


e tanto ardor ao cor meu incutiu,
que eu comecei como pessoa franca: 132

“Como é piedosa aquela que acudiu!


E tu, cortês, que acorreste com gosto
aos ditos veros que ela te exprimiu! 135

Meu coração tornaste tão disposto


para seguir teus ditos, mais nenhum,
que retornei ao que antes me era posto. 138

Pois vai, que um só querer é a nós comum:


tu guia, tu senhor e tu meu mestre”.
Assim lhe disse; e já sem medo algum 141

segui pelo caminho alto e silvestre.


Lo giorno se n andava, e l aere bruno
toglieva li animai che sono in terra
da le fatiche loro; e io sol uno 3

m apparecchiava a sostener la guerra


sì del cammino e sì de la pietate,
che ritrarrà la mente che non erra. 6

O muse, o alto ingegno, or m aiutate;


o mente che scrivesti ciò ch io vidi,
qui si parrà la tua nobilitate. 9

Io cominciai: “Poeta che mi guidi,


guarda la mia virtù s ell è possente,
prima ch a l alto passo tu mi di. 12

Tu dici che di Silvïo il parente,


corruttibile ancora, ad immortale
secolo andò, e fu sensibilmente. 15

Però, se l avversario d ogne male


cortese i fu, pensando l alto effetto
ch uscir dovea di lui, e l chi e l quale 18

non pare indegno ad omo d intelletto;


ch e fu de l alma Roma e di suo impero
ne l empireo ciel per padre eletto: 21
la quale e l quale, a voler dir lo vero,
fu stabilita per lo loco santo
u siede il successor del maggior Piero. 24

Per quest andata onde li dai tu vanto,


intese cose che furon cagione
di sua vittoria e del papale ammanto. 27

Andovvi poi lo Vas d elezïone,


per recarne conforto a quella fede
ch è principio a la via di salvazione. 30

Ma io, perché venirvi? o chi l concede?


Io non Enëa, io non Paulo sono;
me degno a ciò né io né altri l crede. 33

Per che, se del venire io m abbandono,


temo che la venuta non sia folle.
Se savio; intendi me ch i non ragiono”. 36

E qual è quei che disvuol ciò che volle


e per novi pensier cangia proposta,
sì che dal cominciar tutto si tolle, 39

tal mi fec ïo n quella oscura costa,


perché, pensando, consumai la ‘mpresa
che fu nel cominciar cotanto tosta. 42

“S i ho ben la parola tua intesa”,


rispuose del magnanimo quell ombra,
“l anima tua è da viltade offesa; 45

la qual molte fïate l omo ingombra


sì che d onrata impresa lo rivolve,
come falso veder bestia quand ombra. 48

Da questa tema acciò che tu ti solve,


dirotti perch io venni e quel ch io ntesi
nel primo punto che di te mi dolve. 51

Io era tra color che son sospesi,


e donna mi chiamò beata e bella,
tal che di comandare io la richiesi. 54

Lucevan li occhi suoi più che la stella;


e cominciommi a dir soave e piana,
con angelica voce, in sua favella: 57

‘O anima cortese mantoana,


di cui la fama ancor nel mondo dura,
e durerà quanto l mondo lontana, 60

l amico mio, e non de la ventura,


ne la diserta piaggia è impedito
sì nel cammin, che vòlt è per paura; 63

e temo che non sia già sì smarrito,


ch io mi sia tardi al soccorso levata,
per quel ch i ho di lui nel cielo udito. 66

Or movi, e con la tua parola ornata


e con ciò c ha mestieri al suo campare,
l aiuta sì ch i ne sia consolata. 69

I son Beatrice che ti faccio andare;


vegno del loco ove tornar disio;
amor mi mosse, che mi fa parlare. 72

uando sarò dinanzi al segnor mio,


di te mi loderò sovente a lui .
Tacette allora, e poi comincia io: 75

‘O donna di virtù sola per cui


l umana spezie eccede ogne contento
di quel ciel c ha minor li cerchi sui, 78

tanto m aggrada il tuo comandamento,


che l ubidir, se già fosse, m è tardi;
più non t è uo ch aprirmi il tuo talento. 81

Ma dimmi la cagion che non ti guardi


de lo scender qua giuso in questo centro
de l ampio loco ove tornar tu ardi . 84

‘Da che tu vuo saver cotanto a dentro,


dirotti brievemente , mi rispuose,
‘perch i non temo di venir qua entro. 87

Temer si dee di sole quelle cose


c hanno potenza di fare altrui male;
de l altre no, ché non son paurose. 90

I son fatta da Dio, sua mercé, tale,


che la vostra miseria non mi tange,
né amma d esto ncendio non m assale. 93

Donna è gentil nel ciel che si compiange


di questo mpedimento ov io ti mando,
sì che duro giudicio là sù frange. 96

uesta chiese Lucia in suo dimando


e disse: — Or ha bisogno il tuo fedele
di te, e io a te lo raccomando —. 99

Lucia, nimica di ciascun crudele,


si mosse, e venne al loco dov i era,
che mi sedea con l antica Rachele. 102

Disse: — Beatrice, loda di Dio vera,


ché non soccorri quei che t amò tanto,
ch uscì per te de la volgare schiera? 105
Non odi tu la pieta del suo pianto,
non vedi tu la morte che l combatte
su la umana ove l mar non ha vanto? —. 108

Al mondo non fur mai persone ratte


a far lor pro o a fuggir lor danno,
com io, dopo cotai parole fatte, 111

venni qua giù del mio beato scanno,


dandomi del tuo parlare onesto,
ch onora te e quei ch udito l hanno . 114

Poscia che m ebbe ragionato questo,


li occhi lucenti lagrimando volse,
per che mi fece del venir più presto. 117

E venni a te così com ella volse:


d inanzi a quella era ti levai
che del bel monte il corto andar ti tolse. 120

Dunque: che è? perché, perché restai,


perché tanta viltà nel core allette,
perché ardire e franchezza non hai, 123

poscia che tai tre donne benedette


curan di te ne la corte del cielo,
e l mio parlar tanto ben ti promette?”. 126

uali oretti dal notturno gelo


chinati e chiusi, poi che l sol li mbianca,
si drizzan tutti aperti in loro stelo, 129

tal mi fec io di mia virtude stanca,


e tanto buono ardire al cor mi corse,
ch i cominciai come persona franca: 132

“Oh pietosa colei che mi soccorse!


e te cortese ch ubidisti tosto
a le vere parole che ti porse! 135

Tu m hai con disiderio il cor disposto


sì al venir con le parole tue,
ch i son tornato nel primo proposto. 138

Or va, ch un sol volere è d ambedue:


tu duca, tu segnore e tu maestro”.
Così li dissi; e poi che mosso fue, 141

intrai per lo cammino alto e silvestro.


Canto III
Lemos a inscrição sobre a porta do inferno [1-21]. No vestíbulo, os poetas
caminham entre espíritos indiferentes: os anjos que não tomaram partido na
revolta de Lúcifer contra Deus, e os homens e mulheres que em vida não
defenderam nenhuma bandeira, sendo-lhes impedidos os três reinos. Entre eles,
Dante reconhece o espírito daquele que “fez a grã recusa”, gura geralmente
associada ao papa Celestino v (Pietro del Morrone, c. 1209-96), que, tendo
renunciado ao ponti cado, abriu caminho a Bonifácio viii (Benedetto Caetani, c.
1235-1303), papa que teve participação direta no exílio do orentino [22-69]. Ao
olhar adiante, o poeta identi ca um grande grupo de almas às margens do rio
infernal Aqueronte. Após seguirem naquela direção, aproxima-se o demônio
Caronte, responsável por atravessar as almas em seu barco até a margem interna
do inferno. Percebendo que Dante não está morto como os outros, Caronte
indica que o poeta deveria passar por “outros portos”, e não por ali. Nesse
momento, Virgílio intervém para mostrar que a passagem de Dante havia sido
autorizada por desígnios superiores, não cabendo ao demônio contestar [70-99].
De forma violenta, Caronte recolhe as almas pecadoras para dentro de seu barco;
depois de atravessar o rio, a embarcação deve retornar em busca dos inúmeros
espíritos que, segundo Virgílio, para lá “convergem de todo o planeta”. Logo em
seguida, um tremor de terra e um vento abalam Dante e o fazem desmaiar [100-
136].
por mim se vai à cidade dolente,
por mim se vai à sempiterna dor,
3
por mim se vai entre a perdida gente.
moveu justiça o alto criador;
zeram-me as potências divinais,
6
a suma sapiência e o primo amor.
antes de mim não há coisas mortais,
senão eternas, e eu eterno duro.
9
deixai toda esperança, vós que entrais.
Essas palavras de padrão escuro
eu vi escritas no topo de uma porta;
donde eu: “Mestre, o sentido ali me é duro”. 12

E ele a mim, como alguém que sabe e exorta:


“Aqui convém deixar a hesitação;
toda vileza aqui deve estar morta. 15

Como falei, chegamos à região


onde verás a gente em agonia,
que já perdeu o bem da compreensão”. 18

E após me dar sua mão em companhia


com ledo rosto, em que me confortei,
me pôs dentro da tão secreta via. 21

Suspiros altos, prantos — era a lei —


ressoavam pelos ares sem estrelas,
donde eu, ao começar, lacrimejei. 24

Diversas línguas, ásperas loquelas,


palavras doloridas, gritos de ira,
vozes medonhas, sons de mãos com elas 27

faziam um tumulto que inda gira


na aragem desde sempre escurecida,
como areia num vórtice que expira. 30

E eu, que tinha a mente confundida,


disse-lhe: “Mestre, o que é todo esse chio?
E que gente é, talvez por dor vencida?”. 33

“Este mísero modo”, proferiu,


“têm os espíritos dos desolados
por viver sem infâmia ou elogio. 36

Ao coro atroz dos anjos vão mesclados,


daqueles que não foram revoltosos
nem foram éis a Deus, em si centrados. 39

Os céus os banem, do belo zelosos,


nem o imo inferno lhes é permitido,
que deles glória teriam os maldosos”. 42

E eu: “Mestre, o que causa esse bramido,


o que atormenta tanto, assim tão forte?”.
E ele: “Direi a ti bem resumido. 45

Não lhes cabe esperança nem de morte,


e sua vida cega é tanto crassa,
que invejosos estão de qualquer sorte. 48
Fama deles o mundo não repassa;
compaixão e justiça os põem à beira:
não mais falemos deles; olha e passa”. 51

E eu, que reparei, vi ˜ua bandeira


que tremulando ia tão depressa,
que pausa não lhe dava essa carreira; 54

e atrás dela seguia turba espessa,


mas quase minha mente não acusa
sem crer que tanto assim morte a despeça. 57

Reconhecendo alguns na chã difusa,


a sombra eu vi e conheci de quem
por covardia fez a grã recusa. 60

De imediato soube e entendi bem


que aquela era a caterva de almas vis,
desprezíveis a Deus e aos maus também. 63

Nunca viveram, oh grupo infeliz,


e estavam nus, pungidos contragosto
por vespas e moscões dos mais hostis. 66

Elas riscavam-lhes de sangue o rosto,


e, misturado às lágrimas, no piso
vermes torpes colhiam o composto. 69

E quando para além olhei preciso


vi pessoas à margem de um grão ume;
donde eu: “Mestre, revela ao meu juízo 72

pra que eu saiba quem são, e qual costume


as faz tão prontas ao que têm defronte,
como eu distingo pelo fraco lume”. 75

E ele a mim: “Para que eu isso te conte,


primeiro deteremos nossos pés
sobre a triste ribeira do Aqueronte”. 78

Então mirei o chão com timidez,


temendo o meu dizer causasse entrave,
e até o rio calei-me de uma vez. 81

Mas eis que veio vindo a nós por nave


um velho, branco por antigo pelo;
“Malditas almas!”, grita com voz grave, 84

“ao céu não esperai lançar apelo:


a conduzir-vos venho à orla esquiva,
na treva eterna, no calor, no gelo. 87

E tu que estás aí, ó alma viva,


afasta-te daqueles que estão mortos”.
Mas vendo minha força inativa, 90

disse: “Por outra via, outros portos,


virás à praia, outra, onde passar:
a ti se devem lenhos menos tortos”. 93

Meu mestre fez: “Caron, por que bradar?


Vontade vem de lá onde se pode
o que se quer, e chega de indagar”. 96

A lã das faces já não mais sacode


o condutor do lívido palude,
que tinha os olhos em fulgor que explode. 99

Mas essas almas, nuas, sem virtude,


perderam cor e bateram os dentes,
assim que perceberam o tom rude. 102

Blasfemavam de Deus, de seus parentes,


da espécie humana e o sítio e o tempo e o início
de sua estirpe e de suas nascentes. 105

Então se uniram todas em comício,


chorando forte, na margem que arrasa
qualquer um que não teme a Deus por vício. 108

Caron demônio, com olhos em brasa


lhes acenando, as colhe e se põe prestes
a bater com o remo em quem se atrasa. 111

Como no outono em colinas agrestes


pouco a pouco desprende-se a folhagem,
e o ramo vê na terra as suas vestes, 114

igualmente de Adão a má linhagem


daquela margem lançam-se uma a uma,
como as aves que aos gestos bem reagem. 117

Assim vão elas sobre a escura espuma


e antes de lá chegarem, à sua meta,
aqui há mais um grupo que se arruma. 120

“Meu lho”, disse o cordial poeta,


“aqueles que se vão na ira divina
pra cá convergem de todo o planeta; 123

vêm prontos a transpor o rio qual sina,


pois justiça de Deus os aguilhoa,
tanto que o medo ao desejo se inclina. 126

Aqui não passa nunca uma alma boa;


e, se Caron contigo assim protesta,
bem podes já saber o que a voz soa”. 129

Isto dito, a planície turva e infesta


tremeu tão forte, que deste espavento
só de lembrar suor me banha a testa. 132
A terra lacrimosa trouxe um vento
que lampejou uma luz escarlate,
a qual venceu-me todo sentimento; 135

e caí como quando o sono bate.


per me si va ne la città dolente,
per me si va ne l etterno dolore,
3
per me si va tra la perduta gente.
giustizia mosse il mio alto fattore;
fecemi la divina podestate,
6
la somma sapïenza e l primo amore.
dinanzi a me non fuor cose create
se non etterne, e io etterno duro.
9
lasciate ogne speranza, voi ch intrate.
ueste parole di colore oscuro
vid ïo scritte al sommo d una porta;
per ch io: “Maestro, il senso lor m è duro”. 12

Ed elli a me, come persona accorta:


“ ui si convien lasciare ogne sospetto;
ogne viltà convien che qui sia morta. 15

Noi siam venuti al loco ov i t ho detto


che tu vedrai le genti dolorose
c hanno perduto il ben de l intelletto”. 18

E poi che la sua mano a la mia puose


con lieto volto, ond io mi confortai,
mi mise dentro a le segrete cose. 21

uivi sospiri, pianti e alti guai


risonavan per l aere sanza stelle,
per ch io al cominciar ne lagrimai. 24

Diverse lingue, orribili favelle,


parole di dolore, accenti d ira,
voci alte e oche, e suon di man con elle 27

facevano un tumulto, il qual s aggira


sempre in quell aura sanza tempo tinta,
come la rena quando turbo spira. 30

E io ch avea d error la testa cinta,


dissi: “Maestro, che è quel ch i odo?
e che gent è che par nel duol sì vinta?”. 33

Ed elli a me: “ uesto misero modo


tegnon l anime triste di coloro
che visser sanza nfamia e sanza lodo. 36

Mischiate sono a quel cattivo coro


de li angeli che non furon ribelli
né fur fedeli a Dio, ma per sé fuoro. 39

Caccianli i ciel per non esser men belli,


né lo profondo inferno li riceve,
ch alcuna gloria i rei avrebber d elli”. 42

E io: “Maestro, che è tanto greve


a lor che lamentar li fa sì forte?”.
Rispuose: “Dicerolti molto breve. 45

uesti non hanno speranza di morte,


e la lor cieca vita è tanto bassa,
che nvidïosi son d ogne altra sorte. 48
Fama di loro il mondo esser non lassa;
misericordia e giustizia li sdegna:
non ragioniam di lor, ma guarda e passa”. 51

E io, che riguardai, vidi una nsegna


che girando correva tanto ratta,
che d ogne posa mi parea indegna; 54

e dietro le venìa sì lunga tratta


di gente, ch i non averei creduto
che morte tanta n avesse disfatta. 57

Poscia ch io v ebbi alcun riconosciuto,


vidi e conobbi l ombra di colui
che fece per viltade il gran ri uto. 60

Incontanente intesi e certo fui


che questa era la setta d i cattivi,
a Dio spiacenti e a nemici sui. 63

uesti sciaurati, che mai non fur vivi,


erano ignudi e stimolati molto
da mosconi e da vespe ch eran ivi. 66

Elle rigavan lor di sangue il volto,


che, mischiato di lagrime, a lor piedi
da fastidiosi vermi era ricolto. 69

E poi ch a riguardar oltre mi diedi,


vidi genti a la riva d un gran ume;
per ch io dissi: “Maestro, or mi concedi 72

ch i sappia quali sono, e qual costume


le fa di trapassar parer sì pronte,
com i discerno per lo oco lume”. 75

Ed elli a me: “Le cose ti er conte


quando noi fermerem li nostri passi
su la trista riviera d Acheronte”. 78

Allor con li occhi vergognosi e bassi,


temendo no l mio dir li fosse grave,
in no al ume del parlar mi trassi. 81

Ed ecco verso noi venir per nave


un vecchio, bianco per antico pelo,
gridando: “Guai a voi, anime prave! 84

Non isperate mai veder lo cielo:


i vegno per menarvi a l altra riva
ne le tenebre etterne, in caldo e n gelo. 87

E tu che se costì, anima viva,


pàrtiti da cotesti che son morti”.
Ma poi che vide ch io non mi partiva, 90

disse: “Per altra via, per altri porti


verrai a piaggia, non qui, per passare:
più lieve legno convien che ti porti”. 93

E l duca lui: “Caron, non ti crucciare:


vuolsi così colà dove si puote
ciò che si vuole, e più non dimandare”. 96

uinci fuor quete le lanose gote


al nocchier de la livida palude,
che ntorno a li occhi avea di amme rote. 99

Ma quell anime, ch eran lasse e nude,


cangiar colore e dibattero i denti,
ratto che nteser le parole crude. 102

Bestemmiavano Dio e lor parenti,


l umana spezie e l loco e l tempo e l seme
di lor semenza e di lor nascimenti. 105

Poi si ritrasser tutte quante insieme,


forte piangendo, a la riva malvagia
ch attende ciascun uom che Dio non teme. 108

Caron dimonio, con occhi di bragia


loro accennando, tutte le raccoglie;
batte col remo qualunque s adagia. 111

Come d autunno si levan le foglie


l una appresso de l altra, n che l ramo
vede a la terra tutte le sue spoglie, 114

similemente il mal seme d Adamo


gittansi di quel lito ad una ad una,
per cenni come augel per suo richiamo. 117

Così sen vanno su per l onda bruna,


e avanti che sien di là discese,
anche di qua nuova schiera s auna. 120

“Figliuol mio”, disse l maestro cortese,


“quelli che muoion ne l ira di Dio
tutti convegnon qui d ogne paese; 123

e pronti sono a trapassar lo rio,


ché la divina giustizia li sprona,
sì che la tema si volve in disio. 126

uinci non passa mai anima buona;


e però, se Caron di te si lagna,
ben puoi sapere omai che l suo dir suona”. 129

Finito questo, la buia campagna


tremò sì forte, che de lo spavento
la mente di sudore ancor mi bagna. 132
La terra lagrimosa diede vento,
che balenò una luce vermiglia
la qual mi vinse ciascun sentimento; 135

e caddi come l uom cui sonno piglia.


Canto IV
Sem saber como atravessou o Aqueronte, Dante recupera as forças já na outra
margem do rio e tenta identi car o local em que se encontra [1-12]. Os poetas estão
no limbo, o primeiro círculo do inferno, onde cam os que morreram pagãos e as
crianças que morreram sem ser batizadas. Virgílio esclarece que as almas daquele
lugar não são culpadas por seus erros, mas sentem uma “dor sem martírio” apenas
por não terem conhecido a fé cristã e seu Deus; entre esses, o próprio Virgílio.
Respondendo à pergunta de Dante, o poeta latino relata a descida de Cristo (“o
mais potente”) ao limbo para resgatar algumas almas, dentre as quais são
mencionados os principais patriarcas do Antigo Testamento e precursores da
religião cristã [13-66]. Os dois poetas ouvem uma voz que celebra a volta de
Virgílio entre os seus; em seguida, juntam-se a quatro outros famosos poetas: o
grego Homero e os latinos Horácio (65-8 a.C.), Ovídio (43 a.C.-17 d.C.) e
Lucano (39-65 d.C.); Dante é acolhido como o sexto deste grupo de “beleza
vária” [67-105]. Juntos, os seis entram no “nobre castelo”, iluminado e envolto por
sete muros, dentro do qual se reúnem outros espíritos. Ali se encontram várias
personagens literárias e históricas — gregas, latinas, árabes —, entre as quais se
destaca “o mestre dos mais sábios”, referência ao lósofo Aristóteles (c. 384-322
a.C.), ladeado por seus precursores Sócrates (c. 470-399 a.C.) e Platão (c. 428-c.
347 a.C.) [106-147].
Separando-se desse grupo, Dante e Virgílio retomam o
caminho rumo à escuridão [148-151].
Rompe-me o alto sono em minha testa
um trovão grave, tanto que tremi
como pessoa que desperta lesta; 3

e de olhos repousados percorri


em torno, já de pé e vigilante,
buscando conhecer onde me vi. 6

Verdade é que na borda estava diante


do grão vale de abismo doloroso
que atroa um padecer cavo e constante. 9

Escuro e profundo era e nebuloso


tanto que, mesmo pondo a vista a fundo,
o meu olhar não encontrava pouso. 12

“Ora desçamos lá ao cego mundo”,


disse o poeta, de semblante morto.
“Eu serei o primeiro, e tu o segundo”. 15

E eu, que em sua cor vi desconforto,


disse: “Como, se o medo é evidente
em ti, que sempre a mim és como um porto?”. 18

E ele falou: “A angústia dessa gente


que aqui está retrata em minha pele
a piedade que sentes por temente. 21
Vamos, que a longa via nos impele”.
Assim se pôs e assim me fez entrar
no círculo primeiro, que é o dele. 24

Ali, pelo que dava pra escutar,


suspiros só de pranto era o que havia,
fazendo a aura eterna tremular; 27

pela dor sem martírio isso ocorria,


com grandes, numerosas multidões
de varões e mulheres e sua cria. 30

E o caro mestre a mim: “Por que não pões


perguntas sobre as almas que tu vês?
Antes que vás, dirimo-te as questões, 33

pois não pecaram; e se o bem se fez


não basta, porque falta-lhes batismo,
que é porta desta fé em que tu crês; 36

se antes vieram do cristianismo,


não adoraram Deus como é prescrito:
com todas estas eu também me abismo. 39

Por tais defeitos, não outro delito,


nosso tormento é estar na perdição;
sem esperar, desejo é o nosso rito”. 42

Enorme dor tomou-me o coração


quando entendi que gentes de valor
eu vi naquele limbo, em suspensão. 45

“Diz-me, meu mestre, diz a mim, senhor”,


comecei, por querer estar mais certo
daquela fé que vence todo error: 48

“por merecer alguém já foi liberto


ou por outrem, depois afortunado?”.
E, compreendendo meu falar coberto, 51

me disse: “Eu era novo neste estado


quando aqui vi chegar um que é potente,
com sinal de vitória coroado. 54

Levou a sombra do primaz parente,


de Abel seu lho e de Noé, a grei
de Moïsés legista e obediente; 57

do patriarca Abraão, de Davi, rei,


de Israel com o pai e com seus nados
e de Raquel, por quem fez tanto; eu sei 60

desses e de outros, beati cados.


E é bom que saibas que dantes jamais
houve espíritos de homens resgatados”. 63

O caminhar e a fala iam normais,


atravessando toda selva afora,
a selva com espíritos demais. 66

Não era longa nossa via agora


desde meu sono, quando eu vi um lume
que a escura banda do planeta cora. 69

De chão ainda havia um bom volume,


não tanto que eu não discernisse em parte
a honrada gente que ali se reúne. 72

“Ó tu que muito honras ciência e arte,


quem são esses que ostentam honra tanta,
que do modo dos outros os reparte?”. 75

E me falou: “A honradez que encanta


e deles soa lá onde tens vida,
graça no céu conquista que os levanta”. 78

Nisto uma voz se fez por mim ouvida:


“Todos honrai o altíssimo poeta
cuja sombra retorna da saída”. 81

Depois que a voz parou e se pôs quieta,


vi quatro grandes sombras vindo a nós:
nem tristes nem felizes, de alma reta. 84

Começou o bom mestre em clara voz:


“Repara o que segura a espada in manu
e vem feito senhor, com três após: 87

é Homero, poeta soberano;


o outro é Horácio sátiro que vem;
Ovídio é o terço, e o último, Lucano. 90

E como a cada um e a mim convém


o que entoou a voz lá solitária,
me fazem honra, e nisso fazem bem”. 93

Assim vi se juntar beleza vária


da escola do senhor de vasto canto
que sobre os outros voa como águia. 96

Depois de conversarem, entretanto,


voltaram-se pra mim em cumprimento,
e meu mestre sorriu lá de seu canto; 99

e honra maior zeram-me no evento,


tanto que àquele grupo eu z jus
e sexto fui de muito entendimento. 102

Assim seguimos rumo à clara luz,


falando coisas que já não revelo,
tal era a fala que ali se conduz. 105
Ao pé chegamos dum nobre castelo
que em sete muros altos se enclausura
em meio à proteção de um riacho belo. 108

Este passamos como em terra dura;


com os sábios entrei por sete traves,
chegando a prado de fresca verdura. 111

Gentes havia de olhos lentos, graves,


de grande autoridade em seus semblantes:
falavam pouco, com vozes suaves. 114

Saímos de onde estávamos nós antes


a um local luminoso, aberto e alto,
tal que se viam lá seus ocupantes. 117

Ali em frente, num verde planalto,


mostraram-me a assembleia elevada,
que só por vê-la em mim mesmo me exalto. 120

Eu vi Electra dos seus acompanhada,


entre os quais conheci Heitor e Eneia,
César em armas de vista a ada. 123

Eu vi Camila e vi Pentesileia;
do outro lado avistei o rei Latino
que com a lha Lavínia se alteia. 126

Avistei Bruto que expulsou Tarquino,


Lucrécia, Júlia e Márcia com Cornélia;
e só, à parte, vi o Saladino. 129

Erguendo meu olhar sempre em vigília,


o mestre dos mais sábios eu vi lá
em meio a losó ca família. 132

Todos o miram, honra se lhe dá:


ali vi Sócrates e vi Platão,
o par que mais chegado a ele está; 135

Demócrito e o acaso em sua visão,


Diógenes e Heráclito imortal,
Empédocle, Anaxágora e Zenão; 138

vi o bom compilador medicinal,


Dioscórides, e Tales; vi Orfeu
e Túlio e Lino e Sêneca moral; 141

o geômetra Euclides, Ptolomeu,


Avicena, Hipócrates, Galeno,
Averróis, o que a grande glosa deu. 144

Não posso retratar tudo isso a pleno,


por tanto que me tange a longa cena,
e pra narrar o fato às vezes peno. 147

De seis o nosso grupo em dois se aliena:


por outra via o sábio me estimula,
ao ar que treme, além desta aura amena. 150

E vou aonde toda luz é nula.


Ruppemi l alto sonno ne la testa
un greve truono, sì ch io mi riscossi
come persona ch è per forza desta; 3

e l occhio riposato intorno mossi,


dritto levato, e so riguardai
per conoscer lo loco dov io fossi. 6

Vero è che n su la proda mi trovai


de la valle d abisso dolorosa
che ntrono accoglie d in niti guai. 9

Oscura e profonda era e nebulosa


tanto che, per ccar lo viso a fondo,
io non vi discernea alcuna cosa. 12

“Or discendiam qua giù nel cieco mondo”,


cominciò il poeta tutto smorto.
“Io sarò primo, e tu sarai secondo”. 15

E io, che del color mi fui accorto,


dissi: “Come verrò, se tu paventi
che suoli al mio dubbiare esser conforto?”. 18

Ed elli a me: “L angoscia de le genti


che son qua giù, nel viso mi dipigne
quella pietà che tu per tema senti. 21
Andiam, ché la via lunga ne sospigne”.
Così si mise e così mi fé intrare
nel primo cerchio che l abisso cigne. 24

uivi, secondo che per ascoltare,


non avea pianto mai che di sospiri
che l aura etterna facevan tremare; 27

ciò avvenia di duol sanza martìri,


ch avean le turbe, ch eran molte e grandi,
d infanti e di femmine e di viri. 30

Lo buon maestro a me: “Tu non dimandi


che spiriti son questi che tu vedi?
Or vo che sappi, innanzi che più andi, 33

ch ei non peccaro; e s elli hanno mercedi,


non basta, perché non ebber battesmo,
ch è porta de la fede che tu credi; 36

e s e furon dinanzi al cristianesmo,


non adorar debitamente a Dio:
e di questi cotai son io medesmo. 39

Per tai difetti, non per altro rio,


semo perduti, e sol di tanto offesi
che sanza speme vivemo in disio”. 42

Gran duol mi prese al cor quando lo ntesi,


però che gente di molto valore
conobbi che n quel limbo eran sospesi. 45

“Dimmi, maestro mio, dimmi, segnore”,


comincia io per volere esser certo
di quella fede che vince ogne errore: 48

“uscicci mai alcuno, o per suo merto


o per altrui, che poi fosse beato?”.
E quei che ntese il mio parlar coverto, 51

rispuose: “Io era nuovo in questo stato,


quando ci vidi venire un possente,
con segno di vittoria coronato. 54

Trasseci l ombra del primo parente,


d Abèl suo glio e quella di Noè,
di Moïsè legista e ubidente; 57

Abraàm patrïarca e Davìd re,


Israèl con lo padre e co suoi nati
e con Rachele, per cui tanto fé, 60

e altri molti, e feceli beati.


E vo che sappi che, dinanzi ad essi,
spiriti umani non eran salvati”. 63

Non lasciavam l andar perch ei dicessi,


ma passavam la selva tuttavia,
la selva, dico, di spiriti spessi. 66

Non era lunga ancor la nostra via


di qua dal sonno, quand io vidi un foco
ch emisperio di tenebre vincia. 69

Di lungi n eravamo ancora un poco,


ma non sì ch io non discernessi in parte
ch orrevol gente possedea quel loco. 72

“O tu ch onori scïenzïa e arte,


questi chi son c hanno cotanta onranza,
che dal modo de li altri li diparte?”. 75

E quelli a me: “L onrata nominanza


che di lor suona sù ne la tua vita,
grazïa acquista in ciel che sì li avanza”. 78

Intanto voce fu per me udita:


“Onorate l altissimo poeta;
l ombra sua torna, ch era dipartita”. 81

Poi che la voce fu restata e queta,


vidi quattro grand ombre a noi venire:
sembianz avevan né trista né lieta. 84

Lo buon maestro cominciò a dire:


“Mira colui con quella spada in mano,
che vien dinanzi ai tre sì come sire: 87

quelli è Omero poeta sovrano;


l altro è Orazio satiro che vene;
Ovidio è l terzo, e l ultimo Lucano. 90

Però che ciascun meco si convene


nel nome che sonò la voce sola,
fannomi onore, e di ciò fanno bene”. 93

Così vid i adunar la bella scola


di quel segnor de l altissimo canto
che sovra li altri com aquila vola. 96

Da ch ebber ragionato insieme alquanto,


volsersi a me con salutevol cenno,
e l mio maestro sorrise di tanto; 99

e più d onore ancora assai mi fenno,


ch e sì mi fecer de la loro schiera,
sì ch io fui sesto tra cotanto senno. 102

Così andammo in no a la lumera,


parlando cose che l tacere è bello,
sì com era l parlar colà dov era. 105
Venimmo al piè d un nobile castello,
sette volte cerchiato d alte mura,
difeso intorno d un bel umicello. 108

uesto passammo come terra dura;


per sette porte intrai con questi savi:
giugnemmo in prato di fresca verdura. 111

Genti v eran con occhi tardi e gravi,


di grande autorità ne lor sembianti:
parlavan rado, con voci soavi. 114

Traemmoci così da l un de canti,


in loco aperto, luminoso e alto,
sì che veder si potien tutti quanti. 117

Colà diritto, sovra l verde smalto,


mi fuor mostrati li spiriti magni,
che del vedere in me stesso m essalto. 120

I vidi Eletra con molti compagni,


tra quai conobbi Ettòr ed Enea,
Cesare armato con li occhi grifagni. 123

Vidi Cammilla e la Pantasilea;


da l altra parte vidi l re Latino
che con Lavina sua glia sedea. 126

Vidi quel Bruto che cacciò Tarquino,


Lucrezia, Iulia, Marzïa e Corniglia;
e solo, in parte, vidi l Saladino. 129

Poi ch innalzai un poco più le ciglia,


vidi l maestro di color che sanno
seder tra loso ca famiglia. 132

Tutti lo miran, tutti onor li fanno:


quivi vid ïo Socrate e Platone,
che nnanzi a li altri più presso li stanno; 135

Democrito che l mondo a caso pone,


Dïogenès, Anassagora e Tale,
Empedoclès, Eraclito e Zenone; 138

e vidi il buono accoglitor del quale,


Dïascoride dico; e vidi Orfeo,
Tulïo e Lino e Seneca morale; 141

Euclide geomètra e Tolomeo,


Ipocràte, Avicenna e Galïeno,
Averoìs che l gran comento feo. 144

Io non posso ritrar di tutti a pieno,


però che sì mi caccia il lungo tema,
che molte volte al fatto il dir vien meno. 147

La sesta compagnia in due si scema:


per altra via mi mena il savio duca,
fuor de la queta, ne l aura che trema. 150

E vegno in parte ove non è che luca.


Canto V
Os dois poetas descem a um lugar menos amplo que o círculo anterior, o que irá
se repetir ao longo de toda a viagem pelo inferno devido à sua conformação
geográ ca em funil. Dante e Virgílio avistam a gura bestializada do antigo rei de
Creta, Minos, famoso por governar com princípios de justiça; no inferno, tem o
papel de designar com as voltas de sua cauda o círculo onde as almas serão
punidas. Minos questiona a presença de Dante e é silenciado por Virgílio com a
mesma fórmula que o poeta latino usou com o demônio barqueiro [1-24]. Os
poetas chegam ao lugar onde são punidos os pecadores carnais, que em vida se
deram à luxúria. Sua pena, baseada em comportamento imoderado, consiste em
serem arrastados por um intenso tornado, assim como em vida se deixaram levar
ao sabor de seus desejos amorosos. Virgílio indica a Dante algumas das inúmeras
sombras de “damas e heróis do tempo antigo” [25-72]. Dante manifesta o desejo de
falar com duas almas que iam juntas pelo vento; por elas, que se aproximam, é
atendido. O poeta vem a saber que foram dois cunhados adúlteros, Francesca e
Paolo, assassinados pelo marido traído, que é aguardado na Caína, zona do nono
círculo infernal. uem fala é Francesca (?-c. 1285), originária de Rimini (“foz/
do rio Pó”), que conta a história do amor que os levou à morte. Após Francesca
terminar o relato, Dante desmaia [73-142].
Assim desci do círculo primeiro
ao segundo, onde o sítio menor era,
e a dor maior, que punge qual vespeiro. 3

Lá estava Minos feio, e vocifera,


a examinar as culpas bem na entrada:
julga e manda segundo se apodera. 6

Digo que quando a alma malfadada


lhe vem à frente toda se confessa;
e o tal conhecedor da coisa errada 9

vê qual lugar do inferno cabe a essa;


tantas vezes coa cauda ele se enlaça,
quantos graus para baixo ela mereça. 12

Sempre diante dele estão em massa:


vão uma a uma em coro ao precipício
após ouvir o que o juízo traça. 15

“Ó tu que vens ao doloroso hospício”,


por Minos foram tais palavras ditas
deixando o ato de tamanho ofício, 18

“olha como entras e em quem acreditas;


não te enganes se aqui é amplo o entrar!”.
Então meu guia a ele: “Por que gritas? 21
Não atravanques seu fatal andar:
vontade vem de lá onde se pode
o que se quer, e chega de indagar”. 24

Ora dolentes notas é o que eclode


em meus ouvidos; ora estou, contudo,
lá onde muito pranto me sacode. 27

Vim ao lugar de todo lume mudo,


que rumora qual mar em temporal,
se é combatido pelo vento rudo; 30

e sem dar trégua a tormenta infernal


leva os espíritos com sua rapina,
girando e os percutindo em espiral. 33

uando chegam diante da ruína,


ali os gritos, o pranto, o lamento;
ali blasfemam a glória divina. 36

Compreendi que esse alto sofrimento


era in igido aos danados carnais,
que sua razão sujeitam ao talento. 39

E como os estorninhos invernais


se juntam numa faixa larga e plena,
assim o sopro essas almas rivais 42

por cá, por lá, em cima e embaixo ordena;


aí esperança alguma nunca vai,
não de repouso, mas de menor pena. 45

E como os grous cantando vão seu lai,


fazendo la pra que o bando siga,
assim eu vi chegar, lançando guai, 48

sombras idas ao vento que fustiga;


por isso eu disse: “Mestre, quem são elas,
essas que a aura negra assaz castiga?”. 51

“A primeira de quem saber anelas


notícias”, disse então aquele guia,
“imperou sobre muitas cidadelas. 54

Em vício de luxúria se perdia,


fez lícito o prazer nas leis civis,
pra se livrar da repreensão que ouvia. 57

Ao que se lê, ela é Semiramis,


que sucedeu a Nino e foi sua esposa,
lá onde hoje o Sultão tem seu país. 60

A outra se matou toda amorosa,


rompendo a fé às cinzas de Siqueu;
depois, Cleópatra luxuriosa. 63

Helena vê, por quem tanto se deu


mau tempo, e o grande Aquiles vê também,
que contra amor por m acometeu. 66

Vê Páris, vê Tristão”; e mais de cem


mostrou-me, tendo os nomes me indicado
das sombras que amor manda para o além. 69

Depois de meu doutor ter escutado


citar damas e heróis do tempo antigo,
tomou-me a piedade e, angustiado, 72

assim eu comecei: “Poeta”, digo,


“gostava de falar aos dois que vão
ao vento assim tão leves por castigo”. 75

E ele me fez: “Verás quando estarão


perto de nós; e tu então lhes pede
por esse amor que os leva, e eles virão”. 78

Assim que o vento os trouxe como em rede,


movi a voz: “Ó almas tormentadas,
vinde a nós, se não há quem isso impede!”. 81

uais pombas por desejo convocadas,


asas erguidas rente ao ninho do,
cruzam o ar pelo querer levadas; 84

assim saíram da ala onde está Dido,


chegando a nós por entre o ar malino,
tão forte foi o afetuoso estrido. 87

“Ó animal gracioso e benino


que visitando vai no ar negro imerso,
nós que o mundo tingimos de sanguino, 90

se fosse amigo o grão rei do universo,


lhe rogaríamos por tua paz,
pois tens piedade deste mal perverso. 93

Disso que ouvir e que falar apraz,


vamos ouvir, vamos falar a vós
enquanto em vento a voz não se desfaz. 96

Repousa a terra em que nasci na foz


do rio Pó, lá onde ao mar descende
para ter paz com quem o segue após. 99

Amor, que ao cor gentil logo se prende,


este prendeu pela bela pessoa
de mim tolhida; e o modo inda me ofende. 102

Amor, que a amado algum amar perdoa,


pegou-me pelo encanto seu tão forte,
que, como vês, ainda me afeiçoa. 105
Amor nos conduziu à mesma morte.
Caína aguarda quem nos dizimou.”
Foram deles palavras de tal sorte. 108

uando a alma ofendida terminou,


baixei o olhar, desanimado e lasso,
té que o poeta, “ ue pensas?”, falou. 111

uando lhe respondi: “Oh, duro laço


de pensamentos doces, de desejo,
que os conduziu ao doloroso passo!”. 114

Então virei-me a eles e sem pejo


iniciei: “Francesca, teus tormentos
me deixam triste e pio, e lacrimejo. 117

Mas dize: ao tempo dos doces alentos,


a que e como consentiu amor
que vos levou aos incertos intentos?”. 120

E a mim falou: “Nenhuma dor maior


que recordar-se do tempo feliz
na miséria, bem sabe teu doutor. 123

Mas se do nosso amor qual a raiz


primeira tu desejas conhecer,
direi tal como alguém que chora e diz. 126

Nós líamos um dia por prazer


como o amor Lancelote constringiu;
estávamos a sós e sem temer. 129

Várias vezes o ler nos impeliu


a olhar-nos, desbotando nosso viso;
mas um só ponto foi que nos feriu. 132

E quando lemos que o almejado riso


fora beijado por tão caro amante,
este, que não será de mim diviso, 135

a boca me beijou todo ofegante.


Galeotto foi o livro e quem compôs:
no dia, ali, não lemos mais adiante”. 138

Enquanto aquele espírito isso expôs,


o outro chorava; e na piedade absorto
desmaiei como a quem morte se impôs. 141

E caí como cai um corpo morto.


Così discesi del cerchio primaio
giù nel secondo, che men loco cinghia
e tanto più dolor, che punge a guaio. 3

Stavvi Minòs orribilmente, e ringhia:


essamina le colpe ne l intrata;
giudica e manda secondo ch avvinghia. 6

Dico che quando l anima mal nata


li vien dinanzi, tutta si confessa;
e quel conoscitor de le peccata 9

vede qual loco d inferno è da essa;


cignesi con la coda tante volte
quantunque gradi vuol che giù sia messa. 12

Sempre dinanzi a lui ne stanno molte:


vanno a vicenda ciascuna al giudizio,
dicono e odono e poi son giù volte. 15

“O tu che vieni al doloroso ospizio”,


disse Minòs a me quando mi vide,
lasciando l atto di cotanto offizio, 18

“guarda com entri e di cui tu ti de;


non t inganni l ampiezza de l intrare!”.
E l duca mio a lui: “Perché pur gride? 21
Non impedir lo suo fatale andare:
vuolsi così colà dove si puote
ciò che si vuole, e più non dimandare”. 24

Or incomincian le dolenti note


a farmisi sentire; or son venuto
là dove molto pianto mi percuote. 27

Io venni in loco d ogne luce muto,


che mugghia come fa mar per tempesta,
se da contrari venti è combattuto. 30

La bufera infernal, che mai non resta,


mena li spirti con la sua rapina;
voltando e percotendo li molesta. 33

uando giungon davanti a la ruina,


quivi le strida, il compianto, il lamento;
bestemmian quivi la virtù divina. 36

Intesi ch a così fatto tormento


enno dannati i peccator carnali,
che la ragion sommettono al talento. 39

E come li stornei ne portan l ali


nel freddo tempo, a schiera larga e piena,
così quel ato li spiriti mali 42

di qua, di là, di giù, di sù li mena;


nulla speranza li conforta mai,
non che di posa, ma di minor pena. 45

E come i gru van cantando lor lai,


faccendo in aere di sé lunga riga,
così vid io venir, traendo guai, 48

ombre portate da la detta briga;


per ch i dissi: “Maestro, chi son quelle
genti che l aura nera sì gastiga?”. 51

“La prima di color di cui novelle


tu vuo saper”, mi disse quelli allotta,
“fu imperadrice di molte favelle. 54

A vizio di lussuria fu sì rotta,


che libito fé licito in sua legge,
per tòrre il biasmo in che era condotta. 57

Ell è Semiramìs, di cui si legge


che succedette a Nino e fu sua sposa:
tenne la terra che l Soldan corregge. 60

L altra è colei che s ancise amorosa,


e ruppe fede al cener di Sicheo;
poi è Cleopatràs lussurïosa. 63

Elena vedi, per cui tanto reo


tempo si volse, e vedi l grande Achille,
che con amore al ne combatteo. 66

Vedi Parìs, Tristano”; e più di mille


ombre mostrommi e nominommi a dito,
ch amor di nostra vita dipartille. 69

Poscia ch io ebbi l mio dottore udito


nomar le donne antiche e ’ cavalieri,
pietà mi giunse, e fui quasi smarrito. 72

I cominciai: “Poeta, volontieri


parlerei a quei due che nsieme vanno,
e paion sì al vento esser leggeri”. 75

Ed elli a me: “Vedrai quando saranno


più presso a noi; e tu allor li priega
per quello amor che i mena, ed ei verranno”. 78

Sì tosto come il vento a noi li piega,


mossi la voce: “O anime affannate,
venite a noi parlar, s altri nol niega!”. 81

uali colombe dal disio chiamate


con l ali alzate e ferme al dolce nido
vegnon per l aere, dal voler portate; 84

cotali uscir de la schiera ov è Dido,


a noi venendo per l aere maligno,
sì forte fu l affettüoso grido. 87

“O animal grazïoso e benigno


che visitando vai per l aere perso
noi che tignemmo il mondo di sanguigno, 90

se fosse amico il re de l universo,


noi pregheremmo lui de la tua pace,
poi c hai pietà del nostro mal perverso. 93

Di quel che udire e che parlar vi piace,


noi udiremo e parleremo a voi,
mentre che l vento, come fa, ci tace. 96

Siede la terra dove nata fui


su la marina dove l Po discende
per aver pace co seguaci sui. 99

Amor, ch al cor gentil ratto s apprende,


prese costui de la bella persona
che mi fu tolta; e l modo ancor m offende. 102

Amor, ch a nullo amato amar perdona,


mi prese del costui piacer sì forte,
che, come vedi, ancor non m abbandona. 105
Amor condusse noi ad una morte.
Caina attende chi a vita ci spense”.
ueste parole da lor ci fuor porte. 108

uand io intesi quell anime offense,


china il viso, e tanto il tenni basso,
n che l poeta mi disse: “Che pense?”. 111

uando rispuosi, cominciai: “Oh lasso,


quanti dolci pensier, quanto disio
menò costoro al doloroso passo!”. 114

Poi mi rivolsi a loro e parla io,


e cominciai: “Francesca, i tuoi martìri
a lagrimar mi fanno tristo e pio. 117

Ma dimmi: al tempo d i dolci sospiri,


a che e come concedette amore
che conosceste i dubbiosi disiri?”. 120

E quella a me: “Nessun maggior dolore


che ricordarsi del tempo felice
ne la miseria; e ciò sa l tuo dottore. 123

Ma s a conoscer la prima radice


del nostro amor tu hai cotanto affetto,
dirò come colui che piange e dice. 126

Noi leggiavamo un giorno per diletto


di Lancialotto come amor lo strinse;
soli eravamo e sanza alcun sospetto. 129

Per più fïate li occhi ci sospinse


quella lettura, e scolorocci il viso;
ma solo un punto fu quel che ci vinse. 132

uando leggemmo il disïato riso


esser basciato da cotanto amante,
questi, che mai da me non a diviso, 135

la bocca mi basciò tutto tremante.


Galeotto fu l libro e chi lo scrisse:
quel giorno più non vi leggemmo avante”. 138

Mentre che l uno spirto questo disse,


l altro piangëa; sì che di pietade
io venni men così com io morisse. 141

E caddi come corpo morto cade.


Canto VI
Dante mais uma vez recobra os sentidos e se vê em um novo lugar. Os poetas
seguem pelo terceiro círculo, onde os gulosos são punidos e as intempéries deixam
o lugar úmido e repulsivo. O guardião desta vez é Cérbero, cão de três cabeças da
mitologia grega que vigia o reino dos mortos. Diante de sua hostilidade, Virgílio o
repele com um punhado de areia [1-33]. Dante é reconhecido pela alma de seu
compatriota Ciacco, punido entre os que jazem como porcos no chão do
ambiente asqueroso. Ao ouvir falar de sua cidade natal, Florença, o poeta pede
que Ciacco lhe prediga fatos da política municipal, sobretudo em relação à luta
entre as facções guelfas branca e negra. Ciacco lhe anuncia os próximos embates e
prediz que uma das facções será banida, justamente a do poeta (guelfos brancos, a
“parte camponesa”), por in uência de um poderoso, provavelmente Bonifácio
viii. Dante pergunta ainda sobre políticos já mortos, se seus espíritos foram salvos
ou condenados, ao que Ciacco lhe diz que estão todos pelo caminho até o fundo
do inferno [34-93]. Após a fala de Ciacco, Virgílio esclarece a Dante fatos sobre o
futuro dos que estão no inferno, fadados a sofrer suas penas até que soe a “angélica
trombeta”, ou seja, o Juízo Final, que imporá a eles um sofrimento ainda maior
quando recobrarem seus corpos físicos — conforme a leitura escolástica da
doutrina sobre a perfeição dos corpos descrita na Ética aristotélica (“tua ciência”)
[94-111]. Os poetas chegam diante do demônio Plutão, deus da riqueza e dos
ínferos na mitologia grega, transformado por Dante em guardião do quarto
círculo do inferno [112-115].
Ao retornar da mente, que ruiu
diante do penar dos dois cunhados,
que de tristeza todo me aturdiu, 3

novos tormentos, novos torturados


eu vejo em torno a mim, quer eu me mova,
quer eu me volte, ou olhe para os lados. 6

Estou no círculo terceiro, em cova


de chuva eterna, fria e nada leve;
sem distinção, sua regra não é nova. 9

Granizo grosso, água imunda e neve


naquele ar tenebroso se dispersa,
deixando podre o chão que isso reteve. 12

Cérbero, fera cruel e diversa,


caninamente ladra com três goelas
por sobre toda gente aqui submersa. 15

Sangue nos olhos, largas as costelas,


barba sebenta e garras de cortar;
esfola e escorcha as almas como aquelas. 18

ual cães a chuva eterna os faz gritar;


um de seus ancos dá ao outro teto;
reviram-se os profanos sem parar. 21
Ao nos ver, Cérbero, o grão verme abjeto,
abriu as bocas nos mostrando as presas;
seu corpo se agitava por completo. 24

E assim meu mestre, com suas palmas tesas,


encheu os punhos de bastante areia
e a jogou para as ávidas bravezas. 27

Tal como um cão que com latido anseia


o pasto e se aquieta ao deglutir,
pois só quer devorar nem se refreia, 30

assim com fauces sujas, sem latir,


fez Cérbero, demônio que atordoa
as almas que queriam não ouvir. 33

Passávamos por sombras que aferroa


a grave chuva, com os pés pisando
em seu vazio que lembra uma pessoa. 36

Ao rés do chão jazia todo o bando,


fora uma que, elevando-se do leito,
nos viu diante e foi logo indagando: 39

“Ó tu que pelo inferno vens eleito,


me reconhece se tu és capaz:
tu foste, antes que eu desfeito, feito”. 42

E eu: “A angústia que sofrer te faz


talvez remova a ti da minha mente;
parece que jamais te vi, aliás. 45

Mas dize-me quem és que em tão dolente


lugar estás, e com tamanha pena
que, se há maior, nenhuma é tão pungente”. 48

E ele me disse: “A tua cidade, plena


de inveja que transborda já o saco,
me teve ao longo da vida serena. 51

Vós cidadãos a mim chamastes Ciacco:


pela danosa culpa que é a gula,
como tu vês, na chuva co fraco. 54

A mim com a alma triste me vincula


sentença igual aos desta região
por culpa igual”. E não mais articula. 57

Eu respondi: “Ai, Ciacco, tua a ição


tanto me pesa, que a chorar convida;
mas dize-me, se sabes, aonde irão 60

os cidadãos da cidade partida;


e se há um justo; e dize a fonte espúria
da discórdia que a fez assim ferida”. 63

E me falou: “Depois de longa fúria


ao sangue irão, e a parte camponesa
a outra expulsará com muita injúria. 66

Após, forçoso é que caia indefesa


sob o arco de três sóis, e que a outra ascenda
com a força de um que age com destreza. 69

Com altivez, no tempo em que se estenda,


a outra manterá sob graves pesos,
ainda que esta chore ou que se ofenda. 72

Justos há dois, mas sofrem cos desprezos;


são avareza, inveja e arrogância
as que mantêm os corações acesos”. 75

Aqui pôs m à lacrimosa estância.


E eu: “Ainda quero que me digas
e acolhas com favor a minha instância. 78

Farinata e Tegghiaio, honras antigas,


Iacopo Rusticucci, Mosca e Arrigo
e os outros que afastaram-se de intrigas, 81

dize onde estão no caminho que sigo,


pois grande é meu desejo de saber:
se no dulçor do céu ou no castigo”. 84

E ele: “ ue estejam no abismo é mister,


pois culpas várias mandam-nos ao fundo:
se tanto desces, lá os há de ver. 87

Mas quando fores tu ao doce mundo,


lembrança minha leva pra quem queira:
mais não te digo, mais não me aprofundo”. 90

Torceu-se então sua vista antes certeira;


olhou-me um pouco e após baixou o rosto,
caindo junto aos outros na cegueira. 93

E o mestre a mim: “Não sai mais de seu posto


antes do som da angélica trombeta,
quando o poder hostil vier imposto: 96

cada um reencontrará a triste valeta,


retomará sua carne e sua gura,
ouvindo o que em eterno se decreta”. 99

Assim passamos a suja mistura


das sombras e da chuva, a passos lentos,
falando um pouco da vida futura; 102

por isso eu disse: “Mestre, estes tormentos


serão maiores depois da sentença,
menores, ou iguais em sofrimentos?”. 105
E então a mim: “Retorna à tua ciência,
que diz, a coisa, quanto mais perfeita,
mais sente o bem, assim como a dolência. 108

A verdadeira perfeição rejeita


essa gente que, embora condenada,
lá mais que cá espera estar sujeita”. 111

Nós contornamos toda aquela estrada


falando mais do que ora posso expor;
alcançamos a parte rebaixada: 114

vimos ali Plutão, rival maior.


Al tornar de la mente, che si chiuse
dinanzi a la pietà d i due cognati,
che di trestizia tutto mi confuse, 3

novi tormenti e novi tormentati


mi veggio intorno, come ch io mi mova
e ch io mi volga, e come che io guati. 6

Io sono al terzo cerchio, de la piova


etterna, maladetta, fredda e greve;
regola e qualità mai non l è nova. 9

Grandine grossa, acqua tinta e neve


per l aere tenebroso si riversa;
pute la terra che questo riceve. 12

Cerbero, era crudele e diversa,


con tre gole caninamente latra
sovra la gente che quivi è sommersa. 15

Li occhi ha vermigli, la barba unta e atra,


e l ventre largo, e unghiate le mani;
graffia li spirti ed iscoia ed isquatra. 18

Urlar li fa la pioggia come cani;


de l un de lati fanno a l altro schermo;
volgonsi spesso i miseri profani. 21
uando ci scorse Cerbero, il gran vermo,
le bocche aperse e mostrocci le sanne;
non avea membro che tenesse fermo. 24

E l duca mio distese le sue spanne,


prese la terra, e con piene le pugna
la gittò dentro a le bramose canne. 27

ual è quel cane ch abbaiando agogna,


e si racqueta poi che l pasto morde,
ché solo a divorarlo intende e pugna, 30

cotai si fecer quelle facce lorde


de lo demonio Cerbero, che ntrona
l anime sì, ch esser vorrebber sorde. 33

Noi passavam su per l ombre che adona


la greve pioggia, e ponavam le piante
sovra lor vanità che par persona. 36

Elle giacean per terra tutte quante,


fuor d una ch a seder si levò, ratto
ch ella ci vide passarsi davante. 39

“O tu che se per questo nferno tratto”,


mi disse, “riconoscimi, se sai:
tu fosti, prima ch io disfatto, fatto”. 42

E io a lui: “L angoscia che tu hai


forse ti tira fuor de la mia mente,
sì che non par ch i ti vedessi mai. 45

Ma dimmi chi tu se che n sì dolente


loco se messo, e hai sì fatta pena,
che, s altra è maggio, nulla è sì spiacente”. 48

Ed elli a me: “La tua città, ch è piena


d invidia sì che già trabocca il sacco,
seco mi tenne in la vita serena. 51

Voi cittadini mi chiamaste Ciacco:


per la dannosa colpa de la gola,
come tu vedi, a la pioggia mi acco. 54

E io anima trista non son sola,


ché tutte queste a simil pena stanno
per simil colpa”. E più non fé parola. 57

Io li rispuosi: “Ciacco, il tuo affanno


mi pesa sì, ch a lagrimar mi nvita;
ma dimmi, se tu sai, a che verranno 60

li cittadin de la città partita;


s alcun v è giusto; e dimmi la cagione
per che l ha tanta discordia assalita”. 63

E quelli a me: “Dopo lunga tencione


verranno al sangue, e la parte selvaggia
caccerà l altra con molta offensione. 66

Poi appresso convien che questa caggia


infra tre soli, e che l altra sormonti
con la forza di tal che testé piaggia. 69

Alte terrà lungo tempo le fronti,


tenendo l altra sotto gravi pesi,
come che di ciò pianga o che n aonti. 72

Giusti son due, e non vi sono intesi;


superbia, invidia e avarizia sono
le tre faville c hanno i cuori accesi”. 75

ui puose ne al lagrimabil suono.


E io a lui: “Ancor vo che mi nsegni
e che di più parlar mi facci dono. 78

Farinata e l Tegghiaio, che fuor sì degni,


Iacopo Rusticucci, Arrigo e l Mosca
e li altri ch a ben far puoser li ngegni, 81

dimmi ove sono e fa ch io li conosca;


ché gran disio mi stringe di savere
se l ciel li addolcia o lo nferno li attosca”. 84

E quelli: “Ei son tra l anime più nere;


diverse colpe giù li grava al fondo:
se tanto scendi, là i potrai vedere. 87

Ma quando tu sarai nel dolce mondo,


priegoti ch a la mente altrui mi rechi:
più non ti dico e più non ti rispondo”. 90

Li diritti occhi torse allora in biechi;


guardommi un poco e poi chinò la testa:
cadde con essa a par de li altri ciechi. 93

E l duca disse a me: “Più non si desta


di qua dal suon de l angelica tromba,
quando verrà la nimica podesta: 96

ciascun rivederà la trista tomba,


ripiglierà sua carne e sua gura,
udirà quel ch in etterno rimbomba”. 99

Sì trapassammo per sozza mistura


de l ombre e de la pioggia, a passi lenti,
toccando un poco la vita futura; 102

per ch io dissi: “Maestro, esti tormenti


crescerann ei dopo la gran sentenza,
o er minori, o saran sì cocenti?”. 105
Ed elli a me: “Ritorna a tua scïenza,
che vuol, quanto la cosa è più perfetta,
più senta il bene, e così la doglienza. 108

Tutto che questa gente maladetta


in vera perfezion già mai non vada,
di là più che di qua essere aspetta”. 111

Noi aggirammo a tondo quella strada,


parlando più assai ch i non ridico;
venimmo al punto dove si digrada: 114

quivi trovammo Pluto, il gran nemico.


Canto VII
Diante das palavras assustadoras de Plutão, Virgílio conforta Dante, sem que este
lhe peça expressamente. O demônio esmorece perante a autoridade invocada pelo
poeta latino, que menciona a vingança do arcanjo Miguel contra a rebelião
liderada por Lúcifer [1-15]. Os poetas estão no quarto círculo infernal, onde são
punidos os avarentos e os pródigos; sua pena consiste em rolar grandes rochas “em
semicírculo”, entrechocando-se e ofendendo-se por seus vícios opostos. Todos os
avarentos que eles veem são clérigos, mas suas guras não são mais reconhecíveis
pela sujeira de seus erros [16-66]. Dante pede a Virgílio que lhe explique como age
a Fortuna, divindade que, como uma inteligência angelical, assume as vestes de
ministra do Deus cristão; segundo Virgílio, ela distribui os bens terrenos
conforme seu juízo, de forma contínua, rápida e incompreensível aos humanos
[67-99]. Os poetas prosseguem à beira de um córrego de água escura que deriva de
uma fonte borbulhante e tem como destino o pântano de nome Estige. Eles
chegam ao quinto círculo do inferno, onde as almas dos iracundos se agridem
violentamente e as almas dos acidiosos se lamentam debaixo d’água, produzindo
borbulhas com seus suspiros de dor. Após se desviarem do terreno encharcado,
observando o sofrimento dos espíritos, os poetas chegam ao pé de uma torre [100-
130].
“Pape Satàn, pape Satàn aleppe!”,
veio Plutão com seu grotesco enredo;
e o sábio mestre, agudo feito estrepe, 3

disse a reconfortar-me: “ ue teu medo


não te perturbe, nem se ele buscasse
barrar nosso descer pelo rochedo”. 6

Depois se dirigiu à inchada face


e disse: “Cala-te, lobo nocivo,
que a raiva te corroa e que não passe! 9

Não vamos nós às trevas sem motivo:


vontade vem de lá onde Miguel
vingou o violento crime altivo”. 12

Tal como ao vento as velas do batel


frouxas decaem quando o mastro estala,
assim caiu na terra a fera cruel. 15

Então descemos para a quarta vala,


seguindo mais pela dolente trilha
que o mal inteiro do universo embala. 18

Ah, justiça de Deus, quem é que empilha


tantas novas torturas como eu vi?
Por que essa culpa tanto nos humilha? 21
Como em Caríbdis, quando a onda ali
se frange em outra violentamente,
também a turba se entrechoca aqui. 24

Mais que aqui nunca vi tamanha gente,


de ponta a ponta, a prorromper em ânsia,
rolando grandes pesos pela frente. 27

Chocavam-se entre si naquela estância,


depois, voltando em meio à confusão,
gritavam: “é esperdício!” e “é ganância!”. 30

Assim giravam pela escuridão


de ambas as partes ao oposto lado,
gritando sem parar seu vil refrão; 33

após, cada um ao m tendo chegado,


tornava em semicírculo ao torneio.
E, com o coração quase cravado, 36

eu disse: “Mestre, solve meu anseio:


que gente é esta, todos são do clero?
À esquerda, há tonsurados de permeio”. 39

E ele me disse: “Todos, não exagero,


foram cegos da mente na outra vida,
que o gasto moderado lá foi zero. 42

Se torna muito clara a voz latida


quando chegam aos dois pontos da arena,
que é por culpa contrária dividida. 45

Foram todos do clero, o que depena a


cabeça, como papas, cardeais,
em quem dura avareza é mais que plena”. 48

E eu: “Mestre, eu devia entre estes tais


reconhecer alguns, neste momento,
que nesses males foram imorais”. 51

Fez ele a mim: “É vão teu pensamento:


sua insensatez gerou sujeira densa,
não mais se dão ao reconhecimento. 54

Eternamente irão à dupla ofensa:


estes ressurgirão de seu sepulcro
com mão cerrada, aqueles, na carência. 57

Mal dar e mal guardar do mundo pulcro


os retirou e os pôs cá nesta luta:
qual ela seja, fala não apulcro. 60

Já podes ver, meu lho, a diminuta


messe dos bens ados à Fortuna,
os quais a humana gente lá disputa; 63

pois mesmo amontoado como em duna


todo o ouro passado e de nossa era
às almas deixaria inda lacuna”. 66

“Meu mestre”, eu disse, “indica como opera


essa Fortuna, de que tu me dizes,
que os bens do mundo rege como fera”. 69

E ele: “Oh, criaturas infelizes,


quanta ignorância a mente vos ofende!
uero que meu juízo memorizes: 72

o de saber que a tudo o mais transcende


formou os céus e os deu a quem conduz,
tal que uma parte em cada parte esplende, 75

distribuindo igualmente sua luz.


Do mesmo modo, aos fulgores mundanos
impôs geral ministra a fazer jus 78

à permuta dos bens vãos pelos anos


de gente a gente e de outro sangue nato,
superior ao senso dos humanos; 81

há quem manda e quem cai de imediato


seguindo o julgamento que vem dela,
oculto como a serpe pelo mato. 84

Vosso saber não pode ir contra ela:


esta prevê e julga e assim alcança
seu reino, como cada outro deus zela. 87

Em sua mutação jamais descansa:


necessidade a faz ser tão veloz,
que de regra se vive na mudança. 90

Esta é aquela posta em cruz por vós,


por quem deve louvá-la onde se assenta,
e, criticada, é vista como atroz; 93

mas é beata e a nada disso atenta:


com outras criaturas de primor,
volve feliz sua esfera e se contenta. 96

Desçamos, pois, agora a maior dor;


já baixa toda estrela antes altiva
quando eu vim, e tardar é grande error”. 99

Cortamos o arco rumo à outra riba


sobre uma fonte em bolhas que descia
por um fossado que dali deriva. 102

Era escura aquela água, assaz sombria;


e, acompanhando o lúgubre marejo,
abaixo entramos por diversa via. 105
Estige é o nome dado àquele brejo
aonde a ui o triste rio, caído
até a encosta túrbida em despejo. 108

E eu, olhando rme e decidido,


gente lodosa vi nesse atoleiro,
todos nus, com o rosto enraivecido. 111

Cada qual percutia um companheiro


com mãos, com pés, cabeças, como quem
se rasga com os dentes por inteiro. 114

O bom mestre me disse: “Filho, vem


ver almas sobre as quais venceu a ira;
e que por certo tenhas tu também 117

que embaixo d’água há gente que suspira


e fazem borbulhar a água por cima,
como te diz teu olho aonde gira. 120

No limo, dizem: ‘Nossa triste estima


parou no doce ar que o sol alegra,
trazendo dentro a acidiosa lima: 123

tristes estamos nesta poça negra’.


Este hino gorgolejam pela goela,
pois em sua fala o verbo não se integra”. 126

Passamos a imundice com cautela


em arco, entre o seco e o lamaçal,
olhando quem o lodo come dela. 129

Fomos ao pé de uma torre, ao nal.


“Pape Satàn, pape Satàn aleppe!”,
cominciò Pluto con la voce chioccia;
e quel savio gentil, che tutto seppe, 3

disse per confortarmi: “Non ti noccia


la tua paura; ché, poder ch elli abbia,
non ci torrà lo scender questa roccia”. 6

Poi si rivolse a quella n ata labbia,


e disse: “Taci, maladetto lupo!
consuma dentro te con la tua rabbia. 9

Non è sanza cagion l andare al cupo:


vuolsi ne l alto, là dove Michele
fé la vendetta del superbo strupo”. 12

uali dal vento le gon ate vele


caggiono avvolte, poi che l alber acca,
tal cadde a terra la era crudele. 15

Così scendemmo ne la quarta lacca,


pigliando più de la dolente ripa
che l mal de l universo tutto insacca. 18

Ahi giustizia di Dio! tante chi stipa


nove travaglie e pene quant io viddi?
e perché nostra colpa sì ne scipa? 21
Come fa l onda là sovra Cariddi,
che si frange con quella in cui s intoppa,
così convien che qui la gente riddi. 24

ui vid i gente più ch altrove troppa,


e d una parte e d altra, con grand urli,
voltando pesi per forza di poppa. 27

Percotëansi ncontro; e poscia pur lì


si rivolgea ciascun, voltando a retro,
gridando: “Perché tieni?” e “Perché burli?”. 30

Così tornavan per lo cerchio tetro


da ogne mano a l opposito punto,
gridandosi anche loro ontoso metro; 33

poi si volgea ciascun, quand era giunto,


per lo suo mezzo cerchio a l altra giostra.
E io, ch avea lo cor quasi compunto 36

dissi: “Maestro mio, or mi dimostra


che gente è questa, e se tutti fuor cherci
questi chercuti a la sinistra nostra”. 39

Ed elli a me: “Tutti quanti fuor guerci


sì de la mente in la vita primaia,
che con misura nullo spendio ferci. 42

Assai la voce lor chiaro l abbaia,


quando vegnono a due punti del cerchio
dove colpa contraria li dispaia. 45

uesti fuor cherci, che non han coperchio


piloso al capo, e papi e cardinali,
in cui usa avarizia il suo soperchio”. 48

E io: “Maestro, tra questi cotali


dovre io ben riconoscere alcuni
che furo immondi di cotesti mali”. 51

Ed elli a me: “Vano pensiero aduni:


la sconoscente vita che i fé sozzi,
ad ogne conoscenza or li fa bruni. 54

In etterno verranno a li due cozzi:


questi resurgeranno del sepulcro
col pugno chiuso, e questi coi crin mozzi. 57

Mal dare e mal tener lo mondo pulcro


ha tolto loro, e posti a questa zuffa:
qual ella sia, parole non ci appulcro. 60

Or puoi, gliuol, veder la corta buffa


d i ben che son commessi a la fortuna,
per che l umana gente si rabuffa; 63

ché tutto l oro ch è sotto la luna


e che già fu, di quest anime stanche
non poterebbe farne posare una”. 66

“Maestro mio”, diss io, “or mi dì anche:


questa fortuna di che tu mi tocche,
che è, che i ben del mondo ha sì tra branche?”. 69

E quelli a me: “Oh creature sciocche,


quanta ignoranza è quella che v offende!
Or vo che tu mia sentenza ne mbocche. 72

Colui lo cui saver tutto trascende,


fece li cieli e diè lor chi conduce
sì, ch ogne parte ad ogne parte splende, 75

distribuendo igualmente la luce.


Similemente a li splendor mondani
ordinò general ministra e duce 78

che permutasse a tempo li ben vani


di gente in gente e d uno in altro sangue,
oltre la difension d i senni umani; 81

per ch una gente impera e l altra langue,


seguendo lo giudicio di costei,
che è occulto come in erba l angue. 84

Vostro saver non ha contasto a lei:


questa provede, giudica, e persegue
suo regno come il loro li altri dèi. 87

Le sue permutazion non hanno triegue:


necessità la fa esser veloce;
sì spesso vien chi vicenda consegue. 90

uest è colei ch è tanto posta in croce


pur da color che le dovrien dar lode,
dandole biasmo a torto e mala voce; 93

ma ella s è beata e ciò non ode:


con l altre prime creature lieta
volve sua spera e beata si gode. 96

Or discendiamo omai a maggior pieta;


già ogne stella cade che saliva
quand io mi mossi, e l troppo star si vieta”. 99

Noi ricidemmo il cerchio a l altra riva


sovr una fonte che bolle e riversa
per un fossato che da lei deriva. 102

L acqua era buia assai più che persa;


e noi, in compagnia de l onde bige,
intrammo giù per una via diversa. 105
In la palude va c ha nome Stige
questo tristo ruscel, quand è disceso
al piè de le maligne piagge grige. 108

E io, che di mirare stava inteso,


vidi genti fangose in quel pantano,
ignude tutte, con sembiante offeso. 111

ueste si percotean non pur con mano,


ma con la testa e col petto e coi piedi,
troncandosi co denti a brano a brano. 114

Lo buon maestro disse: “Figlio, or vedi


l anime di color cui vinse l ira;
e anche vo che tu per certo credi 117

che sotto l acqua è gente che sospira,


e fanno pullular quest acqua al summo,
come l occhio ti dice, u che s aggira. 120

Fitti nel limo dicon: ‘Tristi fummo


ne l aere dolce che dal sol s allegra,
portando dentro accidïoso fummo: 123

or ci attristiam ne la belletta negra .


uest inno si gorgoglian ne la strozza,
ché dir nol posson con parola integra”. 126

Così girammo de la lorda pozza


grand arco, tra la ripa secca e l mézzo,
con li occhi vòlti a chi del fango ingozza. 129

Venimmo al piè d una torre al da sezzo.


Canto VIII
Dante agora narra como eles atravessaram o Estige até vir à torre que haviam
alcançado. Antes de chegar ali, os dois avistam à distância o sinal de fogo que a
torre emite a uma segunda, mais longe, que de imediato responde ao sinal da
primeira. À curiosidade de Dante sobre quem faz os sinais e o que eles signi cam,
Virgílio diz apenas que a resposta virá mais tarde [1-12]. Subitamente chega o
demônio Flégias, que fará a travessia dos poetas pelo pântano [13-30]. Uma das
almas punidas na lama se aproxima e pergunta quem é o vivo que vai pelo mundo
dos mortos; após ser reconhecido e amaldiçoado por Dante, o orentino Filippo
Argenti, seu contemporâneo, ameaça subir no barco, mas é escorraçado por
Virgílio, que em seguida conforta seu protegido. Ao manifestar a Virgílio seu
desejo de ver novamente punido aquele espírito, Dante observa outros iracundos
indo ao ataque de Argenti [31-64]. O barco de Flégias se aproxima da cidade de
Dite, que é envolta por muralhas de ferro incandescente sobre as quais Dante
consegue avistar cúpulas, como se fossem “mesquitas rubras”. Na entrada da
cidade, “mais de mil” demônios cam alvoroçados com a presença de um vivo.
Virgílio então pede para falar com eles, os quais consentem que o poeta latino se
aproxime, mas exigem que Dante retorne sozinho “pela insana senda” [65-93]. Em
desespero, Dante implora a Virgílio que não o abandone. Mesmo assim, o poeta
latino segue sozinho para o colóquio com os demônios, mas logo volta sem
sucesso; aqueles correm para dentro das muralhas e fecham os portões. Embora
bastante perturbado, Virgílio tenta acalmar Dante, evocando a imagem de alguém
que virá interceder por eles [94-130].
Eu digo, prosseguindo, que antes mesmo
de alcançarmos o pé da torre esguia
ao topo nosso olhar subiu a esmo 3

por luz de duas chamas que se via,


mais outra a replicar o chamamento,
tão longe que enxergar não se podia. 6

E àquele que é um mar de entendimento


disse: “O que diz? E a outra, o que responde?
uem são os que as zeram, com que intento?”. 9

E ele me fez: “Sobre essa lama é onde


já podes ver o que se determina,
se a névoa deste charco não o esconde”. 12

Nunca pelo ar se foi echada na


a correr tanto quando a corda manda,
como eu vi uma nave pequenina 15

chegar pela água até a nossa banda


sob o governo de só um remeiro,
que gritava: “Vieste, alma nefanda!”. 18

“Flégias, Flégias, é inútil teu berreiro”,


lhe disse meu senhor, “pois desta vez
só nos terás transpondo o lamaceiro”. 21
Tal como quem percebe a estupidez
do engano e depois disso se magoa,
assim Flégias na ira se refez. 24

O meu guia desceu até a canoa,


entrou e disse que eu zesse igual;
mas só quando eu pisei pesou a proa. 27

Tão logo nós subimos, o pontal


do lenho antigo foi serrando agora
mais água do que havia em seu normal. 30

Corríamos a morta poça afora,


quando um cheio de lodo veio iníquo;
falou: “ uem és, que vens antes da hora?”. 33

E eu: “Se venho, aqui eu já não co;


e tu quem és, tornado assim tão bruto?”.
Me fez: “Vês que a chorar me identi co”. 36

E respondi: “Com muito choro e luto,


espírito maldito, continuas;
pois te conheço, ainda que poluto”. 39

Dispôs então as mãos no lenho, as duas;


por isso o sábio mestre o escorraçou,
dizendo: “Volta agora às bestas tuas!”. 42

Depois o meu pescoço ele abraçou,


beijou-me o rosto e disse: “Alma ardorosa,
bendita aquela que em si te abrigou! 45

No mundo este era pessoa orgulhosa;


não há bondade que orne sua memória:
por isso aqui sua sombra é furiosa. 48

uantos lá em cima creem gozar da glória,


que aqui vão chafurdar na sujidade,
de si deixando tenebrosa escória!”. 51

E eu: “Mestre, me dá muita vontade


de ver aqui atolado esse sujeito
antes que acabe o lago da maldade”. 54

E ele a mim: “Não demora que teu pleito


se cumpra antes do m do limo espesso:
ver convém teu desejo satisfeito”. 57

Pouco depois eu vi com certo apreço


o mal que dele fez a imunda gente,
e a Deus ainda louvo e agradeço. 60

Todos gritavam: “No Filippo Argenti!”;


e o orentino, esprito irado e falho,
a si mesmo atacava com o dente. 63

Ali o deixamos, e mais não detalho;


mas aos ouvidos me chegou tal dor,
que adiante os olhos tensos esbugalho. 66

“Meu lho”, disse então o bom doutor,


“chamam Dite a cidade que se abeira,
com graves cidadãos, com grande horror”. 69

E eu: “Mestre, de forma já certeira


mesquitas vejo lá no vale interno,
rubras como saídas de fogueira 72

ou forja”. E ele me disse: “O fogo eterno,


que dentro as afogueia, as torna assim
como tu vês aqui no baixo inferno”. 75

Por fundos fossos fomos nós en m


que cingem essa terra desolada:
de ferro parecia o muro a mim. 78

Não sem antes dar longa contornada,


viemos aonde o timoneiro forte
“Fora daqui!”, gritou, “Eis a entrada”. 81

Eu vi bem mais de mil naquela corte


do céu chovidos, que irritadamente
diziam: “ uem é esse que sem morte 84

vai pelo reino desta morta gente?”.


E o sábio mestre se mostrou disposto
a lhes querer falar secretamente. 87

Romperam o desdém a contragosto


dizendo: “Vem tu só, e o outro ascenda,
que entrou com ousadia neste posto. 90

Sozinho volte pela insana senda:


tente, se sabe; aqui tu carás,
tu que o guiaste pela plaga horrenda”. 93

Pensa, leitor, como as palavras más


a mim soaram tão inquietantes,
que acreditei não retornar jamais. 96

“Ó mestre que por sete vezes antes,


ou mais, o lume e a força havias sido,
furtando-me a perigos abundantes, 99

não me deixes”, eu disse, “destruído;


e se o passar além nos é negado,
voltemos já por nosso rastro do”. 102

E o senhor, que me havia ali levado,


falou: “Não tenhas medo; nosso passo
ninguém pode impedir, que nos foi dado. 105
Aqui me espera, e o espírito lasso
conforta e nutre de boa esperança,
pois não te deixarei no mundo baço”. 108

Ali me abandonando, assim avança


o doce pai, e eu co no talvez,
que sim e não na mente me balança. 111

Ouvir não pude a voz que ele lhes fez,


mas sei que não cou lá por demais,
pois todos logo entraram de uma vez. 114

Bateram os portões nossos rivais


no peito de meu mestre; sem entrar,
voltou a mim com passos abissais. 117

A cabeça caída, sem o olhar


da con ança, dizia em a ição:
“ uem me negou esse dolente lar!”. 120

E disse a mim: “ ue meu tormento não


te desalente, eu vencerei a prova
não importa o que se arme em proteção. 123

Esta arrogância deles não é nova,


já foi usada antes noutra porta,
a que inda dá passagem a esta cova. 126

Acima dela viste a escrita morta;


e já descende aqui em via certa,
sem guia pelos giros se transporta, 129

um tal por quem será a terra aberta”.


Io dico, seguitando, ch assai prima
che noi fossimo al piè de l alta torre,
li occhi nostri n andar suso a la cima 3

per due ammette che i vedemmo porre,


e un altra da lungi render cenno,
tanto ch a pena il potea l occhio tòrre. 6

E io mi volsi al mar di tutto l senno;


dissi: “ uesto che dice? e che risponde
quell altro foco? e chi son quei che l fenno?”. 9

Ed elli a me: “Su per le sucide onde


già scorgere puoi quello che s aspetta,
se l fummo del pantan nol ti nasconde”. 12

Corda non pinse mai da sé saetta


che sì corresse via per l aere snella,
com io vidi una nave piccioletta 15

venir per l acqua verso noi in quella,


sotto l governo d un sol galeoto,
che gridava: “Or se giunta, anima fella!”. 18

“Flegïàs, Flegïàs, tu gridi a vòto”,


disse lo mio segnore, “a questa volta:
più non ci avrai che sol passando il loto”. 21
ual è colui che grande inganno ascolta
che li sia fatto, e poi se ne rammarca,
fecesi Flegïàs ne l ira accolta. 24

Lo duca mio discese ne la barca,


e poi mi fece intrare appresso lui;
e sol quand io fui dentro parve carca. 27

Tosto che l duca e io nel legno fui,


segando se ne va l antica prora
de l acqua più che non suol con altrui. 30

Mentre noi corravam la morta gora,


dinanzi mi si fece un pien di fango,
e disse: “Chi se tu che vieni anzi ora?”. 33

E io a lui: “S i vegno, non rimango;


ma tu chi se , che sì se fatto brutto?”.
Rispuose: “Vedi che son un che piango”. 36

E io a lui: “Con piangere e con lutto,


spirito maladetto, ti rimani;
ch i ti conosco, ancor sie lordo tutto”. 39

Allor distese al legno ambo le mani;


per che l maestro accorto lo sospinse,
dicendo: “Via costà con li altri cani!”. 42

Lo collo poi con le braccia mi cinse;


basciommi l volto e disse: “Alma sdegnosa,
benedetta colei che n te s incinse! 45

uei fu al mondo persona orgogliosa;


bontà non è che sua memoria fregi:
così s è l ombra sua qui furïosa. 48

uanti si tegnon or là sù gran regi


che qui staranno come porci in brago,
di sé lasciando orribili dispregi!”. 51

E io: “Maestro, molto sarei vago


di vederlo attuffare in questa broda
prima che noi uscissimo del lago”. 54

Ed elli a me: “Avante che la proda


ti si lasci veder, tu sarai sazio:
di tal disïo convien che tu goda”. 57

Dopo ciò poco vid io quello strazio


far di costui a le fangose genti,
che Dio ancor ne lodo e ne ringrazio. 60

Tutti gridavano: “A Filippo Argenti!”;


e l orentino spirito bizzarro
in sé medesmo si volvea co denti. 63

uivi il lasciammo, che più non ne narro;


ma ne l orecchie mi percosse un duolo,
per ch io avante l occhio intento sbarro. 66

Lo buon maestro disse: “Omai, gliuolo,


s appressa la città c ha nome Dite,
coi gravi cittadin, col grande stuolo”. 69

E io: “Maestro, già le sue meschite


là entro certe ne la valle cerno,
vermiglie come se di foco uscite 72

fossero”. Ed ei mi disse: “Il foco etterno


ch entro l affoca le dimostra rosse,
come tu vedi in questo basso inferno”. 75

Noi pur giugnemmo dentro a l alte fosse


che vallan quella terra sconsolata:
le mura mi parean che ferro fosse. 78

Non sanza prima far grande aggirata,


venimmo in parte dove il nocchier forte
“Usciteci”, gridò: “qui è l intrata”. 81

Io vidi più di mille in su le porte


da ciel piovuti, che stizzosamente
dicean: “Chi è costui che sanza morte 84

va per lo regno de la morta gente?”.


E l savio mio maestro fece segno
di voler lor parlar segretamente. 87

Allor chiusero un poco il gran disdegno


e disser: “Vien tu solo, e quei sen vada
che sì ardito intrò per questo regno. 90

Sol si ritorni per la folle strada:


pruovi, se sa; ché tu qui rimarrai,
che li ha iscorta sì buia contrada”. 93

Pensa, lettor, se io mi sconfortai


nel suon de le parole maladette,
ché non credetti ritornarci mai. 96

“O caro duca mio, che più di sette


volte m hai sicurtà renduta e tratto
d alto periglio che ncontra mi stette, 99

non mi lasciar”, diss io, “così disfatto;


e se l passar più oltre ci è negato,
ritroviam l orme nostre insieme ratto”. 102

E quel segnor che lì m avea menato,


mi disse: “Non temer; ché l nostro passo
non ci può tòrre alcun: da tal n è dato. 105
Ma qui m attendi, e lo spirito lasso
conforta e ciba di speranza buona,
ch i non ti lascerò nel mondo basso”. 108

Così sen va, e quivi m abbandona


lo dolce padre, e io rimagno in forse,
che sì e no nel capo mi tenciona. 111

Udir non potti quello ch a lor porse;


ma ei non stette là con essi guari,
che ciascun dentro a pruova si ricorse. 114

Chiuser le porte que nostri avversari


nel petto al mio segnor, che fuor rimase
e rivolsesi a me con passi rari. 117

Li occhi a la terra e le ciglia avea rase


d ogne baldanza, e dicea ne sospiri:
“Chi m ha negate le dolenti case!”. 120

E a me disse: “Tu, perch io m adiri,


non sbigottir, ch io vincerò la prova,
qual ch a la difension dentro s aggiri. 123

uesta lor tracotanza non è nova;


ché già l usaro a men segreta porta,
la qual sanza serrame ancor si trova. 126

Sovr essa vedestù la scritta morta:


e già di qua da lei discende l erta,
passando per li cerchi sanza scorta, 129

tal che per lui ne a la terra aperta”.


Canto IX
Durante o embate entre o poeta latino e os demônios, o temor se manifesta em
Dante assim como (a “cor”) se encerra em Virgílio, o qual retoma a atitude
moderada e tranquiliza o discípulo, não sem antes vislumbrar — e omitir — um
cenário ainda pior [1-15]. Respondendo à pergunta de Dante sobre se alguém do
limbo já havia entrado na cidade infernal de Dite, Virgílio declara que ele mesmo
estivera lá, invocado pela antiga maga Ericto em um ritual de necromancia [16-33].
Os poetas conseguem enxergar no alto da torre incandescente as três Erínias,
nome grego das Fúrias (Megera, Alecto e Tisífone), que foram servas de
Proserpina (“alteza que mantém pranto imortal”). As três chamam Medusa, “o
Górgon” que transforma em pedra as pessoas que a olham, para que petri que
Dante. A m de protegê-lo, Virgílio cobre os olhos do poeta orentino [34-63].
Ambos ouvem um som que desce pelo caminho das águas com a potência de um
vendaval: chega o emissário do céu, diante do qual os “mais de mil” demônios
fogem. Dante e Virgílio se inclinam em sinal de reverência. Após liberar a entrada
de Dite, o anjo repreende a inútil audácia dos demônios diante da vontade divina
e volta a seu lugar de origem, sem se importar com a presença e a devoção dos
poetas [64-105]. Dante e Virgílio entram pelos portões da cidade infernal, onde
encontram o vasto “cemitério” dos heresiarcas e de seus seguidores — semelhante
às necrópoles de Arles, no sul da França, e de Pula, na atual Croácia. Há chamas
entre as covas daquele terreno, cada qual destinada aos adeptos de diferentes
seitas. Caminhando pela direita entre a muralha e as tumbas, os poetas seguem
adiante pelo sexto círculo infernal [106-133].
A cor que a vilania em mim lançou
ao ver tornar meu mestre da disputa,
de pronto a sua nova em si encerrou. 3

Parou atento como quem escuta;


que o olho não podia ver além
por aura escura e por neblina bruta. 6

“Vencer esta contenda nos convém”,


falou, “se não… Alguém veio por nós.
Oh como tarda o outro que não vem!”. 9

Eu percebi que o que ele disse após


acobertou o seu primeiro dito,
que foi pronunciado co outra voz; 12

mas tanto medo tive, não omito,


por deduzir da fala então suspensa
coisa pior, que me deixava a ito. 15

“Ao fundo deste côncavo de ofensa


já veio alguém do primo patamar,
a quem falta esperança por sentença?”. 18

Esta questão lhe pus; “É singular”,


me respondeu, “que algum nosso de lá
percorra este meu mesmo caminhar. 21
Verdade é que outra vez estive cá,
buscando aos corpos sombras já desnudas,
por sortilégio da Ericto má. 24

Havia pouco eu tinha as carnes mudas,


quando ela fez-me entrar naquele muro,
para um tirar ao círculo de Judas. 27

Aquele é o grau mais baixo e mais escuro,


e o mais longe do céu que tudo gira:
sei o caminho, então ca seguro. 30

Este palude que fedor espira


cinge e contorna a cidade dolente,
à qual já não podemos ir sem ira”. 33

E foi além, mas não conservo em mente,


pois o olho foi raptado coa visão
da alta torre de topo incandescente, 36

onde de pronto deu-se a aparição:


três fúrias infernais ensanguentadas,
de membros femininos e de ação, 39

por verdíssimas hidras enlaçadas;


cabelos eram víboras fatais,
em suas feras testas enroscadas. 42

E ele, que conheceu as serviçais


da alteza que mantém pranto imortal,
“Olha”, me disse, “as Erínias brutais. 45

Lá está Megera, à esquerda lateral;


Alecto é a que chora à direita;
no meio, Tisifon”, fez a nal. 48

Com unhas se rasgavam em desfeita;


se estapeavam, gritavam tão alto,
que me agarrei ao poeta por suspeita. 51

“Vem, Medusa: o façamos de basalto”,


diziam ao olhar pro nosso lado;
“mal não vingarmos de Teseu o assalto”. 54

“Vira-te para trás co olhar fechado,


pois se o Górgon se mostra e tu o vês,
tornar acima a ti será vedado”. 57

Assim falou o mestre; e então me fez


virar, mas, sem ar em minhas mãos,
me vendou ele mesmo por sua vez. 60

Ó vós que tendes intelectos sãos,


reparai na doutrina que se vela
sob os estranhos versos em desvãos. 63

E já subia as ondas da mazela


o prorromper de um som, grande espavento,
que ambas as margens quase desmantela, 66

não de outro modo feito como um vento


potente por oposição de ardores,
que fere a selva e sem impedimento 69

arrasta e quebra até galhos maiores;


avante em sua soberba segue denso,
e faz fugir as feras e os pastores. 72

Livrou-me os olhos, disse: “Aguça o senso


da visão sobre aquela espuma antiga
por onde o nevoeiro é mais intenso”. 75

Tal como as rãs diante da inimiga


cobra fogem por água de um revés,
até que em terra cada qual se abriga, 78

eu vi mil almas ruins indo através


do charco perante um que por seu passo
passava o Estige com enxutos pés. 81

Frequente removia aquele ar crasso


movimentando a esquerda em frente à face;
e só dessa ânsia parecia lasso. 84

Bem soube que ele vinha pelo impasse,


do céu arauto; e o mestre fez-me aceno
que então casse eu quieto e me inclinasse. 87

Ai, quanto de desdém parecia pleno!


Veio à porta e a abriu co uma varinha:
entrave ali não houve, nem pequeno. 90

“Ó expulsos do céu, gente daninha”,


começou na soleira da maldade,
“onde essa presunção em vós se aninha? 93

Por que a resistência ante a vontade


a cujo m jamais cabe mudança
e à vossa dor só acresce intensidade? 96

ue vale contra o fado quebrar lança?


Cérbero vosso, se bem vos recorda,
ainda tem pelado o queixo e a pança”. 99

Depois voltou-se àquela suja borda


sem acenar a nós, mas com semblante
de um a quem outro afã aperte e morda, 102

e não aquele que lhe está diante;


e nós demos um passo rumo à terra,
ante as palavras santas, con ante. 105
Lá dentro entramos sem nenhuma guerra;
e eu, que de avistar tinha o desejo
a condição que a fortaleza cerra, 108

tão logo dentro, eu olho em torno e vejo


de ponta a ponta uma campina funda,
repleta de tormento malfazejo. 111

Tal como em Arle, onde o Ródano inunda,


tal como em Pula, perto do Carnaro,
que banha a Itália e seus con ns circunda, 114

de sepulcros fazendo o lugar raro,


assim faziam cá por toda parte,
não fosse o modo aqui bem mais amaro; 117

pois fogo em meio às tumbas as reparte,


e acesas cam todas desse jeito,
que ferro mais não pede nenhuma arte. 120

A campa era suspensa em cada leito,


e deles transbordava um estertor
como saído de um tropel desfeito. 123

Eu perguntei, então, ao meu doutor:


“ uem são os sepultados nessas arcas,
que se fazem ouvir com sons de dor?”. 126

E ele a mim: “Eis aqui os heresiarcas


com sequazes de cada seita e culto
em covas bem mais cheias do que abarcas. 129

Símil aqui com símil é sepulto,


e os túmulos são mais e menos quentes”.
Volveu para a direita então seu vulto, 132

e entre o martírio e o muro fomos rentes.


uel color che viltà di fuor mi pinse
veggendo il duca mio tornare in volta,
più tosto dentro il suo novo ristrinse. 3

Attento si fermò com uom ch ascolta;


ché l occhio nol potea menare a lunga
per l aere nero e per la nebbia folta. 6

“Pur a noi converrà vincer la punga”,


cominciò el, “se non… Tal ne s offerse.
Oh quanto tarda a me ch altri qui giunga!”. 9

I vidi ben sì com ei ricoperse


lo cominciar con l altro che poi venne,
che fur parole a le prime diverse; 12

ma nondimen paura il suo dir dienne,


perch io traeva la parola tronca
forse a peggior sentenzia che non tenne. 15

“In questo fondo de la trista conca


discende mai alcun del primo grado,
che sol per pena ha la speranza cionca?”. 18

uesta question fec io; e quei “Di rado


incontra”, mi rispuose, “che di noi
faccia il cammino alcun per qual io vado. 21
Ver è ch altra fïata qua giù fui,
congiurato da quella Eritón cruda
che richiamava l ombre a corpi sui. 24

Di poco era di me la carne nuda,


ch ella mi fece intrar dentr a quel muro,
per trarne un spirto del cerchio di Giuda. 27

uell è l più basso loco e l più oscuro,


e l più lontan dal ciel che tutto gira:
ben so l cammin; però ti fa sicuro. 30

uesta palude che l gran puzzo spira


cigne dintorno la città dolente,
u non potemo intrare omai sanz ira”. 33

E altro disse, ma non l ho a mente;


però che l occhio m avea tutto tratto
ver l alta torre a la cima rovente, 36

dove in un punto furon dritte ratto


tre furïe infernal di sangue tinte,
che membra feminine avieno e atto, 39

e con idre verdissime eran cinte;


serpentelli e ceraste avien per crine,
onde le ere tempie erano avvinte. 42

E quei, che ben conobbe le meschine


de la regina de l etterno pianto,
“Guarda”, mi disse, “le feroci Erine. 45

uest è Megera dal sinistro canto;


quella che piange dal destro è Aletto;
Tesifón è nel mezzo”; e tacque a tanto. 48

Con l unghie si fendea ciascuna il petto;


battiensi a palme e gridavan sì alto,
ch i mi strinsi al poeta per sospetto. 51

“Vegna Medusa: sì l farem di smalto”,


dicevan tutte riguardando in giuso;
“mal non vengiammo in Tesëo l assalto”. 54

“Volgiti n dietro e tien lo viso chiuso;


ché se l Gorgón si mostra e tu l vedessi,
nulla sarebbe di tornar mai suso”. 57

Così disse l maestro; ed elli stessi


mi volse, e non si tenne a le mie mani,
che con le sue ancor non mi chiudessi. 60

O voi ch avete li ntelletti sani,


mirate la dottrina che s asconde
sotto l velame de li versi strani. 63

E già venìa su per le torbide onde


un fracasso d un suon, pien di spavento,
per cui tremavano amendue le sponde, 66

non altrimenti fatto che d un vento


impetüoso per li avversi ardori,
che er la selva e sanz alcun rattento 69

li rami schianta, abbatte e porta fori;


dinanzi polveroso va superbo,
e fa fuggir le ere e li pastori. 72

Li occhi mi sciolse e disse: “Or drizza il nerbo


del viso su per quella schiuma antica
per indi ove quel fummo è più acerbo”. 75

Come le rane innanzi a la nimica


biscia per l acqua si dileguan tutte,
n ch a la terra ciascuna s abbica, 78

vid io più di mille anime distrutte


fuggir così dinanzi ad un ch al passo
passava Stige con le piante asciutte. 81

Dal volto rimovea quell aere grasso,


menando la sinistra innanzi spesso;
e sol di quell angoscia parea lasso. 84

Ben m accorsi ch elli era da ciel messo,


e volsimi al maestro; e quei fé segno
ch i stessi queto ed inchinassi ad esso. 87

Ahi quanto mi parea pien di disdegno!


Venne a la porta e con una verghetta
l aperse, che non v ebbe alcun ritegno. 90

“O cacciati del ciel, gente dispetta”,


cominciò elli in su l orribil soglia,
“ond esta oltracotanza in voi s alletta? 93

Perché recalcitrate a quella voglia


a cui non puote il n mai esser mozzo,
e che più volte v ha cresciuta doglia? 96

Che giova ne le fata dar di cozzo?


Cerbero vostro, se ben vi ricorda,
ne porta ancor pelato il mento e l gozzo”. 99

Poi si rivolse per la strada lorda,


e non fé motto a noi, ma fé sembiante
d omo cui altra cura stringa e morda 102

che quella di colui che li è davante;


e noi movemmo i piedi inver la terra,
sicuri appresso le parole sante. 105
Dentro li ntrammo sanz alcuna guerra;
e io, ch avea di riguardar disio
la condizion che tal fortezza serra, 108

com io fui dentro, l occhio intorno invio:


e veggio ad ogne man grande campagna,
piena di duolo e di tormento rio. 111

Sì come ad Arli, ove Rodano stagna,


sì com a Pola, presso del Carnaro
ch Italia chiude e suoi termini bagna, 114

fanno i sepulcri tutt il loco varo,


così facevan quivi d ogne parte,
salvo che l modo v era più amaro; 117

ché tra li avelli amme erano sparte,


per le quali eran sì del tutto accesi,
che ferro più non chiede verun arte. 120

Tutti li lor coperchi eran sospesi,


e fuor n uscivan sì duri lamenti,
che ben parean di miseri e d offesi. 123

E io: “Maestro, quai son quelle genti


che, seppellite dentro da quell arche,
si fan sentir coi sospiri dolenti?”. 126

E quelli a me: “ ui son li eresïarche


con lor seguaci, d ogne setta, e molto
più che non credi son le tombe carche. 129

Simile qui con simile è sepolto,


e i monimenti son più e men caldi”.
E poi ch a la man destra si fu vòlto, 132

passammo tra i martìri e li alti spaldi.


Canto X
Após entrarem na cidade de Dite, os dois poetas caminham pelo “cemitério” do
lósofo Epicuro (341-270 a.C.) e seus seguidores, tidos como hereges da fé cristã
por defenderem a mortalidade da alma [1-21]. Apresentam-se a Dante duas almas
de importantes políticos de sua cidade: o líder do partido gibelino, Farinata degli
Uberti (?-1264), e o guelfo Cavalcante Cavalcanti (?-c. 1280), pai do poeta
Guido Cavalcanti (c. 1258-1300), a quem na Vida no a Dante chamara de “o
primeiro dos meus amigos”. Dante e Farinata mantêm um diálogo durante quase
todo o canto, intercalado por um breve colóquio com Cavalcante. Os dois falam
das origens guelfas do poeta, de suas diferenças políticas e das seguidas
condenações ao exílio que ambas as facções acabariam por amargar [22-51]. O
diálogo com Cavalcante se resume à pergunta que o pai do então amigo de Dante
faz a respeito do lho que, por um mal-entendido, supõe morto. Arrasado,
Cavalcante retorna para dentro do sepulcro [52-72]. Farinata insinua a condenação
ao exílio que o próprio Dante iria sofrer após menos de cinquenta meses (em
referência aos ciclos lunares representados por Proserpina, a “mulher que aqui
impera”) decorridos do seu retorno ao mundo dos vivos [73-81]. Dante responde a
Farinata sobre a razão do banimento de nitivo dos gibelinos de Florença, que
remonta à repulsa dos guelfos pela chacina que seus inimigos zeram na batalha
de Montaperti (1260), às margens do rio Árbia [82-93]. Depois indaga da
capacidade que as almas têm de prever o futuro, e Farinata diz que isso está
relacionado a uma esporádica permissão divina. Ao saber disso, o poeta lhe pede
que revele ao companheiro de suplício que Guido ainda está vivo e que o
verdadeiro motivo de seu silêncio re ete sua dúvida acerca da previsão do futuro
pelos mortos, que não têm ciência do presente [94-114]. Finalmente, Dante pede a
Farinata que mencione seus companheiros de túmulo, entre os quais são citados o
imperador Frederico ii (1194-1250) do Sacro Império Romano-Germânico e o
cardeal Ottaviano degli Ubaldini (c. 1210-72), arcebispo de Bolonha [115-120].
Os poetas seguem em direção ao sétimo círculo após Virgílio indicar que Dante
precisará lembrar esse diálogo quando estiver diante de Beatriz (“à doce que
irradia”) [121-136].
Ora se vai por uma rua secreta,
entre o martírio e o muro da cidade,
meu guia, e eu às costas do poeta. 3

“Ó mor virtude, que pela maldade


me levas”, comecei, “como te apraz,
me fala e satisfaz minha vontade. 6

A gente que entre esses sepulcros jaz


se pode ver? Os tampos levantados
todos estão, e guarda ninguém faz.” 9

E ele falou: “Todos serão fechados


quando de Josafá aqui tornarão
cos corpos que lá em cima são deixados. 12

Seu cemitério têm nesta região


com Epicuro todos seus sequazes,
que à alma junto ao corpo morte dão. 15

Por isso, essa pergunta que me fazes


satisfeita será logo por perto,
e o desejo velado que tu trazes”. 18

E eu: “Bom guia, não tenho encoberto


a ti meu cor, senão o que a língua atrasa,
e a isso me deixaste já desperto”. 21
“Ó toscano que pela terra em brasa
vivo te vais assim falando honesto,
parar neste lugar a ti compraza. 24

A tua fala torna manifesto


naquela nobre pátria seres nado,
à qual talvez eu fui demais molesto”. 27

Subitamente o som foi propagado


de uma das arcas; logo estremecendo
me aproximei, com medo, ao guia ao lado. 30

E ele a mim: “Vira-te! ue estás fazendo?


Vê lá que Farinata se põe teso:
e desde sua cintura o vês se erguendo”. 33

Eu tinha já meu rosto ao dele aceso;


eretos ele tinha o peito e a testa
como houvesse ao inferno grão desprezo. 36

E a mão do guia viva e mais que lesta


me impeliu até ele entre os jazigos,
dizendo: “Vênia à tua fala empresta”. 39

Mal cheguei à sua tumba de castigos,


olhou-me um pouco e, quase desdenhoso,
me perguntou: “ uem foram teus antigos?”. 42

Eu de atender me via desejoso,


e tudo lhe contei, nada escondi;
então franziu o cenho o orgulhoso 45

e disse: “Com fereza aos meus e a mi


deram combate, e como um baluarte
por duas vezes eu os repeli”. 48

“Porém voltaram, sim, de toda parte”,


lhe respondi, “por uma e outra vez;
e seu partido não captou tal arte”. 51

Da cova aberta ao lado então se fez


a sombra de um, alçada até o rosto,
sobre os joelhos rmada, talvez. 54

Ao meu redor olhou, como disposto


a ver se mais alguém vinha comigo;
e frustrado o que havia ele suposto 57

chorando disse: “Se por este abrigo


cego tu vais por grandeza de engenho,
cadê meu lho? Por que não contigo?”. 60

E lhe falei: “Por mim mesmo não venho:


o que me espera lá é quem me ordena,
a quem talvez seu Guido houve em desdenho”. 63

As suas palavras e o teor da pena


me haviam revelado já seu nome;
por isso que a resposta foi tão plena. 66

“Como?”, de pronto erguendo-se gritou-me,


“Disseste ‘ele houve’? Ele não vive agora?
Seus olhos o sol doce não consome?”. 69

uando por m percebeu a demora


que eu fazia diante da resposta,
caiu supino e não mais veio fora. 72

Mas a outra alma altiva, sempre exposta,


não altera o aspecto, nem se abala,
nem tem sua postura descomposta; 75

e disse prosseguindo aquela fala:


“Se naquela arte foram sem destreza,
isso me a ige mais do que esta vala. 78

Mas nem cinquenta vezes será acesa


a face da mulher que aqui impera,
e saberás quanto tal arte pesa. 81

Se acaso o doce mundo lá te espera,


diz-me: por que esse povo em desafeto
vem contrário aos meus com lei severa?”. 84

Donde eu a ele: “O grão massacre abjeto,


que fez o Árbia se tornar vermelho,
motiva em nosso templo tal decreto”. 87

Negando a suspirar, disse: “O concelho


assim deliberou, não estive só,
nem eu teria agido sem conselho. 90

Mas eu estive só lá quando em pó


queriam transformar toda Florença;
de sua defesa dei a face em pró”. 93

“Ai, que repouse a sua estirpe ofensa;


dissolva o nó”, pedi, “que em mim se forma
e aqui se enrosca no que a mente pensa. 96

Se bem ouço, parece a vós ser norma


prever o que consigo o tempo aduz,
mas o presente entendeis de outra forma”. 99

“Nós vemos, como alguém que tem má luz,


as coisas”, disse, “de um distante plano,
o tanto que o supremo mestre luz. 102

uando se acercam ou são, tudo é engano


à nossa mente; e se outrem não reporta,
nada vemos do vosso estado humano. 105
Já podes perceber que estará morta
nossa ciência desde aquela altura
que do futuro há de cerrar-se a porta”. 108

Ferido como em culpa que perdura,


falei: “Ao que caiu dirá, contudo,
que entre os vivos seu lho inda gura; 111

se há pouco, à sua pergunta, estive mudo,


faça-o saber que o z porque pensava
no erro que ora o senhor solveu em tudo”. 114

E já meu mestre a mim reconvocava;


donde ao espírito roguei mais lesto
que me dissesse quem com ele estava. 117

Disse-me: “Aqui com mais de mil eu resto:


aqui se vê o segundo Frederico
e o Cardeal; quem mais, não manifesto”. 120

Então sumiu; e ao poeta do rico


saber voltei os passos; repensando
na voz que me soou rival eu co. 123

Ele seguiu; depois, assim andando,


me disse: “Por que tanto te a igiste?”.
E eu o satis z ao seu comando. 126

“A mente tua conserve o que tu ouviste


contrário a ti”, me decretou meu guia;
“e ora ouve atento”, fez co dedo em riste: 129

“ao chegares à doce que irradia,


cujo belo olho brilha e tudo vê,
dela ouvirás da tua vida a via”. 132

Depois à esquerda dirigiu seu pé:


longe do muro, fomos para o centro
seguindo o vale e a trilha em seu sopé, 135

que exalava um fedor vindo de dentro.


Ora sen va per un secreto calle,
tra l muro de la terra e li martìri,
lo mio maestro, e io dopo le spalle. 3

“O virtù somma, che per li empi giri


mi volvi”, cominciai, “com a te piace,
parlami, e sodisfammi a miei disiri. 6

La gente che per li sepolcri giace


potrebbesi veder? già son levati
tutt i coperchi, e nessun guardia face”. 9

E quelli a me: “Tutti saran serrati


quando di Iosafàt qui torneranno
coi corpi che là sù hanno lasciati. 12

Suo cimitero da questa parte hanno


con Epicuro tutti suoi seguaci,
che l anima col corpo morta fanno. 15

Però a la dimanda che mi faci


quinc entro satisfatto sarà tosto,
e al disio ancor che tu mi taci”. 18

E io: “Buon duca, non tegno riposto


a te mio cuor se non per dicer poco,
e tu m hai non pur mo a ciò disposto”. 21
“O Tosco che per la città del foco
vivo ten vai così parlando onesto,
piacciati di restare in questo loco. 24

La tua loquela ti fa manifesto


di quella nobil patrïa natio,
a la qual forse fui troppo molesto”. 27

Subitamente questo suono uscìo


d una de l arche; però m accostai,
temendo, un poco più al duca mio. 30

Ed el mi disse: “Volgiti! Che fai?


Vedi là Farinata che s è dritto:
da la cintola in sù tutto l vedrai”. 33

Io avea già il mio viso nel suo tto;


ed el s ergea col petto e con la fronte
com avesse l inferno a gran dispitto. 36

E l animose man del duca e pronte


mi pinser tra le sepulture a lui,
dicendo: “Le parole tue sien conte”. 39

Com io al piè de la sua tomba fui,


guardommi un poco, e poi, quasi sdegnoso,
mi dimandò: “Chi fuor li maggior tui?”. 42

Io ch era d ubidir disideroso,


non gliel celai, ma tutto gliel apersi;
ond ei levò le ciglia un poco in suso; 45

poi disse: “Fieramente furo avversi


a me e a miei primi e a mia parte,
sì che per due fïate li dispersi”. 48

“S ei fur cacciati, ei tornar d ogne parte”,


rispuos io lui, “l una e l altra fïata;
ma i vostri non appreser ben quell arte”. 51

Allor surse a la vista scoperchiata


un ombra, lungo questa, in no al mento:
credo che s era in ginocchie levata. 54

Dintorno mi guardò, come talento


avesse di veder s altri era meco;
e poi che l sospecciar fu tutto spento, 57

piangendo disse: “Se per questo cieco


carcere vai per altezza d ingegno,
mio glio ov è? e perché non è teco?”. 60

E io a lui: “Da me stesso non vegno:


colui ch attende là, per qui mi mena
forse cui Guido vostro ebbe a disdegno”. 63

Le sue parole e l modo de la pena


m avean di costui già letto il nome;
però fu la risposta così piena. 66

Di sùbito drizzato gridò: “Come?


dicesti ‘elli ebbe ? non viv elli ancora?
non ere li occhi suoi lo dolce lume?”. 69

uando s accorse d alcuna dimora


ch io facëa dinanzi a la risposta,
supin ricadde e più non parve fora. 72

Ma quell altro magnanimo, a cui posta


restato m era, non mutò aspetto,
né mosse collo, né piegò sua costa; 75

e sé continüando al primo detto,


“S elli han quell arte”, disse, “male appresa,
ciò mi tormenta più che questo letto. 78

Ma non cinquanta volte a raccesa


la faccia de la donna che qui regge,
che tu saprai quanto quell arte pesa. 81

E se tu mai nel dolce mondo regge,


dimmi: perché quel popolo è sì empio
incontr a miei in ciascuna sua legge?”. 84

Ond io a lui: “Lo strazio e l grande scempio


che fece l Arbia colorata in rosso,
tal orazion fa far nel nostro tempio”. 87

Poi ch ebbe sospirando il capo mosso,


“A ciò non fu io sol”, disse, “né certo
sanza cagion con li altri sarei mosso. 90

Ma fu io solo, là dove sofferto


fu per ciascun di tòrre via Fiorenza,
colui che la difesi a viso aperto”. 93

“Deh, se riposi mai vostra semenza”,


prega io lui, “solvetemi quel nodo
che qui ha nviluppata mia sentenza. 96

El par che voi veggiate, se ben odo,


dinanzi quel che l tempo seco adduce,
e nel presente tenete altro modo”. 99

“Noi veggiam, come quei c ha mala luce,


le cose”, disse, “che ne son lontano;
cotanto ancor ne splende il sommo duce. 102

uando s appressano o son, tutto è vano


nostro intelletto; e s altri non ci apporta,
nulla sapem di vostro stato umano. 105
Però comprender puoi che tutta morta
a nostra conoscenza da quel punto
che del futuro a chiusa la porta”. 108

Allor, come di mia colpa compunto,


dissi: “Or direte dunque a quel caduto
che l suo nato è co vivi ancor congiunto; 111

e s i fui, dianzi, a la risposta muto,


fate i saper che l fei perché pensava
già ne l error che m avete soluto”. 114

E già l maestro mio mi richiamava;


per ch i pregai lo spirto più avaccio
che mi dicesse chi con lu istava. 117

Dissemi: “ ui con più di mille giaccio:


qua dentro è l secondo Federico
e l Cardinale; e de li altri mi taccio”. 120

Indi s ascose; e io inver l antico


poeta volsi i passi, ripensando
a quel parlar che mi parea nemico. 123

Elli si mosse; e poi, così andando,


mi disse: “Perché se tu sì smarrito?”.
E io li sodisfeci al suo dimando. 126

“La mente tua conservi quel ch udito


hai contra te”, mi comandò quel saggio;
“e ora attendi qui”, e drizzò l dito: 129

“quando sarai dinanzi al dolce raggio


di quella il cui bell occhio tutto vede,
da lei saprai di tua vita il vïaggio”. 132

Appresso mosse a man sinistra il piede:


lasciammo il muro e gimmo inver lo mezzo
per un sentier ch a una valle ede, 135

che n n là sù facea spiacer suo lezzo.


Canto XI
Os poetas continuam caminhando pelo “cemitério”, agora à borda do baixo
inferno, e param junto à sepultura de Anastácio ii (pontí ce entre 496 e 498), a
quem o diácono Fotino (“Fotin”) teria induzido à heresia. Nesse momento,
Virgílio recomenda a Dante uma pausa para que seu olfato se habitue ao mau
cheiro que vem das profundezas [1-12]. Dante pede a Virgílio que aproveite o
tempo da parada com algum ensinamento, e o poeta latino lhe apresenta o
ordenamento das penas infernais. Virgílio explica que, abaixo deles, o inferno
possui três divisões principais destinadas aos que com violência ou deslealdade
pecaram de forma intencional. Na primeira dessas divisões (sétimo círculo) estão
os violentos, separados em três níveis por ordem de gravidade da culpa, seja contra
pessoas ou coisas: 1. contra o próximo (homicidas e devastadores); 2. contra si
mesmos (suicidas e perdulários); 3. contra o deus cristão (blasfemos), a natureza
(sodomitas) ou o trabalho (usurários, indicados pelo nome da cidade francesa
Cahors, sinônimo de usura na Idade Média) [13-51]. O círculo seguinte (oitavo) é
destinado aos fraudulentos, também separados em diferentes fossados que se
aprofundam de acordo com a gravidade do crime. Ali são punidos os que
investiram sua inteligência contra pessoas que, num primeiro momento, não lhes
tinham con ança [52-60]. Abaixo desses (nono círculo) estão os que traíram a
con ança (“fé”) de quem com eles tinha alguma ligação especial; por ser esse o
mais grave dos crimes, estão bem próximos ao anjo caído Lúcifer (“Dite”), que
está preso ao centro do planeta, no fundo do inferno [61-66]. Como Virgílio omite
os pecadores já avistados, Dante pergunta a razão disso. Ele então adverte o poeta
orentino sobre a importância da Ética aristotélica para compreender a estrutura
do inferno, na qual há a distinção entre “as três disposições que o céu não quer”.
Sendo a incontinência a menos grave entre essas, os que erram apenas pela falta de
comedimento em suas paixões estão excluídos do baixo inferno [67-90]. Dante, por
m, pergunta a Virgílio sobre a usura, e o poeta latino mais uma vez invoca a
autoridade de Aristóteles (“tua Física”), juntamente com o livro bíblico do
Gênesis, para mostrar como o agiota atua fora dos meios naturais para sua
subsistência. Por meio das constelações que se deslocam no céu, Virgílio indica
estar na hora de seguir viagem [91-115].
Por sobre a extremidade da alta encosta
feita em arco de pedras e rochedos
demos com gente em dores sobreposta; 3

e aí, fugindo aos pútridos e azedos


bafos que o fundo abismo acima excreta,
juntos nos retiramos aos lajedos 6

de um grande túmulo onde eu vi uma escrita


que dizia: “Anastácio guardo, o papa
que Fotin desviou da via reta”. 9

“Convém que os dois desçamos por etapa,


assim um pouco educas o sentido
ao triste sopro; então dele se escapa”, 12

falou meu mestre; e eu: “Pra que perdido”,


lhe disse, “o tempo agora aqui não passe,
faz algo”. E ele: “Penso em teu pedido”. 15

“Meu lho”, disse como se ensinasse,


“em meio a estas pedras há três voltas
de grau em grau, como as que viste em face. 18

Todas cheias de más almas revoltas;


mas, para que te baste só a vista,
sabe como e por que se veem envoltas. 21
No céu toda malícia ódio conquista,
seu m é injúria, e todo m igual
coa força ou com a fraude outros contrista. 24

Mas porque a fraude é do homem próprio mal,


mais desagrada a Deus; mais baixo estão
os que fraudam e sofrem dor brutal. 27

Ao primeiro arco os violentos vão:


mas como se faz força a três sujeitos,
em três fossos se estende a construção. 30

A Deus, a si e ao próximo são feitos


maus atos, digo aos bens e digo às gentes,
como ouvirás por nítidos conceitos. 33

Morte por força e feridas dolentes


ao próximo se dão, e à sua posse,
ruína, incêndio e pilhagens nocentes; 36

donde homicidas e quem do mal fosse,


ladrões, devastadores atormenta
o primeiro fossado em vária hoste. 39

Um pode contra si ter mão violenta,


como a seus bens; por isso no segundo
fossado sem proveito ou indulto assenta 42

quem quer que prive a si do vosso mundo,


jogue ou afunde sua propriedade,
e lá chore onde pôde ser jucundo. 45

Se pode ser feroz contra a deidade,


com cor negando e blasfemando aquela,
zombando a natureza e sua bondade; 48

por isso o menor fosso então agela


com seu sinal Sodoma e os de Cahors
e quem despreza Deus com sua loquela. 51

Da fraude, onde a consciência é pior,


pode um valer-se em quem con a nele
e no que a con ança é sem valor. 54

Esta última conduta é a que repele


o elo de amor que a natureza faz:
eis o segundo círculo e com ele 57

magos, hipócritas e o que é mendaz,


bajulador, larápio e simonia,
ru ões, corruptos e imundice assaz. 60

Naquela outra conduta se desvia


do amor que faz natura, e o que se acresce,
coa fé especial que assim se cria; 63

donde no círculo mais breve, nesse


vão do universo em que se assenta Dite,
quem quer que traia em eterno apodrece”. 66

“Mestre”, falei, “é clara e nada omite


a tua razão, e muito bem distingue
esta voragem e quem nela habite. 69

Mas diz: aqueles do palude pingue,


que o vento leva e o temporal arrasa,
e os que fazem da língua um estilingue, 72

por que não dentro da cidade em brasa


são punidos, se Deus os tem em ira?
E se não tem, o que sua pena embasa?”. 75

Disse ele a mim: “Por que tanto delira


teu engenho daquilo que sói ser?
Acaso tua mente alhures mira? 78

Não te recordas de todo o saber


com o qual a tua Ética retrata
as três disposições que o céu não quer, 81

incontinência, insídia e a insensata


bestialidade? E como a incontinência
a Deus menos ofende e desacata? 84

Se vires tal premissa com ciência,


trazendo à tua mente aqueles tais
que acima e afora amargam penitência, 87

enxergarás por que destes brutais


estão à parte, e como atenuada
a vingança divina os poupe mais”. 90

“Ó sol que sanas a visão turvada,


quando esclareces tanto a mim envolves,
que duvidar, como o saber, me agrada. 93

Se ainda atrás”, pedi-lhe, “te revolves,


lá onde dizes tu que usura ofende
a bondade divina, o nó dissolves”. 96

“Filoso a”, disse, “a quem a entende


ensina, e não apenas numa parte,
como seu curso a natureza empreende 99

do divino intelecto e de sua arte;


se releres tua Física dileta,
tu poderás no início inteirar-te 102

de que a arte vossa aquela tem por meta


seguir, tal como o mestre o seu discente;
logo, de Deus vossa arte é quase neta. 105
Por estas duas, se puseres mente
ao princípio do Gênesis, se deve
na vida trabalhar, tocar em frente; 108

como o agiota uma outra via teve,


a natureza em si e sua sequaz
despreza, já que alhures se deteve. 111

Mas agora me segue, que ir me apraz;


pois os Peixes despontam no horizonte,
e o Carro todo sobre o Coro jaz, 114

e mais adiante é que se desce o monte”.


In su l estremità d un alta ripa
che facevan gran pietre rotte in cerchio,
venimmo sopra più crudele stipa; 3

e quivi, per l orribile soperchio


del puzzo che l profondo abisso gitta,
ci raccostammo, in dietro, ad un coperchio 6

d un grand avello, ov io vidi una scritta


che dicea: “Anastasio papa guardo,
lo qual trasse Fotin de la via dritta”. 9

“Lo nostro scender conviene esser tardo,


sì che s ausi un poco in prima il senso
al tristo ato; e poi no i a riguardo”. 12

Così l maestro; e io “Alcun compenso”,


dissi lui, “trova che l tempo non passi
perduto”. Ed elli: “Vedi ch a ciò penso”. 15

“Figliuol mio, dentro da cotesti sassi”,


cominciò poi a dir, “son tre cerchietti
di grado in grado, come que che lassi. 18

Tutti son pien di spirti maladetti;


ma perché poi ti basti pur la vista,
intendi come e perché son costretti. 21
D ogne malizia, ch odio in cielo acquista,
ingiuria è l ne, ed ogne n cotale
o con forza o con frode altrui contrista. 24

Ma perché frode è de l uom proprio male,


più spiace a Dio; e però stan di sotto
li frodolenti, e più dolor li assale. 27

Di vïolenti il primo cerchio è tutto;


ma perché si fa forza a tre persone,
in tre gironi è distinto e costrutto. 30

A Dio, a sé, al prossimo si pòne


far forza, dico in loro e in lor cose,
come udirai con aperta ragione. 33

Morte per forza e ferute dogliose


nel prossimo si danno, e nel suo avere
ruine, incendi e tollette dannose; 36

onde omicide e ciascun che mal ere,


guastatori e predon, tutti tormenta
lo giron primo per diverse schiere. 39

Puote omo avere in sé man vïolenta


e ne suoi beni; e però nel secondo
giron convien che sanza pro si penta 42

qualunque priva sé del vostro mondo,


biscazza e fonde la sua facultade,
e piange là dov esser de giocondo. 45

Puossi far forza ne la deïtade,


col cor negando e bestemmiando quella,
e spregiando natura e sua bontade; 48

e però lo minor giron suggella


del segno suo e Soddoma e Caorsa
e chi, spregiando Dio col cor, favella. 51

La frode, ond ogne coscïenza è morsa,


può l omo usare in colui che n lui da
e in quel che danza non imborsa. 54

uesto modo di retro par ch incida


pur lo vinco d amor che fa natura;
onde nel cerchio secondo s annida 57

ipocresia, lusinghe e chi affattura,


falsità, ladroneccio e simonia,
ruffian, baratti e simile lordura. 60

Per l altro modo quell amor s oblia


che fa natura, e quel ch è poi aggiunto,
di che la fede spezïal si cria; 63

onde nel cerchio minore, ov è l punto


de l universo in su che Dite siede,
qualunque trade in etterno è consunto”. 66

E io: “Maestro, assai chiara procede


la tua ragione, e assai ben distingue
questo baràtro e l popol ch e possiede. 69

Ma dimmi: quei de la palude pingue,


che mena il vento, e che batte la pioggia,
e che s incontran con sì aspre lingue, 72

perché non dentro da la città roggia


sono ei puniti, se Dio li ha in ira?
e se non li ha, perché sono a tal foggia?”. 75

Ed elli a me “Perché tanto delira”,


disse, “lo ngegno tuo da quel che sòle?
o ver la mente dove altrove mira? 78

Non ti rimembra di quelle parole


con le quai la tua Etica pertratta
le tre disposizion che l ciel non vole, 81

incontenenza, malizia e la matta


bestialitade? e come incontenenza
men Dio offende e men biasimo accatta? 84

Se tu riguardi ben questa sentenza,


e rechiti a la mente chi son quelli
che sù di fuor sostegnon penitenza, 87

tu vedrai ben perché da questi felli


sien dipartiti, e perché men crucciata
la divina vendetta li martelli”. 90

“O sol che sani ogne vista turbata,


tu mi contenti sì quando tu solvi,
che, non men che saver, dubbiar m aggrata. 93

Ancora in dietro un poco ti rivolvi”,


diss io, “là dove di ch usura offende
la divina bontade, e l groppo solvi”. 96

“Filoso a”, mi disse, “a chi la ntende,


nota, non pure in una sola parte,
come natura lo suo corso prende 99

dal divino ntelletto e da sua arte;


e se tu ben la tua Fisica note,
tu troverai, non dopo molte carte, 102

che l arte vostra quella, quanto pote,


segue, come l maestro fa l discente;
sì che vostr arte a Dio quasi è nepote. 105
Da queste due, se tu ti rechi a mente
lo Genesì dal principio, convene
prender sua vita e avanzar la gente; 108

e perché l usuriere altra via tene,


per sé natura e per la sua seguace
dispregia, poi ch in altro pon la spene. 111

Ma seguimi oramai che l gir mi piace;


ché i Pesci guizzan su per l orizzonta,
e l Carro tutto sovra l Coro giace, 114

e l balzo via là oltra si dismonta”.


Canto XII
Dante e Virgílio descem do sexto ao sétimo círculo (primeiro nível), onde
encontram o Minotauro (“a infâmia”), que se morde de ira ao ver os dois. Virgílio
então lhe adverte que seu companheiro não é Teseu (“o condutor de Atenas”),
que, ao ser instruído por Ariadne, irmã do monstro, conseguiu matá-lo. Com
medo da reação do Minotauro, os dois correm ao sétimo círculo através de uma
passagem criada por um deslizamento de terra semelhante ao das margens do rio
Ádige, em Trento [1-30]. Ao ver Dante surpreso com a paisagem, Virgílio explica a
origem da ruína infernal: após sua morte, Cristo (“o eterno”) desceu ali para tirar
de Lúcifer (“Dis”) os espíritos do Antigo Testamento, levando-os embora do
limbo (“círculo superno”). Com isso o inferno tremeu tanto que fez parecer
verdadeira a doutrina de Empédocles sobre o retorno dos elementos ao caos
primordial [31-45]. Virgílio aponta para um rio de sangue a ferver, onde pagam
seus pecados os que cometeram violência contra o próximo. Dante avista uma
multidão de centauros (“as bestas incompletas”), da qual três se separam e os
interpelam: Nesso (que se vingou de Hércules conforme narra Ovídio nas
Metamorfoses), uíron e Folo [46-75]. Após indicar a uíron que a passagem dos
dois poetas obedecia a uma ordem superior, Virgílio lhe pede que um dos
centauros leve Dante na garupa, uma vez que deveriam atravessar o rio [76-99]. No
caminho, Nesso aponta alguns violentos: Alexandre Magno (séc. iv a.C.);
Dionísio, tirano de Siracusa (séc. iv a.C.); Azzolino iii da Romano, tirano da
Marca Trevigiana entre 1223 e 1259; e Opizzo d’Este, senhor de Ferrara e da
Marca Anconetana, morto em 1293 pelo enteado Azzo viii; em seguida, o nobre
inglês Guy de Montfort (“uma sombra só”), que para vingar a morte do pai matou
Henrique de Cornuália numa igreja em Viterbo, em 1271. Os últimos, que Nesso
diz estarem submersos na parte mais funda do rio, são: Átila (séc. v d.C.), rei dos
hunos; Pirro, provavelmente o rei do Epiro (319- 272 a.C.) ou, segundo alguns,
lho de Aquiles; Sexto (séc. i a.C.), lho de Pompeu; e dois facínoras famosos da
época de Dante, Rinier da Corneto e Rinier Pazzo [100-139].
Era o lugar onde a descer a beira
demos alpestre, e aquilo ali, parado,
era tal, que qualquer olhar se esgueira. 3

Como aquela ruína que ao costado


aquém de Trento o Ádige abateu,
por terremoto ou por pilar frustrado, 6

que do alto monte, de onde se moveu,


ao plaino a rocha, mesmo na aspereza,
daria acesso por um anco seu: 9

assim a tal ravina era indefesa,


e sobre a ponta da rota buraca
a aberração de Creta estava estesa, 12

que concebida foi na falsa vaca;


quando nos viu, a si mesmo mordeu,
tal como a quem a ira dentro ataca. 15

Contra ele esbravejou o sábio meu:


“Crês que este seja o condutor de Atenas,
que a morte lá no mundo a ti te deu? 18

Vai-te, besta, pois este por terrenas


lições dadas por tua irmã não vem,
mas sim para avistar as vossas penas”. 21
Tal como o touro que se solta bem
quando recebe então golpe mortal,
que sem saber mais ir, salta em vaivém, 24

vi o Minotauro agindo como tal;


e o sábio grita: “Corre pra descida;
é bom fugir de seu furor brutal”. 27

Assim tomamos uma via premida


em meio às pedras que, por eu ter peso,
rolavam soltas a cada batida. 30

Eu ia pensando, e ele falou: “Surpreso


pareces coa ruína, vigiada
pela besta de quem te pus ileso. 33

Saibas agora: em minha outra jornada,


quando desci aqui ao baixo inferno,
não estava esta rocha inda tombada. 36

Mas, se bem compreendo, quando o eterno


aqui chegou e a grandiosa presa
tomou a Dis do círculo superno, 39

o vale podre desde a profundeza


tanto tremeu, que o mundo acreditei
sentisse amor, pelo qual com rmeza 42

há quem creia que ao caos volte por lei;


e naquela época esta velha roca
aqui e além caiu, como expliquei. 45

Mas pra baixo olha, onde desemboca


o rio de sangue fervente a queimar
quem violência ao próximo provoca”. 48

Oh ira louca e cupidez sem par,


tanto na vida breve nos incita,
e quer na eterna vir nos afogar! 51

Fossa ampla vi que um arco delimita,


pois que aquela planície toda abraça,
conforme a fala por meu guia dita; 54

e entre o sopé da riba e aquela, a raça


dos centauros corria com suas setas,
como soíam no mundo ir à caça. 57

Ao ver-nos ir, as bestas incompletas


pararam, mas partiram três dentre elas
com seus arcos e echas já seletas; 60

e um de longe gritou: “A quais mazelas


vindes vós que desceis a nossa encosta?
Dizei daí, ou sofrereis sequelas”. 63

Disse-lhe então meu mestre: “Essa resposta


daremos nós a uíron, que conheço;
teu mal foi sempre essa vontade exposta”. 66

Então tocou-me e disse: “Aquele é Nesso,


que morreu pela bela Dejanira,
e fez sua vingança ter sucesso. 69

E o do meio, que o próprio peito mira,


é o grande uíron, que Aquiles nutriu;
o outro é Folo, que foi tão cheio de ira. 72

Em torno ao fosso vão de mil em mil,


echando a alma que tentar sair
do sangue mais que a culpa permitiu”. 75

Às feras ágeis resolvemos ir.


uíron pegou uma seta, e coa ranhura
puxou a barba pra algo proferir. 78

uando mostrou da boca a abertura,


disse aos colegas: “Tendes percebido
que se move o que toca a criatura? 81

Tal não fazem os pés de um falecido”.


E meu bom guia, a seu peito vizinho,
onde ele em duas naturas é jungido, 84

respondeu: “É bem vivo, e tão sozinho


mostrar-lhe é meu mister o vale escuro;
dever, e não prazer, é seu caminho. 87

A que me encomendou o ofício duro,


de cantar aleluia se ausentou:
não é ladrão, nem eu roubar procuro. 90

Porém, pelo valor que me deixou


avançar por estrada tão selvagem,
dê-nos um destes, que a seu lado vou, 93

e que do vau nos ponha na passagem,


e que em sua garupa a ele leve,
pois este espírito não tem plumagem”. 96

À sua direita uíron fez-se breve


e disse a Nesso: “Volta e os guia assim
e afasta se outra tropa a vós se atreve”. 99

Com a escolta leal fomos en m


ao longo do vermelho rio fervente,
onde os fervidos davam ais sem m. 102

Eu vi imersa até os cílios uma gente, e


disse o grande centauro: “São tiranos
que puseram o sangue e os bens à frente. 105
Aqui lamentam os seus ímpios danos;
vede Alexandre e Dionísio abjeto
por ter dado à Sicília cruéis anos. 108

E aquela fronte com pelo tão preto


é Azzolino, e aquele louro ao fundo
é Opizzo da Este, o desafeto 111

morto pelo enteado lá no mundo”.


Então virei-me ao poeta, e ele disse:
“Ora este irá primeiro, e eu, segundo”. 114

O centauro xou, sem que seguisse,


a vista numa gente que até a goela
como de um caldeirão voraz saísse. 117

Mostrou-nos uma sombra só e dela


falou: “Inda no Tâmisa goteja
o cor que este fendeu numa capela”. 120

Depois vi gente da água malfazeja


pondo a cabeça para fora e o peito;
vários reconheci nessa peleja. 123

Assim, mais e mais baixo e rarefeito,


o sangue agora só os pés fervia;
e aqui passamos pelo fosso estreito. 126

“Tal como tu da parte desta via


vês minguar sempre mais esse fervor”,
disse o centauro, “não se descon a 129

que desta outra mais cresça o espessor


sobre seu fundo, até que ele retorna
onde os tiranos gemem por horror. 132

A divina justiça nesta dorna


punge Átila, agelo em nossa terra,
e Pirro e Sexto; e eternamente entorna 135

as lágrimas, que co fervor descerra,


de Rinier da Corneto e Rinier Pazzo,
que deram às estradas tanta guerra”. 138

Depois voltou-se e repassou o raso.


Era lo loco ov a scender la riva
venimmo, alpestro e, per quel che v er anco,
tal, ch ogne vista ne sarebbe schiva. 3

ual è quella ruina che nel anco


di qua da Trento l Adice percosse,
o per tremoto o per sostegno manco, 6

che da cima del monte, onde si mosse,


al piano è sì la roccia discoscesa,
ch alcuna via darebbe a chi sù fosse: 9

cotal di quel burrato era la scesa;


e n su la punta de la rotta lacca
l infamïa di Creti era distesa 12

che fu concetta ne la falsa vacca;


e quando vide noi, sé stesso morse,
sì come quei cui l ira dentro acca. 15

Lo savio mio inver lui gridò: “Forse


tu credi che qui sia l duca d Atene,
che sù nel mondo la morte ti porse? 18

Pàrtiti, bestia, ché questi non vene


ammaestrato da la tua sorella,
ma vassi per veder le vostre pene”. 21
ual è quel toro che si slaccia in quella
c ha ricevuto già l colpo mortale,
che gir non sa, ma qua e là saltella, 24

vid io lo Minotauro far cotale;


e quello accorto gridò: “Corri al varco;
mentre ch e nfuria, è buon che tu ti cale”. 27

Così prendemmo via giù per lo scarco


di quelle pietre, che spesso moviensi
sotto i miei piedi per lo novo carco. 30

Io gia pensando; e quei disse: “Tu pensi


forse a questa ruina, ch è guardata
da quell ira bestial ch i ora spensi. 33

Or vo che sappi che l altra fïata


ch i discesi qua giù nel basso inferno,
questa roccia non era ancor cascata. 36

Ma certo poco pria, se ben discerno,


che venisse colui che la gran preda
levò a Dite del cerchio superno, 39

da tutte parti l alta valle feda


tremò sì, ch i pensai che l universo
sentisse amor, per lo qual è chi creda 42

più volte il mondo in caòsso converso;


e in quel punto questa vecchia roccia,
qui e altrove, tal fece riverso. 45

Ma cca li occhi a valle, ché s approccia


la riviera del sangue in la qual bolle
qual che per vïolenza in altrui noccia”. 48

Oh cieca cupidigia e ira folle,


che sì ci sproni ne la vita corta,
e ne l etterna poi sì mal c immolle! 51

Io vidi un ampia fossa in arco torta,


come quella che tutto l piano abbraccia,
secondo ch avea detto la mia scorta; 54

e tra l piè de la ripa ed essa, in traccia


corrien centauri, armati di saette,
come solien nel mondo andare a caccia. 57

Veggendoci calar, ciascun ristette,


e de la schiera tre si dipartiro
con archi e asticciuole prima elette; 60

e l un gridò da lungi: “A qual martiro


venite voi che scendete la costa?
Ditel costinci; se non, l arco tiro”. 63

Lo mio maestro disse: “La risposta


farem noi a Chirón costà di presso:
mal fu la voglia tua sempre sì tosta”. 66

Poi mi tentò, e disse: “ uelli è Nesso,


che morì per la bella Deianira,
e fé di sé la vendetta elli stesso. 69

E quel di mezzo, ch al petto si mira,


è il gran Chirón, il qual nodrì Achille;
quell altro è Folo, che fu sì pien d ira. 72

Dintorno al fosso vanno a mille a mille,


saettando qual anima si svelle
del sangue più che sua colpa sortille”. 75

Noi ci appressammo a quelle ere isnelle:


Chirón prese uno strale, e con la cocca
fece la barba in dietro a le mascelle. 78

uando s ebbe scoperta la gran bocca,


disse a compagni: “Siete voi accorti
che quel di retro move ciò ch el tocca? 81

Così non soglion far li piè d i morti”.


E l mio buon duca, che già li er al petto,
dove le due nature son consorti, 84

rispuose: “Ben è vivo, e sì soletto


mostrar li mi convien la valle buia;
necessità l ci nduce, e non diletto. 87

Tal si partì da cantare alleluia


che mi commise quest officio novo:
non è ladron, né io anima fuia. 90

Ma per quella virtù per cu io movo


li passi miei per sì selvaggia strada,
danne un de tuoi, a cui noi siamo a provo, 93

e che ne mostri là dove si guada,


e che porti costui in su la groppa,
ché non è spirto che per l aere vada”. 96

Chirón si volse in su la destra poppa,


e disse a Nesso: “Torna, e sì li guida,
e fa cansar s altra schiera v intoppa”. 99

Or ci movemmo con la scorta da


lungo la proda del bollor vermiglio,
dove i bolliti facieno alte strida. 102

Io vidi gente sotto in no al ciglio;


e l gran centauro disse: “E son tiranni
che dier nel sangue e ne l aver di piglio. 105
uivi si piangon li spietati danni;
quivi è Alessandro, e Dïonisio fero
che fé Cicilia aver dolorosi anni. 108

E quella fronte c ha l pel così nero,


è Azzolino; e quell altro ch è biondo,
è Opizzo da Esti, il qual per vero 111

fu spento dal gliastro sù nel mondo”.


Allor mi volsi al poeta, e quei disse:
“ uesti ti sia or primo, e io secondo”. 114

Poco più oltre il centauro s affisse


sovr una gente che n no a la gola
parea che di quel bulicame uscisse. 117

Mostrocci un ombra da l un canto sola,


dicendo: “Colui fesse in grembo a Dio
lo cor che n su Tamisi ancor si cola”. 120

Poi vidi gente che di fuor del rio


tenean la testa e ancor tutto l casso;
e di costoro assai riconobb io. 123

Così a più a più si facea basso


quel sangue, sì che cocea pur li piedi;
e quindi fu del fosso il nostro passo. 126

“Sì come tu da questa parte vedi


lo bulicame che sempre si scema”,
disse l centauro, “voglio che tu credi 129

che da quest altra a più a più giù prema


lo fondo suo, in n ch el si raggiunge
ove la tirannia convien che gema. 132

La divina giustizia di qua punge


quell Attila che fu agello in terra,
e Pirro e Sesto; e in etterno munge 135

le lagrime, che col bollor diserra,


a Rinier da Corneto, a Rinier Pazzo,
che fecero a le strade tanta guerra”. 138

Poi si rivolse e ripassossi l guazzo.


Canto XIII
No segundo nível do sétimo círculo, a selva dos suicidas é descrita como um lugar
extremamente áspero, comparado à região italiana da Maremma na época de
Dante. Sobre os arbustos estão as Harpias, monstros formados por corpo de
pássaro e rosto humano [1-21]. Dante ouve vozes, mas não vê quem as emite;
Virgílio então ordena que o poeta quebre um ramo de uma das árvores, fazendo
com que a alma que nela havia se transformado se lamente, e sua ferida sangre: é
Pier della Vigna (c. 1190-1249), jurista e poeta nascido em Cápua, secretário do
imperador Frederico ii. Tendo alcançado os mais altos cargos da corte siciliana,
caiu em desgraça por suspeita de traição ao imperador; cegado e preso, suicidou-se
no cárcere [22-78]. Após contar seu próprio m, Pier della Vigna explica como os
suicidas são transformados em arbustos e que condição lhes caberá depois do
Juízo Final [79-108]. Dante e Virgílio esperam mais palavras dele quando são
surpreendidos por um barulho, e à sua esquerda surgem dois perdulários, cortados
pelos espinhos dos abrunheiros: Lano da Siena (?-1288), jovem riquíssimo que
dilapidou os bens paternos, e Iacopo da Santo Andrea (?-1239), paduano que
frequentou a corte de Frederico ii, conhecido por sua prodigalidade desmesurada,
ambos perseguidos por famintas cadelas. O primeiro consegue fugir; o segundo
tenta se esconder num arbusto, mas é com este dilacerado por elas [109-129]. O
arbusto destroçado repreende o gesto inútil de Iacopo e narra sua origem com
uma perífrase sobre os patronos de Florença: o novo (“Batista”) e o “antigo”, o
deus Marte, que por ter sido substituído pelo cristão pune a cidade com guerras
(“sua arte”); e, se junto ao rio Arno não tivessem permanecido restos de uma
estátua (“vestígio”) daquele deus, teria sido inútil reconstruí-la, como aconteceu
após a lendária invasão de Átila, rei dos hunos [130-151].
Não tinha ainda lá Nesso chegado,
quando nós fomos pelo matagal
por nenhuma picada assinalado. 3

Não fronde verde, mas de cor feral;


não ramos retos, mas cordões nodosos;
não pomos, mas veneno germinal. 6

Não tão aspros estrepes copiosos


têm as feras selvagens e arredias
na Maremma aos lugares populosos. 9

Aqui fazem seu ninho as más Harpias,


que das Estrófades alguns troianos
baniram com visões muito sombrias. 12

Asas têm largas, colo e rosto humanos,


garras nos pés, penas nos grandes ventres;
queixam-se sobre arvoredos arcanos. 15

E meu bom mestre: “Antes que mais entres,


sabe que estás no círculo segundo”,
me falou, “e estarás até que adentres 18

neste terrível areão imundo.


Por isso observa bem, pois hás de ver
coisa que meu dizer faria infecundo”. 21
Eu ouvia por tudo ais sem poder
avistar a pessoa que os zesse;
todo perdido, quei sem saber. 24

Acreditei que acreditou que eu cresse


ouvir naquela galharia gemidos
de gente que de nós lá se escondesse. 27

Por isso disse o mestre: “Se rompidos


forem por ti gravetos destas plantas,
teus pensamentos carão partidos”. 30

Destarte pus a mão entre umas tantas


e um raminho colhi dum abrunheiro;
gritou seu tronco: “Por que me quebrantas?”. 33

Depois que o sangue seu o fez trigueiro,


recomeçou: “Por que tu me laceras?
Fugiu-te a piedade por inteiro? 36

Nós fomos homens, ora sarças veras:


bem deverias ter a mão mais pia,
se almas nós fôssemos de serpes feras”. 39

ual galho verde que queimado havia


uma das pontas, e da outra poreja
e pelo vai e vem do vento chia, 42

assim a lasca rota igual despeja


palavra e sangue; então deixei a madeira
cair, cando como quem fraqueja. 45

“Se ele pudesse crer de outra maneira”,


meu sábio respondeu, “alma ofendida,
o que em minha poesia viu certeira, 48

não te teria feito essa ferida;


saibas que a coisa incrível me levou
a induzi-lo a ação que me é sofrida. 51

Mas diz quem foste, pois, se te lesou,


refresque como emenda tua fama
no mundo, aonde sua volta se acertou”. 54

E o tronco: “A doce fala é como chama,


e não posso calar; palavras graves
a vós não sejam, se o dizer me chama. 57

Eu sou o que guardou ambas as chaves


do cor de Frederico e que as virei,
cerrando e descerrando, tão suaves, 60

que seus segredos de outros preservei;


a fé mantive ao glorioso ofício,
tanto que o sono e os pulsos eu calei. 63

A messalina que jamais do hospício


de César tira seus olhos de puta,
morte comum e de palácios vício, 66

in amou contra mim todos, a astuta;


os in amados in amam Augusto,
e a honra em tristes lutos se transmuta. 69

O ânimo meu, por desdenhoso custo,


crendo com o morrer tolher desdenho,
injusto fez a mim contra mim justo. 72

Pelas novas raízes deste lenho


vos juro que jamais rompi a fé
a meu senhor, a quem honrei co empenho. 75

E se um de vós voltar ao mundo até,


minha memória alente, que ali jaz
inda do golpe dado de má-fé”. 78

Fez uma pausa: “O momento é fugaz”,


disse o poeta a mim, “e ele se cala;
então fala e pergunta, se te apraz”. 81

Donde eu a ele: “Tu inda lhe fala


sobre o que crês que a mim me satisfaça;
eu não, que tanta piedade me abala”. 84

Por isso retomou: “ ue a ti se faça


abertamente o que teu estro instiga,
espírito cativo, e ainda traça, 87

se te praz, como a alma aqui se liga


nestes nós; e nos diz, se é permitido,
se um dia de tais membros se desliga”. 90

O tronco então soprou forte bramido


e aquele vento converteu-se em voz:
“Vos será brevemente respondido. 93

uando parte do corpo a alma feroz,


do ponto em que ela a si foi violenta,
Minos a manda pra sétima foz. 96

Sem escolha, na selva cai e se assenta


bem no lugar em que a fortuna a lança,
e como espelta aí mesmo rebenta. 99

Germina em broto e em planta com pujança;


causam dor e à dor abrem janela
as Harpias em sua comilança. 102

Por nossa carne viremos, por ela


que jamais voltaremos a trajar,
pois não é justo tê-la quem não zela. 105
Na mesta selva, após muito a arrastar,
aos arbustos das nossas sombras pensos
carão nossos corpos a penar”. 108

Ao tronco ainda estávamos propensos,


pensando que quisesse falar mais,
quando um barulho nos deixou suspensos, 111

tal como ocorre com quem os sinais


nota do porco e na caçada espreita,
ouvindo o bicho e o som dos cipoais. 114

Eis que chegavam dois da esquerda estreita,


nus e arranhados, fugindo tão forte,
que toda a selva deixavam desfeita. 117

O da dianteira: “Acorre, acorre, morte!”.


E o outro, de andadura demorada,
gritava: “Lano, não foi deste porte 120

nos torneios do Toppo tua pernada!”.


E como o fôlego lhe rareava,
de si e de uma moita fez laçada. 123

Atrás deles a selva cheia estava


de famintas cadelas e correntes
como galgos saídos de sua trava. 126

No que se acocorou cravaram dentes,


rasgando-o pedaço por pedaço;
depois se foram cos nacos dolentes. 129

Tomou-me então meu guia pelo braço


e levou-me ao arbusto cujo pranto
vinha das fendas a sangrar do lasso. 132

E ele dizia: “Ó Iacopo da Santo


Andrea, por que fazer de mim defesa?
ue culpa eu tenho se teu mal foi tanto?”. 135

O mestre foi a ele e com presteza


disse: “ uem foste, que com sangue ajuntas
em tantas pontas frases de tristeza?”. 138

E ele falou: “Ó almas que aqui juntas


a ver viestes o cruel tormento
que deixou minhas frondas tão disjuntas, 141

recolhei-as ao pé do triste assento.


Pertenci à cidade em que o Batista
sucedeu ao patrono antigo, atento 144

sempre em usar sua arte que a contrista;


e se não fosse que vestígio rente
ao Arno dele ainda ali se avista, 147

os que depois a ergueram novamente


sobre o que Átila deixou em brasa
teriam trabalhado inutilmente. 150

E forca a mim me z de minha casa”.


Non era ancor di là Nesso arrivato,
quando noi ci mettemmo per un bosco
che da neun sentiero era segnato. 3

Non fronda verde, ma di color fosco;


non rami schietti, ma nodosi e nvolti;
non pomi v eran, ma stecchi con tòsco. 6

Non han sì aspri sterpi né sì folti


quelle ere selvagge che n odio hanno
tra Cecina e Corneto i luoghi cólti. 9

uivi le brutte Arpie lor nidi fanno,


che cacciar de le Strofade i Troiani
con tristo annunzio di futuro danno. 12

Ali hanno late, e colli e visi umani,


piè con artigli, e pennuto l gran ventre;
fanno lamenti in su li alberi strani. 15

E l buon maestro “Prima che più entre,


sappi che se nel secondo girone”,
mi cominciò a dire, “e sarai mentre 18

che tu verrai ne l orribil sabbione.


Però riguarda ben; sì vederai
cose che torrien fede al mio sermone”. 21
Io sentia d ogne parte trarre guai
e non vedea persona che l facesse;
per ch io tutto smarrito m arrestai. 24

Cred ïo ch ei credette ch io credesse


che tante voci uscisser, tra quei bronchi,
da gente che per noi si nascondesse. 27

Però disse l maestro: “Se tu tronchi


qualche fraschetta d una d este piante,
li pensier c hai si faran tutti monchi”. 30

Allor porsi la mano un poco avante


e colsi un ramicel da un gran pruno;
e l tronco suo gridò: “Perché mi schiante?”. 33

Da che fatto fu poi di sangue bruno,


ricominciò a dir: “Perché mi scerpi?
non hai tu spirto di pietade alcuno? 36

Uomini fummo, e or siam fatti sterpi:


ben dovrebb esser la tua man più pia,
se state fossimo anime di serpi”. 39

Come d un stizzo verde ch arso sia


da l un de capi, che da l altro geme
e cigola per vento che va via, 42

sì de la scheggia rotta usciva insieme


parole e sangue; ond io lasciai la cima
cadere, e stetti come l uom che teme. 45

“S elli avesse potuto creder prima”,


rispuose l savio mio, “anima lesa,
ciò c ha veduto pur con la mia rima, 48

non averebbe in te la man distesa;


ma la cosa incredibile mi fece
indurlo ad ovra ch a me stesso pesa. 51

Ma dilli chi tu fosti, sì che n vece


d alcun ammenda tua fama rinfreschi
nel mondo sù, dove tornar li lece”. 54

E l tronco: “Sì col dolce dir m adeschi,


ch i non posso tacere; e voi non gravi
perch ïo un poco a ragionar m inveschi. 57

Io son colui che tenni ambo le chiavi


del cor di Federigo, e che le volsi,
serrando e diserrando, sì soavi, 60

che dal secreto suo quasi ogn uom tolsi;


fede portai al glorïoso offizio,
tanto ch i ne perde li sonni e ’ polsi. 63

La meretrice che mai da l ospizio


di Cesare non torse li occhi putti,
morte comune e de le corti vizio, 66

in ammò contra me li animi tutti;


e li n ammati in ammar sì Augusto,
che ’ lieti onor tornaro in tristi lutti. 69

L animo mio, per disdegnoso gusto,


credendo col morir fuggir disdegno,
ingiusto fece me contra me giusto. 72

Per le nove radici d esto legno


vi giuro che già mai non ruppi fede
al mio segnor, che fu d onor sì degno. 75

E se di voi alcun nel mondo riede,


conforti la memoria mia, che giace
ancor del colpo che nvidia le diede”. 78

Un poco attese, e poi “Da ch el si tace”,


disse l poeta a me, “non perder l ora;
ma parla, e chiedi a lui, se più ti piace”. 81

Ond ïo a lui: “Domandal tu ancora


di quel che credi ch a me satisfaccia;
ch i non potrei, tanta pietà m accora”. 84

Perciò ricominciò: “Se l om ti faccia


liberamente ciò che l tuo dir priega,
spirito incarcerato, ancor ti piaccia 87

di dirne come l anima si lega


in questi nocchi; e dinne, se tu puoi,
s alcuna mai di tai membra si spiega”. 90

Allor soffiò il tronco forte, e poi


si convertì quel vento in cotal voce:
“Brievemente sarà risposto a voi. 93

uando si parte l anima feroce


dal corpo ond ella stessa s è disvelta,
Minòs la manda a la settima foce. 96

Cade in la selva, e non l è parte scelta;


ma là dove fortuna la balestra,
quivi germoglia come gran di spelta. 99

Surge in vermena e in pianta silvestra:


l Arpie, pascendo poi de le sue foglie,
fanno dolore, e al dolor fenestra. 102

Come l altre verrem per nostre spoglie,


ma non però ch alcuna sen rivesta,
ché non è giusto aver ciò ch om si toglie. 105
ui le strascineremo, e per la mesta
selva saranno i nostri corpi appesi,
ciascuno al prun de l ombra sua molesta”. 108

Noi eravamo ancora al tronco attesi,


credendo ch altro ne volesse dire,
quando noi fummo d un romor sorpresi, 111

similemente a colui che venire


sente l porco e la caccia a la sua posta,
ch ode le bestie, e le frasche stormire. 114

Ed ecco due da la sinistra costa,


nudi e graffiati, fuggendo sì forte,
che de la selva rompieno ogne rosta. 117

uel dinanzi: “Or accorri, accorri, morte!”.


E l altro, cui pareva tardar troppo,
gridava: “Lano, sì non furo accorte 120

le gambe tue a le giostre dal Toppo!”.


E poi che forse li fallia la lena,
di sé e d un cespuglio fece un groppo. 123

Di rietro a loro era la selva piena


di nere cagne, bramose e correnti
come veltri ch uscisser di catena. 126

In quel che s appiattò miser li denti,


e quel dilaceraro a brano a brano;
poi sen portar quelle membra dolenti. 129

Presemi allor la mia scorta per mano,


e menommi al cespuglio che piangea
per le rotture sanguinenti in vano. 132

“O Iacopo”, dicea, “da Santo Andrea,


che t è giovato di me fare schermo?
che colpa ho io de la tua vita rea?”. 135

uando l maestro fu sovr esso fermo,


disse: “Chi fosti, che per tante punte
soffi con sangue doloroso sermo?”. 138

Ed elli a noi: “O anime che giunte


siete a veder lo strazio disonesto
c ha le mie fronde sì da me disgiunte, 141

raccoglietele al piè del tristo cesto.


I fui de la città che nel Batista
mutò l primo padrone; ond ei per questo 144

sempre con l arte sua la farà trista;


e se non fosse che n sul passo d Arno
rimane ancor di lui alcuna vista, 147

que cittadin che poi la rifondarno


sovra l cener che d Attila rimase,
avrebber fatto lavorare indarno. 150

Io fei gibetto a me de le mie case”.


Canto XIV
Dante e Virgílio passam do segundo ao terceiro nível e chegam a um terreno
arenoso e não cultivado, como o que Catão de Útica pisara no norte da África.
Sobre esse “areão” cai incessante chuva de fogo. O grupo maior (“gente […] mais
difundida”) é o dos sodomitas; os outros são os usurários, sentados, e os
blasfemos, deitados de costas no chão. As almas em constante movimento,
buscando refúgio da chuva de fogo, lembram o exército de Alexandre Magno
durante uma expedição militar na Índia [1-42]. Dante se impressiona com uma
gura corpulenta que estava ali como quem “não liga e cínico jaz torto” e
pergunta a Virgílio de quem se trata. uem responde é a própria alma de
Capaneu, um dos sete reis que assediaram Tebas para tirá-la do poder de Etéocles.
Enquanto lutava junto às muralhas de Tebas, Capaneu desa ou Júpiter, e por isso
foi fulminado pelo deus. Mas Capaneu mantém sua soberba: mesmo que Jove
atirasse contra ele os raios fornecidos por Vulcano (“o fabro portentoso”) e pelos
Ciclopes (“os outros”), forjados em Mongibelo (nome medieval do vulcão Etna),
como quando ocorreu na batalha de Flegra, ainda assim o deus não teria sua
vingança [43-72]. Os poetas chegam ao rio Flegetonte, comparado, pelas bolhas
ferventes que dele saem, ao Bulicame, uma nascente de água sulfúrea ao norte da
cidade de Viterbo [73-93]. Virgílio explica a origem dos rios infernais. Na ilha de
Creta está o monte Ida, onde Reia escondeu seu lho Júpiter do pai Saturno para
que este não o devorasse, como fazia com todos os lhos, pois temia a profecia
segundo a qual um deles lhe tiraria o trono. Para que o pai não ouvisse o choro do
bebê, Reia ordenava que os Coribantes, seus seguidores, zessem barulho de
armas, cantos e instrumentos. Nessa montanha está o Velho de Creta, inspirado
na narração do profeta Daniel sobre o sonho de Nabucodonosor. Das lágrimas do
Velho provêm os rios do inferno: Aqueronte, Estige e Flegetonte, cujos cursos
formam, mais abaixo, o lago Cocito, pelo qual Dante ainda irá passar em sua
viagem [94-120]. O poeta quer saber do Flegetonte e do Lete, ao que Virgílio
responde que o primeiro está diante dos olhos deles a soltar “bolha d’água rubra”,
e o segundo Dante verá no purgatório (“lá onde vão as almas se lavar”) [121-142].
Depois que o amor por meu país contudo
me tocou, juntos os ramos destarte
restituí a ele, agora mudo. 3

Então viemos aonde se reparte


o arco segundo do terceiro, e onde
da justiça se vê horrível arte. 6

Posto que novidade não se esconde,


digo que nós chegamos a uma landa
que afasta de seu leito toda fronde. 9

A dolorosa selva é uma guirlanda


em torno, como triste fosso a essa;
paramos no limite da outra banda. 12

O solo era uma areia seca e espessa,


não diferente da que no passado
já pelos pés de Catão foi compressa. 15

Ó vingança de Deus, quão aterrado


por ti deve car quem lê, bem sei,
o que a meus olhos foi então mostrado! 18

Vi de almas nuas tal e tanta grei


a chorar, toda assaz miseramente,
que se notava ali diversa lei. 21
Jazia no chão supina alguma gente,
uma outra se sentava contraída
e um bando andava continüamente. 24

A que ia ao redor, mais difundida;


menor a que jazia no tormento,
mas tinha à dor a língua mais comprida. 27

Sobre todo o areão, num cair lento,


choviam de fogo faixas dilatadas,
tal como a neve em vastidões sem vento. 30

ual Alexandre em zonas abrasadas


d’Índia viu sobre sua guarnição
chamas caindo à terra, em rajadas, 33

ao que ordenou pisado fosse o chão


por suas tropas, a m de que o vapor
mais se extinguisse por isolação: 36

assim descia aquele eterno ardor,


donde a areia acendia-se, qual palha
sob o fuzil, a duplicar a dor. 39

A dança das a itas mãos chacoalha


sem parar nunca, ora aqui ora ali
afastando de si a fresca fornalha. 42

E eu: “Mestre, que vences tudo aqui,


a não ser os demônios inclementes
que à entrada vieram como eu vi, 45

quem é aquele grande que aos frequentes


fogos não liga e cínico jaz torto
como se não sentisse as chuvas quentes?”. 48

E ele, notando que meu guia exorto


a me dizer quem é o desdenhoso,
gritou: “ ual eu fui vivo, tal sou morto. 51

Se Jove exaure o fabro portentoso


de quem pegara aquela luz aguda
com que ao nal me golpeou, raivoso; 54

ou se ele exaure os outros e a vez muda


em Mongibelo junto à forja negra,
chamando ‘Bom Vulcano, ajuda, ajuda!’, 57

tal como fez na batalha de Flegra,


e echa a mim com sua mão mais forte;
vingança já não tem, nem mais lhe alegra”. 60

Então o guia meu falou tão forte,


como eu ainda não o havia ouvido:
“Ó Capaneu, se não conténs na morte 63

a tua soberba, tanto és mais punido;


nenhum tormento, afora tua ira,
a teu furor seria mais cabido”. 66

Depois, atenuado a mim se vira


e diz: “Eis um dos sete grãos monarcas
do cerco contra Tebas, que sentira 69

por Deus desdém e ainda estimas parcas;


mas, conforme eu lhe disse, seus desprezos
são a seu peito apropriadas marcas. 72

Ora me segue e guarda os pés ilesos,


sem os tocar na areia em brasa viva;
mas sempre ao bosque tem os pés bem presos”. 75

Mudos viemos aonde da arbustiva


selva brota um riacho pequenino,
cujo rubor o medo inda me aviva. 78

ual sai do Bulicame arroio no


que partilham depois as pecadoras,
tal pela areia ele ia paulatino. 81

O fundo seu, com ambas as escoras,


feito era em pedra, tal como a beirada;
e ali notei as margens protetoras. 84

“Daquilo tudo que mostrei-te, nada,


depois que nós entramos pela porta
cuja soleira a ninguém é negada, 87

é mais notável à tua vista absorta


do que a paisagem do presente rio,
que sobre si toda fagulha aborta”. 90

Estas frases meu guia proferiu;


e assim pedi-lhe me servisse o pasto
cujo desejo antes me incutiu. 93

“Em meio ao mar se assenta um local gasto”,


disse ele então, “denominado Creta,
que teve um rei que fez o mundo casto. 96

Uma montanha há que foi repleta


de água e de frondes, que Ida se chamou;
ora é deserta, velha e incompleta. 99

Reia outrora seu lho aconchegou


ali e, para esconder bem o fedelho
choroso, que gritassem ordenou. 102

Dentro do monte se ergue um grande velho


que as costas tem viradas pro Levante
e Roma avista como seu espelho. 105
A cabeça é de no ouro brilhante,
de pura prata os braços mais o peito,
de cobre até a virilha é o restante; 108

daí pra baixo é todo ferro feito,


salvo o pé destro, que é de terracota;
e neste, mais que no outro, está direito. 111

Cada parte, excluindo o ouro, é rota


de uma fenda que lágrimas goteja,
as quais, colhidas, vão furando a grota. 114

Seu curso neste vale se despeja:


faz Aqueronte, Estige e Flegetonta;
depois descem por sulco que bordeja 117

até lá onde encontra sua ponta


e faz Cocito; e o que é este aguaçal
tu hás de ver, pois ora não se conta”. 120

E eu: “Se esta corrente uvial


descende assim de lá do nosso mundo,
por que aparece a nós neste beiral?”. 123

“Tu sabes”, disse a mim, “como é rotundo


o posto e, embora tanto o percorreste,
sempre à esquerda, mais baixando ao fundo, 126

a volta toda ainda tu não deste;


por isso, se algo novo te aparece,
a maravilha assim não te moleste”. 129

E eu ainda: “Mestre, onde está esse


Flegetonta, e o Lete? De um te calas,
e do outro dizes que esta chuva tece”. 132

“Agradam-me as questões que tu assinalas”,


me fez, “e a bolha d’água rubra prova
que está explicada uma de que falas. 135

Lete verás, mas fora desta cova,


lá onde vão as almas se lavar
té que a culpa expiada se remova”. 138

Depois falou: “É tempo de deixar


o bosque; segue-me, o dever me chama:
as margens dão caminho sem queimar, 141

e sobre elas se apaga toda chama”.


Poi che la carità del natio loco
mi strinse, raunai le fronde sparte
e rende le a colui, ch era già oco. 3

Indi venimmo al ne ove si parte


lo secondo giron dal terzo, e dove
si vede di giustizia orribil arte. 6

A ben manifestar le cose nove,


dico che arrivammo ad una landa
che dal suo letto ogne pianta rimove. 9

La dolorosa selva l è ghirlanda


intorno, come l fosso tristo ad essa;
quivi fermammo i passi a randa a randa. 12

Lo spazzo era una rena arida e spessa,


non d altra foggia fatta che colei
che fu da piè di Caton già soppressa. 15

O vendetta di Dio, quanto tu dei


esser temuta da ciascun che legge
ciò che fu manifesto a li occhi mei! 18

D anime nude vidi molte gregge


che piangean tutte assai miseramente,
e parea posta lor diversa legge. 21
Supin giacea in terra alcuna gente,
alcuna si sedea tutta raccolta,
e altra andava continüamente. 24

uella che giva ntorno era più molta,


e quella men che giacëa al tormento,
ma più al duolo avea la lingua sciolta. 27

Sovra tutto l sabbion, d un cader lento,


piovean di foco dilatate falde,
come di neve in alpe sanza vento. 30

uali Alessandro in quelle parti calde


d Indïa vide sopra l süo stuolo
amme cadere in no a terra salde, 33

per ch ei provide a scalpitar lo suolo


con le sue schiere, acciò che lo vapore
mei si stingueva mentre ch era solo: 36

tale scendeva l etternale ardore;


onde la rena s accendea, com esca
sotto focile, a doppiar lo dolore. 39

Sanza riposo mai era la tresca


de le misere mani, or quindi or quinci
escotendo da sé l arsura fresca. 42

I cominciai: “Maestro, tu che vinci


tutte le cose, fuor che ’ demon duri
ch a l intrar de la porta incontra uscinci, 45

chi è quel grande che non par che curi


lo ncendio e giace dispettoso e torto,
sì che la pioggia non par che l marturi?”. 48

E quel medesmo, che si fu accorto


ch io domandava il mio duca di lui,
gridò: “ ual io fui vivo, tal son morto. 51

Se Giove stanchi l suo fabbro da cui


crucciato prese la folgore aguta
onde l ultimo dì percosso fui; 54

o s elli stanchi li altri a muta a muta


in Mongibello a la focina negra,
chiamando ‘Buon Vulcano, aiuta, aiuta! , 57

sì com el fece a la pugna di Flegra,


e me saetti con tutta sua forza:
non ne potrebbe aver vendetta allegra”. 60

Allora il duca mio parlò di forza


tanto, ch i non l avea sì forte udito:
“O Capaneo, in ciò che non s ammorza 63

la tua superbia, se tu più punito;


nullo martiro, fuor che la tua rabbia,
sarebbe al tuo furor dolor compito”. 66

Poi si rivolse a me con miglior labbia,


dicendo: “ uei fu l un d i sette regi
ch assiser Tebe; ed ebbe e par ch elli abbia 69

Dio in disdegno, e poco par che l pregi;


ma, com io dissi lui, li suoi dispetti
sono al suo petto assai debiti fregi. 72

Or mi vien dietro, e guarda che non metti,


ancor, li piedi ne la rena arsiccia;
ma sempre al bosco tien li piedi stretti”. 75

Tacendo divenimmo là ve spiccia


fuor de la selva un picciol umicello,
lo cui rossore ancor mi raccapriccia. 78

uale del Bulicame esce ruscello


che parton poi tra lor le peccatrici,
tal per la rena giù sen giva quello. 81

Lo fondo suo e ambo le pendici


fatt era n pietra, e ’ margini dallato;
per ch io m accorsi che l passo era lici. 84

“Tra tutto l altro ch i t ho dimostrato,


poscia che noi intrammo per la porta
lo cui sogliare a nessuno è negato, 87

cosa non fu da li tuoi occhi scorta


notabile com è l presente rio,
che sovra sé tutte ammelle ammorta”. 90

ueste parole fuor del duca mio;


per ch io l pregai che mi largisse l pasto
di cui largito m avëa il disio. 93

“In mezzo mar siede un paese guasto”,


diss elli allora, “che s appella Creta,
sotto l cui rege fu già l mondo casto. 96

Una montagna v è che già fu lieta


d acqua e di fronde, che si chiamò Ida;
or è diserta come cosa vieta. 99

Rëa la scelse già per cuna da


del suo gliuolo, e per celarlo meglio,
quando piangea, vi facea far le grida. 102

Dentro dal monte sta dritto un gran veglio,


che tien volte le spalle inver Dammiata
e Roma guarda come süo speglio. 105
La sua testa è di n oro formata,
e puro argento son le braccia e l petto,
poi è di rame in no a la forcata; 108

da indi in giuso è tutto ferro eletto,


salvo che l destro piede è terra cotta;
e sta n su quel, più che n su l altro, eretto. 111

Ciascuna parte, fuor che l oro, è rotta


d una fessura che lagrime goccia,
le quali, accolte, fóran quella grotta. 114

Lor corso in questa valle si diroccia;


fanno Acheronte, Stige e Flegetonta;
poi sen van giù per questa stretta doccia, 117

in n, là ove più non si dismonta,


fanno Cocito; e qual sia quello stagno
tu lo vedrai, però qui non si conta”. 120

E io a lui: “Se l presente rigagno


si diriva così dal nostro mondo,
perché ci appar pur a questo vivagno?”. 123

Ed elli a me: “Tu sai che l loco è tondo;


e tutto che tu sie venuto molto,
pur a sinistra, giù calando al fondo, 126

non se ancor per tutto l cerchio vòlto;


per che, se cosa n apparisce nova,
non de addur maraviglia al tuo volto”. 129

E io ancor: “Maestro, ove si trova


Flegetonta e Letè? ché de l un taci,
e l altro di che si fa d esta piova”. 132

“In tutte tue question certo mi piaci”,


rispuose, “ma l bollor de l acqua rossa
dovea ben solver l una che tu faci. 135

Letè vedrai, ma fuor di questa fossa,


là dove vanno l anime a lavarsi
quando la colpa pentuta è rimossa”. 138

Poi disse: “Omai è tempo da scostarsi


dal bosco; fa che di retro a me vegne:
li margini fan via, che non son arsi, 141

e sopra loro ogne vapor si spegne”.


Canto XV
Ainda no mesmo círculo, o poeta descreve o caminho ao longo das margens de
pedra entre a água e o areão, servindo-se de comparações com cidades e regiões
que usam o sistema de diques: Wissant, Bruges e os arredores de Pádua (indicada
pelo rio Brenta, alagável pelo derretimento das geleiras dos Alpes na região da
Caríntia [“Carentana”]) [1-12]. Dante e Virgílio encontram um grupo de violentos
contra a natureza (sodomitas) [13-21]. Surge dentre eles a alma de Brunetto Latini
(c. 1220-c. 1294), mestre de Dante em sua juventude, com quem o poeta dialoga
ao longo deste canto. Sua conversa pode ser dividida em três partes. Na primeira,
após os dois se reconhecerem, Brunetto quer saber por qual motivo Dante estava
caminhando vivo pelo inferno, ao que o poeta resume dizendo que havia se
perdido um dia antes e agora era reconduzido a casa por aquele que o
acompanhava, sem dizer o nome de Virgílio [22-54]; na seguinte, Brunetto faz a
segunda profecia do poema sobre o exílio de Dante, que a rma estar preparado
para o que a Fortuna lhe trouxer, apesar dos inimigos que ainda trazem a marca
selvagem da origem esolana (“monte e rocha”) [55-99]; na terceira, Dante pede
que Brunetto indique alguns dos espíritos ali. O mestre menciona então três
sodomitas: 1. Prisciano de Cesareia, gramático latino dos séculos v e vi d.C.; 2.
Francesco d’Accorso (1225-93), bolonhês que lecionou nas Universidades de
Bolonha e de Oxford; e 3. Andrea de’ Mozzi (?-1296), orentino, bispo de
Florença em 1287, que foi transferido por Bonifácio viii (“servo dos servos”) de
Florença a Vicenza, aqui nomeadas por seus respectivos rios Arno e Bacchiglione
[100-118]. Antes de se separarem, Brunetto con a a Dante sua obra principal, o
Tesouro. Por m, o poeta faz uma comparação entre Brunetto, que se afasta
velozmente, e os corredores que disputam o estandarte (“pálio”) em Verona [119-
124].
Ora nos leva uma das duras margens;
o fumo do riacho sobe rente
e assim do fogo salva água e barragens. 3

Como entre Wissant e Bruges toda a gente,


temendo o uxo inverso que rebenta,
constrói o dique contra essa corrente; 6

e como os paduanos pelo Brenta,


pra defender suas vilas e castelos,
quando o verão a Carentana esquenta: 9

assim aqui os tinha por modelos,


embora nem tão altos nem tão grossos,
quem quer que fosse, tal o mestre fê-los. 12

Da selva havíamos os passos nossos


tanto avançado, que eu não mais a achava,
por mais que eu me voltasse sobre os fossos, 15

quando um conjunto de almas que passava


encontramos na margem, e cada ˜ua
olhava a nós como à noite se grava 18

a gura de alguém sob nova lua;


e xo nos miravam em vigília
como o velho alfaiate atento atua. 21
Fitado assim por essa tal família,
notou-me alguém, que a barra de meu manto
agarrou e gritou: “ ue maravilha!”. 24

E eu, quando estendeu seu braço um tanto,


xei os olhos no queimado aspecto,
e o rosto em brasa não impediu no entanto 27

seu reconhecimento a meu intelecto;


e até sua face minha mão baixando,
falei: “Mas está aqui, senhor Brunetto?”. 30

E ele: “Ó meu lho, não te seja infando


se Brunetto Latini um pouco for
atrás contigo e se afastar do bando”. 33

Eu respondi: “Mas claro, por favor;


e se quiser que eu me detenha, diga,
se for do agrado deste protetor”. 36

“Ó lho”, disse, “se nesta fadiga


um para um pouco, jaz depois cem anos
sem se escudar do fogo que o castiga. 39

Então avança: eu seguirei teus panos,


depois alcançarei minha manada,
que vai chorando seus eternos danos”. 42

Eu não ousava me arriar da estrada


e andar com ele; mas a fronte inclino
como quem vai com gente respeitada. 45

E começou: “ ual fortuna ou destino


te traz antes da morte a esta arena?
E quem é que te mostra esse caminho?”. 48

“Lá em cima ainda, na vida serena”,


falei, “numa vereda eu me perdi,
antes que minha idade fosse plena. 51

Ontem no alvor as costas lhe volvi:


este surgiu quando eu voltava a ela
e me conduz pra casa por aqui”. 54

E ele a mim: “Se tu segues tua estrela,


não tens como falhar glorioso porto,
se bem me apercebi na vida bela; 57

e se eu não estivesse há tempo morto,


a ver o céu a ti tanto benigno,
teria dado à obra tua conforto. 60

Porém o povo ingrato, vil, maligno


que desceu de Fiésole ab antigo,
e monte e rocha ainda têm qual signo, 63

por bem agires te será inimigo;


e com razão, porque entre a rama ardida
fruti car não pode o doce go. 66

Cegos os chama velha fama em vida;


é gente avara, invejosa e arrogante:
ao seu costume não lhe dês guarida. 69

Tua sorte tanta honra te garante,


que os dois partidos hão de ter ciúme;
mas do bode estará a erva distante. 72

E o gado esolano então consume


seu próprio m, e não toque na planta,
se alguma inda surgir em seu estrume, 75

em que reviva o germe e a seiva santa


dos romanos xados na cidade
quando o ninho se fez de insídia tanta”. 78

Ao que eu lhe disse: “Se minha vontade


fosse feita, o senhor não estaria
banido assim de toda humanidade; 81

pois xa tenho em mente, e ora angustia,


a cara e boa imagem tão paterna
de si quando no mundo dia a dia 84

ensinava-me como o ser se eterna:


e enquanto eu vivo, quanto lhe sou grato
seguramente minha língua externa. 87

Escrevo de meu curso seu relato


e o guardo, pra glosar com outro texto,
à dama de saber, se a vir de fato. 90

Só quero que lhe seja manifesto,


se a minha consciência não me barra,
que estou pronto à Fortuna e não contesto. 93

Novidade não é o que me narra:


que a Fortuna sua roda gire então
como quiser, e o camponês sua marra”. 96

Meu mestre logo em minha direção


se virou e à direita me tou;
disse: “Ouve bem quem nota co atenção”. 99

No entanto mesmo assim falando vou


com Brunetto indagando ainda quem
está consigo e na vida brilhou. 102

E me falou: “Saber de alguns é um bem;


dos outros é louvável car quieto,
pois tempo para prosa não se tem. 105
En m, de padres o arco está repleto,
de grandes literatos de grã fama,
no mundo sujos dum pecado abjeto. 108

Prisciano vai coa turba que se enlama,


e Francesco d’Accorso; mas dizer-vos,
se tu quisesses ver da tinha o drama, 111

podia de quem pelo servo dos servos


do Arno até o Bacchiglione foi levado,
onde deixou os mal inchados nervos. 114

Diria mais; porém, não nos é dado


mais vir e conversar, pois eu já vejo
lá do areão mais fumo levantado. 117

Não devo estar com o novo cortejo.


ue em meu Tesouro sempre te aconselhes:
nele inda vivo e mais eu não desejo”. 120

Depois se foi, e pareceu daqueles


que correm em Verona o pálio verde
pela campina; e pareceu dentre eles 123

o que sai vencedor, não o que perde.


Ora cen porta l un de duri margini;
e l fummo del ruscel di sopra aduggia,
sì che dal foco salva l acqua e li argini. 3

uali Fiamminghi tra Guizzante e Bruggia,


temendo l otto che nver lor s avventa,
fanno lo schermo perché l mar si fuggia; 6

e quali Padoan lungo la Brenta,


per difender lor ville e lor castelli,
anzi che Carentana il caldo senta: 9

a tale imagine eran fatti quelli,


tutto che né sì alti né sì grossi,
qual che si fosse, lo maestro félli. 12

Già eravam da la selva rimossi


tanto, ch i non avrei visto dov era,
perch io in dietro rivolto mi fossi, 15

quando incontrammo d anime una schiera


che venian lungo l argine, e ciascuna
ci riguardava come suol da sera 18

guardare uno altro sotto nuova luna;


e sì ver noi aguzzavan le ciglia
come l vecchio sartor fa ne la cruna. 21
Così adocchiato da cotal famiglia,
fui conosciuto da un, che mi prese
per lo lembo e gridò: “ ual maraviglia!”. 24

E io, quando l suo braccio a me distese,


ccaï li occhi per lo cotto aspetto,
sì che l viso abbrusciato non difese 27

la conoscenza süa al mio ntelletto;


e chinando la mano a la sua faccia,
rispuosi: “Siete voi qui, ser Brunetto?”. 30

E quelli: “O gliuol mio, non ti dispiaccia


se Brunetto Latino un poco teco
ritorna n dietro e lascia andar la traccia”. 33

I dissi lui: “ uanto posso, ven preco;


e se volete che con voi m asseggia,
faròl, se piace a costui che vo seco”. 36

“O gliuol”, disse, “qual di questa greggia


s arresta punto, giace poi cent anni
sanz arrostarsi quando l foco il feggia. 39

Però va oltre: i ti verrò a panni;


e poi rigiugnerò la mia masnada,
che va piangendo i suoi etterni danni”. 42

Io non osava scender de la strada


per andar par di lui; ma l capo chino
tenea com uom che reverente vada. 45

El cominciò: “ ual fortuna o destino


anzi l ultimo dì qua giù ti mena?
e chi è questi che mostra l cammino?”. 48

“Là sù di sopra, in la vita serena”,


rispuos io lui, “mi smarri in una valle,
avanti che l età mia fosse piena. 51

Pur ier mattina le volsi le spalle:


questi m apparve, tornand ïo in quella,
e reducemi a ca per questo calle”. 54

Ed elli a me: “Se tu segui tua stella,


non puoi fallire a glorïoso porto,
se ben m accorsi ne la vita bella; 57

e s io non fossi sì per tempo morto,


veggendo il cielo a te così benigno,
dato t avrei a l opera conforto. 60

Ma quello ingrato popolo maligno


che discese di Fiesole ab antico,
e tiene ancor del monte e del macigno, 63

ti si farà, per tuo ben far, nimico;


ed è ragion, ché tra li lazzi sorbi
si disconvien fruttare al dolce co. 66

Vecchia fama nel mondo li chiama orbi;


gent è avara, invidiosa e superba:
dai lor costumi fa che tu ti forbi. 69

La tua fortuna tanto onor ti serba,


che l una parte e l altra avranno fame
di te; ma lungi a dal becco l erba. 72

Faccian le bestie esolane strame


di lor medesme, e non tocchin la pianta,
s alcuna surge ancora in lor letame, 75

in cui riviva la sementa santa


di que Roman che vi rimaser quando
fu fatto il nido di malizia tanta”. 78

“Se fosse tutto pieno il mio dimando”,


rispuos io lui, “voi non sareste ancora
de l umana natura posto in bando; 81

ché n la mente m è tta, e or m accora,


la cara e buona imagine paterna
di voi quando nel mondo ad ora ad ora 84

m insegnavate come l uom s etterna:


e quant io l abbia in grado, mentr io vivo
convien che ne la mia lingua si scerna. 87

Ciò che narrate di mio corso scrivo,


e serbolo a chiosar con altro testo
a donna che saprà, s a lei arrivo. 90

Tanto vogl io che vi sia manifesto,


pur che mia coscïenza non mi garra,
ch a la Fortuna, come vuol, son presto. 93

Non è nuova a li orecchi miei tal arra:


però giri Fortuna la sua rota
come le piace, e l villan la sua marra”. 96

Lo mio maestro allora in su la gota


destra si volse in dietro e riguardommi;
poi disse: “Bene ascolta chi la nota”. 99

Né per tanto di men parlando vommi


con ser Brunetto, e dimando chi sono
li suoi compagni più noti e più sommi. 102

Ed elli a me: “Saper d alcuno è buono;


de li altri a laudabile tacerci,
ché l tempo saria corto a tanto suono. 105
In somma sappi che tutti fur cherci
e litterati grandi e di gran fama,
d un peccato medesmo al mondo lerci. 108

Priscian sen va con quella turba grama,


e Francesco d Accorso anche; e vedervi,
s avessi avuto di tal tigna brama, 111

colui potei che dal servo de servi


fu trasmutato d Arno in Bacchiglione,
dove lasciò li mal protesi nervi. 114

Di più direi; ma l venire e l sermone


più lungo esser non può, però ch i veggio
là surger nuovo fummo del sabbione. 117

Gente vien con la quale esser non deggio.


Sieti raccomandato il mio Tesoro,
nel qual io vivo ancora, e più non cheggio”. 120

Poi si rivolse, e parve di coloro


che corrono a Verona il drappo verde
per la campagna; e parve di costoro 123

quelli che vince, non colui che perde.


Canto XVI
Dante e Virgílio continuam no terceiro nível do sétimo círculo, onde encontram
outro grupo de sodomitas. Três deles partem na direção dos poetas quando
percebem a presença de um vivo que, pelas vestimentas, demonstra ser orentino
como eles. Por não poderem parar, andam em círculos enquanto viram o pescoço
para trás [1-27]. Um deles, Iacopo Rusticucci (séc. xiii), passa a falar com Dante, a
quem apresenta os dois companheiros antes de se apresentar: Guido Guerra (c.
1220-72), neto de Gualdrada, famosa por seu caráter virtuoso, e Tegghiaio
Aldobrandi (?-c. 1267). Dante os reverencia por conhecer sua fama e se declara
um conterrâneo [28-63]. Iacopo, então, quer saber se em Florença ainda há cortesia
e valor, pois Guiglielmo Borsiere (séc. xiii), outro orentino, chegara havia pouco
ao inferno lamentando a decadência da cidade. Dante culpa “a gente nova” pela
ambição e pelo rápido enriquecimento. Os três pedem ao poeta que, quando
voltar ao mundo dos vivos, diga às pessoas que falem deles [64-90]. Virgílio e Dante
se aproximam da beira que dá para o círculo inferior, o oitavo, e então o poeta
orentino saca uma corda, de cuja existência até então não se sabia, e a dá a
Virgílio, que a arremessa ao “fundo do valão”. Dirigindo-se ao leitor e almejando
um longo acolhimento (“ampla graça”) à sua obra, Dante anuncia que dali há de
vir algo tão assustador, que até pode parecer mentira o que irá contar [91-136].
Já estava onde se ouvia o forte estrondo
d’água a cair no círculo de baixo
como abelhas que enxames vão compondo, 3

quando três sombras juntam-se num facho


partindo de uma turba que passava
sob a dolente chuva de fogacho. 6

Vinham a nós, e cada uma gritava:


“Detém-te tu que mostras pelo traje
ser cidadão de nossa terra prava”. 9

Ai, que chagas a lhes fazer ultraje,


novas e velhas, que o braseiro amplia!
Só de lembrar, a dor inda em mim age. 12

Meu doutor se deteve à gritaria;


virou o rosto a mim e, “Agora espera”,
disse, “convém aqui ter cortesia. 15

E se não fosse pela chama austera


deste lugar, eu te diria a pressa
melhor a ti que a eles já coubera”. 18

uando paramos, voltaram depressa


ao modo antigo; e ali ao nosso lado
os três de si zeram roda espessa. 21
Como costuma o lutador untado
e nu visar sua presa e sua vantagem
antes que o duelo seja então travado, 24

assim, rodando, os três sua visagem


a mim volviam, e ao revés do colo
os pés faziam sempre outra viagem. 27

E, “Se a miséria deste arisco solo


põe em desprezo a nós e a nossas preces”,
disse um, “e o rubro aspecto de tijolo, 30

a nossa fama tu restabeleces


se disseres quem és, que em vivos pés
tanto seguro o inferno reconheces. 33

Deste repiso os rastros como vês,


e embora nu, sem pelo e sem mais nada,
foi de posto maior que tu não crês: 36

um foi neto daquela boa Gualdrada;


Guido Guerra era o nome, e em sua vida
fez muito com juízo e com espada. 39

O outro, que atrás de mim segue sua lida,


é Tegghiaio Aldobrandi, cuja voz
no mundo deveria ser ouvida. 42

E eu, com eles posto em cruz atroz,


Iacopo Rusticucci fui, e certo
a esposa mais que tudo foi-me algoz”. 45

Se não houvesse fogo ali por perto,


logo entre eles eu teria ido,
e meu doutor o aceitaria decerto; 48

mas como eu caria seco e ardido,


o medo derrotou meu bom desejo
de abraçá-los, deixando-me impedido. 51

E comecei: “Não por desprezo arquejo,


mas pela dor que trouxe vosso olhar,
tanta que tarde dela me despejo, 54

tão logo meu senhor lançou ao ar


palavras pelas quais eu cogitei
que qual vós sois, tal gente ia chegar. 57

De vossa terra sou, e sempre olhei


vossos feitos e nomes mais que honrados
com afeição e assim os escutei. 60

Deixo o fel para ir aos doces prados


onde espero que o guia me introduza;
mas inda ao centro irei conforme os fados”. 63

“Assim por longo tempo a alma conduza


os membros teus”, me disse ali na hora,
“e tua fama depois de ti reluza; 66

diz se valor ou cortesia mora


inda em nossa cidade tão atenta,
ou se completamente foi-se embora, 69

pois Guglielmo Borsier, que se lamenta


há pouco e segue os outros nas tristezas,
muito do que nos diz nos atormenta”. 72

“A gente nova e as súbitas riquezas


orgulho e desmedida em ti geraram,
Florença, tal que o pranto não represas”. 75

Assim gritei, e os três se alvoroçaram


ao ouvir a resposta, que a verdade
lhes revelou, e como sói se olharam. 78

“Se noutras vezes tens tanta bondade


de outrem saciar”, o grupo respondeu,
“és feliz porque falas com vontade! 81

Oxalá sobrevivas a este breu


e tornes a rever belas estrelas;
gentes falem de nós no mundo teu, 84

quando disseres “Eu fui lá” entre elas.


A roda então romperam e a fugir
lembravam asas todas as canelas. 87

Um amém não daria pra exprimir,


pois sumido já haviam bem ligeiro;
por isso o mestre decidiu partir. 90

Fomos em frente, e sempre ele primeiro,


ao som d’água tão forte e cristalino,
que não nos ouviríamos por inteiro. 93

Como o rio a seguir o seu destino


vindo do Monte Viso pro levante,
da lateral esquerda do Apenino, 96

que se chama Acquacheta acima, ante


que desça o vale até o baixo leito,
e o nome muda de Forlì em diante, 99

retumba lá sobre San Benedetto


dell’Alpe pra cair em um declive
onde pra receber mais mil é feito; 102

assim, abaixo de uma riba aclive,


topamos com o som de uma água escura,
e por tão alto estrondo me detive. 105
Eu levava uma corda na cintura,
e com ela uma vez eu pretendi
o lince capturar de pele impura. 108

Depois que eu a soltei toda de mi,


para acatar do guia a sugestão,
a ele enrodilhada ofereci. 111

Voltou-se assim à sua direita mão,


e um pouco longe então daquela beira
a arremessou no fundo do valão. 114

“Alguma novidade já se abeira”,


eu pensava, “devido ao diferente
sinal que o mestre observa na ladeira”. 117

Ai, quanto a gente deve ser prudente


junto aos que não só miram o fazer,
mas dentro do pensar veem com a mente! 120

Ele me disse: “Logo há de se erguer


o que eu espero e que tua razão sonha;
dar-se logo à tua vista é seu dever”. 123

Verdade que mentira se suponha


deve ser omitida o mais possível,
porque mesmo a inocente traz vergonha; 126

mas me calar não posso; e no legível


desta comédia, eu, leitor, te juro
— que lhe seja ampla graça concebível — 129

que eu vi por sob aquele ar grosso e escuro


subir uma gura ali nadando,
assustadora mesmo ao cor seguro, 132

tal como volta ao barco um homem quando,


tendo ele ido soltar o que o arrima
que em algo estranho estava se enganchando, 135

coa perna dá impulso para cima.


Già era in loco onde s udia l rimbombo
de l acqua che cadea ne l altro giro,
simile a quel che l arnie fanno rombo, 3

quando tre ombre insieme si partiro,


correndo, d una torma che passava
sotto la pioggia de l aspro martiro. 6

Venian ver noi, e ciascuna gridava:


“Sòstati tu ch a l abito ne sembri
essere alcun di nostra terra prava”. 9

Ahimè, che piaghe vidi ne lor membri,


ricenti e vecchie, da le amme incese!
Ancor men duol pur ch i me ne rimembri. 12

A le lor grida il mio dottor s attese;


volse l viso ver me, e “Or aspetta”,
disse, “a costor si vuole esser cortese. 15

E se non fosse il foco che saetta


la natura del loco, i dicerei
che meglio stesse a te che a lor la fretta”. 18

Ricominciar, come noi restammo, ei


l antico verso; e quando a noi fuor giunti,
fenno una rota di sé tutti e trei. 21
ual sogliono i campion far nudi e unti,
avvisando lor presa e lor vantaggio,
prima che sien tra lor battuti e punti, 24

così rotando, ciascuno il visaggio


drizzava a me, sì che n contraro il collo
faceva ai piè continüo vïaggio. 27

E “Se miseria d esto loco sollo


rende in dispetto noi e nostri prieghi”,
cominciò l uno, “e l tinto aspetto e brollo, 30

la fama nostra il tuo animo pieghi


a dirne chi tu se , che i vivi piedi
così sicuro per lo nferno freghi. 33

uesti, l orme di cui pestar mi vedi,


tutto che nudo e dipelato vada,
fu di grado maggior che tu non credi: 36

nepote fu de la buona Gualdrada;


Guido Guerra ebbe nome, e in sua vita
fece col senno assai e con la spada. 39

L altro, ch appresso me la rena trita,


è Tegghiaio Aldobrandi, la cui voce
nel mondo sù dovria esser gradita. 42

E io, che posto son con loro in croce,


Iacopo Rusticucci fui, e certo
la era moglie più ch altro mi nuoce”. 45

S i fossi stato dal foco coperto,


gittato mi sarei tra lor di sotto,
e credo che l dottor l avria sofferto; 48

ma perch io mi sarei brusciato e cotto,


vinse paura la mia buona voglia
che di loro abbracciar mi facea ghiotto. 51

Poi cominciai: “Non dispetto, ma doglia


la vostra condizion dentro mi sse,
tanta che tardi tutta si dispoglia, 54

tosto che questo mio segnor mi disse


parole per le quali i mi pensai
che qual voi siete, tal gente venisse. 57

Di vostra terra sono, e sempre mai


l ovra di voi e li onorati nomi
con affezion ritrassi e ascoltai. 60

Lascio lo fele e vo per dolci pomi


promessi a me per lo verace duca;
ma n no al centro pria convien ch i tomi”. 63

“Se lungamente l anima conduca


le membra tue”, rispuose quelli ancora,
“e se la fama tua dopo te luca, 66

cortesia e valor dì se dimora


ne la nostra città sì come suole,
o se del tutto se n è gita fora; 69

ché Guiglielmo Borsiere, il qual si duole


con noi per poco e va là coi compagni,
assai ne cruccia con le sue parole”. 72

“La gente nuova e i sùbiti guadagni


orgoglio e dismisura han generata,
Fiorenza, in te, sì che tu già ten piagni”. 75

Così gridai con la faccia levata;


e i tre, che ciò inteser per risposta,
guardar l un l altro com al ver si guata. 78

“Se l altre volte sì poco ti costa”,


rispuoser tutti, “il satisfare altrui,
felice te se sì parli a tua posta! 81

Però, se campi d esti luoghi bui


e torni a riveder le belle stelle,
quando ti gioverà dicere ‘I fui , 84

fa che di noi a la gente favelle”.


Indi rupper la rota, e a fuggirsi
ali sembiar le gambe loro isnelle. 87

Un amen non saria possuto dirsi


tosto così com e fuoro spariti;
per ch al maestro parve di partirsi. 90

Io lo seguiva, e poco eravam iti,


che l suon de l acqua n era sì vicino,
che per parlar saremmo a pena uditi. 93

Come quel ume c ha proprio cammino


prima dal Monte Viso nver levante,
da la sinistra costa d Apennino, 96

che si chiama Acquacheta suso, avante


che si divalli giù nel basso letto,
e a Forlì di quel nome è vacante, 99

rimbomba là sovra San Benedetto


de l Alpe per cadere ad una scesa
ove dovea per mille esser recetto; 102

così, giù d una ripa discoscesa,


trovammo risonar quell acqua tinta,
sì che n poc ora avria l orecchia offesa. 105
Io avea una corda intorno cinta,
e con essa pensai alcuna volta
prender la lonza a la pelle dipinta. 108

Poscia ch io l ebbi tutta da me sciolta,


sì come l duca m avea comandato,
porsila a lui aggroppata e ravvolta. 111

Ond ei si volse inver lo destro lato,


e alquanto di lunge da la sponda
la gittò giuso in quell alto burrato. 114

“E pur convien che novità risponda”,


dicea fra me medesmo, “al novo cenno
che l maestro con l occhio sì seconda”. 117

Ahi quanto cauti li uomini esser dienno


presso a color che non veggion pur l ovra,
ma per entro i pensier miran col senno! 120

El disse a me: “Tosto verrà di sovra


ciò ch io attendo e che il tuo pensier sogna;
tosto convien ch al tuo viso si scovra”. 123

Sempre a quel ver c ha faccia di menzogna


de l uom chiuder le labbra n ch el puote,
però che sanza colpa fa vergogna; 126

ma qui tacer nol posso; e per le note


di questa comedìa, lettor, ti giuro,
s elle non sien di lunga grazia vòte, 129

ch i vidi per quell aere grosso e scuro


venir notando una gura in suso,
maravigliosa ad ogne cor sicuro, 132

sì come torna colui che va giuso


talora a solver l àncora ch aggrappa
o scoglio o altro che nel mare è chiuso, 135

che n sù si stende e da piè si rattrappa.


Canto XVII
Virgílio anuncia a chegada de Gerião, monstro que representa a fraude com rosto
humano e corpo de serpente sarapintado de “borrões nodosos”, em padrões nunca
antes feitos nem pelos “turcos” (célebres por seus nos tecidos), nem pela mítica
tecelã Aracne. A cauda de Gerião, semelhante à de um escorpião, ca no abismo,
enquanto a outra metade do corpo jaz no círculo onde estão os poetas. Virgílio
diz que ambos devem descer até o monstro [1-33]. Enquanto Virgílio vai falar com
Gerião, Dante, sozinho, observa outros danados do sétimo círculo. O poeta
orentino não reconhece nenhum deles, mas nota que cada um tinha uma bolsa
(“surrões”) pendurada no pescoço (a simbolizar a agiotagem), sobre as quais se
estampavam brasões de famílias. Dante menciona duas de sua cidade: os
Gian gliazzi, do partido guelfo, representados por um leão azul na bolsa amarela;
e os Obriachi, do partido gibelino, por um ganso branco na bolsa vermelha. Uma
outra bolsa representa os Scrovegni, família paduana, com a “porca azul e grossa”
sobre fundo branco [34-65]. O espírito que carregava esta última se dirige a Dante
revelando-lhe que nesta prisão (“tranca”) está reservado um lugar para Vitaliano
(da família del Dente), outro agiota de Pádua, e anunciando também a vinda de
mais um nobre orentino, identi cado pelo brasão da família dos Becchi
(“bodes”, em italiano) [66-75]. Dante volta para junto de Virgílio e o encontra
montado nas costas de Gerião. O guia incita o poeta orentino a ser “destemido”
e a subir na garupa do monstro. Dante compara seu medo ao de Faetonte ( lho
do Sol que ousou conduzir o carro do pai e acabou incendiando parte do céu) e
ao de Ícaro ( lho de Dédalo, que criou asas de cera com as quais Ícaro, apesar do
conselho paterno, voou alto demais no céu, o que o fez perder as penas devido ao
calor do Sol). O monstro deixa os dois poetas no oitavo círculo e parte [76-136].
“Eis a fera que tem a cauda em seta,
que os montes passa e rompe as amuradas!
Eis aquela que o mundo inteiro infeta!”. 3

Disse meu guia em frases ponderadas;


e fez que ela viesse à extremidade
onde ndam as rochas transitadas. 6

E aquela imagem sórdida de fraude


veio, e chegou coa testa e todo o busto,
mas de fora deixou a outra metade. 9

Sua face era face de homem justo,


os traços do contorno tão bondosos,
e de uma serpe o resto era robusto; 12

dois gadanhos mostravam-se pelosos;


os ancos com o dorso e o peito e as costas
tinha pintados de borrões nodosos. 15

Tantas cores abaixo e acima postas


nem nos panos dos turcos foram vistas,
nem nas telas por Aracne compostas. 18

Como os barcos ao pé das pala tas


que parte estão em água e parte em terra,
e como entre os tedescos trogloditas 21
o castor se prepara para a guerra,
assim aquela fera infausta estava
na borda que é de pedra e brita encerra. 24

No vão sua cauda toda encapelava,


torcendo acima a venenosa ponta
que como escorpião a pinça armava. 27

O mestre disse: “Agora já se apronta


o instante de mudarmos nossa via
até a besta má que lá reponta”. 30

À direita descemos eu e o guia


e dez passos nós demos na beirada,
passando ao largo do areal que ardia. 33

E quando a ela fomos e à baixada,


um pouco além eu vejo sobre a areia
gente perto do abismo ali sentada. 36

Então meu mestre: “A m de que na ideia


plena deste recinto tomes tento,
vai tu e vê a condição alheia. 39

Poupa lá tuas palavras e o alento;


até que voltes, falarei com essa,
que nos leve em seus ombros a contento”. 42

Assim, pela orla extrema da cabeça


desse sétimo círculo, eu a sós
andei onde sentava a gente opressa. 45

Seus olhos para as dores eram foz;


aqui e ali cobriam-se coa mão
ante as chamas e o solo quente após; 48

assim fazem os cães quando é verão


com fuça ou pata, ao ser aferroados
por pulgas, ou por moscas, ou tavão. 51

Depois que pus os olhos nos danados,


em quem o fogo cai assaz pungente,
nenhum reconheci; mas pendurados 54

notei surrões no colo dessa gente


que tinham certa cor, certo sinal,
como se ali seu olho se alimente. 57

E enquanto fui mirando cada qual,


vi algo azul numa bolsa amarela
à face e ao gesto de um leão igual. 60

Depois, movendo meu olhar daquela,


vi outra de cor rubra em que se esboça
o alvor de um ganso branco mais que vela. 63

E um com uma porca azul e grossa


estampada na sua sacola branca
me disse: “ ue tu fazes nesta fossa? 66

Vai-te; e porque estás vivo aqui na tranca,


sabe que meu vizinho Vitaliano
se sentará à minha esquerda franca. 69

Com estes orentinos sou paduano:


sempre me gritam para meu desgosto:
‘ ue venha o cavaleiro soberano, 72

na bolsa dos três bodes será exposto!’”.


Então torceu a boca e pôs pra fora
a língua, como boi que lambe o rosto. 75

E eu, temendo que minha demora


irritasse quem tinha me advertido,
daquelas almas lassas fui embora. 78

Vi que meu guia tinha já subido


na garupa do indômito animal,
e me falou: “Sê forte e destemido. 81

Ora desçamos degrau a degrau;


monta na frente, e eu co no meio,
para que a cauda não te faça mal”. 84

Como quem da quartã sente receio,


cujas unhas se tornam logo escuras
e só de a sombra ver tem devaneio, 87

assim quei ante as palavras duras;


mas vergonha senti das ameaças,
qual servo que ao senhor expõe bravuras. 90

Eu me sentei por cima das carcaças;


quis falar, mas a voz não me saiu
como eu pensei: “Por que tu não me abraças?”. 93

Mas ele, que outra vez me subtraiu


de outro apuro, tão logo eu lá subi,
me segurou e a si me contraiu; 96

e disse: “Gerião, parte daqui:


com giros largos, baixa devagar;
pensa no novo peso que há em ti”. 99

Como o barquinho sai de seu lugar


retrocedendo, assim de lá moveu;
e quando livre se sentiu pairar, 102

pra frente com a cauda se volveu


e partiu, como enguia que se estira,
e com as garras o ar a si colheu. 105
Maior medo não creio que sentira
Faetonte quando abandonara os freios,
pelo que o céu, como se vê, frigira; 108

nem quando Ícaro mísero os arreios


sentira depenar na quente cera,
gritando a ele o pai “Tens maus anseios!”, 111

do que o meu, quando vi que então eu era


levado no ar, e meu olhar se ausenta
de todo o resto, exceto desta fera. 114

Ela se vai nadando lenta, lenta;


roda e desce, porém eu não constato
senão que ao rosto e que de baixo venta. 117

Eu já ouvia à direita o boato


que se dava sob nós do rio de horror,
tal que os olhos pra baixo ali dilato. 120

Então eu de cair tive pavor,


porque eu pude ver fogos e ouvir prantos;
donde ao monstro me prendo com tremor. 123

E pude ver depois, pra mais espantos,


o descer e o girar por grandes males
que se acercavam de diversos cantos. 126

Como o falcão que muito voou por vales


e sem ter visto pássaro ou negaça
faz que o falcoeiro diga “Ai, já não vales!”, 129

lasso por onde veio lesto passa


rodando e longe faz sua descida
do mestre, desdenhoso e sem a caça; 132

assim, bem no sopé da rocha erguida


nos colocou no fundo Gerião
e, sendo nossa carga removida, 135

disparou como echa de cordão.


“Ecco la era con la coda aguzza,
che passa i monti e rompe i muri e l armi!
Ecco colei che tutto l mondo appuzza!”. 3

Sì cominciò lo mio duca a parlarmi;


e accennolle che venisse a proda,
vicino al n d i passeggiati marmi. 6

E quella sozza imagine di froda


sen venne, e arrivò la testa e l busto,
ma n su la riva non trasse la coda. 9

La faccia sua era faccia d uom giusto,


tanto benigna avea di fuor la pelle,
e d un serpente tutto l altro fusto; 12

due branche avea pilose insin l ascelle;


lo dosso e l petto e ambedue le coste
dipinti avea di nodi e di rotelle. 15

Con più color, sommesse e sovraposte


non fer mai drappi Tartari né Turchi,
né fuor tai tele per Aragne imposte. 18

Come talvolta stanno a riva i burchi,


che parte sono in acqua e parte in terra,
e come là tra li Tedeschi lurchi 21
lo bivero s assetta a far sua guerra,
così la era pessima si stava
su l orlo ch è di pietra e l sabbion serra. 24

Nel vano tutta sua coda guizzava,


torcendo in sù la venenosa forca
ch a guisa di scorpion la punta armava. 27

Lo duca disse: “Or convien che si torca


la nostra via un poco insino a quella
bestia malvagia che colà si corca”. 30

Però scendemmo a la destra mammella,


e diece passi femmo in su lo stremo,
per ben cessar la rena e la ammella. 33

E quando noi a lei venuti semo,


poco più oltre veggio in su la rena
gente seder propinqua al loco scemo. 36

uivi l maestro “Acciò che tutta piena


esperïenza d esto giron porti”,
mi disse, “va, e vedi la lor mena. 39

Li tuoi ragionamenti sian là corti;


mentre che torni, parlerò con questa,
che ne conceda i suoi omeri forti”. 42

Così ancor su per la strema testa


di quel settimo cerchio tutto solo
andai, dove sedea la gente mesta. 45

Per li occhi fora scoppiava lor duolo;


di qua, di là soccorrien con le mani
quando a vapori, e quando al caldo suolo: 48

non altrimenti fan di state i cani


or col ceffo or col piè, quando son morsi
o da pulci o da mosche o da tafani. 51

Poi che nel viso a certi li occhi porsi,


ne quali l doloroso foco casca,
non ne conobbi alcun; ma io m accorsi 54

che dal collo a ciascun pendea una tasca


ch avea certo colore e certo segno,
e quindi par che l loro occhio si pasca. 57

E com io riguardando tra lor vegno,


in una borsa gialla vidi azzurro
che d un leone avea faccia e contegno. 60

Poi, procedendo di mio sguardo il curro,


vidine un altra come sangue rossa,
mostrando un oca bianca più che burro. 63

E un che d una scrofa azzurra e grossa


segnato avea lo suo sacchetto bianco,
mi disse: “Che fai tu in questa fossa? 66

Or te ne va; e perché se vivo anco,


sappi che l mio vicin Vitalïano
sederà qui dal mio sinistro anco. 69

Con questi Fiorentin son padoano:


spesse fïate mi ntronan li orecchi
gridando: ‘Vegna l cavalier sovrano, 72

che recherà la tasca con tre becchi! ”.


ui distorse la bocca e di fuor trasse
la lingua, come bue che l naso lecchi. 75

E io, temendo no l più star crucciasse


lui che di poco star m avea mmonito,
torna mi in dietro da l anime lasse. 78

Trova il duca mio ch era salito


già su la groppa del ero animale,
e disse a me: “Or sie forte e ardito. 81

Omai si scende per sì fatte scale;


monta dinanzi, ch i voglio esser mezzo,
sì che la coda non possa far male”. 84

ual è colui che sì presso ha l riprezzo


de la quartana, c ha già l unghie smorte,
e triema tutto pur guardando l rezzo, 87

tal divenn io a le parole porte;


ma vergogna mi fé le sue minacce,
che innanzi a buon segnor fa servo forte. 90

I m assettai in su quelle spallacce;


sì volli dir, ma la voce non venne
com io credetti: “Fa che tu m abbracce”. 93

Ma esso, ch altra volta mi sovvenne


ad altro forse, tosto ch i montai
con le braccia m avvinse e mi sostenne; 96

e disse: “Gerïon, moviti omai:


le rote larghe, e lo scender sia poco;
pensa la nova soma che tu hai”. 99

Come la navicella esce di loco


in dietro in dietro, sì quindi si tolse;
e poi ch al tutto si sentì a gioco, 102

là v era l petto, la coda rivolse,


e quella tesa, come anguilla, mosse,
e con le branche l aere a sé raccolse. 105
Maggior paura non credo che fosse
quando Fetonte abbandonò li freni,
per che l ciel, come pare ancor, si cosse; 108

né quando Icaro misero le reni


sentì spennar per la scaldata cera,
gridando il padre a lui “Mala via tieni!”, 111

che fu la mia, quando vidi ch i era


ne l aere d ogne parte, e vidi spenta
ogne veduta fuor che de la fera. 114

Ella sen va notando lenta lenta;


rota e discende, ma non me n accorgo
se non che al viso e di sotto mi venta. 117

Io sentia già da la man destra il gorgo


far sotto noi un orribile scroscio,
per che con li occhi n giù la testa sporgo. 120

Allor fu io più timido a lo stoscio,


però ch i vidi fuochi e senti pianti;
ond io tremando tutto mi raccoscio. 123

E vidi poi, ché nol vedea davanti,


lo scendere e l girar per li gran mali
che s appressavan da diversi canti. 126

Come l falcon ch è stato assai su l ali,


che sanza veder logoro o uccello
fa dire al falconiere “Omè, tu cali!”, 129

discende lasso onde si move isnello,


per cento rote, e da lunge si pone
dal suo maestro, disdegnoso e fello; 132

così ne puose al fondo Gerïone


al piè al piè de la stagliata rocca,
e, discarcate le nostre persone, 135

si dileguò come da corda cocca.


Canto XVIII
Todo o círculo oitavo do inferno é dividido em dez valas chamadas Malebolge,
nome que signi ca literalmente “bolsas más” e se refere tanto à forma quanto ao
conteúdo das cavidades onde estão os danados. Aí é que os poetas desembarcam
do dorso de Gerião e seguem pela esquerda [1-21]. Na primeira bolsa estão ru ões
e sedutores, constantemente açoitados por demônios: aqueles caminham na
direção contrária, enquanto estes seguem no mesmo sentido dos poetas,
semelhante à peregrinação do primeiro jubileu em Roma (1300), quando a ponte
do castelo Sant’Angelo foi dividida em duas vias, uma em direção à basílica e outra
a uma colina, hoje inexistente [22-39]. Dante reconhece Venedico Caccianemico
(séc. xiii), político bolonhês que confessa ter atuado como “alcoviteiro” por ter
entregado sua irmã Ghisolabella aos desejos do marquês de Ferrara. O bolonhês
acrescenta que há ali muitos outros conterrâneos seus, tantos que em sua cidade
(entre os rios “Sávena e Reno”) quase não há mais quem fale “sipa”, forma dialetal
bolonhesa correspondente a “seja” [40-66]. Do alto de uma rocha, Virgílio mostra
entre os sedutores Jasão, que roubou dos colcos o velocino de ouro (“o carneiro”).
Depois de ter seduzido Hipsípile, jovem rainha da ilha de Lemnos (única que, ao
deixar seu pai a salvo, enganou as outras mulheres, que haviam matado todos os
homens), Jasão a abandonou grávida e sozinha. Sua pena no inferno vinga
também Medeia, outra abandonada por ele [67-99]. Os poetas seguem caminho e
chegam à segunda bolsa (“barricada”), onde os aduladores estão en ados no
estrume [100-114]. Dante reconhece outro personagem político, Alessio
Interminelli da Lucca (séc. xiii), que revela estar ali submerso “por bajular” [115-
126]. Por m, Virgílio aponta a prostituta Taís, personagem da comédia Eunuco,

do poeta latino Terêncio (século ii a.C.) [127-136].


Malebolge se chama um vão do inferno
todo de pedra e em cor de ferro escuro,
como o aro que lhe envolve o lado externo. 3

Justo no meio do terreno impuro


abre-se um poço assaz largo e profundo,
sobre cuja ordem direi no futuro. 6

O cinturão que resta assim rotundo


entre o poço e o sopé da penha dura
tem dividido em dez valas o fundo. 9

Igual a quando em proteção se mura


com inúmeros fossos um castelo,
conformando onde estão uma gura, 12

tal imagem aqui lhe era modelo;


e como nesses fortes desde a porta
à margem curtas pontes servem de elo, 15

assim o pé da rocha é que suporta


sobre escolhos e fossos passadouro
que se estende até o poço que o recorta. 18

Neste lugar, após sair do couro


de Gerião, nos vimos; o poeta
foi à esquerda, e o segui no sumidouro. 21
Nova agonia vi pela direita,
novo tormento e novos agressores,
de que a primeira bolsa era repleta. 24

No fundo estavam nus os pecadores;


do meio rumo a nós vinham andando,
de lá conosco, em passadas maiores, 27

como os romanos numa turba quando,


no ano do jubileu, por sobre a ponte
modo encontraram de passar em bando, 30

que de um dos lados todos têm a fronte


para o castelo e tocam pra San Pietro,
e da outra margem tocam para o monte. 33

Por aqui e acolá, no seixo tetro


vi demônios chifrudos com chicotes
que cruelmente lhes batiam no retro. 36

Ai, como aligeiravam-lhes os trotes


às primeiras pancadas! Já nenhum
esperava segundo e terço açoites. 39

Enquanto eu ia, os olhos meus em um


esbarraram, e eu de pronto disse:
“Já de ver este não quei em jejum”. 42

Então parei pra que melhor o visse;


e o doce guia ali permaneceu
e consentiu que eu pouco atrás seguisse. 45

E o agelado a cabeça pendeu


crendo-se oculto; e mesmo assim falei:
“Ó tu que à terra lanças o olho teu, 48

se tuas feições não mentem, ao que sei,


Venedico tu és Caccianemico.
Mas que te traz a tão pungente lei?”. 51

E ele me disse: “De mau grado explico;


mas tua clara fala me interpela,
e a relembrar o mundo antigo co. 54

Eu fui aquele que Ghisolabella


entregou à vontade do marquês,
tal que inda ecoa a sórdida novela. 57

E aqui não só eu choro bolonhês;


de nós este lugar está tão pleno,
que tantas línguas cam na escassez 60

de dizer sipa entre Sávena e Reno;


e se desejas fé e prova disso,
lembra nossa avareza e seu veneno”. 63

Assim falando, um demo com caniço


bateu-lhe e disse: “Fora, alcoviteiro!
Aqui não tem mulher pro teu serviço”. 66

Voltei pra perto de meu conselheiro;


depois com poucos passos atingimos
a ponta que saía lá do outeiro. 69

Por ele facilmente nós subimos


e, volvendo à direita sobre a bossa,
daquele eterno cinturão partimos. 72

uando chegamos sobre aquela fossa,


sob a qual atravessam fustigados,
o guia a mim: “Detém-te aqui e acossa 75

em ti o olhar desses outros danados,


dos quais ainda não miraste o rosto,
pois nos acompanhavam pelos lados”. 78

Da velha ponte víamos no oposto


a leira que vinha da outra banda,
a quem o açoite tange sem desgosto. 81

E meu bom mestre, sem minha demanda,


me falou: “Olha o grande que lá vem,
e de dor não parece choro expanda: 84

que porte majestoso inda mantém!


Esse é Jasão, que por bravura e ardil
cou com o carneiro, e os colcos sem. 87

Passou na ilha de Lemnos e seguiu,


no tempo em que as mulheres desalmadas
a todos homens deram morte vil. 90

Aí, com gesto e falas rebuscadas


Hipsípile enganou, a jovenzinha
que antes deixara as outras enganadas. 93

Abandonou-a grávida, sozinha;


tal culpa a tal martírio aqui o dana;
e Medeia é vingada coa rainha. 96

Com ele vai quem de tal modo engana;


e isto é o que basta da primeira vala
conhecer e daqueles que em si esgana”. 99

Já tínhamos chegado à estreita ala


da ponte pra segunda barricada,
que forma ali outro arco como escala. 102

Daqui ouvimos gente sufocada


na outra fossa coa fuça que ali bufa
e a si mesma coas palmas dá pancada. 105
Um mofo de saburra a riba estufa
devido ao bafo que o abismo gera,
de forma que olhos e nariz atufa. 108

O fundo é tão escuro, que a cratera


só se vislumbra pondo-se no dosso
da arcada, onde o rochedo mais impera. 111

Aí chegamos, e no chão do fosso


vi gente mergulhada num estrume
que parecia das latrinas troço. 114

E enquanto eu olho abaixo lá do cume,


vi um coa testa tão cheia de bosta,
que laico ou clérigo não se presume. 117

Ele gritou: “Por que é que minha crosta


imunda tas mais que aos outros brutos?”.
“Porque, se bem me lembro”, dei resposta, 120

“já te vi com cabelos mais enxutos,


tu és Alessio Interminei da Lucca,
por isso te olho mais que os outros juntos”. 123

E aquele então, batendo-se na cuca:


“Aqui submerso estou por bajular,
pois minha língua nunca foi caduca”. 126

Depois disso meu guia, “Leva o olhar”,


me disse, “um pouco mais para diante,
assim a face poderás xar 129

daquela suja e desgrenhada errante


que lá se arranha com unha merdosa
e ora se agacha e se ergue num rompante. 132

É Taís, prostituta que à ardorosa


questão do amante respondeu afeita:
‘A graça é grande?’, ‘É maravilhosa!’. 135

E esteja nossa vista satisfeita”.


Luogo è in inferno detto Malebolge,
tutto di pietra di color ferrigno,
come la cerchia che dintorno il volge. 3

Nel dritto mezzo del campo maligno


vaneggia un pozzo assai largo e profondo,
di cui suo loco dicerò l ordigno. 6

uel cinghio che rimane adunque è tondo


tra l pozzo e l piè de l alta ripa dura,
e ha distinto in dieci valli il fondo. 9

uale, dove per guardia de le mura


più e più fossi cingon li castelli,
la parte dove son rende gura, 12

tale imagine quivi facean quelli;


e come a tai fortezze da lor sogli
a la ripa di fuor son ponticelli, 15

così da imo de la roccia scogli


movien che ricidien li argini e ’ fossi
in no al pozzo che i tronca e raccogli. 18

In questo luogo, de la schiena scossi


di Gerïon, trovammoci; e l poeta
tenne a sinistra, e io dietro mi mossi. 21
A la man destra vidi nova pieta,
novo tormento e novi frustatori,
di che la prima bolgia era repleta. 24

Nel fondo erano ignudi i peccatori;


dal mezzo in qua ci venien verso l volto,
di là con noi, ma con passi maggiori, 27

come i Roman per l essercito molto,


l anno del giubileo, su per lo ponte
hanno a passar la gente modo colto, 30

che da l un lato tutti hanno la fronte


verso l castello e vanno a Santo Pietro,
da l altra sponda vanno verso l monte. 33

Di qua, di là, su per lo sasso tetro


vidi demon cornuti con gran ferze,
che li battien crudelmente di retro. 36

Ahi come facean lor levar le berze


a le prime percosse! già nessuno
le seconde aspettava né le terze. 39

Mentr io andava, li occhi miei in uno


furo scontrati; e io sì tosto dissi:
“Già di veder costui non son digiuno”. 42

Per ch ïo a gurarlo i piedi affissi;


e l dolce duca meco si ristette,
e assentio ch alquanto in dietro gissi. 45

E quel frustato celar si credette


bassando l viso; ma poco li valse,
ch io dissi: “O tu che l occhio a terra gette, 48

se le fazion che porti non son false,


Venedico se tu Caccianemico.
Ma che ti mena a sì pungenti salse?”. 51

Ed elli a me: “Mal volontier lo dico;


ma sforzami la tua chiara favella,
che mi fa sovvenir del mondo antico. 54

I fui colui che la Ghisolabella


condussi a far la voglia del marchese,
come che suoni la sconcia novella. 57

E non pur io qui piango bolognese;


anzi n è questo loco tanto pieno,
che tante lingue non son ora apprese 60

a dicer ‘sipa tra Sàvena e Reno;


e se di ciò vuoi fede o testimonio,
rècati a mente il nostro avaro seno”. 63

Così parlando il percosse un demonio


de la sua scurïada, e disse: “Via,
ruffian! qui non son femmine da conio”. 66

I mi raggiunsi con la scorta mia;


poscia con pochi passi divenimmo
là ‘v uno scoglio de la ripa uscia. 69

Assai leggeramente quel salimmo;


e vòlti a destra su per la sua scheggia,
da quelle cerchie etterne ci partimmo. 72

uando noi fummo là dov el vaneggia


di sotto per dar passo a li sferzati,
lo duca disse: “Attienti, e fa che feggia 75

lo viso in te di quest altri mal nati,


ai quali ancor non vedesti la faccia
però che son con noi insieme andati”. 78

Del vecchio ponte guardavam la traccia


che venìa verso noi da l altra banda,
e che la ferza similmente scaccia. 81

E l buon maestro, sanza mia dimanda,


mi disse: “Guarda quel grande che vene,
e per dolor non par lagrime spanda: 84

quanto aspetto reale ancor ritene!


uelli è Iasón, che per cuore e per senno
li Colchi del monton privati féne. 87

Ello passò per l isola di Lenno


poi che l ardite femmine spietate
tutti li maschi loro a morte dienno. 90

Ivi con segni e con parole ornate


Isi le ingannò, la giovinetta
che prima avea tutte l altre ingannate. 93

Lasciolla quivi, gravida, soletta;


tal colpa a tal martiro lui condanna;
e anche di Medea si fa vendetta. 96

Con lui sen va chi da tal parte inganna;


e questo basti de la prima valle
sapere e di color che n sé assanna”. 99

Già eravam là ve lo stretto calle


con l argine secondo s incrocicchia,
e fa di quello ad un altr arco spalle. 102

uindi sentimmo gente che si nicchia


ne l altra bolgia e che col muso scuffa,
e sé medesma con le palme picchia. 105
Le ripe eran grommate d una muffa,
per l alito di giù che vi s appasta,
che con li occhi e col naso facea zuffa. 108

Lo fondo è cupo sì, che non ci basta


loco a veder sanza montare al dosso
de l arco, ove lo scoglio più sovrasta. 111

uivi venimmo; e quindi giù nel fosso


vidi gente attuffata in uno sterco
che da li uman privadi parea mosso. 114

E mentre ch io là giù con l occhio cerco,


vidi un col capo sì di merda lordo,
che non parëa s era laico o cherco. 117

uei mi sgridò: “Perché se tu sì gordo


di riguardar più me che li altri brutti?”.
E io a lui: “Perché, se ben ricordo, 120

già t ho veduto coi capelli asciutti,


e se Alessio Interminei da Lucca:
però t adocchio più che li altri tutti”. 123

Ed elli allor, battendosi la zucca:


“ ua giù m hanno sommerso le lusinghe
ond io non ebbi mai la lingua stucca”. 126

Appresso ciò lo duca “Fa che pinghe”,


mi disse, “il viso un poco più avante,
sì che la faccia ben con l occhio attinghe 129

di quella sozza e scapigliata fante


che là si graffia con l unghie merdose,
e or s accoscia e ora è in piedi stante. 132

Taïde è, la puttana che rispuose


al drudo suo quando disse ‘Ho io grazie
grandi apo te? : ‘Anzi maravigliose! . 135

E quinci sian le nostre viste sazie”.


Canto XIX
O canto se abre com uma invectiva contra o mago Simão, personagem bíblico que
tentou comprar dos apóstolos Pedro e João o poder de infundir o Espírito Santo
com as mãos. Ele está na terceira bolsa de Malebolge com seus seguidores, os
simoníacos, punidos com a cabeça en ada na terra por terem feito comércio de
coisas espirituais [1-12]. A imagem das almas dentro dos buracos traz a Dante a
lembrança das pias do batistério de San Giovanni (“meu belo São João”), em
Florença, e o poeta se serve disso para esclarecer um controverso episódio
biográ co [13-21]. Entre os condenados, Dante e Virgílio notam um que se agita
mais que os outros por sua punição mais intensa: trata-se do papa Nicolau iii
(Giovanni Gaetano Orsini [“ursinhos”, em italiano], c. 1212-80). Descendo até o
limite da quarta bolsa, Dante conversa com o pontí ce, que o toma por seu
aguardado sucessor, Bonifácio viii. Este, por sua vez, será sucedido em poucos
anos pelo que virá da França (“lá do poente”, comparado ao bíblico “Jasão”),
Clemente v (Bertrand de Got, ?-1314), responsável por ter transferido o papado
à cidade de Avignon em 1309 [22-87]. Diante desses maus representantes da Igreja,
o poeta invoca os exemplos bíblicos de Cristo, Pedro, Matias e João (o
“Evangelista”), num longo discurso contra a cupidez da cúria romana, que
também usou seu poder econômico (“a mal tida moeda”) contra a política de
Carlos i d’Anjou, rei da Sicília (1226-85). Dante então relembra a origem da
Igreja (“sete cabeças”, as sete colinas de Roma ou os sete dons do Espírito Santo) e
seu crescimento (“dez chifres”, os dez reis pagãos ou os dez mandamentos). O
discurso se encerra com uma re exão sobre a provável origem desse apego terreno:
a suposta doação (“o dote”) da Itália central à Igreja pelo imperador Constantino
(c. 280-337 d.C.) [88-120]. Com a ajuda de Virgílio, Dante retorna pelo caminho
que havia descido e se depara com a bolsa seguinte [121-133].
Ó Simão mago, ó míseros sequazes,
vós que por ouro e prata adulterais
coisas de Deus que devem ser capazes 3

de ao bem unir-se em laços conjugais,


ora por vós se deve soar a tromba,
pois na terceira cavidade estais. 6

Nós tínhamos chegado à outra tumba,


tendo subido bem naquela parte
da ponte que no meio do vão tomba. 9

Ó suma sapiência, quão grande arte


mostras no céu, na terra e no mau mundo,
e quão justo a virtude tua reparte! 12

Eu vi lívida pedra desde o fundo


repleta de buracos té os costados,
de igual tamanho e de feitio rotundo. 15

Não pareciam mais amplos nem cerrados


que aqueles do meu belo São João,
onde os batismos são sacramentados; 18

uma sua pia há anos pus ao chão


e a rompi, pois um dentro se afogava:
ao que dou fé, e cesse a falação. 21
Fora de cada boca despontava
do pecador a perna com os pés,
e dentro todo o resto se enterrava. 24

As solas eram vivas chaminés;


joelhos iam tanto a espernear,
que bras romperiam mais de dez. 27

Tal como sói no sebo o amejar


mover-se apenas pela extrema casca,
assim ia da ponta ao calcanhar. 30

“ uem é, meu mestre, que esperneia na vasca,


que a dor dos outros faz parecer leve”,
eu disse, “e mais vermelha chama lasca?”. 33

E ele falou: “Se queres que eu te leve


abaixo pela riba que lá jaz,
dele ouvirás quem foi e por que deve”. 36

E eu: “Tanto me agrada o que te apraz:


tu és senhor e sabes não me aparto
de tua vontade, e assim não falo mais”. 39

Então chegamos ao contorno quarto;


descemos à canhota com cautela
ao fundo estreito de forames farto. 42

O bom mestre com todo o anco zela


inda por mim, depondo-me onde ardia
aquele que chorava coa canela. 45

“ uem és que estás ncado em agonia,


ó alma que te entranhas coa cabeça”,
eu comecei, “se podes, pronuncia”. 48

Eu estava qual frade que confessa


o pér do assassino, que inquieto
implora antes que a morte lhe apareça. 51

E ele gritou: “Estás aqui já reto,


estás aqui já reto, Bonifácio?
Mentiu-me o escrito o ano por completo. 54

Estás farto de tantos bens ter fácil,


pelos quais não temeste com torpeza
enganar e vender a dama grácil?”. 57

Agindo como quem a frase pesa


e para dar resposta se demora,
assim não respondi, por incerteza. 60

Virgílio então falou: “Lhe diz agora:


‘Não sou aquele, não quem acreditas’”,
e assim z respondendo ali na hora. 63

O esprito retorceu pernas constritas;


suspirando depois com voz de pranto
me disse: “Então o que me solicitas? 66

Se saber quem eu sou te importa tanto,


já que correste pela riba o trilho,
sabe que me vesti do grande manto; 69

da ursa eu fui um verdadeiro lho,


tão cúpido a engordar os meus ursinhos,
que acima acumulei e aqui me empilho. 72

Tenho sob a cabeça outros vizinhos


que precederam-me simonizando,
e as pedras os esmagam qual moinhos. 75

Ao fundo deste furo eu irei quando


virá o que contigo confundi,
por isso que fui logo perguntando. 78

Maior é o tempo em que já me incendi,


plantado com os pés pelo contrário,
do que em brasa estarão seus pés aqui: 81

depois dele virá mais temerário,


lá do poente, um mau pastor sem lei,
tal que a nós dois nos cubra o mercenário. 84

Será novo Jasão, pelo que sei


dos Macabeus; foi mole seu regente,
como há de ser em França quem é rei”. 87

Não sei se aqui eu fui muito imprudente


por ter-lhe respondido em tal teor:
“Ah, diz: quanto tesouro tinha em mente 90

de são Pedro pegar Nosso Senhor


pra que as chaves pusesse em seu poder?
‘Me segue’ foi seu único dispor. 93

Nem Pedro nem ninguém quis receber


prata e ouro de Matias, o escolhido
ao lugar que a alma vil veio a perder. 96

Por isso, ca aí que és bem punido;


e guarda bem a mal tida moeda
que te fez contra Carlos destemido. 99

E se não fosse porque inda me veda


a reverência pelas sumas chaves
que tu tiveste noutra vida leda, 102

eu diria palavras bem mais graves;


porque vossa avareza o mundo atrista,
pisando os bons e os maus louvando em salves. 105
De vós, pastores, soube o Evangelista
quando aquela que sobre as águas senta
com reis qual puta foi por ele vista; 108

a que sete cabeças apresenta


e a quem dez chifres foram argumento,
enquanto a seu marido a fé foi benta. 111

Transformastes em deus ouro e argento;


de idólatras qual vossa diferença,
senão que adoram um, e vós um cento? 114

Ai, Constantino, é mãe dessa doença


não tua conversão, mas sim o dote
que o rico pai tomou por recompensa!”. 117

E enquanto eu lhe cantava neste mote,


por ser tomado de ira ou consciência,
forçava os dois gambitos num pinote. 120

Ao ver no guia atento a complacência


do aspecto, dei-me conta que gostou
das verdades expressas com veemência. 123

Por isso cos dois braços me pegou


e após me receber todo em seu peito
por via que descera retornou. 126

Não se cansou de ter-me a si estreito


ao me levar acima do arco ileso
que está da quarta à quinta bolsa feito. 129

Ali depôs suavemente o peso,


suave pra penhasco tão penoso,
que até às fortes cabras põe defeso. 132

Então sobre outra vala os olhos pouso.


O Simon mago, o miseri seguaci
che le cose di Dio, che di bontate
deon essere spose, e voi rapaci 3

per oro e per argento avolterate,


or convien che per voi suoni la tromba,
però che ne la terza bolgia state. 6

Già eravamo, a la seguente tomba,


montati de lo scoglio in quella parte
ch a punto sovra mezzo l fosso piomba. 9

O somma sapïenza, quanta è l arte


che mostri in cielo, in terra e nel mal mondo,
e quanto giusto tua virtù comparte! 12

Io vidi per le coste e per lo fondo


piena la pietra livida di fóri,
d un largo tutti e ciascun era tondo. 15

Non mi parean men ampi né maggiori


che que che son nel mio bel San Giovanni,
fatti per loco d i battezzatori; 18

l un de li quali, ancor non è molt anni,


rupp io per un che dentro v annegava:
e questo sia suggel ch ogn omo sganni. 21
Fuor de la bocca a ciascun soperchiava
d un peccator li piedi e de le gambe
in no al grosso, e l altro dentro stava. 24

Le piante erano a tutti accese intrambe;


per che sì forte guizzavan le giunte,
che spezzate averien ritorte e strambe. 27

ual suole il ammeggiar de le cose unte


muoversi pur su per la strema buccia,
tal era lì dai calcagni a le punte. 30

“Chi è colui, maestro, che si cruccia


guizzando più che li altri suoi consorti”,
diss io, “e cui più roggia amma succia?”. 33

Ed elli a me: “Se tu vuo ch i ti porti


là giù per quella ripa che più giace,
da lui saprai di sé e de suoi torti”. 36

E io: “Tanto m è bel, quanto a te piace:


tu se segnore, e sai ch i non mi parto
dal tuo volere, e sai quel che si tace”. 39

Allor venimmo in su l argine quarto;


volgemmo e discendemmo a mano stanca
là giù nel fondo foracchiato e arto. 42

Lo buon maestro ancor de la sua anca


non mi dipuose, sì mi giunse al rotto
di quel che si piangeva con la zanca. 45

“O qual che se che l di sù tien di sotto,


anima trista come pal commessa”,
comincia io a dir, “se puoi, fa motto”. 48

Io stava come l frate che confessa


lo per do assessin, che, poi ch è tto,
richiama lui per che la morte cessa. 51

Ed el gridò: “Se tu già costì ritto,


se tu già costì ritto, Bonifazio?
Di parecchi anni mi mentì lo scritto. 54

Se tu sì tosto di quell aver sazio


per lo qual non temesti tòrre a nganno
la bella donna, e poi di farne strazio?”. 57

Tal mi fec io, quai son color che stanno,


per non intender ciò ch è lor risposto,
quasi scornati, e risponder non sanno. 60

Allor Virgilio disse: “Dilli tosto:


‘Non son colui, non son colui che credi ”;
e io rispuosi come a me fu imposto. 63

Per che lo spirto tutti storse i piedi;


poi, sospirando e con voce di pianto,
mi disse: “Dunque che a me richiedi? 66

Se di saper ch i sia ti cal cotanto,


che tu abbi però la ripa corsa,
sappi ch i fui vestito del gran manto; 69

e veramente fui gliuol de l orsa,


cupido sì per avanzar li orsatti,
che sù l avere e qui me misi in borsa. 72

Di sotto al capo mio son li altri tratti


che precedetter me simoneggiando,
per le fessure de la pietra piatti. 75

Là giù cascherò io altresì quando


verrà colui ch i credea che tu fossi,
allor ch i feci l sùbito dimando. 78

Ma più è l tempo già che i piè mi cossi


e ch i son stato così sottosopra,
ch el non starà piantato coi piè rossi: 81

ché dopo lui verrà di più laida opra,


di ver ponente, un pastor sanza legge,
tal che convien che lui e me ricuopra. 84

Nuovo Iasón sarà, di cui si legge


ne Maccabei; e come a quel fu molle
suo re, così a lui chi Francia regge”. 87

Io non so s i mi fui qui troppo folle,


ch i pur rispuosi lui a questo metro:
“Deh, or mi dì: quanto tesoro volle 90

Nostro Segnore in prima da san Pietro


ch ei ponesse le chiavi in sua balìa?
Certo non chiese se non ‘Viemmi retro . 93

Né Pier né li altri tolsero a Matia


oro od argento, quando fu sortito
al loco che perdé l anima ria. 96

Però ti sta, ché tu se ben punito;


e guarda ben la mal tolta moneta
ch esser ti fece contra Carlo ardito. 99

E se non fosse ch ancor lo mi vieta


la reverenza de le somme chiavi
che tu tenesti ne la vita lieta, 102

io userei parole ancor più gravi;


ché la vostra avarizia il mondo attrista,
calcando i buoni e sollevando i pravi. 105
Di voi pastor s accorse il Vangelista,
quando colei che siede sopra l acque
puttaneggiar coi regi a lui fu vista; 108

quella che con le sette teste nacque,


e da le diece corna ebbe argomento,
n che virtute al suo marito piacque. 111

Fatto v avete dio d oro e d argento;


e che altro è da voi a l idolatre,
se non ch elli uno, e voi ne orate cento? 114

Ahi, Costantin, di quanto mal fu matre,


non la tua conversion, ma quella dote
che da te prese il primo ricco patre!”. 117

E mentr io li cantava cotai note,


o ira o coscïenza che l mordesse,
forte spingava con ambo le piote. 120

I credo ben ch al mio duca piacesse,


con sì contenta labbia sempre attese
lo suon de le parole vere espresse. 123

Però con ambo le braccia mi prese;


e poi che tutto su mi s ebbe al petto,
rimontò per la via onde discese. 126

Né si stancò d avermi a sé distretto,


sì men portò sovra l colmo de l arco
che dal quarto al quinto argine è tragetto. 129

uivi soavemente spuose il carco,


soave per lo scoglio sconcio ed erto
che sarebbe a le capre duro varco. 132

Indi un altro vallon mi fu scoperto.


Canto XX
Dante e Virgílio chegam à quarta bolsa de Malebolge, destinada aos adivinhos. As
sombras dos condenados caminham a passos lentos por estarem retorcidas, com
as cabeças viradas para trás [1-18]. Ao perceber que Dante se compadece daquelas
almas, Virgílio o adverte sobre a devida piedade que cabe ao inferno, num passo
de dúbia leitura: o mais perverso é 1. quem tem compaixão perante o decreto
divino, ou 2. quem acredita poder forçar o juízo divino com seus sortilégios [19-
30]. Virgílio então aponta a Dante alguns magos, como An arau, Tirésias e
Arunte [31-51]. O poeta latino refere também Manto, lha de Tirésias. Após a
morte do pai e a conquista de Tebas (“a cidade de Baco”), a maga teria corrido o
mundo em busca de isolamento, xando-se nos pântanos que se formam das
águas provenientes do lago de Garda (“Benaco”) e seus entornos. Pela posição
bem guarnecida, ali foi posteriormente fundada Mântua, nome dado em
referência à primeira habitante. Virgílio fala de sua pátria desde a fundação até
quando o soberano guelfo Alberto de Casalodi (séc. xiii) exilou e exterminou
grande parte da população como consequência do engano e traição do gibelino
Pinamonte Bonacolsi (?-1293) [52-99]. São referidos ainda outros necromantes,
como os personagens épicos Eurípilo e Calcante (que indicaram o momento da
partida de Áulide para a guerra de Troia) e os históricos Miguel Escoto (c. 1175-
c. 1236), Guido Bonatti (c. 1223-c. 1300) e o sapateiro Asdente (séc. xiii), além
de mulheres cujos nomes não são mencionados [100-123]. Tendo a lua (referida pela
metáfora “Caim com as graminhas”) chegado ao horizonte (“sob Sevilha”),
Virgílio convoca Dante a retomar a caminhada [124-130].
De nova pena devo fazer versos
e dar matéria ao vigésimo canto
da primeira canção, que é dos submersos. 3

Disposto eu já me via todo e tanto


a contemplar o descoberto fundo
que se banhava de angustiante pranto; 6

e gentes vi pelo valão rotundo


vir, em silêncio e em lágrimas, a custo,
no andar das procissões cá deste mundo. 9

uando baixei o rosto tive um susto:


horrivelmente uma a uma às avessas
se mostrava onde o queixo encontra o busto, 12

torcidas para os dorsos as cabeças,


e vir de costas cada qual devia,
pois ver de frente era vedado a essas. 15

Talvez por causa de paralisia


alguém se contorcesse assim tão bruto;
mas nunca o vi, nem creio que haveria. 18

ue Deus te deixe ver, leitor, o fruto


daquilo que tu lês, e só por ti
re ete se eu mantive o rosto enxuto 21
quando de perto nossa imagem vi
tão torta, que até lágrimas do viso
as nádegas banhavam ao cair. 24

Sim, eu chorava junto a um duro friso


da encosta do penhasco, e o que me exorta
falou: “Dos tolos tens inda o juízo? 27

Piedade vive aqui só quando morta;


quem é mais celerado do que alguém
que à justiça de Deus paixão comporta? 30

Ergue teu rosto, ergue, e vê por quem


se abriu aos olhos de Tebas a terra,
ao que gritavam todos: ‘Vais além, 33

An arau? Por que deixas a guerra?’.


E não parou de decair desfeito
até Minos, que todo mundo aferra. 36

Mira quem de suas costas fez o peito:


porque quis ver em demasia adiante,
olha pra trás andando contrafeito. 39

Vê Tirésias ali, cujo semblante


de homem trocou por formas femininas,
mudando o corpo todo cambiante; 42

mas antes teve de bater com nas


vergas nas duas enroscadas cobras
pra reaver as penas masculinas. 45

Arunte é o que se acosta a ele em dobras,


que nos montes de Lúni, onde labuta
o carrarense abaixo em várias obras, 48

teve entre os brancos mármores a gruta


por morada; da qual a olhar o céu
e o mar não lhe era a vista diminuta. 51

E aquela que recobre sob um véu


suas mamas, que não vês, de soltas tranças
e tem na parte oposta o pelo seu 54

foi Manto, que por terras fez andanças;


depois, onde eu nasci, lá se assentou;
por isso quero que ouças tais lembranças: 57

depois que a vida o pai dela deixou


e se fez serva a cidade de Baco,
por muito tempo o mundo ela girou. 60

Na bela Itália, acima, jaz um lago


ao pé dos Alpes que a Germânia mura
sobre o Tirol, e seu nome é Benaco. 63

Por fontes mais de mil se con gura,


de Garda a Val Camônica e Pennino,
eu creio, a água que no lago dura. 66

No meio há um lugar onde o trentino


sacerdote e o de Bréscia e o de Verona
benzeriam tendo ido a tal destino. 69

Peschiera, o forte, ali recepciona


de Bréscia e Bérgamo acomentimentos,
onde a ribeira ca em baixa zona. 72

Então se espalha por derramamentos


o que o lago não tem num laço só,
e em verdes pastos rio se faz aos ventos. 75

Tão logo a água escorre a seu redor,


não mais Benaco, mas Míncio se chama
até Govérnol, onde cai no Pó. 78

Sem muito percorrer já se esparrama


baixada afora e em pântano utua;
lugar que no verão chuva reclama. 81

Passando por ali a virgem crua


viu terra emersa em meio ao lameirão,
sem plantações e de habitantes nua. 84

A evitar toda humana relação,


aí cou com servos e suas artes
e viveu e deixou seu corpo vão. 87

Depois, os homens que eram dessas partes


se recolheram lá como em guarida,
porque os charcos formavam baluartes. 90

Sobre seus ossos foi a vila erguida;


por ela, que antes escolheu o local,
Mântua a chamaram, como é conhecida. 93

Já houve lá mais gente que a atual,


antes que Casalodi em necedade
de Pinamonte ouvisse o erro fatal. 96

Por isso se qualquer disparidade


ouves de minha terra e sua origem,
que a mentira não fraude esta verdade”. 99

E eu: “Mestre, tuas falas me dirigem


a uma fé que me prende tão certeira,
que as outras me seriam só fuligem. 102

Mas dize, dentre a gente à ribanceira,


se vês alguém ali digno de nota,
que apenas nisso tenho a mente inteira”. 105
Então me disse: “Aquele de quem brota
a barba que cai sobre a espádua bruna
foi — quando a Grécia teve baixa cota 108

de homens, que mal sobrou-lhe para a cuna —


áugure, e com Calcante disse a hora
em Áulide a zarpar mais oportuna. 111

Eurípilo chamou-se, e é sonora


a minha alta tragédia em certo passo:
bem o sabes, que a sabes toda afora. 114

E o outro, que de anco é tão escasso,


Miguel Escoto foi, que realmente
tinha de fraudes mágicas um maço. 117

Vê lá Guido Bonatti; vê o Asdente,


que ao couro e ao o ter mais se dedicado
queria agora, e tarde se ressente. 120

Vê as cruéis que deixaram o ado,


agulha e fuso e foram adivinhas
com ervas, ídolos e mau-olhado. 123

Mas vem agora, pois já chega às linhas


dos hemisférios onde toca a onda
sob Sevilha Caim com as graminhas; 126

e já ontem a lua foi redonda:


tu deves bem lembrar, não foi funesta
a ti nenhuma vez na selva funda”. 129

Enquanto me falava, fomos nesta.


Di nova pena mi conven far versi
e dar matera al ventesimo canto
de la prima canzon, ch è d i sommersi. 3

Io era già disposto tutto quanto


a riguardar ne lo scoperto fondo,
che si bagnava d angoscioso pianto; 6

e vidi gente per lo vallon tondo


venir, tacendo e lagrimando, al passo
che fanno le letane in questo mondo. 9

Come l viso mi scese in lor più basso,


mirabilmente apparve esser travolto
ciascun tra l mento e l principio del casso, 12

ché da le reni era tornato l volto,


e in dietro venir li convenia,
perché l veder dinanzi era lor tolto. 15

Forse per forza già di parlasia


si travolse così alcun del tutto;
ma io nol vidi, né credo che sia. 18

Se Dio ti lasci, lettor, prender frutto


di tua lezione, or pensa per te stesso
com io potea tener lo viso asciutto, 21
quando la nostra imagine di presso
vidi sì torta, che l pianto de li occhi
le natiche bagnava per lo fesso. 24

Certo io piangea, poggiato a un de rocchi


del duro scoglio, sì che la mia scorta
mi disse: “Ancor se tu de li altri sciocchi? 27

ui vive la pietà quand è ben morta;


chi è più scellerato che colui
che al giudicio divin passion comporta? 30

Drizza la testa, drizza, e vedi a cui


s aperse a li occhi d i Teban la terra;
per ch ei gridavan tutti: ‘Dove rui, 33

Anfïarao? perché lasci la guerra? .


E non restò di ruinare a valle
no a Minòs che ciascheduno afferra. 36

Mira c ha fatto petto de le spalle;


perché volse veder troppo davante,
di retro guarda e fa retroso calle. 39

Vedi Tiresia, che mutò sembiante


quando di maschio femmina divenne,
cangiandosi le membra tutte quante; 42

e prima, poi, ribatter li convenne


li duo serpenti avvolti, con la verga,
che rïavesse le maschili penne. 45

Aronta è quel ch al ventre li s atterga,


che ne monti di Luni, dove ronca
lo Carrarese che di sotto alberga, 48

ebbe tra ’ bianchi marmi la spelonca


per sua dimora; onde a guardar le stelle
e l mar non li era la veduta tronca. 51

E quella che ricuopre le mammelle,


che tu non vedi, con le trecce sciolte,
e ha di là ogne pilosa pelle, 54

Manto fu, che cercò per terre molte;


poscia si puose là dove nacqu io;
onde un poco mi piace che m ascolte. 57

Poscia che l padre suo di vita uscìo


e venne serva la città di Baco,
questa gran tempo per lo mondo gio. 60

Suso in Italia bella giace un laco,


a piè de l Alpe che serra Lamagna
sovra Tiralli, c ha nome Benaco. 63

Per mille fonti, credo, e più si bagna


tra Garda e Val Camonica e Pennino
de l acqua che nel detto laco stagna. 66

Loco è nel mezzo là dove l trentino


pastore e quel di Brescia e l veronese
segnar poria, s e fesse quel cammino. 69

Siede Peschiera, bello e forte arnese


da fronteggiar Bresciani e Bergamaschi,
ove la riva ntorno più discese. 72

Ivi convien che tutto quanto caschi


ciò che n grembo a Benaco star non può,
e fassi ume giù per verdi paschi. 75

Tosto che l acqua a correr mette co,


non più Benaco, ma Mencio si chiama
no a Governol, dove cade in Po. 78

Non molto ha corso, ch el trova una lama,


ne la qual si distende e la mpaluda;
e suol di state talor esser grama. 81

uindi passando la vergine cruda


vide terra, nel mezzo del pantano,
sanza coltura e d abitanti nuda. 84

Lì, per fuggire ogne consorzio umano,


ristette con suoi servi a far sue arti,
e visse, e vi lasciò suo corpo vano. 87

Li uomini poi che ntorno erano sparti


s accolsero a quel loco, ch era forte
per lo pantan ch avea da tutte parti. 90

Fer la città sovra quell ossa morte;


e per colei che l loco prima elesse,
Mantüa l appellar sanz altra sorte. 93

Già fuor le genti sue dentro più spesse,


prima che la mattia da Casalodi
da Pinamonte inganno ricevesse. 96

Però t assenno che, se tu mai odi


originar la mia terra altrimenti,
la verità nulla menzogna frodi”. 99

E io: “Maestro, i tuoi ragionamenti


mi son sì certi e prendon sì mia fede,
che li altri mi sarien carboni spenti. 102

Ma dimmi, de la gente che procede,


se tu ne vedi alcun degno di nota;
ché solo a ciò la mia mente ri ede”. 105
Allor mi disse: “ uel che da la gota
porge la barba in su le spalle brune,
fu — quando Grecia fu di maschi vòta, 108

sì ch a pena rimaser per le cune —


augure, e diede l punto con Calcanta
in Aulide a tagliar la prima fune. 111

Euripilo ebbe nome, e così l canta


l alta mia tragedìa in alcun loco:
ben lo sai tu che la sai tutta quanta. 114

uell altro che ne anchi è così poco,


Michele Scotto fu, che veramente
de le magiche frode seppe l gioco. 117

Vedi Guido Bonatti; vedi Asdente,


ch avere inteso al cuoio e a lo spago
ora vorrebbe, ma tardi si pente. 120

Vedi le triste che lasciaron l ago,


la spuola e l fuso, e fecersi ndivine;
fecer malie con erbe e con imago. 123

Ma vienne omai, ché già tiene l con ne


d amendue li emisperi e tocca l onda
sotto Sobilia Caino e le spine; 126

e già iernotte fu la luna tonda:


ben ten de ricordar, ché non ti nocque
alcuna volta per la selva fonda”. 129

Sì mi parlava, e andavamo introcque.


Canto XXI
Os poetas seguem pela passagem da quarta à quinta bolsa de Malebolge, onde
avistam um poço de piche a borbulhar que traz à memória de Dante a imagem
dos estaleiros venezianos em época de reparo de embarcações [1-21]. Virgílio então
alerta Dante para um demônio que voa na direção deles, o qual, junto a outros
diabos chamados Malagarras, carrega em seus ombros um dos magistrados da
corrupta cidade de Lucca (“um dos anciãos de Santa Zita”), onde era possível
transformar por dinheiro o não em sim (“ita”, expressão a rmativa latina presente
em atos públicos). O mesmo demônio anuncia ironicamente que estava voando
de volta para aquela cidade, em busca de mais almas semelhantes à do político
Bonturo Dati (?-1325) [22-42]. A pena dos corruptos prevê que eles ardam no pez
fervente, motivo pelo qual os diabos impedem que ponham qualquer parte de
seus corpos para fora (como fariam naturalmente no rio Sérchio) ou peçam ajuda,
como os cidadãos de Lucca faziam diante do cruci xo bizantino (“Santo Rosto”)
em sua basílica [43-57]. Por conhecer a violência dos demônios, Virgílio diz a
Dante que se esconda por um instante e se apresenta para solicitar passagem.
Invocando a permissão divina, o poeta latino se impõe a Malacoda e chama Dante
de volta. Com a ameaça de alguns diabos, Dante teme pela validade do acordo
obtido por Virgílio, que poderia ser rompido tal como vira pessoalmente
acontecer na rendição do castelo de Caprona (1289) durante a invasão do
exército orentino [58-102]. Malacoda avisa os poetas sobre uma mudança ocorrida
na geogra a infernal há exatos 1266 anos, um dia e cinco horas antes daquele
momento, em referência à morte de Cristo e sua passagem pelo inferno. Por isso o
líder do bando oferece a escolta de dez subalternos, chamados um a um pelo
nome [103-126]. Dante, após descon ar dos acompanhantes, é acalmado por
Virgílio, que lhe diz que os demônios só têm poder sobre os condenados daquela
bolsa. De partida com os poetas, a escolta diabólica sinaliza com a língua para o
chefe da tropa, Barbacrespa, que responde ruidosamente [127-139].
Assim de ponte em ponte, inda falando
coisas que esta comédia não gura,
seguimos; íamos ao cume, quando 3

paramos para ver outra ssura


de Malebolge e mais prantos insanos;
e a vi assustadoramente escura. 6

Como nos arsenais venezianos


ferve no inverno o pegajoso pez
a reparar os lenhos de seus danos, 9

pois navegar não podem — dessa vez


um faz seu lenho novo e outro estopa
os bordos do que mais viagens fez; 12

há quem bate na proa e quem na popa;


outro faz remos e outro tece trama;
outro o traquete e o artimão encopa —: 15

assim, por divina arte e não por chama,


borbulha desde o fundo a pasta espessa,
que espirra e pelas bordas se esparrama. 18

Eu punha os olhos, mas não via nessa


senão as bolhas que o fervor erguia,
a inchá-la toda e a decair depressa. 21
Enquanto ali eu xamente via,
meu guia foi dizendo “Atento, atento!”
e me puxou do posto onde eu jazia. 24

Então virei-me como alguém que é lento


no prever o que deve desviar,
a quem o medo lança em desalento 27

e que, por ver, não tarda de escapar:


eu vi por trás de nós um diabo preto
correndo pelo escolho já a chegar. 30

Ai, quanto era feroz o seu aspeto,


e quão me parecia acerbamente
de asas abertas sobre os pés ereto! 33

Com o ombro, que era agudo e saliente,


um pecador levava pelo anco
cravando a garra em seu tendão pendente. 36

“Ó Malagarras”, disse do barranco,


“eis um dos anciãos de Santa Zita!
Afogai-o, que eu volto lá e arranco 39

outros da terra onde essa turba habita:


corrupto é o que mais tem, salvo Bonturo;
lá o não, por uns vinténs, se torna ita”. 42

Jogou-o ao fundo, e pelo escolho duro


volveu; jamais se viu mastim disposto
a caçar um ladrão em tanto apuro. 45

Este afundou e veio à tona exposto;


mas demônios que iam sob a arcada
gritaram: “Cá não tens o Santo Rosto! 48

No Sérchio é diferente que se nada!


Por isso, se não queres nossa unha,
não saias do betume para nada”. 51

Depois espicaçaram quem se expunha


dizendo: “Aqui tu vais dançar tapado:
se podes, pilha mais sem testemunha”. 54

Assim o cozinheiro a seu criado


faz afundar co garfo na caldeira
a carne para que não suba a nado. 57

E meu bom mestre, “Afasta-te da beira,


não é bom”, me falou, “que tu apareças:
atrás de algum rochedo te en leira; 60

se ofensas eu sofrer, não esmoreças


nem temas, que isso é coisa já sabida,
pois noutra vez estive em brigas dessas”. 63

Depois galgou a ponte até a saída;


e quando ele alcançou a margem sexta,
mister lhe foi manter a testa erguida. 66

Com o furor que a tempestade apresta


e atiça os cães aos pés do miserável
pedinte, que assustado onde está resta, 69

saíram pelo vão da ponte estável


apontando contra ele seus tridentes;
ao que gritou: “Ninguém seja execrável! 72

Antes que me pegueis com vossos dentes,


me ouve um de vós e sai de vossa roda,
pois a me tridentar sereis prudentes”. 75

Todos gritaram: “Vai-te, Malacoda!”;


de modo que um moveu-se — o resto, quedo —
e foi-lhe assim dizendo: “ uem me açoda?”. 78

“Achas tu, Malacoda, que eu concedo


a minha vinda aqui”, disse o doutor,
“de todo vosso entrave já sem medo, 81

sem o divino e o fado a meu favor?


Deixa-nos ir, porque no céu se quer
que eu mostre a outro a via deste horror”. 84

Ali foi tanto orgulho sem poder,


que ele deixou cair o ancinho ao chão
e disse aos outros: “Nada de o fender”. 87

E o guia a mim: “Ó tu que estás no vão


entre as pedras da ponte a bom recato,
agora vem a mim seguro e são”. 90

Então eu fui a ele de imediato,


e os diabos todos avançaram mais,
tal que eu temi rompessem o seu pacto; 93

eu mesmo vi temer o ciais


ao sair pactuados de Caprona
se vendo em meio às tropas dos rivais. 96

Colei meu corpo todo àquela zona


ao lado de meu guia, a vista posta
em sua feição que só os desabona. 99

Erguiam chuços: “Vê que ele se encosta”,


diziam, “quer que eu nele desça a espora?”.
E os outros: “Sim, do jeito que cê gosta”. 102

Mas o diá que conversava afora


com meu guia virou-se numa urgência
e disse: “Desgrenhado, para agora!”. 105
Depois nos disse: “Ir nesta sequência
de rochas é impossível, porque jaz
o sexto arco no fundo em decadência. 108

Mas, se seguir em frente vos apraz,


podeis continuar por esta grota;
há outra rocha que a passagem faz. 111

Ontem, cinco horas mais que a que se anota,


fez mil duzentos e sessenta e seis
anos que a via aqui se encontra rota. 114

Mando uns dos meus té lá com essas leis,


a vigiar se alguém tenta fugir;
não serão maus, e assim continueis”. 117

“Pisanévoa, Aliquim, vamos agir”,


começou a dizer, “e tu, Cãozaço;
e Barbacrespa guia os dez aqui. 120

Lambecoco adiante e Dragonaço,


Chafurdado dentuço e Cãorrasgante
e Capetinha e doido Raivozaço. 123

Buscai em torno ao piche borbulhante;


levai estes a salvo até a ponte
que corre inteira as valas adiante”. 126

“Oh, meu mestre, o que vejo ali defronte?”,


falei, “ai, sem escolta vamos sós,
se tu sabes, pois temo que ela apronte; 129

que mesmo sendo sábio quanto sóis,


já não os vês arreganhando a presa
e com o cenho ameaçando a nós?”. 132

E ele: “Não te amedrontes coa braveza;


deixa que eles destilem seu veneno,
que o fazem só a quem não tem defesa”. 135

Ao lado esquerdo foram do terreno;


mas iam com as línguas bem na greta
dos dentes, pro seu guia, como aceno; 138

e este ali mesmo fez do cu trombeta.


Così di ponte in ponte, altro parlando
che la mia comedìa cantar non cura,
venimmo; e tenavamo l colmo, quando 3

restammo per veder l altra fessura


di Malebolge e li altri pianti vani;
e vidila mirabilmente oscura. 6

uale ne l arzanà de Viniziani


bolle l inverno la tenace pece
a rimpalmare i legni lor non sani, 9

ché navicar non ponno — in quella vece


chi fa suo legno novo e chi ristoppa
le coste a quel che più vïaggi fece; 12

chi ribatte da proda e chi da poppa;


altri fa remi e altri volge sarte;
chi terzeruolo e artimon rintoppa —: 15

tal, non per foco ma per divin arte,


bollia là giuso una pegola spessa,
che nviscava la ripa d ogne parte. 18

I vedea lei, ma non vedëa in essa


mai che le bolle che l bollor levava,
e gon ar tutta, e riseder compressa. 21
Mentr io là giù samente mirava,
lo duca mio, dicendo “Guarda, guarda!”,
mi trasse a sé del loco dov io stava. 24

Allor mi volsi come l uom cui tarda


di veder quel che li convien fuggire
e cui paura sùbita sgagliarda, 27

che, per veder, non indugia l partire:


e vidi dietro a noi un diavol nero
correndo su per lo scoglio venire. 30

Ahi quant elli era ne l aspetto fero!


e quanto mi parea ne l atto acerbo,
con l ali aperte e sovra i piè leggero! 33

L omero suo, ch era aguto e superbo,


carcava un peccator con ambo l anche,
e quei tenea de piè ghermito l nerbo. 36

Del nostro ponte disse: “O Malebranche,


ecco un de li anzïan di Santa Zita!
Mettetel sotto, ch i torno per anche 39

a quella terra, che n è ben fornita:


ogn uom v è barattier, fuor che Bonturo;
del no, per li denar, vi si fa ita”. 42

Là giù l buttò, e per lo scoglio duro


si volse; e mai non fu mastino sciolto
con tanta fretta a seguitar lo furo. 45

uel s attuffò, e tornò sù convolto;


ma i demon che del ponte avean coperchio,
gridar: “ ui non ha loco il Santo Volto! 48

qui si nuota altrimenti che nel Serchio!


Però, se tu non vuo di nostri graffi,
non far sopra la pegola soverchio”. 51

Poi l addentar con più di cento raffi,


disser: “Coverto convien che qui balli,
sì che, se puoi, nascosamente accaffi”. 54

Non altrimenti i cuoci a lor vassalli


fanno attuffare in mezzo la caldaia
la carne con li uncin, perché non galli. 57

Lo buon maestro “Acciò che non si paia


che tu ci sia”, mi disse, “giù t acquatta
dopo uno scheggio, ch alcun schermo t aia; 60

e per nulla offension che mi sia fatta,


non temer tu, ch i ho le cose conte,
perch altra volta fui a tal baratta”. 63

Poscia passò di là dal co del ponte;


e com el giunse in su la ripa sesta,
mestier li fu d aver sicura fronte. 66

Con quel furore e con quella tempesta


ch escono i cani a dosso al poverello
che di sùbito chiede ove s arresta, 69

usciron quei di sotto al ponticello,


e volser contra lui tutt i runcigli;
ma el gridò: “Nessun di voi sia fello! 72

Innanzi che l uncin vostro mi pigli,


traggasi avante l un di voi che m oda,
e poi d arruncigliarmi si consigli”. 75

Tutti gridaron: “Vada Malacoda!”;


per ch un si mosse — e li altri stetter fermi —
e venne a lui dicendo: “Che li approda?”. 78

“Credi tu, Malacoda, qui vedermi


esser venuto”, disse l mio maestro,
“sicuro già da tutti vostri schermi, 81

sanza voler divino e fato destro?


Lascian andar, ché nel cielo è voluto
ch i mostri altrui questo cammin silvestro”. 84

Allor li fu l orgoglio sì caduto,


ch e si lasciò cascar l uncino a piedi,
e disse a li altri: “Omai non sia feruto”. 87

E l duca mio a me: “O tu che siedi


tra li scheggion del ponte quatto quatto,
sicuramente omai a me ti riedi”. 90

Per ch io mi mossi e a lui venni ratto;


e i diavoli si fecer tutti avanti,
sì ch io temetti ch ei tenesser patto; 93

così vid ïo già temer li fanti


ch uscivan patteggiati di Caprona,
veggendo sé tra nemici cotanti. 96

I m accostai con tutta la persona


lungo l mio duca, e non torceva li occhi
da la sembianza lor ch era non buona. 99

Ei chinavan li raffi e “Vuo che l tocchi”,


diceva l un con l altro, “in sul groppone?”.
E rispondien: “Sì, fa che gliel accocchi”. 102

Ma quel demonio che tenea sermone


col duca mio, si volse tutto presto
e disse: “Posa, posa, Scarmiglione!”. 105
Poi disse a noi: “Più oltre andar per questo
iscoglio non si può, però che giace
tutto spezzato al fondo l arco sesto. 108

E se l andare avante pur vi piace,


andatevene su per questa grotta;
presso è un altro scoglio che via face. 111

Ier, più oltre cinqu ore che quest otta,


mille dugento con sessanta sei
anni compié che qui la via fu rotta. 114

Io mando verso là di questi miei


a riguardar s alcun se ne sciorina;
gite con lor, che non saranno rei”. 117

“Tra ti avante, Alichino, e Calcabrina”,


cominciò elli a dire, “e tu, Cagnazzo;
e Barbariccia guidi la decina. 120

Libicocco vegn oltre e Draghignazzo,


Cirïatto sannuto e Graffiacane
e Farfarello e Rubicante pazzo. 123

Cercate ntorno le boglienti pane;


costor sian salvi in no a l altro scheggio
che tutto intero va sovra le tane”. 126

“Omè, maestro, che è quel ch i veggio?”,


diss io, “deh, sanza scorta andianci soli,
se tu sa ir; ch i per me non la cheggio. 129

Se tu se sì accorto come suoli,


non vedi tu ch e digrignan li denti
e con le ciglia ne minaccian duoli?”. 132

Ed elli a me: “Non vo che tu paventi;


lasciali digrignar pur a lor senno,
ch e fanno ciò per li lessi dolenti”. 135

Per l argine sinistro volta dienno;


ma prima avea ciascun la lingua stretta
coi denti, verso lor duca, per cenno; 138

ed elli avea del cul fatto trombetta.


Canto XXII
Espantado com o som emitido por Barbacrespa ao m do canto anterior, Dante
elenca variados tipos de movimentos militares e de torneios com seus sinais de
comando, nenhum comparável ao que acabara de ouvir. O repertório evoca uma
referência autobiográ ca, provável lembrança da batalha de Campaldino (1289),
na região de Arezzo (“ó aretinos”), da qual o jovem Dante teria participado entre
os combatentes guelfos [1-12]. Os poetas caminham pela quinta bolsa de
Malebolge junto aos demônios, observando o dorso e a face de alguns condenados
que se erguem do pez para aliviar temporariamente a pena; por infringirem a
norma local, um deles é capturado pelo demônio Cãorrasgante [13-42].
Respondendo a perguntas de Virgílio, o capturado (talvez Ciampolo, da corte de
Teobaldo ii, rei de Navarra entre 1253 e 1270) revela seu pecado por corrupção
e a identidade de um de seus companheiros italianos (“latino”) no piche: frei
Gomita (séc. xiii), originário de Gallura, na Sardenha, que teria aceitado suborno
de inimigos encarcerados de seu governante e é companheiro de pena de Michel
Zanche (séc. xiii), “o senhor de Logudoro”, outra cidade sarda [43-96]. Diante da
curiosidade dos poetas, o condenado promete chamar para um colóquio outros
punidos dentro do pez, desa ando a fúria dos demônios que percebem em tal
oferta uma trapaça [97-117]. Dante chama a atenção do leitor para a astúcia do
corrupto, que consegue escapar deixando dois dos carcereiros, Aliquim e
Pisanévoa, engal nhados dentro do betume. Barbacrespa ordena que seus
companheiros sejam retirados do poço, enquanto os poetas prosseguem sozinhos
[118-151].
Eu já vi cavaleiro ir pela estrada
e dar combate e em la se exibir,
e outras vezes bater em retirada; 3

vi batedor por vossas terras ir,


ó aretinos, vi incursões e saques,
vi torneios e justas de ferir; 6

ora com trombas, ora co atabaques,


com sinos, com sinais de fogo e vela,
com coisas nossas, com de outros sotaques; 9

mas nunca tão estranha charamela


vi mover cavaleiros nem soldados,
nem nave por sinal de terra ou estrela. 12

Íamos com os dez demos dos lados.


Ai, feroz companhia! Mas na igreja
cos santos, na taverna, cos chumbados. 15

Minha atenção buscava onde bordeja


o piche, a ver a condição da vala
e da gente escaldada na peleja. 18

Como os gol nhos quando o mar estala


alertam os marujos com as costas
para salvar o lenho que se abala, 21
assim, pra aliviar as penas postas,
almas danadas vinham com o dorso
e logo não cavam mais expostas. 24

E como à borda d’água num esforço


cam as rãs com o focinho fora,
de modo a ocultar os pés e o torso, 27

assim estava aquela gente agora;


mas quando Barbacrespa se abeirava,
afundavam-se todos pez afora. 30

Eu vi, e o coração inda me agrava,


um se atardar, assim como se encontra
a rã que ca e outra que a água crava; 33

e Cãorrasgante, que mais lhe ia contra,


aferrou sua cabeleira unta
e o trouxe à tona, igual a uma lontra. 36

Eu já sabia os nomes dessa junta,


pois os gravei ao serem escolhidos
e enquanto se chamavam, sem pergunta. 39

“Ó Raivozaço, mete-lhe os compridos


grifos no lombo e arranca o couro dele!”,
gritavam os malditos reunidos. 42

E eu: “Meu mestre, escuta o que me impele


e descobre quem é o desgraçado
que em mãos dos inimigos perde a pele”. 45

Meu guia aproximou-se-lhe de lado;


perguntou-lhe de onde era, e ele disse:
“No reino de Navarra fui gerado. 48

Minha mãe a um senhor quis que eu servisse


após me ter parido de um ribaldo,
destruidor de si e do que visse. 51

Depois fui cortesão do bom Teobaldo


e em seu reino me dei à corrupção:
por isso estou metido neste caldo”. 54

Chafurdado, de cujo bocarrão


saíam presas tais como as de um porco,
o fez senti-las como um aguilhão. 57

O rato em garras más caiu de borco;


mas Barbacrespa o arrebatou cos braços
e disse: “Lá cai, enquanto o enforco”. 60

E a meu mestre virou os seus chumaços:


“Pergunta”, fez, “se queres conhecer
mais dele, antes que o façam em pedaços”. 63

E o guia: “Diz: dos outros a sofrer,


sabes de algum latino neste ninho?”.
E ele: “Há pouco, deixei a padecer 66

um que daquelas bandas foi vizinho.


uisera estar com ele lá coberto,
não temeria garra nem ancinho!”. 69

E Lambecoco: “Chega desse acerto”,


disse; e o sgou no braço com a lança,
puxando-lhe um pedaço para perto. 72

Dragonaço inda o fere sob a pança;


mas seu decurião logo virou
a cara feia, irado coa lambança. 75

uando o bando por pouco sossegou,


a ele, que inda olhava sua ferida,
meu guia sem demora perguntou: 78

“ uem foi o que deixaste na partida


infausta para vires a esta beira?”.
“Foi frei Gomita”, disse de saída, 81

“um de Gallura, foz de fraude inteira,


que deteve os rivais de seu senhor
e deles ouviu loas de primeira. 84

Ganhou grana e os livrou sem ador,


como ele diz; naquele logradouro
foi corrupto supremo, de valor. 87

Michel Zanche, o senhor de Logudoro,


o frequenta; e sua língua só se assanha
a falar da Sardenha em longo coro. 90

Ai, vede esse que os dentes arreganha;


até diria mais, mas inda temo
que ele me coce a tinha com a canha”. 93

Virado a Capetinha o líder demo,


que o viu volver os olhos a arpoar,
disse: “Pra lá, ó pássaro blasfemo!”. 96

“Se desejardes ver ou escutar”,


recomeçou então o espavorido,
“toscanos ou lombardos vou buscar; 99

aos Malagarras dou-me por perdido


para que eles não temam suas vinganças;
e eu, cando aqui mesmo metido, 102

sozinho os trago aos montes nas andanças


quando eu assoviar, que é como agimos
pra vir à tona sem descon anças”. 105
Cãozaço ergueu a fuça — logo vimos —
e em gesto brusco disse: “ ue malícia
ele inventou pra se jogar nos limos!”. 108

Ao que ele, que de ardis tinha divícia,


respondeu: “Malicioso sou demais,
quando busco pros meus maior sevícia”. 111

Aliquim explodiu e, dos demais


discordando, lhe disse: “Se afundares,
de ti não cuido em galopar atrás, 114

mas vou batendo as asas pelos ares.


Deixe-se o cume, e seja a riba escudo:
prova se és mais que nós nestes lugares”. 117

Ó tu que lês, escuta o novo ludo:


da outra margem cada um volveu a vista,
e o primeiro a fazê-lo era o mais rudo. 120

No tempo certo agiu o vigarista:


o navarrês rmou-se e num segundo
saltou e se livrou sem deixar pista. 123

Ao que cada um sentiu culpa no fundo,


e mais o que causou o desconchavo,
o qual veio e gritou: “Peguei-te, imundo!”. 126

Mas pouco lhe valeu: o voo do pravo


não superou o medo; um imergiu,
e o outro ergueu voando o peito bravo — 129

o mesmo faz o pato sem dar pio,


quando o falcão desponta, e então mergulha,
e aquele volta a ito e já sem brio. 132

Irado Pisanévoa com a pulha,


voando atrás o segurou, querendo
que o outro escapasse pra cair na bulha; 135

no que o corrupto foi-se escafedendo,


virou as garras contra o companheiro,
e foram sobre o fosso combatendo. 138

Mas o outro foi um gavião guerreiro


cravando as garras nele, e assim os dois
caíram em meio ao férvido atoleiro. 141

O calor forte os apartou depois;


mas nada de saírem do breu quente,
que o visgo os envolvia em caracóis. 144

Barbacrespa, cos outros seus dolente,


mandou quatro voando à outra encosta
com as forcas, e muito prontamente 147

daqui, dali desceram pela costa;


estenderam os chuços aos caídos
que estavam já cozidos sob a crosta. 150

E os deixamos na gosma revolvidos.


Io vidi già cavalier muover campo,
e cominciare stormo e far lor mostra,
e talvolta partir per loro scampo; 3

corridor vidi per la terra vostra,


o Aretini, e vidi gir gualdane,
fedir torneamenti e correr giostra; 6

quando con trombe, e quando con campane,


con tamburi e con cenni di castella,
e con cose nostrali e con istrane; 9

né già con sì diversa cennamella


cavalier vidi muover né pedoni,
né nave a segno di terra o di stella. 12

Noi andavam con li diece demoni.


Ahi era compagnia! ma ne la chiesa
coi santi, e in taverna coi ghiottoni. 15

Pur a la pegola era la mia ntesa,


per veder de la bolgia ogne contegno
e de la gente ch entro v era incesa. 18

Come i dal ni, quando fanno segno


a marinar con l arco de la schiena
che s argomentin di campar lor legno, 21
talor così, ad alleggiar la pena,
mostrav alcun de peccatori l dosso
e nascondea in men che non balena. 24

E come a l orlo de l acqua d un fosso


stanno i ranocchi pur col muso fuori,
sì che celano i piedi e l altro grosso, 27

sì stavan d ogne parte i peccatori;


ma come s appressava Barbariccia,
così si ritraén sotto i bollori. 30

I vidi, e anco il cor me n accapriccia,


uno aspettar così, com elli ncontra
ch una rana rimane e l altra spiccia; 33

e Graffiacan, che li era più di contra,


li arruncigliò le mpegolate chiome
e trassel sù, che mi parve una lontra. 36

I sapea già di tutti quanti l nome,


sì li notai quando fuorono eletti,
e poi ch e si chiamaro, attesi come. 39

“O Rubicante, fa che tu li metti


li unghioni a dosso, sì che tu lo scuoi!”,
gridavan tutti insieme i maladetti. 42

E io: “Maestro mio, fa, se tu puoi,


che tu sappi chi è lo sciagurato
venuto a man de li avversari suoi”. 45

Lo duca mio li s accostò allato;


domandollo ond ei fosse, e quei rispuose:
“I fui del regno di Navarra nato. 48

Mia madre a servo d un segnor mi puose,


che m avea generato d un ribaldo,
distruggitor di sé e di sue cose. 51

Poi fui famiglia del buon re Tebaldo;


quivi mi misi a far baratteria,
di ch io rendo ragione in questo caldo”. 54

E Cirïatto, a cui di bocca uscia


d ogne parte una sanna come a porco,
li fé sentir come l una sdruscia. 57

Tra male gatte era venuto l sorco;


ma Barbariccia il chiuse con le braccia
e disse: “State in là, mentr io lo nforco”. 60

E al maestro mio volse la faccia;


“Domanda”, disse, “ancor, se più disii
saper da lui, prima ch altri l disfaccia”. 63

Lo duca dunque: “Or dì: de li altri rii


conosci tu alcun che sia latino
sotto la pece?”. E quelli: “I mi partii, 66

poco è, da un che fu di là vicino.


Così foss io ancor con lui coperto,
ch i non temerei unghia né uncino!”. 69

E Libicocco “Troppo avem sofferto”,


disse; e preseli l braccio col runciglio,
sì che, stracciando, ne portò un lacerto. 72

Draghignazzo anco i volle dar di piglio


giuso a le gambe; onde l decurio loro
si volse intorno intorno con mal piglio. 75

uand elli un poco rappaciati fuoro,


a lui, ch ancor mirava sua ferita,
domandò l duca mio sanza dimoro: 78

“Chi fu colui da cui mala partita


di che facesti per venire a proda?”.
Ed ei rispuose: “Fu frate Gomita, 81

quel di Gallura, vasel d ogne froda,


ch ebbe i nemici di suo donno in mano,
e fé sì lor, che ciascun se ne loda. 84

Danar si tolse e lasciolli di piano,


sì com e dice; e ne li altri offici anche
barattier fu non picciol, ma sovrano. 87

Usa con esso donno Michel Zanche


di Logodoro; e a dir di Sardigna
le lingue lor non si sentono stanche. 90

Omè, vedete l altro che digrigna;


i direi anche, ma i temo ch ello
non s apparecchi a grattarmi la tigna”. 93

E l gran proposto, vòlto a Farfarello


che stralunava li occhi per fedire,
disse: “Fatti n costà, malvagio uccello!”. 96

“Se voi volete vedere o udire”,


ricominciò lo spaürato appresso,
“Toschi o Lombardi, io ne farò venire; 99

ma stieno i Malebranche un poco in cesso,


sì ch ei non teman de le lor vendette;
e io, seggendo in questo loco stesso, 102

per un ch io son, ne farò venir sette


quand io suffolerò, com è nostro uso
di fare allor che fori alcun si mette”. 105
Cagnazzo a cotal motto levò l muso,
crollando l capo, e disse: “Odi malizia
ch elli ha pensata per gittarsi giuso!”. 108

Ond ei, ch avea lacciuoli a gran divizia,


rispuose: “Malizioso son io troppo,
quand io procuro a mia maggior trestizia”. 111

Alichin non si tenne e, di rintoppo


a li altri, disse a lui: “Se tu ti cali,
io non ti verrò dietro di gualoppo, 114

ma batterò sovra la pece l ali.


Lascisi l collo, e sia la ripa scudo,
a veder se tu sol più di noi vali”. 117

O tu che leggi, udirai nuovo ludo:


ciascun da l altra costa li occhi volse,
quel prima, ch a ciò fare era più crudo. 120

Lo Navarrese ben suo tempo colse;


fermò le piante a terra, e in un punto
saltò e dal proposto lor si sciolse. 123

Di che ciascun di colpa fu compunto,


ma quei più che cagion fu del difetto;
però si mosse e gridò: “Tu se giunto!”. 126

Ma poco i valse: ché l ali al sospetto


non potero avanzar; quelli andò sotto,
e quei drizzò volando suso il petto: 129

non altrimenti l anitra di botto,


quando l falcon s appressa, giù s attuffa,
ed ei ritorna sù crucciato e rotto. 132

Irato Calcabrina de la buffa,


volando dietro li tenne, invaghito
che quei campasse per aver la zuffa; 135

e come l barattier fu disparito,


così volse li artigli al suo compagno,
e fu con lui sopra l fosso ghermito. 138

Ma l altro fu bene sparvier grifagno


ad artigliar ben lui, e amendue
cadder nel mezzo del bogliente stagno. 141

Lo caldo sghermitor sùbito fue;


ma però di levarsi era neente,
sì avieno inviscate l ali sue. 144

Barbariccia, con li altri suoi dolente,


quattro ne fé volar da l altra costa
con tutt i raffi, e assai prestamente 147

di qua, di là discesero a la posta;


porser li uncini verso li mpaniati,
ch eran già cotti dentro da la crosta. 150

E noi lasciammo lor così mpacciati.


Canto XXIII
Afastados da escolta diabólica e dos pecadores, os poetas caminham em silêncio.
A confusão entre o corrupto e os demônios traz à mente de Dante uma fábula
atribuída a Esopo, que narra a fraude imposta por uma rã a um rato, cuja moral se
aplicaria ao ocorrido no piche [1-9]. Dante é tomado pelo medo de que os
demônios enganados se voltem contra eles dois e pede a Virgílio que se escondam.
O guia o compreende de imediato e, ao ver a chegada iminente dos demônios,
decide pela fuga, durante a qual protege Dante como a um lho indefeso [10-57].
Os poetas chegam à sexta bolsa de Malebolge, onde os hipócritas são punidos sob
pesadas capas semelhantes às usadas no mosteiro beneditino em Cluny, mais
pesadas que aquelas impostas pelo imperador Frederico ii para punir o crime de
lesa-majestade [58-66]. A fala de Dante, típica da Toscana, é reconhecida por um
dos condenados que caminhava lentamente com sua dupla: é Catalano dei
Malavolti (c. 1210-85) com Loderingo degli Andalò (c. 1210-93), frades
gaudentes que juntos governaram Florença num cargo que costumava ser ocupado
por apenas um, normalmente de fora da cidade. As marcas desse governo ainda
podiam ser vistas nos arredores de uma antiga torre (“Gardingo”), região em que
casas gibelinas foram saqueadas e destruídas [67-108]. Dante interrompe sua
invectiva contra os frades ao se dar conta de um condenado cruci cado no chão,
que suporta o enorme peso dos passantes: é Caifás, que junto a seu sogro Anás e
outros ali na mesma condição, participou do julgamento de Cristo [109-123]. A
pedido de Virgílio, os condenados indicam o caminho a seguir, di cultoso pela
queda de uma das pontes; salientam, ainda, a fama de mentirosos que os
demônios têm mesmo fora do inferno. Ao perceber-se enganado pelos
Malagarras, o poeta latino parte irritado, e Dante o segue [124-148].
Sós e calados, já sem companhia,
íamos um na frente e o outro após,
como frades menores vão por via. 3

A fábula de Esopo tomou voz


em minha mente ao ver a rixa feia:
a da rã e do rato em maus lençóis; 6

pois mais não se assemelha “sus” e “eia”


que um ao outro, se unidos em escala,
princípio e m se xam numa ideia. 9

E como um pensamento de outro estala,


nasceu daquele assim outro em seguida,
de modo que meu medo em dobro escala. 12

Pensei: “Por nossa causa a dupla in da


foi tão troçada e ofesa com a liça,
que creio mais exposta sua ferida. 15

Se a ira sobre o mal querer se atiça,


virão atrás de nós pior que o agelo
do cão que contra a lebre se encarniça”. 18

Já sentia eriçar todo meu pelo


de pavor e seguia atrás atento
quando falei: “Meu mestre, ouve este apelo 21
e esconde a mim e a ti, que eu me espavento
cos Malagarras. Vêm em destrambelho,
que só de imaginar sinto o tormento”. 24

Ele falou: “Se eu fosse feito espelho,


eu não traria tua imagem fora
tão pronto quanto à interna me emparelho. 27

Já teu pensar ao meu se unia agora


em aspecto e atitude tão perfeita,
que de nós dois um só conselho fora. 30

Se for leve o declive à mão direita,


e pudermos descer à outra cova,
fugiremos ao cerco que se estreita”. 33

Mal ele aconselhou saída nova,


que os vi vindo a voar numa brigada
não longe, para dar-nos uma sova. 36

Meu guia me tomou numa puxada,


como a mãe que ao rumor logo desperta
e ao ver a chama acesa na beirada 39

agarra o lho e corre em fuga aberta,


pondo mais a ele do que a si segura,
tanto que vai avante descoberta; 42

e já do topo dessa encosta dura


baixou supino o paredão pendente
que um dos costados da outra cova mura. 45

Jamais moveu assim água corrente


a roda de um moinho num terreiro
quando ela junto às pás chega potente, 48

como meu mestre ali se foi ligeiro,


levando-me por cima de seu peito
como seu lho, não como parceiro. 51

Tão logo o pé tocou o fundo leito


abaixo, eles surgiram na colina
sobre nós; e aqui o medo foi desfeito, 54

pois a alta providência os con na


ao ministério do valado quinto,
tolhendo a todos travessar a quina. 57

Topamos ali embaixo um povo tinto


que caminhava em torno a passos lentos,
chorando com semblante exausto e extinto. 60

Capuchavam-se em capas de caimentos


ante seus olhos, feitas com a talha
que em Cluny se costura nos conventos. 63

Por fora são douradas qual medalha,


mas dentro são de chumbo, e tão pesado,
que Frederico as punha como palha. 66

Oh, tão penoso manto eternizado!


Pela esquerda seguimos outra vez
com eles, todos num chorar prostrado; 69

mas sob o peso os réus na languidez


iam tão lerdos, que a cada passo nosso
mudava a companhia em rapidez. 72

Então z a meu guia: “Se é que posso,


acha quem feito ou nome se conheça
e os olhos move em torno deste fosso”. 75

E um que ouviu a toscana língua expressa


gritou por trás de nós: “Detende os pés
que vão pela aura fosca tão depressa! 78

uem sabe tens de mim o que tu pedes”.


Meu guia então virou-se e disse: “Aguarda
e segue o passo dele bem ao rés”. 81

Parei; vi dois a vir com pressa tarda,


no rosto o ânimo de estar comigo,
mas sua carga os deixava em retaguarda. 84

Chegaram de olho torto e pouco amigo,


me remiraram totalmente mudos
e entre si conversaram, sós, consigo: 87

“Este parece vivo em sopros rudos;


e se estão mortos, por qual privilégio
vão descobertos dos mantéus maçudos?”. 90

Falaram: “Ó toscano, que ao colégio


dos hipócritas míseros vieste,
dizer quem és não seja sacrilégio”. 93

E respondi: “Nasci e cresci a leste


do belo Arno que corta a grande vila,
e trago o corpo que me sempre veste. 96

Mas vós quem sois, a quem tanto destila,


pelo que vejo, a dor que o rosto alcança?
ue pena carregais que assim cintila?”. 99

“As capas de ouro”, disse um na andança,


“são de chumbo em tamanha quantidade,
que nos fazem ranger como balança. 102

Gaudentes de Bolonha fomos frade:


sou Catalano e dividi o poder
com Loderingo lá em tua cidade, 105
que costuma um só homem eleger,
pra garantir a paz; de modo tal,
que inda em torno ao Gardingo há de se ver”. 108

Eu comecei: “Ó frades, vosso mal…”;


mas me calei ao ver cruci cado
um com três paus ao chão na horizontal. 111

uando me viu, torceu-se para o lado,


soprando sobre a barba a suspirar;
frei Catalan, que o tinha já notado, 114

me disse: “Este que miras a penar


aos fariseus falou que se podia
pelo povo um só homem imolar. 117

Atravessado está, e nu, na via,


como tu vês, co peso que ele aguenta
de todos que ali passam, na agonia. 120

Do mesmo jeito o sogro se arrebenta


nesta fossa com outros do concílio
que foi para os judeus fonte cruenta”. 123

Então eu vi o espanto de Virgílio


perante o derribado em cruz atroz
tão torpemente em seu eterno exílio. 126

Depois volveu ao frade com tal voz:


“Ora diz, se quiseres consentir,
se na direita jaz alguma foz 129

por onde os dois possamos prosseguir


sem obrigar os anjos infernais
a virem deste fundo nos subir”. 132

Respondeu ele: “Já verás sinais


do arco de pedra que sai do maior
círculo e vara todos os canais, 135

salvo este, pois rompeu-se em derredor;


mas podereis montar pela ruína
que vai do fundo à parte superior”. 138

Meu guia sua cabeça um pouco inclina


e diz depois: “Ajuda tão medonha
nos dava quem aqui o errar chacina”. 141

E o frade: “Eu já ouvia em Bolonha


falar dos vícios do diabo, aliás,
que é pai da felonia e sem-vergonha”. 144

Então meu guia, num passo tenaz,


se foi turvo, com leve ira no viso;
e deixei os calcados para trás, 147

seguindo o caro pé que trilha o piso.


Taciti, soli, sanza compagnia
n andavam l un dinanzi e l altro dopo,
come frati minor vanno per via. 3

Vòlt era in su la favola d Isopo


lo mio pensier per la presente rissa,
dov el parlò de la rana e del topo; 6

ché più non si pareggia ‘mo e ‘issa


che l un con l altro fa, se ben s accoppia
principio e ne con la mente ssa. 9

E come l un pensier de l altro scoppia,


così nacque di quello un altro poi,
che la prima paura mi fé doppia. 12

Io pensava così: “ uesti per noi


sono scherniti con danno e con beffa
sì fatta, ch assai credo che lor nòi. 15

Se l ira sovra l mal voler s aggueffa,


ei ne verranno dietro più crudeli
che l cane a quella lievre ch elli acceffa”. 18

Già mi sentia tutti arricciar li peli


de la paura e stava in dietro intento,
quand io dissi: “Maestro, se non celi 21
te e me tostamente, i ho pavento
d i Malebranche. Noi li avem già dietro;
io li magino sì, che già li sento”. 24

E quei: “S i fossi di piombato vetro,


l imagine di fuor tua non trarrei
più tosto a me, che quella dentro mpetro. 27

Pur mo venieno i tuo pensier tra ’ miei,


con simile atto e con simile faccia,
sì che d intrambi un sol consiglio fei. 30

S elli è che sì la destra costa giaccia,


che noi possiam ne l altra bolgia scendere,
noi fuggirem l imaginata caccia”. 33

Già non compié di tal consiglio rendere,


ch io li vidi venir con l ali tese
non molto lungi, per volerne prendere. 36

Lo duca mio di sùbito mi prese,


come la madre ch al romore è desta
e vede presso a sé le amme accese, 39

che prende il glio e fugge e non s arresta,


avendo più di lui che di sé cura,
tanto che solo una camiscia vesta; 42

e giù dal collo de la ripa dura


supin si diede a la pendente roccia,
che l un de lati a l altra bolgia tura. 45

Non corse mai sì tosto acqua per doccia


a volger ruota di molin terragno,
quand ella più verso le pale approccia, 48

come l maestro mio per quel vivagno,


portandosene me sovra l suo petto,
come suo glio, non come compagno. 51

A pena fuoro i piè suoi giunti al letto


del fondo giù, ch e furon in sul colle
sovresso noi; ma non lì era sospetto: 54

ché l alta provedenza che lor volle


porre ministri de la fossa quinta,
poder di partirs indi a tutti tolle. 57

Là giù trovammo una gente dipinta


che giva intorno assai con lenti passi,
piangendo e nel sembiante stanca e vinta. 60

Elli avean cappe con cappucci bassi


dinanzi a li occhi, fatte de la taglia
che in Clugnì per li monaci fassi. 63

Di fuor dorate son, sì ch elli abbaglia;


ma dentro tutte piombo, e gravi tanto,
che Federigo le mettea di paglia. 66

Oh in etterno faticoso manto!


Noi ci volgemmo ancor pur a man manca
con loro insieme, intenti al tristo pianto; 69

ma per lo peso quella gente stanca


venìa sì pian, che noi eravam nuovi
di compagnia ad ogne mover d anca. 72

Per ch io al duca mio: “Fa che tu trovi


alcun ch al fatto o al nome si conosca,
e li occhi, sì andando, intorno movi”. 75

E un che ntese la parola tosca,


di retro a noi gridò: “Tenete i piedi,
voi che correte sì per l aura fosca! 78

Forse ch avrai da me quel che tu chiedi”.


Onde l duca si volse e disse: “Aspetta,
e poi secondo il suo passo procedi”. 81

Ristetti, e vidi due mostrar gran fretta


de l animo, col viso, d esser meco;
ma tardavali l carco e la via stretta. 84

uando fuor giunti, assai con l occhio bieco


mi rimiraron sanza far parola;
poi si volsero in sé, e dicean seco: 87

“Costui par vivo a l atto de la gola;


e s e son morti, per qual privilegio
vanno scoperti de la grave stola?”. 90

Poi disser me: “O Tosco, ch al collegio


de l ipocriti tristi se venuto,
dir chi tu se non avere in dispregio”. 93

E io a loro: “I fui nato e cresciuto


sovra l bel ume d Arno a la gran villa,
e son col corpo ch i ho sempre avuto. 96

Ma voi chi siete, a cui tanto distilla


quant i veggio dolor giù per le guance?
e che pena è in voi che sì sfavilla?”. 99

E l un rispuose a me: “Le cappe rance


son di piombo sì grosse, che li pesi
fan così cigolar le lor bilance. 102

Frati godenti fummo, e bolognesi;


io Catalano e questi Loderingo
nomati, e da tua terra insieme presi 105
come suole esser tolto un uom solingo,
per conservar sua pace; e fummo tali,
ch ancor si pare intorno dal Gardingo”. 108

Io cominciai: “O frati, i vostri mali…”;


ma più non dissi, ch a l occhio mi corse
un, cruci sso in terra con tre pali. 111

uando mi vide, tutto si distorse,


soffiando ne la barba con sospiri;
e l frate Catalan, ch a ciò s accorse, 114

mi disse: “ uel con tto che tu miri,


consigliò i Farisei che convenia
porre un uom per lo popolo a martìri. 117

Attraversato è, nudo, ne la via,


come tu vedi, ed è mestier ch el senta
qualunque passa, come pesa, pria. 120

E a tal modo il socero si stenta


in questa fossa, e li altri dal concilio
che fu per li Giudei mala sementa”. 123

Allor vid io maravigliar Virgilio


sovra colui ch era disteso in croce
tanto vilmente ne l etterno essilio. 126

Poscia drizzò al frate cotal voce:


“Non vi dispiaccia, se vi lece, dirci
s a la man destra giace alcuna foce 129

onde noi amendue possiamo uscirci,


sanza costrigner de li angeli neri
che vegnan d esto fondo a dipartirci”. 132

Rispuose adunque: “Più che tu non speri


s appressa un sasso che da la gran cerchia
si move e varca tutt i vallon feri, 135

salvo che n questo è rotto e nol coperchia;


montar potrete su per la ruina,
che giace in costa e nel fondo soperchia”. 138

Lo duca stette un poco a testa china;


poi disse: “Mal contava la bisogna
colui che i peccator di qua uncina”. 141

E l frate: “Io udi già dire a Bologna


del diavol vizi assai, tra ’ quali udi
ch elli è bugiardo e padre di menzogna”. 144

Appresso il duca a gran passi sen gì,


turbato un poco d ira nel sembiante;
ond io da li ncarcati mi parti 147

dietro a le poste de le care piante.


Canto XXIV
O abatimento de Dante ao notar a perturbação de Virgílio pelo engano dos
demônios logo se dissolve quando ele vê seu guia sereno diante da ponte caída, tal
como numa manhã fria de inverno (“o sol sob Aquário”), quando o sol derrete a
geada e tranquiliza o pastor que precisa alimentar seu rebanho [1-21]. Os dois
sobem com di culdade pela encosta pedregosa, com Dante sendo ajudado por
Virgílio, até que, já no topo, o poeta orentino se rende ao cansaço e à falta de ar.
Virgílio o repreende por sua fraqueza, incitando-o a recuperar as forças e retomar
a caminhada até a sétima bolsa de Malebolge [22-60]. Enquanto falava para
esconder o cansaço, Dante percebe vozes incompreensíveis no fundo da vala
escura e pede a Virgílio que desçam lá para ver. Naquele lugar, ladrões são
atacados por serpentes dos mais variados tipos, em quantidade muito superior à
que devia existir em regiões inóspitas; não havia fuga ou mesmo “heliotrópia”,
pedra a que os lapidários medievais atribuíam um efeito antiofídico [61-96]. À vista
dos poetas, um dos condenados é mordido por uma cobra e, como a mítica fênix,
se transmuta em cinzas, recobrando em seguida sua a ita forma humana: trata-se
de Vanni Fucci (séc. xiii), lho bastardo de um nobre de Pistoia (“toca soberana”)
[97-139]. Diante da vergonha de ser reconhecido, o ladrão faz uma profecia que é

capaz de ferir Dante pelo teor político: a cidade de Pistoia expulsará os


partidários dos guelfos negros (“dos Negros se faz magra”) e Florença mudará de
governo (“renova sua nação”). Em seguida (1302), haverá uma guerra (“Marte
extrai”) no território de Pistoia (“Piceno”), quando um poderoso “raio” (possível
alusão a Moroello Malaspina, c. 1268-1315, marquês de Lunigiana [“Val di
Magra”]) acabará com a “névoa” (os guelfos brancos) [140-151].
Naquela parte do ano inda criança
em que o sol sob Aquário os os aquece
e a noite ao dia em meio já se avança, 3

quando a geada sobre a terra tece


de sua branca irmã a clara imagem
e o calor de sua pena se arrefece, 6

o pastorzinho a quem falta forragem


levanta e olha e vê toda a campina
embranquecida; inquieto e sem coragem, 9

retorna à casa e impreca sua sina


como o coitado que perdeu o rumo;
mas sai e a ressurgir vê na ruína 12

a esperança, a mudar do mundo o prumo


num segundo, e então pega seu cajado
e sai coas ovelhinhas num arrumo. 15

Assim meu mestre me deixou prostrado


quando o notei com perturbada fronte,
e bem presto meu mal foi medicado; 18

pois, ao chegarmos à ruinosa ponte,


virou-se o guia a mim co aquele rosto
doce que antes eu vira ao pé do monte. 21
Abriu os braços, tendo em si reposto
alguma ideia após mirar de perto
aquele escombro, e me levou do posto. 24

E como quem pondera e age certo,


sempre antevendo aquilo que depara,
assim, me erguendo ao cimo descoberto 27

de um rochedo, notava uma outra apara


dizendo: “Agora agarra-te naquela,
mas antes testa se o beiral te apara”. 30

De capa era impossível ir por ela,


pois nós, leve ele e eu pelo seu braço,
subíamos bem mal à apalpadela. 33

E se não fosse o cinturão do espaço


menor que a outra encosta mais recorta,
não sei ele, mas eu via o fracasso. 36

Mas como Malebolge até a porta


do baixíssimo poço toda pende,
a posição de cada vale importa 39

em que uma encosta sobe e outra descende;


assim chegamos a nal à ponta
de onde a última pedra se desprende. 42

A falta de ar mostrou-se de tal monta


quando lá fui, que eu não pude ir além
e me sentei feito homem que desmonta. 45

“Afasta essa preguiça, por teu bem”,


disse meu mestre, “pois, sentado em pluma
ou sob a colcha, a fama não se tem; 48

e quem sem ela a vida assim consuma,


tal vestígio de si deixa na terra,
qual fumo no ar e sobre a água espuma. 51

Então levanta e a prostação encerra


com ânimo a vencer qualquer batalha,
se com seu grave corpo não se aterra. 54

Subir devemos mais alta muralha,


não basta dos demônios ter fugido.
Se tu me entendes, faz que isso te valha”. 57

Ergui-me então, mostrando-me fornido


de mais vigor do que eu em mim sentia,
e disse: “Vai, que eu sou forte e aguerrido”. 60

Por sobre a rocha tomamos a via,


que era íngreme, áspera e intratável,
mais árdua que a que antes nos cabia. 63

Falava a m de me mostrar ável;


donde uma voz nos veio da outra vala,
formando uma sentença indecifrável. 66

Não sei que disse, embora sobre a ala


eu fosse do arco que atravessa os uivos;
sua voz era de alguém que vaga e fala. 69

Voltei-me para baixo, e os olhos vivos


não podiam mirar o fundo escuro,
e falei: “Mestre, vai aos a itivos 72

sons da outra cinta e desçamos o muro,


pois, tal como ouço aqui e não entendo,
assim lá vejo e nada me a guro”. 75

“Outra resposta”, disse, “não te estendo


senão agindo, que a demanda honesta
se há de seguir com obra, emudecendo”. 78

Nós baixamos da ponte pela aresta


onde se junta com a oitava riba,
e então se fez a fossa manifesta: 81

e vi lá dentro horrível, na derriba,


um nó tão variado de serpentes,
que inda à lembrança o corpo não se estriba. 84

ue a Líbia não se louve se vão rentes


às suas areias víbora ou cobra,
an sbenas ou mambas veementes, 87

pois tanta pestilência mais que dobra


em dose e em dano, e mais que na Etiópia
somada ao Mar Vermelho ainda sobra. 90

Entre esta crua e miserável cópia


corriam gentes nuas e assustadas,
sem esperar saída ou heliotrópia: 93

por serpes tinham mãos atrás atadas;


elas cingiam pelos ancos coda
e testa, e à frente vinham enroscadas. 96

Mas eis que a um que estava à nossa roda


uma cobra lançou-se o trespassando
lá onde o colo aos ombros se acomoda. 99

Nem O nem I se foi veloz grafando


quanto ele todo ardeu e se desfez
em cinzas, ali mesmo desabando; 102

e após cair por terra de uma vez,


o pó se recolheu mais que depressa
por si e na forma de antes se refez. 105
Assim por grandes sábios se professa
que morre a fênix e depois renasce
quando os quinhentos anos atravessa; 108

capim nem feno em sua vida pasce,


mas só de lágrimas de amomo e incenso,
e em nardo e mirra tem seu desenlace. 111

E como quem desaba sem ter senso,


por força do diá que ao chão o tira
ou de outra opilação que o deixa tenso, 114

quando levanta e a sua volta mira


todo perdido pela angústia atroz
que padeceu, e olhando ele suspira: 117

tal era o pecador de pé após.


Oh potência de Deus, como é severa,
que fere por vingança feito algoz! 120

O guia então lhe perguntou quem era;


e o outro respondeu: “Vim da Toscana,
há pouco tempo, e entrei nesta cratera. 123

Levei vida de bicho, não humana,


e fui bastardo; Vanni Fucci sou,
Pistoia me foi toca soberana”. 126

E eu ao guia: “Se ele não troçou,


indaga-lhe que culpa aqui o impeliu,
pois ele é um sanguinário que matou”. 129

O danado entendeu e não ngiu,


mas a mim se eriçou com alma e rosto
e de turva vergonha se tingiu; 132

então fez: “Mais me dói e dá desgosto


ser agrado por ti nesta miséria,
que quando da outra vida fui deposto. 135

Não vou de tua questão fazer pilhéria;


tão fundo aqui me vejo pois roubei
os tesouros da igreja, coisa séria, 138

e a culpa disso a outros lá deixei.


Mas porque não dispões de tal visão,
se saíres jamais de onde afundei, 141

escuta meu anúncio co atenção.


Pistoia antes dos Negros se faz magra;
Florença após renova sua nação. 144

Um raio Marte extrai de Val di Magra


em turbulentas nuvens envolvido,
e em tempestade impetuosa e agra 147

será sobre o Piceno combatido;


mas ele rme a névoa há de romper,
e cada Branco ali será ferido. 150

E isso falei porque vai te doer!”.


In quella parte del giovanetto anno
che l sole i crin sotto l Aquario tempra
e già le notti al mezzo dì sen vanno, 3

quando la brina in su la terra assempra


l imagine di sua sorella bianca,
ma poco dura a la sua penna tempra, 6

lo villanello a cui la roba manca,


si leva, e guarda, e vede la campagna
biancheggiar tutta; ond ei si batte l anca, 9

ritorna in casa, e qua e là si lagna,


come l tapin che non sa che si faccia;
poi riede, e la speranza ringavagna, 12

veggendo l mondo aver cangiata faccia


in poco d ora, e prende suo vincastro
e fuor le pecorelle a pascer caccia. 15

Così mi fece sbigottir lo mastro


quand io li vidi sì turbar la fronte,
e così tosto al mal giunse lo mpiastro; 18

ché, come noi venimmo al guasto ponte,


lo duca a me si volse con quel piglio
dolce ch io vidi prima a piè del monte. 21
Le braccia aperse, dopo alcun consiglio
eletto seco riguardando prima
ben la ruina, e diedemi di piglio. 24

E come quei ch adopera ed estima,


che sempre par che nnanzi si proveggia,
così, levando me sù ver la cima 27

d un ronchione, avvisava un altra scheggia


dicendo: “Sovra quella poi t aggrappa;
ma tenta pria s è tal ch ella ti reggia”. 30

Non era via da vestito di cappa,


ché noi a pena, ei lieve e io sospinto,
potavam sù montar di chiappa in chiappa. 33

E se non fosse che da quel precinto


più che da l altro era la costa corta,
non so di lui, ma io sarei ben vinto. 36

Ma perché Malebolge inver la porta


del bassissimo pozzo tutta pende,
lo sito di ciascuna valle porta 39

che l una costa surge e l altra scende;


noi pur venimmo al ne in su la punta
onde l ultima pietra si scoscende. 42

La lena m era del polmon sì munta


quand io fui sù, ch i non potea più oltre,
anzi m assisi ne la prima giunta. 45

“Omai convien che tu così ti spoltre”,


disse l maestro; “ché, seggendo in piuma,
in fama non si vien, né sotto coltre; 48

sanza la qual chi sua vita consuma,


cotal vestigio in terra di sé lascia,
qual fummo in aere e in acqua la schiuma. 51

E però leva sù; vinci l ambascia


con l animo che vince ogne battaglia,
se col suo grave corpo non s accascia. 54

Più lunga scala convien che si saglia;


non basta da costoro esser partito.
Se tu mi ntendi, or fa sì che ti vaglia”. 57

Leva mi allor, mostrandomi fornito


meglio di lena ch i non mi sentia,
e dissi: “Va, ch i son forte e ardito”. 60

Su per lo scoglio prendemmo la via,


ch era ronchioso, stretto e malagevole,
ed erto più assai che quel di pria. 63

Parlando andava per non parer evole;


onde una voce uscì de l altro fosso,
a parole formar disconvenevole. 66

Non so che disse, ancor che sovra l dosso


fossi de l arco già che varca quivi;
ma chi parlava ad ire parea mosso. 69

Io era vòlto in giù, ma li occhi vivi


non poteano ire al fondo per lo scuro;
per ch io: “Maestro, fa che tu arrivi 72

da l altro cinghio e dismontiam lo muro;


ché, com i odo quinci e non intendo,
così giù veggio e neente affiguro”. 75

“Altra risposta”, disse, “non ti rendo


se non lo far; ché la dimanda onesta
si de seguir con l opera tacendo”. 78

Noi discendemmo il ponte da la testa


dove s aggiugne con l ottava ripa,
e poi mi fu la bolgia manifesta: 81

e vidivi entro terribile stipa


di serpenti, e di sì diversa mena
che la memoria il sangue ancor mi scipa. 84

Più non si vanti Libia con sua rena;


ché se chelidri, iaculi e faree
produce, e cencri con an sibena, 87

né tante pestilenzie né sì ree


mostrò già mai con tutta l Etïopia
né con ciò che di sopra al Mar Rosso èe. 90

Tra questa cruda e tristissima copia


corrëan genti nude e spaventate,
sanza sperar pertugio o elitropia: 93

con serpi le man dietro avean legate;


quelle ccavan per le ren la coda
e l capo, ed eran dinanzi aggroppate. 96

Ed ecco a un ch era da nostra proda,


s avventò un serpente che l tra sse
là dove l collo a le spalle s annoda. 99

Né O sì tosto mai né I si scrisse,


com el s accese e arse, e cener tutto
convenne che cascando divenisse; 102

e poi che fu a terra sì distrutto,


la polver si raccolse per sé stessa
e n quel medesmo ritornò di butto. 105
Così per li gran savi si confessa
che la fenice more e poi rinasce,
quando al cinquecentesimo anno appressa; 108

erba né biado in sua vita non pasce,


ma sol d incenso lagrime e d amomo,
e nardo e mirra son l ultime fasce. 111

E qual è quel che cade, e non sa como,


per forza di demon ch a terra il tira,
o d altra oppilazion che lega l omo, 114

quando si leva, che ntorno si mira


tutto smarrito de la grande angoscia
ch elli ha sofferta, e guardando sospira: 117

tal era l peccator levato poscia.


Oh potenza di Dio, quant è severa,
che cotai colpi per vendetta croscia! 120

Lo duca il domandò poi chi ello era;


per ch ei rispuose: “Io piovvi di Toscana,
poco tempo è, in questa gola era. 123

Vita bestial mi piacque e non umana,


sì come a mul ch i fui; son Vanni Fucci
bestia, e Pistoia mi fu degna tana”. 126

E ïo al duca: “Dilli che non mucci,


e domanda che colpa qua giù l pinse;
ch io l vidi omo di sangue e di crucci”. 129

E l peccator, che ntese, non s in nse,


ma drizzò verso me l animo e l volto,
e di trista vergogna si dipinse; 132

poi disse: “Più mi duol che tu m hai colto


ne la miseria dove tu mi vedi,
che quando fui de l altra vita tolto. 135

Io non posso negar quel che tu chiedi;


in giù son messo tanto perch io fui
ladro a la sagrestia d i belli arredi, 138

e falsamente già fu apposto altrui.


Ma perché di tal vista tu non godi,
se mai sarai di fuor da luoghi bui, 141

apri li orecchi al mio annunzio, e odi.


Pistoia in pria d i Neri si dimagra;
poi Fiorenza rinova gente e modi. 144

Tragge Marte vapor di Val di Magra


ch è di torbidi nuvoli involuto;
e con tempesta impetüosa e agra 147

sovra Campo Picen a combattuto;


ond ei repente spezzerà la nebbia,
sì ch ogne Bianco ne sarà feruto. 150

E detto l ho perché doler ti debbia!”.


Canto XXV
Ao terminar sua profecia, Vanni Fucci amaldiçoa Deus fazendo gas, sendo
imediatamente atacado por duas cobras que interrompem a blasfêmia. Dante se
volta contra os cidadãos de Pistoia, que naquele tempo estaria mais repleta de
maldade do que no momento de sua fundação (“tua semente”), pois, segundo a
lenda, a cidade teria sido fundada pelas milícias do conjurador romano Catilina.
O ladrão é tido como mais soberbo que Capaneu (“quem caiu em Tebas”) [1-16].
Coberto por mais répteis do que poderia haver na selvagem região da Maremma,
os poetas avistam o centauro Caco, morto por Hércules após roubar parte de seu
rebanho [17-33]. Em seguida, aproximam-se três espíritos que citam um quarto,
Cianfa (talvez da família orentina Donati, morto em 1289) [34-45]. Dante
compartilha seu espanto com o leitor: uma cobra ataca Agnel (talvez Agnolo, dos
também orentinos Brunelleschi) e se funde com ele, tornando irreconhecíveis as
formas anteriores, que depois viram um estranho réptil [46-78]. Um segundo
espírito é mordido por outra serpente no umbigo (por onde “antes se vai dando/
nosso alimento”), fazendo sair fumaça da boca da serpente e do ventre do
golpeado [79-93]. Usando uma fórmula comum para emular seus modelos
literários, Dante diz que Lucano (Farsália) e Ovídio (Metamorfoses) se calem, pois
as mutações que irá narrar excedem aquelas dos poetas antigos. Uma delas é a de
Buoso (talvez também dos Donati), que se transforma em cobra após ser picado
por ela, ao mesmo tempo que esta assume forma humana [94-141]. Mesmo com a
visão perturbada pela cena, Dante reconhece Puccio Manco (da família Galigai) e
identi ca na ex-serpente aquele que foi assassinado no castelo de Gaville (talvez
Francesco Cavalcanti) [142-151].
Ao m de suas palavras o ladrão
ergueu ambas as mãos fazendo gas
e gritou: “Toma, Deus, esta agressão!”. 3

As cobras desde então foram-me amigas,


pois uma em seu pescoço se enroscou
como dizendo “Chega, e mais não digas”; 6

uma outra pelos braços o amarrou


atando-se tão forte àquele tal,
que ele de pronto se imobilizou. 9

Ai, Pistoia, Pistoia! A nal


por que não queimas toda e mais não duras,
pois tua semente vence em fazer mal? 12

Por todo o inferno em regiões escuras


não vi espírito em Deus tanto soberbo,
nem quem caiu em Tebas das alturas. 15

Ele se foi emudecendo o verbo;


e eu vi um centauro cheio de ira
vir clamando: “Cadê, cadê o acerbo?”. 18

Na Maremma talvez jamais se vira


mais serpes que as que tinha sobre o dorso
té onde seu aspecto humano vira. 21
Sobre seus ombros, posto atrás do torso,
de asas abertas um dragão jazia;
e com quem topa o abrasa sem esforço. 24

Meu mestre disse: “Eis Caco, que vertia


aos pés rochosos do monte Aventino
muitas vezes um lago de sangria. 27

Não segue dos irmãos mesmo destino,


pelo furto que fraudulento fez
do rebanho vizinho, em desatino; 30

até que se encerrou sua sordidez


sob a grã clava de Hércules, que cem
talvez lhe deu, e não sentiu nem dez”. 33

Inda falava enquanto foi-se além,


e três almas vieram até nós,
das quais não percebemos o vaivém, 36

senão quando gritaram: “ uem sois vós?”;


assim nossa conversa se deteve,
e escutamos apenas essa voz. 39

Eu não os conhecia, mas em breve,


como é de acontecer em todo caso,
um ao outro nomeou como se deve 42

dizendo: “Cianfa sempre com atraso!”.


E eu, pra que meu guia fosse atento,
me pus o dedo desde o queixo ao naso. 45

Se agora, ó leitor, tu fores lento


em crer no que direi, não cabe espanto,
pois eu, que o vi, ainda me atormento. 48

Enquanto os olhos neles rme planto,


eis que uma cobra com seis pés se lança
em frente a um, cobrindo-o como manto. 51

Cos pés do meio lhe envolveu a pança


e os braços lhe prendeu com os da frente,
então cravou-lhe as faces feito lança; 54

com os de trás às coxas colou rente


metendo-se coa cauda em meio às duas
e pelos rins acima foi potente. 57

Jamais hera enredou-se com suas puas


em uma árvore, como a horrível fera
por perna alheia emaranhou as suas. 60

Grudaram-se depois, tal como a cera


quente faz, misturando suas cores
sem um nem outro parecer quem era: 63

como sucede quando por ardores


sobre o papiro sobe um tom escuro,
não inda preto, e o branco esvai-se em dores. 66

Os outros dois o olhavam e em apuro


gritavam: “Ai, que mutação, Agnel!
Vê, já não és nem um nem outro puro”. 69

Já eram duas cabeças um só anel,


quando surgiram duas guras mistas
de dois perdidos numa cara in el. 72

Dois braços feitos de outras quatro listas,


e as coxas com as pernas, ventre e peito
transformaram-se em partes nunca vistas. 75

Todo o primeiro aspecto era desfeito:


nenhuma e duas a visão perversa
parecia, e arrastada foi sem jeito. 78

Assim como o lagarto, sob a adversa


canícula do dia a sorte tenta
e, raio, irrompe pela via inversa, 81

tal surgia uma víbora sedenta


do bucho dos dois outros, chispeando
lívida e preta qual grão de pimenta; 84

naquele ponto em que antes se vai dando


nosso alimento, a um deles mordeu;
depois caiu à sua frente arfando. 87

O picado a mirou e emudeceu;


mas, com os pés parados, bocejava
como a quem sono ou febre acometeu. 90

Ele à serpente e esta a ele olhava;


um pela chaga e a outra pela boca
fumavam forte, e o fumo se chocava. 93

Cale Lucano agora onde ele invoca


o mísero Sabelo com Nasídio,
e escute então o que meu estro toca. 96

Cale de Cadmo e de Aretusa Ovídio,


pois não o invejo se converte em fonte
aquela poetando, este em ofídio; 99

jamais duas naturezas fronte a fronte


transmutaram de modo que sua forma
tão pronto se mudasse num desmonte. 102

Os dois corresponderam a tal norma:


a cauda da serpente se forqueia,
e o par de pés do a ito se uniforma. 105
Pernas e coxas se unem em tão feia
mistura, que em seguida sua juntura
de si não mais permite ter-se ideia. 108

A cauda bifurcada da gura


já se perdia ali, e a sua pele
fazia-se mais tenra, e a outra, dura. 111

Pelos sovacos vi os braços dele


entrar, e os pés da fera recolhidos
crescer como encurtavam os daquele. 114

Depois os pés de trás, juntos torcidos,


tornaram-se no membro que o homem vela,
e o mísero do seu fez dois fendidos. 117

Enquanto o fumaceiro os dois modela


de cor nova, e germina fresco pelo
em uma parte e noutra se despela, 120

foi-se um ao alto e o outro em desmantelo,


mas sem que eles torcessem o ímpio olhar
das fuças que mudavam no agelo. 123

O de pé na cabeça a foi en ar
e do restante da matéria viu
orelhas das bochechas despontar; 126

co aquilo que no interno não sumiu


e que sobrou, fez um nariz na face
e o necessário aos lábios transferiu. 129

O que jazia a fuça fez que inchasse,


retraindo as orelhas pela testa
qual lesma que seus chifres enterrasse; 132

e a língua, que antes era unida e lesta


em sua fala, fende-se, e a forcada
afunila-se no outro; e o fumo resta. 135

A alma que em fera fora transformada


a sibilar escapa pelo valo,
e o outro atrás lhe fala em cusparada. 138

As costas novas lhe virou de estalo


e disse ao outro: “ ue ora Buoso corra,
como eu z, rastejando neste ralo”. 141

Assim eu vi a sétima masmorra


mudar e transmudar, e peço escusa
se a novidade um pouco a pena borra. 144

Embora minha vista então confusa


estivesse, e meu ânimo contrato,
não pôde aquela gente estar reclusa, 147

tanto que Puccio Manco vi em recato;


e ele era o único entre os três colegas
vindos antes a não mudar de fato; 150

pelo outro ao choro, Gaville, te entregas.


Al ne de le sue parole il ladro
le mani alzò con amendue le che,
gridando: “Togli, Dio, ch a te le squadro!”. 3

Da indi in qua mi fuor le serpi amiche,


perch una li s avvolse allora al collo,
come dicesse “Non vo che più diche”; 6

e un altra a le braccia, e rilegollo,


ribadendo sé stessa sì dinanzi,
che non potea con esse dare un crollo. 9

Ahi Pistoia, Pistoia, ché non stanzi


d incenerarti sì che più non duri,
poi che n mal fare il seme tuo avanzi? 12

Per tutt i cerchi de lo nferno scuri


non vidi spirto in Dio tanto superbo,
non quel che cadde a Tebe giù da muri. 15

El si fuggì che non parlò più verbo;


e io vidi un centauro pien di rabbia
venir chiamando: “Ov è, ov è l acerbo?”. 18

Maremma non cred io che tante n abbia,


quante bisce elli avea su per la groppa
in n ove comincia nostra labbia. 21
Sovra le spalle, dietro da la coppa,
con l ali aperte li giacea un draco;
e quello affuoca qualunque s intoppa. 24

Lo mio maestro disse: “ uesti è Caco,


che, sotto l sasso di monte Aventino,
di sangue fece spesse volte laco. 27

Non va co suoi fratei per un cammino,


per lo furto che frodolente fece
del grande armento ch elli ebbe a vicino; 30

onde cessar le sue opere biece


sotto la mazza d Ercule, che forse
gliene diè cento, e non sentì le diece”. 33

Mentre che sì parlava, ed el trascorse,


e tre spiriti venner sotto noi,
de quai né io né l duca mio s accorse, 36

se non quando gridar: “Chi siete voi?”;


per che nostra novella si ristette,
e intendemmo pur ad essi poi. 39

Io non li conoscea; ma ei seguette,


come suol seguitar per alcun caso,
che l un nomar un altro convenette, 42

dicendo: “Cianfa dove a rimaso?”;


per ch io, acciò che l duca stesse attento,
mi puosi l dito su dal mento al naso. 45

Se tu se or, lettore, a creder lento


ciò ch io dirò, non sarà maraviglia,
ché io che l vidi, a pena il mi consento. 48

Com io tenea levate in lor le ciglia,


e un serpente con sei piè si lancia
dinanzi a l uno, e tutto a lui s appiglia. 51

Co piè di mezzo li avvinse la pancia


e con li anterïor le braccia prese;
poi li addentò e l una e l altra guancia; 54

li diretani a le cosce distese,


e miseli la coda tra mbedue
e dietro per le ren sù la ritese. 57

Ellera abbarbicata mai non fue


ad alber sì, come l orribil era
per l altrui membra avviticchiò le sue. 60

Poi s appiccar, come di calda cera


fossero stati, e mischiar lor colore,
né l un né l altro già parea quel ch era: 63

come procede innanzi da l ardore,


per lo papiro suso, un color bruno
che non è nero ancora e l bianco more. 66

Li altri due l riguardavano, e ciascuno


gridava: “Omè, Agnel, come ti muti!
Vedi che già non se né due né uno”. 69

Già eran li due capi un divenuti,


quando n apparver due gure miste
in una faccia, ov eran due perduti. 72

Fersi le braccia due di quattro liste;


le cosce con le gambe e l ventre e l casso
divenner membra che non fuor mai viste. 75

Ogne primaio aspetto ivi era casso:


due e nessun l imagine perversa
parea; e tal sen gio con lento passo. 78

Come l ramarro sotto la gran fersa


dei dì canicular, cangiando sepe,
folgore par se la via attraversa, 81

sì pareva, venendo verso l epe


de li altri due, un serpentello acceso,
livido e nero come gran di pepe; 84

e quella parte onde prima è preso


nostro alimento, a l un di lor tra sse;
poi cadde giuso innanzi lui disteso. 87

Lo tra tto l mirò, ma nulla disse;


anzi, co piè fermati, sbadigliava
pur come sonno o febbre l assalisse. 90

Elli l serpente e quei lui riguardava;


l un per la piaga e l altro per la bocca
fummavan forte, e l fummo si scontrava. 93

Taccia Lucano omai là dov e tocca


del misero Sabello e di Nasidio,
e attenda a udir quel ch or si scocca. 96

Taccia di Cadmo e d Aretusa Ovidio,


ché se quello in serpente e quella in fonte
converte poetando, io non lo nvidio; 99

ché due nature mai a fronte a fronte


non trasmutò sì ch amendue le forme
a cambiar lor matera fosser pronte. 102

Insieme si rispuosero a tai norme,


che l serpente la coda in forca fesse,
e l feruto ristrinse insieme l orme. 105
Le gambe con le cosce seco stesse
s appiccar sì, che n poco la giuntura
non facea segno alcun che si paresse. 108

Togliea la coda fessa la gura


che si perdeva là, e la sua pelle
si facea molle, e quella di là dura. 111

Io vidi intrar le braccia per l ascelle,


e i due piè de la era, ch eran corti,
tanto allungar quanto accorciavan quelle. 114

Poscia li piè di rietro, insieme attorti,


diventaron lo membro che l uom cela,
e l misero del suo n avea due porti. 117

Mentre che l fummo l uno e l altro vela


di color novo, e genera l pel suso
per l una parte e da l altra il dipela, 120

l un si levò e l altro cadde giuso,


non torcendo però le lucerne empie,
sotto le quai ciascun cambiava muso. 123

uel ch era dritto, il trasse ver le tempie,


e di troppa matera ch in là venne
uscir li orecchi de le gote scempie; 126

ciò che non corse in dietro e si ritenne


di quel soverchio, fé naso a la faccia
e le labbra ingrossò quanto convenne. 129

uel che giacëa, il muso innanzi caccia,


e li orecchi ritira per la testa
come face le corna la lumaccia; 132

e la lingua, ch avëa unita e presta


prima a parlar, si fende, e la forcuta
ne l altro si richiude; e l fummo resta. 135

L anima ch era era divenuta,


suffolando si fugge per la valle,
e l altro dietro a lui parlando sputa. 138

Poscia li volse le novelle spalle,


e disse a l altro: “I vo che Buoso corra,
com ho fatt io, carpon per questo calle”. 141

Così vid io la settima zavorra


mutare e trasmutare; e qui mi scusi
la novità se or la penna abborra. 144

E avvegna che li occhi miei confusi


fossero alquanto e l animo smagato,
non poter quei fuggirsi tanto chiusi, 147

ch i non scorgessi ben Puccio Sciancato;


ed era quel che sol, di tre compagni
che venner prima, non era mutato; 150

l altr era quel che tu, Gaville, piagni.


Canto XXVI
Dante interrompe a narração e lança uma invectiva contra Florença, que teria se
tornado uma cidade de pecadores; prevê ainda a iminente desgraça de sua terra
natal, desejada por Prato e outras cidades vizinhas [1-12]. Os dois poetas seguem
por rochedos íngremes quando se deparam com as chamas em que ardem os
condenados da oitava bolsa. Dante compara a paisagem infernal a vaga-lumes ao
entardecer e à visão do profeta Eliseu (“que com ursos do desgosto/ se vingou”,
remetendo ao episódio bíblico em que crianças zombaram dele e, assim, foram
trucidadas por ursos enviados por Deus) quando contemplou Elias subindo ao
céu num carro de fogo [13-42]. Dante se debruça na ponte onde estava para ver as
chamas, e Virgílio lhe explica que dentro delas são punidos os conselheiros
fraudulentos, entre os quais Ulisses e Diomedes; os dois estão numa chama
bifurcada, que suscita em Dante uma comparação com a pira funerária onde
arderam os irmãos rivais Etéocles e Polinice, lhos de Édipo. O idealizador do
cavalo de Troia e seu amigo tinham indiretamente causado a fuga de Eneias (“de
onde a nobre raiz de Roma vem”) e saqueado o Paládio, estátua de Palas Atena
venerada em Troia [43-63]. Dante manifesta o desejo de conhecer o m de Ulisses.
O herói grego, então, narra sua história: depois de se libertar da maga Circe e
fugir da região de Gaeta, decide já velho abandonar a família e reunir alguns éis
marinheiros, com os quais navega rumo ao Ocidente, atravessando o estreito de
Gibraltar (“onde Hércules pôs a sua senha”) [64-117]. Movidos pelo desejo de
conhecimento que é próprio dos humanos, eles remam em “voo insano” pelo mar
aberto e ignoto, em direção ao hemisfério sul, durante cinco meses, até que
avistam uma montanha imensa (na qual muitos intérpretes identi cam a
montanha do purgatório), de onde sopra um forte vendaval que faz a embarcação
naufragar [118-142].
Goza, Florença, pois que tu és tão grande
que por mar e por terra sobrevoas,
e pelo inferno o nome teu se expande! 3

Entre os ladrões topei cinco pessoas


de tua cidade, o que me dá vergonha,
e as honras que te trazem não são boas. 6

Mas se a verdade de manhã se sonha,


tu provarás a queda em pouco tempo,
que eu creio não só Prato te proponha. 9

Fosse já feito, não seria a destempo.


Então que seja, já que deve ser,
pois mais me pesa ao me pesar o tempo! 12

De lá partimos ambos, a ascender


as mesmas saliências que descemos,
meu guia indo à frente a me trazer; 15

e na deserta via que batemos


entre as lascas e as pontas do penedo,
aos pés somamos mãos qual fossem remos. 18

Então doeu-me, e nessa dor procedo


quando penso naquilo que avistei,
e mais que de costume o engenho cedo, 21
pra que só da virtude siga a lei;
pois se bondosa estrela ou melhor ente
deu-me este bem, de o arruinar não hei. 24

Tal como o camponês que em monte assente,


no momento que o mundo mais aclara
quem tem sua face a nós menos ausente, 27

quando o mosquito vem e a mosca para,


a mirar vaga-lumes pelo vale,
talvez bem onde ele vindima e ara; 30

luzia a fossa oitava feito um xale


de chamas, tanto que naquele posto
em que estive a visão mostrou o que vale. 33

E como o que com ursos do desgosto


se vingou, vendo Elias a partir
quando os corcéis se ergueram ao sol posto, 36

sem poder com os olhos o seguir,


mas só avistasse a solitária chama
tal como nuvenzinha ao céu subir; 39

assim cada uma freme pela rama


do fosso, pois nenhuma mostra o oculto,
e toda chama um pecador in ama. 42

Parei na ponte a ver todo o tumulto


e, se não me agarrasse a uma ponta,
despencaria no lugar inculto. 45

E o guia, que me viu coa vista pronta,


disse: “Dentro dos fogos há espritos;
cada um arde naquele em que desponta”. 48

“Meu mestre”, respondi, “muito teus ditos


me asseguram; já havia percebido
que fosse assim, mas quem são os proscritos? 51

uem vem naquele fogo dividido


acima, que parece estar na pira
onde Etéocles foi co irmão metido?”. 54

Me respondeu: “Lá dentro se martira


Ulisses e Diomedes, e ambos têm
aquela punição que vem da ira; 57

e dentro de sua chama sofrem bem


a insídia do cavalo que foi porta
de onde a nobre raiz de Roma vem. 60

Chora-se ali a astúcia por que, morta,


Deidâmia por Aquiles inda plange,
e do Paládio pena se reporta”. 63

“Se podem na centelha que os confrange


falar”, eu disse, “mestre, assaz te peço
e repeço — e o pedido muito abrange — 66

que nós nos detenhamos neste acesso


até que a chama forcada aqui venha;
vês que a ela me dobro em tanto apreço!”. 69

E ele a mim: “Teu pedido bem se empenha


e é louvável, por isso eu o aceito;
mas faz que tua língua se contenha. 72

Deixa que eu fale, que entendi direito


teu desejo; talvez sejam esquivos,
por terem sido gregos, a teu pleito”. 75

Depois que a chama trouxe os dois cativos


ao tempo e ao lugar que quis meu guia,
assim o ouvi falar em tons altivos: 78

“Ó vós que estais num fogo só que chia,


se mereci de vós durante a vida,
se mereci de vós a cortesia 81

quando altos versos z na terra havida,


não vos movais; mas diga, um de vós,
onde pra si a morte foi cumprida”. 84

Da chama antiga o chifre maior pôs-


-se a ondular e assim foi murmurando,
como a que o vento cansa no ar veloz; 87

então a ponta aqui e ali vagando,


como se fosse a língua que falasse,
lançou a voz afora e disse: “ uando 90

parti de Circe, a qual fez que eu casse


mais de um ano lá perto de Gaeta,
antes que assim Eneia a nomeasse, 93

nem ternura de lho, nem a reta


adoração ao pai, nem mesmo o amor
por alegrar Penélope dileta 96

puderam superar em mim o ardor


que tive em ser conhecedor do mundo
e dos vícios humanos e o valor; 99

mas me meti pelo alto-mar a fundo


só com um lenho e os poucos companheiros
aos quais me atava um vínculo profundo. 102

Até a Espanha vi os dois costeiros,


mais o Marrocos, e avistei Sardenha
e outras ilhas do mar em nevoeiros. 105
Lentos no rastro que o batel desenha,
éramos velhos ao chegar à estreita
foz onde Hércules pôs a sua senha 108

pra que o homem além não acometa;


pela direita mão deixei Sevilha,
e Ceuta na outra costa lá se deita. 111

‘Ó irmãos’, disse, ‘que por esta trilha


correstes riscos rumo ao Ocidente,
pensando nesta tão breve vigília 114

dos sentidos que o fado nos consente,


não queirais vos negar a experiência
de o sol seguir ao mundo além sem gente. 117

Ora considerai vossa ascendência:


não fostes feitos pra viver qual brutos,
mas para perseguir virtude e ciência’. 120

Meus companheiros z tão resolutos


com esta oração breve, no caminho,
que logo desejaram ver os frutos; 123

coa popa pro horizonte matutino,


zemos com os remos voo insano,
à esquerda conquistando o mar vizinho. 126

Já as estrelas do outro polo arcano


a noite via, e o nosso ia tão raso,
que não surgia fora do oceano. 129

Cinco vezes brilhou, cinco em ocaso,


o lume que jazia sob a lua
após termos entrado no alto passo, 132

quando surgiu uma montanha nua


e escura na distância, alta tanto
quanto jamais eu avistara alg˜ua. 135

Na alegria, do riso fez-se o pranto;


da nova terra veio um vendaval
e percutiu do lenho o primo canto. 138

Ele o girou três vezes no caudal;


na quarta então a popa se elevou,
como alguém quis, e a proa foi coa nau, 141

até que sobre nós o mar fechou”.


Godi, Fiorenza, poi che se sì grande
che per mare e per terra batti l ali,
e per lo nferno tuo nome si spande! 3

Tra li ladron trovai cinque cotali


tuoi cittadini onde mi ven vergogna,
e tu in grande orranza non ne sali. 6

Ma se presso al mattin del ver si sogna,


tu sentirai, di qua da picciol tempo,
di quel che Prato, non ch altri, t agogna. 9

E se già fosse, non saria per tempo.


Così foss ei, da che pur esser dee!
ché più mi graverà, com più m attempo. 12

Noi ci partimmo, e su per le scalee


che n avea fatto iborni a scender pria,
rimontò l duca mio e trasse mee; 15

e proseguendo la solinga via,


tra le schegge e tra ’ rocchi de lo scoglio
lo piè sanza la man non si spedia. 18

Allor mi dolsi, e ora mi ridoglio


quando drizzo la mente a ciò ch io vidi,
e più lo ngegno affreno ch i non soglio, 21
perché non corra che virtù nol guidi;
sì che, se stella bona o miglior cosa
m ha dato l ben, ch io stessi nol m invidi. 24

uante l villan ch al poggio si riposa,


nel tempo che colui che l mondo schiara
la faccia sua a noi tien meno ascosa, 27

come la mosca cede a la zanzara,


vede lucciole giù per la vallea,
forse colà dov e vendemmia e ara: 30

di tante amme tutta risplendea


l ottava bolgia, sì com io m accorsi
tosto che fui là ve l fondo parea. 33

E qual colui che si vengiò con li orsi


vide l carro d Elia al dipartire,
quando i cavalli al cielo erti levorsi, 36

che nol potea sì con li occhi seguire,


ch el vedesse altro che la amma sola,
sì come nuvoletta, in sù salire: 39

tal si move ciascuna per la gola


del fosso, ché nessuna mostra l furto,
e ogne amma un peccatore invola. 42

Io stava sovra l ponte a veder surto,


sì che s io non avessi un ronchion preso,
caduto sarei giù sanz esser urto. 45

E l duca, che mi vide tanto atteso,


disse: “Dentro dai fuochi son li spirti;
catun si fascia di quel ch elli è inceso”. 48

“Maestro mio”, rispuos io, “per udirti


son io più certo; ma già m era avviso
che così fosse, e già voleva dirti: 51

chi è n quel foco che vien sì diviso


di sopra, che par surger de la pira
dov Eteòcle col fratel fu miso?”. 54

Rispuose a me: “Là dentro si martira


Ulisse e Dïomede, e così insieme
a la vendetta vanno come a l ira; 57

e dentro da la lor amma si geme


l agguato del caval che fé la porta
onde uscì de Romani il gentil seme. 60

Piangevisi entro l arte per che, morta,


Deïdamìa ancor si duol d Achille,
e del Palladio pena vi si porta”. 63

“S ei posson dentro da quelle faville


parlar”, diss io, “maestro, assai ten priego
e ripriego, che l priego vaglia mille, 66

che non mi facci de l attender niego


n che la amma cornuta qua vegna;
vedi che del disio ver lei mi piego!”. 69

Ed elli a me: “La tua preghiera è degna


di molta loda, e io però l accetto;
ma fa che la tua lingua si sostegna. 72

Lascia parlare a me, ch i ho concetto


ciò che tu vuoi; ch ei sarebbero schivi,
perch e fuor greci, forse del tuo detto”. 75

Poi che la amma fu venuta quivi


dove parve al mio duca tempo e loco,
in questa forma lui parlare audivi: 78

“O voi che siete due dentro ad un foco,


s io meritai di voi mentre ch io vissi,
s io meritai di voi assai o poco 81

quando nel mondo li alti versi scrissi,


non vi movete; ma l un di voi dica
dove, per lui, perduto a morir gissi”. 84

Lo maggior corno de la amma antica


cominciò a crollarsi mormorando,
pur come quella cui vento affatica; 87

indi la cima qua e là menando,


come fosse la lingua che parlasse,
gittò voce di fuori e disse: “ uando 90

mi diparti da Circe, che sottrasse


me più d un anno là presso a Gaeta,
prima che sì Enëa la nomasse, 93

né dolcezza di glio, né la pieta


del vecchio padre, né l debito amore
lo qual dovea Penelopè far lieta, 96

vincer potero dentro a me l ardore


ch i ebbi a divenir del mondo esperto
e de li vizi umani e del valore; 99

ma misi me per l alto mare aperto


sol con un legno e con quella compagna
picciola da la qual non fui diserto. 102

L un lito e l altro vidi in n la Spagna,


n nel Morrocco, e l isola d i Sardi,
e l altre che quel mare intorno bagna. 105
Io e compagni eravam vecchi e tardi
quando venimmo a quella foce stretta
dov Ercule segnò li suoi riguardi 108

acciò che l uom più oltre non si metta;


da la man destra mi lasciai Sibilia,
da l altra già m avea lasciata Setta. 111

‘O frati , dissi, ‘che per cento milia


perigli siete giunti a l occidente,
a questa tanto picciola vigilia 114

d i nostri sensi ch è del rimanente


non vogliate negar l esperïenza,
di retro al sol, del mondo sanza gente. 117

Considerate la vostra semenza:


fatti non foste a viver come bruti,
ma per seguir virtute e canoscenza . 120

Li miei compagni fec io sì aguti,


con questa orazion picciola, al cammino,
che a pena poscia li avrei ritenuti; 123

e volta nostra poppa nel mattino,


de remi facemmo ali al folle volo,
sempre acquistando dal lato mancino. 126

Tutte le stelle già de l altro polo


vedea la notte, e l nostro tanto basso,
che non surgëa fuor del marin suolo. 129

Cinque volte racceso e tante casso


lo lume era di sotto da la luna,
poi che ntrati eravam ne l alto passo, 132

quando n apparve una montagna, bruna


per la distanza, e parvemi alta tanto
quanto veduta non avëa alcuna. 135

Noi ci allegrammo, e tosto tornò in pianto;


ché de la nova terra un turbo nacque
e percosse del legno il primo canto. 138

Tre volte il fé girar con tutte l acque;


a la quarta levar la poppa in suso
e la prora ire in giù, com altrui piacque, 141

n n che l mar fu sovra noi richiuso”.


Canto XXVII
Ainda na oitava bolsa, outra chama se aproxima dos poetas com um som
lamentoso, comparado por Dante ao do supliciado Perilo, que inventou o “boi da
Sicília” e nele foi queimado pelo tirano Fálaris (séc. vi a.C.) [1-15]. A voz, que se
dirige a Virgílio e o reconhece como lombardo (“istra”, “agora” em dialeto da
Itália setentrional), suplica que os dois poetas falem com ele e indaga se ainda há
guerra na Romanha [16-30]. Dante diz ao condenado que a Romanha sempre
esteve em guerra, mas não agora: os Polenta há muito dominam Ravena e Cérvia;
Forlì (“a terra que foi tanto tempo alerta” em função do assédio de tropas guelfas e
francesas, que acabaram derrotadas) é comandada pelos Ordelaffi, representados
pelas “garras verdes” de seu brasão; Rimini é governada pelos Malatesta
(“Verrucchio, o velho e o novo”), que tomaram o poder após trucidar o gibelino
Montagna dei Parcitati e agora exploram seu povo; Faenza e Ímola (“burgos do
Lamone e do Santerno”) estão sob Maghinardo Pagani da Susinana, representado
pelo brasão do “leãozinho em fundo branco”, que ora se alia aos guelfos, ora aos
gibelinos; e Cesena, cidade “de que o Sávio banha o anco”, é regida por Galasso
da Montefeltro [31-54]. O poeta orentino então pergunta quem é seu
interlocutor: trata-se de Guido da Montefeltro (c. 1220-98), que responde ter
sido militar e depois frade franciscano. No entanto, sua conversão não o salvou, já
que Bonifácio viii (“rei dos fariseus”) o fez desviar do “caminho da verdade”, mais
preocupado em combater cristãos do que judeus ou mouros — inclusive os éis
que teriam lutado ao lado dos sarracenos na batalha de Acre (último baluarte
cristão na Terra Santa tomado pelos mouros em 1291) e os que teriam feito
comércio com os árabes, atividade proibida pela Igreja [55-93]. Tal como o
imperador Constantino chamou o papa Silvestre (refugiado no monte Soratte,
perto de Roma) para lhe curar a lepra, Bonifácio recorreu à astúcia de Guido para
aconselhá-lo a aniquilar os cristãos rebelados de Palestrina, prometendo salvar sua
alma. Depois de dar o mau conselho, ao morrer, Guido é visitado por são
Francisco, mas um demônio exige sua alma por direito e o leva ao inferno, onde
Minos o manda para a oitava bolsa de Malebolge [94-129]. A chama vai embora, e
os dois poetas se dirigem à nona bolsa, onde penam os semeadores de discórdia
[130-136].
Já se aprumava acima a chama e quieta,
a se calar, de nós já se partia
com a licença do doce poeta, 3

quando uma outra, que atrás desta surgia,


nos fez voltar os olhos à sua cima
por um confuso som que ela emitia. 6

Como o boi sicilian mugiu lá em cima


com o pranto de quem — e foi bem dado —
o tinha temperado com sua lima, 9

mugia então a voz do torturado,


e, conquanto ele todo fosse cobre,
parecia de dor atravessado; 12

assim, por não haver escape sobre


o fogo, no princípio sua linguagem
convertia-se numa fala pobre. 15

Mas após ter cumprido sua viagem,


subindo à ponta e dando-lhe o estalo
que havia dado a língua em sua passagem, 18

escutamos: “Ó tu, com quem eu falo


nesta voz, que te exprimes em lombardo
dizendo ‘Istra parte, que eu me calo’, 21
apesar de eu ter sido um tanto tardo,
não te pese falar aqui comigo:
bem podes ver que a mim não pesa, e ardo! 24

Se ora caíste neste cego abrigo


do mundo, vindo desde a doce terra
latina de onde minha culpa sigo, 27

me diz se na Romanha há paz ou guerra;


pois fui dos montes lá entre Urbino
e a serra de que o Tibre se descerra”. 30

Eu inda estava atento co olhar no


quando meu guia me tocou as costas
dizendo: “Fala tu, que este é latino”. 33

E eu, que tinha prontas as respostas,


a falar sem demora fui dizendo:
“Ó alma que te ocultas nas encostas, 36

tua Romanha teve, e segue tendo,


guerra nos corações de seus tiranos,
mas de nenhuma às claras vim sabendo. 39

Ravena está e esteve assim faz anos:


a águia dos Polenta a tem coberta
e até Cérvia protege de seus danos. 42

A terra que foi tanto tempo alerta


e de sangue francês encheu um covo,
por sob as garras verdes se acoberta. 45

E os mastins de Verrucchio, o velho e o novo,


que ao Montagna zeram mau governo,
lá sorvem com os dentes todo o povo. 48

Os burgos do Lamone e do Santerno


conduz o leãozinho em fundo branco, o
vira-casaca de verão a inverno. 51

E aquele de que o Sávio banha o anco,


tal como senta-se entre o monte e o plano,
vive entre tirania e estado franco. 54

Ora quem és, eu peço digas lhano:


não sejas mais avesso do que eu,
e o mundo te relembre sem teu dano”. 57

Depois que o fogo ali ao modo seu


rugiu, então a ponta aguda veio
pra cá, pra lá, e assim tal sopro deu: 60

“Se eu cresse que a resposta em que me esteio


fosse a alguém que talvez voltasse ao mundo,
esta chama estaria sem meneio; 63

no entanto, como nunca deste fundo


voltou um vivo, se ouço o verdadeiro,
sem temores de infâmia te respondo. 66

Fui frade, mas de exércitos primeiro,


crendo, cingido, aos erros pôr emendas;
e decerto meu crer seria inteiro 69

se não fosse o grão padre — venha às fendas! —


que me repôs no rumo das ruínas:
e como e quare, quero que me entendas. 72

Enquanto eu tive as formas genuínas


que a mãe me deu, as obras que eu tramava
mais eram de raposa que leoninas. 75

De fraudulências e de coisa prava


eu soube todas, e com tanta arte,
que até os con ns da terra ela soava. 78

uando me vi chegado àquela parte


da vida em que se deve pela idade
desparelhar as velas e o estandarte, 81

tornou-se o que eu gostava enfermidade;


confesso e arrependido me entreguei,
ai de mim!, ao caminho da verdade. 84

O rei dos fariseus da nova grei,


movendo guerra perto de Latrão —
e não aos mouros ou judeus da lei, 87

porque seu inimigo era cristão,


e nenhum fora em Acre vencedor
nem mercante em domínios de sultão —, 90

nem sumo ofício ou ordens de pastor


guardou em si, nem em mim o cabresto
que tornava mais magro o portador. 93

Mas como Constantin chamou Silvestro


de Soratte a curar-lhe a lepra acerba,
assim me chamou este por ser destro 96

na cura de sua febre tão soberba;


pediu a mim conselho, e eu silente,
porque falou qual ébrio que exacerba. 99

Ele insistiu: ‘Teu cor não se atormente;


te absolvo já, e tu me ensina a dar
um m a Palestrina e sua gente. 102

O céu posso eu cerrar e descerrar


como tu sabes; pois são duas chaves
as que meu precursor não soube usar’. 105
Empurraram-me então as falas graves,
que pior me pareceu car quieto,
e disse: ‘Padre, desde que me laves 108

do pecado em que vou cair direto,


muita promessa e pouco cumprimento
te farão triunfar no trono eleito’. 111

Francisco veio, ao meu falecimento,


por mim; mas um dos querubins sombrios
lhe falou: ‘Este não, que é meu detento. 114

Virá comigo abaixo entre os bravios


por ter dado com fraude seu conselho,
e desde então o puxo pelos os; 117

pois quem não se arrepende vai pro relho,


nem pode o arrepender-se com o dolo,
pelo contraditório, andar parelho’. 120

Pobre de mim!, que agora aqui me assolo,


quando ele me pegou e disse: ‘Vê-se
que me achavas ilógico ou um tolo!’. 123

A Minos me levou, e torceu esse


oito vezes a cauda ao dorso duro;
e como em grande raiva ele a mordesse, 126

falou: ‘Este é um réu do fogo impuro’;


por isso onde me vês estou perdido,
e assim vestido, andando, me amarguro”. 129

Depois de ter sua fala concluído,


a chama adolorada foi-se embora
torcendo e debatendo o chifre erguido. 132

Nós prosseguimos, eu e o guia afora,


pelo rochedo rumo à outra ponte
que cobre o fosso onde se paga a mora 135

a quem por dividir abaixa a fronte.


Già era dritta in sù la amma e queta
per non dir più, e già da noi sen gia
con la licenza del dolce poeta, 3

quand un altra, che dietro a lei venìa,


ne fece volger li occhi a la sua cima
per un confuso suon che fuor n uscia. 6

Come l bue cicilian che mugghiò prima


col pianto di colui, e ciò fu dritto,
che l avea temperato con sua lima, 9

mugghiava con la voce de l afflitto,


sì che, con tutto che fosse di rame,
pur el pareva dal dolor tra tto; 12

così, per non aver via né forame


dal principio nel foco, in suo linguaggio
si convertïan le parole grame. 15

Ma poscia ch ebber colto lor vïaggio


su per la punta, dandole quel guizzo
che dato avea la lingua in lor passaggio, 18

udimmo dire: “O tu a cu io drizzo


la voce e che parlavi mo lombardo,
dicendo ‘Istra ten va, più non t adizzo , 21
perch io sia giunto forse alquanto tardo,
non t incresca restare a parlar meco;
vedi che non incresce a me, e ardo! 24

Se tu pur mo in questo mondo cieco


caduto se di quella dolce terra
latina ond io mia colpa tutta reco, 27

dimmi se Romagnuoli han pace o guerra;


ch io fui d i monti là intra Orbino
e l giogo di che Tever si diserra”. 30

Io era in giuso ancora attento e chino,


quando il mio duca mi tentò di costa,
dicendo: “Parla tu; questi è latino”. 33

E io, ch avea già pronta la risposta,


sanza indugio a parlare incominciai:
“O anima che se là giù nascosta, 36

Romagna tua non è, e non fu mai,


sanza guerra ne cuor de suoi tiranni;
ma n palese nessuna or vi lasciai. 39

Ravenna sta come stata è molt anni:


l aguglia da Polenta la si cova,
sì che Cervia ricuopre co suoi vanni. 42

La terra che fé già la lunga prova


e di Franceschi sanguinoso mucchio,
sotto le branche verdi si ritrova. 45

E l mastin vecchio e l nuovo da Verrucchio,


che fecer di Montagna il mal governo,
là dove soglion fan d i denti succhio. 48

Le città di Lamone e di Santerno


conduce il lïoncel dal nido bianco,
che muta parte da la state al verno. 51

E quella cu il Savio bagna il anco,


così com ella sie tra l piano e l monte,
tra tirannia si vive e stato franco. 54

Ora chi se , ti priego che ne conte;


non esser duro più ch altri sia stato,
se l nome tuo nel mondo tegna fronte”. 57

Poscia che l foco alquanto ebbe rugghiato


al modo suo, l aguta punta mosse
di qua, di là, e poi diè cotal ato: 60

“S i credesse che mia risposta fosse


a persona che mai tornasse al mondo,
questa amma staria sanza più scosse; 63

ma però che già mai di questo fondo


non tornò vivo alcun, s i odo il vero,
sanza tema d infamia ti rispondo. 66

Io fui uom d arme, e poi fui cordigliero,


credendomi, sì cinto, fare ammenda;
e certo il creder mio venìa intero, 69

se non fosse il gran prete, a cui mal prenda!,


che mi rimise ne le prime colpe;
e come e quare, voglio che m intenda. 72

Mentre ch io forma fui d ossa e di polpe


che la madre mi diè, l opere mie
non furon leonine, ma di volpe. 75

Li accorgimenti e le coperte vie


io seppi tutte, e sì menai lor arte,
ch al ne de la terra il suono uscie. 78

uando mi vidi giunto in quella parte


di mia etade ove ciascun dovrebbe
calar le vele e raccoglier le sarte, 81

ciò che pria mi piacëa, allor m increbbe,


e pentuto e confesso mi rendei;
ahi miser lasso! e giovato sarebbe. 84

Lo principe d i novi Farisei,


avendo guerra presso a Laterano,
e non con Saracin né con Giudei, 87

ché ciascun suo nimico era cristiano,


e nessun era stato a vincer Acri
né mercatante in terra di Soldano, 90

né sommo officio né ordini sacri


guardò in sé, né in me quel capestro
che solea fare i suoi cinti più macri. 93

Ma come Costantin chiese Silvestro


d entro Siratti a guerir de la lebbre,
così mi chiese questi per maestro 96

a guerir de la sua superba febbre;


domandommi consiglio, e io tacetti
perché le sue parole parver ebbre. 99

E poi ridisse: ‘Tuo cuor non sospetti;


nor t assolvo, e tu m insegna fare
sì come Penestrino in terra getti. 102

Lo ciel poss io serrare e diserrare,


come tu sai; però son due le chiavi
che l mio antecessor non ebbe care . 105
Allor mi pinser li argomenti gravi
là ve l tacer mi fu avviso l peggio,
e dissi: ‘Padre, da che tu mi lavi 108

di quel peccato ov io mo cader deggio,


lunga promessa con l attender corto
ti farà trïunfar ne l alto seggio . 111

Francesco venne poi, com io fu morto,


per me; ma un d i neri cherubini
li disse: ‘Non portar; non mi far torto. 114

Venir se ne dee giù tra ’ miei meschini


perché diede l consiglio frodolente,
dal quale in qua stato li sono a crini; 117

ch assolver non si può chi non si pente,


né pentere e volere insieme puossi
per la contradizion che nol consente . 120

Oh me dolente! come mi riscossi


quando mi prese dicendomi: ‘Forse
tu non pensavi ch io löico fossi! . 123

A Minòs mi portò; e quelli attorse


otto volte la coda al dosso duro;
e poi che per gran rabbia la si morse, 126

disse: ‘ uesti è d i rei del foco furo ;


per ch io là dove vedi son perduto,
e sì vestito, andando, mi rancuro”. 129

uand elli ebbe l suo dir così compiuto,


la amma dolorando si partio,
torcendo e dibattendo l corno aguto. 132

Noi passamm oltre, e io e l duca mio,


su per lo scoglio in no in su l altr arco
che cuopre l fosso in che si paga il o 135

a quei che scommettendo acquistan carco.


Canto XXVIII
Dante compara o cenário de mutilações que vê na nona bolsa ao de guerras como
a luta que os troianos travaram contra as populações da Itália meridional
(“Apúlia”), quando se estabeleceram na região; a “longa guerra” púnica (a
segunda, 219-201 a.C.), que culminou no massacre de Canas, onde, segundo o
historiador Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.), os cartagineses teriam juntado uma
montanha (“tão alta presa”) de anéis dos romanos mortos; as batalhas que
Roberto Guiscardo fez para conquistar o território da Apúlia (1077); e, ainda, as
disputas entre os d’Anjou e os Hohenstaufen, uma em Ceprano (1266), outra nos
arredores de Tagliacozzo (1268), onde o velho Alardo di Valéry venceu pelo uso
de um estratagema (“sem arma”) [1-21]. A pena de um espírito chama a atenção de
Dante: é Maomé com seu primo e genro Ali, ambos fendidos por terem causado
cisma no cristianismo. Ao ver o poeta vivo, Maomé lhe pede que advirta frei
Dolcin (?-1307) sobre as provisões necessárias à sua batalha para não cair nas
mãos do inimigo (“os de Novara”), em referência à guerra do papa Clemente v
contra o frade [22-63]. Outro espírito se apresenta: é Pier da Medicina (séc. xiii),
originário da planície paduana (“de Vercelli a Marcabò”), que faz uma profecia
sobre dois nobres de Fano, Guido del Cassero e Angiolello da Carignano,
segundo a qual um “tirano in do” (Malatestino dei Malatesta) cometerá o crime
mais hediondo. Este “traidor caolho” — senhor de Rimini, cidade que Cúrio
(“um aqui”) não queria mais ver, pois lá havia cometido a culpa que paga no
inferno — os matará, livrando-os de pedir “voto ou abrigo” ao forte vento de
Focara, perto de Cattolica [64-90]. Pier esclarece que o espírito ali com ele é Cúrio,
tribuno da plebe romana que acabou com a hesitação de Júlio César em passar o
Rubicão, o que provocou a guerra civil entre César e Pompeu [91-102]. Outro
personagem pede para ser lembrado: é Mosca dei Lamberti (?-1243), gibelino
responsável pela morte de um importante guelfo, o que deu início à rivalidade de
guelfos e gibelinos entre os toscanos (“gente tosca”) [103-111]. Dante vê, por m,
outro espírito: é Bertran de Born (c. 1140-c. 1215), célebre trovador provençal
que teria semeado discórdia entre o rei da Inglaterra e um de seus lhos. A cisão
entre os dois é comparada ao evento bíblico em que Aitofel, conselheiro de Davi,
joga o lho deste, Absalão, contra o próprio pai. Como Bertran cindiu pai e lho
em vida, aqui ele mesmo está cindido, exempli cando assim a lei do “contrapasso”
que rege todo o inferno [112-142].
uem poderia com palavras soltas
dizer o sangue e as chagas por inteiro
que ora eu vi, a narrar sem dar mais voltas? 3

ue toda língua errasse é o certeiro,


porque nosso discurso e nossa mente
têm pouco senso no entender inteiro. 6

Ainda que se unisse toda a gente


que outrora, na desfortunada terra
da Apúlia, teve seu sangue dolente 9

pelos troianos e por longa guerra


que dos anéis formou tão alta presa,
tal como escreve Lívio, que não erra, 12

com a que sofreu golpes de dureza


ao dar combate a Roberto Guiscardo;
e a outra, cuja ossada ainda pesa 15

em Ceprano, lá onde foi bastardo


todo apuliano, e lá por Tagliacozzo,
onde venceu sem arma o velho Alardo; 18

e quem membro fendido e quem faltoso


mostrasse, a se igualar seria nada
à nona bolsa em seu aspecto ascoso. 21
Uma pipa, sem tampa ou já rachada,
como um eu vi, assim não se arreganha,
roto do queixo ao furo da bufada. 24

Entre as pernas pendia sua entranha;


a fressura se via e o podre saco
que merda faz daquilo que abocanha. 27

Enquanto a vê-lo eu todo tremo e estaco,


olhou-me e com as mãos abriu seu peito
dizendo: “Vê só como eu me esburaco! 30

Vê como Maomé está desfeito!


Na minha frente vai chorando Ali,
do queixo à fronte aberto desse jeito. 33

E todos os demais que vês aqui,


semeadores de brigas e de cisma
foram, donde com eles me cindi. 36

Cá atrás um demo em dividir-nos cisma


bem cruelmente, ao o de sua lança
nos repassando a todos desta resma 39

ao completarmos a dolente andança;


pois as feridas são fechadas antes
a quem passando em frente dele avança. 42

Mas tu quem és, que encaras os errantes,


talvez para atrasar tua ida à pena
julgada acima por ações agrantes?”. 45

“Não teve morte ou culpa que o condena”,


meu mestre respondeu, “a atormentá-lo;
mas para dar-lhe experiência plena, 48

a mim, que morto estou, cabe levá-lo


por este inferno abaixo, e muito atento;
e isto é verdade assim como eu te falo”. 51

Foram bem mais de cem nesse momento


que ouvindo se sustaram para olhar
pelo espanto, esquecendo o sofrimento. 54

“Dirás a frei Dolcin para se armar —


tu que verás o sol talvez em breve,
se ele cá não quiser me acompanhar — 57

de víveres, assim a densa neve


não dê aos de Novara uma vantagem,
do contrário cairá como se deve”. 60

Posto em ponta de pé em sua passagem,


Maomé estas palavras me dizia;
então pisou no chão e seguiu viagem. 63

Um outro, que a goela aberta havia


e partido o nariz até a celha,
e não mais que uma orelha possuía, 66

xo a olhar, erguendo a sobrancelha


com os outros, primeiro abriu a goela,
que de fora era toda tão vermelha, 69

e disse: “Ó tu que culpa alguma sela,


a quem eu vira na terra latina,
se semelhança assaz não me engabela, 72

relembra-te de Pier da Medicina,


se voltares a ver o doce plano
que de Vercelli a Marcabò declina. 75

Faz saber aos melhores dois de Fano,


ao senhor Angiolello e ainda a Guido,
que, se o prever aqui não é engano, 78

cada um de seu batel será banido


cos pés presos a pedras em Cattolica
por crueldade de um tirano in do. 81

Entre a ilha de Chipre e de Maiólica


jamais vira tão grande erro Netuno,
não de piratas, não de gente argólica. 84

O traidor caolho e importuno,


senhor da terra que um aqui comigo
queria de a ter visto estar jejuno, 87

os levará a conversar consigo;


e tal fará, que ao vento de Focara
não lhes será mister voto ou abrigo”. 90

E eu falei: “Demonstra-me e declara,


se queres que eu de ti leve relatos,
quem é aquele da visão amara”. 93

Se foi ao companheiro e com maus-tratos


forçou seu queixo e a boca então lhe abriu
gritando: “É este mudo, aqui os fatos. 96

Este, exilado, a dúvida imergiu


em César, a rmando que ao perito
sempre com dano o demorar puniu”. 99

Oh, quanto parecia a mim a ito


coa língua retalhada na garganta
Cúrio, que no falar foi tão expedito! 102

E outro, que acima os cotocos levanta,


vibrando as mãos cortadas na aura fosca
e a cara enchendo de sangueira tanta, 105
gritou: “Recorda-te também do Mosca,
que disse, ‘Todo início tem um m’,
que foi mau germe para a gente tosca”. 108

E eu: “E morte à tua estirpe en m”;


ao que ele, acumulando dor com dor,
sombrio e louco se afastou de mim. 111

Mas eu quei a olhar do bando o error


e vi uma coisa que eu teria paúra,
sem outra prova, de sozinho a expor; 114

porém a consciência me assegura,


a boa companhia que viceja
sob a couraça do sentir-se pura. 117

Eu vi certo, e parece inda que eu veja,


um busto sem cabeça que marchava
tal como os outros da infeliz igreja; 120

a cabeça arrancada segurava


plos cabelos à guisa de lanterna
e assim dizia “Ai!” e a nós olhava. 123

De si fazia a si mesmo lucerna,


e era um em dois e dois em um defronte;
como isto pode, o sabe quem governa. 126

uando se aproximou do pé da ponte,


levantou alto o braço com a testa,
como quem seu discurso já apronte, 129

e falou: “Ora vê a pena molesta,


tu que, inspirando, os mortos vais olhando:
vê cá se alguma é grande como esta. 132

E pra levar de mim notícias quando


tu voltares, Bertran de Born eu sou
e dei ao jovem rei conselho infando. 135

Por mim o lho ao pai se rebelou;


Aitofel não fez pior co Absalão
e com Davi quando os espicaçou. 138

Porque pessoas rmes na união


parti, partido é meu cérebro, lasso!,
de seu princípio, aqui neste aleijão. 141

Assim se vê em mim o contrapasso”.


Chi poria mai pur con parole sciolte
dicer del sangue e de le piaghe a pieno
ch i ora vidi, per narrar più volte? 3

Ogne lingua per certo verria meno


per lo nostro sermone e per la mente
c hanno a tanto comprender poco seno. 6

S el s aunasse ancor tutta la gente


che già, in su la fortunata terra
di Puglia, fu del suo sangue dolente 9

per li Troiani e per la lunga guerra


che de l anella fé sì alte spoglie,
come Livïo scrive, che non erra, 12

con quella che sentio di colpi doglie


per contastare a Ruberto Guiscardo;
e l altra il cui ossame ancor s accoglie 15

a Ceperan, là dove fu bugiardo


ciascun Pugliese, e là da Tagliacozzo,
dove sanz arme vinse il vecchio Alardo; 18

e qual forato suo membro e qual mozzo


mostrasse, d aequar sarebbe nulla
il modo de la nona bolgia sozzo. 21
Già veggia, per mezzul perdere o lulla,
com io vidi un, così non si pertugia,
rotto dal mento in n dove si trulla. 24

Tra le gambe pendevan le minugia;


la corata pareva e l tristo sacco
che merda fa di quel che si trangugia. 27

Mentre che tutto in lui veder m attacco,


guardommi e con le man s aperse il petto,
dicendo: “Or vedi com io mi dilacco! 30

vedi come storpiato è Mäometto!


Dinanzi a me sen va piangendo Alì,
fesso nel volto dal mento al ciuffetto. 33

E tutti li altri che tu vedi qui,


seminator di scandalo e di scisma
fuor vivi, e però son fessi così. 36

Un diavolo è qua dietro che n accisma


sì crudelmente, al taglio de la spada
rimettendo ciascun di questa risma, 39

quand avem volta la dolente strada;


però che le ferite son richiuse
prima ch altri dinanzi li rivada. 42

Ma tu chi se che n su lo scoglio muse,


forse per indugiar d ire a la pena
ch è giudicata in su le tue accuse?”. 45

“Né morte l giunse ancor, né colpa l mena”,


rispuose l mio maestro, “a tormentarlo;
ma per dar lui esperïenza piena, 48

a me, che morto son, convien menarlo


per lo nferno qua giù di giro in giro;
e quest è ver così com io ti parlo”. 51

Più fuor di cento che, quando l udiro,


s arrestaron nel fosso a riguardarmi
per maraviglia, oblïando il martiro. 54

“Or dì a fra Dolcin dunque che s armi,


tu che forse vedra il sole in breve,
s ello non vuol qui tosto seguitarmi, 57

sì di vivanda, che stretta di neve


non rechi la vittoria al Noarese,
ch altrimenti acquistar non saria leve”. 60

Poi che l un piè per girsene sospese,


Mäometto mi disse esta parola;
indi a partirsi in terra lo distese. 63

Un altro, che forata avea la gola


e tronco l naso in n sotto le ciglia,
e non avea mai ch una orecchia sola, 66

ristato a riguardar per maraviglia


con li altri, innanzi a li altri aprì la canna,
ch era di fuor d ogne parte vermiglia, 69

e disse: “O tu cui colpa non condanna


e cu io vidi in su terra latina,
se troppa simiglianza non m inganna, 72

rimembriti di Pier da Medicina,


se mai torni a veder lo dolce piano
che da Vercelli a Marcabò dichina. 75

E fa sapere a due miglior da Fano,


a messer Guido e anco ad Angiolello,
che, se l antiveder qui non è vano, 78

gittati saran fuor di lor vasello


e mazzerati presso a la Cattolica
per tradimento d un tiranno fello. 81

Tra l isola di Cipri e di Maiolica


non vide mai sì gran fallo Nettuno,
non da pirate, non da gente argolica. 84

uel traditor che vede pur con l uno,


e tien la terra che tale qui meco
vorrebbe di vedere esser digiuno, 87

farà venirli a parlamento seco;


poi farà sì, ch al vento di Focara
non sarà lor mestier voto né preco”. 90

E io a lui: “Dimostrami e dichiara,


se vuo ch i porti sù di te novella,
chi è colui da la veduta amara”. 93

Allor puose la mano a la mascella


d un suo compagno e la bocca li aperse,
gridando: “ uesti è desso, e non favella. 96

uesti, scacciato, il dubitar sommerse


in Cesare, affermando che l fornito
sempre con danno l attender sofferse”. 99

Oh quanto mi pareva sbigottito


con la lingua tagliata ne la strozza
Curïo, ch a dir fu così ardito! 102

E un ch avea l una e l altra man mozza,


levando i moncherin per l aura fosca,
sì che l sangue facea la faccia sozza, 105
gridò: “Ricordera ti anche del Mosca,
che disse, lasso!, ‘Capo ha cosa fatta ,
che fu mal seme per la gente tosca”. 108

E io li aggiunsi: “E morte di tua schiatta”;


per ch elli, accumulando duol con duolo,
sen gio come persona trista e matta. 111

Ma io rimasi a riguardar lo stuolo,


e vidi cosa ch io avrei paura,
sanza più prova, di contarla solo; 114

se non che coscïenza m assicura,


la buona compagnia che l uom francheggia
sotto l asbergo del sentirsi pura. 117

Io vidi certo, e ancor par ch io l veggia,


un busto sanza capo andar sì come
andavan li altri de la trista greggia; 120

e l capo tronco tenea per le chiome,


pesol con mano a guisa di lanterna:
e quel mirava noi e dicea: “Oh me!”. 123

Di sé facea a sé stesso lucerna,


ed eran due in uno e uno in due;
com esser può, quei sa che sì governa. 126

uando diritto al piè del ponte fue,


levò l braccio alto con tutta la testa
per appressarne le parole sue, 129

che fuoro: “Or vedi la pena molesta,


tu che, spirando, vai veggendo i morti:
vedi s alcuna è grande come questa. 132

E perché tu di me novella porti,


sappi ch i son Bertram dal Bornio, quelli
che diedi al re giovane i ma conforti. 135

Io feci il padre e l glio in sé ribelli;


Achitofèl non fé più d Absalone
e di Davìd coi malvagi punzelli. 138

Perch io parti così giunte persone,


partito porto il mio cerebro, lasso!,
dal suo principio ch è in questo troncone. 141

Così s osserva in me lo contrapasso”.


Canto XXIX
Dante se comove diante da visão dos mutilados da nona bolsa e é repreendido por
Virgílio. Tenta convencer seu guia a fazerem uma pausa, pois deseja falar com um
parente (Geri del Bello, primo de seu pai) que ainda não teria sido vingado pela
família. Virgílio, no entanto, lhe nega o pedido pelo avançar da hora (“a lua já se
vai por nossos pés”) e diz que Geri havia aparecido enquanto Dante estava
distraído com a imagem de Bertran (“senhor em Altaforte”) [1-36]. Os poetas
chegam à décima e última bolsa do oitavo círculo, onde são punidos os
falsi cadores: seus lamentos fazem Dante se apiedar e tapar os ouvidos, e sua
fedentina lhe evoca a de corpos putrefatos em hospitais da Itália [37-51]. Descendo
sempre pela esquerda, Dante compara aquela devastação à de Egina, ilha que Juno
arrasou por ciúmes de Júpiter, depois regenerada pela súplica do rei Éaco, seu
único sobrevivente, que por concessão divina fez homens das formigas (mýrmēkes
em grego, que deram origem aos mirmidões) [52-66]. Os poetas encontram dois
danados cobertos de sarna, escorados um no outro a se coçar sem trégua; os dois
espíritos se assustam ao saber que Virgílio vai conduzindo um vivo pelo inferno.
Dante então pergunta quem são e qual sua origem [67-108]. uem conta a própria
história é Griffolino d’Arezzo (?-c. 1272), alquimista condenado à fogueira por
causa de Alberto da Siena (?-c. 1294), que se decepcionara com seus poderes
mágicos e o denunciara a “um que o protegia”, poderoso identi cado como o
bispo de Siena, de quem talvez fosse lho [109-123]. Outra alma se dirige a Dante e
inclui ironicamente no rol dos fúteis e dissipadores de Siena (“o horto”) alguns de
seus ricos cidadãos do séc. xiii, como Stricca, Niccolò, Caccia d’Ascian, além do
aproveitador Abbagliato: trata-se de Capocchio (?-1293), outro alquimista
condenado e queimado em Siena por ter ousado imitar a natureza com suas artes
como o macaco [124-139].
A muita gente e as variadas chagas
tanto me inebriaram a visão,
que o querer prantear me vinha em vagas. 3

Mas Virgílio: “Onde pões inda atenção?


Por que tua vista ainda se detém
lá nas sombras em triste extirpação? 6

Tu não olhaste outros bolsões tão bem:


sabe, se vais contar as almas rés,
que o vale vinte e duas milhas tem. 9

E a lua já se vai por nossos pés;


é pouco o tempo que ora nos é dado,
e há mais coisas a ver do que tu vês”. 12

“Se houvesses”, respondi, “considerado


o motivo por que eu ali olhava,
me deixavas talvez car parado”. 15

Mas o mestre seguia, e eu andava


atrás fazendo já minha resposta
e acrescentando: “Dentro dessa cava 18

onde eu mantinha a vista toda posta,


creio que esprito de meu sangue chore
a pena que aqui embaixo foi-lhe imposta”. 21
Então disse meu guia: “Não se escore
aqui teu pensamento sobre aquele.
Não penses nisso, e ele lá demore, 24

pois eu o vi mostrar-te ao pé daquele


pontilhão e imprecar feroz co dedo,
e ouvi chamar Geri del Bello a ele. 27

Estavas tu tão concentrado e quedo


em quem já foi senhor em Altaforte,
que não olhaste além, e se foi cedo”. 30

“Ó meu bom guia, a violenta morte


que não lhe foi saldada ainda”, eu disse,
“por parente que o vingue da má sorte 33

desdém lhe trouxe; assim, sem que eu o visse


se foi mudo, segundo me parece,
e de piedade fez que eu me cobrisse”. 36

Fomos falando até onde aparece


da ponte o ponto que outro vale aponta,
se neste imo abissal mais luz houvesse. 39

uando chegamos à última ponta


de Malebolge, ali de onde se avista
a pena dos conversos sob afronta, 42

uma chuva de prantos tristes mista a


lamentos me echaram de piedade,
e os ouvidos tapei àquela vista. 45

ual não seria a vil calamidade


se de hospitais no verão da Sardenha,
Maremma e Valdicchiana a enfermidade 48

se unisse toda em fossa que a mantenha,


tal era aqui, e a fedentina ativa
é a que de membros podres se desdenha. 51

Nós descemos pela última deriva


da longa arcada, sempre à mão sinistra;
e ali minha visão se fez mais viva 54

baixando rumo ao fundo, onde a ministra


do alto Senhor, com justiça e certeza,
pune os falsários que em seu rol registra. 57

Não creio possa haver maior tristeza


que ver de Egina o povo todo inerme,
quando o ar foi empestado por torpeza, 60

e os animais, té mesmo o menor verme,


se acabarem, e após a gente antiga,
segundo nos poetas se discerne, 63

se restaurar de germe de formiga,


senão o ver naquele escuro fosso
espíritos murchando em vária espiga. 66

Uns jaziam de borco, outros em dosso


alheio se escoravam, e uns de quatro
se arrastavam naquele triste poço. 69

Passo a passo seguíamos pelo atro


vale mudos, a ver e ouvir doentes
incapazes de erguer-se em tal teatro. 72

Eu vi dois apoiados a si rentes,


como a escaldar se apoia prato a prato,
o corpo eivado em crostas salientes; 75

e nunca vi rapaz com tanto trato


escovar o corcel de seu senhor,
ou de quem irritado o aguarda ingrato, 78

como ali se escovava com ardor


a própria pele em fúria que descarna
onde pinica, sem cessar a dor; 81

e assim coa unha se arrancava a sarna


como faca da carpa suas escamas
ou de peixe que mais cascuda encarna. 84

“Ó tu que com os dedos te destramas”,


iniciou meu guia a um dos tantos,
“usando-os qual tenazes em tuas lamas, 87

me diz se algum latino nesses cantos


entre outros jaz, e que tua unha baste
eternamente a ti em meio aos prantos”. 90

“Latinos ambos somos, feitos traste


como tu vês”, disse um dos dois chorando;
“mas quem és tu, que por nós perguntaste?”. 93

E o guia fez: “Sou um que vem baixando


com este vivo aqui, de salto em salto,
e lhe mostrar o inferno vou buscando”. 96

Então rompeu-se a dupla em sobressalto,


e tremendo cada um a mim volveu
com outros que o ouviram só por alto. 99

O mestre pôs-se todo ao lado meu


dizendo: “Dize-lhes o que te apraz”;
e eu falei, já que ele o concedeu: 102

“Se no mundo primeiro não se esfaz


vossa memória nas mentes dos novos,
e se ela sobrevive a sóis assaz, 105
dizei-me quem sois vós e de que povos;
que vossa incômoda e nefasta pena
não vos impeça de sair dos covos”. 108

“Eu fui de Arezzo, e Alberto da Siena”,


respondeu um, “me fez queimar no fogo;
mas minha morte aqui não me condena. 111

Verdade é que eu lhe disse, como em jogo:


‘Eu posso erguer-me em voo sobre o pó’;
e aquele, que era tolo e fútil, logo 114

quis que tal arte eu lhe mostrasse; e só


por não o ter feito um Dédalo, me fez
por um que o protegia arder sem dó. 117

Mas à última bolsa dessas dez


me mandou Minos, que não falha, pela
alquimia nociva, como vês”. 120

E eu disse ao poeta: “Mais que aquela


sienense houve gente tão vaidosa?
Nem a francesa, é certo, a tanto anela!”. 123

Ao me entender, uma outra alma leprosa


respondeu a meu dito: “Exceto Stricca,
cuja despesa foi parcimoniosa, 126

e Niccolò, que por primeiro a rica


culinária do cravo descobriu
no horto onde tal semente se radica; 129

salvo Caccia d’Ascian, que consumiu


com sua turma a vinha e os latifúndios,
em que Abbagliato seu tino exibiu. 132

Mas pra saber quem fala destes fundos


contra Siena, aguça o olho em mim,
tal que meus gestos te serão fecundos: 135

a sombra de Capocchio sou, en m,


falso e alquimista de metais exímio;
e deves recordar, ao ver-me assim, 138

como eu da natureza fui bom símio”.


La molta gente e le diverse piaghe
avean le luci mie sì inebrïate,
che de lo stare a piangere eran vaghe. 3

Ma Virgilio mi disse: “Che pur guate?


perché la vista tua pur si soffolge
là giù tra l ombre triste smozzicate? 6

Tu non hai fatto sì a l altre bolge;


pensa, se tu annoverar le credi,
che miglia ventidue la valle volge. 9

E già la luna è sotto i nostri piedi;


lo tempo è poco omai che n è concesso,
e altro è da veder che tu non vedi”. 12

“Se tu avessi”, rispuos io appresso,


“atteso a la cagion per ch io guardava,
forse m avresti ancor lo star dimesso”. 15

Parte sen giva, e io retro li andava,


lo duca, già faccendo la risposta,
e soggiugnendo: “Dentro a quella cava 18

dov io tenea or li occhi sì a posta,


credo ch un spirto del mio sangue pianga
la colpa che là giù cotanto costa”. 21
Allor disse l maestro: “Non si franga
lo tuo pensier da qui innanzi sovr ello.
Attendi ad altro, ed ei là si rimanga; 24

ch io vidi lui a piè del ponticello


mostrarti e minacciar forte col dito,
e udi l nominar Geri del Bello. 27

Tu eri allor sì del tutto impedito


sovra colui che già tenne Altaforte,
che non guardasti in là, sì fu partito”. 30

“O duca mio, la vïolenta morte


che non li è vendicata ancor”, diss io,
“per alcun che de l onta sia consorte, 33

fece lui disdegnoso; ond el sen gio


sanza parlarmi, sì com ïo estimo:
e in ciò m ha el fatto a sé più pio”. 36

Così parlammo in no al loco primo


che de lo scoglio l altra valle mostra,
se più lume vi fosse, tutto ad imo. 39

uando noi fummo sor l ultima chiostra


di Malebolge, sì che i suoi conversi
potean parere a la veduta nostra, 42

lamenti saettaron me diversi,


che di pietà ferrati avean li strali;
ond io li orecchi con le man copersi. 45

ual dolor fora, se de li spedali


di Valdichiana tra l luglio e l settembre
e di Maremma e di Sardigna i mali 48

fossero in una fossa tutti nsembre,


tal era quivi, e tal puzzo n usciva
qual suol venir de le marcite membre. 51

Noi discendemmo in su l ultima riva


del lungo scoglio, pur da man sinistra;
e allor fu la mia vista più viva 54

giù ver lo fondo, là ve la ministra


de l alto Sire infallibil giustizia
punisce i falsador che qui registra. 57

Non credo ch a veder maggior tristizia


fosse in Egina il popol tutto infermo,
quando fu l aere sì pien di malizia, 60

che li animali, in no al picciol vermo,


cascaron tutti, e poi le genti antiche,
secondo che i poeti hanno per fermo, 63

si ristorar di seme di formiche;


ch era a veder per quella oscura valle
languir li spirti per diverse biche. 66

ual sovra l ventre e qual sovra le spalle


l un de l altro giacea, e qual carpone
si trasmutava per lo tristo calle. 69

Passo passo andavam sanza sermone,


guardando e ascoltando li ammalati,
che non potean levar le lor persone. 72

Io vidi due sedere a sé poggiati,


com a scaldar si poggia tegghia a tegghia,
dal capo al piè di schianze macolati; 75

e non vidi già mai menare stregghia


a ragazzo aspettato dal segnorso,
né a colui che mal volontier vegghia, 78

come ciascun menava spesso il morso


de l unghie sopra sé per la gran rabbia
del pizzicor, che non ha più soccorso; 81

e sì traevan giù l unghie la scabbia,


come coltel di scardova le scaglie
o d altro pesce che più larghe l abbia. 84

“O tu che con le dita ti dismaglie”,


cominciò l duca mio a l un di loro,
“e che fai d esse talvolta tanaglie, 87

dinne s alcun Latino è tra costoro


che son quinc entro, se l unghia ti basti
etternalmente a cotesto lavoro”. 90

“Latin siam noi, che tu vedi sì guasti


qui ambedue”, rispuose l un piangendo;
“ma tu chi se che di noi dimandasti?”. 93

E l duca disse: “I son un che discendo


con questo vivo giù di balzo in balzo,
e di mostrar lo nferno a lui intendo”. 96

Allor si ruppe lo comun rincalzo;


e tremando ciascuno a me si volse
con altri che l udiron di rimbalzo. 99

Lo buon maestro a me tutto s accolse,


dicendo: “Dì a lor ciò che tu vuoli”;
e io incominciai, poscia ch ei volse: 102

“Se la vostra memoria non s imboli


nel primo mondo da l umane menti,
ma s ella viva sotto molti soli, 105
ditemi chi voi siete e di che genti;
la vostra sconcia e fastidiosa pena
di palesarvi a me non vi spaventi”. 108

“Io fui d Arezzo, e Albero da Siena”,


rispuose l un, “mi fé mettere al foco;
ma quel per ch io mori qui non mi mena. 111

Vero è ch i dissi lui, parlando a gioco:


‘I mi saprei levar per l aere a volo ;
e quei, ch avea vaghezza e senno poco, 114

volle ch i li mostrassi l arte; e solo


perch io nol feci Dedalo, mi fece
ardere a tal che l avea per gliuolo. 117

Ma ne l ultima bolgia de le diece


me per l alchìmia che nel mondo usai
dannò Minòs, a cui fallar non lece”. 120

E io dissi al poeta: “Or fu già mai


gente sì vana come la sanese?
Certo non la francesca sì d assai!”. 123

Onde l altro lebbroso, che m intese,


rispuose al detto mio: “Tra mene Stricca
che seppe far le temperate spese, 126

e Niccolò che la costuma ricca


del garofano prima discoverse
ne l orto dove tal seme s appicca; 129

e tra ne la brigata in che disperse


Caccia d Ascian la vigna e la gran fonda,
e l Abbagliato suo senno proferse. 132

Ma perché sappi chi sì ti seconda


contra i Sanesi, aguzza ver me l occhio,
sì che la faccia mia ben ti risponda: 135

sì vedrai ch io son l ombra di Capocchio,


che falsai li metalli con l alchìmia;
e te dee ricordar, se ben t adocchio, 138

com io fui di natura buona scimia”.


Canto XXX
Ainda na décima bolsa de Malebolge, o canto se abre com exemplos de fúria
contra as cidades de Tebas e de Troia, todos narrados nas Metamorfoses de Ovídio.
Os primeiros partem da ira de Juno que, traída por Júpiter, fez com que a amante
tebana Sêmele fosse incinerada; depois, fez com que Atamante, cunhado de
Sêmele, confundisse a esposa e seus dois lhos (“Learco” e “o outro”) com leões e
provocasse suas mortes; em seguida, Hécuba é arrebatada pela fúria quando, após
a invasão de Troia, vê os lhos mortos e perde a razão [1-21]. De modo ainda mais
furioso que nas passagens referidas, surgem duas almas: Capocchio é atacado por
uma delas, o orentino Gianni Schicchi (?-c. 1280), que se zera passar por
Buoso Donati para dele herdar sua égua mais preciosa (“a senhora da turma”);
Griffolino (“o aretino”) indica na outra alma Mirra, que apaixonada pelo pai se
travestira para com ele consumar o amor carnal [22-45]. Os poetas veem, inchado a
ponto de parecer um alaúde, Adão (séc. xiii), professor em Bolonha e parente dos
condes de Romena; nessa região, ele havia falsi cado orins de ouro (“liga
sigilada”), a moeda mais valiosa da época e que trazia a imagem do santo
(“Batista”) padroeiro de Florença. A sede que sua deformação física provoca é tão
grande que apenas a vingança dos condes Guido, Alessandro ou outro dos irmãos
poderia desviar sua atenção de uma fonte farta de água como a “Branda”, em Siena
[46-90].
Dois outros condenados são notados por Dante e nomeados por Adão: a
esposa de Putifar, que tentou seduzir José ( lho de Jacó) e o acusou de violência
por não ter tido sucesso; e o grego Sínon, que na Eneida foi responsável por fazer
entrar em Troia o cavalo de madeira [91-129]. Virgílio adverte Dante com rispidez
para que se dê conta da atenção desmedida ao bate-boca entre Sínon e Adão, o
que provoca uma vergonha também desproporcional no poeta [130-148].
Outrora, quando Juno com rudez
foi contra Sêmele e o sangue tebano,
os atacando numa e noutra vez, 3

Atamante tornou-se tão insano


que, tendo visto a esposa com os dois
lhos nos braços, um em cada pano, 6

gritou: “Erguei as redes, erguei, pois


assim pego a leoa e os leõezinhos”;
então as brutas garras logo expôs, 9

rompendo à pedra um como em moinhos,


e era Learco este arrebentado;
e a mãe se foi com o outro aos chãos marinhos. 12

E tendo a sorte ao fundo rebaixado


o orgulho dos troianos mais sedento,
tal que co reino o rei foi dizimado, 15

Hécuba escrava, triste e sem alento,


depois de ver Políxena ser morta
e Polidoro seu sem movimento 18

na praia, dolorosamente absorta,


fora de si, ladrou qual cão com ganas;
tamanha dor deixou sua mente torta. 21
Mas não de Tebas fúrias nem troianas
se viram nunca a arrebatar tão cruas,
a ferir animais, partes humanas, 24

quanto as que eu vi em duas sombras nuas


que mordendo corriam sem controlo
qual porco quando em fuga toma as ruas. 27

Uma alcançou Capocchio e bem no colo


as presas lhe ncou e o foi puxando
pro ventre lhe raspar no duro solo. 30

E o aretino ali tremelicando


me disse: “Esse capeta é Gianni Schicchi,
que vai raivoso os outros deturpando”. 33

“Oh”, lhe disse eu, “que o outro não te a nque


os dentes, e não seja a ti fadiga
me dizer quem é, antes que se pique”. 36

E ele me fez: “Aquela é a alma antiga


da celerada Mirra, que virou
do pai, fora do justo amor, amiga. 39

Esta a pecar com ele se deitou


falsi cando a si sob outra forma,
assim como o outro que lá vai ousou, 42

para ganhar a senhora da turma,


Buoso Donati em si falsi car,
testando e dando ao testamento norma”. 45

Depois de os dois raivosos ver passar,


em quem lancei meus olhos mais que pude,
olhei outros mal nados do lugar. 48

Eu vi um feito à guisa de alaúde,


como se houvesse junto à inguinal
perdido a bifurcada completude. 51

A grave hidropisia, que é o seu mal,


os membros lhe deforma pelo humor,
desviando a cara e a pança do normal 54

e abrindo a boca toda de pavor


como um tuberculoso que à secura
os lábios revolvesse em estertor. 57

“Ó vós que pelo mundo de amargura,


não sei por que, seguis sem punição”,
disse ele a nós, “olhai e vede a dura 60

calamidade deste mestre Adão;


eu tive, vivo, muito do que quis
e agora um gole d’água imploro em vão. 63

Os rios que verdes montes tão gentis


descem ao Arno pelo Casentino,
abrindo fendas frescas e sutis, 66

me são imagens que eu não elimino,


ao contrário, pois isso mais me enxuga
que o mal que faz meu rosto car no. 69

A rígida justiça me subjuga


e faz lembrar a cena onde eu pequei,
acentuando meu suspiro em fuga. 72

Foi em Romena, onde eu falsi quei


a liga sigilada do Batista;
por isso o corpo ardido lá deixei. 75

Mas se eu pudesse ver a alma malquista


de Guido ou de Alessandro ou seus irmãos,
daria a Fonte Branda por sua vista. 78

Cá dentro há uma, se é que esses pagãos


que escuto blasfemar dizem verdade;
mas pra quê, se estou preso nestes vãos? 81

Pois se eu tivesse mais agilidade


para em cem anos caminhar um passo,
eu ia agora pela cavidade 84

a buscá-lo entre os vis com meu inchaço,


ainda que em largura meia milha
e onze de extensão lhe seja o traço. 87

Por eles vim parar nesta família;


zeram que eu cunhasse mais orins
com base num metal que pouco brilha”. 90

E eu falei: “ uem são os dois ruins


que exalam qual mão úmida no inverno
jazendo junto a teus destros con ns?”. 93

“Aqui os vi quando tombei no inferno”,


me disse, “e eles não deram volta alguma,
nem creio que darão em sempiterno. 96

A falsa que acusou José é uma;


o outro é Sínon, o grego a Troia in do;
por febre aguda sua catinga é suma”. 99

Um deles se irritou ao ter ouvido


sua alcunha sendo ali tão rebaixada,
e à dura pança lhe bateu doído, 102

soando qual tambor pela pancada;


e mestre Adão assim bateu-lhe a cara
com sua não menos rígida braçada, 105
dizendo: “Meu andar de todo para,
que a leveza dos membros foi-se às favas,
mas meu braço inda fere feito vara”. 108

Donde ele respondeu: “ uando tu andavas


ao fogo não o tinhas corrediço;
mas sim o tinhas quando tu cunhavas”. 111

E o hidrópico: “Falas vero disso:


mas não tão vero foi teu testemunho
quando em Troia à verdade foste omisso”. 114

“Se eu disse o falso, tu falseaste o cunho”,


disse Sínon, “e a ti eu não me igualo:
teus muitos erros são de próprio punho!”. 117

“Lembra-te, traiçoeiro, do cavalo”,


respondeu o que tinha inchada a pança;
“que te doa, pois o mundo há de guardá-lo!”. 120

“E dolorida seja-te a pujança


da sede”, disse o grego, “e a água azeda
que te incha o ventre até onde o olho alcança!”. 123

“ ue se arrebente”, fez o da moeda,


“tua boca pelo mal que se transmite:
se tenho sede e humor que não se arreda, 126

tu ardes numa febre sem limite,


e pra lamber o espelho de Narciso,
já não esperarias um convite”. 129

Estando eu todo atento, veio o aviso


de meu mestre: “Se aí manténs a mira,
contigo, um pouco mais, me encolerizo!”. 132

uando eu o ouvi falando a mim com ira,


pra ele me voltei com tal vergonha,
que ainda na memória me revira. 135

E como alguém que com seu dano sonha,


e sonhando deseja só sonhar,
pra que isso uma ilusão ele suponha, 138

assim eu z, não podendo falar,


por querer me escusar, e me escusava,
não crendo minha ação realizar. 141

“Erro maior menor vergonha lava”,


me disse o mestre, “e o teu não foi vultoso;
então deixa a tristeza que te agrava. 144

Segue sempre a meu lado, cauteloso,


pois a fortuna pode te acolher
onde haja mais litígio indecoroso: 147

querer isso escutar é um vil querer”.


Nel tempo che Iunone era crucciata
per Semelè contra l sangue tebano,
come mostrò una e altra fïata, 3

Atamante divenne tanto insano,


che veggendo la moglie con due gli
andar carcata da ciascuna mano, 6

gridò: “Tendiam le reti, sì ch io pigli


la leonessa e ’ leoncini al varco”;
e poi distese i dispietati artigli, 9

prendendo l un ch avea nome Learco,


e rotollo e percosselo ad un sasso;
e quella s annegò con l altro carco. 12

E quando la fortuna volse in basso


l altezza de Troian che tutto ardiva,
sì che nsieme col regno il re fu casso, 15

Ecuba trista, misera e cattiva,


poscia che vide Polissena morta,
e del suo Polidoro in su la riva 18

del mar si fu la dolorosa accorta,


forsennata latrò sì come cane;
tanto il dolor le fé la mente torta. 21
Ma né di Tebe furie né troiane
si vider mäi in alcun tanto crude,
non punger bestie, nonché membra umane, 24

quant io vidi in due ombre smorte e nude,


che mordendo correvan di quel modo
che l porco quando del porcil si schiude. 27

L una giunse a Capocchio, e in sul nodo


del collo l assannò, sì che, tirando,
grattar li fece il ventre al fondo sodo. 30

E l Aretin che rimase, tremando


mi disse: “ uel folletto è Gianni Schicchi,
e va rabbioso altrui così conciando”. 33

“Oh”, diss io lui, “se l altro non ti cchi


li denti a dosso, non ti sia fatica
a dir chi è, pria che di qui si spicchi”. 36

Ed elli a me: “ uell è l anima antica


di Mirra scellerata, che divenne
al padre, fuor del dritto amore, amica. 39

uesta a peccar con esso così venne,


falsi cando sé in altrui forma,
come l altro che là sen va, sostenne, 42

per guadagnar la donna de la torma,


falsi care in sé Buoso Donati,
testando e dando al testamento norma”. 45

E poi che i due rabbiosi fuor passati


sovra cu io avea l occhio tenuto,
rivolsilo a guardar li altri mal nati. 48

Io vidi un, fatto a guisa di lëuto,


pur ch elli avesse avuta l anguinaia
tronca da l altro che l uomo ha forcuto. 51

La grave idropesì, che sì dispaia


le membra con l omor che mal converte,
che l viso non risponde a la ventraia, 54

faceva lui tener le labbra aperte


come l etico fa, che per la sete
l un verso l mento e l altro in sù rinverte. 57

“O voi che sanz alcuna pena siete,


e non so io perché, nel mondo gramo”,
diss elli a noi, “guardate e attendete 60

a la miseria del maestro Adamo;


io ebbi, vivo, assai di quel ch i volli,
e ora, lasso!, un gocciol d acqua bramo. 63

Li ruscelletti che d i verdi colli


del Casentin discendon giuso in Arno,
faccendo i lor canali freddi e molli, 66

sempre mi stanno innanzi, e non indarno,


ché l imagine lor vie più m asciuga
che l male ond io nel volto mi discarno. 69

La rigida giustizia che mi fruga


tragge cagion del loco ov io peccai
a metter più li miei sospiri in fuga. 72

Ivi è Romena, là dov io falsai


la lega suggellata del Batista;
per ch io il corpo sù arso lasciai. 75

Ma s io vedessi qui l anima trista


di Guido o d Alessandro o di lor frate,
per Fonte Branda non darei la vista. 78

Dentro c è l una già, se l arrabbiate


ombre che vanno intorno dicon vero;
ma che mi val, c ho le membra legate? 81

S io fossi pur di tanto ancor leggero


ch i potessi in cent anni andare un oncia,
io sarei messo già per lo sentiero, 84

cercando lui tra questa gente sconcia,


con tutto ch ella volge undici miglia,
e men d un mezzo di traverso non ci ha. 87

Io son per lor tra sì fatta famiglia;


e m indussero a batter li orini
ch avevan tre carati di mondiglia”. 90

E io a lui: “Chi son li due tapini


che fumman come man bagnate l verno,
giacendo stretti a tuoi destri con ni?”. 93

“ ui li trovai — e poi volta non dierno —”,


rispuose, “quando piovvi in questo greppo,
e non credo che dieno in sempiterno. 96

L una è la falsa ch accusò Gioseppo;


l altr è l falso Sinon greco di Troia:
per febbre aguta gittan tanto leppo”. 99

E l un di lor, che si recò a noia


forse d esser nomato sì oscuro,
col pugno li percosse l epa croia. 102

uella sonò come fosse un tamburo;


e mastro Adamo li percosse il volto
col braccio suo, che non parve men duro, 105
dicendo a lui: “Ancor che mi sia tolto
lo muover per le membra che son gravi,
ho io il braccio a tal mestiere sciolto”. 108

Ond ei rispuose: “ uando tu andavi


al fuoco, non l avei tu così presto;
ma sì e più l avei quando coniavi”. 111

E l idropico: “Tu di ver di questo:


ma tu non fosti sì ver testimonio
là ve del ver fosti a Troia richesto”. 114

“S io dissi falso, e tu falsasti il conio”,


disse Sinon; “e son qui per un fallo,
e tu per più ch alcun altro demonio!”. 117

“Ricorditi, spergiuro, del cavallo”,


rispuose quel ch avëa in ata l epa;
“e sieti reo che tutto il mondo sallo!”. 120

“E te sia rea la sete onde ti crepa”,


disse l Greco, “la lingua, e l acqua marcia
che l ventre innanzi a li occhi sì t assiepa!”. 123

Allora il monetier: “Così si squarcia


la bocca tua per tuo mal come suole;
ché, s i ho sete e omor mi rinfarcia, 126

tu hai l arsura e l capo che ti duole,


e per leccar lo specchio di Narcisso,
non vorresti a nvitar molte parole”. 129

Ad ascoltarli er io del tutto sso,


quando l maestro mi disse: “Or pur mira,
che per poco che teco non mi risso!”. 132

uand io l senti a me parlar con ira,


volsimi verso lui con tal vergogna,
ch ancor per la memoria mi si gira. 135

ual è colui che suo dannaggio sogna,


che sognando desidera sognare,
sì che quel ch è, come non fosse, agogna, 138

tal mi fec io, non possendo parlare,


che disïava scusarmi, e scusava
me tuttavia, e nol mi credea fare. 141

“Maggior difetto men vergogna lava”,


disse l maestro, “che l tuo non è stato;
però d ogne trestizia ti disgrava. 144

E fa ragion ch io ti sia sempre allato,


se più avvien che fortuna t accoglia
dove sien genti in simigliante piato: 147

ché voler ciò udire è bassa voglia”.


Canto XXXI
Após a reprimenda de Virgílio, Dante diz que o mesmo mestre que o feriu
também lhe trouxe o remédio, assim como a lança de Aquiles costumava ferir e
depois curar [1-6]. Os dois se afastam em silêncio da décima bolsa e, numa
atmosfera sombria, escutam o forte som de um berrante, que o poeta compara ao
que o paladino Orlando soou na derrota de Roncesvales durante a guerra liderada
por Carlos Magno (séc. viii) [7-18]. Dante se volta para o estridor e tem a
impressão de enxergar altas torres, ao que Virgílio esclarece que não são torres,
mas gigantes que circundam o poço onde termina o oitavo círculo [19-33].
Enquanto avança cheio de medo, Dante vê aquelas guras e as associa às torres da
muralha de Monteriggioni. Os gigantes se elevam do poço da cintura para cima,
um deles com o rosto tão grande quanto a pinha de bronze que, na época de
Dante, cava em frente à basílica de San Pietro; o primeiro que os poetas deparam
é Nemrod, personagem bíblico que teria mandado erguer a torre de Babel: ele
vocifera aos poetas numa língua incompreensível [34-81]. Virgílio o repreende, e os
dois poetas seguem contornando o poço pela esquerda até toparem com um
maior e “mais selvagem”: trata-se de Fialte, um dos titãs que tentaram assaltar o
Olimpo e foram punidos por Júpiter [82-96]. Dante manifesta a vontade de ver
outro gigante, Briareu, mas seu guia diz que o levará até Anteu, o qual deverá
colocá-los no fundo do poço infernal [97-114]. Diante de Anteu, Virgílio exalta sua
força — célebre nos mesmos vales onde Cipião derrotou Aníbal — e ordena que
o gigante os baixe até o Cocito, o lago gelado do último círculo do inferno, e não
os conduza aos gigantes Tífon e Tício [115-129]. Anteu, que fora derrotado por
Hércules, estende a mão aos dois; ao vê-lo dobrar-se sobre eles, Dante o compara à
torre inclinada da Garisenda, em Bolonha. Por m, o gigante os pousa no Cocito
[130-145].
A mesma língua que antes me picou
e me tingiu as faces com pujança,
depois com seu remédio me curou; 3

assim ouvi que costumava a lança


de Aquiles e seu pai antes ferir
e depois socorrer com segurança. 6

O fosso vil deixamos a seguir


sobre a borda que tudo cinge em torno,
caminhando sem nada proferir. 9

Nem noite ou dia via-se no entorno,


tal que minha visão podia pouco;
então ouvi o soar de um alto corno, 12

tão forte que faria um trovão mouco,


o qual, de si sua via propagando,
endereçou meus olhos a um só foco. 15

Depois da dolorosa queda, quando


Carlos Magno perdeu a santa gesta,
não soou tão terrivelmente Orlando. 18

Mal dirigi àquele rumo a testa,


tive a impressão de ver mui altas torres
e falei: “Mestre, diz, que terra é esta?”. 21
Respondeu ele: “Como tu percorres
de longe as trevas deste breu ingente,
pela imaginação em erro incorres. 24

Poderás ver, se lá chegares rente,


quanto a distância o senso engana e é vão;
apressa-te, portanto, e segue em frente”. 27

Depois co afeto me pegou a mão


e disse: “Vamos prosseguir, mas antes
que esse fato te cause confusão, 30

sabe que não são torres, mas gigantes,


todos postados ao redor do poço,
do umbigo para cima desbordantes”. 33

Tal como o nevoeiro cessa, e nosso


olhar aqui e ali recon gura
o que o vapor oculta pelo ar grosso, 36

assim rompendo a aura espessa e escura,


pouco a pouco rumando para a beira,
fugiu-me o erro e em mim cresceu paúra; 39

e, tal como por sua muralha inteira


Monteriggion de torres se coroa,
lá no vão em que o poço faz fronteira 42

torreavam com metade da pessoa


os horríveis gigantes, a quem deus
Jove do céu ameaça quando atroa. 45

De algum eu avistava, já sem véus,


a cara e o peito e o ventre em grande parte,
e pelos ancos os dois braços seus. 48

Fez certo a natureza ao cessar a arte


de tais bestas, ndando as alcateias
de combatentes em favor de Marte. 51

E se ela de elefantes e baleias


não se arrepende, quem a observa bem
a vê mais justa e sábia coas ideias; 54

pois quando a inteligência vai também


ao malquerer e se une coa potência,
as gentes desse mal se veem refém. 57

Seu rosto longo tinha a aparência


da grande pinha de San Pietro em Roma,
e o resto secundava sua imponência; 60

assim o muro, que lhe era redoma


do meio a baixo, o exibia tanto
acima, que para alcançar-lhe a coma 63

não bastariam três frisões a tanto;


de modo que eu mirava trinta palmos
de baixo até onde o homem ata o manto. 66

“Raphél maí amécche zabí almos”,


começou a gritar a fera boca
a que convinham esses doces salmos. 69

E fez meu guia a ele: “Ó alma louca,


vai com teu corno e com ele transborda
quando ira ou outra païxão te toca! 72

Vê no pescoço, e encontrarás a corda


que o tem laçado, ó alma confusa,
e dele sobre o peito te recorda”. 75

Então me disse: “Ele mesmo se acusa:


este é Nemrod, por cujo mau pensar
no mundo uma só língua não mais se usa. 78

Vamos deixá-lo, não convém falar,


que a ele tanto faz qualquer linguagem,
como a sua ninguém pode captar”. 81

Assim zemos mais longa viagem


rumo à esquerda, e a um tiro de balestra
outro maior topamos, mais selvagem. 84

uem o cingisse em posição canhestra


não sei dizer, mas ele estava preso
com uma mão à frente e atrás a destra 87

por corrente que assim o tinha teso


do colo a baixo, a exibir no torso
cinco voltas torcidas desse peso. 90

“Este soberbo quis por próprio esforço


opor sua força a Júpiter supremo”,
disse meu guia, “e agora sofre o morso. 93

Ele é Fialte, o qual fez ato extremo


quando os titãs aos deuses deram medo;
aqui seu braço é como inútil remo”. 96

E eu: “Caso pudesse, ainda cedo


queria do desmedido Briareu
entender com meus olhos o degredo”. 99

Ao que me respondeu: “Verás Anteu


perto daqui, que fala e que está solto
e nos transportará ao fundo breu. 102

O que queres olhar ao longe envolto


e bem atado é feito tal como este,
salvo o rosto, mais hórrido e revolto”. 105
Nunca houve terremoto mais agreste
que abalasse uma torre assim tão forte,
do que Fialte a se abalar a leste. 108

Então temi mais do que nunca a morte,


e a essa bastaria só o pavor,
se eu não visse os grilhões de grande porte. 111

Nós seguimos à frente e ao redor


chegando a Anteu, que quase quatro braças,
fora a cabeça, erguia do poço em dor. 114

“Ó tu que no longínquo vale em graças


que cobriu Cipião de glória acesa,
quando escapou Aníbal com seus praças, 117

pegaste mais de mil leões por presa


e, se tivesse estado na alta guerra
de teus irmãos, pelo que inda se reza, 120

lá venceriam os lhos da Terra:


põe-nos abaixo, e não nos negues isso,
onde Cocito o frio gelado encerra. 123

Não nos leves a Tífon nem a Tício:


este vai dar o que por cá se clama,
então te inclina e apressa teu serviço. 126

No mundo ele inda pode te dar fama,


pois vive e longa vida ainda espera,
se antes do tempo a graça não o chama”. 129

Assim falou meu mestre; e logo a fera


nos estendeu a mão, pegando o guia
onde Hércules sentira a presa austera. 132

Virgílio, ao ver que o outro já o prendia,


disse a mim: “Vem aqui, faz que eu te prenda”;
e um feixe fez de nós que nos unia. 135

ual parece a quem olha a Garisenda


e vê passar por onde ela é inclinada
as nuvens, de tal modo que mais penda, 138

assim mostrou-se Anteu com sua fachada


enquanto se inclinava, e foi nesta hora
que eu quis me encaminhar por outra estrada. 141

Mas levemente ao fundo, que devora


Judas com Lúcifer, a nós pousou;
nem ali, inclinado, fez demora, 144

e como um mastro em nau se levantou.


Una medesma lingua pria mi morse,
sì che mi tinse l una e l altra guancia,
e poi la medicina mi riporse; 3

così od io che solea far la lancia


d Achille e del suo padre esser cagione
prima di trista e poi di buona mancia. 6

Noi demmo il dosso al misero vallone


su per la ripa che l cinge dintorno,
attraversando sanza alcun sermone. 9

uiv era men che notte e men che giorno,


sì che l viso m andava innanzi poco;
ma io senti sonare un alto corno, 12

tanto ch avrebbe ogne tuon fatto oco,


che, contra sé la sua via seguitando,
dirizzò li occhi miei tutti ad un loco. 15

Dopo la dolorosa rotta, quando


Carlo Magno perdé la santa gesta,
non sonò sì terribilmente Orlando. 18

Poco portäi in là volta la testa,


che me parve veder molte alte torri;
ond io: “Maestro, dì, che terra è questa?”. 21
Ed elli a me: “Però che tu trascorri
per le tenebre troppo da la lungi,
avvien che poi nel maginare abborri. 24

Tu vedrai ben, se tu là ti congiungi,


quanto l senso s inganna di lontano;
però alquanto più te stesso pungi”. 27

Poi caramente mi prese per mano


e disse: “Pria che noi siam più avanti,
acciò che l fatto men ti paia strano, 30

sappi che non son torri, ma giganti,


e son nel pozzo intorno da la ripa
da l umbilico in giuso tutti quanti”. 33

Come quando la nebbia si dissipa,


lo sguardo a poco a poco raffigura
ciò che cela l vapor che l aere stipa, 36

così forando l aura grossa e scura,


più e più appressando ver la sponda,
fuggiemi errore e cresciemi paura; 39

però che, come su la cerchia tonda


Montereggion di torri si corona,
così la proda che l pozzo circonda 42

torreggiavan di mezza la persona


li orribili giganti, cui minaccia
Giove del cielo ancora quando tuona. 45

E io scorgeva già d alcun la faccia,


le spalle e l petto e del ventre gran parte,
e per le coste giù ambo le braccia. 48

Natura certo, quando lasciò l arte


di sì fatti animali, assai fé bene
per tòrre tali essecutori a Marte. 51

E s ella d elefanti e di balene


non si pente, chi guarda sottilmente,
più giusta e più discreta la ne tene; 54

ché dove l argomento de la mente


s aggiugne al mal volere e a la possa,
nessun riparo vi può far la gente. 57

La faccia sua mi parea lunga e grossa


come la pina di San Pietro a Roma,
e a sua proporzione eran l altre ossa; 60

sì che la ripa, ch era perizoma


dal mezzo in giù, ne mostrava ben tanto
di sovra, che di giugnere a la chioma 63

tre Frison s averien dato mal vanto;


però ch i ne vedea trenta gran palmi
dal loco in giù dov omo affibbia l manto. 66

“Raphèl maì amècche zabì almi”,


cominciò a gridar la era bocca,
cui non si convenia più dolci salmi. 69

E l duca mio ver lui: “Anima sciocca,


tienti col corno, e con quel ti disfoga
quand ira o altra passïon ti tocca! 72

Cércati al collo, e troverai la soga


che l tien legato, o anima confusa,
e vedi lui che l gran petto ti doga”. 75

Poi disse a me: “Elli stessi s accusa;


questi è Nembrotto per lo cui mal coto
pur un linguaggio nel mondo non s usa. 78

Lasciànlo stare e non parliamo a vòto;


ché così è a lui ciascun linguaggio
come l suo ad altrui, ch a nullo è noto”. 81

Facemmo adunque più lungo vïaggio,


vòlti a sinistra; e al trar d un balestro
trovammo l altro assai più fero e maggio. 84

A cigner lui qual che fosse l maestro,


non so io dir, ma el tenea soccinto
dinanzi l altro e dietro il braccio destro 87

d una catena che l tenea avvinto


dal collo in giù, sì che n su lo scoperto
si ravvolgëa in no al giro quinto. 90

“ uesto superbo volle esser esperto


di sua potenza contra l sommo Giove”,
disse l mio duca, “ond elli ha cotal merto. 93

Fïalte ha nome, e fece le gran prove


quando i giganti fer paura a dèi;
le braccia ch el menò, già mai non move”. 96

E io a lui: “S esser puote, io vorrei


che de lo smisurato Brïareo
esperïenza avesser li occhi mei”. 99

Ond ei rispuose: “Tu vedrai Anteo


presso di qui che parla ed è disciolto,
che ne porrà nel fondo d ogne reo. 102

uel che tu vuo veder, più là è molto


ed è legato e fatto come questo,
salvo che più feroce par nel volto”. 105
Non fu tremoto già tanto rubesto,
che scotesse una torre così forte,
come Fïalte a scuotersi fu presto. 108

Allor temett io più che mai la morte,


e non v era mestier più che la dotta,
s io non avessi viste le ritorte. 111

Noi procedemmo più avante allotta,


e venimmo ad Anteo, che ben cinque alle,
sanza la testa, uscia fuor de la grotta. 114

“O tu che ne la fortunata valle


che fece Scipïon di gloria reda,
quand Anibàl co suoi diede le spalle, 117

recasti già mille leon per preda,


e che, se fossi stato a l alta guerra
de tuoi fratelli, ancor par che si creda 120

ch avrebber vinto i gli de la terra:


mettine giù, e non ten vegna schifo,
dove Cocito la freddura serra. 123

Non ci fare ire a Tizio né a Tifo:


questi può dar di quel che qui si brama;
però ti china e non torcer lo grifo. 126

Ancor ti può nel mondo render fama,


ch el vive, e lunga vita ancor aspetta
se nnanzi tempo grazia a sé nol chiama”. 129

Così disse l maestro; e quelli in fretta


le man distese, e prese l duca mio,
ond Ercule sentì già grande stretta. 132

Virgilio, quando prender si sentio,


disse a me: “Fatti qua, sì ch io ti prenda”;
poi fece sì ch un fascio era elli e io. 135

ual pare a riguardar la Carisenda


sotto l chinato, quando un nuvol vada
sovr essa sì, ched ella incontro penda: 138

tal parve Antëo a me che stava a bada


di vederlo chinare, e fu tal ora
ch i avrei voluto ir per altra strada. 141

Ma lievemente al fondo che divora


Lucifero con Giuda, ci sposò;
né, sì chinato, lì fece dimora, 144

e come albero in nave si levò.


Canto XXXII
No nono e último círculo do inferno, Dante invoca as musas, que haviam ajudado
o poeta mítico Anfíon a construir as muralhas de Tebas [1-12]. Dante percebe que
está sobre um lago congelado onde cam os traidores, mais solidi cado do que o
Danúbio e que o Tánais (atual rio Dom) no inverno; o gelo era tão espesso que
não cederia nem mesmo se o Cadria ou Pietrapana, duas montanhas dos Alpes,
caíssem sobre ele [13-39]. O poeta interroga dois espíritos estreitamente unidos, e
um terceiro responde dizendo que eram proprietários de Bisêncio, lhos do conde
Alberto (séc. xiii), Napoleone e Alessandro. Aquele gibelino, este guelfo, se
mataram pela herança das terras paternas. Não há, continua o espírito, sombras
mais dignas de estarem na Caína (primeira zona das quatro do nono círculo em
que estão os que traíram os familiares, cuja gura emblemática é Caim) do que
estas, nem aquele que foi golpeado pelo rei Artur, seu lho Mordret, que havia
traído o pai; nem Vanni de’ Cancellieri (séc. xiii), vulgo Focaccia, nobre de
Pistoia, um dos mais turbulentos e sectários daquela cidade; nem Sassol
Mascheroni (séc. xiii), nobre orentino, que, por estar na sua frente, atrapalha a
visão de Camiscion de’ Pazzi (séc. xiii), o qual conclui sua fala lançando a
profecia da vinda de Carlin de’ Pazzi ao círculo dos traidores, mas num nível pior
ainda [40-72]. Já na segunda zona, Antenora (cujo nome remonta a Antenor,
troiano que teria traído sua pátria), Dante tropeça em Bocca degli Abati (séc.
xiii), nobre orentino do partido guelfo que havia lutado na batalha de
Montaperti. Tendo sua identidade revelada, Bocca menciona alguns dos espíritos
que estavam ali, a começar por quem havia dito seu nome, Buoso da Duera (séc.
xiii), senhor de Soncino, do partido guelfo; Tesauro dei Beccheria (séc. xiii),
gibelino de Pavia; Gianni de’ Soldanier (séc. xiii), nobre orentino de família
gibelina; Ganelão, personagem de poemas cavaleirescos franceses do ciclo
carolíngio; e Tebaldello (séc. xiii), do partido gibelino, que traiu sua cidade
Faenza [73-123]. Por m, Dante vê um espírito roendo a cabeça de outro. A cena
lhe traz à memória Tideu, rei de Cálidon, um dos sete que assediaram Tebas, a
roer, moribundo, a cabeça do tebano Melanipo. O poeta pergunta quem são,
prometendo lembrar seus nomes no mundo dos vivos [124-139].
Tivesse eu uma voz áspera e rouca,
mais condizente ao tenebroso vão
no qual todo penedo pesa e enroca, 3

exprimiria o suco da visão


mais completo; mas como ela não sai,
vou falando com certa apreensão; 6

pois não é empresa fácil, que distrai,


a fundo descrever todo o universo,
nem com língua que chame mãe ou pai. 9

ue aquelas damas zelem o meu verso,


como em Tebas a Anfíon, o harpeiro:
não seja o fato do dizer diverso. 12

Oh, plebes mal geradas por inteiro,


que estais em sítio onde falar é duro,
melhor fôsseis aqui bode ou carneiro! 15

Mal chegamos ao rés do poço escuro


sob o gigante, em mais baixos espaços,
enquanto eu inda olhava o alto muro, 18

alguém me disse: “Cuida de teus passos:


não vás pisar aí com teu calcante
os crânios dos irmãos míseros lassos”. 21
Por isso eu me voltei e vi diante
e sob os pés um lago que por gelo
tinha de vidro e não de água semblante. 24

Não fez ao curso seu tão grosso velo


no inverno o rio Danúbio na Hungria,
nem o frio Tánais antes do degelo, 27

como aqui fez; pois se o monte Cadria


desabasse sobre ele, ou Pietrapana,
nem mesmo aquela borda trincaria. 30

E como a rã que seu coaxar emana


coas ventas fora da água quando sonha
que está a respigar uma serrana, 33

lívidas até onde dá vergonha


estavam no glaciar sombras amaras,
batendo os dentes qual som de cegonha. 36

Todas pra baixo voltavam as caras;


eram de frio e coração malquisto
a boca e os olhos testemunhas claras. 39

Depois de a meu redor eu ter bem visto,


virei-me aos pés e vi dois tão estreitos,
que o pelo da cabeça tinham misto. 42

“Dizei-me, vós que comprimis os peitos”,


falei, “quem sois?”. Torceram a cerviz
e, tendo a mim os rostos já direitos, 45

os olhos seus, de líquidos matriz,


pingaram sobre o lábio, e o gelo atou
as lágrimas cerrando seus per s. 48

Lenho ao lenho jamais ferro apertou


tão forte; e os dois qual bodes se marraram,
tamanha raiva a eles dominou. 51

E um, cujas orelhas despencaram


pelo frio, com o rosto inda abaixado
disse: “Por que teus olhos em nós param? 54

Se queres destes dois saber o fado,


o vale onde o Bisêncio lá declina
do pai Alberto e deles foi condado. 57

De um corpo vêm; e em toda esta Caína


podes buscar, não toparás com sombra
mais digna de estar xa em gelatina: 60

não o que o peito foi rompido e a sombra


com um só golpe pela mão de Artur;
não Focaccia; nem mesmo o que me ensombra 63

coa testa, tal que não vejo em redor,


que é Sassol Mascheroni, outro a ito;
se és toscano, bem sabes seu teor. 66

E pra que não me ponhas mais quesito,


sabe que Camiscion de’ Pazzi fui;
Carlin espero abaixo de onde habito”. 69

Depois mil faces vi que não se intui,


enregeladas, donde me arrepio
sobre a água empedrada que não ui. 72

E enquanto íamos pelo baixio


ao centro mais pesado da laguna,
e eu tremia no eterno sopro frio, 75

se foi querer, destino ou foi fortuna,


não sei; mas, caminhando entre as cabeças,
bati com força o pé na cara de uma. 78

Gritou-me aos prantos: “Por que em mim tropeças?


Se não vens para dar maior vingança
a Montaperti, por que me atravessas?”. 81

E eu: “Meu mestre, agora para a andança,


pra que eu tire uma dúvida com ele;
depois tu me farás ir sem tardança”. 84

Parou o guia, e eu falei àquele,


que ainda blasfemava naquela hora:
“ uem me censura sem que eu me revele?”. 87

“E tu, quem és, que vais pela Antenora


batendo”, respondeu, “em minha testa,
tal que, se vivo fosses, muito fora?”. 90

“Vivo eu estou, e cara é esta gesta”,


lhe respondi, “se te apetece fama
e queres ver tua estirpe manifesta”. 93

E ele a mim: “O contrário aqui se clama.


Não me atormentes, vai-te do meu lote,
pois lisonjeias mal por esta lama!”. 96

Então o arrebatei pelo cangote


e falei: “Ou me dizes quem tu és,
ou farei que cabelo aqui não brote”. 99

“Descabela-me então”, ele me fez,


“não te direi quem sou, nem me exporei,
ainda que me dês mil pontapés”. 102

Seus cabelos nas mãos mais agarrei


deixando-lhe uma parte toda oca,
e ele cego ladrava como é lei, 105
quando um outro gritou: “ ue é que tens, Bocca?
Não te basta estalar o maxilar?
Por que ladras? ue diabo te toca?”. 108

“Agora”, eu disse, “chega de falar,


maldito traidor; pra tua afronta,
de ti notícias veras vou levar”. 111

“Vai-te”, me disse, “e o que quiseres conta,


mas sem calar, se sais destes aléns,
daquele que ora teve a língua pronta. 114

Aqui paga de França seus vinténs:


‘Eu vi’, podes dizer, ‘o de Duera
no fresco que os danados faz reféns’. 117

Se indagassem ‘O grupo ali quem era?’,


tu tens ao lado um tal de Beccheria:
Florença o degolou como a uma fera. 120

Gianni de’ Soldanier creio que chia


além com Ganelão e Tebaldello,
que abriu Faenza quando se dormia”. 123

Já havíamos deixado esse duelo,


quando vi dois gelados n˜ua abertura,
de modo que um ao outro era agelo; 126

e como o pão por fome se procura,


o de cima sobre o outro pôs os dentes
onde entre crânio e nuca há ligadura: 129

Tideu não deu mordidas diferentes


na fronte a Melanipo por desprezo
daquelas que ele dava diligentes. 132

“Ó tu que mostras por tão bestial vezo


ódio contra o danado que tu tragas,
diz-me o porquê”, z eu, “sem menosprezo: 135

que se por ele aqui as chagas pagas,


sabendo quem sois vós e por que peca,
recompensar-te-ei nas vivas plagas, 138

se aquela com que eu falo não se seca”.


S ïo avessi le rime aspre e chiocce,
come si converrebbe al tristo buco
sovra l qual pontan tutte l altre rocce, 3

io premerei di mio concetto il suco


più pienamente; ma perch io non l abbo,
non sanza tema a dicer mi conduco; 6

ché non è impresa da pigliare a gabbo


discriver fondo a tutto l universo,
né da lingua che chiami mamma o babbo. 9

Ma quelle donne aiutino il mio verso


ch aiutaro Anfïone a chiuder Tebe,
sì che dal fatto il dir non sia diverso. 12

Oh sovra tutte mal creata plebe


che stai nel loco onde parlare è duro,
mei foste state qui pecore o zebe! 15

Come noi fummo giù nel pozzo scuro


sotto i piè del gigante assai più bassi,
e io mirava ancora a l alto muro, 18

dicere udi mi: “Guarda come passi:


va sì, che tu non calchi con le piante
le teste de fratei miseri lassi”. 21
Per ch io mi volsi, e vidimi davante
e sotto i piedi un lago che per gelo
avea di vetro e non d acqua sembiante. 24

Non fece al corso suo sì grosso velo


di verno la Danoia in Osterlicchi,
né Tanaï là sotto l freddo cielo, 27

com era quivi; che se Tambernicchi


vi fosse sù caduto, o Pietrapana,
non avria pur da l orlo fatto cricchi. 30

E come a gracidar si sta la rana


col muso fuor de l acqua, quando sogna
di spigolar sovente la villana, 33

livide, insin là dove appar vergogna


eran l ombre dolenti ne la ghiaccia,
mettendo i denti in nota di cicogna. 36

Ognuna in giù tenea volta la faccia;


da bocca il freddo, e da li occhi il cor tristo
tra lor testimonianza si procaccia. 39

uand io m ebbi dintorno alquanto visto,


volsimi a piedi, e vidi due sì stretti,
che l pel del capo avieno insieme misto. 42

“Ditemi, voi che sì strignete i petti”,


diss io, “chi siete?”. E quei piegaro i colli;
e poi ch ebber li visi a me eretti, 45

li occhi lor, ch eran pria pur dentro molli,


gocciar su per le labbra, e l gelo strinse
le lagrime tra essi e riserrolli. 48

Con legno legno spranga mai non cinse


forte così; ond ei come due becchi
cozzaro insieme, tanta ira li vinse. 51

E un ch avea perduti ambo li orecchi


per la freddura, pur col viso in giùe,
disse: “Perché cotanto in noi ti specchi? 54

Se vuoi saper chi son cotesti due,


la valle onde Bisenzo si dichina
del padre loro Alberto e di lor fue. 57

D un corpo usciro; e tutta la Caina


potrai cercare, e non troverai ombra
degna più d esser tta in gelatina: 60

non quelli a cui fu rotto il petto e l ombra


con esso un colpo per la man d Artù;
non Focaccia; non questi che m ingombra 63

col capo sì, ch i non veggio oltre più,


e fu nomato Sassol Mascheroni;
se tosco se , ben sai omai chi fu. 66

E perché non mi metti in più sermoni,


sappi ch i fu il Camiscion de Pazzi;
e aspetto Carlin che mi scagioni”. 69

Poscia vid io mille visi cagnazzi


fatti per freddo; onde mi vien riprezzo,
e verrà sempre, de gelati guazzi. 72

E mentre ch andavamo inver lo mezzo


al quale ogne gravezza si rauna,
e io tremava ne l etterno rezzo; 75

se voler fu o destino o fortuna,


non so; ma, passeggiando tra le teste,
forte percossi l piè nel viso ad una. 78

Piangendo mi sgridò: “Perché mi peste?


se tu non vieni a crescer la vendetta
di Montaperti, perché mi moleste?”. 81

E io: “Maestro mio, or qui m aspetta,


sì ch io esca d un dubbio per costui;
poi mi farai, quantunque vorrai, fretta”. 84

Lo duca stette, e io dissi a colui


che bestemmiava duramente ancora:
“ ual se tu che così rampogni altrui?”. 87

“Or tu chi se che vai per l Antenora,


percotendo”, rispuose, “altrui le gote,
sì che, se fossi vivo, troppo fora?”. 90

“Vivo son io, e caro esser ti puote”,


fu mia risposta, “se dimandi fama,
ch io metta il nome tuo tra l altre note”. 93

Ed elli a me: “Del contrario ho io brama.


Lèvati quinci e non mi dar più lagna,
ché mal sai lusingar per questa lama!”. 96

Allor lo presi per la cuticagna


e dissi: “El converrà che tu ti nomi,
o che capel qui sù non ti rimagna”. 99

Ond elli a me: “Perché tu mi dischiomi,


né ti dirò ch io sia, né mosterrolti
se mille ate in sul capo mi tomi”. 102

Io avea già i capelli in mano avvolti,


e tratti glien avea più d una ciocca,
latrando lui con li occhi in giù raccolti, 105
quando un altro gridò: “Che hai tu, Bocca?
non ti basta sonar con le mascelle,
se tu non latri? qual diavol ti tocca?”. 108

“Omai”, diss io, “non vo che più favelle,


malvagio traditor; ch a la tua onta
io porterò di te vere novelle”. 111

“Va via”, rispuose, “e ciò che tu vuoi conta;


ma non tacer, se tu di qua entro eschi,
di quel ch ebbe or così la lingua pronta. 114

El piange qui l argento de Franceschi:


‘Io vidi , potrai dir, ‘quel da Duera
là dove i peccatori stanno freschi . 117

Se fossi domandato ‘Altri chi v era? ,


tu hai dallato quel di Beccheria
di cui segò Fiorenza la gorgiera. 120

Gianni de Soldanier credo che sia


più là con Ganellone e Tebaldello,
ch aprì Faenza quando si dormia”. 123

Noi eravam partiti già da ello,


ch io vidi due ghiacciati in una buca,
sì che l un capo a l altro era cappello; 126

e come l pan per fame si manduca,


così l sovran li denti a l altro pose
là ve l cervel s aggiugne con la nuca: 129

non altrimenti Tidëo si rose


le tempie a Menalippo per disdegno,
che quei faceva il teschio e l altre cose. 132

“O tu che mostri per sì bestial segno


odio sovra colui che tu ti mangi,
dimmi l perché”, diss io, “per tal convegno, 135

che se tu a ragion di lui ti piangi,


sappiendo chi voi siete e la sua pecca,
nel mondo suso ancora io te ne cangi, 138

se quella con ch io parlo non si secca”.


Canto XXXIII
O espírito interpelado por Dante revela seu nome e o de quem ele rói: são o
conde guelfo Ugolino della Gherardesca (?-1289) e o gibelino Ruggieri degli
Ubaldini (?-1295), arcebispo de Pisa. Por causa deste, Ugolino e seus
descendentes homens foram presos na torre pisana conhecida como Muda, onde
morreram de fome. O conde narra seus últimos dias e conta um sonho
premonitório de sua morte e dos seus, no qual eram perseguidos por cadelas
acompanhadas de três famílias gibelinas de Pisa instigadas pelo arcebispo contra o
conde: os Gualandi, Sismondi e Lanfrancos [1-42]. Após a torre ser lacrada, os
lhos (“Gaddo” e “Uguiccione”) e netos (“Anselminho” e “Brigata”) veem
Ugolino imprecar mordendo as mãos, o que os leva a lhe oferecer suas carnes
como alimento [43-78]. Diante da tragédia familiar, o poeta investe contra a
crueldade de Pisa (“nova Tebas” do território italiano, “onde o sì soa”), clamando a
duas ilhotas do mar Tirreno (“Capraia coa Gorgona”) que fechem a foz do rio
Arno para inundar a cidade por completo; pois, a despeito do boato sobre a
traição de Ugolino “pelos castelos”, segundo o qual ele os havia cedido às inimigas
Lucca e Florença, seus descendentes não mereciam o mesmo castigo [79-90]. Dante
e Virgílio passam para a terceira zona do Cocito, a Ptolomeia, onde encontram
frei Alberigo dei Manfredi (séc. xiii-xiv ), que matou dois parentes após um jantar
de falsa reconciliação (“as frutas serviu”) e agora sofre uma pena mais re nada que
o crime, conforme a expressão proverbial “tâmara por go”. Dante se assusta ao
encontrar a alma do frade ali, pois seu corpo ainda circula entre os vivos. Essa é
uma característica da Ptolomeia, cujo nome é inspirado no rei bíblico de Jericó
que traiu seus hóspedes. Aí, a alma pode chegar antes da morte (“antes que
Átropos dê a ela um m”), tendo o corpo dominado por um demônio. Tal efeito
também se dá com o que está atrás do frade, o nobre genovês Branca Doria (?-c.
1325), cujo espírito aportou no gelo infernal antes que a alma de seu sogro
Michel Zanche, traído por ele e outro parente, chegasse ao piche controlado pelos
demônios Malagarras [91-150]. O último encontro leva o poeta a mais uma
invectiva, desta vez contra Gênova, pois tinha visto Branca Doria (“um de vós”)
com frei Alberigo (o “pior esprito da Romanha”) [151-157].
A boca levantou do fero pasto
o pecador, limpando-a no cabelo
do crânio que ele havia por trás gasto. 3

E começou: “Tu pedes, eu revelo


a dor sem trégua que me oprime o cor
só de pensar, mesmo antes de dizê-lo. 6

Mas se minhas palavras ao traidor


que eu roo dão infâmia como fruto,
fala e pranto verás num só ardor. 9

Eu não sei quem és tu e não discuto


como chegaste aqui; mas orentino
pareces pelo que eu de ti escuto. 12

Deves saber que eu fui conde Ugolino,


e arcebispo Ruggieri é este tal:
te direi por que nele me obstino. 15

Contar o efeito de seu mal moral,


tendo eu con ado nele, sendo preso
e depois morto, não é crucial; 18

mas podes não saber do menosprezo


com que me foi imposta a morte ruda,
por isso ouve e conclui da ofensa o peso. 21
Um estreito buraco lá na Muda,
que em Fome ora por mim se converteu
e onde outros serão presos, não se iluda, 24

me mostrara passadas pelo céu


já muitas luas, quando do futuro
em sonho para mim rompeu-se o véu. 27

Este me aparecia em mau agouro


caçando o lobo e seus lobinhos rente
ao monte que entre Pisa e Lucca é muro. 30

Cadelas magras de atenção fremente,


com Gualandi, Sismondi e com Lanfrancos,
ele havia disposto mais à frente. 33

Em breve tempo pareciam mancos


pai e lhos, os quais o acre aguilhão
das feras os fendiam pelos ancos. 36

Ao despertar no alvor e pelo chão,


ouvi chorar no sono meus menores
ali comigo, a implorar por pão. 39

És bem cruel, se já não sentes dores


supondo as que em meu cor se anunciavam;
se não choras, por nada creio chores. 42

Já estavam acordados e esperavam


a hora em que a comida era levada,
mas por causa do sonho duvidavam; 45

e ouvi a porta sendo cravejada


ao pé da horrível torre, quando olhei
meus lhos incapaz de fazer nada. 48

Eu não chorava, e dentro me empedrei:


choravam eles; e meu Anselminho
disse: ‘ ue tanto olhas, pai? Não sei!’. 51

O dia todo e a noite em chão mesquinho


eu não chorei, permaneci quieto,
até que novo sol seguiu caminho. 54

Assim que poucos raios foram reto


ao doloroso cárcere, e eu vi
nos quatro rostos todo meu aspeto, 57

ambas as mãos na dor me remordi;


e eles, pensando que isso era por fome,
se ergueram repentinamente ali 60

dizendo: ‘Pai, o sofrimento some


se comeres de nós: tu nos vestiste
destas míseras carnes, tu as consome’. 63

Nada falei, pois tudo era tão triste;


um dia e outro foram de apatia;
ai, dura terra, por que não te abriste? 66

Depois de começado o quarto dia,


Gaddo jogou-se diante de meus pés
dizendo: ‘Pai, me tira da agonia!’. 69

Aí morreu; e como tu me vês,


eu vi os três caírem um a um
do quinto ao sexto dia; donde ao rés 72

fui tateando cego cada um,


chamando-os por dois dias, mesmo mortos.
E depois, mais que a dor, pôde o jejum”. 75

Após isso ter dito, de olhos tortos


pegou de novo a testa vil cos dentes
como cães a roer ossos, absortos. 78

Ai Pisa, vitupério dessas gentes


que estão na bela terra onde o sì soa,
se a punir-te os vizinhos são ausentes, 81

que se mova a Capraia coa Gorgona


e façam sebe ao Arno em sua foz,
tal que ele afunde em ti toda pessoa! 84

Se do conde Ugolino correu voz


de haver traído a ti pelos castelos,
não desses a seus lhos cruz atroz. 87

Eram novos e puros e singelos,


nova Tebas, Uguiccione e o Brigata
e os dois que acima lançam seus apelos. 90

Nós passamos além, onde maltrata


o rude gelo uma outra gente má,
mas que agora supina se constata. 93

Lugar pro choro ali o chorar não dá,


e a dor, que não consegue achar escopo,
incha os olhos porque vazão não há; 96

assim se agrumam lágrimas no topo,


e tal como viseira de cristal
preenchem sob o cílio todo o copo. 99

E como calejado por igual


meu rosto desertasse o sentimento,
pelo frio que sentia terminal, 102

me parecia já sentir um vento;


então falei: “Meu mestre, quem o move?
Não é de todo sopro o abismo isento?”. 105
E ele a mim: “Logo mais o que comprove
isto a teus olhos te dará resposta,
vendo a razão por que a corrente chove”. 108

E um dos a itos desta fria crosta


gritou a nós: “Ó almas cruciantes,
a quem a última região é posta, 111

retirai-me do rosto os véus cortantes


para que um pouco a dor possa aplacar,
antes que o pranto gele nas vazantes”. 114

Eu respondi: “Se posso te ajudar,


me diz quem és, e se eu não te mitigo,
que ao fundo da geleira eu deva andar”. 117

Falou então: “Eu sou frei Alberigo,


o que as frutas serviu do mau outeiro
e aqui recebe tâmara por go”. 120

“Oh”, z eu, “já estás morto por inteiro?”.


“Como meu corpo esteja”, disse a mim,
“lá no mundo, não sei e não me inteiro. 123

De Ptolomeia é esse o dom en m,


pois muitas vezes a alma aqui decai
antes que Átropos dê a ela um m. 126

E se por ti mais de bom grado sai


a lágrima empedrada de meu rosto,
sabe que, logo após que a alma trai 129

como z eu, o corpo seu é posto


a um demônio, que a este assim governa
enquanto não lhe acaba o tempo imposto. 132

Ela desaba então nesta cisterna;


talvez se mostre ainda em corpo acima
a sombra que por trás de mim inverna. 135

Tu saberás, se tu vens lá de cima:


é o senhor Branca Doria, e bem mais de ano
se passou desde que ele aqui lastima”. 138

“Eu creio”, lhe z eu, “que aqui há engano;


pois Branca Doria não morreu ainda,
e come e bebe e dorme e veste pano”. 141

“No vão que os Malagarras”, disse, “blinda,


lá onde ferve tenazmente o pez,
Michel Zanche não tinha feito a vinda, 144

quando um diabo arrebatou de vez


seu corpo e o de um parente seu também,
que a traição ao lado dele fez. 147

Mas ora com tua mão até mim vem;


abre-me os olhos”. E eu não o z,
e cortesia foi lhe ter desdém. 150

Ai genoveses, homens muito vis,


aos quais, selvagens, todo vício amanha,
por que daqui do mundo não sumis? 153

Pois co pior esprito da Romanha


topei mais um de vós que, por sua obra,
em alma no Cocito já se banha 156

e em corpo vivo no alto se desdobra.


La bocca sollevò dal ero pasto
quel peccator, forbendola a capelli
del capo ch elli avea di retro guasto. 3

Poi cominciò: “Tu vuo ch io rinovelli


disperato dolor che l cor mi preme
già pur pensando, pria ch io ne favelli. 6

Ma se le mie parole esser dien seme


che frutti infamia al traditor ch i rodo,
parlare e lagrimar vedrai insieme. 9

Io non so chi tu se né per che modo


venuto se qua giù; ma orentino
mi sembri veramente quand io t odo. 12

Tu dei saper ch i fui conte Ugolino,


e questi è l arcivescovo Ruggieri:
or ti dirò perché i son tal vicino. 15

Che per l effetto de suo mai pensieri,


dandomi di lui, io fossi preso
e poscia morto, dir non è mestieri; 18

però quel che non puoi avere inteso,


cioè come la morte mia fu cruda,
udirai, e saprai s e m ha offeso. 21
Breve pertugio dentro da la Muda,
la qual per me ha l titol de la fame,
e che conviene ancor ch altrui si chiuda, 24

m avea mostrato per lo suo forame


più lune già, quand io feci l mal sonno
che del futuro mi squarciò l velame. 27

uesti pareva a me maestro e donno,


cacciando il lupo e ’ lupicini al monte
per che i Pisan veder Lucca non ponno. 30

Con cagne magre, studïose e conte


Gualandi con Sismondi e con Lanfranchi
s avea messi dinanzi da la fronte. 33

In picciol corso mi parieno stanchi


lo padre e ’ gli, e con l agute scane
mi parea lor veder fender li anchi. 36

uando fui desto innanzi la dimane,


pianger senti fra l sonno i miei gliuoli
ch eran con meco, e dimandar del pane. 39

Ben se crudel, se tu già non ti duoli


pensando ciò che l mio cor s annunziava;
e se non piangi, di che pianger suoli? 42

Già eran desti, e l ora s appressava


che l cibo ne solëa essere addotto,
e per suo sogno ciascun dubitava; 45

e io senti chiavar l uscio di sotto


a l orribile torre; ond io guardai
nel viso a mie gliuoi sanza far motto. 48

Io non piangëa, sì dentro impetrai:


piangevan elli; e Anselmuccio mio
disse: ‘Tu guardi sì, padre! che hai? . 51

Perciò non lagrimai né rispuos io


tutto quel giorno né la notte appresso,
in n che l altro sol nel mondo uscìo. 54

Come un poco di raggio si fu messo


nel doloroso carcere, e io scorsi
per quattro visi il mio aspetto stesso, 57

ambo le man per lo dolor mi morsi;


ed ei, pensando ch io l fessi per voglia
di manicar, di sùbito levorsi 60

e disser: ‘Padre, assai ci a men doglia


se tu mangi di noi: tu ne vestisti
queste misere carni, e tu le spoglia . 63

ueta mi allor per non farli più tristi;


lo dì e l altro stemmo tutti muti;
ahi dura terra, perché non t apristi? 66

Poscia che fummo al quarto dì venuti,


Gaddo mi si gittò disteso a piedi,
dicendo: ‘Padre mio, ché non m aiuti? . 69

uivi morì; e come tu mi vedi,


vid io cascar li tre ad uno ad uno
tra l quinto dì e l sesto; ond io mi diedi, 72

già cieco, a brancolar sovra ciascuno,


e due dì li chiamai, poi che fur morti.
Poscia, più che l dolor, poté l digiuno”. 75

uand ebbe detto ciò, con li occhi torti


riprese l teschio misero co denti,
che furo a l osso, come d un can, forti. 78

Ahi Pisa, vituperio de le genti


del bel paese là dove l sì suona,
poi che i vicini a te punir son lenti, 81

muovasi la Capraia e la Gorgona,


e faccian siepe ad Arno in su la foce,
sì ch elli annieghi in te ogne persona! 84

Che se l conte Ugolino aveva voce


d aver tradita te de le castella,
non dovei tu i gliuoi porre a tal croce. 87

Innocenti facea l età novella,


novella Tebe, Uguiccione e l Brigata
e li altri due che l canto suso appella. 90

Noi passammo oltre, là ve la gelata


ruvidamente un altra gente fascia,
non volta in giù, ma tutta riversata. 93

Lo pianto stesso lì pianger non lascia,


e l duol che truova in su li occhi rintoppo,
si volge in entro a far crescer l ambascia; 96

ché le lagrime prime fanno groppo,


e sì come visiere di cristallo,
rïempion sotto l ciglio tutto il coppo. 99

E avvegna che, sì come d un callo,


per la freddura ciascun sentimento
cessato avesse del mio viso stallo, 102

già mi parea sentire alquanto vento;


per ch io: “Maestro mio, questo chi move?
non è qua giù ogne vapore spento?”. 105
Ond elli a me: “Avaccio sarai dove
di ciò ti farà l occhio la risposta,
veggendo la cagion che l ato piove”. 108

E un de tristi de la fredda crosta


gridò a noi: “O anime crudeli
tanto che data v è l ultima posta, 111

levatemi dal viso i duri veli,


sì ch ïo sfoghi l duol che l cor m impregna,
un poco, pria che l pianto si raggeli”. 114

Per ch io a lui: “Se vuo ch i ti sovvegna,


dimmi chi se , e s io non ti disbrigo,
al fondo de la ghiaccia ir mi convegna”. 117

Rispuose adunque: “I son frate Alberigo;


i son quel da le frutta del mal orto,
che qui riprendo dattero per go”. 120

“Oh”, diss io lui, “or se tu ancor morto?”.


Ed elli a me: “Come l mio corpo stea
nel mondo sù, nulla scïenza porto. 123

Cotal vantaggio ha questa Tolomea,


che spesse volte l anima ci cade
innanzi ch Atropòs mossa le dea. 126

E perché tu più volontier mi rade


le nvetrïate lagrime dal volto,
sappie che, tosto che l anima trade 129

come fec ïo, il corpo suo l è tolto


da un demonio, che poscia il governa
mentre che l tempo suo tutto sia vòlto. 132

Ella ruina in sì fatta cisterna;


e forse pare ancor lo corpo suso
de l ombra che di qua dietro mi verna. 135

Tu l dei saper, se tu vien pur mo giuso:


elli è ser Branca Doria, e son più anni
poscia passati ch el fu sì racchiuso”. 138

“Io credo”, diss io lui, “che tu m inganni;


ché Branca Doria non morì unquanche,
e mangia e bee e dorme e veste panni”. 141

“Nel fosso sù”, diss el, “de Malebranche,


là dove bolle la tenace pece,
non era ancora giunto Michel Zanche, 144

che questi lasciò il diavolo in sua vece


nel corpo suo, ed un suo prossimano
che l tradimento insieme con lui fece. 147

Ma distendi oggimai in qua la mano;


aprimi li occhi”. E io non gliel apersi;
e cortesia fu lui esser villano. 150

Ahi Genovesi, uomini diversi


d ogne costume e pien d ogne magagna,
perché non siete voi del mondo spersi? 153

Ché col peggiore spirto di Romagna


trovai di voi un tal, che per sua opra
in anima in Cocito già si bagna, 156

e in corpo par vivo ancor di sopra.


Canto XXXIV
O último canto do Inferno começa com o primeiro verso inteiramente em latim:
Virgílio adverte Dante de que os “estandartes do rei do inferno avançam”,
aludindo a um hino de Venâncio Fortunato (séc. vi) em louvor de Cristo.
Assustado com o vento produzido pelas asas de Lúcifer, Dante se protege atrás do
guia e manifesta medo ao pôr em versos o que viu ali: sombras submersas no gelo
do Cocito e, adiante, Dite, descrito por Virgílio como “a criatura que teve o rosto
belo” [1-27]. Imerso no gelo até a metade do peito, Lúcifer se mostra gigantesco e
disforme, com três faces numa só cabeça: a do meio é vermelha, a da direita,
amarelada, e a da esquerda, preta (“tal como de quem/ vem do vale em que o Nilo
além se deita”, ou seja, a Etiópia); sob cada uma despontavam duas asas como de
morcego, as quais produziam o vento que congelava o lago [28-52]. Em cada uma
das bocas ele mastiga os maiores traidores da última zona do Cocito, a Judeca: ali
estão Judas (traidor de Cristo), Bruto e Cássio (traidores de César) [53-69].
Descendo pelo dorso de Lúcifer, os dois chegam ao quadril, onde Virgílio inverte
sua posição e segue rumo às pernas até debaixo dos pés, criando uma ilusão de
ótica em Dante, que acredita estar voltando ao inferno [70-84]. Chegados a uma
gruta subterrânea, Virgílio incita o poeta orentino a seguir viagem, pois já passa
das sete e meia da manhã, mas Dante quer entender em que posição eles se
encontram. O guia então explica que eles já atravessaram o centro da Terra e agora
estão no hemisfério oposto àquele em que viveu e morreu Jesus (“o homem que
não peca”); com a queda de Lúcifer, a terra do hemisfério impactado se deslocara
para o antípoda “por medo dele”, e seu corpo abrira a vala infernal (“um vão”),
cuja massa excedente se elevara “num portento”, a montanha do purgatório [85-
126]. Atraídos pelo som de um riacho subterrâneo, os poetas encontram uma
fenda erodida pela água e entram por ela, subindo em direção “ao claro mundo”
até reverem as estrelas [127-139].
“Vexilla regis prodeunt inferni
em nossa direção; por isso mira”,
disse meu mestre, “o que lá se discerne”. 3

Como quando uma densa névoa expira,


ou quando este hemisfério se desbota,
e por vento um moinho ao longe gira, 6

pensei ver prédio assim em nossa rota;


me encolhi pelo vento logo ao retro
de meu guia, na ausência de outra grota. 9

Já estava lá, e com medo ponho em metro,


onde as sombras se achavam encobertas,
visíveis como em vidro um o de feltro. 12

Algumas jazem, outras veem-se eretas,


com a cabeça ou com o tornozelo,
outras, como arco, aos pés faces ofertas. 15

uando fomos em meio a tanto gelo,


a meu mestre agradou então mostrar-me
a criatura que teve o rosto belo, 18

parando à minha frente e sem alarme


dizendo: “Eis Dite, e eis aqui o cavouco
onde convém que a fortaleza te arme”. 21
Não perguntes, leitor, quão frio e rouco
ali quei, que de escrever me esquivo,
já que qualquer falar seria pouco. 24

Eu não morri e não continuei vivo;


pensa por ti, se tens algum engenho,
como quei sem ambos inativo. 27

O imperador do reino tão ferrenho


emergia do gelo a meio peito;
e o porte de um gigante mais eu tenho 30

que um gigante o dos braços do desfeito:


vê então como há de ser o corpo cheio
por essa parte em que se mostra feito. 33

Se ele foi belo como agora é feio,


e contra seu criador saiu da trilha,
bem deve todo mal vir de seu seio. 36

Oh, mas que grande espanto e maravilha


quando eu três caras vi em sua cabeça!
Uma, a que vinha à frente, era vermelha; 39

as outras duas, que se uniam a essa


sobre o ombro em que cada uma se projeta,
uniam-se onde a crista mais se espessa: 42

parecia amarela a da direita,


e a esquerda era tal como a de quem
vem do vale em que o Nilo além se deita. 45

Abaixo de cada uma saem também


duas asas, qual ave, colossais:
jamais vi velas tais no mar além. 48

Não tinham penas, mas eram iguais


às de um morcego; e aquelas agitava
produzindo três ventos glaciais: 51

assim todo o Cocito enregelava.


Com seis olhos chorava, e por três queixos
pranto e baba de sangue gotejava. 54

Cada boca adentava como seixos


pontudos um danado, a triturar
três assim tão dolentes em seus eixos. 57

Ao da frente o morder não era par


à esfoladura, pois de quando em quando
tornava todo o dorso a despelar. 60

“Essa alma a quem mais pena se vai dando


é Judas Iscariotes”, disse o guia,
“coa fronte dentro e as pernas balançando. 63

Dos dois cuja cabeça cai baldia,


Bruto é o que descai da negra tez:
vê só como se estorce e não por a! 66

O outro é Cássio, que mostra robustez.


Mas a noite ressurge, e agora cabe
partir, pois tudo vimos, de uma vez”. 69

Prendi-me então ao colo do que sabe,


que colheu tempo e sítio vantajoso;
quando as asas se abriram num desabe, 72

colou-se inteiro ao dorso veludoso;


desceu de tufo em tufo como em rocha
as crostas frias e o costão peloso. 75

uando chegamos ali onde a coxa


se dobra, ponto em que a anca mais se externa,
o guia exausto, mas que não se afrouxa, 78

virou a testa aonde estava a perna,


tanto agarrando o pelo feito lima,
que eu cri voltar à infernal caverna. 81

“Olha bem, pois por esta escada acima”,


disse meu mestre, arfando como um lasso,
“convém partir do mal que só dizima”. 84

Saiu da rocha por estreito passo


e sobre a borda me deixou sentado;
me veio após com cauteloso passo. 87

Ergui os olhos e achei ter avistado


Lúcifer tal qual dele me afastara,
e o vi de pernas pro alto retesado; 90

se então desnorteado eu me tornara


a gente rude pense, que não vê
que ponto é aquele que eu ultrapassara. 93

“Ergue-te logo”, disse o mestre, “em pé:


a via é longa e o caminho é ingrato,
e o sol já deixa as sete e meia a ré”. 96

Não era aquele espaço um aparato


de palácio, mas cava natural
de escassa luz e chão de mau estrato. 99

“Antes que eu saia deste antro abissal,


mestre”, disse eu assim que me vi reto,
“tira-me do erro e fala-me a nal: 102

onde está o gelo? E esse, de que jeito


se inverteu? Como é que, antes da hora,
da noite ao dia o sol fez seu trajeto?”. 105
E ele a mim: “Imaginas inda agora
que estás de lá do centro, onde prendi-
-me à lã do verme vil que o mundo fura. 108

Lá estiveste no tempo em que eu desci;


mas quando eu me virei, passaste o ponto
que atrai todos os pesos para si. 111

E agora estás no lado em contraponto


ao hemisfério que recobre a seca
terra, sob cujo vértice em confronto 114

nasceu e foi morto o homem que não peca;


tu tens os pés sobre a pequena esfera
que a outra face forma da Judeca. 117

Se aqui é dia, a noite lá impera;


e esse, que escada a nós se fez no breu,
é posto em tal lugar como antes era. 120

Nesta parte caiu de lá do céu;


e a terra, que antes tinha aqui assento,
por medo dele fez do mar um véu 123

e foi ao nosso polo; e em tal evento,


talvez pra fugir dele, fez-se um vão,
e a que cá estava alçou-se num portento”. 126

Aos pés de Belzebu há um posto tão


remoto quanto a cova se distende,
que pelo som, e não pela visão, 129

um arroio revela, e este pende


do furo de uma pedra que pelo uso
era fendida em curso que descende. 132

O guia e eu pelo caminho escuso


entramos retornando ao claro mundo;
e sem querer buscar qualquer repouso 135

subimos, primeiro ele e eu segundo,


tanto que eu vi dali as coisas belas
que leva o céu, por um canal rotundo. 138

E então saímos a rever estrelas.


“Vexilla regis prodeunt inferni
verso di noi; però dinanzi mira”,
disse l maestro mio, “se tu l discerni”. 3

Come quando una grossa nebbia spira,


o quando l emisperio nostro annotta,
par di lungi un molin che l vento gira, 6

veder mi parve un tal di cio allotta;


poi per lo vento mi ristrinsi retro
al duca mio, ché non lì era altra grotta. 9

Già era, e con paura il metto in metro,


là dove l ombre tutte eran coperte,
e trasparien come festuca in vetro. 12

Altre sono a giacere; altre stanno erte,


quella col capo e quella con le piante;
altra, com arco, il volto a piè rinverte. 15

uando noi fummo fatti tanto avante,


ch al mio maestro piacque di mostrarmi
la creatura ch ebbe il bel sembiante, 18

d innanzi mi si tolse e fé restarmi,


“Ecco Dite”, dicendo, “ed ecco il loco
ove convien che di fortezza t armi”. 21
Com io divenni allor gelato e oco,
nol dimandar, lettor, ch i non lo scrivo,
però ch ogne parlar sarebbe poco. 24

Io non mori e non rimasi vivo;


pensa oggimai per te, s hai or d ingegno,
qual io divenni, d uno e d altro privo. 27

Lo mperador del doloroso regno


da mezzo l petto uscia fuor de la ghiaccia;
e più con un gigante io mi convegno, 30

che i giganti non fan con le sue braccia:


vedi oggimai quant esser dee quel tutto
ch a così fatta parte si confaccia. 33

S el fu sì bel com elli è ora brutto,


e contra l suo fattore alzò le ciglia,
ben dee da lui procedere ogne lutto. 36

Oh quanto parve a me gran maraviglia


quand io vidi tre facce a la sua testa!
L una dinanzi, e quella era vermiglia; 39

l altr eran due, che s aggiugnieno a questa


sovresso l mezzo di ciascuna spalla,
e sé giugnieno al loco de la cresta: 42

e la destra parea tra bianca e gialla;


la sinistra a vedere era tal, quali
vegnon di là onde l Nilo s avvalla. 45

Sotto ciascuna uscivan due grand ali,


quanto si convenia a tanto uccello:
vele di mar non vid io mai cotali. 48

Non avean penne, ma di vispistrello


era lor modo; e quelle svolazzava,
sì che tre venti si movean da ello: 51

quindi Cocito tutto s aggelava.


Con sei occhi piangëa, e per tre menti
gocciava l pianto e sanguinosa bava. 54

Da ogne bocca dirompea co denti


un peccatore, a guisa di maciulla,
sì che tre ne facea così dolenti. 57

A quel dinanzi il mordere era nulla


verso l graffiar, che talvolta la schiena
rimanea de la pelle tutta brulla. 60

“ uell anima là sù c ha maggior pena”,


disse l maestro, “è Giuda Scarïotto,
che l capo ha dentro e fuor le gambe mena. 63

De li altri due c hanno il capo di sotto,


quel che pende dal nero ceffo è Bruto:
vedi come si storce, e non fa motto!; 66

e l altro è Cassio, che par sì membruto.


Ma la notte risurge, e oramai
è da partir, ché tutto avem veduto”. 69

Com a lui piacque, il collo li avvinghiai;


ed el prese di tempo e loco poste,
e quando l ali fuoro aperte assai, 72

appigliò sé a le vellute coste;


di vello in vello giù discese poscia
tra l folto pelo e le gelate croste. 75

uando noi fummo là dove la coscia


si volge, a punto in sul grosso de l anche,
lo duca, con fatica e con angoscia, 78

volse la testa ov elli avea le zanche,


e aggrappossi al pel com om che sale,
sì che n inferno i credea tornar anche. 81

“Attienti ben, ché per cotali scale”,


disse l maestro, ansando com uom lasso,
“conviensi dipartir da tanto male”. 84

Poi uscì fuor per lo fóro d un sasso


e puose me in su l orlo a sedere;
appresso porse a me l accorto passo. 87

Io levai li occhi e credetti vedere


Lucifero com io l avea lasciato,
e vidili le gambe in sù tenere; 90

e s io divenni allora travagliato,


la gente grossa il pensi, che non vede
qual è quel punto ch io avea passato. 93

“Lèvati sù”, disse l maestro, “in piede:


la via è lunga e l cammino è malvagio,
e già il sole a mezza terza riede”. 96

Non era camminata di palagio


là ‘v eravam, ma natural burella
ch avea mal suolo e di lume disagio. 99

“Prima ch io de l abisso mi divella,


maestro mio”, diss io quando fui dritto,
“a trarmi d erro un poco mi favella: 102

ov è la ghiaccia? e questi com è tto


sì sottosopra? e come, in sì poc ora,
da sera a mane ha fatto il sol tragitto?”. 105
Ed elli a me: “Tu imagini ancora
d esser di là dal centro, ov io mi presi
al pel del vermo reo che l mondo fóra. 108

Di là fosti cotanto quant io scesi;


quand io mi volsi, tu passasti l punto
al qual si traggon d ogne parte i pesi. 111

E se or sotto l emisperio giunto


ch è contraposto a quel che la gran secca
coverchia, e sotto l cui colmo consunto 114

fu l uom che nacque e visse sanza pecca;


tu haï i piedi in su picciola spera
che l altra faccia fa de la Giudecca. 117

ui è da man, quando di là è sera;


e questi, che ne fé scala col pelo,
tto è ancora sì come prim era. 120

Da questa parte cadde giù dal cielo;


e la terra, che pria di qua si sporse,
per paura di lui fé del mar velo, 123

e venne a l emisperio nostro; e forse


per fuggir lui lasciò qui loco vòto
quella ch appar di qua, e sù ricorse”. 126

Luogo è là giù da Belzebù remoto


tanto quanto la tomba si distende,
che non per vista, ma per suono è noto 129

d un ruscelletto che quivi discende


per la buca d un sasso, ch elli ha roso,
col corso ch elli avvolge, e poco pende. 132

Lo duca e io per quel cammino ascoso


intrammo a ritornar nel chiaro mondo;
e sanza cura aver d alcun riposo, 135

salimmo sù, el primo e io secondo,


tanto ch i vidi de le cose belle
che porta l ciel, per un pertugio tondo. 138

E quindi uscimmo a riveder le stelle.


Posfácios
O verso dantesco*
Dante Milano (1965)

Estudioso de Poesia, ainda jovem resolvi ler Dante no original, enfrentando o


idioma italiano que eu já conhecia por instinto e raça. Primeiro a Vita nuo a, o
Dante suave; depois o Dante áspero da Commedia. As alegorias, os símbolos, os
cenários, a multidão de aparições me impressionavam menos que a própria gura
do Poeta, personagem central do poema. Até hoje não mudei; cada vez mais me
interessam o vulto severo do Alighieri e a força extraordinária do seu Verso. Sobre
isto falarei, sobre o espírito e a técnica da sua poesia em relação à poética em geral,
no seu e no nosso tempo. A minha experiência de Dante se baseia principalmente
nesta parte: o seu Verbo e o seu Verso.
Toda a arquitetura da Commedia ruiria se não estivesse sustentada pela
estrutura metálica dos decassílabos dantescos. Certo, se o tema dessa obra não
fosse tão amplo, preparando o surto poético, o voo da imaginação — os versos
sairiam diminuídos, as palavras, menos inspiradas. Esta a vantagem do “longo
poema”, onde o poeta cabe inteiro, obra de toda uma vida — sobre “a vida em
pedaços partida” dos curtos poemas, pedaços do poeta ou “o poeta em pedaços”.
Ou será que para a experiência moderna cada dia é uma vida e cada poema uma
obra completa?
O grande Dante, para mim, não é o lósofo, o teólogo — tudo o que ele podia
ser, sem ser por isso um grande poeta. Para mim ele é o poeta dos versos
inesquecíveis. Só isto — para ser um poeta —, escrever versos inesquecíveis. E
tudo mais não basta para fazer um grande poeta.
A Commedia, como um todo, é a representação de uma cosmogonia extinta.
Desmoronou a antiga concepção do Mundo, a ideia que se fazia do Céu. Mas o
céu não desmoronou, nem a ideia de Deus. Hoje ninguém mais teme o inferno e o
purgatório; o paraíso não tem atrativos para o homem moderno; temos horror à
beatitude. Mas o Universo está aí, com sua signi cação oculta e seu eterno
mistério, desa ando as palavras…
Dante não era um santo, era um poeta. Não é preciso ser católico e crer no que
ele cria para acreditar na sua poesia. Sua fé não estava na sua carne, como a dos
santos macerados, mas no seu intelecto. Fé intelectual, inimiga das baixezas do
mundo. É tendência da crítica encomiástica apresentar-nos um Dante sublimado,
mas menos autêntico, transformando a admiração em culto e o Poeta em vítima
de uma banal admiração universal, cercado das palmas da glória acadêmica, de
honras o ciais, no rosto a máscara do grande homem a quem a pátria rende
homenagens — ele, que era capaz de pôr toda a Itália no inferno.
Assim se esconde aquela “originalidade” de caráter, talvez composta de
“grandes defeitos” muito superiores às qualidades usuais com que os chamados
grandes homens se impõem à admiração pública. Dante mostrava-se como era,
não escondia suas fraquezas, seus pavores, seus desmaios, nem seus ódios, seus
desdéns, seu orgulho, sua vanglória. Ele mesmo se coloca entre os seis maiores
poetas do mundo, logo no início da Commedia. Um decreto superior o autoriza a
atravessar incólume as chamas do Inferno:

Non impedir lo suo fatale andare:


vuolsi così colà do e si puote
ciò che si vuole, e più non dimandare;
(Inferno, v, 22-24)

e a galgar os cimos do paraíso, onde é recebido como hóspede de honra, único ser
humano a ter esse privilégio ainda em vida. Seu juízo arbitrário lhe permite
colocar no quinto Céu um seu antepassado, Cacciaguida, que o recebe exultante,
em versos latinos:

O sanguis meus, o superinfusa


gratia Dei, sicut tibi, cui
bis unquam coeli ianua reclusa?
(Paraíso, xv, 28-30)

Obtém o perdão antecipado dos seus pecados, redimidos pela agridoce


reprimenda ao seu comportamento anterior, através dos lábios da sublime Beatriz.
Esta, por ter a glória de ser a amada do poeta, vive no paraíso, beati cada. Ele é o
protegido dos Santos, que lhe explicam os mistérios divinos. Escolhido por si
mesmo para, em seus versos luminosos, ter a revelação do Espírito e “ver” a glória
de Deus.
Escolhe Virgílio para lhe servir de “guia” até o ponto onde deixa o mestre para
trás, recebendo dele o elogio máximo:

libero, dritto e sano è tuo arbitrio,


e fallo fora non fare a suo senno;
per ch’ io te so ra te corono e mitrio.
(Purgatório, xxvii, 140-142)

Por sua vontade única, sem consultar os desígnios divinos, coloca no Inferno os
seus inimigos, exercendo uma injustiça que não perdoa pecados. Até reis, até
papas põe no Inferno. Conheço elevado conceito em que os poetas se têm, mas
nenhum jamais fez tão alta ideia de si.
Este o grande Dante, o poeta trágico e rígido, que não endeusa heróis e
potentados, nem bajula a sua pátria e o seu povo. ue ensina a ver a Poesia, não
como passatempo delicioso, mas como algo de grande e terrível.
Poeta de sobrecenho carregado, com seu desprezo pelo mundo que o cerca,
seus ódios, seus anátemas, seus vitupérios, apenas amenizados pela sua
comiseração diante de um prisioneiro numa torre, condenado a morrer de fome,
junto com seus lhos; ou pelo interesse apaixonado com que contempla um
jovem par de amantes adúlteros num abraço infernal de que nunca mais se
poderão separar, visão que faz o Poeta ter uma vertigem.
Não contente com os suplícios a que os submete no Inferno, Dante agride os
danados com escárnios e insultos. Um deles lhe implora:

Vedi che son un che piango


(Inferno, viii, 36)

Dante lhe responde:

[…] Con piangere e con lutto,


spirito maladetto, ti rimani;
(Inferno, viii, 37-38)

O maldito, afundando num mar de lodo, tenta agarrar-se à barca onde estão
Dante e Virgílio. Este vem em ajuda de Dante e expulsa o danado:

Via costà con li altri cani!


(Inferno, viii, 42)

E abraçando Dante e beijando-o no rosto, felicita-o pela sua fereza:

[…] Alma sdegnosa,


benedetta colei che in te s’ incinse!
(Inferno, viii, 45)

Animado pelo elogio, Dante recrudesce:


[…] molto sarei vago
di vederlo attuffare in questa broda.
(Inferno, viii, 52-53)

Virgílio aquiesce:

Di tal disio con errà che tu goda.


(Inferno, viii, 57)

Açula os outros danados que avançam contra o mísero:

[…] “A Fillippo Argenti!”;


e ’l orentino spirito bizzarro
in se medesmo si ol ea co’ denti.
(Inferno, viii, 61-63)

Vê-se que foi o Poeta, por iniciativa própria e com ódio terrível, quem pôs
Argenti no Inferno — lugar cheio, aliás, de orentinos.
Seria engano pensar-se que estou apontando “defeitos” no Poeta. Ao contrário.
Este é o Dante que admiro.
Caráter severo, quase inimigo da piedade cristã, não se pode imaginar Dante
entre beatitudes. Seu vulto, em meio à luminosidade paradisíaca, lembra um
evadido do Inferno. Em pleno Paraíso (canto xvi), o Poeta mantém o seu tom
desdenhoso e sarcástico:

L’ oltracotata schiatta che s’ indraca


dietro a chi fugge, e a chi mostra il dente
ovver la borsa, com’ agnel, si placa,
(Paraíso, xvi, 115-117)

No canto xxii, que também não tem nada de paradisíaco, o Poeta se deleita
com a vingança que lhe é prometida:

[…] la vendetta
che tu vedrai innanzi che tu muoi.
La spada di quassù non taglia in etta
né tardo, ma’ che al parer di colui
che disiando o temendo l’ aspetta.
(Paraíso, xxii, 14-18)

Dante põe re exos do Inferno no Paraíso. Nenhuma doçura na sua visão do


Céu. Só, às vezes, uma imensurável beatitude intelectual:

[…] Ciel ch’ è pura luce:


Luce intellettual […]
(Paraíso, xxx, 39-40)

O luce etterna che sola in Te sidi,


sola T’ intendi, e da te intelletta
e intendente, Te, ami ed arridi!
(Paraíso, xxxiii, 124-126)

No céu dantesco não há “Paz”. Há uma “Luz” cegante, em círculos, girando


resplendores que são em brancura o mesmo que em negror, no Inferno, os
turbilhões incessantes.
A poesia de Dante é a poesia presente. Os séculos futuros iriam cultivar a
poesia distante. Os neoclássicos, revivendo um tempo que não era o deles; os
árcades, copiando o bucolismo virgiliano fora de época; os românticos, em
idealidades, o presente diluído numa visão sentimental do mundo. Dante, quando
rememora o passado, olha-o de perto. As personagens que encontra no outro-
mundo não são meros fantasmas; são ainda existentes, atuantes. Dante não
recorda — evoca. No Inferno, Paolo e Francesca se amam ainda, unidos no mais
estonteante de todos os beijos de amor:

La bocca mi baciò tutto tremante.


(Inferno, v, 136)

O verso dantesco penetra como faca e deixa cicatriz, para ser sempre lembrado.
O canto v do Inferno não seria tão célebre se nele não houvesse aquele verso. Uma
vez lido, torna-se inesquecível. Tudo que se lê e esquece é sem valor. Versos
duradouros, palavras indeléveis — eis o verso dantesco. Dante não escrevia versos
para serem apenas admirados, mas meditados. Seu verso atinge um sentido
superior, maior que a beleza aparente:

E la sua olontade è nostra pace.


(Paraíso, iii, 85)

Dante não foi um esteta. Ante seu olhar austero a beleza corporal se
espiritualiza e é outra espécie de beleza maior. Dante não cultua a forma objetiva
da matéria e, sim, a beleza transcendente, imaterial. Poeta da Idade Média, sofreu
com sua época a in uência do Amor, então um sentimento “novo”, que modi cou
a concepção do Mundo e o espírito da Poesia. O amante substituiu o Herói das
epopeias antigas. Dante é poeta do amor. Com seus companheiros do Stil Nuovo,
ele se afasta da in uência das literaturas clássicas. Novos tipos de poemas, não
heroicos, não didáticos. Nada de epopeias, hinos, odes, elegias. Nada de deuses,
semideuses, heróis, combates. Nasce uma nova forma, um novo espírito, numa
língua nova.
Era recente a invenção do soneto. A Vita nuo a é quase composta de sonetos.
Com o milagre de graça do “Tanto gentile” se impõe a in uência do soneto na
literatura poética futura. O soneto veio provar que não são precisos mais de
quatorze versos para se compor um grande poema. O advento do soneto expulsou
as epopeias e os vastos poemas didáticos. Abolindo-o, como zeram os
românticos, a poesia volta a um fácil uxo verbal. A forma exigente, o rigor de sua
composição põem um freio ao verbalismo que se expande em poemas
quilométricos.
Miraculosamente, a Commedia escapa desse desperdício por ser um livro de
poemas, cada Canto podendo ser lido como poema independente. A Commedia
pode ser lida aberta ao acaso, como a Bíblia, sem perder a unidade. Mas seus
Cantos se entrelaçam, indissolúveis, o que torna a Commedia una e completa, não
podendo dizer que a leu quem leu apenas alguns cantos.
Na Vita nuo a, Dante é um homem do seu tempo, participando do movimento
literário da época. Era um “moderno”, um poeta do “novo estilo”. Na Commedia já
havia meditado, sofrido, vivido. Já ultrapassara o modernismo da época, não era
mais um “poeta do seu tempo”. O tempo adquirira para ele outra dimensão —
tempo de eternidade. A Commedia é uma visão além do tempo e do mundo. Para
tal visão, já não bastam ao Poeta sonetos e canções. Necessita a la rígida e
disciplinada dos tercetos não limitados a quatorze ou mais versos. É uma espécie
de espiral, os degraus de uma escada por onde o Poeta prossegue em sua fatigante
ascensão. Por vezes, lendo Dante, me parece que uma serpente imensa o enrosca
— os seus tercetos em anéis —, e a sua frase sai contorcida e mordente, em meio
aos esgares de um Laocoonte. Talvez seja este um modo de dizer enfaticamente
uma verdade difícil de explicar: o prodigioso estilo dantesco.
Dante foi dos primeiros a compreender que a Poesia é uma arte que não precisa
da Natureza — embora a maior parte da poesia escrita no mundo seja descritiva e
imitativa. Em vez de “descrever” a natureza, ele capta o sentimento que o mundo
inspira:

Era già l’ora che olge il disio


ai navicanti e intenerisce il core
lo dì c’han detto ai dolci amici addio;
(Purgatório, viii, 1-3)

Em vez de descrever o cair da tarde de modo objetivo, pictural, ele nos


comunica o “mistério” da tarde. Esta é a grande poesia. A hora do entardecer não
nos causa uma impressão descritiva, mas subjetiva; não vemos nas cores morrentes
do céu uma vaga paisagem, antes sentimos uma tristeza funda, a nostalgia de
existir. Assim se diferencia a poesia autêntica da maior parte da poesia que se
escreve no mundo, descritiva, objetiva, realista, e que ca na superfície das coisas
sem as penetrar.
Dante contradiz todos os preceitos das escolas poéticas de qualquer época, e os
supera. Faz uma poesia lógica e atinge o sobrenatural e as maiores rarezas de
expressão. Seu estilo direto tem uma penetração que jamais seria alcançada por
inversões rebuscadas. Seu verso nasce de um ímpeto, soprado pelo vento do
espírito. Sua força poética não ca nas palavras, vai muito além. Sua frase cria
espirais vertiginosas:

Poi, come inebriate dagli odori,


riprofondavan sè nel miro gurge.
(Paraíso, xxx, 67-68)

Não é à toa que, ao contrário da prosa, cada verso é separado do outro e com
vida própria. Ao passo que a prosa caminha num chão plano, a poesia se equilibra
num o suspenso. Numa, a expressão horizontal; noutra, a tensão vertical. Em
poesia sentimos sempre o vértice e o vórtice. Nem parece que o verso é feito com
as mesmas palavras da prosa. A diferença está toda no modo de usá-las. Em
“sentido gurado”. Isto diz tudo. O sentido da poesia.
É difícil tocar a realidade com palavras e não com os olhos ou as mãos. As
realidades que os olhos não veem e as mãos não tocam são as que Dante quis
mostrar ao mundo. Para as tornar visíveis, usou de “comparações” as mais
arriscadas. Não as comparações que apenas comparam, mas as que revelam o que
sem elas seria ininteligível.
A “comparação” é o recurso habitual da técnica dantesca. Dante é o poeta que
mais usa a “comparação” e dos que menos recorrem à metáfora. A “comparação” é
imprescindível à revelação de certas sutilezas poéticas que rejeitam ornatos. A
metáfora reveste, a comparação desnuda; a metáfora é purpúrea, a comparação é
cristalina. A metáfora é ornamental, oposta ao caráter lógico e metafísico de
Dante. Segundo Aristóteles: “Pode de nir-se a metáfora como sendo uma
comparação abreviada onde falta o termo ‘como’”. Mas Hegel ensina: “A metáfora
não chega a ser uma representação independente, mas somente acessória. Ela não
serve ao pensamento, mas à fantasia. Na metáfora o poeta deixa de estar possuído
pelo tema e se entrega à fantasia e ao capricho”.
Já a comparação é um revoo dentro do espaço do tema. Dante nunca se afasta
do seu tema. Mantém domínio sobre imaginação e não se perde no difuso.
Comparar é comparar-se, medir distâncias é medir as próprias forças. uando a
comparação é verdadeiramente poética, torna-se luminosa e transparente:

[…] com’ acqua recepe


raggio di luce permanendo unita.
(Paraíso, ii, 35-36)

Come di neve in alpe sanza vento.


(Inferno, xiv, 30)

[…] e cantando vanío


come per acqua cupa cosa grave.
(Paraíso, iii, 122-123)

Debili sì, che perla in bianca onte


(Paraíso, iii, 14)

Come letizia per pupilla viva.


(Paraíso, ii, 144)

[…] prima corrusca


quale a raggio di sole specchio d’oro
(Paraíso, xvii, 122-123)

nè si partì la gemma dal suo nastro,


ma per la lista radial trascorse
che parve foco dietro ad alabastro.
(Paraíso, xv, 22-24)

uale allodetta che in aere si spazia


prima cantando, e poi tace, contenta
de l’ultima dolcezza che la sazia.
(Paraíso, xx, 73-75)

chè olontà, se non vuol, non s’ammorza,


ma fa come natura face in foco
se mille olte violenza il torza.
(Paraíso, iv, 76-78)

Esta última comparação possui um ímpeto viril, um desenho verbal que jamais
se expressaria por uma metáfora. É todo um modo diferente de pensar e falar, uma
atitude mestra do intelecto, toda uma matemática do espírito.
O “como” é palavra de alta tradição poética e não pode ser “riscada do
dicionário”, como por motivos meramente estéticos queria Mallarmé. Sem dúvida,
o que ele condenava era o abuso de comparações fáceis, como hoje condenaria o
das metáforas fúteis. Entretanto, em sua exígua, destilada, condensada obra
poética, se encontra a palavra comme mais de cem vezes e até em versos sucessivos:

Comme des feuilles sous ta glace au trou profond


Je m’apparus en toi comme une ombre lointaine.

Comme un cygne cachant en sa plume, ses yeux.


Comme les mit le vieux cygne en sa plume, allée…

Yeux bleus
Et oids, comme une source en pleurs…

Comme brise du jour chaude dans ta toison.

É só catar exemplos. Baudelaire entremeia seus versos de mil comparações que


não têm por m “comparar”, mas alargar o campo das sensações tácteis, olfativas,
auditivas e visuais, em múltiplas, in nitas correspondências:

Comme de longs échos qui de loin se confondent…

Vaste comme la nuit et comme la clarté…

Tu répands des parfums comme un soir orageux…


expressões poéticas que não poderiam exprimir-se em metáforas. Se Baudelaire,
em vez de dizer com ar grave e concentrado:

Je suis comme le roi d’un pays pluvieux

dissesse: “Je suis le roi…”, teria assumido uma atitude enfática, traindo seu
pensamento e sua emoção. uando Shakespeare diz (Henry VI):

Glory is like a circle in the water


Which never ceaseth to enlarge itself
Till by broad spreading it disperse to nought

ele quis dizer que a glória é como um círculo n’água alargando-se até dissolver-se
— pensamento exato, nítido, transparente. Não quis dizer gurativamente: “A
glória é um círculo n’água…”. A palavra like aproxima e liga os termos da
comparação; a ausência do like força a dicção a uma pausa, dando ênfase à
entonação. O estilo metafórico é sempre enfático.
No uso das guras poéticas, há diferenças até raciais como, por exemplo, entre
Shakespeare e Gôngora, entre o caráter inglês e o espanhol, entre quem busca no
estilo a concisão e nitidez na expressão das ideias, e quem pelas palavras
metamorfoseia as ideias em ornatos metafóricos, o que Hegel já denunciava no
temperamento espanhol. A mutação das ideias em oreio mental pode parecer
mais poética, se confundirmos poesia com poeticismo.
Camões quase não usa a comparação, nem a metáfora. Grande poeta do
sentimento, não precisa da imaginação para compor seus versos imortais. Ele não
está “imaginando”, está “sentindo” o amor, quando diz:

Amor é fogo que arde sem se ver,


é ferida que dói e não se sente,
é um contentamento descontente…
Não diz comparativamente: “Amor é como um fogo”. Não é comparação, nem
metáfora tampouco, porque não é visual. É uma sensação funda, um sentimento
inexplicável ou que só se explica, como ele o fez, ao inverso de qualquer
explicação. Camões é um milagre de expressão e não de imaginação ou
pensamento. É difícil ser gênio com tanta humildade, como ele foi. Não tratava a
poesia como uma arte, mas lhe captava a essência, e seu verso nascia já feito e
perfeito, de uma simplicidade sobrenatural. Já em Dante, múltiplo e complexo, o
problema era diferente. A própria natureza dos dois idiomas, italiano e português,
cria a diferença que persiste na poética das duas nações.
O Verbo tem uma força própria, maior que a das ideias. Isto faz com que a
Poesia, o Verbo por excelência, seja “intraduzível” de uma linguagem para outra.
Dante traduzido não é Dante. Camões traduzido não é Camões. E ouso
perguntar: quem escreveu a Commedia? uem é o maior, o Poeta ou o Idioma?
Dante seria Dante se escrevesse em outra língua? Mas também pergunto: por que
nenhum outro poeta italiano foi tão longe? uem é o maior, a língua italiana ou
o verbo dantesco? Em nenhum poeta, em nenhuma língua é maior o tremor das
palavras. Já uma vez chamei Dante “o poeta do r”. De todas as letras, o “r” é a que
mais nos faz estremecer. Em nenhum idioma o “r” soa com tantas vibrações como
no italiano. E é desta letra que Dante tira os mais fortes efeitos verbais. Ela é que
exprime toda sua cólera. E nenhum outro idioma possui essa força verbal, essa
raiva na boca, nos olhos, nas mãos e nas palavras, esse poder de expressão que
parece estraçalhar o vocabulário.
uando certo autor futurista investiu contra a glória maior de Dante, dizendo
não ser motivo de tão grande culto o ter ele escrito alguns “belos versos”, entre os
quais cita:

uale nei plenilunii sereni…


(Paraíso, xxiii, 25)

Dolce color d’oriental zaffiro…


(Purgatório, i, 13)

estava citando versos realmente “belos”, mas pouco dantescos; versos que outro
poeta poderia ter escrito e não versos que só Dante era capaz de escrever. Dante
ensina o “grande verso” e, não, o “belo verso” dos poetas estetas, cultores de uma
“beleza” que repugna ao espírito ávido de alimento mais substancial. “Bellezza è
bruttezza”, já dizia Leopardi.
Na Commedia há uma poesia que não é só de Dante. É do mundo, da
humanidade. Isto diferencia os Antigos dos Modernos. Estes tiram tudo de si.
Aqueles captavam tudo — de tudo e de todos —, do que havia e do que tinha
havido, do passado recente e remoto, de toda a experiência e sabedoria
acumuladas pelos séculos. E retransmitiam tudo que aprendiam: história, ciência,
religião, fatos, gestos, ditos memoráveis. Todo poeta antigo ensinava o que sabia,
vulgarizava a sua erudição, imitava o que havia de melhor nos seus antecessores, o
que era digno de perpetuidade e de ser transmitido de um idioma a outro, de
geração a geração, para que nada se perdesse e tudo se salvasse, do que há de
grande no mundo. Por exemplo: foi pelo estilo de Dante e não pelo trecho de
Ovídio por ele imitado que para sempre me cou na memória a estranha e
formidável cena:

Ecuba trista, misera e cattiva,


poscia che vide Polissena morta
e del suo Polidoro in su la riva
del mar si fu la dolorosa accorta,
forsennata latrò sì come cane,
tanto il dolor le fe’ la mente torta.
(Inferno, xxx, 16-21)

Este é um dos momentos em que a gura do Poeta me aparece envolta em seus


tercetos.
Dante escreveu para sábios e ignorantes, em versos universais, que andam na
boca de todos, como se tivessem sido escritos hoje:

Nel mezzo del cammin di nostra vita…


(Inferno, i, 1)

Ouvindo este verso, todos se sentem viajores que estão na terra de passagem. É
um verso que não cabe nas próprias letras e voa pelo mundo.
uando se recita:

Lasciate ogni speranza, oi ch’ intrate,


(Inferno, iii, 9)

todos sentem que os espera um lugar escuro.


E quando se cita o célebre verso dedicado a Virgílio, é aludindo ao próprio
Dante:

Onorate l’ altissimo poeta.


(Inferno, iv, 80)

Há um sabor sempre novo em repetir versos que atravessaram sete séculos.

* In: Obra reunida. Org. Sérgio M. Gasteira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2004, pp. 457
-71. Texto publicado originalmente com o título “O meu Dante” em O meu Dante. Org. Edoardo Bizzarri.
São Paulo: Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1965. Diferentemente da publicação original, optou-se por
identi car os cantos e versos da Comédia citados no texto. (n. o.)
Exposição sobre Dante*
Eugenio Montale (1965)

Numa celebração como essa,1 à qual insignes guras trouxeram o peso ou a graça
de sua autoridade, o último chamado a falar sempre é recebido e saudado pelo
apresentador do evento com a ritual e consoladora fórmula last but not least. Isso
pode ser plenamente verdadeiro, mas em outros casos. Com efeito, não considero
que hoje, para mim, seja preciso dourar a pílula, pois aqui, perante vocês, sinto-me
realmente last and least, o último sem qualquer atenuante.
E, no entanto, aqui estou; aceitei falar nessa ocasião, mesmo faltando-me
tempo e talvez também a possibilidade de procurar em mim algo que,
relacionando-se com alguma singular experiência dantesca minha, se mostrasse
mais do que pessoal e, assim, digno de ser noti cado e discutido. Pareceu-me,
superada a perplexidade inicial, que, se Dante é patrimônio universal (e assim se
tornou, embora tivesse mais de uma vez avisado que falava a poucos dignos de
ouvi-lo) para além de certo grau de aprofundamento necessário, sua voz hoje pode
chegar a todos como talvez nunca tenha ocorrido em outros tempos e como talvez
não será mais possível no futuro, de modo que sua mensagem pode alcançar o
profano tanto quanto o iniciado e, provavelmente, de uma maneira totalmente
nova. O conhecimento de Dante, depois de coroado em vida pela glória, foi se
apagando aos poucos até o século xvii (seu século de sombra) para ressurgir
depois com o advento do Romantismo e o contemporâneo orescimento de uma
loso a inteiramente terrena, que vê no homem o senhor e até mesmo o criador
de si mesmo.
Embora observe uma convergência entre os dois movimentos, não me escapam
suas diferenças. O primeiro busca inspiração no mundo antigo não porque tenha
renovado e acentuado seus mitos, mas porque está insatisfeito com seu tempo,
racionalista e iluminista, e por isso se entrega a uma arte poética. O outro, que
vem ao lado do primeiro, não só aceita seu tempo, mas considera-o representante
da mais alta fase do pleno desenvolvimento da razão. Os Deuses estão mortos,
mesmo que, morrendo, tenham precisado se abeberar de sangue humano, e o
divino tenha descido à terra. Os dois movimentos, diferentes e até opostos entre
si, exigem o predicado de modernos e, por razões distintas, olham para Dante.
Para o primeiro, Dante é um antepassado remoto do Romantismo e como tal
merece ser redescoberto; para o segundo, é um admirável produto da imaginação
poética, mas essa imaginação não é a sabedoria dantesca, é apenas um degrau, e
não o último, som de l’escalina,2 de um Espírito que ainda não tomou consciência
de si.
A poesia, disseram-nos, não é a razão, e apenas a razão pode compreendê-la e
lhe fazer justiça. Assim como o mais forte faz justiça ao mais fraco. Seria injusto
reduzir a compreensão sete-oitocentista de Dante a essa dicotomia. De fato, no
século xix nascem e se desenvolvem, não sem alguns antecedentes em pleno
século xviii, as pesquisas daqueles que querem erguer o véu que encobre a grande
criação dantesca e penetrar a fundo nos mistérios de sua alegoria. Nasce ou
renasce o Dante esotérico, o Dante que, mesmo como personagem histórica
(relembro as hipóteses mais absurdas), teria tido duas faces, uma das quais
permaneceu praticamente desconhecida: o Dante que pertenceu à Ordem dos
Templários ou se tornou franciscano, depois saindo da ordem antes de tomar os
votos de nitivos, e, acima de tudo, o Dante que teria usado uma linguagem
sectária hoje decifrável, e apenas em mínima parte, somente por quem se tiver
consumido em longos estudos de aprofundamento. Pode-se criticar o quanto se
queira esse aspecto particular da dantologia moderna (aliás, contestado e rejeitado
por uma dantologia lológica e histórica mais moderna), mas deve-se reconhecer
que, para além de seus aspectos patológicos, ela possui ao menos o mérito de ter
a rmado uma grande verdade: que Dante não é um poeta moderno (fato sabido
também pelos críticos e lósofos modernos), e que os instrumentos da cultura
moderna não são os mais adequados para compreendê-lo (fato porém negado
pelos lósofos modernos que se creem especialmente autorizados a erguer o véu,
mas para que lado? Para o lado da razão moderna desenvolvida).
Minha convicção, porém — e apresento-a sem maiores garantias —, é de que
Dante não é moderno em nenhuma dessas duas maneiras, e isso não nos impede
de compreendê-lo, pelo menos em parte, e de senti-lo estranhamente próximo de
nós. Mas, para que isso ocorra, é preciso também chegar a uma outra conclusão:
que não vivemos mais numa era moderna, e sim numa nova Idade Média cujas
características ainda não conseguimos entrever. Apresentada preliminarmente
como convicção pessoal minha, ela não encontrará aqui suas motivações e tem
apenas caráter hipotético. A época que se abre diante de nós não permite
previsões a curto prazo, e falar em nova Idade Média tem um signi cado de forma
alguma inequívoco. Se o futuro assinalar o pleno triunfo da razão técnico-
cientí ca, e mesmo com aqueles frágeis corretivos que a sociologia possa
excogitar, a nova Idade Média não será mais que uma nova barbárie. Mas, nesse
caso, seria impróprio falar em Idade Média, pois a Idade do Meio não foi apenas
bárbara, nem desprovida de ciência e vazia de arte. Falar, portanto, de nova Idade
Média haveria de parecer uma hipótese nada pessimista a quem não acredita nos
disparates da razão se desenvolvendo ad in nitum; ao passo que existe a
possibilidade de uma barbárie totalmente nova, de um mascaramento e subversão
da própria noção de civilização e de cultura.
Mas percebo que devo voltar a meu argumento e me perguntar quem era
Dante e o que ele pode representar (é meu tema) para um escritor de hoje: não
digo para um poeta de hoje porque, comparado a Dante, não existem poetas.
uem era Dante é o que os historiadores literários têm se indagado, conseguindo
traçar, mesmo que com muitas lacunas, as linhas de sua existência terrena. Mais
afortunado do que ele, Shakespeare fez com que se perdessem suas pegadas. É
conhecida a opinião de Sidney Lee — depois de demonstrar que muitos temas e
momentos dos sonetos shakespearianos pertencem aos tópoi, aos lugares-comuns
da sonetística renascentista, ele chegou à conclusão de que Shakespeare nos
sonetos “descerra” não seu “coração”, como acreditava Wordsworth, mas um tipo
de matéria muito diferente. A única ilação biográ ca que se poderia deduzir deles
seria, portanto, “que, a certa altura de sua carreira, Shakespeare não desdenhava
nenhuma arma de lisonja na tentativa de monopolizar o generoso patronato de
um jovem de alta posição”: o famoso “only begetter” cuja identidade pessoal está
em questão.
Justa ou injusta que seja tal conclusão, ela nem sequer chega a roçar o grande
poeta das tragédias. Não que não pesem indagações insondáveis sobre sua vida e
parte de suas obras, mas a crítica moderna conseguiu prescindir disso. Existe
apenas sua poesia. Tais são as conclusões do novo close reading que lê a poesia de
modo totalmente a-histórico. Muito diferente é o caso de Dante; nele, vida e
obras estão tão interligadas que nunca poderemos nos desinteressar da biogra a
do poeta. E os pontos obscuros na vida e nas obras de Dante são muitos.
Estabelecemos a datação apenas de uma parte de suas rimas extravagantes; estão
em contestação não só rimas, mas também epístolas e, até data recente, um
tratado. Existe, por outro lado, a possibilidade de se demonstrar que o Fiore, até
agora atribuído a um certo sr. Durante, seja obra sua. Não sabemos em que ano
teve início o primeiro canto da Comédia; tampouco sabemos quando o poeta
realmente se entregou (à parte o início incerto) à redação completa do Inferno e
do Purgatório. Sabemos apenas que talvez por vinte anos (quinze, para outros) ele
se dedicou, mesmo atendendo a outras obras, à composição do poema sacro. Há
também a dúvida se a Vita nuo a que conhecemos seja uma redação tardia, que se
tornara necessária para unir o livrinho3 ao poema, saltando o comprometedor
segundo tratado do Con ívio. E certamente as dúvidas não param por aí. Tudo
isso demonstra que uma leitura do poema, e naturalmente das rimas, que
prescinda por completo da vida de Dante, de sua cultura e formação, não pode
levar muito longe. Todavia, uma tentativa de lê-lo como se lê um poeta moderno,
escolhendo as partes mais vivas e eliminando o resto — o que se julga estranho à
poesia —, tem provocado estranhas queixas. Francesco De Sanctis parece
claramente deplorar que demasiadas superstições medievais tenham ofuscado o
poeta, impedindo-o de dar livre curso a seus personagens. É conhecida a
conclusão de sua análise do Inferno na Storia della letteratura italiana: “Essas
grandes guras, no alto de seu pedestal, rígidas e épicas como estátuas, esperam
que o artista as tome pela mão, lance-as no tumulto da vida e as faça seres
dramáticos. E o artista não foi um italiano: foi Shakespeare”.
Dante, portanto, mais poeta que artista. De Sanctis se empenhava muito em
distinguir a poesia da arte, mas nunca teve muita segurança dessa sua distinção.
Disso nasceram equívocos que perduram até nossos dias. A verdade é que, se
algum dia houve um artista na acepção mais elevada da palavra, foi certamente
Dante. Mas o que era a arte para o Dante de quem temos tão poucas notícias, o
primeiro Dante? Era uma arte de convenção, de escola, a ars dictandi, comum a
ele e aos que podemos considerar seus pares (os stilno isti não formaram uma
tertúlia e o pioneiro Guinizelli morreu quando Dante tinha dez anos de idade).
Nos limites da escola, o problema não era o da originalidade e sim o da delidade
ao Dittatore. ue o poeta escrevesse sob ditado era convenção aceita e herdada
dos líricos occitânicos. Mas os poetas do Dolce Stile Nuovo desenvolvem mais
rigorosamente o tema vindo dos provençais e o encerram num cânone mais
perfeito. Sua linguagem é a língua vulgar, mas uma língua vulgar depurada e,
portanto, doce. Guittone não pode mais ser modelo, é considerado tosco e
desordenado. Dante parte de Guinizelli, mas simpli ca e fortalece seu estilo;
parte também, e muito mais, do segundo Guido, e não há como entender
plenamente a Vita nuo a sem levar em conta motivos, contrastes e “surpresas” da
poesia de seu primeiro amigo.
Em todo caso, mesmo para Dante trata-se, conscientemente, de nova “maneira”.
Não há com que se surpreender. Sempre, em todos os tempos, os poetas falam aos
poetas, travando com eles uma correspondência real ou ideal. Os poetas da nova
escola se põem problemas, levantam questões, aguardam respostas para as rimas.
“O Dolce Stile é a escola que traz com maior consciência e boa vontade o senso de
colaboração para uma obra de poesia objetiva”, disse Gianfranco Contini, o qual,
depois de analisar o soneto “Guido i’ orrei”, em que vê o tema da fuga para um
mundo irreal, acrescenta: “Absoluta separação do real que se converte em
amizade, tal é o elemento patético de nidor do stile nuo o”. A mulher salví ca, o
tema mais evidente de toda a escola, perde-se no coro dos amigos, e o poeta como
indivíduo empírico se retira. Naturalmente, não se pode ler o corpus das rimas
extravagantes como um cancioneiro, tampouco como uma coleção de líricas,
entendendo-se o termo em sentido moderno. Ainda que haja no chamado
cancioneiro uma grande variedade de entonações e se encontre presente a marca
de uma inquietação técnica cada vez maior, permanece o fato de que não
podemos ler essa coletânea sem nela reconhecer o primeiro passo de um grande
empreendimento poético que tomará consciência de si na Vita nuo a e
prosseguirá pelas obras doutrinais até as três cantigas que a posteridade disse
divinas e que Dante de niu em dois momentos do Inferno como Comédia.
Beatriz faz sua primeira aparição nas rimas e a ela são dedicadas algumas das
canções e sonetos mais famosos de Dante; mas ao lado dela também pode surgir,
num grupo de rimas compostas entre 1291 e 1293, aquela Mulher Gentil que
reencontraremos na Vita nuo a e no Con ívio, e que tanto pano para manga deu
aos hagiógrafos de Dante. Tampouco faltam outras mulheres, outros nomes que
talvez sejam pseudônimos: a jovem que alguns identi cam com a Mulher de
Pedra e que, nesse grupo, parece ter sido a mais perigosa para o poeta, e também
Fioretta, Violetta, Lisetta, a esposa de Guido e outras mais, até chegar às duas
Mulheres-Biombo4 que encontraremos na Vita nuo a. E, visto que no corpus das
rimas extravagantes também se incluíram as inspiradas pela Mulher de Pedra, que
são quase certamente posteriores à Vita nuo a e afetadas pelo estudo do miglior
fabbro [o maior artí ce], Arnaut Daniel, eis que aparecem em posição pouco
convincente as composições que serão fundamentais para o estudo do
desenvolvimento estilístico de Dante e que não deixarão indiferente nem o
próprio Petrarca, como Ferdinando Neri demonstrou exaustivamente. As rimas
“pedrosas” tiveram a sorte de servir de fonte ao pré-rafaelismo oitocentista em sua
variante “negra” que chega a Gustave Moreau na França, e inclui, na variante
“branca”, ao lado de toda uma escola pictórica inglesa, também vários poemas,
entre os quais tem grande importância e Blessed Damozel de Dante Gabriel
Rossetti, um poeta sobre o qual T.S. Eliot desferiu suas echas. Talvez a Mulher
de Pedra tenha realmente existido, mas enquanto aventura estilística jamais
coincidirá com uma mulher real. Se, além disso, Dante desde cedo intuiu aquele
que seria o signi cado último de Beatriz (e a Vita nuo a deixa poucas dúvidas a
esse respeito), eu diria que tanto a Mulher de Pedra quanto a Mulher Gentil, se
não existiram, teriam de ser inventadas, pois não se pode imaginar um processo de
salvação sem a contraparte do erro e do pecado.
A existência histórica de uma Bice ou Beatriz, que Dante pode ter realmente
conhecido e amado, talvez sem que a interessada tivesse consciência disso, não é
mais legítimo objeto de dúvidas desde as pesquisas de Isidoro Del Lungo, que
despertaram grande entusiasmo em 1891. Mas que signi cado pode ter essa
descoberta? Aqui são duas as hipóteses: ou o signi cado que Dante lhe atribui
não tem qualquer relação com sua existência efetiva, ou pode-se acreditar, como
Luigi Pietrobono, que a mulher miraculosa não só viveu, mas foi um efetivo
milagre. Para quem acredita, como eu, que os milagres sempre podem estar à
espreita diante de nossa porta e que nossa própria existência é um milagre, não há
como combater a tese de Pietrobono com argumentos racionais.
Os últimos anos de Dante em Florença antes do exílio testemunham a
composição da Vita nuo a, que narra em prosa e em verso a história de seu amor
por Beatriz. Toda a sua breve vida e sua morte, bem como sua aparição ao poeta,
diz-nos o texto, são postas sob o signo do número nove e seu próprio nome
aparecerá nove vezes no livrinho. A sorte protegeu a misteriosa jovenzinha,
impedindo que muitos fatos de sua vida chegassem a nós: assim, ela pode
continuar como imagem da perfeição absoluta e como o meio necessário para a
escalada de Dante até Deus. Para o leitor atual, é com a Vita nuo a que se inicia o
fato de que agora o poeta assumiu os riscos e não poderá mais recuar. Seu destino,
a essa altura, está de nitivamente marcado. Não se pode falar da Vita nuo a sem
lembrar que ela ocuparia um lugar intermediário na coletânea das rimas, se fosse
possível dispô-las em ordem cronológica. Entre as extravagantes incluem-se, além
das rimas “pedrosas”, canções e rimas de diversos gêneros que foram compostas
depois do livrinho e certamente depois do período de obscurecimento interior e
extravio que Dante atravessou após a morte de Beatriz: um período de trinta
meses em que o poeta mergulha no estudo de Boécio e Cícero, e conclui seu
conhecimento dos clássicos (os “litterati poete”, isto é, os grandes poetas latinos) e
da loso a tomista.
O livrinho assim interrompe uma experiência extremamente aberta e errante, e
confere uma primeira forma, já em si completa, do futuro processo de
transumanização de Beatriz. Dá-se numa forma que hoje diríamos narrativa, se o
termo fosse adequado, em que composições versi cadas se alternam com outras
em prosa, segundo um esquema que não é de invenção dantesca, narrando do
início ao m a história de amor de Dante pela mulher salví ca. A narrativa ou,
melhor dizendo, a visão se detém também em detalhes que hoje pareceriam
realistas, mas que são acrescentados para dar corpo àquela rixa entre espíritos
humanos e vocação transcendente que aqui se mostra de nida como nunca se
mostrara antes no autor. Se o poeta, que agora surge como personagem-autor (e
isso aparece na escolha das rimas incluídas e, ainda mais, pelo comentário em
prosa), quis também, com os episódios das duas Mulheres-Biombo, ocultar e ao
mesmo tempo revelar dois nomes de mulheres bem conhecidas do grupo dos seus
amigos, isso nunca saberemos. O problema é saber até que ponto o diabrete da
misti cação se insinuou na trama de sua alta poesia. Uma incerteza análoga brota
da aparição da Mulher Gentil, que aqui será uma rival, se assim se pode dizer, de
Beatriz, e que reencontraremos depois no Con ívio, trans gurada em Filoso a,
com uma evidente obliteração do signi cado que Beatriz assumia no livrinho e
daquele que reassumirá no poema sacro. Deixo de lado outros episódios, em que o
livrinho sai de seu enquadramento de aventura místico-intelectual para se tornar
matéria de narrativa profana. Talvez tais episódios tenham sido inventados por
um grande técnico da poesia, para dar maior realce às últimas páginas, àquela cor
sanguínea que, depois, será a cor de toda a sua obra em nossa lembrança. E, sem
dúvida, não nos enganamos ao ver na Vita nuo a uma distante pre guração da
Comédia, ademais testemunhada pelo desejo do poeta de falar sobre ela — Beatriz
— em outro lugar. ue o livrinho tenha sido composto com muito rigor,
excluindo rimas que teriam caráter redundante e outras estranhas ao esquema
geral, apenas con rma o sentido da obra: uma elaboração já concluída, mas em
certo sentido preliminar. Talvez estejam certos os que não veem no livrinho uma
experiência mística. Nela, a experiência mundana é recriada a partir da
experiência cristã; mas não se estrutura por graus em forma de ascese, e sim numa
história, inteiramente situada na esfera mundana (D. De Robertis).
Mas, a essa altura, já estamos na época do exílio do poeta, que coincide com o
início dos dois tratados, a lauta mesa de alta retórica do Con ívio e o Sobre a
eloquência do vulgar, ambos inacabados; e tal paralelismo nos vedará a
possibilidade de segui-lo criando uma espécie de itinerário psicológico. Ferreti era
da opinião, con rmada por não poucos indícios internos e externos, de que os
primeiros sete cantos do Inferno foram compostos antes do exílio, escondidos
pelo poeta e remetidos a ele “mais de quatro anos depois”, segundo os eventos
narrados por Boccaccio. Se for correta a conjectura de Ernesto Giacomo Parodi,
que identi ca em Henrique de Luxemburgo o dxv (em cujo número os jesuítas
entreviram Lutero e a Reforma),5 parece plausível a rmar que a composição do
Inferno e do Purgatório se situa entre os anos 1307-12, ao passo que é quase certo
que o Paraíso tenha ocupado os últimos anos do Poeta. Alguns estudiosos situam
o início do poema em 1313. Não faltam outros (Michele Barbi) a propor datas
intermediárias. A questão da datação, porém, não é meramente acadêmica como a
de mulieribus [das mulheres] que acabei de mencionar. Ela envolve a
possibilidade, aceita ou negada, de que Dante tenha submetido sua obra a
reformulações e ulteriores reelaborações. O leitor atual continua incerto a esse
respeito. De um lado tem-se a impressão de que muitos episódios da Comédia
foram escritos de impulso, com poucas alterações, materializando assim aquela
grande prosa oculta nas malhas do ritmo e das rimas que, se tivesse sido
compreendida e levada à realização, teria nos poupado séculos de prosa curial,
togada. (Hipótese impossível, pois a involuntária prosa elevadíssima do poema
não afastou Dante do exercício da prosa latina e o tornou insigne também nesse
campo.) Por outro lado, se considerarmos o volume de aportes que a cultura
retórica, losó ca e teológica da Idade Média latina trouxe ao poema, tornando
quase impossível uma leitura ingênua, talvez virgem, da imensa teofania, camos
atônitos com o enciclopedismo dantesco e somos obrigados a pôr em dúvida a
impressão inicial de que Dante teria escrito a rédeas soltas. ue Dante conhecia e
praticava o labor limae [o trabalho da lima], como pareceu a Ugo Foscolo, é
inegável a quem conhece as rimas pedrosas, as canções doutrinais e os momentos
da Comédia em que retorna o jogo das rimas ásperas e difíceis. E, contudo, não há
dúvida de que a idealização de seu poema, sua própria estrutura já estava pre xada
desde o primeiro verso, e foi se modi cando e se enriquecendo, talvez ao custo de
evidentes contradições durante a elaboração e a hipotética revisão da obra. Diante
do douto, do poeta sábio que, após os estudos de Ernst Curtius e de Erich
Auerbach, não podemos mais ignorar, está o literato que descobre e explora as
possibilidades de sua nova linguagem, o homem que volta sobre si mesmo,
enriquece seu pensamento, o exilado que espera ser readmitido em sua terra e que
mais tarde, desiludido, intensi ca as expressões de seu rancor. É por isso que as
provas internas e as referências a dados históricos nem sempre são decisivas para
conciliar biogra a e poesia. Como teórico que quer demonstrar a si mesmo e a
seus protetores a sabedoria que atingiu no estudo da gramática e o que é possível
derivar disso para os ns de uma poesia escrita em língua vulgar, elaborou o
Con ívio, o tratado que deveria abranger quinze partes e cou inacabado após a
quarta. São comentadas três canções doutrinais, e alguns indícios nos levam a
conjecturar quais seriam as duas ou três canções que poderiam se somar a outras e
atingir o número quinze, previsto pelo poeta. A escolha da língua vulgar é, por
sua vez, ilustrada em Sobre a eloquência do vulgar, tratado que deveria ser uma
espécie de enciclopédia de ciência linguística. Sobre a eloquência do vulgar está
escrito em latim porque Dante considera que somente o latim, língua universal e
eterna, pode dar conta de um tema que envolve os desenvolvimentos da
linguagem humana até o idioma triforme, depois que a queda do homem (a torre
de Babel) confundiu e corrompeu para sempre a língua primitiva dos homens.
Mas o tema que me propus — a poesia de Dante para um escritor de nosso
tempo — me obriga a deixar para trás as obras doutrinais do poeta — as duas
mencionadas; a Monarquia, a se atribuir a uma data posterior, e a Questão sobre a
água e a terra, que foge a meu objetivo. Basta dizer que Dante sempre teve diante
da gramática, dos “litterati poete”, algo que hoje chamaríamos complexo de
inferioridade. Defendeu sua escolha até o m, mas utilizou o latim como que para
ressaltar o caráter excepcional de seu empreendimento; e se depois dele a língua
vulgar venceu a batalha nas matérias a que se destinava o falar humilde, ela não foi
utilizada por nenhum outro grande poeta dos primeiros séculos para abordar a
matéria do estilo sublime, a épica.
E agora estou diante da Comédia que, sob certos aspectos, poderia ser
considerada um poema épico, mas que, sob outros, dele difere substancialmente.
De fato, a Comédia tem um personagem-herói e canta seus feitos não sem a ajuda
e assistência das Musas e das Sagradas Escrituras, mas Dante emprega um estilo
que não é sempre o trágico, mas sim uma mescla excepcional de estilos e modos
certamente não conformes à dignidade e uniformidade do estilo épico. Na
epístola de dedicatória do Paraíso a Cangrande della Scala, o Poeta explica que seu
tratamento é poético, ctício, descritivo, digressivo, compendioso e, ao mesmo
tempo, de nitivo, divisório, comprobatório, reprobatório e exempli cativo.
(Podemos imaginar o espanto de Cangrande, se Dante quis, como supomos,
surpreendê-lo.)
Ademais, aqui também, como já na Vita nuo a, mas com complicações muito
distintas (poeticamente as mais fecundas de todas), o personagem-herói, o
protagonista de um empreendimento até então reservado a Eneias e a são Paulo, é,
mesmo que com a assistência de Virgílio, o próprio escritor, o Poeta. Daí o
contínuo contracanto do poema, a possibilidade de lê-lo como um relato que se
desenrola num plano único e a tentação, ou melhor, a necessidade, de olhá-lo nas
ligranas, sem esquecer os signi cados da viagem ao além-túmulo e aos nove céus,
tampouco as reações do homem, seus sentimentos e ressentimentos, e o paradoxo
de uma visão de dupla face que se abre, de um lado, sobre a paisagem da
eternidade e, do outro, sobre acontecimentos terrenos que ocupam poucos anos e
um lugar determinado, a vida da comuna orentina e suas vicissitudes nos anos do
engajamento cívico do poeta e o papel que o personagem Dante teve nesses
acontecimentos. E, como a viagem ao além ocupa apenas sete dias, mas a tela do
poema deve se estender por cem cantos — o número perfeito —, tem-se a
extraordinária heterogeneidade das guras que intervêm nas três cantiche e o
golpe de gênio (Curtius) de introduzir personagens vivas na época da viagem
dantesca, amigos e inimigos do poeta ao lado de heróis ou réprobos do mito, da
história antiga ou da história da Igreja, com seus beatos, seus santos e seus anjos
(estes certamente não os últimos nas altas hierarquias celestes e na estrutura geral
do poema). O que uni ca tal matéria? Antes de mais nada, o sentido alegórico do
poema, evidentíssimo nas linhas gerais, mas obscuro em muitos detalhes e não tão
compacto a ponto de amalgamar bem todos os episódios da narrativa, na qual o
véu alegórico frequentemente se desfaz, deixando aparecer apenas os símbolos,
nem todos transparentes. Aqui, o insu ciente conhecimento que temos sobre o
homem Dante e sua biblioteca ideal cria obstáculos que diríamos intransponíveis.
Não há consenso se Dante era um profundo teólogo e, ao mesmo tempo, um
lósofo particularmente doutrinado. Também há dúvidas se era um místico,
sendo ele tão racional e tão envolvido nos fatos e interesses da vida terrestre.
Grande leitor e grande curioso, ele teria derivado seu pensamento teológico não
só de são Tomás, mas também de outras fontes, muitas vezes sem as entender bem.
Recorreu até mesmo ao herético Siger de Brabante, reservando-lhe ademais um
lugar no Paraíso. Mas, se isso for verdade (minha incompetência não permite um
veredito), até que ponto sua alegoria pode nos ajudar? No entanto, uma primeira
unidade do poema, su ciente porque criou no mundo inteiro uma legião de
leitores de Dante que se satisfazem com o signi cado literal e negligenciam ou
ignoram por completo os signi cados alegóricos e anagógicos dos vários
episódios, uma indiscutível unidade é dada pela concretude das imagens e dos
símiles dantescos e pela capacidade do poeta de tornar sensível o abstrato, tornar
corpóreo mesmo o imaterial. É uma qualidade que se encontra também nos
poetas metafísicos ingleses do século xvii, entre os quais se encontram também
místicos que não liam Dante ou não podiam lê-lo em sua língua. Assim, é lícito
pôr um ponto de interrogação na opinião que levanta dúvidas sobre o misticismo
do poeta.
Mas voltemos por um momento à possibilidade de nos atermos apenas ao
sentido literal e ler Dante à luz de uma arte poética que não foi a sua. uando eu
era jovem e apenas começava a me aproximar da leitura de Dante, um grande
lósofo italiano me recomendou que casse atento, justamente, à letra, e deixasse
de lado qualquer glosa obscura. No poema dantesco, dizia o lósofo, há uma
construção, uma estrutura que não pertence ao mundo de sua poesia, mas tem
uma função prática. Essa estrutura é composta dos materiais que Dante encontrou
em sua época e que permitiam erguer casas pré-fabricadas; materiais teológicos,
losó cos, físicos, astronômicos, proféticos, lendários que não encontram mais
ressonância em nós. Esses materiais mostram em Dante um homem da Idade do
Meio, enredado em preconceitos nem sempre dissociados da ciência de então, mas
certamente mudos, desprovidos de signi cados para o homem atual. Sobre a
construção inerte, porém, ergue-se uma in orescência de campânulas ou de
outras plantas que são a poesia dantesca, poesia atemporal, como toda verdadeira
poesia, e que nos faz acolher Dante no panteão dos poetas supremos, se não no
céu dos grandes visionários. É uma proposta que encontrou amplo crédito na
Itália e encontrará também no futuro, mas não explica o fato de que o poema
contém uma enorme quantidade de correspondências, de remissões, que a letra
evoca remetendo-nos a seus ecos, a seus jogos de espelhos, a suas refrações; e que
não há praticamente momento, episódio ou verso que não faça parte de uma
trama, que não dê a perceber sua presença, mesmo quando sua totalidade se nos
mostra mais como uma tentativa de emular a sabedoria divina do que como uma
esfera em que poderíamos repousar sem pedir nada mais. Nunca houve poema tão
repleto de guras, em sentido próprio ou em sentido de pre guração e profecia,
nunca houve outro em que a história real e a história atemporal do mito ou da
teologia estivessem tão intimamente fundidas. Dante é realmente o m do
mundo ou sua antecipação: historicamente, sua profecia não é daqui de baixo e os
símbolos da Cruz e da Águia já haviam decaído antes que a Comédia fosse
concluída. Mas Dante fazia o balanço, liquidava uma época e tinha necessidade de
muitos os.
A multiplicidade das coisas criadas lhe foi necessária porque nenhuma delas
pode alcançar a plena semelhança com Deus in una species, demonstrou-nos
Auerbach, acrescentando que essa multiplicidade não contrasta com a perfeição e
não é imobilidade, mas movimento. Ele também se perguntou se podemos ler
Dante acolhendo formas e premissas que nos são estranhas, tal como nos
curvamos diante das regras de um jogo, e se porventura há na Comédia a
possibilidade de se transformar sem perder seu caráter. “Parece-me”, conclui ele,
“que quase se atinge o limite da possibilidade do poema de se transformar quando
seus competentes intérpretes lósofos extraem dele as chamadas belezas poéticas...
mas deixam de lado seu sistema, sua doutrina, ou melhor, todo seu ‘objeto’ como
coisa indiferente, de certo modo necessitada de uma benévola justi cação”. Sem
dúvida, o limite é atingido pelos competentes lósofos (nem todos, por sorte),
mas não se demonstra inatingível para os que têm outra área de competência. De
fato, quem possui o senso de poesia não tarda a perceber que Dante nunca perde a
concretude, nem mesmo nos casos em que a construção se mostra menos coberta
pela suposta in orescência. Aliás, diríamos que seu virtuosismo técnico atinge o
máximo de suas possibilidades quando a representação plástica, visual, não é mais
su ciente. Veja-se o canto de Folquet de Marselha [Paraíso, ix, 67-142], em que o
tema musical da personagem é antecipado por um retorno de rimas ásperas e
difíceis, que depois será constante no canto. Nada há nesses efeitos que faça
pensar num jogo formal, na perícia de um parnasiano de sua época. E aqui
somente um surdo arriscaria distinguir entre arte e poesia. Dante não escreve
versos para se mostrar nos limites de um gênero literário ou de uma escola. A
escola é em parte uma invenção nossa, mesmo que efetivamente os poetas do dolce
stile zessem parte de uma comunidade ideal. Bonagiunta pode censurar o
primeiro Guido por se ter afastado do estilo de seus predecessores, mas o verso de
Dante não teria sido muito diferente, mesmo que tivesse tido outros mestres.
Dante tem uma voz inteiramente própria desde o início, mesmo quando se
vulgariza numa disputa conhecida ou se distrai em exercícios marginais ou aceita
escrever algum poema “por encomenda”, assim antecipando muitos problemas aos
futuros escoliastas; e não há dúvida de que, após as canções alegóricas do
Con ívio, o caminho do poeta está bem traçado, e não é o caminho de quem
procura fulgurações rapsódicas e líricas. E se nem todos aceitam a hipótese de que
as possibilidades de transformação do poema (ou seja, nossa capacidade de
interpretá-lo) estejam se esgotando, será preciso procurar outras hipóteses de
leitura que podem nos trazer um resultado satisfatório.
Enquanto o esforço dos alegoristas a qualquer custo marca passo — mas não
em toda parte —, outro modo de leitura ainda aceitável é o que nos foi proposto
por um poeta moderno, T.S. Eliot, em seu ensaio de 1929. O poeta conhecia
muito pouco a língua italiana quando começou a ler a Comédia. E considerou
fácil a iniciação. Ele pensava que a língua vulgar de Dante ainda era parente
próxima do latim medieval e, por isso, uma leitura do poema que se bene ciasse
de uma boa versão literal permitiria uma primeira e su ciente aproximação. Além
disso, em sua opinião, o procedimento alegórico cria a condição necessária para o
desenvolvimento daquela imaginação sensível, corpórea, que é própria de Dante.
Em outras palavras, o suprassensível precisa de um sentido literal extremamente
concreto. Assim, das guras ainda maciças do Inferno (aquelas guras que ao
relutante Goethe pareciam emanar um cheiro de estábulo) às guras mais
compostas do Purgatório e às luminosas e imateriais aparições do Paraíso, a
evidência das imagens pode mudar em suas cores e formas, mas sempre se mantém
acessível a nossos sentidos. Muda, quando muito, a complexidade do bordado. No
breve ensaio de Eliot, repetem-se palavras como carpet, tapestry. No Paraíso,
mesmo a abstração é visível e o conceito mais abstruso é inseparável de sua forma.
E se no tapete da terceira cantica a ênfase plástica é menor, isso não signi ca
menor concretude da imaginação, apenas revela a inesgotável complexidade e, ao
mesmo tempo, a inefabilidade dos signi cados. Nosso mundo não conhece mais
visões, mas o mundo de Dante é ainda o de um visionário. Dante cria os objetos
nomeando-os e suas sínteses são fulminantes. Disso decorre seu peculiar
classicismo, ligado a uma loso a criacionista e nalista. Pela fresta do sensível,
pela exaltação das formas, Dante escapa às travas do pensamento escolástico; essa
discussão, no entanto, deixaremos aos especialistas. Em todo caso, não é disso que
fala Eliot, e sim do pensamento religioso, ou melhor, da fé que a alegoria
subentende. É necessário que a belief, a fé do poeta, seja compartilhada por seu
leitor? Para Eliot, basta que ela seja compreendida em função da poesia que
exprime. Temos aqui uma suspensão do juízo que é própria da experiência estética
e constitui a típica maneira de certa cultura anglo-saxã em conceder alguma
autonomia à arte, mesmo negando as distinções entre o estético e o conceitual
propostas pela loso a idealista. Não menos interessante em Eliot é a recusa
daquela falsi cação tardia do mundo stilno istico já mencionado: o pré-
rafaelismo. Apesar disso, como veremos antes de concluir, mesmo nele, algumas
vezes a tentação stilno istica se fez sentir.
Não conheço todas as tentativas feitas para ir além da teoria eliotiana sobre a
imaginação sensível de Dante. Deixando de lado a segurança de quem considera
possível explicar a alegoria em todas as partes, mostram-se mais interessantes os
intérpretes que, vendo na Comédia uma imensa teia de correspondências,
procuram reconduzir todos, ou melhor, alguns os a seu centro. Tal
empreendimento só pode se realizar com a análise das metáforas de Dante e o
exame da congruência entre as situações e personagens e os determinados estados
ou camadas psicológico-morais e mesmo tópicos que o poeta deve atravessar. E,
como as metáforas não são tão frequentes em Dante como Eliot quer nos fazer
crer e, de todo modo, vão se escasseando gradualmente no poema, tem-se aí um
limite ou uma insu ciência da proposta de leitura eliotiana. Temos um estudo
analítico nesse sentido acima indicado, mas certamente não exaustivo, pois
demandaria o trabalho de uma geração de estudiosos, feito e apresentado por Irma
Brandeis em seu livro e Ladder of Vision [A escada da visão] (1961), que é o
que de mais sugestivo conheço sobre o tema da escada que leva a Deus e não à toa
se coloca sob a égide de são Boaventura. “Como é preciso subir a Escada de Jacó
antes de descê-la, coloquemos o primeiro degrau o mais baixo possível, pondo a
totalidade do mundo sensível diante de nós como se fosse um espelho pelo qual
podemos passar e chegar a Deus.” Escada, espelho ou escada espelhada? Confesso
minha incerteza porque nunca li são Boaventura, o qual sem dúvida fez, em
algum momento, parte da biblioteca de Dante. O que é claro é que, para a nova
intérprete, Dante é um aprendiz que precisa undergo an immense schooling [passar
por um imenso aprendizado], isto é, cumprir sua iniciação num imenso
patrimônio de cultura universal. E todo o poema, em certo sentido, é didático
porque o ensino, que se identi cava com a loso a, era considerado parte
integrante da obra poética. Só assim poderemos compreender, em Dante, partes
como o discurso de Estácio [Purgatório, xxv, 31-78] sobre as gerações humanas,
pois o ponto de vista de Dante não pode coincidir com o do leitor, ou melhor, o
leitor não pode pretender que o poeta percorra outro caminho com outros meios.
E eu diria que, de modo geral, o interesse do leitor, superada a fase em que ele
se contenta com uma leitura ingênua, em vez de diminuir, aumenta à medida que
o emaranhado dos símbolos se torna cada vez mais problemático. Isso não
signi ca que se deva descurar do sentido literal, que é primário em Dante. É
precisamente se baseando na letra que a srta. Brandeis nos faz sentir como é viva e
concreta a presença de Beatriz em todo o poema e como são estruturalmente
necessárias as citações do Cântico dos Cânticos, do Evangelho de São Mateus e do
sexto livro da Eneida para tornar possível e, acrescento, crível a aparição daquela
que, vestindo as três cores da fé, da esperança e da caridade, pode comover o poeta
não olvidado de seu amor terrestre e fazê-lo dizer a Virgílio: “Men che dramma/
di sangue m’è rimaso che non tremi:/ conosco i segni de l’antica amma”6
(Purgatório, xxx, 46-8).
Faz-se tarde e é hora de perguntar, não a meus ouvintes, mas sobretudo a mim
mesmo: o que signi ca a obra de Dante para um poeta de hoje? Há um
ensinamento seu, uma herança sua que possamos colher? Se considerarmos a
Comédia uma súmula e uma enciclopédia do saber, a tentação de repetir e emular
o prodígio será sempre irresistível; mas as condições do sucesso já não existem.
Dante encerrou a Idade Média; depois dele — queimada a Monarquia em
1329 em Bolonha e tendo os ventos mudado —, certamente não serão os Frezzi e
os Palmieri a prender nossa atenção. Os poemas cavaleirescos quinhentistas são
grandes obras de arte, mas sua enciclopédia certamente não chega às razões
últimas do homem. Posso também deixar Milton de lado, já neoclássico. No
único poema ainda legível que Byron nos deixou, o Don Juan, a ironia e o senso
de pastiche moldam oitavas de vaga inspiração “italiana”. Não esqueci o Fausto;
mas o esoterismo iluminista que o permeia (não sei em que medida) torna sua
personagem e seu pacto com o diabo uma narrativa que interessa mais ao
antropólogo e ao mitólogo do que ao frequentador da Idade Média dantesca.
Entre os românticos conhecedores de Dante certamente estão Shelley e Novalis,
mais músicos do que arquitetos. Chegando à nossa época, não pensaria no poema
de Däubler, Das Nordlicht, que é composto em tercetos mas faz a luz vir do norte,
e tampouco no Ulysses, que decalca temas da Odisseia no pano de fundo de uma
infernal Irlanda quase simbólica. Mas Joyce não olha Dante e não tem sequer sua
imensa simplicidade formal: sua leitura requer o amparo da erudição lológica e o
poeta não cria e sim destrói uma linguagem. Por outro lado, é evidente a tentativa
de dar início a um poema total da experiência histórica do homem nos mais de
cem Cantos de Pound, o qual, porém, não quis imitar as simetrias e a rigorosa
estrutura da Comédia. Os Cantos contêm todo o saber de um mundo em
desintegração, e neles o senso de um carpet predomina sobre o de uma construção,
de uma aproximação a um centro. Mas, se fosse verdade que o tema último do
poema dantesco era a chamada doação de Constantino, então poderíamos talvez
encontrar um paralelo no tema poundiano da usura. Em conclusão, num mundo
em que o enciclopedismo constitui não mais uma esfera, e sim um imenso
amálgama de noções de caráter provisório, já não parece mais possível repetir o
itinerário de Dante numa forma amplamente estruturada e com uma inesgotável
riqueza de signi cados evidentes e ocultos. Mesmo a ilusão de que uma
imaginação sensível possa dar vida de modo aceitável a uma tapeçaria pré-rafaelita
deve ser aceita com reservas. Para se convencer disso, releiam-se alguns versos da
uarta-Feira de Cinzas eliotiana:

Senhora, três leopardos brancos sob um pé de zimbro sentados


No escor do dia, depois de se terem saciado
Com minhas pernas coração e fígado e aquilo antes contido
Na oca esfera de meu crânio. E Deus disse
Devem tais ossos viver? devem tais
Ossos viver? E aquilo antes contido
Nos ossos (que estavam já secos) disse num gorjeio:
Por causa da bondade desta Senhora
E em função de seu encanto, e porque
Ela honra a Virgem em pensamento,
Brilhamos na luz. […]7
Em momentos assim, estamos perante a exercitação de um poeta, de um grande
poeta de nossos tempos; se tivéssemos de escolher, preferiríamos o
concentradíssimo inferno pós-simbolista e quase cubista de A terra devastada.
Mas é inútil procurar outros exemplos: Dante não pode ser repetido. Foi
considerado quase incompreensível e semibárbaro poucas décadas após sua morte,
quando a invenção retórica e religiosa da poesia como ditado de amor foi
esquecida. Exemplo máximo de objetivismo e racionalismo poético, ele continua
estranho a nossos tempos, a uma civilização subjetivista e fundamentalmente
irracional porque coloca seus signi cados nos fatos e não nas ideias. E é
precisamente a razão dos fatos que hoje nos escapa. Poeta concêntrico, Dante não
pode fornecer modelos a um mundo que se afasta progressivamente do centro e se
declara em perpétua expansão. Por isso a Comédia é e continuará a ser o último
milagre da poesia mundial. E o foi porque ainda era possível às forças de um
homem inspirado ou, melhor dizendo, o foi por uma determinada conjunção dos
astros no céu da poesia, ou devemos considerá-la um feito milagroso, estranho às
possibilidades humanas? Pesam sobre Dante todas as opiniões e até todas as
suspeitas. Contra os que consideram que ele realmente viu as visibilia de seu
poema (e são poucos), outros dão relevo ao caráter misti cador de seu gênio.
Nesse caso, Dante teria sido um homem que inventou a si mesmo como poeta
sacro e, a certa altura, ajudado por forças maiores do que ele, sua invenção se
tornou realidade. Alguém poderia aventar que ele não foi um verdadeiro místico e
lhe falta a total imersão no Divino que é própria dos verdadeiros místicos,
baseando-se no fato de que a Comédia não é seu último escrito e que inclusive ele
precisou, ao concluir sua terceira cantica, sair do labirinto e retornar ao convívio
entre os homens. Mas por pouco; e não é possível imaginar um Dante
envelhecendo e assistindo à formação de sua controversa lenda. Contudo, posso
tranquilamente considerar a a rmação de Singleton de que o poema sacro foi
ditado por Deus e o poeta foi apenas o escriba. Infelizmente não posso citá-lo
senão em segunda mão, e me pergunto se o eminente dantista entendia esse seu
juízo em sentido literal ou se se deve enxergar aí apenas o caráter inspirado e por
isso recebido de toda grande poesia. Mesmo à primeira hipótese eu não faria
objeções e não teria nenhuma prova para contestar o caráter miraculoso do
poema, assim como tampouco me assustou o caráter miraculoso que foi atribuído
àquela Beatriz histórica da qual pensávamos que poderíamos abdicar.
Mas aqui me detenho. ue a verdadeira poesia sempre tem a característica de
um dom e, portanto, ela pressupõe a dignidade de quem o recebe: é este, talvez, o
maior ensinamento que Dante nos deixou. Não foi o único a nos ensinar essa
lição, mas entre todos é certamente o maior. E se for verdade que ele quis ser poeta
e nada mais que poeta, é quase inexplicável à nossa cegueira moderna o fato de
que, quanto mais seu mundo se afasta de nós, tanto mais aumenta nossa vontade
de conhecê-lo e dá-lo a conhecer a quem é mais cego do que nós.

* “Esposizione sopra Dante” [1965]. In: Il secondo mestiere. Prose 1920-1979, v. 1. Org. de Giorgio Zampa. 2.
ed. (Milão: Mondadori, 2006), pp. 2668-90. Tradução de Federico Carotti. (n. o.)

1. A comemoração do sétimo centenário de nascimento de Dante Alighieri, por ocasião da qual este texto foi
publicado pela primeira vez, sob o título “Dante ieri e oggi”. Atti del Congresso Internazionale di Studi
Danteschi, v. 2 (Florença: Sansoni, 1966). (Esta e as demais notas são do tradutor.)

2. O topo, o alto da escada, a que se refere Arnaut Daniel em Purgatório, xxvi, 146.

3. Forma como Dante se refere a essa obra (Vita nuo a, xxviii, 2).

4. “Donne-schermo”, ou seja, mulheres que serviriam de biombo para o ocultamento do amor idealizado de
Dante por Beatriz, recurso comumente utilizado na poesia cortês para não manchar a imagem intocável da
amada.

5. Purgatório, xxxiii, 43, “nel quale un cinquecento diece e cinque”: “No qual um quinhentos dez cinco”, dxv em
algarismos romanos (leia-se “dux” ou “duce”), possivelmente um líder enviado dos céus para libertar a
sociedade.

6. “ uase nada/ de sangue restou-me que não freme:/ conheço os sinais da antiga chama”.

7. “Lady, three white leopards sat under a juniper-tree/ In the cool of the day, having fed to satiety/ On my
legs my heart my liver and that which had been contained/ In the hollow round of my skull. And God said/
Shall these bones live? shall these/ Bones live? And that which had been contained/ In the bones (which
were already dry) said chirping:/ Because of the goodness of this Lady/ And because of her loveliness, and
because/ She honours the Virgin in meditation,/ We shine with brightness. […]” (in T.S. Eliot, Poemas. Org.,
trad. e posf. Caetano W. Galindo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018).
A vontade de Dante de ser poeta*
Pier Paolo Pasolini (1965)

O interesse dessas notas diz respeito apenas à literatura contemporânea e à cultura


italiana: elas não passam de uma contribuição muito especí ca à “fortuna” de
Dante na Itália nesses últimos dez ou quinze anos (na literatura não acadêmica ou
especializada).
1) Deve-se levar em conta que, com Dante, estamos perante a descoberta não
só da língua, mas das línguas. No momento em que em Dante nasceu a vontade
de usar na Comédia a língua da burguesia comunal orentina, nasceu também a
vontade de entender as diversas sublinguagens de que ela é formada: jargões,
linguagens especializadas, idiossincrasias da elite, aportes e citações de línguas
estrangeiras etc. etc. Sua ampliação linguística, com o deslocamento de seu ponto
de vista para uma perspectiva mais elevada — o universalismo teológico medieval
—, é uma ampliação não só do horizonte lexical e expressivo, mas, ao mesmo
tempo, do horizonte social.
Cada vez que se manifesta ou se admite o discurso indireto livre numa obra,
tem-se pelo menos uma vaga e possível “consciência sociológica”, já que é
inconcebível reviver linguisticamente um discurso de outra pessoa sem ter
objetivado, além de sua psicologia, também sua condição social especí ca: aquela
que produz as diversidades linguísticas. Ora, em Dante há a presença, potencial,
do discurso indireto livre; e não só potencial, se aceitarmos o uso do indireto livre
de modo não estritamente gramatical.
Antes de mais nada, os discursos diretos de Dante, aqueles entre aspas,
implicam uma solução lexical de indireto revivido. De fato, as personagens nunca
falam como Dante. Não em sentido estritamente naturalista, claro: a mimesis
naturalista é sempre metaforizada num poema cujo tema central é a relação de
uma “primeira pessoa” com o mundo transcendente. Todavia, se as personagens
pertencem à mesma classe social, à mesma elite intelectual ou cultura particular, à
mesma época ou geração de Dante, sua linguagem não se diferencia da do autor,
como instituição linguística. A diferenciação é apenas psicológica: diz respeito,
portanto, mais ao estilo do que à língua. É um fato expressivo.
Se, porém, as personagens pertencem a outra classe social, a outro mundo
cultural, a outra época que não os de Dante, então seu “modo de falar” é
caracterizado também linguisticamente; desde o caso extremo em que um poeta
provençal fala por um decassílabo inteiro em sua língua, aos mil casos em que se
percebem, entre as aspas do discurso direto, sinais especí cos de línguas especiais.
Basta dissolver esses [discursos] diretos em proposições relativas, com um
“que”, e depois retirar o “que”, e surgem “discursos revividos”, cujas “condições
estilísticas” sempre trazem em sua base uma consciência sociológica substancial.
Mas há mais. Por exemplo, no episódio de Paolo e Francesca, segundo a
impressionante reconstrução lológica de Gianfranco Contini, ca claro que na
narrativa Dante utiliza termos e expressões “da moda” em textos que
correspondem mais ou menos à nossa produção de evasão: eram as leituras do
mundo elegante e aristocrático. É evidente que o autor não fazia uso de
semelhantes expressões; portanto, ao empregá-las, ele cita outro mundo
linguístico: o de suas personagens. Isso signi ca, por parte de Dante, uma imersão
e uma mimesis total na psicologia e nos hábitos sociais das personagens — e,
portanto, uma contaminação entre sua língua e a língua delas. Não se trata, é
evidente, de um verdadeiro indireto livre, em sentido gramatical. Pode-se falar de
um indireto livre simbólico ou metafórico, a ponto de ser adotado num nível
linguístico que naturalmente rejeitava, mesmo em sua enorme disponibilidade —
sempre, porém, estritamente econômica —, os experimentos de excessiva
vivacidade (como é o caso, precisamente, do reviver mimético do discurso de
outra pessoa). Também expressões como “fazer gas” [Inferno, xxv, 2-3] ou “fazer
do cu trombeta” [Inferno, xxi, 139], ou termos como “dindim” [Purgatório, xi,
105] não são do uso pessoal de Dante: pertencem a um círculo linguístico de
periferia ou de bairro de má fama; em todo caso, de gente simples e plebeia, talvez
entregue a uma vida bandida (em suma, aquilo que, na Itália, Engels chamava de
“Lazaronitum”). Assim, mesmo essas expressões são miméticas — Dante as
emprega para esboçar com duas pinceladas um indireto livre que possibilita
reviver psicológica e socialmente a realidade de suas personagens de baixa
extração e sem cultura.
Desse modo, a escolha do “vulgar” orentino, como entidade histórico-
linguística a ser contraposta em bloco ao latim, enquanto língua escrita e da
cultura, é, no fundo, menos importante ou, de todo modo, menos interessante do
que as várias escolhas que Dante realizou dentro da língua vulgar. Ele combatia
em duas frentes: a teórica e ideológica universal da oposição ao latim, e a teórica e
ideológica particular da oposição a uma eventual institucionalidade conformista
da língua vulgar.
A vontade de usar a língua vulgar provavelmente adveio da consciência
corporativista no âmbito da comuna orentina; e a vontade de usar as várias
sublínguas do vulgar adveio dos arquétipos de sua participação direta e ativa nas
complexas lutas político-sociais de sua cidade. Ou seja, ele não estava imerso num
mundo monolítico, como havia sido, durante toda a Idade Média, o
universalismo teológico-clerical (isto é, o latim) que nivelava tudo etc. etc. Mas
aquela que se pode chamar lei da homologia de [Lucien] Goldmann fazia com
que o mundo projetado em Dante por seu mundo social particular fosse um
mundo analítico, dividido por características sociopolíticas e, portanto,
linguísticas, contraditórias (situação que ainda se repete na sociedade italiana).
O plurilinguismo dantesco, depois de descrito por Contini em seu magní co
ensaio, passou a ser, na interpretação talvez rígida de alguns escritores “engajados”
italianos dos anos 1950, uma “função”, pre guradora e retroativa, da literatura
italiana — isso se explica, sem dúvida, pela interpretação continiana da elevação
tomista e transcendente do “ponto de vista”, de modo a ampliar o horizonte
lexical, numa copresença panorâmica de seus casos-limite (vamos inserir na
vertente culta, por uma espécie de rerromanização estilística, “pulcro”; todos os
“palavrões” na vertente plebeia). Mas a explicação de Contini — que de certo
modo enfatiza a posição teológico-universalista de Dante — é integrada com
pertinácia à constante consideração do objeto concreto daquele ponto de vista, ou
seja, uma sociedade que já exigia, com vigor, uma “consciência social” de seus
integrantes, sem a qual a ampliação plurilinguística seria meramente numérica ou
meramente expressiva: um êxtase linguístico maravilhoso que, contemplando
todas as palavras em sua funcionalidade e beleza, constituísse a metáfora de uma
contemplação de Deus etc. etc. Mas não, o ponto de vista era duplo — e
contraditório: ao ponto de vista a partir do alto correspondia um ponto de
observação a partir do baixo, no nível da mais contingente e menos transcendente
qualidade terrena das coisas.
E é estranho que, na ideia estética que temos de Dante (como a que temos,
digamos, de uma cidade, ou de uma paisagem, na lembrança), um ponto de vista
não exclui o outro: não sei dizer se o meu Dante é aquele que, do alto de um céu
tomista, empresta a seus leitores um vasto olhar abrangente do mundo, ou aquele
que, pelas vielas das comunas e pelas ravinas dos Apeninos, observa
analiticamente o mundo caso a caso. Se inventa uma “Língua Vulgar Universal”
ou inaugura uma “Língua Vulgar como langue orentina, com todas as suas
sublinguagens históricas”.
2) Outra coisa que é preciso ter presente é uma interpretação continiana
subsequente: a dos “dois registros”. Em Dante, para dizer de maneira simples, o
relato se desenvolve em dois “registros”: um rápido, quase inexpressivamente
apressado, quase brutalmente factual. Leiam, por exemplo, no ritmo de leitura
com que em geral se lê um livro narrativo, o episódio de Pia dei Tolomei
[Purgatório, v, 130-136]: mal se começa e ele já termina, talvez a pessoa nem
perceba que o leu etc. etc. É quase como se se tratasse de um fragmento de um
“libreto de ópera”, que, de uma maneira aproximativa e exaltada, mais sugere do
que expõe os sentimentos e os fatos. E então se releia o mesmo trecho: ao reler (ou
ao recitar de memória), o ritmo é o do outro registro: o ritmo lentíssimo,
atemporal, que se inscreve num tempo que não é o da leitura e tampouco o dos
fatos, mas sim o tempo meta-histórico da poesia: seu ralenti de epígrafe sublime,
seu interminável dó de peito casto e quase murmurado.
[simples]A “dupla natureza” do poema de Dante se apresenta também em outros
termos, além dos dois pontos de vista (o teológico e o sociológico) e dos dois
registros, o rápido, ou “no tempo das coisas”, e o lento, ou “fora do tempo das
coisas”.
Trata-se, agora, de termos simplesmente técnicos. i) O poema de Dante é uma
alegoria, e justo por isso é uma coexistência das duas naturezas da narrativa
gurativa e da narrativa simbólica. ii) Dante é o escritor, mas também o
protagonista do próprio poema. Enquanto escritor, Dante representa um mundo
metafísico com todas as suas implicações teológicas e culturais, mas, na qualidade
de protagonista, Dante visita e apenas recorda um mundo de mortos. iii) A
Comédia é um poema; como tal, pelo menos a nossos olhos contemporâneos,
apresenta-se como uma mescla de romance e de poesia: a natureza do romance
pode ser sicamente representada pela “língua da prosa”, enquanto a natureza da
poesia é, evidentemente, representada pela língua da poesia. Ora, essas duas
línguas, copresentes em toda situação linguística civilizada, não são por natureza
sincrônicas. Pelo contrário, poderíamos dizer que, no limite, são inconciliáveis. As
“formas internas” que constituem as psicologias das personagens, tal como se
apresentam a nós terminada a leitura, são, em Dante, de tipo formalmente
romanesco, isto é, racional, e não de tipo formalmente poético, isto é, intuitivo.
As grandes personagens de Dante têm a “duração” das grandes personagens
concebidas em prosa: são captadas numa evolução lógica própria, ainda que
sintética, maravilhosamente sintética, seguida em movimento pela penetração
psicológica, pela piedade existencial e pelo juízo moral: ou seja, no conjunto, são
captadas por um olhar social, profundamente objetivante. Nunca são projetadas
com a imediatez alucinatória da poesia: que xa as guras num momento
absoluto seu, inalienável, mas também não analisável, maravilhosamente
arbitrário e impressionista. Mesmo as personagens mínimas — apresentadas
sempre com suprema precisão poética — não escapam ao racionalismo prosaico
de Dante. Elas também são calculadas, como a topogra a metafísica, a
regularidade das cantiche e dos versos etc. Isto é, fazem parte da programação
escatológica interna do poema. Mas aqui também temos um caso semelhante ao
dos “pontos de vista” e dos “registros”: não há no quebra-cabeça dantesco uma
norma que estabeleça alguma ordem no emprego da língua da prosa e da língua da
poesia nos casos particulares. Releiam uma vez mais o episódio de Pia sob esse
aspecto. A “forma interna” (sintética ao máximo) da psicologia de Pia é
perfeitamente racional, embora seja uma biogra a inscrita na lápide: mas a língua
da poesia que a fortiori exprime concretamente tudo isso, por meio de uma série
de aliterações anômalas, de antíteses quase incatalogáveis — dis-fecemi, in-
anellata, di-sposando —, de tônicas rítmicas estranhamente cantantes e populares,
quase melodramáticas (“ricorditi di me, che son la Pia” [Purgatório, v, 133]), que é
o decassílabo de um canto monódico e monostró co da região centro-italiana —,
se não contradiz aquela racionalidade, abre-a para inde níveis ambiguidades
irracionalistas.
Assim, a “dupla natureza” do poema de Dante se apresenta — mas
provavelmente poderíamos continuar — sob a forma dessa série de dicotomias:
“ponto de vista teológico” e “ponto de observação sociológico”; “registro rápido” e
“registro lento”; “realidade gurativa” e “realidade alegórica”; “Dante narrador” e
“Dante personagem”; “língua da prosa” e “língua da poesia”.
Alinhando todas essas teses de um lado e todas essas antíteses de outro,
estabeleceremos duas séries, dentro das quais se desenrola a operação poética
dantesca.
A primeira série, como se vê, é bastante coerente: o ponto de vista da síntese
teologal e transcendente, que implica uma estrita funcionalidade antiestética ou a-
estética; daí, por um lado, o registro rápido, que segue diretamente até a
nalidade preestabelecida, esgotando as zonas reservadas com férrea regularidade
a um determinado assunto etc. etc., e, pelo outro, o projeto racionalista das
psicologias e das guras do poema, jamais abandonadas ao estro, à inspiração
imediata. Tudo dominado pelo signo mágico-universalista da alegoria e abordado
pelo Dante narrador com certa “o cialidade” e uma gravidade por vezes
demasiado solene.
A segunda série, ao m e ao cabo, também é sustentável. É o ponto de
observação dentro do mundo público de Florença, com seus grandes
acontecimentos políticos, suas violentas situações humanas, seus inenarráveis
detalhes de vida, que pode produzir aquela congestão irracionalista que constitui
o material das altíssimas e misteriosas “ xações poéticas”; e daí o “registro lento”,
que coincide em Dante (como em Petrarca) com os momentos mais
característicos da “língua da poesia”. E é essa mesma experiência imediata e
humana que fornece à alegoria a natureza da realidade gurativa: vivida
existencialmente pelo Dante personagem.
[duplo]Ora, havia em Dante a vontade de ser poeta? Poeta, digo, enquanto
poeta? E qual era e onde estava essa vontade?
Tentar responder a essa pergunta signi ca considerar a releitura de Dante um
certo exame de consciência. Pois durante o breve período de um longo pós-
guerra, a “fortuna” de Dante na Itália — junto a um “pequeno grupo”, ainda
fervilhante de interesses não maturados nos manuais — consistiu numa “função
plurilinguística” como garantia, por um lado, de realismo e, por outro, de
inspiração ideológica, de escrita concebida como exterior a qualquer vontade
poética direta (a qual havia caracterizado a Itália como área marginal da literatura
europeia no século xx).
Mas desde já antecipemos uma observação não crítica: todo o poema de Dante
está permeado de uma vontade poética inconsciente, entendida como vontade
inconsciente, precisamente, de oferecer poesia enquanto poesia (é Auerbach
quem, num precioso manual com sinopses de histórias literárias comparadas,
elege Villon como “primeiro poeta enquanto tal”): e semelhante vontade, cabe
dizer, é por natureza uma vontade anômala e misteriosa, um tanto próxima —
dizemos nós, frequentadores de Freud, e muito menos livres do que os
antepassados — de formas de paranoia ou de esquizofrenia. A impressionante
unidade da linguagem de Dante é, creio eu, um caso único em todas as histórias
literárias conhecidas. E é uma unidade inexplicável, se pensarmos na dupla
natureza de seu poema, que procurei apontar em alguns termos antitéticos, mas
que na verdade foi o problema fulcral de toda a história da crítica dantesca. Tal
como, em certa medida, a coexistência da natureza humana e da natureza divina
em Cristo é o problema fulcral da exegese evangélica (e não encontro para a
Comédia arquétipo mais adequado, embora tão pouco conatural). O contraste das
duas séries de princípios que presidem à operação linguística dantesca não
permitiria nenhuma unidade linguística possível: a não ser que uma das duas séries
se revelasse sub-reptícia e pré-textual, deixando à outra toda a sinceridade e
autenticidade. Mas isso não está demonstrado e tampouco em vias de
demonstração. A unidade poética da Comédia, que, repito, tem algo de terrível e
talvez, em seu fascínio sublime, de hostil e indestrutível, apresenta-se como um
todo não relacionado: é — repito — suponho — uma vontade inconsciente, um
sistema biolinguístico natural. Seguindo por esse caminho, estamos no escuro e
no “ranger de dentes”, convém abandoná-lo.
Em vez de perguntarmos se há, será melhor, então, indagarmos onde está a
vontade de Dante de fazer poesia: em quais pontos ideais. Se o princípio a que se
deve a síntese — a unidade da linguagem — entre duas séries antitéticas tão
extraordinárias continua totalmente inatingível para uma pesquisa extratextual.
Os “pontos” do texto em que se revela a “vontade direta de poesia”, todavia, não
comparecem conjuntamente em nenhum dos lados das duas séries antitéticas, e
ainda menos ao longo da linha de algum princípio uni cador (que não seja
ontológico); assim, a meu ver, mostra-se bastante válida uma hipótese de trabalho
que preveja uma busca desses “pontos” ao longo da sutura onde as duas séries
opostas se ligam ou se chocam e onde, portanto, a expressividade encontre seus
momentos mais agudos ou mais instáveis.
Hipótese mágica! Sua aplicação, mesmo que esquemática e impaciente, na
parte do laboratório dedicada às observações mais especi camente linguísticas,
parece-me ter subvertido toda uma parte da interpretação dantesca da cultura
militante italiana desses últimos anos.
De fato: a relação sociolinguística entre as várias línguas que compõem o
vulgar orentino, como língua real de uma sociedade articulada, deveria ser, ao
longo da sutura que aproxima duas línguas socialmente muito diferentes entre si,
altamente dramática — e digo dramática expressivamente. Suponhamos,
portanto, por absurdo, que numa passagem do poema se encontrem lado a lado a
(usual) palavra culta, aliás, até obsoleta por excesso de cultura, “pulcro”, e a (usual)
palavra afetivo-familiar-plebeia “dindim”: a aproximação morfológica seria uma
explosão de expressividade (“o pulcro dindim”!). Mas uma aproximação desse tipo
jamais se encontra na Comédia. Não passa de mera possibilidade.
Assim, é verdade que coexistem em Dante duas séries sociolexicais diferentes e
opostas, mas cada qual ca sempre em seu lugar, cada qual se enquadra dentro dos
limites de um determinado caso, ou seja, dentro dos limites de uma “condição
estilística” ideal para reviver emblematicamente a linguagem particular de uma
personagem (ou ambiente) particular. Só “ao repensar” a Comédia nos damos
conta da coexistência de duas séries lexicais tão diversas. E a aproximação,
portanto, só está em nossa cabeça.
Essa aproximação também seria veri cável no texto se Dante descolasse dois
termos lexicais de sua função socialmente evocativa (o potencial indireto livre) e
os usasse arbitrariamente, tornando-os seus. Então haveria um atrito expressivo
externo a qualquer funcionalidade, gratuito, e assim explodiria, nua e crua, a
“vontade de criar expressividade” (como em grande parte da literatura europeia
contemporânea). Mas, repito, não há tais aproximações: o plurilinguismo
dantesco é bem ordenado, cada língua, utilizada funcionalmente, ca em seu
lugar.
Mas, se não quisermos renunciar de todo à ideia da expressividade
plurilinguística dantesca, tão cara a nossos hábitos desses anos, podemos remetê-
la à pura e simples presença de palavras fortemente diferenciadas, chocantes para a
língua vulgar ilustre: nada mais. Ou seja, nenhum choque expressionista entre
elas.
[duplo]Nossa hipótese de trabalho, talvez, se mostra ainda mais frutífera se
procurarmos os pontos de atrito, de choque, de instabilidade expressiva (onde se
descobre a vontade direta de poesia), ao longo da linha em que ocorre o salto de
qualidade dos dois “registros”.
Será preciso lembrar mais uma vez que é o ponto de vista teológico, enquanto
funcional, que confere ao poema os ritmos velozes, a escatologia impiedosa e
conteudística; ao passo que é o ponto de vista terreno, com seus interesses
humanos imediatos, a luta política, literária, linguística, religiosa também, que faz
com que o olhar se detenha, cheio de uma in nita possibilidade cognoscitiva,
sobre as coisas do mundo: xando-as naquele modo irracional e não analisável
racionalmente, que molda os decassílabos do “registro lento” (que são, a nal,
quase todos os decassílabos do poema, mas isolados) como que fora do poema, na
xidez física da eternidade poética.
A vontade de Dante de ser poeta, portanto, poderia se encontrar no acento
sempre igual de todas essas “inscrições lapidares” em que consiste uma verdadeira
leitura da Comédia (que, a nal, é aquela leitura tradicional dos mil lugares
destinados à memória). Nesse caso, porém, é preciso admitir que, tanto por
vontade sua quanto pela compreensão que dela temos, elas se situam num nível de
pura irracionalidade, pois tais “eternidades poéticas” (por meio das quais a
Comédia “se restabelece” fora de si mesma) são as mesmas que escapam à análise
nos sonetos mais “eleitos e seletos” de Petrarca: quando se ressalta, no sentido da
elevação moral e cognoscitiva, aquela eleição que, em Petrarca, é essencialmente
sensual e literária.
Em suma, estamos diante de uma dupla série de contradições.
A) Em sentido linguístico: a vontade de ser poeta ocorreria em Dante no
momento expressivo, ou seja, no ápice de uma expressividade devida à presença,
heterônoma em relação à poesia, da teologia; mas tudo isso é contestado pelo fato
de que a “vontade de ser poeta” pode ser vislumbrada ainda melhor nos
momentos supremos do ralenti meta-histórico (ou seja, no momento que mais
contradiz a inspiração teológica — que é a que fornece o momento veloz,
conteudístico).
B) Em sentido político-teologal, a contradição (análoga) é a seguinte: a
elevação do ponto de vista amplia o horizonte linguístico e garante expressividade
e realismo à língua (momento, portanto, laico e antiteologal); mas, ao mesmo
tempo, a xidez absoluta dos versos “lentos” escapa, como vimos, ao princípio do
racionalismo universalista-teológico; e precisamente por ser o resultado último de
um ponto de vista humano que, em si, era apenas experiência direta, pragma: não
racionalizável. E por isso, como dizia, esses versos entram na zona ontológica da
inefabilidade e do irracionalismo.
O real momento sagrado de Dante não consistiria, portanto, em sua
consciência racional teológica, mas se manifestaria em termos poéticos, assim se
fazendo laico e, de certo modo, literário: “ao reexpressar” autenticamente a meta-
historicidade religiosa por meio da historicização de uma “irracionalidade poética”.
Ora, a característica mais certa que podemos ver nessa “irracionalidade poética”
(cujo princípio real desconhecemos) é a obsessiva uniformidade do tom do
poema, o qual, portanto, nunca é dado pela utilização de palavras mais ou menos
centrífugas em relação ao centro inspirador, e sim pela posição regular e de certo
modo pré-constituída que elas ocupam no discurso — praticamente pela
discriminação da sua utilização. E, praticamente, qualquer possibilidade de
contaminação linguística se esvai no texto dantesco, ao passo que a obsessão
discriminatória na utilização das palavras potencialmente “contaminantes” é tal
que as reduz quase a fósseis, e como tais são assimiladas no tom que Dante nunca
transgride, sem qualquer entonação mais vivaz ou mais sublime, mais próxima das
conversas da terra ou dos silêncios do céu.
No fundo, o que deixou Dante “magro” [Paraíso, xxv, 1-3] por tantos anos foi
uma terrível operação de seletividade: operada sobre um número de palavras e
modos linguísticos que ele mesmo tornara praticamente inumeráveis.
uanto a outras operações análogas (a de Ariosto, a de Cervantes),
conhecemos, para nossa satisfação esquemática, o princípio de tal “seletividade
sobre um vocabulário imensamente ampliado”: é o nascimento da burguesia, e,
portanto, do humour, primeiro como corrosão das instituições feudais e, a seguir,
como anteparo entre o sujeito e o objeto. Assim se garantia o distanciamento e,
portanto, a eterna cadência de um mesmo tom sobre uma matéria eternamente
variada.
Em relação a Dante, se não conhecemos o princípio de seu distanciamento
seletivo, mesmo assim podemos deduzir, para além de suas diversas técnicas, a
medida ou a norma interna que o regula: trata-se de uma equidistância
rigorosamente mantida entre o autor e os in nitos aspectos particulares de seu
mundo.
Desumanamente magro ao vencer sua aposta, Dante bem pode dizer no nal
de seu poema que nunca transgrediu um milímetro sequer dessa sua equidistância
da matéria: única lei férrea, impiedosa, que domina todas as leis particulares que
regulam seu plurilinguismo.
Mas essa férrea lei da equidistância faz com que — dentro de um projeto geral
que não admite improvisações parciais decorrentes de qualquer liberdade do
sentimento — não só a atitude moral e sentimental de Dante seja sempre a mesma
em relação a seus fatos e personagens, mas também que Dante seja sempre
equidistante de si mesmo, ou seja, de seus próprios sentimentos: contestações
raivosas, piedades contidas, participações ingênuas, severas e dulcíssimas
evocações de detalhes da existência, o que for.
Dante pôde chegar a isso incorporando a si mesmo em sua matéria, isto é,
tornando-se protagonista do poema.
Assim, os sentimentos nunca são os seus, e sim os do Dante personagem: a
invectiva “Ai Pisa...” [Inferno, xxxiii, 79], por exemplo, não é dita em primeira
pessoa, pelo Dante autor, como parece — é um “discurso indireto livre” do Dante
personagem.
Disso decorre seu absoluto rigor estilístico, mantendo-se absolutamente
equidistante, com todo o resto do poema, do momento criativo e linguístico do
autor.
A recente fortuna de Dante, fundada na inspiração heterônoma e racionalista e
em sua visão realista da sociedade — que produz o plurilinguismo —, se mostra
derivada de um exame bastante parcial. Na verdade, todos os versos de Dante
(salvos, provavelmente, os raros e inamalgamáveis versos mitológicos e os versos
escritos segundo certas regras bizarras da ars dictandi) são, no fundo, feitos de um
material in nitamente puro: muito mais “seletos” do que os de Petrarca (cuja
“seleção” era, repetimos, literária, isto é, decorrente de uma volta à língua vulgar
literária do Dolce Stile Nuovo, linguisticamente homóloga a uma sociedade
feudal pré-comunal ou a uma sociedade senhorial nascente); aliás, tão seletos que
desa am a compreensão, a não ser, no fundo, aquela, in nitamente deliciosa, que
abarca a soma dos mais elevados sentimentos de cada um de nós.
A contraposição entre o plurilinguismo dantesco e o monolinguismo de
Petrarca era, pelo menos no “pequeno grupo”, errônea ou parcialmente errônea.
Se for preciso contrapor monolinguismos: um monolinguismo eleito e seleto
(Petrarca) e um monolinguismo tonal (Dante); um monolinguismo pela iteração
in nita da atitude interior e da relação com uma realidade cristalizada (Petrarca),
e um monolinguismo por uma equidistância totalmente invariável entre a atitude
interior e a relação com a realidade, por mais variada que esta seja (Dante); um
monolinguismo como solilóquio eternamente homogêneo (Petrarca), e um
monolinguismo que homologa incessantemente as mais variadas invenções de
diálogo (Dante). Ou seja, para certa crítica marxista italiana, que queria distinguir
poesia de poesia, seria preciso recomeçar tudo desde o início.

* “La volontà di Dante a essere poeta” [1965]. In: Saggi sulla letteratura e sull’arte, Walter Siti e Silvia De
Laude (Orgs.), v. 1, 3. ed. (Milão: Mondadori, 2008), pp. 1376-90. Tradução de Federico Carotti. (n. o.)
dante alighieri nasceu em Florença, em 1265. Sua obra de juventude se destaca
pelas composições de aguçada expressão poética, cuja principal compilação
narrativa se dá com o livro da Vida no a. Por sua atuação política a partir da
última década do século xiii, chega ao máximo órgão administrativo municipal
(Priorato) de sua cidade. Mas, como consequência das divergências ideológicas
com a facção dos Guelfos Negros — aliada ao papa Bonifácio viii —, é
condenado ao exílio em 1302. Após esse marco se dá a escrita de seus tratados
Con ívio, Sobre a eloquência do vulgar e Monarquia. Também desse período seria
a escrita da Comédia. Por volta do ano de 1318 foi acolhido junto à corte de
Ravena, onde morreu em 1321.

emanuel frança de brito nasceu no Rio de Janeiro em 1981. É professor de


língua e literatura italianas na Universidade Federal Fluminense desde 2017.
Dedicou boa parte de sua trajetória acadêmica à obra de Dante Alighieri na
Universidade de São Paulo, com períodos de pesquisa na Università per Stranieri
di Siena (mestrado, 2008), na Università di Roma “La Sapienza” (doutorado,
2013-4) e na Università degli Studi di Pisa (pós-doutorado, 2016-7). Traduziu e
organizou o Con ívio de Dante Alighieri (Penguin Classics Companhia das
Letras, 2019) e a Retórica de Brunetto Latini (Editora 34/ufpr, 2021).

maurício santana dias nasceu em Salvador em 1968. É livre-docente em letras


modernas e estudos da tradução na usp, crítico literário e tradutor. Foi professor
da uerj entre 1995 e 1998, correspondente em Buenos Aires e jornalista cultural
da Folha de S.Paulo entre 1998 e 2003, e pesquisador visitante da Georgetown
University (Washington, d.c.) em 2000. Tem pós-doutorados nas universidades
“La Sapienza” de Roma (2008-9) e Sorbonne Nouvelle (2015) em Paris. Autor
de A demora: Claudio Magris, Danúbio, Microcosmos (Lumme, 2009), já traduziu
e organizou mais de cinquenta títulos, entre eles 40 no elas de Luigi Pirandello
(Companhia das Letras, prêmio Paulo Rónai da n em 2008), Trabalhar cansa
(Cosac Naify/ 7Letras, terceiro lugar no prêmio Jabuti em 2010), O príncipe
(Penguin Classics Companhia da Letras, 2010), Decameron: Seleção de dez
no elas (Cosac Naify, 2013), Pier Paolo Pasolini: Poemas (Cosac Naify, 2015),
Mil sóis: Poemas escolhidos de Primo Levi (Todavia, 2019) e a tetralogia
napolitana de Elena Ferrante (Biblioteca Azul, 2015-7). Recebeu em 2019 o
Prêmio Nacional de Tradução do Ministério da Cultura da Itália.

pedro falleiros heise nasceu em Piracicaba, interior de São Paulo, em 1979.


Formou-se em letras pela Universidade de São Paulo. Obteve o doutorado pela
Università degli Studi di Roma “Tor Vergata”, em 2011, com tese sobre a
presença da obra e da gura de Dante no Brasil. Realizou um pós-doutorado na
Universidade de São Paulo sobre a poética de Boccaccio e outro na Unicamp a
respeito da Elegia. Desde 2014 é professor de língua e literatura latinas, primeiro
da Universidade Federal de São Paulo, depois, a partir de 2018, da Universidade
Federal de Santa Catarina. Publicou uma tradução e adaptação de As aventuras de
Pinóquio de Collodi (Globo, 2011), uma seleta da Eneida de Virgílio
(Clandestina, 2017) e a Vida de Dante de Boccaccio (Penguin Classics
Companhia das Letras, 2021).

evandro carlos jardim nasceu em 1935 na cidade de São Paulo, estudou na


Escola de Belas Artes e participou de diversas exposições nacionais e
internacionais. Com carreira acadêmica paralela à de artista, foi professor da
Escola de Belas Artes, da Fundação Armando Alvares Penteado e da Universidade
de São Paulo.
dante milano nasceu no Rio de Janeiro em 1899. Publicou seu primeiro livro,
Poesias, em 1948 ( José Olympio Editora). Crítico e ensaísta, publicou a tradução
de Três cantos do Inferno em 1953 (Ministério da Educação e Saúde), além de
Poemas traduzidos de Baudelaire e Mallarmé em 1988 (Ed. Boca da Noite). Em
2004, a Academia Brasileira de Letras lançou sua Obra reunida. Morreu em
Petrópolis, em 1991.

eugenio montale nasceu em Gênova em 1896. Colaborou com periódicos de


Milão e Turim até que, em 1925, publicou o livro de poemas Ossos de sépia (trad.
Renato Xavier, Companhia das Letras, 2002). Foi diretor da Biblioteca
Vieusseux até 1938 e teve uma longa colaboração com o jornal Corriere della
Sera. No Brasil, foi publicada a antologia Poesias (trad. Geraldo Holanda
Cavalcanti, Record, 1997). Além da obra poética, seus livros de prosa, traduções
e textos críticos consolidaram sua posição central na literatura italiana do século
xx. Em 1975, recebeu o prêmio Nobel de literatura. Morreu em 1981, em
Milão.

pier paolo pasolini nasceu em Bolonha em 1922. Publicou seu primeiro livro
de poemas, Poesie a Casarsa, em 1942. Mudou-se para Roma em 1950, onde
continuou sua atividade de poeta, romancista e ensaísta. Em 1961, estreou como
cineasta com o lme Accattone. Foi um dos artistas e intelectuais italianos mais
relevantes do século xx, com muitos livros publicados no Brasil, como Escritos
corsários (trad. Maria Betânia Amoroso, Editora 34, 2020), Alì dos olhos azuis
(trad. Andréia Guerini et al., Berlendis & Vertecchia, 2006), entre outros. Morto
em 1975 na praia de Ostia, perto de Roma, seu assassinato até hoje não foi
esclarecido.
Copyright da tradução, apresentação e organização dos textos © 2021 by Emanuel França de Brito, Maurício
Santana Dias e Pedro Falleiros Heise

Copyright dos textos complementares © Pier Paolo Pasolini, “La volontà di Dante a essere poeta” [1965]. In:
Saggi sulla letteratura e sull’arte, Walter Siti e Silvia De Laude (Orgs.), v. 1, 3. ed. (Milão: Mondadori, 2008),
pp. 1376-90; © Eugenio Montale, “Esposizione sopra Dante” [1965]. In: Il secondo mestiere. Prose 1920-
1979, v. 1. Org. de Giorgio Zampa. 2. ed. (Milão: Mondadori, 2006), pp. 2668-90; © Dante Milano. “O
verso dantesco” [1979]. In: Obra reunida. Org. de Sérgio M. Gasteira (Rio de Janeiro: Academia Brasileira de
Letras, 2004), pp. 457-71.

Gra a atualizada segundo o Acordo Ortográ co da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil
em 2009.

TÍTULO ORIGINAL Commedia. Inferno


CAPA E PROJETO GRÁFICO Raul Loureiro
REPRODUÇÃO DO ENSAIO VISUAL João Musa
ES UEMA DO INFERNO dárkon vr
TRADUÇÃO DOS TEXTOS COMPLEMENTARES Federico Carotti
EDIÇÃO DE TEXTO Maria Emilia Bender
PREPARAÇÃO Guilherme Bonvicini
REVISÃO Carmen T. S. Costa, Luciana Baraldi
VERSÃO DIGITAL Rafael Alt
ISBN 978-65-5782-571-6

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA SCHWARCZ S.A.
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