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Capa
Folha de rosto
Sumário
Inferno
CANTO I
CANTO II
CANTO III
CANTO IV
CANTO V
CANTO VI
CANTO VII
CANTO VIII
CANTO IX
CANTO X
CANTO XI
CANTO XII
CANTO XIII
CANTO XIV
CANTO XV
CANTO XVI
CANTO XVII
CANTO XVIII
CANTO XIX
CANTO XX
CANTO XXI
CANTO XXII
CANTO XXIII
CANTO XXIV
CANTO XXV
CANTO XXVI
CANTO XXVII
CANTO XXVIII
CANTO XXIX
CANTO XXX
CANTO XXXI
CANTO XXXII
CANTO XXXIII
CANTO XXXIV
Esquema do Inferno
Sobre os autores
Créditos
A Comédia: visões e sons de Dante
A estrutura. A arquitetura. A descompostura. A poesia. A antipoesia. A antropofagia. O espanto, a libido, o
urlo, o mal, o animal, o fantástico do real, o círculo, o orbe, o número, a luxúria, a dança cristocêntrica, o erro
original de ser, o texto que fabricando o inferno se sustenta, o purgatório também tornado histórico, a idade
mitológica do céu, a Idade Média daquele tempo, do atual tempo externo do homem e do tempo a vir; Beatriz
fortemente politizada (Par. xxx, 133-148); a contestação do mundo.
Dante viu, retro iu, previu, intro iu, postviu, cosmo iu.
A maior parte dos escritos de Dante é permeada de indícios autobiográ cos que
sugerem aos leitores, de hoje e de outros tempos, a necessidade de observar a vida
e a obra do poeta como dois caminhos que se entrecruzam continuamente. Isso
porque estamos diante de um autor que confunde numa só voz sua gura
histórica com a de seu principal personagem. No entanto, a escassez de
documentos a seu respeito não nos permite comprovar a maioria dos fatos escritos
por Dante, de modo que nos resta, como leitores, observar os três eixos
documentais que fundamentam sua biogra a: o testemunho dos antigos
biógrafos, os registros públicos e a obra do próprio autor.
ANTES DA COMÉDIA
O INFERNO
DATA DE COMPOSIÇÃO
Não se sabe ao certo quando Dante começou a escrever o Inferno, primeira das
três partes que compõem a Comédia: Inferno, Purgatório e Paraíso. Na Vida de
Dante, Giovanni Boccaccio nos conta que os sete primeiros cantos haviam sido
compostos ainda em Florença, ou seja, antes do exílio, em 1302. A prova de seu
argumento estaria no primeiro verso do Canto viii, que começa com as seguintes
palavras:
Desde o início de sua divulgação, o poema cou conhecido como “la Comedìa”,
com variações “Commedìa” e “Commèdia”, oscilação entre pronúncia latina
grecizante e pronúncia toscana. Em outros textos de Dante há indícios a respeito
do título, como uma passagem de seu tratado político Monarquia em que ele
a rma (i, xii, 6): “assim como eu já disse no Paraíso da Comédia”. O adjetivo
“divina”, que aparece impresso pela primeira vez em 1555, na edição veneziana de
Lodovico Dolce, é de inspiração boccacciana. Era comum desde a Antiguidade se
referir a um grande poeta, lósofo, pensador ou artista como “divino”. Boccaccio,
por exemplo, em mais de uma ocasião escreve “o divino Aristóteles” e, na Vida de
Dante, se refere à obra-prima do poeta como “a divina Comédia” (Vida de Dante,
§ 185). Há ainda uma citação numa carta que Dante teria enviado a Cangrande
della Scala, senhor de Verona, cuja autenticidade é alvo de intermináveis debates.
Seja ou não de Dante, a missiva se refere ao poema dantesco como “Comédia”, e
ainda explicita o que signi ca esse título em relação a seu gênero poético
(Epístola, xiii, 10):
O título do livro é: “Começa a Comédia de Dante Alagheri [sic], orentino de nascimento, não de
costumes. […] [A comédia] difere da tragédia na matéria pelo fato de que a tragédia no princípio é
admirável e tranquila, no m ou conclusão é fétida e horripilante; […] como ca evidente nas tragédias de
Sêneca. Já a comédia começa pela aspereza de alguma situação, mas sua matéria termina de maneira
próspera, como ca evidente nas comédias de Terêncio. E daqui alguns escritores adquiriram o hábito de
dizer como saudação “[te desejo] princípio trágico e m cômico”. […] E por isso ca evidente que
Comédia seja chamada a presente obra. Pois, se olharmos para sua matéria, no princípio ela é horripilante
e fétida, porque é o Inferno, e no m é próspera, desejável e agradável, porque é o Paraíso; quanto ao modo
da linguagem, é o modo modesto e humilde, porque é a fala vulgar na qual também as mulherzinhas
[muliercule] se comunicam.
NUMEROLOGIA E ESTRUTURA
A VIAGEM
A Comédia é ainda uma longa narrativa de viagem, o que signi ca que esse gênero
é mais uma das fontes de Dante. Desde os poemas homéricos, a travessia parece
sugerir uma metáfora da condição humana, que implica a aquisição sucessiva de
novas experiências. Por isso, a Comédia é também viagem do conhecimento.
De acordo com informações esparsas que o poeta fornece ao longo do poema,
seu périplo teria ocorrido na Semana Santa de 1300, ano do primeiro jubileu da
Igreja Católica, inaugurado por Bonifácio viii como forma de indulgência para os
pecadores. A viagem durou aproximadamente uma semana, tendo o poeta
passado quase quatro dias no inferno, três no purgatório e algumas poucas horas
no paraíso.
Ao se ver perdido numa selva escura, Dante avista um “deleitoso monte” (Inf., i,
77) para onde se dirige, mas não consegue chegar lá porque surgem as três feras já
mencionadas. Desesperado e com medo, avista uma sombra, a quem pede ajuda.
Trata-se de Virgílio, que se apresenta ao poeta orentino e lhe explica que, para
sair dali, ele deverá percorrer os três reinos dos mortos.
A descida ao reino dos mortos é lugar-comum da literatura e conhecida como
katábasis, cujos exemplos mais notórios são os de Ulisses e de Eneias. Dante não
chegou a ler diretamente a Odisseia, obra que conhecia de segunda mão, ao
contrário da Eneida. Mas, se a viagem de Eneias ao reino dos mortos ocorre em
apenas um trecho da narrativa, no Livro vi, a katábasis de Dante ocupa o poema
todo.
Outra diferença que merece destaque é que Dante se faz narrador e
protagonista de seu poema, contando os acontecimentos em primeira pessoa. Isso
permite que o poeta encontre não só personagens do mundo antigo, mas também
almas de alguns de seus contemporâneos. Junto a estas, há outra personagem na
Comédia: Florença.
Ao contrário do que ocorre na Vida no a, onde Florença não é nomeada,
embora a história se passe nessa cidade, na Comédia ela ganha destaque, seja por
meio de orentinos que Dante vê ao longo do percurso, seja como entidade a
quem o narrador, por mais de uma vez, se dirige usando a segunda pessoa do
singular. Célebre exemplo é o primeiro terceto do Canto xxvi do Inferno, que
associa Florença por a nidade ao espaço infernal:
É verdade que no Paraíso Dante revelará nostalgia de sua cidade natal, mas não
daquela em que cresceu e da qual foi expulso, e sim da antiga Florença, que ainda
não havia sido corrompida pela ascensão das novas classes que perseguiam
vorazmente o lucro. Ao lado da Florença do passado e a do presente surge a do
futuro. Com efeito, as almas do inferno têm o dom da antevisão. Ao saber disso,
praticamente todas as vezes que o poeta pede a um danado que fale do futuro, é
sempre do futuro de Florença.
Uma dessas previsões ocorre no Canto vi do Inferno, quando Dante encontra
Ciacco, um conhecido guloso de sua época. Ciacco faz uma das profecias do
poema, referente à luta acirrada entre o partido dos guelfos brancos, de que Dante
fazia parte quando integrou o governo de Florença, e dos guelfos negros, que iria
culminar em mortes e exílios. O poeta questiona Ciacco a respeito da discórdia
que havia assolado Florença, ao que o espírito explica nos versos 74-75:
Assim, a Comédia parece ser em grande medida uma resposta ao exílio que
Dante considerava injusto. Porém, a obra-prima do poeta orentino vai além
dessas questões individuais e assume um valor coletivo. A viagem de Dante, de
fato, é a viagem de cada um de nós, que nos faz estremecer quando o poeta tem de
atravessar um rio sobre o dorso de um centauro, que nos faz vibrar nos momentos
em que critica a crueldade de certos políticos de sua época, ou que nos abala
quando ouvimos um avô narrar a morte injusta de seus lhos e netos antes da sua.
A TRANSMISSÃO DO TEXTO
NOTA DA TRADUÇÃO
Isso ajuda a desfazer a imagem de um Dante que, pelo alto teor losó co de sua
poesia e pela re nada habilidade poética, costuma ser visto por muitos leitores
como alguém que não transita pelos registros mais baixos da linguagem, nem pela
irregularidade métrica ou sintática, que frequentemente quebra o ritmo melódico.
Se tal imagem existe, ela se deve em certa medida às traduções da Comédia, que
por vezes terminam suavizando ou mascarando tais características de seus versos,
ou evitando expressões mais chulas ou populares. Por outro lado, não podemos
deixar de considerar que algo da poesia dantesca na língua de partida pode ter
sido alterado pela transmissão da obra, que chega até nós em edições cujo
estabelecimento textual nem sempre é consenso entre os estudiosos.
Tendo isso em vista, buscamos orientar o trabalho com o mesmo rigor formal
de Dante, ou seja, a precisão do número de sílabas de cada verso, a manutenção
das rimas nos tercetos, a atenção aos procedimentos retóricos e ao andamento
rítmico. Além disso, evitamos repetir rimas dentro de um mesmo canto, exceto
quando Dante o faz. Mas, assim como o poeta, também lançamos mão de
recursos métricos para aglutinar sílabas usando encontros vocálicos tanto dentro
de uma mesma palavra (sinéreses, como em “aon-de”, lido com apenas duas
sílabas) quanto entre palavras (sinalefas, como em “ca-da um”, lido com 2 sílabas);
ou para dividir sílabas, seja separando encontros vocálicos dentro da palavra
(diéreses, como em “Mo-ï-sés”, lido com 3 sílabas), seja entre palavras (dialefas,
como em “E - eu”, lido com duas sílabas). Esse último exemplo com o pronome
“eu”, que abre tantos dos tercetos do poema, será sempre lido assim, com dialefa.
Do mesmo modo, mantivemos a exaustiva repetição do pronome “eu”, que no
poema parece denotar a a rmação de uma subjetividade poética, algo que não
poderia deixar de se impor também na tradução.
Incluímos o acento grá co relativo à prosódia dos topônimos italianos,
evitando que nomes como Govérnol, por exemplo, fossem lidos segundo a regra
do português (levando a um andamento “quebrado” do verso em Governól).
Além disso, procuramos manter as marcas arcaizantes, as formas típicas da fala
oral e popular, os latinismos, os neologismos, assim como as guras de linguagem
centrais na poética de Dante, como o símile, a aliteração, o hipérbato etc.; e
reescrever as idiossincrasias e os jogos alusivos que o poeta estabelece com a
tradição, nos valendo do repertório poético-musical também do nosso tempo.
Por m, para fugir às abundantes notas de rodapé comuns em edições da
Comédia, esta traz uma breve sinopse na abertura de cada canto, com a numeração
dos versos entre colchetes e referências entre aspas à forma adotada na tradução.
Isso se insere na longa tradição de introduzir os cantos com sínteses do enredo
(didascalia), sendo a nossa um pouco mais extensa do que se costumava
apresentar. Esperamos que esse recurso permita ao leitor acompanhar a trama
nem sempre linear dos cantos e obter informações mínimas sobre personagens
(cujos nomes estão em gra a atualizada, o que pode diferir da grande liberdade
que Dante — e esta tradução — se permitiu nos versos) que poderiam ser mais
familiares a um contemporâneo do autor. Essas breves paráfrases, no entanto, não
pretendem sugerir interpretações aos versos. Acreditamos que a leitura da
tradução já poderá indicar o caminho interpretativo que optamos em cada passo,
sem que as ambiguidades presentes no texto sejam com isso prejudicadas.
Um aspecto não pouco relevante e inovador desta tradução é que,
diferentemente de outras edições da Comédia em língua portuguesa, esta é feita a
seis mãos. Isso signi ca que cada verso da obra foi preparado por um dos
tradutores e depois lido, revisado e complementado por observações dos outros
dois, processo que levou a duas, três, quatro ou mais versões antes de chegarmos
ao resultado aqui apresentado. Essa experiência, como era de se esperar, foi muito
rica de discussões e cheia da cumplicidade que ainda manteremos para as
próximas partes do poema, o Purgatório e o Paraíso.
EDIÇÕES ITALIANAS
alighieri, Dante. La Commedia secondo l’antica vulgata. 4 v. Ed. Giorgio
Petrocchi. Soc. Dantesca Italiana. 2a reimpr. rev. Florença: Le Lettere, 1994.
alighieri, Dante. La Divina Commedia. Ed. Anna Maria Chiavacci Leonardi. 3 v.
Milão: Mondadori, 1991 (Inf.), 1994 (Purg.; Par.).
alighieri, Dante. La Divina Commedia. 3 v. Ed. Umberto Bosco e Giovanni
Reggio. Florença: Le Monnier, 1999.
alighieri, Dante. Vita no a. Ed. Guglielmo Gorni. Milão: Mondadori, 2008.
alighieri, Dante. Opere. 2 v. Ed. Marco Santagata. Milão: Mondadori, 2011-4.
alighieri, Dante. Opere di dubbia attribuzione: Fiore e Detto d’Amore. Ed. Luciano
Formisano. Roma: Salerno, 2012.
alighieri, Dante. Commedia. 3 v. Ed. Giorgio Inglese. Roma: Carocci, 2019.
REFERÊNCIAS EM PORTUGUÊS
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A m de libertar-te do temor,
te direi por que vim e o que provei
quando por ti no início senti dor. 51
Eu vi Camila e vi Pentesileia;
do outro lado avistei o rei Latino
que com a lha Lavínia se alteia. 126
O de pé na cabeça a foi en ar
e do restante da matéria viu
orelhas das bochechas despontar; 126
e a galgar os cimos do paraíso, onde é recebido como hóspede de honra, único ser
humano a ter esse privilégio ainda em vida. Seu juízo arbitrário lhe permite
colocar no quinto Céu um seu antepassado, Cacciaguida, que o recebe exultante,
em versos latinos:
Por sua vontade única, sem consultar os desígnios divinos, coloca no Inferno os
seus inimigos, exercendo uma injustiça que não perdoa pecados. Até reis, até
papas põe no Inferno. Conheço elevado conceito em que os poetas se têm, mas
nenhum jamais fez tão alta ideia de si.
Este o grande Dante, o poeta trágico e rígido, que não endeusa heróis e
potentados, nem bajula a sua pátria e o seu povo. ue ensina a ver a Poesia, não
como passatempo delicioso, mas como algo de grande e terrível.
Poeta de sobrecenho carregado, com seu desprezo pelo mundo que o cerca,
seus ódios, seus anátemas, seus vitupérios, apenas amenizados pela sua
comiseração diante de um prisioneiro numa torre, condenado a morrer de fome,
junto com seus lhos; ou pelo interesse apaixonado com que contempla um
jovem par de amantes adúlteros num abraço infernal de que nunca mais se
poderão separar, visão que faz o Poeta ter uma vertigem.
Não contente com os suplícios a que os submete no Inferno, Dante agride os
danados com escárnios e insultos. Um deles lhe implora:
O maldito, afundando num mar de lodo, tenta agarrar-se à barca onde estão
Dante e Virgílio. Este vem em ajuda de Dante e expulsa o danado:
Virgílio aquiesce:
Vê-se que foi o Poeta, por iniciativa própria e com ódio terrível, quem pôs
Argenti no Inferno — lugar cheio, aliás, de orentinos.
Seria engano pensar-se que estou apontando “defeitos” no Poeta. Ao contrário.
Este é o Dante que admiro.
Caráter severo, quase inimigo da piedade cristã, não se pode imaginar Dante
entre beatitudes. Seu vulto, em meio à luminosidade paradisíaca, lembra um
evadido do Inferno. Em pleno Paraíso (canto xvi), o Poeta mantém o seu tom
desdenhoso e sarcástico:
No canto xxii, que também não tem nada de paradisíaco, o Poeta se deleita
com a vingança que lhe é prometida:
[…] la vendetta
che tu vedrai innanzi che tu muoi.
La spada di quassù non taglia in etta
né tardo, ma’ che al parer di colui
che disiando o temendo l’ aspetta.
(Paraíso, xxii, 14-18)
O verso dantesco penetra como faca e deixa cicatriz, para ser sempre lembrado.
O canto v do Inferno não seria tão célebre se nele não houvesse aquele verso. Uma
vez lido, torna-se inesquecível. Tudo que se lê e esquece é sem valor. Versos
duradouros, palavras indeléveis — eis o verso dantesco. Dante não escrevia versos
para serem apenas admirados, mas meditados. Seu verso atinge um sentido
superior, maior que a beleza aparente:
Dante não foi um esteta. Ante seu olhar austero a beleza corporal se
espiritualiza e é outra espécie de beleza maior. Dante não cultua a forma objetiva
da matéria e, sim, a beleza transcendente, imaterial. Poeta da Idade Média, sofreu
com sua época a in uência do Amor, então um sentimento “novo”, que modi cou
a concepção do Mundo e o espírito da Poesia. O amante substituiu o Herói das
epopeias antigas. Dante é poeta do amor. Com seus companheiros do Stil Nuovo,
ele se afasta da in uência das literaturas clássicas. Novos tipos de poemas, não
heroicos, não didáticos. Nada de epopeias, hinos, odes, elegias. Nada de deuses,
semideuses, heróis, combates. Nasce uma nova forma, um novo espírito, numa
língua nova.
Era recente a invenção do soneto. A Vita nuo a é quase composta de sonetos.
Com o milagre de graça do “Tanto gentile” se impõe a in uência do soneto na
literatura poética futura. O soneto veio provar que não são precisos mais de
quatorze versos para se compor um grande poema. O advento do soneto expulsou
as epopeias e os vastos poemas didáticos. Abolindo-o, como zeram os
românticos, a poesia volta a um fácil uxo verbal. A forma exigente, o rigor de sua
composição põem um freio ao verbalismo que se expande em poemas
quilométricos.
Miraculosamente, a Commedia escapa desse desperdício por ser um livro de
poemas, cada Canto podendo ser lido como poema independente. A Commedia
pode ser lida aberta ao acaso, como a Bíblia, sem perder a unidade. Mas seus
Cantos se entrelaçam, indissolúveis, o que torna a Commedia una e completa, não
podendo dizer que a leu quem leu apenas alguns cantos.
Na Vita nuo a, Dante é um homem do seu tempo, participando do movimento
literário da época. Era um “moderno”, um poeta do “novo estilo”. Na Commedia já
havia meditado, sofrido, vivido. Já ultrapassara o modernismo da época, não era
mais um “poeta do seu tempo”. O tempo adquirira para ele outra dimensão —
tempo de eternidade. A Commedia é uma visão além do tempo e do mundo. Para
tal visão, já não bastam ao Poeta sonetos e canções. Necessita a la rígida e
disciplinada dos tercetos não limitados a quatorze ou mais versos. É uma espécie
de espiral, os degraus de uma escada por onde o Poeta prossegue em sua fatigante
ascensão. Por vezes, lendo Dante, me parece que uma serpente imensa o enrosca
— os seus tercetos em anéis —, e a sua frase sai contorcida e mordente, em meio
aos esgares de um Laocoonte. Talvez seja este um modo de dizer enfaticamente
uma verdade difícil de explicar: o prodigioso estilo dantesco.
Dante foi dos primeiros a compreender que a Poesia é uma arte que não precisa
da Natureza — embora a maior parte da poesia escrita no mundo seja descritiva e
imitativa. Em vez de “descrever” a natureza, ele capta o sentimento que o mundo
inspira:
Não é à toa que, ao contrário da prosa, cada verso é separado do outro e com
vida própria. Ao passo que a prosa caminha num chão plano, a poesia se equilibra
num o suspenso. Numa, a expressão horizontal; noutra, a tensão vertical. Em
poesia sentimos sempre o vértice e o vórtice. Nem parece que o verso é feito com
as mesmas palavras da prosa. A diferença está toda no modo de usá-las. Em
“sentido gurado”. Isto diz tudo. O sentido da poesia.
É difícil tocar a realidade com palavras e não com os olhos ou as mãos. As
realidades que os olhos não veem e as mãos não tocam são as que Dante quis
mostrar ao mundo. Para as tornar visíveis, usou de “comparações” as mais
arriscadas. Não as comparações que apenas comparam, mas as que revelam o que
sem elas seria ininteligível.
A “comparação” é o recurso habitual da técnica dantesca. Dante é o poeta que
mais usa a “comparação” e dos que menos recorrem à metáfora. A “comparação” é
imprescindível à revelação de certas sutilezas poéticas que rejeitam ornatos. A
metáfora reveste, a comparação desnuda; a metáfora é purpúrea, a comparação é
cristalina. A metáfora é ornamental, oposta ao caráter lógico e metafísico de
Dante. Segundo Aristóteles: “Pode de nir-se a metáfora como sendo uma
comparação abreviada onde falta o termo ‘como’”. Mas Hegel ensina: “A metáfora
não chega a ser uma representação independente, mas somente acessória. Ela não
serve ao pensamento, mas à fantasia. Na metáfora o poeta deixa de estar possuído
pelo tema e se entrega à fantasia e ao capricho”.
Já a comparação é um revoo dentro do espaço do tema. Dante nunca se afasta
do seu tema. Mantém domínio sobre imaginação e não se perde no difuso.
Comparar é comparar-se, medir distâncias é medir as próprias forças. uando a
comparação é verdadeiramente poética, torna-se luminosa e transparente:
Esta última comparação possui um ímpeto viril, um desenho verbal que jamais
se expressaria por uma metáfora. É todo um modo diferente de pensar e falar, uma
atitude mestra do intelecto, toda uma matemática do espírito.
O “como” é palavra de alta tradição poética e não pode ser “riscada do
dicionário”, como por motivos meramente estéticos queria Mallarmé. Sem dúvida,
o que ele condenava era o abuso de comparações fáceis, como hoje condenaria o
das metáforas fúteis. Entretanto, em sua exígua, destilada, condensada obra
poética, se encontra a palavra comme mais de cem vezes e até em versos sucessivos:
Yeux bleus
Et oids, comme une source en pleurs…
dissesse: “Je suis le roi…”, teria assumido uma atitude enfática, traindo seu
pensamento e sua emoção. uando Shakespeare diz (Henry VI):
ele quis dizer que a glória é como um círculo n’água alargando-se até dissolver-se
— pensamento exato, nítido, transparente. Não quis dizer gurativamente: “A
glória é um círculo n’água…”. A palavra like aproxima e liga os termos da
comparação; a ausência do like força a dicção a uma pausa, dando ênfase à
entonação. O estilo metafórico é sempre enfático.
No uso das guras poéticas, há diferenças até raciais como, por exemplo, entre
Shakespeare e Gôngora, entre o caráter inglês e o espanhol, entre quem busca no
estilo a concisão e nitidez na expressão das ideias, e quem pelas palavras
metamorfoseia as ideias em ornatos metafóricos, o que Hegel já denunciava no
temperamento espanhol. A mutação das ideias em oreio mental pode parecer
mais poética, se confundirmos poesia com poeticismo.
Camões quase não usa a comparação, nem a metáfora. Grande poeta do
sentimento, não precisa da imaginação para compor seus versos imortais. Ele não
está “imaginando”, está “sentindo” o amor, quando diz:
estava citando versos realmente “belos”, mas pouco dantescos; versos que outro
poeta poderia ter escrito e não versos que só Dante era capaz de escrever. Dante
ensina o “grande verso” e, não, o “belo verso” dos poetas estetas, cultores de uma
“beleza” que repugna ao espírito ávido de alimento mais substancial. “Bellezza è
bruttezza”, já dizia Leopardi.
Na Commedia há uma poesia que não é só de Dante. É do mundo, da
humanidade. Isto diferencia os Antigos dos Modernos. Estes tiram tudo de si.
Aqueles captavam tudo — de tudo e de todos —, do que havia e do que tinha
havido, do passado recente e remoto, de toda a experiência e sabedoria
acumuladas pelos séculos. E retransmitiam tudo que aprendiam: história, ciência,
religião, fatos, gestos, ditos memoráveis. Todo poeta antigo ensinava o que sabia,
vulgarizava a sua erudição, imitava o que havia de melhor nos seus antecessores, o
que era digno de perpetuidade e de ser transmitido de um idioma a outro, de
geração a geração, para que nada se perdesse e tudo se salvasse, do que há de
grande no mundo. Por exemplo: foi pelo estilo de Dante e não pelo trecho de
Ovídio por ele imitado que para sempre me cou na memória a estranha e
formidável cena:
Ouvindo este verso, todos se sentem viajores que estão na terra de passagem. É
um verso que não cabe nas próprias letras e voa pelo mundo.
uando se recita:
* In: Obra reunida. Org. Sérgio M. Gasteira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2004, pp. 457
-71. Texto publicado originalmente com o título “O meu Dante” em O meu Dante. Org. Edoardo Bizzarri.
São Paulo: Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1965. Diferentemente da publicação original, optou-se por
identi car os cantos e versos da Comédia citados no texto. (n. o.)
Exposição sobre Dante*
Eugenio Montale (1965)
Numa celebração como essa,1 à qual insignes guras trouxeram o peso ou a graça
de sua autoridade, o último chamado a falar sempre é recebido e saudado pelo
apresentador do evento com a ritual e consoladora fórmula last but not least. Isso
pode ser plenamente verdadeiro, mas em outros casos. Com efeito, não considero
que hoje, para mim, seja preciso dourar a pílula, pois aqui, perante vocês, sinto-me
realmente last and least, o último sem qualquer atenuante.
E, no entanto, aqui estou; aceitei falar nessa ocasião, mesmo faltando-me
tempo e talvez também a possibilidade de procurar em mim algo que,
relacionando-se com alguma singular experiência dantesca minha, se mostrasse
mais do que pessoal e, assim, digno de ser noti cado e discutido. Pareceu-me,
superada a perplexidade inicial, que, se Dante é patrimônio universal (e assim se
tornou, embora tivesse mais de uma vez avisado que falava a poucos dignos de
ouvi-lo) para além de certo grau de aprofundamento necessário, sua voz hoje pode
chegar a todos como talvez nunca tenha ocorrido em outros tempos e como talvez
não será mais possível no futuro, de modo que sua mensagem pode alcançar o
profano tanto quanto o iniciado e, provavelmente, de uma maneira totalmente
nova. O conhecimento de Dante, depois de coroado em vida pela glória, foi se
apagando aos poucos até o século xvii (seu século de sombra) para ressurgir
depois com o advento do Romantismo e o contemporâneo orescimento de uma
loso a inteiramente terrena, que vê no homem o senhor e até mesmo o criador
de si mesmo.
Embora observe uma convergência entre os dois movimentos, não me escapam
suas diferenças. O primeiro busca inspiração no mundo antigo não porque tenha
renovado e acentuado seus mitos, mas porque está insatisfeito com seu tempo,
racionalista e iluminista, e por isso se entrega a uma arte poética. O outro, que
vem ao lado do primeiro, não só aceita seu tempo, mas considera-o representante
da mais alta fase do pleno desenvolvimento da razão. Os Deuses estão mortos,
mesmo que, morrendo, tenham precisado se abeberar de sangue humano, e o
divino tenha descido à terra. Os dois movimentos, diferentes e até opostos entre
si, exigem o predicado de modernos e, por razões distintas, olham para Dante.
Para o primeiro, Dante é um antepassado remoto do Romantismo e como tal
merece ser redescoberto; para o segundo, é um admirável produto da imaginação
poética, mas essa imaginação não é a sabedoria dantesca, é apenas um degrau, e
não o último, som de l’escalina,2 de um Espírito que ainda não tomou consciência
de si.
A poesia, disseram-nos, não é a razão, e apenas a razão pode compreendê-la e
lhe fazer justiça. Assim como o mais forte faz justiça ao mais fraco. Seria injusto
reduzir a compreensão sete-oitocentista de Dante a essa dicotomia. De fato, no
século xix nascem e se desenvolvem, não sem alguns antecedentes em pleno
século xviii, as pesquisas daqueles que querem erguer o véu que encobre a grande
criação dantesca e penetrar a fundo nos mistérios de sua alegoria. Nasce ou
renasce o Dante esotérico, o Dante que, mesmo como personagem histórica
(relembro as hipóteses mais absurdas), teria tido duas faces, uma das quais
permaneceu praticamente desconhecida: o Dante que pertenceu à Ordem dos
Templários ou se tornou franciscano, depois saindo da ordem antes de tomar os
votos de nitivos, e, acima de tudo, o Dante que teria usado uma linguagem
sectária hoje decifrável, e apenas em mínima parte, somente por quem se tiver
consumido em longos estudos de aprofundamento. Pode-se criticar o quanto se
queira esse aspecto particular da dantologia moderna (aliás, contestado e rejeitado
por uma dantologia lológica e histórica mais moderna), mas deve-se reconhecer
que, para além de seus aspectos patológicos, ela possui ao menos o mérito de ter
a rmado uma grande verdade: que Dante não é um poeta moderno (fato sabido
também pelos críticos e lósofos modernos), e que os instrumentos da cultura
moderna não são os mais adequados para compreendê-lo (fato porém negado
pelos lósofos modernos que se creem especialmente autorizados a erguer o véu,
mas para que lado? Para o lado da razão moderna desenvolvida).
Minha convicção, porém — e apresento-a sem maiores garantias —, é de que
Dante não é moderno em nenhuma dessas duas maneiras, e isso não nos impede
de compreendê-lo, pelo menos em parte, e de senti-lo estranhamente próximo de
nós. Mas, para que isso ocorra, é preciso também chegar a uma outra conclusão:
que não vivemos mais numa era moderna, e sim numa nova Idade Média cujas
características ainda não conseguimos entrever. Apresentada preliminarmente
como convicção pessoal minha, ela não encontrará aqui suas motivações e tem
apenas caráter hipotético. A época que se abre diante de nós não permite
previsões a curto prazo, e falar em nova Idade Média tem um signi cado de forma
alguma inequívoco. Se o futuro assinalar o pleno triunfo da razão técnico-
cientí ca, e mesmo com aqueles frágeis corretivos que a sociologia possa
excogitar, a nova Idade Média não será mais que uma nova barbárie. Mas, nesse
caso, seria impróprio falar em Idade Média, pois a Idade do Meio não foi apenas
bárbara, nem desprovida de ciência e vazia de arte. Falar, portanto, de nova Idade
Média haveria de parecer uma hipótese nada pessimista a quem não acredita nos
disparates da razão se desenvolvendo ad in nitum; ao passo que existe a
possibilidade de uma barbárie totalmente nova, de um mascaramento e subversão
da própria noção de civilização e de cultura.
Mas percebo que devo voltar a meu argumento e me perguntar quem era
Dante e o que ele pode representar (é meu tema) para um escritor de hoje: não
digo para um poeta de hoje porque, comparado a Dante, não existem poetas.
uem era Dante é o que os historiadores literários têm se indagado, conseguindo
traçar, mesmo que com muitas lacunas, as linhas de sua existência terrena. Mais
afortunado do que ele, Shakespeare fez com que se perdessem suas pegadas. É
conhecida a opinião de Sidney Lee — depois de demonstrar que muitos temas e
momentos dos sonetos shakespearianos pertencem aos tópoi, aos lugares-comuns
da sonetística renascentista, ele chegou à conclusão de que Shakespeare nos
sonetos “descerra” não seu “coração”, como acreditava Wordsworth, mas um tipo
de matéria muito diferente. A única ilação biográ ca que se poderia deduzir deles
seria, portanto, “que, a certa altura de sua carreira, Shakespeare não desdenhava
nenhuma arma de lisonja na tentativa de monopolizar o generoso patronato de
um jovem de alta posição”: o famoso “only begetter” cuja identidade pessoal está
em questão.
Justa ou injusta que seja tal conclusão, ela nem sequer chega a roçar o grande
poeta das tragédias. Não que não pesem indagações insondáveis sobre sua vida e
parte de suas obras, mas a crítica moderna conseguiu prescindir disso. Existe
apenas sua poesia. Tais são as conclusões do novo close reading que lê a poesia de
modo totalmente a-histórico. Muito diferente é o caso de Dante; nele, vida e
obras estão tão interligadas que nunca poderemos nos desinteressar da biogra a
do poeta. E os pontos obscuros na vida e nas obras de Dante são muitos.
Estabelecemos a datação apenas de uma parte de suas rimas extravagantes; estão
em contestação não só rimas, mas também epístolas e, até data recente, um
tratado. Existe, por outro lado, a possibilidade de se demonstrar que o Fiore, até
agora atribuído a um certo sr. Durante, seja obra sua. Não sabemos em que ano
teve início o primeiro canto da Comédia; tampouco sabemos quando o poeta
realmente se entregou (à parte o início incerto) à redação completa do Inferno e
do Purgatório. Sabemos apenas que talvez por vinte anos (quinze, para outros) ele
se dedicou, mesmo atendendo a outras obras, à composição do poema sacro. Há
também a dúvida se a Vita nuo a que conhecemos seja uma redação tardia, que se
tornara necessária para unir o livrinho3 ao poema, saltando o comprometedor
segundo tratado do Con ívio. E certamente as dúvidas não param por aí. Tudo
isso demonstra que uma leitura do poema, e naturalmente das rimas, que
prescinda por completo da vida de Dante, de sua cultura e formação, não pode
levar muito longe. Todavia, uma tentativa de lê-lo como se lê um poeta moderno,
escolhendo as partes mais vivas e eliminando o resto — o que se julga estranho à
poesia —, tem provocado estranhas queixas. Francesco De Sanctis parece
claramente deplorar que demasiadas superstições medievais tenham ofuscado o
poeta, impedindo-o de dar livre curso a seus personagens. É conhecida a
conclusão de sua análise do Inferno na Storia della letteratura italiana: “Essas
grandes guras, no alto de seu pedestal, rígidas e épicas como estátuas, esperam
que o artista as tome pela mão, lance-as no tumulto da vida e as faça seres
dramáticos. E o artista não foi um italiano: foi Shakespeare”.
Dante, portanto, mais poeta que artista. De Sanctis se empenhava muito em
distinguir a poesia da arte, mas nunca teve muita segurança dessa sua distinção.
Disso nasceram equívocos que perduram até nossos dias. A verdade é que, se
algum dia houve um artista na acepção mais elevada da palavra, foi certamente
Dante. Mas o que era a arte para o Dante de quem temos tão poucas notícias, o
primeiro Dante? Era uma arte de convenção, de escola, a ars dictandi, comum a
ele e aos que podemos considerar seus pares (os stilno isti não formaram uma
tertúlia e o pioneiro Guinizelli morreu quando Dante tinha dez anos de idade).
Nos limites da escola, o problema não era o da originalidade e sim o da delidade
ao Dittatore. ue o poeta escrevesse sob ditado era convenção aceita e herdada
dos líricos occitânicos. Mas os poetas do Dolce Stile Nuovo desenvolvem mais
rigorosamente o tema vindo dos provençais e o encerram num cânone mais
perfeito. Sua linguagem é a língua vulgar, mas uma língua vulgar depurada e,
portanto, doce. Guittone não pode mais ser modelo, é considerado tosco e
desordenado. Dante parte de Guinizelli, mas simpli ca e fortalece seu estilo;
parte também, e muito mais, do segundo Guido, e não há como entender
plenamente a Vita nuo a sem levar em conta motivos, contrastes e “surpresas” da
poesia de seu primeiro amigo.
Em todo caso, mesmo para Dante trata-se, conscientemente, de nova “maneira”.
Não há com que se surpreender. Sempre, em todos os tempos, os poetas falam aos
poetas, travando com eles uma correspondência real ou ideal. Os poetas da nova
escola se põem problemas, levantam questões, aguardam respostas para as rimas.
“O Dolce Stile é a escola que traz com maior consciência e boa vontade o senso de
colaboração para uma obra de poesia objetiva”, disse Gianfranco Contini, o qual,
depois de analisar o soneto “Guido i’ orrei”, em que vê o tema da fuga para um
mundo irreal, acrescenta: “Absoluta separação do real que se converte em
amizade, tal é o elemento patético de nidor do stile nuo o”. A mulher salví ca, o
tema mais evidente de toda a escola, perde-se no coro dos amigos, e o poeta como
indivíduo empírico se retira. Naturalmente, não se pode ler o corpus das rimas
extravagantes como um cancioneiro, tampouco como uma coleção de líricas,
entendendo-se o termo em sentido moderno. Ainda que haja no chamado
cancioneiro uma grande variedade de entonações e se encontre presente a marca
de uma inquietação técnica cada vez maior, permanece o fato de que não
podemos ler essa coletânea sem nela reconhecer o primeiro passo de um grande
empreendimento poético que tomará consciência de si na Vita nuo a e
prosseguirá pelas obras doutrinais até as três cantigas que a posteridade disse
divinas e que Dante de niu em dois momentos do Inferno como Comédia.
Beatriz faz sua primeira aparição nas rimas e a ela são dedicadas algumas das
canções e sonetos mais famosos de Dante; mas ao lado dela também pode surgir,
num grupo de rimas compostas entre 1291 e 1293, aquela Mulher Gentil que
reencontraremos na Vita nuo a e no Con ívio, e que tanto pano para manga deu
aos hagiógrafos de Dante. Tampouco faltam outras mulheres, outros nomes que
talvez sejam pseudônimos: a jovem que alguns identi cam com a Mulher de
Pedra e que, nesse grupo, parece ter sido a mais perigosa para o poeta, e também
Fioretta, Violetta, Lisetta, a esposa de Guido e outras mais, até chegar às duas
Mulheres-Biombo4 que encontraremos na Vita nuo a. E, visto que no corpus das
rimas extravagantes também se incluíram as inspiradas pela Mulher de Pedra, que
são quase certamente posteriores à Vita nuo a e afetadas pelo estudo do miglior
fabbro [o maior artí ce], Arnaut Daniel, eis que aparecem em posição pouco
convincente as composições que serão fundamentais para o estudo do
desenvolvimento estilístico de Dante e que não deixarão indiferente nem o
próprio Petrarca, como Ferdinando Neri demonstrou exaustivamente. As rimas
“pedrosas” tiveram a sorte de servir de fonte ao pré-rafaelismo oitocentista em sua
variante “negra” que chega a Gustave Moreau na França, e inclui, na variante
“branca”, ao lado de toda uma escola pictórica inglesa, também vários poemas,
entre os quais tem grande importância e Blessed Damozel de Dante Gabriel
Rossetti, um poeta sobre o qual T.S. Eliot desferiu suas echas. Talvez a Mulher
de Pedra tenha realmente existido, mas enquanto aventura estilística jamais
coincidirá com uma mulher real. Se, além disso, Dante desde cedo intuiu aquele
que seria o signi cado último de Beatriz (e a Vita nuo a deixa poucas dúvidas a
esse respeito), eu diria que tanto a Mulher de Pedra quanto a Mulher Gentil, se
não existiram, teriam de ser inventadas, pois não se pode imaginar um processo de
salvação sem a contraparte do erro e do pecado.
A existência histórica de uma Bice ou Beatriz, que Dante pode ter realmente
conhecido e amado, talvez sem que a interessada tivesse consciência disso, não é
mais legítimo objeto de dúvidas desde as pesquisas de Isidoro Del Lungo, que
despertaram grande entusiasmo em 1891. Mas que signi cado pode ter essa
descoberta? Aqui são duas as hipóteses: ou o signi cado que Dante lhe atribui
não tem qualquer relação com sua existência efetiva, ou pode-se acreditar, como
Luigi Pietrobono, que a mulher miraculosa não só viveu, mas foi um efetivo
milagre. Para quem acredita, como eu, que os milagres sempre podem estar à
espreita diante de nossa porta e que nossa própria existência é um milagre, não há
como combater a tese de Pietrobono com argumentos racionais.
Os últimos anos de Dante em Florença antes do exílio testemunham a
composição da Vita nuo a, que narra em prosa e em verso a história de seu amor
por Beatriz. Toda a sua breve vida e sua morte, bem como sua aparição ao poeta,
diz-nos o texto, são postas sob o signo do número nove e seu próprio nome
aparecerá nove vezes no livrinho. A sorte protegeu a misteriosa jovenzinha,
impedindo que muitos fatos de sua vida chegassem a nós: assim, ela pode
continuar como imagem da perfeição absoluta e como o meio necessário para a
escalada de Dante até Deus. Para o leitor atual, é com a Vita nuo a que se inicia o
fato de que agora o poeta assumiu os riscos e não poderá mais recuar. Seu destino,
a essa altura, está de nitivamente marcado. Não se pode falar da Vita nuo a sem
lembrar que ela ocuparia um lugar intermediário na coletânea das rimas, se fosse
possível dispô-las em ordem cronológica. Entre as extravagantes incluem-se, além
das rimas “pedrosas”, canções e rimas de diversos gêneros que foram compostas
depois do livrinho e certamente depois do período de obscurecimento interior e
extravio que Dante atravessou após a morte de Beatriz: um período de trinta
meses em que o poeta mergulha no estudo de Boécio e Cícero, e conclui seu
conhecimento dos clássicos (os “litterati poete”, isto é, os grandes poetas latinos) e
da loso a tomista.
O livrinho assim interrompe uma experiência extremamente aberta e errante, e
confere uma primeira forma, já em si completa, do futuro processo de
transumanização de Beatriz. Dá-se numa forma que hoje diríamos narrativa, se o
termo fosse adequado, em que composições versi cadas se alternam com outras
em prosa, segundo um esquema que não é de invenção dantesca, narrando do
início ao m a história de amor de Dante pela mulher salví ca. A narrativa ou,
melhor dizendo, a visão se detém também em detalhes que hoje pareceriam
realistas, mas que são acrescentados para dar corpo àquela rixa entre espíritos
humanos e vocação transcendente que aqui se mostra de nida como nunca se
mostrara antes no autor. Se o poeta, que agora surge como personagem-autor (e
isso aparece na escolha das rimas incluídas e, ainda mais, pelo comentário em
prosa), quis também, com os episódios das duas Mulheres-Biombo, ocultar e ao
mesmo tempo revelar dois nomes de mulheres bem conhecidas do grupo dos seus
amigos, isso nunca saberemos. O problema é saber até que ponto o diabrete da
misti cação se insinuou na trama de sua alta poesia. Uma incerteza análoga brota
da aparição da Mulher Gentil, que aqui será uma rival, se assim se pode dizer, de
Beatriz, e que reencontraremos depois no Con ívio, trans gurada em Filoso a,
com uma evidente obliteração do signi cado que Beatriz assumia no livrinho e
daquele que reassumirá no poema sacro. Deixo de lado outros episódios, em que o
livrinho sai de seu enquadramento de aventura místico-intelectual para se tornar
matéria de narrativa profana. Talvez tais episódios tenham sido inventados por
um grande técnico da poesia, para dar maior realce às últimas páginas, àquela cor
sanguínea que, depois, será a cor de toda a sua obra em nossa lembrança. E, sem
dúvida, não nos enganamos ao ver na Vita nuo a uma distante pre guração da
Comédia, ademais testemunhada pelo desejo do poeta de falar sobre ela — Beatriz
— em outro lugar. ue o livrinho tenha sido composto com muito rigor,
excluindo rimas que teriam caráter redundante e outras estranhas ao esquema
geral, apenas con rma o sentido da obra: uma elaboração já concluída, mas em
certo sentido preliminar. Talvez estejam certos os que não veem no livrinho uma
experiência mística. Nela, a experiência mundana é recriada a partir da
experiência cristã; mas não se estrutura por graus em forma de ascese, e sim numa
história, inteiramente situada na esfera mundana (D. De Robertis).
Mas, a essa altura, já estamos na época do exílio do poeta, que coincide com o
início dos dois tratados, a lauta mesa de alta retórica do Con ívio e o Sobre a
eloquência do vulgar, ambos inacabados; e tal paralelismo nos vedará a
possibilidade de segui-lo criando uma espécie de itinerário psicológico. Ferreti era
da opinião, con rmada por não poucos indícios internos e externos, de que os
primeiros sete cantos do Inferno foram compostos antes do exílio, escondidos
pelo poeta e remetidos a ele “mais de quatro anos depois”, segundo os eventos
narrados por Boccaccio. Se for correta a conjectura de Ernesto Giacomo Parodi,
que identi ca em Henrique de Luxemburgo o dxv (em cujo número os jesuítas
entreviram Lutero e a Reforma),5 parece plausível a rmar que a composição do
Inferno e do Purgatório se situa entre os anos 1307-12, ao passo que é quase certo
que o Paraíso tenha ocupado os últimos anos do Poeta. Alguns estudiosos situam
o início do poema em 1313. Não faltam outros (Michele Barbi) a propor datas
intermediárias. A questão da datação, porém, não é meramente acadêmica como a
de mulieribus [das mulheres] que acabei de mencionar. Ela envolve a
possibilidade, aceita ou negada, de que Dante tenha submetido sua obra a
reformulações e ulteriores reelaborações. O leitor atual continua incerto a esse
respeito. De um lado tem-se a impressão de que muitos episódios da Comédia
foram escritos de impulso, com poucas alterações, materializando assim aquela
grande prosa oculta nas malhas do ritmo e das rimas que, se tivesse sido
compreendida e levada à realização, teria nos poupado séculos de prosa curial,
togada. (Hipótese impossível, pois a involuntária prosa elevadíssima do poema
não afastou Dante do exercício da prosa latina e o tornou insigne também nesse
campo.) Por outro lado, se considerarmos o volume de aportes que a cultura
retórica, losó ca e teológica da Idade Média latina trouxe ao poema, tornando
quase impossível uma leitura ingênua, talvez virgem, da imensa teofania, camos
atônitos com o enciclopedismo dantesco e somos obrigados a pôr em dúvida a
impressão inicial de que Dante teria escrito a rédeas soltas. ue Dante conhecia e
praticava o labor limae [o trabalho da lima], como pareceu a Ugo Foscolo, é
inegável a quem conhece as rimas pedrosas, as canções doutrinais e os momentos
da Comédia em que retorna o jogo das rimas ásperas e difíceis. E, contudo, não há
dúvida de que a idealização de seu poema, sua própria estrutura já estava pre xada
desde o primeiro verso, e foi se modi cando e se enriquecendo, talvez ao custo de
evidentes contradições durante a elaboração e a hipotética revisão da obra. Diante
do douto, do poeta sábio que, após os estudos de Ernst Curtius e de Erich
Auerbach, não podemos mais ignorar, está o literato que descobre e explora as
possibilidades de sua nova linguagem, o homem que volta sobre si mesmo,
enriquece seu pensamento, o exilado que espera ser readmitido em sua terra e que
mais tarde, desiludido, intensi ca as expressões de seu rancor. É por isso que as
provas internas e as referências a dados históricos nem sempre são decisivas para
conciliar biogra a e poesia. Como teórico que quer demonstrar a si mesmo e a
seus protetores a sabedoria que atingiu no estudo da gramática e o que é possível
derivar disso para os ns de uma poesia escrita em língua vulgar, elaborou o
Con ívio, o tratado que deveria abranger quinze partes e cou inacabado após a
quarta. São comentadas três canções doutrinais, e alguns indícios nos levam a
conjecturar quais seriam as duas ou três canções que poderiam se somar a outras e
atingir o número quinze, previsto pelo poeta. A escolha da língua vulgar é, por
sua vez, ilustrada em Sobre a eloquência do vulgar, tratado que deveria ser uma
espécie de enciclopédia de ciência linguística. Sobre a eloquência do vulgar está
escrito em latim porque Dante considera que somente o latim, língua universal e
eterna, pode dar conta de um tema que envolve os desenvolvimentos da
linguagem humana até o idioma triforme, depois que a queda do homem (a torre
de Babel) confundiu e corrompeu para sempre a língua primitiva dos homens.
Mas o tema que me propus — a poesia de Dante para um escritor de nosso
tempo — me obriga a deixar para trás as obras doutrinais do poeta — as duas
mencionadas; a Monarquia, a se atribuir a uma data posterior, e a Questão sobre a
água e a terra, que foge a meu objetivo. Basta dizer que Dante sempre teve diante
da gramática, dos “litterati poete”, algo que hoje chamaríamos complexo de
inferioridade. Defendeu sua escolha até o m, mas utilizou o latim como que para
ressaltar o caráter excepcional de seu empreendimento; e se depois dele a língua
vulgar venceu a batalha nas matérias a que se destinava o falar humilde, ela não foi
utilizada por nenhum outro grande poeta dos primeiros séculos para abordar a
matéria do estilo sublime, a épica.
E agora estou diante da Comédia que, sob certos aspectos, poderia ser
considerada um poema épico, mas que, sob outros, dele difere substancialmente.
De fato, a Comédia tem um personagem-herói e canta seus feitos não sem a ajuda
e assistência das Musas e das Sagradas Escrituras, mas Dante emprega um estilo
que não é sempre o trágico, mas sim uma mescla excepcional de estilos e modos
certamente não conformes à dignidade e uniformidade do estilo épico. Na
epístola de dedicatória do Paraíso a Cangrande della Scala, o Poeta explica que seu
tratamento é poético, ctício, descritivo, digressivo, compendioso e, ao mesmo
tempo, de nitivo, divisório, comprobatório, reprobatório e exempli cativo.
(Podemos imaginar o espanto de Cangrande, se Dante quis, como supomos,
surpreendê-lo.)
Ademais, aqui também, como já na Vita nuo a, mas com complicações muito
distintas (poeticamente as mais fecundas de todas), o personagem-herói, o
protagonista de um empreendimento até então reservado a Eneias e a são Paulo, é,
mesmo que com a assistência de Virgílio, o próprio escritor, o Poeta. Daí o
contínuo contracanto do poema, a possibilidade de lê-lo como um relato que se
desenrola num plano único e a tentação, ou melhor, a necessidade, de olhá-lo nas
ligranas, sem esquecer os signi cados da viagem ao além-túmulo e aos nove céus,
tampouco as reações do homem, seus sentimentos e ressentimentos, e o paradoxo
de uma visão de dupla face que se abre, de um lado, sobre a paisagem da
eternidade e, do outro, sobre acontecimentos terrenos que ocupam poucos anos e
um lugar determinado, a vida da comuna orentina e suas vicissitudes nos anos do
engajamento cívico do poeta e o papel que o personagem Dante teve nesses
acontecimentos. E, como a viagem ao além ocupa apenas sete dias, mas a tela do
poema deve se estender por cem cantos — o número perfeito —, tem-se a
extraordinária heterogeneidade das guras que intervêm nas três cantiche e o
golpe de gênio (Curtius) de introduzir personagens vivas na época da viagem
dantesca, amigos e inimigos do poeta ao lado de heróis ou réprobos do mito, da
história antiga ou da história da Igreja, com seus beatos, seus santos e seus anjos
(estes certamente não os últimos nas altas hierarquias celestes e na estrutura geral
do poema). O que uni ca tal matéria? Antes de mais nada, o sentido alegórico do
poema, evidentíssimo nas linhas gerais, mas obscuro em muitos detalhes e não tão
compacto a ponto de amalgamar bem todos os episódios da narrativa, na qual o
véu alegórico frequentemente se desfaz, deixando aparecer apenas os símbolos,
nem todos transparentes. Aqui, o insu ciente conhecimento que temos sobre o
homem Dante e sua biblioteca ideal cria obstáculos que diríamos intransponíveis.
Não há consenso se Dante era um profundo teólogo e, ao mesmo tempo, um
lósofo particularmente doutrinado. Também há dúvidas se era um místico,
sendo ele tão racional e tão envolvido nos fatos e interesses da vida terrestre.
Grande leitor e grande curioso, ele teria derivado seu pensamento teológico não
só de são Tomás, mas também de outras fontes, muitas vezes sem as entender bem.
Recorreu até mesmo ao herético Siger de Brabante, reservando-lhe ademais um
lugar no Paraíso. Mas, se isso for verdade (minha incompetência não permite um
veredito), até que ponto sua alegoria pode nos ajudar? No entanto, uma primeira
unidade do poema, su ciente porque criou no mundo inteiro uma legião de
leitores de Dante que se satisfazem com o signi cado literal e negligenciam ou
ignoram por completo os signi cados alegóricos e anagógicos dos vários
episódios, uma indiscutível unidade é dada pela concretude das imagens e dos
símiles dantescos e pela capacidade do poeta de tornar sensível o abstrato, tornar
corpóreo mesmo o imaterial. É uma qualidade que se encontra também nos
poetas metafísicos ingleses do século xvii, entre os quais se encontram também
místicos que não liam Dante ou não podiam lê-lo em sua língua. Assim, é lícito
pôr um ponto de interrogação na opinião que levanta dúvidas sobre o misticismo
do poeta.
Mas voltemos por um momento à possibilidade de nos atermos apenas ao
sentido literal e ler Dante à luz de uma arte poética que não foi a sua. uando eu
era jovem e apenas começava a me aproximar da leitura de Dante, um grande
lósofo italiano me recomendou que casse atento, justamente, à letra, e deixasse
de lado qualquer glosa obscura. No poema dantesco, dizia o lósofo, há uma
construção, uma estrutura que não pertence ao mundo de sua poesia, mas tem
uma função prática. Essa estrutura é composta dos materiais que Dante encontrou
em sua época e que permitiam erguer casas pré-fabricadas; materiais teológicos,
losó cos, físicos, astronômicos, proféticos, lendários que não encontram mais
ressonância em nós. Esses materiais mostram em Dante um homem da Idade do
Meio, enredado em preconceitos nem sempre dissociados da ciência de então, mas
certamente mudos, desprovidos de signi cados para o homem atual. Sobre a
construção inerte, porém, ergue-se uma in orescência de campânulas ou de
outras plantas que são a poesia dantesca, poesia atemporal, como toda verdadeira
poesia, e que nos faz acolher Dante no panteão dos poetas supremos, se não no
céu dos grandes visionários. É uma proposta que encontrou amplo crédito na
Itália e encontrará também no futuro, mas não explica o fato de que o poema
contém uma enorme quantidade de correspondências, de remissões, que a letra
evoca remetendo-nos a seus ecos, a seus jogos de espelhos, a suas refrações; e que
não há praticamente momento, episódio ou verso que não faça parte de uma
trama, que não dê a perceber sua presença, mesmo quando sua totalidade se nos
mostra mais como uma tentativa de emular a sabedoria divina do que como uma
esfera em que poderíamos repousar sem pedir nada mais. Nunca houve poema tão
repleto de guras, em sentido próprio ou em sentido de pre guração e profecia,
nunca houve outro em que a história real e a história atemporal do mito ou da
teologia estivessem tão intimamente fundidas. Dante é realmente o m do
mundo ou sua antecipação: historicamente, sua profecia não é daqui de baixo e os
símbolos da Cruz e da Águia já haviam decaído antes que a Comédia fosse
concluída. Mas Dante fazia o balanço, liquidava uma época e tinha necessidade de
muitos os.
A multiplicidade das coisas criadas lhe foi necessária porque nenhuma delas
pode alcançar a plena semelhança com Deus in una species, demonstrou-nos
Auerbach, acrescentando que essa multiplicidade não contrasta com a perfeição e
não é imobilidade, mas movimento. Ele também se perguntou se podemos ler
Dante acolhendo formas e premissas que nos são estranhas, tal como nos
curvamos diante das regras de um jogo, e se porventura há na Comédia a
possibilidade de se transformar sem perder seu caráter. “Parece-me”, conclui ele,
“que quase se atinge o limite da possibilidade do poema de se transformar quando
seus competentes intérpretes lósofos extraem dele as chamadas belezas poéticas...
mas deixam de lado seu sistema, sua doutrina, ou melhor, todo seu ‘objeto’ como
coisa indiferente, de certo modo necessitada de uma benévola justi cação”. Sem
dúvida, o limite é atingido pelos competentes lósofos (nem todos, por sorte),
mas não se demonstra inatingível para os que têm outra área de competência. De
fato, quem possui o senso de poesia não tarda a perceber que Dante nunca perde a
concretude, nem mesmo nos casos em que a construção se mostra menos coberta
pela suposta in orescência. Aliás, diríamos que seu virtuosismo técnico atinge o
máximo de suas possibilidades quando a representação plástica, visual, não é mais
su ciente. Veja-se o canto de Folquet de Marselha [Paraíso, ix, 67-142], em que o
tema musical da personagem é antecipado por um retorno de rimas ásperas e
difíceis, que depois será constante no canto. Nada há nesses efeitos que faça
pensar num jogo formal, na perícia de um parnasiano de sua época. E aqui
somente um surdo arriscaria distinguir entre arte e poesia. Dante não escreve
versos para se mostrar nos limites de um gênero literário ou de uma escola. A
escola é em parte uma invenção nossa, mesmo que efetivamente os poetas do dolce
stile zessem parte de uma comunidade ideal. Bonagiunta pode censurar o
primeiro Guido por se ter afastado do estilo de seus predecessores, mas o verso de
Dante não teria sido muito diferente, mesmo que tivesse tido outros mestres.
Dante tem uma voz inteiramente própria desde o início, mesmo quando se
vulgariza numa disputa conhecida ou se distrai em exercícios marginais ou aceita
escrever algum poema “por encomenda”, assim antecipando muitos problemas aos
futuros escoliastas; e não há dúvida de que, após as canções alegóricas do
Con ívio, o caminho do poeta está bem traçado, e não é o caminho de quem
procura fulgurações rapsódicas e líricas. E se nem todos aceitam a hipótese de que
as possibilidades de transformação do poema (ou seja, nossa capacidade de
interpretá-lo) estejam se esgotando, será preciso procurar outras hipóteses de
leitura que podem nos trazer um resultado satisfatório.
Enquanto o esforço dos alegoristas a qualquer custo marca passo — mas não
em toda parte —, outro modo de leitura ainda aceitável é o que nos foi proposto
por um poeta moderno, T.S. Eliot, em seu ensaio de 1929. O poeta conhecia
muito pouco a língua italiana quando começou a ler a Comédia. E considerou
fácil a iniciação. Ele pensava que a língua vulgar de Dante ainda era parente
próxima do latim medieval e, por isso, uma leitura do poema que se bene ciasse
de uma boa versão literal permitiria uma primeira e su ciente aproximação. Além
disso, em sua opinião, o procedimento alegórico cria a condição necessária para o
desenvolvimento daquela imaginação sensível, corpórea, que é própria de Dante.
Em outras palavras, o suprassensível precisa de um sentido literal extremamente
concreto. Assim, das guras ainda maciças do Inferno (aquelas guras que ao
relutante Goethe pareciam emanar um cheiro de estábulo) às guras mais
compostas do Purgatório e às luminosas e imateriais aparições do Paraíso, a
evidência das imagens pode mudar em suas cores e formas, mas sempre se mantém
acessível a nossos sentidos. Muda, quando muito, a complexidade do bordado. No
breve ensaio de Eliot, repetem-se palavras como carpet, tapestry. No Paraíso,
mesmo a abstração é visível e o conceito mais abstruso é inseparável de sua forma.
E se no tapete da terceira cantica a ênfase plástica é menor, isso não signi ca
menor concretude da imaginação, apenas revela a inesgotável complexidade e, ao
mesmo tempo, a inefabilidade dos signi cados. Nosso mundo não conhece mais
visões, mas o mundo de Dante é ainda o de um visionário. Dante cria os objetos
nomeando-os e suas sínteses são fulminantes. Disso decorre seu peculiar
classicismo, ligado a uma loso a criacionista e nalista. Pela fresta do sensível,
pela exaltação das formas, Dante escapa às travas do pensamento escolástico; essa
discussão, no entanto, deixaremos aos especialistas. Em todo caso, não é disso que
fala Eliot, e sim do pensamento religioso, ou melhor, da fé que a alegoria
subentende. É necessário que a belief, a fé do poeta, seja compartilhada por seu
leitor? Para Eliot, basta que ela seja compreendida em função da poesia que
exprime. Temos aqui uma suspensão do juízo que é própria da experiência estética
e constitui a típica maneira de certa cultura anglo-saxã em conceder alguma
autonomia à arte, mesmo negando as distinções entre o estético e o conceitual
propostas pela loso a idealista. Não menos interessante em Eliot é a recusa
daquela falsi cação tardia do mundo stilno istico já mencionado: o pré-
rafaelismo. Apesar disso, como veremos antes de concluir, mesmo nele, algumas
vezes a tentação stilno istica se fez sentir.
Não conheço todas as tentativas feitas para ir além da teoria eliotiana sobre a
imaginação sensível de Dante. Deixando de lado a segurança de quem considera
possível explicar a alegoria em todas as partes, mostram-se mais interessantes os
intérpretes que, vendo na Comédia uma imensa teia de correspondências,
procuram reconduzir todos, ou melhor, alguns os a seu centro. Tal
empreendimento só pode se realizar com a análise das metáforas de Dante e o
exame da congruência entre as situações e personagens e os determinados estados
ou camadas psicológico-morais e mesmo tópicos que o poeta deve atravessar. E,
como as metáforas não são tão frequentes em Dante como Eliot quer nos fazer
crer e, de todo modo, vão se escasseando gradualmente no poema, tem-se aí um
limite ou uma insu ciência da proposta de leitura eliotiana. Temos um estudo
analítico nesse sentido acima indicado, mas certamente não exaustivo, pois
demandaria o trabalho de uma geração de estudiosos, feito e apresentado por Irma
Brandeis em seu livro e Ladder of Vision [A escada da visão] (1961), que é o
que de mais sugestivo conheço sobre o tema da escada que leva a Deus e não à toa
se coloca sob a égide de são Boaventura. “Como é preciso subir a Escada de Jacó
antes de descê-la, coloquemos o primeiro degrau o mais baixo possível, pondo a
totalidade do mundo sensível diante de nós como se fosse um espelho pelo qual
podemos passar e chegar a Deus.” Escada, espelho ou escada espelhada? Confesso
minha incerteza porque nunca li são Boaventura, o qual sem dúvida fez, em
algum momento, parte da biblioteca de Dante. O que é claro é que, para a nova
intérprete, Dante é um aprendiz que precisa undergo an immense schooling [passar
por um imenso aprendizado], isto é, cumprir sua iniciação num imenso
patrimônio de cultura universal. E todo o poema, em certo sentido, é didático
porque o ensino, que se identi cava com a loso a, era considerado parte
integrante da obra poética. Só assim poderemos compreender, em Dante, partes
como o discurso de Estácio [Purgatório, xxv, 31-78] sobre as gerações humanas,
pois o ponto de vista de Dante não pode coincidir com o do leitor, ou melhor, o
leitor não pode pretender que o poeta percorra outro caminho com outros meios.
E eu diria que, de modo geral, o interesse do leitor, superada a fase em que ele
se contenta com uma leitura ingênua, em vez de diminuir, aumenta à medida que
o emaranhado dos símbolos se torna cada vez mais problemático. Isso não
signi ca que se deva descurar do sentido literal, que é primário em Dante. É
precisamente se baseando na letra que a srta. Brandeis nos faz sentir como é viva e
concreta a presença de Beatriz em todo o poema e como são estruturalmente
necessárias as citações do Cântico dos Cânticos, do Evangelho de São Mateus e do
sexto livro da Eneida para tornar possível e, acrescento, crível a aparição daquela
que, vestindo as três cores da fé, da esperança e da caridade, pode comover o poeta
não olvidado de seu amor terrestre e fazê-lo dizer a Virgílio: “Men che dramma/
di sangue m’è rimaso che non tremi:/ conosco i segni de l’antica amma”6
(Purgatório, xxx, 46-8).
Faz-se tarde e é hora de perguntar, não a meus ouvintes, mas sobretudo a mim
mesmo: o que signi ca a obra de Dante para um poeta de hoje? Há um
ensinamento seu, uma herança sua que possamos colher? Se considerarmos a
Comédia uma súmula e uma enciclopédia do saber, a tentação de repetir e emular
o prodígio será sempre irresistível; mas as condições do sucesso já não existem.
Dante encerrou a Idade Média; depois dele — queimada a Monarquia em
1329 em Bolonha e tendo os ventos mudado —, certamente não serão os Frezzi e
os Palmieri a prender nossa atenção. Os poemas cavaleirescos quinhentistas são
grandes obras de arte, mas sua enciclopédia certamente não chega às razões
últimas do homem. Posso também deixar Milton de lado, já neoclássico. No
único poema ainda legível que Byron nos deixou, o Don Juan, a ironia e o senso
de pastiche moldam oitavas de vaga inspiração “italiana”. Não esqueci o Fausto;
mas o esoterismo iluminista que o permeia (não sei em que medida) torna sua
personagem e seu pacto com o diabo uma narrativa que interessa mais ao
antropólogo e ao mitólogo do que ao frequentador da Idade Média dantesca.
Entre os românticos conhecedores de Dante certamente estão Shelley e Novalis,
mais músicos do que arquitetos. Chegando à nossa época, não pensaria no poema
de Däubler, Das Nordlicht, que é composto em tercetos mas faz a luz vir do norte,
e tampouco no Ulysses, que decalca temas da Odisseia no pano de fundo de uma
infernal Irlanda quase simbólica. Mas Joyce não olha Dante e não tem sequer sua
imensa simplicidade formal: sua leitura requer o amparo da erudição lológica e o
poeta não cria e sim destrói uma linguagem. Por outro lado, é evidente a tentativa
de dar início a um poema total da experiência histórica do homem nos mais de
cem Cantos de Pound, o qual, porém, não quis imitar as simetrias e a rigorosa
estrutura da Comédia. Os Cantos contêm todo o saber de um mundo em
desintegração, e neles o senso de um carpet predomina sobre o de uma construção,
de uma aproximação a um centro. Mas, se fosse verdade que o tema último do
poema dantesco era a chamada doação de Constantino, então poderíamos talvez
encontrar um paralelo no tema poundiano da usura. Em conclusão, num mundo
em que o enciclopedismo constitui não mais uma esfera, e sim um imenso
amálgama de noções de caráter provisório, já não parece mais possível repetir o
itinerário de Dante numa forma amplamente estruturada e com uma inesgotável
riqueza de signi cados evidentes e ocultos. Mesmo a ilusão de que uma
imaginação sensível possa dar vida de modo aceitável a uma tapeçaria pré-rafaelita
deve ser aceita com reservas. Para se convencer disso, releiam-se alguns versos da
uarta-Feira de Cinzas eliotiana:
* “Esposizione sopra Dante” [1965]. In: Il secondo mestiere. Prose 1920-1979, v. 1. Org. de Giorgio Zampa. 2.
ed. (Milão: Mondadori, 2006), pp. 2668-90. Tradução de Federico Carotti. (n. o.)
1. A comemoração do sétimo centenário de nascimento de Dante Alighieri, por ocasião da qual este texto foi
publicado pela primeira vez, sob o título “Dante ieri e oggi”. Atti del Congresso Internazionale di Studi
Danteschi, v. 2 (Florença: Sansoni, 1966). (Esta e as demais notas são do tradutor.)
2. O topo, o alto da escada, a que se refere Arnaut Daniel em Purgatório, xxvi, 146.
3. Forma como Dante se refere a essa obra (Vita nuo a, xxviii, 2).
4. “Donne-schermo”, ou seja, mulheres que serviriam de biombo para o ocultamento do amor idealizado de
Dante por Beatriz, recurso comumente utilizado na poesia cortês para não manchar a imagem intocável da
amada.
5. Purgatório, xxxiii, 43, “nel quale un cinquecento diece e cinque”: “No qual um quinhentos dez cinco”, dxv em
algarismos romanos (leia-se “dux” ou “duce”), possivelmente um líder enviado dos céus para libertar a
sociedade.
6. “ uase nada/ de sangue restou-me que não freme:/ conheço os sinais da antiga chama”.
7. “Lady, three white leopards sat under a juniper-tree/ In the cool of the day, having fed to satiety/ On my
legs my heart my liver and that which had been contained/ In the hollow round of my skull. And God said/
Shall these bones live? shall these/ Bones live? And that which had been contained/ In the bones (which
were already dry) said chirping:/ Because of the goodness of this Lady/ And because of her loveliness, and
because/ She honours the Virgin in meditation,/ We shine with brightness. […]” (in T.S. Eliot, Poemas. Org.,
trad. e posf. Caetano W. Galindo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018).
A vontade de Dante de ser poeta*
Pier Paolo Pasolini (1965)
* “La volontà di Dante a essere poeta” [1965]. In: Saggi sulla letteratura e sull’arte, Walter Siti e Silvia De
Laude (Orgs.), v. 1, 3. ed. (Milão: Mondadori, 2008), pp. 1376-90. Tradução de Federico Carotti. (n. o.)
dante alighieri nasceu em Florença, em 1265. Sua obra de juventude se destaca
pelas composições de aguçada expressão poética, cuja principal compilação
narrativa se dá com o livro da Vida no a. Por sua atuação política a partir da
última década do século xiii, chega ao máximo órgão administrativo municipal
(Priorato) de sua cidade. Mas, como consequência das divergências ideológicas
com a facção dos Guelfos Negros — aliada ao papa Bonifácio viii —, é
condenado ao exílio em 1302. Após esse marco se dá a escrita de seus tratados
Con ívio, Sobre a eloquência do vulgar e Monarquia. Também desse período seria
a escrita da Comédia. Por volta do ano de 1318 foi acolhido junto à corte de
Ravena, onde morreu em 1321.
pier paolo pasolini nasceu em Bolonha em 1922. Publicou seu primeiro livro
de poemas, Poesie a Casarsa, em 1942. Mudou-se para Roma em 1950, onde
continuou sua atividade de poeta, romancista e ensaísta. Em 1961, estreou como
cineasta com o lme Accattone. Foi um dos artistas e intelectuais italianos mais
relevantes do século xx, com muitos livros publicados no Brasil, como Escritos
corsários (trad. Maria Betânia Amoroso, Editora 34, 2020), Alì dos olhos azuis
(trad. Andréia Guerini et al., Berlendis & Vertecchia, 2006), entre outros. Morto
em 1975 na praia de Ostia, perto de Roma, seu assassinato até hoje não foi
esclarecido.
Copyright da tradução, apresentação e organização dos textos © 2021 by Emanuel França de Brito, Maurício
Santana Dias e Pedro Falleiros Heise
Copyright dos textos complementares © Pier Paolo Pasolini, “La volontà di Dante a essere poeta” [1965]. In:
Saggi sulla letteratura e sull’arte, Walter Siti e Silvia De Laude (Orgs.), v. 1, 3. ed. (Milão: Mondadori, 2008),
pp. 1376-90; © Eugenio Montale, “Esposizione sopra Dante” [1965]. In: Il secondo mestiere. Prose 1920-
1979, v. 1. Org. de Giorgio Zampa. 2. ed. (Milão: Mondadori, 2006), pp. 2668-90; © Dante Milano. “O
verso dantesco” [1979]. In: Obra reunida. Org. de Sérgio M. Gasteira (Rio de Janeiro: Academia Brasileira de
Letras, 2004), pp. 457-71.
Gra a atualizada segundo o Acordo Ortográ co da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil
em 2009.