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Revista Crítica de Ciências Sociais

68 | 2004

As mulheres e a Guerra Colonial

António Sousa Ribeiro e Margarida Calafate Ribeiro (dir.)

Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/rccs/839
DOI: 10.4000/rccs.839
ISSN: 2182-7435
Editora
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Edição impressa
Data de publição: 1 junho 2004
ISSN: 0254-1106

Refêrencia eletrónica
António Sousa Ribeiro e Margarida Calafate Ribeiro (dir.), Revista Crítica de Ciências
Sociais, 68 | 2004, « As mulheres e a Guerra Colonial » [Online], posto online no dia 01
agosto 2012, consultado o 19 setembro 2020. URL :
http://journals.openedition.org/rccs/839 ; DOI : https://doi.org/10.4000/rccs.839

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SUMÁRIO

Introdução

As mulheres e a Guerra Colonial


António Sousa Ribeiro e Margarida Calafate Ribeiro

Artigos

África no feminino: As mulheres portuguesas e a Guerra Colonial


Margarida Calafate Ribeiro

As mulheres e a Guerra Colonial: Um silêncio demasiado ruidoso


Manuela Cruzeiro

Amor em tempo de guerra: Guerra Colonial, a (in)comunicabilidade


(im)possível
Helena Neves

“Até ao fim do mundo”: Amor, rancor e guerra em Hélia Correia


Maria Manuel Lisboa

Incoincidências de autoras: Fragmentos de um discurso não só amoroso na


literatura da Guerra Colonial
Roberto Vecchi

Re-escrevendo a História: A Costa dos Murmúrios de Lídia Jorge e


L’Amour, la fantasia de Assia Djebar
Ana de Medeiros

Dois olhares e uma guerra


Laura Cavalcante Padilha

Dossier
Dois depoimentos sobre a presença e a participação femininas na Guerra
Colonial
Margarida Calafate Ribeiro

Recensões

Maria Manuel, Paula Rego’s Map of Memory. National and Sexual


Politics
Rui Bebiano

Mary Nash; Susanna Tavera (orgs.), Las mujeres y las guerras: el papel
de las mujeres en las guerras de la Edad Antígua a la Contemporánea
Tatiana Moura

The End of the World As We Know It


Teresa Cravo

Espaço Virtual
Título da página electrónica: International Committee of the Red Cross
(ICRC) – Women and War Section
Endereço: http://www.icrc.org/Web/eng/siteeng0.nsf/iwpList2/Focus:Women_and_War
Tatiana Moura

Título da página electrónica: Women Waging Peace


Endereço: http://www.womenwagingpeace.net
Tatiana Moura

Título da página electrónica: UNIFEM’s Portal on Women, Peace & Security


Endereço: http://www.womenwarpeace.org
Tatiana Moura
Introdução
As mulheres e a Guerra Colonial
António Sousa Ribeiro e Margarida Calafate Ribeiro

1 Os textos reunidos neste número da Revista Crítica de Ciências Sociais


tiveram a sua origem no colóquio “As Mulheres e a Guerra Colonial”,
organizado pelo Centro de Estudos Sociais em colaboração com o Centro de
Documentação 25 de Abril e realizado na Universidade de Coimbra, nos dias
22 e 23 de Maio de 2003, com a participação de especialistas nacionais e
estrangeiros de diversas áreas.
2 O terreno da guerra tem sido ao longo dos séculos um espaço
essencialmente masculino; no entanto, desde a Antiguidade que é referido o
papel das mulheres, habitualmente decidido pelos homens, incumbindo-as
da eterna função de apoiar: apoiar a guerra, gerando guerreiros, apoiar,
como mães dos guerreiros, naquela que é porventura a relação mais sentida
e a imagem predominante da relação da mulher com a guerra, apoiar os
maridos, irmãos e todos os homens que são enviados para a guerra, apoiar
na assistência aos feridos e desprotegidos, apoiar no regresso e na
reconstrução do pós-guerra, apoiar no terreno, de forma nunca assumida e
contabilizada como um bem de consumo especialmente apropriado para
satisfazer os apetites sexuais dos guerreiros e, finalmente, ser vítima da
violação dos guerreiros, situação ainda hoje pouco olhada, ou olhada com
complacência, como se a violência sexual fosse intrínseca à cultura militar.
Ser vítima, mas essencialmente apoiar, assistir, estar presente, mas na
sombra, lugar consentido e esperado na ordem que impõe a guerra, cuja
filosofia se desenha na relação dialéctica entre uma ordem política
patriarcal que determina a guerra e a ordem militar (baseada nessa ordem
patriarcal) que domina e executa a guerra.
3 Com a organização deste colóquio, o Centro de Estudos Sociais e o Centro de
Documentação 25 Abril pretenderam fazer uma primeira reflexão sobre a
temática da Guerra Colonial de uma perspectiva feminina que focalizasse os
vários aspectos históricos, sociais e políticos da questão, privilegiando, no
entanto, a representação literária que foi pioneira na abordagem e
tratamento multifacetado do tema. O lastro autobiográfico que esta
literatura regista ao colocar a ênfase narrativa na dimensão vivencial de um
sujeito individual, cuja experiência e testemunho o convertem em sujeito
histórico e em narrador da história, conferem a esta literatura um valor não
apenas literário. Como é sabido, desde a Primeira Grande Guerra Mundial a
literatura de guerra é também uma literatura contra o esquecimento,
exprimindo‑se como um excesso de memória individual contra uma falha da
memória colectiva. E é essa tensão dialéctica em que é gerada que lhe
confere uma função histórica, social, política e cultural que não podemos
ignorar numa reflexão interdisciplinar sobre a guerra.
4 Em “África no Feminino: as mulheres portuguesas e a Guerra Colonial”,
Margarida Calafate Ribeiro analisa e interpreta o papel de apoio reservado
às mulheres no contexto da guerra, de um ponto de vista público e privado,
concentrando a atenção naquelas que protagonizaram uma situação,
porventura inédita, nas guerras coloniais do século XX: as mulheres
portuguesas que acompanharam os maridos em missão militar em África,
durante o período da Guerra Colonial. Manuela Cruzeiro em “As mulheres e
a Guerra Colonial – um silêncio demasiado ruidoso”, denuncia criticamente
os vários silêncios com que a sociedade portuguesa cobriu a maior tragédia
da sua contemporaneidade, a Guerra Colonial, dedicando uma especial
atenção à representação feminina destes silêncios. Nesta linha, Helena
Neves, através da análise de uma série de entrevistas, vocaliza alguns dos
silêncios evocados por Manuela Cruzeiro, começando assim a levantar o véu
sobre as vivências da intersujectividade, ou seja, sobre os afectos entre as
mulheres e os homens em tempo de guerra.
5 Com “‘Até ao fim do mundo’: Amor, rancor e guerra em Hélia Correia”,
Maria Manuel Lisboa, inaugura a série de ensaios dedicados à abordagem
literária do tema das mulheres e a guerra. A partir da peça de teatro de
Hélia Correia, O rancor, Maria Manuel Lisboa aborda o entendimento
clássico e moderno do papel da mulher no contexto da guerra,
particularmente a questão da sexualidade feminina e da paixão, enquanto
forças contrapostas ao instinto belicoso masculino. Por sua vez, Roberto
Vecchi em “Incoincidências de autoras: fragmentos de um discurso não só
amoroso na literatura da Guerra Colonial”, analisa a experiência traumática
da guerra e a sua representação pelo olhar feminino, colocando-o numa
margem periférica, e elegendo-o, por isso, como um “olhar testemunhal” por
excelência, lançando assim a hipótese de que, talvez por isso, se inscreva
neste olhar, deslocado e errante, a força questionadora de uma nação que
detona por dentro a imagem “lógica” e pseudo‑holística das narrações
hegemónicas da declamada “Nação atlântica” portuguesa.
6 Ana de Medeiros oferece-nos a dimensão comparativa de dois olhares
femininos ficcionais sobre duas guerras coloniais europeias em África: a
Guerra Colonial portuguesa, através do olhar feminino português, lançado
pela personagem principal de A Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge, e o
olhar ficcional da menina argelina que assiste à guerra da Argélia em
L’Amour, la fantasia, de Assia Djebar. Realçando a qualidade subversiva
do olhar feminino presente nos dois textos em questão, a ensaísta destaca a
afirmação dos sujeitos femininos nas duas histórias, inscrevendo-as na
História. Perseguindo a dimensão comparativa de olhares sobre uma guerra,
Laura Cavalcante Padilha leva-nos ao encontro da dimensão africana da
guerra com o ensaio “Dois olhares e uma guerra”. A partir da leitura das
obras poéticas Sangue negro, de Noémia de Sousa, e de É nosso o solo
sagrado da terra, de Alda Espírito Santo, Laura Cavalcante Padilha
apresenta dois olhares africanos sobre a guerra, em perspectiva
simultaneamente étnica e de diferença sexual. Para além disso, no seu texto
discute-se o duplo gesto de nomeação do conflito, a mudança, no universo
discursivo, do sistema de referências imposto pelo colonialismo e,
consequentemente, a encenação da interioridade de novos sujeitos históricos
femininos, membros plenos das nações independentes saídas da luta.
7 Finalmente, e para assinalar as duas formas portuguesas de percepcionar a
África vivida in loco nos tempos da Guerra Colonial nas suas dimensões
femininas de participação (através da enfermeiras pára-quedistas) e
presença (através das mulheres de militares que se encontravam em África
em missão militar), propomos a leitura de dois depoimentos recolhidos por
Margarida Calafate Ribeiro, no âmbito do seu trabalho de investigação sobre
as mulheres portuguesas e a Guerra Colonial. Um de Elsa Adler Gomes da
Costa, que acompanhou o seu marido em missão militar em África; um
outro, de Ivone Reis, enfermeira pára-quedista com uma vastíssima
experiência de África nas três frentes de guerra, Angola, Moçambique e
Guiné-Bissau.
8 Para além de registar este importante passo das mulheres portuguesas,
pretendemos também, com estes depoimentos, transmitir aos nossos leitores
a palavra vocalizada que caracterizou o colóquio, através da participação
activa do público numeroso que ao longo dos dias nos acompanhou. Neste
espaço de reflexão, a presença de ex-combatentes com as suas mulheres, de
membros da Associação de Deficientes das Forças Armadas e da Associação
APOIAR, de uma representante do Movimento Democrático das Mulheres e
de mulheres que viveram a Guerra Colonial, acompanhando os seus maridos
ou familiares cá ou lá, acrescentou ao colóquio uma nota vivencial
absolutamente única que não poderíamos deixar de referir. Sob a forma do
testemunho ou do contributo para a discussão, destacamos entre outras
intervenções: o testemunho de um adulto, adolescente ao tempo da Guerra
Colonial, e das suas percepções de então em relação às novidades que
chegavam à aldeia em que vivia, os rapazes que partiam e voltavam e os que
não voltavam, a ansiedade das mulheres, a importância do correio e o
crescimento da sua consciência política em relação à realidade portuguesa;
o testemunho do drama humano e familiar dos homens com stress pós-
traumático com o relato da maneira como as mulheres os acompanharam,
os divórcios, a violência, a incapacidade de amar; o testemunho dos
deficientes das Forças Armadas e o acompanhamento que as suas mulheres
lhes deram, quando foram evacuados, ao longo dos sucessivos tratamentos e
internamentos e ao longo de toda a vida; o testemunho de uma mulher do
Movimento Democrático das Mulheres que veio dar voz às corajosas
mulheres da resistência ao fascismo que, em trabalho político junto de
outras mulheres e em manifestações, alertaram para a imoralidade da
Guerra Colonial; e, finalmente, assistimos ao testemunho de mulheres de
militares de carreira ou de milicianos que esperaram por eles em Portugal e
de outras que atravessaram com eles essa experiência em África. No final de
um congresso sobre “As Mulheres e a Guerra Colonial”, o relato, por vezes
dramático, das experiências vividas há trinta anos, mas, muitas vezes,
conjugadas ainda no tempo presente, foi uma experiência que nenhum dos
presentes poderá, daqui em diante, ignorar

AUTORES
ANTÓNIO SOUSA RIBEIRO
Professor Associado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra na área de estudos
germanísticos e investigador do Centro de Estudos Sociais. Os seus interesses de
investigação incluem: literaturas e culturas de expressão alemã, temas de literatura
comparada, estudos pós-coloniais, estudos de tradução, estudos sobre o Modernismo e
estudos sobre a violência.
asr@ces.uc.pt

MARGARIDA CALAFATE RIBEIRO

É investigadora associada do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e


Visiting Research Associate do King’s College, Universidade de Londres. Doutorada em
Literatura Portuguesa pelo King’s College, foi leitora de português em França e no Reino
Unido e professora convidada na Holanda e Brasil. As suas publicações mais recentes
incluem: “Empire, Colonial Wars and Post-Colonialism in the Portuguese Contemporary
Imagination”, Portuguese Studies, 17, 2002, e Fantasmas e fantasias imperiais no imaginário
português contemporâneo, Porto: Campo das Letras, 2003 (organização com Ana Paula
Ferreira). No prelo: Uma história de regressos: Império, Guerra Colonial pós‑colonialismo, Porto:
Afrontamento, 2004.
margaridacr@mail.telepac.pt
Artigos
África no feminino: As mulheres
portuguesas e a Guerra Colonial 1
Africa in the feminine: Portuguese women and the Colonial War
L’Afrique au féminin : les femmes portugaises et la Guerre Coloniale

Margarida Calafate Ribeiro

1 Talvez só rivalizando com o amor ou tantas vezes magnificamente


combinada com ele, a guerra tem sido, ao longo da história, tema de
inspiração para os grandes escritores de todos os tempos. Cronistas
gregos, romanos e hebreus, épicos e dramaturgos, foram
repetidamente inspirados pela guerra e pelos ideais a ela ligados
para escreverem aquelas que haviam de ser algumas das grandes
obras de referência da civilização judaico-cristã. Também no grande
corpus de literatura europeia de sagas medievais e épicas a guerra foi
sendo um tema central, ligando-se a ela ideais de identidade e
grandeza nacionais, de heroicidade e de um imaginário religioso
ligado à afirmação do ideal de Cruzada de conquista do mundo para
Cristo. Com a Renascença e o alargamento do mundo que os
Descobrimentos trouxeram, os movimentos de conquista das novas
terras foram acentuando os ideais político-religiosos já amplamente
desenhados na Idade Média. Camões, o grande poeta do amor, mas
também “o grande cultor de batalhas” 2 , narra em Os Lusíadas a
acção de conquista dos navegantes portugueses, integrando-a num
movimento mundial de Cruzada e segundo um modelo ficcional que
realça a vertente heróica dos factos que refere (Bebiano, 1993: 75) e o
valor profético da missão. Recordemos que Os Lusíadas são dedicados
ao jovem rei D. Sebastião, amante de Deus e das armas e que, numa
tentativa já então anacrónica de purificação e glória do seu reino,
lança o país na malograda jornada de Alcácer-Quibir, onde Portugal
perderia o seu rei, a sua armada, a sua nobreza, a sua posição
mundial e em breve a sua independência. 3 Havia aqui falhado a
harmonia da conquista camoniana em que Marte se tornava amante
de Vénus, para pelo amor regenerar o homem da guerra, como
aconteceu na Ilha dos Amores, ou, no contexto da viagem marítima,
libertar os homens dos perigos do mar. Recordemos no Canto VI de
Os Lusíadas, o episódio dos ventos fortes que os navegantes
desesperadamente enfrentavam até que Vénus enviou as ninfas para
pelo amor seduzirem os ventos e acalmá-los, libertando assim os
navegantes; recordemos o episódio da Ilha dos Amores (Canto IX),
símbolo da recompensa dos guerreiros pelos perigos passados e de
regeneração da violência humana que a guerra e a conquista
importam pela via do amor 4 ou ainda a doce Bárbara “cativa” de
quem muitos foram ficando cativos.
2 Mas, de acordo com os historiadores, só com o advento do
Romantismo, em que se afirma a valorização do “eu” e da sua
perspectiva poética ou narrativa enquanto sujeito experienciador da
história e do seu tempo, é que genericamente podemos considerar a
existência de uma literatura de guerra no sentido moderno.
Catherine Savage Brosman, no seu estudo sobre as funções de uma
literatura de guerra considera que o que distingue a expressão
literária que tem por objecto a guerra, pelo menos nos tempos
modernos, é precisamente a ênfase narrativa colocada na dimensão
vivencial de um sujeito individual, cuja experiência e testemunho
literário o convertem em sujeito histórico (Brosman, 1992: 85). Mas
foi sobretudo após a experiência dilacerante da Primeira Guerra
Mundial que na narração se verificou o deslocamento da focalização
de um colectivo ou individual, mormente heróico e moralizante pela
sua agressividade guerreira, para um eu em ruptura espacial e
temporal pela experiência do conflito, o que acusava a transferência
de um discurso de celebração nacional para um campo semântico de
interrogações, responsabilidades, valores morais, sentimentos e
identidades individuais. Como claramente mostra a célebre
“Declaration of Defiance” do poeta inglês Siegfried Sassoon, não era
só a imensidão do poderio tecnológico que invadia e desclassificava o
individual nesta guerra, que aqui era posto em causa, mas todo um
conjunto de valores que com esta guerra se desmoronava. Era a
denúncia em letra de forma do que o malogrado poeta Wilfred Owen
designou como “The old Lie: Dulce et decorum est/Pro patria mori”
(Owen, 1983: 140) e que é, na verdade, a “velha mentira” de todas as
guerras. Com estes textos, inscrevia‑se para sempre na literatura
ocidental o sofrimento dos soldados e a sua coragem, os seus medos e
a sua desorientação num mundo desfeito pelo absurdo da guerra. E,
de facto, basta pensarmos na poesia destes poetas ingleses da
Primeira Guerra, no estudo de John Keegan, The Face of the Battle,
onde o desejo de combater é denunciado como um fenómeno incerto
para muitos homens, no corpus poético analisado por Paul Fussell em
The Great War and Modern Memory (Fussell, 1975), ou ainda nos textos
dos franceses Henri Barbusse, Roland Dorgelès ou no nosso Jaime
Cortesão, em Memórias da Grande Guerra (1919) 5 para perceber que
a memória da experiência bélica, o valor político a ela inerente e a
sua expressão literária apontavam para a mudança.
3 A crise de masculinidade que esta onda literária, historiográfica e
ensaística denunciava, bem como o discurso da psiquiatria relativo
ao reconhecimento da neurose de guerra, abriram caminho para que
se começasse a pensar a guerra como um fenómeno não
exclusivamente masculino, ou melhor, para se começar a pensar que
algumas representações tradicionais de feminilidade 6 ajudariam a
compreender a experiência masculina da guerra, convertendo assim
este fenómeno em algo em que o estudo das posições e percepções
femininas se revelaria enriquecedor e, eventualmente, esclarecedor.
Mais tarde, já nos anos 70, uma segunda vaga de historiadoras e
feministas trouxe à discussão se as Grandes Guerras teriam sido
apenas um empreendimento masculino (Higonnet et al., 1987: 3).
Olhando para as periferias destas guerras, essas investigadoras
encontraram as mulheres: em casa, na chamada “homefront”, nas
fábricas de munições, nas enfermarias dos hospitais militares, na
resistência, nos serviços militares, nos locais de prostituição, vítimas
de violações, e ainda, na propaganda institucional, ora estimulando
os homens a marchar, ora apontadas como o símbolo a defender
pelos homens na frente de guerra. E encontraram-nas também, e
sobretudo, no pós-guerra, em que o próprio discurso de militarismo
que alimenta a guerra, com a sua marca de masculinidade,
protectora das “mulheres e crianças”, como se dizia na propaganda,
é substituído por um discurso integrador que contempla a relação
entre homem e mulher como a base da sociedade de paz que se quer
construir. É de facto nas mulheres que reside a garantia do regresso
a uma certa normalidade, ainda que com as lutas e os custos
inerentes à libertação, em termos sociais e laborais, que a situação de
guerra lhes trouxe, com os homens fora dos seus habituais locais de
trabalho. Por isso, o discurso do pós-guerra, ao mesmo tempo que
reafirma as relações pré‑existentes entre os dois sexos, num apelo ao
tempo anterior à guerra objectivamente fantasiado num idealismo
melancólico e retórico, reestrutura estas mesmas relações com vista
à paz social, o que implica sempre, em termos femininos, um recuo
relativamente às posições adquiridas durante a guerra, pois o pós-
guerra não traz por si só a alteração das relações patriarcais que
caracterizam as sociedades, levando à efectiva transformação. 7 No
entanto, nunca se volta ao ponto de partida. Ao deslocar a mulher
das margens silenciosas onde se colocava para o centro da análise, ou
melhor, para uma posição analítica da guerra como um fenómeno
masculino e feminino, a história das Grandes Guerras ganhou uma
dimensão e uma complexidade que obrigou a uma reescrita da
história, o que simultaneamente contribuiu para que as histórias de
muitas outras guerras que então se seguiram começassem a produzir
um outro olhar, dentro dos vários olhares sobre as guerras.
4 Na nossa história muito recente, o papel da mulher na guerra tem
vindo a ser alvo de discussão não só pela sua entrada no campo de
batalha, difundida para uma audiência global, como aconteceu na
Guerra do Golfo de 1991, como também enquanto primeira vítima e
primeiro alvo de massacres, como aconteceu no Ruanda, Burundi,
Argélia e na antiga Jugoslávia, também divulgado à escala planetária
(Goldstein, 2001: 1-2). Contudo, talvez este seja ainda um dos campos
privilegiados para a afirmação do masculinismo (se me é permitido o
neologismo) como ideologia de dominação e de superioridade e do
feminismo como ideologia de promoção da igualdade. Esta é,
grosseiramente, a base da discussão que reivindica para a mulher um
lugar nas Forças Armadas e que simultaneamente a rejeita. 8
5 Na nossa Guerra Colonial não foi esta a lógica que esteve na base dos
papéis dos dois sexos na guerra. Clássica, neste sentido, a nossa
guerra foi ainda terreno de afirmação dos ideais masculinos de
guerra com a sua componente de crença na defesa da integridade da
pátria e nos ideais guerreiros como parte essencial da formação da
masculinidade e mesmo de uma espécie de teste de masculinidade
com a “ida à tropa”, vulgarizada na expressão popular: “a tropa fará
de ti um homem”. Desta forma, o papel masculino dependia dos
papéis femininos no sistema de guerra, que incluíam as situações de
esposas, namoradas, irmãs e, principalmente de mães,
simbolicamente ligadas à imagem de casa (Vakil, 1999: 129) e
historicamente ligadas a uma lógica de paz, 9 na conhecida imagem
da mater dolorosa, transposta por Fernando Pessoa para o menino de
sua mãe que jaz morto e arrefece e que, nos anos da Guerra Colonial,
inspirou a escultora Clara Menéres. Assim, a guerra era a destruição
das tarefas do feminino tradicionalmente ligadas à maternidade e à
manutenção do lar, mas era também e, paradoxalmente, feita para
sua defesa, na comum asserção que permeia o discurso tradicional de
todas as guerras e que as justifica pela defesa das “mulheres e
crianças”, ou seja, do status quo que elas teoricamente
representariam. Mas são delas – mães, irmãs, mulheres, namoradas –
os rostos crispados pela dor nas despedidas do cais do embarque,
são delas os rostos de alegria e alívio no cais da chegada, são delas as
horas de aflição com os filhos na mira de uma possível viagem para
África para reencontrar o marido, são delas as rezas e as promessas
nas peregrinações ao Santuário de Fátima, são delas os rostos
absortos e magoados nas cerimónias das comemorações do dia de
Portugal, onde lhes era entregue uma condecoração a título
póstumo, atribuída àqueles que elas esperavam, e não chegaram.
Partida de um contingente de tropas para Moçambique a bordo do paquete “Pátria”,
10/10/1963
Fonte: O Século, Arquivo de Fotografia de Lisboa – CPF/MC; SNI/RP/03-6606/54146
Regresso de militares do Ultramar, 6/1962
Fonte: O Século, Arquivo de Fotografia de Lisboa – CPF/MC; SNI/RP/03-6606/54146

Condecoração de uma viúva, cujo marido foi galardoado a título póstumo


Fonte: Revista Flama, Arquivo de Fotografia de Lisboa – CPF/MC; SNI/RP/03-
6506/14418
A mãe do 1.o Cabo António Vitor Praxedes com a Cruz de Guerra da 4.a classe,
10/6/1967
Fonte: O Século, Arquivo de Fotografia de Lisboa – CPF/MC; SEC/AG/01-176/1558AS

6 Na sociedade portuguesa, as ocupações da mulher directamente


relacionadas com a guerra ligavam-se a tarefas de apoio. Desde a
Primeira Guerra que elas se organizavam em associações, cuja função
poderia resumir‑se numa palavra – “assistir”. “Assistir, educar e
angariar fundos”, mas também “assistir ao embarque dos soldados,
assistir aos feridos, assistir as famílias dos mobilizados, assistir na
medida do possível aos que ficavam dramaticamente presos nas
fronteiras da Alemanha” (apud Viegas, 1989: 81), como fizeram as
mulheres portuguesas ligadas à “Cruzada da Mulher Portuguesa” e à
“Assistência das Portuguesas às Vítimas de Guerra”, ambas surgidas
na sequência da proclamação do estado de guerra em Março de 1916.
10 Foi destas últimas a criação das “Madrinhas de Guerra”, em

Abril de 1917, que, quarenta e tal anos mais tarde, foram populares
junto dos soldados na Guerra Colonial. A secção feminina da Cruz
Vermelha, presidida por Amélia Pitta e Cunha, e o Movimento
Nacional Feminino, liderado por Cecília Supico Pinto e criado na
sequência do rebentamento da guerra em Angola, em 1961, têm
nestas instituções da Primeira República as suas raízes de base de
apoio aos militares, embora se distanciem da ideologia feminista que
animava as mulheres da “Cruzada Portuguesa”. Mesmo a ida de
mulheres para o espaço de guerra, como aconteceu com as
enfermeiras que acompanharam Corpo Expedicionário Português
(CEP) na Primeira Guerra Mundial, ou o caso das enfermeiras
pára‑quedistas da Força Aérea, 11 na Guerra Colonial, obedecia a
esta lógica de apoio reservada às mulheres. No entanto, estas são as
primeiras mulheres portuguesas a ir à frente de combate no ingrato
trabalho de assistir e recolher feridos, e as suas experiências,
algumas com mais de dez anos de África, nas três frentes de batalha,
constituem testemunhos importantíssimos e únicos sobre a frente de
combate, as relações entre homens e mulheres nas Forças Armadas e
a sua relação com as populações.
7 Mas esta era, como referi, uma situação de excepção. A manutenção
do mito de que a guerra é tarefa de homens possibilitava uma certa
estabilidade social, cara ao regime que promovia a guerra. O
estímulo que era esperado das mulheres era o de apoiar a guerra e,
com ela, a ida dos homens, maridos ou filhos, para África e o seu
bem‑estar lá. No entanto, em Portugal não assistimos a campanhas
de propaganda como vimos, por exemplo em Inglaterra, na Segunda
Guerra Mundial. Oficialmente, não estávamos em guerra, mas nas
publicações do Movimento Nacional Feminino, Presença e Guerrilha,
12 eram feitos apelos às mães portuguesas para que sacrificassem

os seus filhos “pela Nação” (apud Pimentel, 1996: 639) e nos jornais
da época eram aplaudidas as mulheres que tinham muitos filhos e
que os “davam” para a defesa do Ultramar português, numa atitude
que relembra a propaganda de guerra tradicional que liga
maternidade, nacionalismo e militarismo. Contudo, um movimento
porventura inédito nesta guerra e pouco documentado nestes
embarques foi o da ida de mulheres acompanhando os maridos em
missão militar em África. Aproximando assim a chamada “frente
interna” da frente de guerra, proporcionou-se uma certa
estabilidade social dentro de um quadro de inevitável mudança.
Paradoxalmente, criaram-se também, a prazo, as condições para a
mudança, na medida em que essas mulheres seriam também
testemunhas e, de alguma forma, cúmplices de um mundo de guerra,
aparentemente reservado aos homens.
8 Lídia Jorge, escritora que registou ficcionalmente esta experiência
feminina da Guerra Colonial em A Costa dos Murmúrios, refere numa
entrevista que, quando chegou à Beira, em Moçambique, um militar
fez a seguinte observação: “Só os Cartagineses levavam as mulheres
para a guerra – e agora, os Portugueses.” (Pedrosa, 1988: 10). A
questão imediata seria: por que razão esta situação de excepção das
mulheres portuguesas revelada na provocadora afirmação do
militar?
9 Após o 25 de Abril de 1974, falou-se das mulheres que partiram com
os maridos na ficção escrita por mulheres que tem por pano de
fundo a Guerra Colonial e na crítica que subsequentemente tem
vindo a ler estes livros. Mas antes do 25 de Abril, apenas nas
publicações do Movimento Nacional Feminino, Presença e Guerrilha,
se proclamava a “missão muito certa” das mulheres-esposas que
acompanhavam os maridos vivendo “dois anos em África” com a
missão de “valorizar a mulher negra” (apud Pimentel, 1996: 639).
10 Cabe perguntar: seria esta ida das mulheres para África, em
acompanhamento dos seus maridos na guerra, parte de uma política
traçada nos termos tradicionais, corporativos e ideológicos do
regime ao combinar a missão familiar (acompanhar o marido, na
retórica da política de família do Estado Novo) com a missão
civilizadora (“valorizar a mulher negra”)? Qual seria de facto o papel
destas mulheres? Pensar-se-ia em colonizar com pessoas que, por
definição, estavam numa situação transitória como são as comissões
de serviço em tempo de guerra?
11 Relembre-se que, ao mesmo tempo que decorria a Guerra Colonial, o
regime estimulava a ida de famílias para colonizar as terras
africanas, oferecendo passagens, concedendo empréstimos para
explorações agrícolas através das Juntas Provinciais de Povoamento
e outras facilidades.

Partida de uma família de colonos para Angola a bordo do paquete “Vera Cruz”
Fonte: O Século, Arquivo de Fotografia de Lisboa – CPF/MC; SEC/AG/01-170/1142AR

12 Nos jornais da época e na revista Permanência – publicada pela


Agência Geral do Ultramar, dedicada ao “Portugal além-mar” e cujo
nome não nos deixa dúvidas sobre as intenções da publicação – é
dada notícia deste movimento, estimulado pelo regime através de
uma legislação que apontava o Ultramar como o destino de
emigração dos portugueses europeus, assim tentando contrariar o
fluxo migratório para a Europa, que ia minando a opção ultramarina.
Por seu turno, nas revistas do Movimento Nacional Feminino, são
vários os textos que defendem, na linha do regime, a presença
portuguesa em África, fazendo apelo a um acompanhamento da
acção militar por uma política rápida e sólida de colonização. 13 E
nesta altura não se estava seguramente a falar de uma colonização
masculina, mas antes de famílias de portugueses europeus pois,
como dizia Maria Archer, referindo-se à falha da colonização
portuguesa em África, “uma civilização só se fixa e define através da
mulher” (Archer, 1963: 166). Ora, se na ordem estado-novista “a
família é a fonte de conservação e desenvolvimento da raça” e o
“fundamento de toda a ordem política” (apud Cova e Pinto, 1997: 73)
e se se ia para a guerra defender a ordem política da nação, ou seja,
evitar a fragmentação do corpo/família nacional de que a guerra
movida pelos africanos era expressão e desejo, então era natural que
se fosse para a guerra em família, a célula unida de controlo moral e
político, 14 contra os “inimigos do exterior”, capaz de regenerar o
conjunto do corpo nacional. Que melhor maneira poderia haver para
impor/proteger/regenerar (a partir da estrutura mínima da nação
portuguesa, a “sagrada família portuguesa”) a ordem vigente?
13 É certo que esta ida das mulheres para África proporcionou uma
maior estabilidade aos portugueses europeus deslocados na guerra,
que assim partilhavam com as famílias o dia‑a‑dia, e deu a uma
classe jovem a vivência de África, não como um lugar distante onde
se vai para a guerra, mas como um lugar onde se vive em família,
nascem filhos, se formam crianças portuguesas, se convive com os
amigos, se comemoram os dias nacionais e onde brotavam
oportunidades de trabalho que não havia na metrópole, pois a
guerra, para o bem ou para o mal, também acelera a economia,
animando assim as pessoas a ir ficando ou, por outras palavras, a ir
colonizando/emigrando/fazendo a guerra, como um gesto
inconfessado enquanto tal.

Aspectos da vida familiar, Moçambique, 1968


Fonte: Rosa Nogueira
Convívio com amigos, Moçambique, 1969
Fonte: Rosa Nogueira

14 No entanto, a análise da legislação da época relativa aos apoios por


parte do Estado à deslocação e manutenção de militares não nos leva
a concluir que houvesse uma política previamente pensada, ainda
que houvesse certas facilidades e um estímulo de difícil
interpretação. Houve antes uma política de apoios que era
consequência da longevidade da guerra. Assim, a lei de transportes
que vigorava à data do início da guerra em Angola datava de 1931,
referindo-se, portanto, a um tempo de paz. Seguiram‑se vários
despachos, que adaptavam esta lei às condições de guerra,
estabelecendo as normas para a execução de transportes, e logo em
1962 é referido o transporte de famílias de militares. Mais tarde, em
1964, normalizava-se o transporte das famílias indicando os
requerimentos a fazer pelos militares para obter estas viagens, a
hierarquização de competências e responsabilidades relativamente
ao transporte, as condições impostas e o processamento de
embarque, tornando assim mais assumido o exercício deste direito
por parte dos militares. No entanto, só em Junho de 1969, quando
eram já visíveis os sinais de cansaço da guerra e se tornava
necessário aliciar os militares em permanentes comissões de serviço
em África, é que, através do decreto-lei 49107 (artigo 21.º), se
estabelecem as várias situações relativas às famílias de militares no
relativo a direitos e deveres. De acordo com o documento, todo o
pessoal nomeado por oferecimento ou por escolha, além dos direitos
em vigor, tinha também direito a: transporte da família por conta do
Estado para a “província ultramarina” e de regresso para a nova
colocação do militar; tratamento médico por conta do Estado;
assistência médica e medicamentosa para as famílias durante o
período da comissão; alojamento por conta do Estado na localidade
da guarnição ou subsídio de renda de casa. Aqueles que tivessem sido
nomeados por imposição poderiam gozar dos mesmo direitos, caso já
tivessem efectuado uma comissão de serviço, por imposição ou por
escolha, posterior a Janeiro de 1961. Em 19 de Agosto de 1969, nas
normas executoras do referido decreto-lei, eram definidas outras
directivas importantes, nomeadamente a exigência de que a família
do militar a viajar por conta do Estado permanecesse em território
ultramarino por um tempo minímo de doze meses, salvo casos
especiais. Consultando o arquivo do Depósito Geral de Adidos, a
instituição militar que tratava da logística de todo o tipo de viagens
entre Portugal e os vários territórios ultramarinos, encontramos
inúmeros processos de militares solicitando viagens por conta do
Estado para as suas famílias, listas de famílias a embarcar e que
embarcaram, correspondência entre o serviço do Depósito Geral de
Adidos e as famílias dos militares.
15 Observando as listas de famílias a embarcar, verificamos que eram
poucas as mulheres que viajavam sozinhas. A grande maioria viajava
com filhos pequenos: são vários os casos de crianças de meses (uma
de dezanove dias) e raramente ultrapassam os dez anos, indicando-
nos assim que se tratava de jovens casais. As origens geográficas
destas famílias cobrem todo o território português continental e
ilhas adjacentes. As origens sociais, que inferimos pelo posto do
militar, são também as mais diversas, o que determinava uma certa
hierarquização relativamente ao meio para viajar. Assim, por
exemplo, as mulheres de oficiais viajavam de barco em 1.ª classe ou
de avião na chamada posição “excedentária”, sobretudo a partir de
1967, altura em que a Força Aérea começa a assegurar grande parte
dos transportes, enquanto, por exemplo, as mulheres de sargentos
viajavam de barco em 2.ª classe e, no caso de quererem viajar de
avião, tinham de pagar a diferença. Os destinos destas famílias são os
esperados: Bissau, na Guiné; Luanda, Carmona, Luso, Sanza Pombo,
entre outros, em Angola; Lourenço Marques, Beira, Quelimane,
Macimboa da Praia, Nampula, em Moçambique. A maioria das
mulheres e famílias ficava nas cidades, mas houve algumas que
viveram no mato, em casas próprias em pequenas povoações
adstritas aos quartéis ou na própria área dos quartéis, dependendo
da autorização dos comandantes. Quanto às condições de instalação,
as situações são extremamente diversas e resultam mais de
adaptações ao que já existia e outros ajustes e conveniências do que
de um planeamento previamente delineado.
16 Um outro aspecto importante destas listas é a indicação de um
elevado número de desistências ou a indicação de “viajou por conta
própria”, tornando assim impossível seguir as famílias até aos seus
destinos. Os motivos das desistências, explicados na correspondência
enviada pelas interessadas ao comandante da Direcção Geral de
Adidos prendem-se com vários aspectos, entre os quais: à data da
viagem o militar encontrava-se numa zona onde já não era possível
estar com a família; a família tinha sido avisada da data de embarque
muito em cima da hora, sem possibilidade sequer de cumprir o prazo
de dez dias para tomar as vacinas necessárias antes do embarque; o
ano escolar tinha-se iniciado e os filhos estavam a estudar, não sendo
portanto conveniente a sua deslocação; nascimento de um bebé, as
doenças das crianças, etc. De acordo com a legislação, a família
deveria ser avisada pelo menos com trinta dias de antecedência, mas
isso raramente acontecia, como podemos inferir da correspondência.
Também na correspondência que solicita informações sobre a
viagem são frequentemente evocados motivos domésticos ou ligados
à educação dos filhos para solicitar as viagens em determinados
períodos. No entanto, encontramos também algumas mulheres que
eram professoras e solicitavam uma ida antes do início do período
escolar no Ultramar, deixando-nos assim antever que iam trabalhar.
Outras, normalmente casadas com oficiais de patentes mais elevadas,
solicitavam a viagem para uma serviçal, como então se dizia, para as
auxiliarem na educação dos filhos, numa terra “de hábitos tão
diferentes”. Mas é também nos casos de patentes mais elevadas que
há mais desistências. As mulheres que normalmente não desistiam
eram mulheres de cabos, furriéis, sargentos e até de soldados, estas
raras, muito raras. Apesar de esta legislação se destinar, em
princípio, a militares do quadro, há também indicação de que
seguiram viagem por conta do Estado algumas (muito poucas no
geral) mulheres ou famílias de oficiais milicianos. Falando com
pilotos da Força Aérea Portuguesa de então, hoje já na reforma, estes
recordam a aventura do transporte dessas famílias nos aviões, cheios
de tropas, correio e carga e certamente desconfortáveis para quem
viajava com crianças ao longo de tantas horas, com diversas escalas e
por rotas nem sempre directas, pois a Força Aérea Portuguesa estava
impedida de sobrevoar grande parte da África subsariana. Mesmo
outros militares, quando confrontados com a questão da importância
da presença das suas mulheres durante a guerra, reconhecem‑lhes
um papel fundamental na manutenção de uma certa aura de
normalidade familiar num teatro de guerra. Alguns reconhecem-lhes
também um importante papel no exterior da casa portuguesa que
elas transpuseram para África, nomeadamente na acção social e no
ensino. Muitas das mulheres que viveram em África apenas
acompanharam os maridos, e “as suas guerras” eram os partos, a
amamentação, os filhos, mas muitas trabalharam no apoio das
populações, normalmente ligadas a missões religiosas, prestaram
cuidados médicos e de enfermagem, foram professoras em vários
níveis de ensino, fizeram trabalho de secretariado nos serviços das
próprias Forças Armadas ou em empresas.

Professora num jardim de infância


Fonte: Revista Permanência
Senhoras na acção social junto de missões religiosas
Fonte: Revista Permanência

17 O registo destes passos consta dos registos biográficos profissionais


de cada uma, mas no Arquivo do Ministério da Educação podemos
verificar que a sua contribuição foi fundamental para um
considerável incremento da educação, com a criação de muitas
escolas primárias, liceus, institutos e, finalmente, dos Estudos Gerais
que viriam a ser, dois anos mais tarde, as universidades de Luanda e
de Lourenço Marques. Ao longo dos anos 60, e sobretudo
comparando com a década anterior, é significativa a numerosa
legislação conjunta do Ministério da Educação e do Ministério do
Ultramar, que visava, por um lado, dotar as colónias portuguesas de
muito mais estabelecimentos de ensino, nos vários níveis, e, por
outro lado, uniformizar o mais possível todas as situações com a
então metrópole. Assim, e à semelhança do que acontecia noutros
sectores da vida nacional, desde as Finanças à Saúde, ao
nacional‑cançonetismo, ao futebol, à tourada, a Fátima ou às misses
de Portugal, a palavra de ordem parecia ser “integração” e
uniformização. De alguma forma, as mulheres ao “completarem” a
moldura como lhes era requerido, terão contribuido para a
manutenção de uma certa estabilidade, não só porque com a sua ida
mantiveram a célula familiar junta – o que nem sempre significou
unida –, como também pela contribuição social que prestaram.
Acredito que muitas das mulheres que foram para África,
acompanhando os maridos na guerra, colaboraram, voluntária ou
involuntariamente, consciente ou inconscientemente, para a
produção do disfarce da guerra sob uma imagem de normalidade que
o regime queria projectar. No entanto, e como é bem visível nos
depoimentos que podemos obter destas mulheres e na literatura que
ficcionalmente as refere, 15 havia outras mulheres portuguesas que
parecia não encaixarem na moldura requerida e esperada. 16 Para
muitas destas mulheres, aliás à semelhança dos homens, a vivência
em África foi o momento de encontro com “a realidade que era […] o
nosso império”, a percepção do que significava “um grande
território para um pequenino país colonizador” e sobretudo o
desvendar do “logro enorme” que sobre tudo isto se tecia e que
levaria à inevitável e irreversível ruptura. 17 Lídia Jorge, que viveu
em África nos anos 60/70 e é autora de A Costa dos Murmúrios, define
numa entrevista o impacto da realidade da Guerra Colonial e da
sociedade que a envolvia como um “esmagamento” (Letria e Serrano,
1998: 11), atestando na violência intrínseca à palavra escolhida a
crise de identidade pessoal, familiar e nacional que ela, como
algumas outras, terão experienciado. Falando hoje com estas
mulheres, elas recordam este tempo com a doçura com que todos nós
recordamos a juventude, os primeiros anos de casamento, os filhos
pequenos, mas também os casamentos apressados por causa da
guerra, a angústia das missões dos maridos, os voos dos helicópteros
e aviões que traziam os feridos, os boatos que alimentavam a guerra.
Os testemunhos que delas podemos recolher levam‑nos a pensar
sobre quanto a guerra terá alterado o mito dos brandos costumes, os
seus comportamentos sexuais e, apoiando-me nas palavras de
Manuel Alegre, na consequente importância social e política do acto
das jovens mulheres da época que “entregavam a virgindade sem
cálculo nem resistência” num “acto de rebelião e cumplicidade que
profundamente subvertia tudo” (Alegre, 1989: 70). A guerra alterou
as relações entre os dois sexos de forma significativa, no domínio
público, ao deixar as mulheres entrar para o mercado de trabalho
com uma segurança nunca antes conhecida, e no domínio privado,
ao quebrar tabus e transformar as relações entre namorados, entre
marido e mulher.
18 As mulheres que tenho vindo a entrevistar no âmbito de um trabalho
de registo da experiência das mulheres portuguesas em África em
acompanhamento dos seus maridos, quando questionadas sobre as
suas motivações para ir para África em plena Guerra Colonial,
repetidamente repetem a minha pergunta na primeira pessoa –
porque é que fui, porque é que fomos nós mulheres? – acabando por
responder. As motivações para a ida são assumidamente privadas,
mas muitas hoje apontam a habilidade política do regime em ter
mantido estas opções como privadas e pessoais nunca as deixando
transbordar para o domínio público e colectivo. Desta forma, e de
acordo com a opinião de algumas das minhas entrevistadas (é
importante sublinhar que não se trata de um julgamento colectivo),
o regime comprometeu as mulheres com a guerra e sem se
comprometer e sem grande esforço proporcionou uma situação de
luta em duas frentes, mas também de grande normalidade. Como me
dizem, “nós acolhíamos, humanizávamos e simplificávamos a vida”.
Saindo da esfera da vida privada, muitas reconhecem o incremento
que a sua presença deu ao ensino local, atribuindo assim a esta
experiência uma relevância pública, mas também privada, na medida
em que este contacto lhes proporcionou uma visão-outra sobre as
várias populações locais que na escola se juntavam. Colocadas na
margem do universo da guerra, registaram esta experiência,
ouviram, observaram, traçaram relações com o poder e foram
revelando um olhar‑outro, elaborando uma razão-outra, sobre as
razões do conflito bélico que me parece interessante conhecer e
registar.

Acolhimento familiar a tropas regressadas de Angola a bordo do «Vera Cruz»,


01/04/1964
Fonte: Arquivo de Fotografia de Lisboa – CPF/MC; SEC/AG/01-156/0532AP
Regresso de um contingente de tropas do Ultramar a bordo do paquete «Uíge»,
20/05/1966
Fonte: Arquivo de Fotografia de Lisboa – CPF/MC; SEC/AG/01-170/1142AR

19 No pós-guerra, foi mais uma vez sobre as mulheres que caiu a


expectativa do regresso a uma certa normalidade.
20 Mas o pós‑guerra da nossa Guerra Colonial não criou uma Ilha dos
Amores como Camões poeticamente tinha previsto para regenerar os
homens da violência que todas as guerras importam: muitos casais
separaram-se no rescaldo da guerra, mas muitos mantiveram-se
unidos, cúmplices desse tempo africano nem sempre fácil de contar
aos filhos, outros foram lidando com situações complicadas, dramas
psicológicos e desajustamentos que foram transformando para
sempre as relações familiares, ao transferir a violência da guerra
para o espaço doméstico. Antes do 25 de Abril, não se falava da
guerra para que ela não existisse, como nos mostram os jornais em
que as fotografias de embarques e desembarques desaparecem a
partir de 1969. Em 1972, Marcello Caetano nas suas “Conversas em
Família” dizia:
Guerra Colonial? As Províncias Ultramarinas estão em paz e ninguém neles
contesta a sua integração na Nação Portuguesa. Percorre-se a Guiné, anda-se pela
vastidão da terra angolana, desloca-se quem quer que seja de lés a lés de
Moçambique e não encontra populações revoltadas. […] A vida decorre, por toda
a parte, tranquila e normal, num ambiente de trabalho e de entendimento
exemplares. (Apud Carvalho, 1977: 108)
21 Depois do 25 de Abril, gritou-se “Nem mais um soldado para as
colónias” e rapidamente se deixou de falar da guerra. No entanto, a
ocultação da guerra, feita no pós-25 de Abril, não era um artíficio de
vontade autoritária, mas antes uma incapacidade de avaliação das
condições reais para lidar com tão dolorosa e explosiva herança,
deixando o ex-combatente num ambíguo e desconfortável lugar
entre a vítima “de uma engrenagem monstruosa” (Garcia, 1996: 108)
e a imagem de um antigo poder que se queria esquecer. Assim, à
ocultação da guerra feita pelo antigo regime, projectando um retrato
de nada estar a acontecer, seguia-se a ocultação da guerra como se
fosse possível fazê-la desacontecer, como se tudo tivesse sido um
engano, ou, como aliás veio a dizer o próprio “inimigo”, Samora
Machel, um equívoco, uma história de mal-entendidos. Mas ela tinha
de facto acontecido lá longe em África, como indicam os títulos de
referências espaciais de Os Cus de Judas, de António Lobo Antunes ou
Lugar de massacre, de José Martins Garcia. Todavia, a guerra não
estava só em África, como o antigo regime pretendia, e onde parece
que o novo regime, saído do 25 de Abril, gostaria de a ter deixado,
desejando assim que ela não tivesse acontecido, mas ela vinha a
bordo dos navios que regressavam ao cais. Por isso, o 25 de Abril não
foi a libertação singularmente pacífica que todos rapidamente
quiseram ler no encantamento da nossa jovem democracia. O 25 de
Abril estava, desde o seu primeiro movimento, manchado pelo
sangue derramado lá longe em África, como os barcos que durante
anos cumpriram estas rotas entre Portugal e uma África em guerra
de libertação. Mas o 25 de Abril foi antes de mais o fim da Guerra
Colonial, como diz uma mãe de um soldado, no rescaldo de toda essa
experiência de angústia e separação:
O melhor que o 25 de Abril trouxe para mim foi o fim da Guerra Colonial. […]
Nunca percebi porque é que os nossos filhos tinham de ir combater em terras que
para mim nada tinham a ver connosco.
Quando chegou a altura de o meu filho ser chamado só me apetecia dizer-lhe que
fugisse, que não fosse. Mas nunca o fiz. Porque, por outro lado, sabia que se ele o
fizesse talvez nunca mais o voltasse a ver pois não poderia pôr mais os pés em
Portugal. […] No entanto, quando ele estava em África sofrendo todos aqueles
horrores, porque foram verdadeiros horrores com a morte sempre à frente dos
olhos e fazendo os outros sofrer, cheguei a arrepender-me de nunca o ter
encorajado a sair do País.
Logo depois do 25 de Abril, quando soube que os nossos filhos iam regressar até
chorei de alegria! (Maria de Jesus, dona de casa, in Mulheres, 12 de Abril de 1979:
11)

Regresso de tropas de Moçambique a bordo do paquete «Angola», 14/09/1962


Fonte: Arquivo de Fotografia de Lisboa – CPF/MC; SEC/AG/01-147/1524AN
22 Para quem ficou, África não teve feminino. A África era tão-só o local
de onde ninguém queria falar e para onde silenciosamente
embarcavam homens, que voltavam transformados. As mulheres que
foram com eles ou as que os aguardavam no cais recebiam outros
homens, que inevitavelmente as iriam transformar e transformar as
relações privadas e públicas no contexto da sociedade portuguesa.
Por isso, ver a guerra como uma actividade exclusivamente
masculina é contar apenas uma parte da história.

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NOTAS
1. Gostaria de agradecer aos directores e funcionários do Arquivo Histórico Militar, do
Arquivo Geral do Exército, do Arquivo Histórico da Força Aérea e do Arquivo do Ministério
da Educação pela generosidade e eficiência de que deram provas, pelos conhecimentos que
me transmitiram e que tornaram possível a recolha de grande parte da informação referida
ao longo deste artigo. Relativamente ao material fotográfico, gostaria de agradecer ao
coordenador do Arquivo de Fotografia de Lisboa, Dr. Fernando Costa, pela generosidade e
rigor de todas as indicações que me deu, e à Senhora Dona Rosa Nogueira, que me facultou
algumas das suas fotografias dos tempos em que viveu em Moçambique acompanhando o
marido em missão militar durante o período da Guerra Colonial.
2. Belisário Pimenta, apud Bebiano, 1993: 75.
3. Sobre a batalha de Alcácer-Quibir, ver Valensi, 1996.
4. Cf. as seguintes estrofes do Canto VI de Os Lusíadas : “Mas já a amorosa Estrela
cintilava/Diante do Sol claro, no horizonte,/Mensageira do dia, e visitava/A terra e o largo
mar, com leda fronte./A Deusa que nos Céus a governava,/De quem foge o ensífero
Orionte,/Tanto que o mar e a cara armada vira,/Tocada junto foi de medo e de ira. […]/Assi
foi; porque, tanto que chegaram/À vista delas, logo lhe falecem/As forças com que dantes
pelejaram,/E já como rendidos lhe obedecem; /Os pés e mãos parece que lhe ataram/Os
cabelos que os raios escurecem./A Bórea, que do peito mais queria,/Assi disse a belíssima
Oritia:/– Não creias, fero Bóreas, que te creio/Que me tiveste nunca amor constante,/Que
brandura é de amor mais certo arreio/E não convém furor a firme amante./Se já não pões a
tanta insânia freio,/não esperes de mim, daqui em diante,/Que possa mais amar-te, mas
temer-te;/Que amor, contigo, em medo se converte./[…] Desta maneira as outras
amansavam/Subitamente os outros amadores;/E logo à linda Vénus se
entregavam,/Amansadas as iras e os furores./Ela lhe prometeu, vendo que amavam,/
Sempiterno favor em seus amores, /Nas belas mãos tomando-lhe homenagem/De lhe serem
leais esta viagem.” (Camões, 1992: 170/1 [Canto VI, estrofes 84; 88; 89 e 91]). Cf. Macedo,
1998.
5. Cf. os seguintes passos de Jaime Cortesão: “Pálidos, magros, exaustos, os pulmões roídos
dos gases, os pés triturados das marchas, sem esperança nem apoio moral, arrastam?se sob
o imenso fogo que tomba do céu, por essas estradas, como uma legião miserável de
abandonados.”; “Nisto um silvo galopante vem de lá, rasa numa lufada horrível as nossas
cabeças; um estampido cataclísmico, a terra, os sacos, a madeira, nós mesmos tudo dança
projectado; depois uma chuva de pedras, torrões, detritos, cai do alto, bate no capacete,
fustiga a carne, graniza à volta, com violência.” ( apud Dias, 1995: 431).
6. Refiro-me ao reconhecimento da neurose de guerra (“shell shock”), no decorrer da
Primeira Grande Guerra, em que as interpretações de histeria e outros comportamentos
psicológicos tradicionalmente atribuídos às mulheres ajudaram a compreender o fenómeno.
Cf. os escritos de W. H. Rivers, nomeadamente o seu texto inicial e polémico “The
Repression of War Experience”, publicado em The Lancet , a 2 de Fevereiro de 1918, e Conflict
and Dream (1923), entre outros textos. Ver também Showalter, 1987a. Sobre doenças do foro
psicológico atribuidas às mulheres e que no pós-guerra serviram para compreender o
drama do “shell shock”, ver Showalter, 1987b.
7. Cf. como a problemática se mantém em guerras mais recentes em Meintjes et al. , 2001.
8. Sobre esta discussão, cf. Lorentzen e Turpin, 1998: 119-154, e os seguintes estudos
recentes: Nação e Defesa , 88, 2 série, Inverno 1999 (número temático “A Mulher e as Forças
Armadas”); Goldstein, 2001; Browne, 2001; e Carreiras, 2002.
9. Para o desenvolvimento desta ideia, cf. Ruddick, 1990.
10. A “Cruzada da Mulher Portuguesa” era liderada pelas mulheres da nova elite política
republicana e estava ideologicamente marcada pelos ideais feministas de então; por seu
turno à “Assistência das Portuguesas às Vítimas de Guerra” ligavam-se nomes da recém
deposta monarquia (Pimenta, 1989: 82-83).
11. Sobre o assunto cf. Alves, 1999: 75-76; Ferreira, 1986.
12. Presença , Revista do Movimento Nacional Feminino , publicação mensal dirigida por Luíza
Manoel de Vilhena, e Guerrilha , revista mensal, dirigida por Cecília Supico Pinto e tendo
como chefe de redacção, primeiro, Martinho Simões e depois, Mário Matos Lemos.
13. Cf., por exemplo, o seguinte texto de Pedro Cabrita: “[…] que se faz para além do esforço
militar para permanecermos Lá? Na resposta a esta pergunta encerra-se o julgamento
futuro que a Nação vai fazer aos governantes de hoje. E, se eles não envidarem todos os
esforços no único sentido válido, mal vai a Nação, pior irá a Pátria. E o único sentido válido
sai desta verdade: se em quatro ou cinco anos não forem qualificados na Metrópole (e
qualificados técnica, cultural e politicamente) centenas de milhares de portugueses
metropolitanos capazes de irem para Angola e Moçambique e se não forem colocadas essas
centenas de milhares de portugueses no Ultramar, Portugal sairá de África.A opção do
Governo, portanto, só pode ser uma: criar condições através da acção de todos os
Ministérios (desde o mais político ao menos político) para que seja possível colocar em
Angola e Moçambique, no mais curto espaço de tempo, centenas de milhares de portugueses
metropolitanos. […] A grandeza da ideia ultramarina – e essa é a ideia de Portugal – exige
colada a esse sacrifício [dos jovens militares] toda uma enorme tarefa de povoamento, de
progresso económico, cultural e social.” (Cabrita, 1964: 5).
14. Sobre o valor terapêutico da família na ordem salazarista, ver o interessante estudo de
Moisés de Lemos Martins (1986: 77-83).
15. Em A Costa dos Murmúrios , de Lídia Jorge, Evita e Helena de Tróia dominam o cenário
que tem na retaguarda outras mulheres, cujas identidades ora se definem em conjunto – as
“mulheres do Stella” (p. 119) as “raparigas de cabelo passado a ferro”, “mulheres dos
vestidos sem costas”, “raparigas de cabelo comprido” ou “de cabelo em forma de colmeia”
(p. 116), “uma moldura de mulheres que habitam o Stella” (p. 232) – ora em relação ao
marido, incorporando o seu nome ou a sua categoria militar – a mulher do Ladeira, do
Zurique, do Góis, do major, “a mulher do Astorga”, “a mulher do Fonseca” (p. 109), “a
mulher do capitão Pedro Deus” (p. 110), “a mulher dum capitão piloto-aviador” (p. 19),
“uma mulher de alferes” (p. 21). Todas estas mulheres, descritas de forma pouco elogiosa e
irónica pela narradora viviam no Stella Maris mais preocupadas com as promoções e
oportunidades de ascensão social e de riqueza que a guerra trazia do que com os perigos que
os maridos corriam. “As mulheres do terraço […] ouvindo o piloto […] sabiam que estavam
em fila, esperando que os seus homens desempenhassem um papel histórico” (p. 114), diz-se
também em A Costa dos Murmúrios .
16. Veja-se as protagonistas de A Costa dos Murmúrios , de Lídia Jorge, e de Percursos – do
Luachimo ao Luena , de Wanda Ramos.
17. Citações retiradas da entrevista de Inês Pedrosa a Lídia Jorge (Pedrosa, 1988: 10).
RESUMOS
Procura‑se traçar as linhas gerais que no discurso crítico histórico, político, sociológico e
literário levaram a considerar a guerra como um fenómeno não exclusivamente masculino.
Dentro da situação portuguesa, visa‑se interpretar o “papel de apoio” que sempre esteve
reservado às mulheres, de um ponto de vista público e privado, e analisar com mais detalhe
a situação das mulheres portuguesas que acompanharam os maridos em missão militar em
África, durante o período da Guerra Colonial.

This paper seeks to delineate the general lines that, in the historical, political, sociological
and literary critical discourse, have led to a consideration of the war as a not exclusively
male phenomenon. Concerning the Portuguese situation, the author seeks to interpret the
“supporting role” that has always been reserved for women in public and private, and
analyze in greater detail the perhaps unprecedented situation of the Portuguese women
who accompanied their husbands on military missions to Africa during the period of the
Colonial War.

Dans cet article, je chercherai à tracer les lignes générales qui, dans le discours critique
historique, politique, sociologique et littéraire, ont mené à considérer la guerre comme un
phénomène non exclusivement masculin. Dans la situation portugaise, je chercherai à
interpréter le “rôle d’appui” qui a toujours été réservé aux femmes, d’un point de vue
public et privé; je tenterai d’analyser d’une manière plus détaillée la situation, peut-être
inédite, des femmes portugaises qui, pendant la période de la Guerre Coloniale, ont
accompagné leur mari en mission militaire en Afrique.

ÍNDICE
Keywords: Portuguese Colonial War – women’s role, Portuguese society, Africa
Mots-clés: Guerre coloniale portugaise - rôle de la femme, société portugaise, Afrique
Palavras-chave: Guerra colonial portuguesa - papel da mulher, sociedade portuguesa,
África

AUTOR
MARGARIDA CALAFATE RIBEIRO
É investigadora associada do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e
Visiting Research Associate do King’s College, Universidade de Londres. Doutorada em
Literatura Portuguesa pelo King’s College, foi leitora de português em França e no Reino
Unido e professora convidada na Holanda e Brasil. As suas publicações mais recentes
incluem: “Empire, Colonial Wars and Post-Colonialism in the Portuguese Contemporary
Imagination”, Portuguese Studies, 17, 2002, e Fantasmas e fantasias imperiais no imaginário
português contemporâneo, Porto: Campo das Letras, 2003 (organização com Ana Paula
Ferreira). No prelo: Uma história de regressos: Império, Guerra Colonial pós‑colonialismo, Porto:
Afrontamento, 2004.
margaridacr@mail.telepac.pt
As mulheres e a Guerra Colonial:
Um silêncio demasiado ruidoso
Women and the Colonial War: An excessively loud silence
Les femmes et la Guerre Coloniale : un silence trop bruyant

Manuela Cruzeiro

1 Diz-se que os povos felizes não têm história. É talvez porque nos
queremos imaginar um povo feliz que temos um problema com a
história, o que faz de nós um povo distraído e de curta memória. Por
um complexo jogo de luz e sombras, rasuramos do longo passado
episódios infelizes, atirando sobre eles sucessivas camadas de
silêncio, e compensamos essa ausência com fogos-fátuos de uma
mitologia delirante. Cerramos os olhos à realidade, para os abrir
extasiados ao vazio do imaginário mais vertiginoso. E, no entanto,
esses episódios silenciados perduram na razão directa do seu
recalcamento. São os traumas que a psicanálise obriga a encarar, a
verbalizar e até a reviver, sob pena de sucumbirmos à compulsão da
repetição, que é a forma psíquica do destino.
2 Escondemos demasiados esqueletos no armário, que um dia, quando
menos esperamos, nos caem aos pés. Guardamos no bolso bombas ao
retardador que vão ardendo lentamente, e que, quando explodem,
nos deixam total ou parcialmente inutilizados.
3 Entretanto, fingimos que tudo vai bem. Somos exímios gestores do
silêncio, mesmo quando falamos. Especialmente quando falamos.
Dizia, a propósito, Adolfo Casais Monteiro: “o português não é nada
inclinado ao conhecimento de si próprio. Gosta imenso de falar de si,
mas daí a conhecer-se, vão mundos”. Esta magnífica síntese traduz,
como muito bem assinala Boaventura de Sousa Santos, “uma das
contradições estruturantes da nossa personalidade colectiva, onde se
casam de forma surpreendente um gosto exagerado pelo falar de si
com um autodesconhecimento que a própria fala, em vez de atenuar,
potencia” (Santos, 1993).
4 Na verdade, este falar de si, disperso, fragmentário, gratuito e
distraído, é quase sempre a outra face de um silêncio que se quer
preservar. A nossa sociedade está cheia de ruídos tagarelas e de
pesados silêncios. Uns e outros escondem pequenas ou grandes
tragédias inominadas, mas nem por isso menos tragédias, ou talvez
até a mais refinada e incomunicável das tragédias, como
insistentemente nos tem lembrado, sem grande proveito, Eduardo
Lourenço, justamente a propósito da maior das nossas tragédias
actuais: a Guerra Colonial. Cada vez mais insistentemente designada
de novo por Guerra do Ultramar…
5 No tempo da Censura, fomos iludindo o silêncio com discursos
transversais, enredados de subtilezas, meias palavras, metáforas,
ambiguidades, analogias, e até com jogos de ironia e de sarcasmo,
cujo efeito foi a desconstrução do sentido, o estilhaçar em mil
pequenos sentidos do sentido global e autêntico dessa guerra.
6 A começar pelo poder político: o que havia não era guerra, mas uma
revolta a exigir uma contra-revolta. Os soldados não iam para a
guerra, mas em “Missão de Soberania”. E, mesmo no meio militar,
havia todo um glossário, entre o anedótico e o evasivo, para não
chamar as coisas pelos nomes. Os mobilizados que chegavam de novo
eram, respectivamente, os maçaricos para Angola, os checa-checa para
Moçambique, os piriquitos para a Guiné (piriquito é pior do que
terrorista, dizia-se em jeito de boas vindas…). Os generais do
Estado‑Maior eram os generais de alcatifa, ou de ar condicionado, a
metralhadora do inimigo era a costureirinha.
7 Guerra a sério, não havia, mas sim pequenas guerras, e essas, fora
das zonas de combate: nas repartições, nas messes, nos hospitais, nas
lojas, nos espaços de convívio públicos e privados, onde o apelo à
normalidade mais se fazia sentir, aí sim, fazia-se a guerra, pequena,
banalizada e até parodiada.
As próprias mulheres ficavam com a sua guerra, que era a gravidez, a
amamentação, algum pequeno emprego pelas horas da fresca. Uma loja de
indiano e de chinês era uma guerra. Como vai aqui a sua guerra? – já tinha o
noivo perguntado a um paquistanês que vendia pilhas eléctricas, de mistura com
galochas e canela… (Jorge, 1988: 74)
8 Hoje, verifica-se quão difícil tem sido recentrar, a sério e a fundo,
essa questão nacional, devido às sucessivas desfocagens que vem
sofrendo. E descobrimos como essas desfocagens persistem como
efeitos, mesmo desaparecidas as causas. Abolida a Censura, o silêncio
hoje consentido parece ser um perverso sucedâneo do silêncio antes
imposto.
9 É certo que se tem falado seriamente da Guerra Colonial, em já
numerosos encontros, colóquios e debates, bem como através de
muitos e importantes estudos e análises de natureza económica,
política, militar, de incontestável mérito. É sobretudo verdade que,
de forma progressiva, se vem afirmando uma pujante literatura de
guerra, em que se conjuga o dissídio, a denúncia, o memorialismo e o
confessionalismo, a culpa e a catarse, a força testemunhal e
autobiográfica. Decisivamente, é no campo da literatura que vamos
encarando de frente os nossos fantasmas. Ou seja: na solidão de um
encontro pessoal e íntimo entre escritor e leitor.
10 Contudo, como observa Eduardo Lourenço, “apesar de esses
romancistas que viveram a guerra de África, salvarem a honra do
convento, não foram as suas obras sobre os célebres acontecimentos
africanos que lhes trouxeram qualquer aura. Essa parte da sua obra,
têm de vivê-la como exterior às obras que os consagraram e tiveram
pouco sucesso junto do público metropolitano, como A Costa dos
Murmúrios de Lídia Jorge, ou a grande contra-epopeia de Lobo
Antunes, As naus” (Lourenço, 1999: 221).
11 Por seu lado, tanto o cinema como a televisão, em clara oposição ao
que se verifica em países que viveram experiências idênticas, pouco
se interessaram por esse tema. Destaque para Um adeus português de
João Botelho, Non ou a vã glória de mandar, de Manoel de Oliveira, e Ao
Sul de Fernando Matos Silva, no primeiro caso, e para a peça Um jeep
em segunda mão de Fernando Dacosta, e o telefilme Monsanto, de Ruy
Guerra, no segundo caso. Não tivemos ainda o nosso Coppola,
justamente porque não incorporámos as nossas tragédias, nem
sequer as vivemos como nossas, a não ser como acidentes
lamentáveis, rapidamente ocultados, porque incompatíveis com a
imagem que temos de nós como povo.
12 Nesse sentido, o regime democrático, nos 29 anos que já leva, não
conseguiu construir uma contra-imagem nacional suficientemente
consistente para opor à imagem laboriosamente construída pelo
salazarismo ao longo de 48 anos. A ideia tantas vezes repetida de que
encerrámos um ciclo histórico, “o ciclo do império”, paradoxalmente
não foi suficientemente forte para desencadear energias colectivas
de mudança e transformação radical. Bem pelo contrário, reciclámos
rapidamente esse capital, reconvertendo-o à mais poderosa e
persistente imagem de “país saudoso de si mesmo como império” na
feliz expressão de Lourenço, hoje, como ontem, mais sonhado do que
vivido.
13 O poder democrático, e seus sucessivos representantes, prisioneiro
da ficção consensualista, esgota-se na busca desesperada do que nos
liga, e nunca do que nos separa. Sem coragem nem arrojo, limita-se a
ir a reboque de pressões e de influências que surgem quer da
sociedade civil, quer da instituição militar, compreensivelmente a
mais dilacerada e ainda hoje profundamente dividida por essa
guerra. Em nome do consenso e da pacificação, acolhe iniciativas da
Liga dos Combatentes, como a que culminou no primeiro acto
público de homenagem aos ex-combatentes do Ultramar (sic): o
monumento do Forte do Bom Sucesso. Pouco tempo depois, apoia a
cerimónia da colocação de placas com os nomes dos militares
mortos; posteriormente, a colocação da chama da pátria nesse
monumento; e, já com este governo, a colocação de dois militares de
sentinela permanente no referido monumento. Actos estes de
enorme e evidente carga simbólica, impulsionados mais pela
activíssima Associação de Comandos, do que propriamente pela
referida Liga dos Combatentes, que, tendo iniciado o processo, se viu
claramente ultrapassada.
14 Igualmente reconheceu, com um atraso incompreensível (passados
cerca de 25 anos), e sem dúvida devido ao esforço e combatividade da
ADFA (Associação dos Deficientes das Forças Armadas) e da APOIAR
(Associação de Apoio aos Ex‑Combatentes Vítimas do Stress de
Guerra), finalmente a existência de uma doença designada por
Perturbação Pós‑Traumática, vulgo stress de guerra, que, por
cálculos aproximados, atingirá cerca de 140 000 homens. Estes são
apenas dois exemplos que nos obrigam a perguntar: Se não fosse a
pressão destas associações, que de comum apenas têm uma forte
capacidade negocial (em tudo o resto com manifestas divergências),
o que faria o poder político no sentido de encarar de frente esse
verdadeiro trauma nacional?
15 Mas, limitando-nos ao universo dos militares, ou seja, a Liga dos
Combatentes e a Associação de Comandos, por um lado, e a
Associação dos Deficientes das Forças Armadas, por outro: é fácil
concluir que não as movam as mesmas razões, nem a mesma
avaliação da Guerra Colonial.
16 Ela continua, pois, a dividir-nos, como nos dividiu no passado: não
só no binómio mais simples dos pró (que os há ainda…) e dos contra,
mas antes nas complexas e várias mini‑razões, que nasceram
justamente na ausência de uma grande razão.
17 A razão do soldado de Quadrícula (tropa fandanga ou tropa pacaça,
segundo o glossário já referido) não é a mesma das Tropas Especiais.
A razão dos chefes militares (muitas vezes a guerra da cadeira, ou do
prestígio) não é a mesma dos colonos (cuja solução, em muitos casos,
era uma guerra de extermínio de todos os “terroristas”), nem sequer
a do poder político e económico central. A razão dos oficiais do
Quadro não é a mesma dos Milicianos. E, de entre estes, a razão dos
que, ideologicamente amorfos, iam à guerra para comprar o Mini,
não é a mesma dos que iam por assumidos imperativos políticos de
direita (a defesa da Pátria pluricontinental e da Civilização
Ocidental) ou então por fortes convicções de esquerda: lutar contra a
guerra, na guerra.
18 E nenhuma destas mini-razões é a razão ou sem-razão das mulheres,
quase tão silenciosas hoje como há 29 anos, tão aparentemente
resignadas ao papel que lhes estava destinado no quadro
sociocultural de uma sociedade tradicional, que condiciona com
frequência a mulher portuguesa ao desempenho de um papel
protector e maternal em relação ao homem.
19 Mas também aqui é impossível a generalização. Também na razão ou
sem‑razão das mulheres, há que fazer divisões: antes do mais, entre
as que ficaram (e que são, obviamente, a grande maioria) e as que
“foram à guerra”. Umas e outras definitivamente afectadas pessoal,
familiar e profissionalmente por essa guerra, mas não certamente da
mesma forma.
20 Para as que ficavam, o combate era em duas frentes: na metrópole,
para garantir a sobrevivência da estrutura familiar drasticamente
ferida pela ausência do namorado, do marido ou do filho; em África,
para que os laços afectivos se não quebrassem e fossem uma ajuda e
um suporte. A real dimensão desta tragédia vivida no feminino
ficaria para sempre silenciada, não fossem as marcas, escassas mas
impressivas, na literatura sobre a guerra, maioritariamente escrita
por mulheres (mas não exclusivamente) e exaustivamente
referenciada por Margarida Ribeiro, na comunicação apresentada ao
II Congresso Internacional sobre Guerra Colonial (Ribeiro, 2002).
21 Mas essa dimensão surge também referenciada em obras de carácter
testemunhal ou jornalístico, como Lágrimas de guerra de Mário
Brochado Coelho, ou na mais recente Marcas da Guerra Colonial de
Jorge Ribeiro. Em qualquer um deles é possível avaliar a fragilidade
dos laços que teimavam em ligar dois mundos completamente
distintos, e o irremediável silêncio em que se iam transformando,
apesar de todos os sacrifícios pessoais para que tal não acontecesse.
É bom que em Portugal as nossas famílias saibam quais as dificuldades inegáveis
que aqui enfrentamos, até para que mais tarde, quando voltarmos, não nos
olhem como turistas em regresso, ou como se fossemos exactamente os mesmos
que viram partir para aqui. Tenho vivido a minha parte de sofrimento. É justo
que tome parte do banquete dos homens verdadeiros,
22 diz-nos Mário Brochado Coelho no seu “diário de guerra” (Coelho,
1989: 178), para continuar mais adiante:
É o lavar dos cestos de um conjunto de infelicidades pessoais que todos os meus
familiares e amigos em Portugal estão longe de supor ou avaliar. Umas coisas não
se contam para não assustar, e outras por serem perigosas de contar, graças à
tradicional violação da correspondência. Por essas e por outras razões, acho
perfeitamente natural que nas cartas que vêm de Portugal haja sinais evidentes
de um total alheamento, cómico por vezes. (Coelho,1989: 219).
23 Este sentimento de incompreensão dos reais contornos da
experiência-limite da guerra, e das suas dramáticas consequências
na estrutura da personalidade de quem a vive, esbarra do outro lado
com uma impotência, um bloqueio, de efeitos igualmente
devastadores e irreversíveis. Escreve Lobo Antunes, em Os Cus de
Judas:
Tenho uma filha que não conheço, uma mulher que é grito de amor sufocado
num aerograma, amigos cujas feições começo inevitavelmente a esquecer, uma
casa mobilada sem dinheiro que não visitei nunca, tenho vinte e tal anos, estou a
meio da minha vida, e tudo me parece suspenso à minha volta, como as criaturas
de gestos congelados, que posavam para os retratos antigos. (Antunes, 1979)
24 Essa vida interrompida, suspensa, congelada, só podia suscitar nas
mulheres que ficaram duas respostas: a da resignação ou a da
revolta. Sabemos que a primeira foi, por razões culturais,
económicas, sociológicas, a mais comum nas mulheres portuguesas,
sobretudo das classes mais baixas. Elas não poderiam suportar o
remorso e a culpa de aumentarem ainda mais o sofrimento e o
desespero. “Aturei um cabo, durante uma noite inteirinha, de carta
na mão e em choro convulso e contínuo, por a namorada ter cortado
com ele. Outro, de outra companhia, não suportou notícias desse tipo
e suicidou-se” (Ribeiro, 1999: 287). Por isso engoliram o silêncio e as
lágrimas que se calhar lhes pareciam obscenas comparadas com as
dos companheiros.
Dessa época guarda a lembrança muito viva das mulheres que lhe escreviam, as
noivas e viúvas de África. E das esposas que não podiam abrir a boca em casa e
desabafavam no papel, derramando as dores do quotidiano. Eram mulheres
muito sofridas, ignoradas, oprimidas pela resignação e pelo medo. (Caires, 1994:
57)
25 São as novas vítimas da guerra. Muitas atingidas por essa ferida
invisível que afecta milhares de ex-combatentes: o stress de guerra.
Invisível porque ela própria se disfarça e mascara com outras
patologias (depressão, alcoolismo, estados de pânico, fobias, etc).
Invisível também, porque os seus padecentes e famílias, e mesmo o
próprio Estado, tudo fazem para a esconder como pecado ou culpa
secreta, que se deve expiar no silêncio anónimo, ou mesmo secreto,
dos hospitais psiquiátricos ou dos consultórios médicos, quando não
mesmo na mais funda solidão.
26 Solidão apenas mitigada nos convívios regulares de batalhões ou
companhias, a que comparecem, tantas vezes surpreendidos pela
força desse apelo e dos sentimentos tão opostos e desencontrados
que ele encerra: uma inquietante mistura de dor e de felicidade.
Naquilo que muitos vêem como “catarse colectiva”, como ajuste de
contas colectivo, exorcização de fantasmas, extravasar de
recordações paradoxalmente traumáticas e pacificadoras, junto dos
únicos que as podem entender: os camaradas e amigos que com eles
desceram aos infernos do ódio e da violência, e nessa estranha
viagem descobriram o verdadeiro sentido da coragem, da abnegação,
da solidariedade e do companheirismo. Como se do pior nascesse o
melhor, num percurso dramaticamente dividido entre a náusea e o
encantamento, entre a angústia e o sonho. É um pacto de vida e de
morte, indestrutível e intransmissível.
27 Por isso as mulheres ficam de fora desse ritual. Mesmo as poucas
que os acompanham, como refere Jorge Ribeiro:
A generalidade das mulheres e dos filhos mantêm-se na confraternização entre
uma postura atónita pelo que ouvem contar e a figura de corpo presente,
constatando em muitos casos o extravasar de mais um ano de assaltos à
memória, ao longo do qual voltaram a acumular-se pequenos e grandes
recalcamentos. Traumas de guerra cuja explosão e exteriorização por vezes são
essas mesmas mulheres e esses mesmos filhos a suportar e a sofrer, saldando‑se
afinal, por novas e inocentes vítimas da guerra colonial” (Ribeiro, 1999: 287)
28 Inocência que nem como tal pode ser vivida, porque se esconde por
detrás de uma culpa absurda e incompreensível, o que leva uma
delas a desabafar “gostava de ter vivido com ele tudo o que ele por lá
passou” (Ribeiro, 1999: 286).
29 E, na verdade, muitas foram as mulheres que viveram a guerra, não
certamente pelas mesmas razões, ou sequer do mesmo lado.
30 Começando naturalmente pelo famoso Movimento Nacional
Feminino, a única iniciativa concertada e consequente do regime, no
sentido de vencer a proverbial apatia e alheamento das mulheres
(contrariando até a imagem tradicional), fazendo delas uma coluna
avançada do exército português. Foi sem dúvida a face mais visível, e
até espectacular, da participação das mulheres na guerra, pelo que
tem merecido a atenção de vários estudiosos, existindo hoje um
razoável acervo para a sua história e acção efectiva. Num balanço
muito sintético, podemos dizer que o projecto que nasceu da vontade
de Cecília Supico Pinto, com o apoio entusiástico de Salazar e a
benção de Cerejeira, e definido à partida como “um movimento
independente do Estado, sem ser político, apenas patriótico”, se
transformou numa poderosa máquina de propaganda, e numa
fantástica rede de informação e contra-informação. O MNF
promoveu peditórios nacionais e campanhas como a célebre
Operação Saudade, instituiu os famosos aerogramas, e chegou a
interferir na própria esfera estritamente militar, tendo sido por sua
acção que foi aumentado o número de helicópteros e aviões na zona
de intervenção, que começaram a efectuar-se evacuações nocturnas,
e que foi alterado o transporte de feridos entre Cabo Delgado e
Lourenço Marques.
Curiosamente não foi o controverso sentido altruísta e aparentemente ingénuo
da venda de senhas e angariação de donativos que manchou desde cedo a sua
imagem. As operações no terreno, “mexendo” perigosamente com o sentir mais
íntimo do soldado, abalaram irremediavelmente a torre das boas intenções do
MNF, e o atrevido maternalismo desacreditou a instituição. Repugnava sobretudo
o pretensiosismo ridículo e insuportável de quem se convencia estar a substituir
a mãe, a esposa, a noiva. Para mais em momentos de infortúnio, quando
desfilavam pelas enfermarias com saquinhos de rebuçados, cigarros, ladrilhos de
marmelada, e abraços da família (que não conheciam) para os rapazes mutilados.
(Ribeiro, 1999: 92‑93)
31 Não devemos iludir-nos, contudo, com a propagada popularidade
desta organização: Mais de 80 000 mulheres, integradas em 22
secções, dirigidas por uma Comissão Central. Muitas delas aderiam
não por convicção política clara, mas por uma reacção quase
instintiva de solidariedade e de humanidade, que o poder tão bem
soube explorar, ou mesmo por razões bem menos elevadas e
altruistas: a esperança de conseguirem o mesmo que as chefes do
Movimento – livrar os filhos da tropa, ou pelo menos mantê-los na
retaguarda, “sem ir lá fora”. Ou ainda conseguir-lhes emprego após o
período de mobilização.
32 Igualmente, tal sucesso não foi extensível às outras duas
organizações ligadas ao MNF: as Madrinhas de Guerra e a Cruz
Vermelha Portuguesa. Paradoxalmente, a primeira, tendo sido a
iniciativa de maior notoriedade do referido movimento, foi,
simultaneamente, a razão do seu declínio:
Perderam, portanto, o controlo numa das suas principais instituições – as
madrinhas de guerra. Elas deixaram de ser as confidentes e as encorajadoras,
para passarem a ser mulheres jovens, alegres e namoradeiras. As revistas
femininas mais lidas encheram-se de apelos de potenciais afilhados e a guerra
passou a ser falada por outras vozes e com outras palavras – entendida como
desnecessária, denunciada como tal. (Espírito Santo, 2002: 333)
33 Quanto à Cruz Vermelha, apesar de mais discreta e menos
comprometida politicamente, não deixava de depender directamente
do governo e das suas directrizes.
34 O mesmo não se passou com esse pequeno grupo constituído pelas
enfermeiras pára‑quedistas, verdadeiras heroínas que levaram o
cumprimento das suas missões humanitárias de assistência aos
feridos ao limite da quase imolação. Mas o seu número foi
reduzidíssimo.
Durante a guerra inscreveram-se 126 concorrentes para os nove cursos que
foram ministrados em Tancos. Mas só 47 obtiveram o brevet. O Quadro de
Enfermeiras pára‑quedistas era de 21 postos (9 oficiais e 12 sargentos) mas nunca
esteve completo. O máximo que registou ao serviço foram 14. (Ribeiro, 1999: 100)
35 O mesmo se não passou igualmente com as missionárias de variadas
congregações: Filhas de S. Paulo, dos Missionários do Espírito Santo
de Angola, Congregação das Irmãs de Nossa Senhora de África, as
Irmãs Brancas, a Sociedade Missionária Portuguesa de Cucujães, etc.
As missionárias portuguesas, juntamente com muitas estrrangeiras,
lutaram por ideais humanitários, em obediência estrita à sua
consciência humana e religiosa, o que lhes custou pressões e
ameaças várias, a prisão, a expulsão e até a própria morte. Tiveram a
coragem de se juntar aos padres italianos para denunciar um dos
episódios mais negros da Guerra Colonial: o massacre de Wiriamu.
36 E há, finalmente, as que foram à guerra para acompanhar os
maridos mobilizados, e que também o não fizeram todas pelas
mesmas razões: algumas refugiaram-se das agruras do clima (em
sentido real e figurado!) nos vários Stella Maris coloniais, e fizeram a
sua guerra privada, tricotando enredos, medos e segredos. Eram as
mulheres do cabelo passado a ferro, ou em forma de colmeia, de
Lídia Jorge, “as que esperavam em fila que os seus homens
desempenhassem um papel histórico naquela marcha” (Jorge, 1988:
114). Mas outras lutaram por compreender a estranha realidade em
que aterraram, não só por razões afectivas, mas por imperativos de
compromisso ético e político. Dessas, muitas exerceram as suas
profissões, na quase esmagadora maioria de professoras. Pelas
condições concretas de trabalho, que, apesar de não totalmente
liberto de constrangimentos, as fazia contactar com uma realidade
de certa forma estranha ao puro universo militar dos maridos, é
muito possível que se tenham e os tenham confrontado com
experiências sociais e humanas do colonialismo muito para além da
máquina de guerra a que eles se confinavam. Naturalmente, uns mais
do que outros, mais uma vez conforme as suas razões.
37 O silêncio em que ainda permanecem estas mulheres parece-me
muito diferente do silêncio das que cá ficaram. Se o destas me parece
tragicamente próximo da resignação e da impotência, pelo assombro
e pelo desconcerto de um dia acordarem junto de um estranho, o
daquelas pode conter chaves para decifrar as estranhas
metamorfoses da guerra no corpo e na alma dos que acompanharam
até África.
38 Além disso, como muito bem observa Margarida Ribeiro, essas
mulheres
registaram essa experiência, ouviram, observaram, traçaram relações com o
poder, e foram revelando um olhar-outro, elaborando uma razão-outra, que se
tornou uma ferramenta fantástica de representação das falsas razões do conflito
bélico. (Ribeiro, 2002: 220)
39 “Dizem que os reis não têm memória. Parece que os povos têm
muito menos ainda”, proclamava Salazar em 1930. E se houve um
traço genialmente perverso na ditadura que nos dominou durante 48
anos, foi a sábia gestão do silêncio. Um silêncio que Marcelo Caetano
apodava de “seriedade e honestidade”, em contraste com o “teatro”
do congénere regime fascista italiano.
40 Passados todos estes anos, a nossa opinião pública parece ainda
sujeita a inquietantes princípios de secretismo e ocultismo que,
aliados a estratégias várias de branqueamento da história, conduzem
a uma total incapacidade de compreensão e transmissão do passado
às novas gerações. As várias razões ou sem-razões das mulheres
envolvidas de alguma maneira na Guerra Colonial não podem ser
dispensadas, quer para a história da tragédia, quer para a da sua
negação que nos trouxe o 25 de Abril. Porque, como nos diz ainda
Lídia Jorge, “se ninguém fotografou, nem escreveu o que aconteceu
durante a noite, acabou com a madrugada. Não chegou a existir.”
(Jorge, 1988: 215).
BIBLIOGRAFIA
Antunes, António Lobo (1979), Os Cus de Judas. Lisboa: Editorial Vega.

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Santos, Boaventura de Sousa (1993), “Modernidade, identidade e a cultura de fronteira”,
Revista Crítica de Ciências Sociais, 38, 11‑39.

RESUMOS
O texto pretende denunciar as várias camadas de silêncio com que a sociedade portuguesa
fugiu ao encontro inevitável com a maior tragédia da sua contemporaneidade: a Guerra
Colonial. A estratégia de ocultação, que oscila frequentemente entre o recalcamento e a
denegação, atinge, quer os seus directos intervenientes (os militares mobilizados), quer as
instituições do poder “político” e outro, quer sobretudo as suas vítimas mais ignoradas: as
mulheres. Afastadas naturalmente da máquina de guerra, mas profundamente implicadas
nos seus efeitos devastadores, o seu silêncio torna duplamente absurdo e incompreensível
esse momento traumático da nossa história recente.
The aim of this paper is to expose the different layers of silence that have enabled
Portuguese society to evade the inevitable encounter with the greatest tragedy of its
contemporary history: the Colonial War. The strategy of concealment, which frequently
swings between repression and denial, touches both its direct participants (the mobilized
military) and the established institutions, as well as, especially, its most ignored victims:
women. Naturally excluded from the machinery of war, though deeply involved in its
devastating effects, the women’s silence renders this traumatic moment of our recent
history doubly absurd and incomprehensible.

Cet article tente de dénoncer les diverses strates du silence grâce auxquelles la société
portugaise a fui à la rencontre inévitable de la plus grande tragédie de sa contemporanéité:
la Guerre Coloniale. La stratégie d’occultation, qui oscille fréquemment entre le
refoulement et la dénégation, affecte soit ses intervenants directs (les militaires mobilisés),
soit les rapports entre les institutions du pouvoir “politique” et l’autre, soit surtout les
victimes les plus ignorées de la Guerre Coloniale: les femmes. Eloignées naturellement de la
machine de guerre, mais profondément impliquées dans ses effets dévastateurs, leur silence
rend doublement absurde et incompréhensible ce moment traumatique de notre histoire
récente.

ÍNDICE
Mots-clés: Guerre coloniale portugaise - rôle de la femme, société portugaise
Keywords: Portuguese Colonial War – women’s role, Portuguese society
Palavras-chave: Guerra colonial portuguesa - papel da mulher, sociedade portuguesa

AUTOR
MANUELA CRUZEIRO

É mestre em Filosofia Social e Política com uma tese intitulada Mito, política e sociedade: o caso
português. É investigadora do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de
Coimbra. Estudiosa da obra de Eduardo Lourenço, publicou Eduardo Lourenço – o regresso do
corifeu e Tempos de Eduardo Lourenço – Fotobiografia (em co-autoria com Maria Manuel
Baptista). Outras obras: O pulsar da revolução (em co-autoria com Boaventura de Sousa Santos
e Natércia Coimbra); Costa Gomes, o último marechal; 25 de Abril – Outras maneiras de contar a
mesma história (em co-autoria com Augusto Monteiro); Vasco Gonçalves, Um general na
revolução; e Maria Eugénia Varela Gomes – Contra ventos e marés.
mcruzeiro@mail.pt
Amor em tempo de guerra: Guerra
Colonial, a (in)comunicabilidade
(im)possível 1
Love in a time of war: The (im)possible (in)communicability of the Colonial
War
L’amour en temps de guerre : la Guerre Coloniale, la (in)communicabilité
(im)possible

Helena Neves

1 Os efeitos dos conflitos bélicos nas relações amorosas manifestam‑se


em todos os tempos e culturas. A comédia Lisístrata, do século VI a.C.,
manifesto de um poder feminino para a paz da autoria de
Aristófanes, parece ser o texto mais antigo que aborda, de alguma
forma, esta temática. A problemática assume contornos específicos
nas guerras do século XX, sejam elas mundiais ou regionais. A
questão que se coloca é a de saber como a mudança das práticas e das
representações sociais de sexo se reflecte nas relações amorosas, e
como evoluem estas representações produzidas e reproduzidas num
processo contraditório entre a continuidade do habitus que enforma
a identidade feminina e a identidade masculina (continuidade
insistente na propaganda governamental dirigida à mobilização de
homens e de mulheres) e as rupturas impostas pelas necessidades de
uma economia de guerra.
2 Procederei, num primeiro momento, a uma breve introdução,
esboçando analogias entre as duas grandes guerras mundiais e a
Guerra Colonial e, num segundo momento, abordarei mais
especificamente o caso português.
3 No final dos anos 60 e início de 70, vários autores começaram a
questionar a natureza dos efeitos das guerras, particularmente das
grandes guerras mundiais, na situação social da mulher. Tais efeitos
eram até então considerados como sendo predominantemente de
sentido emancipador. Porém, os trabalhos de James F. MacMillan, em
1977, e os de Gail Braydon e Deborah Thom 2 sobre as mulheres
trabalhadoras no período das guerras mundiais contestam a tese do
efeito emancipatório e, como salienta Françoise Thébaud, acentuam
o carácter provisório e superficial das mudanças: a guerra teria
constituído “um parêntesis antes do retorno à normalidade”, teria
mesmo bloqueado “o movimento de emancipação que se esboçava na
Europa, no início do século” (Thébaud, 1995: 33). Uma análise
histórica, ainda que sumária, evidencia efectivamente retrocessos no
movimento das mulheres. Assiste-se, na I Guerra Mundial, em
França, Inglaterra, Estados Unidos e Portugal, a uma suspensão
assumida das reivindicações feministas em resposta ao apelo de
mobilização patriótica. No nosso país, na sequência da declaração de
guerra entre Portugal e a Alemanha, as feministas, particularmente
da Associação de Propaganda Feminista, envolvem-se intensamente
na defesa da nação. Constitui-se a Comissão Feminina “Pela Pátria”
em 1914 e, em 1916, a “Cruzada das Mulheres Portuguesas”,
organização considerada de interesse nacional, vocacionada para o
apoio aos soldados – através de donativos e de agasalhos
recolhidos –, a assistência a afilhados de guerra, a reeducação dos
mutilados e a formação de enfermeiras de guerra. As feministas
portuguesas tentaram, no pós‑guerra, rentabilizar o esforço
investido, mas também a sua experiência demonstra a
transitoriedade do reconhecimento pelo poder da participação social
feminista ocorrida nos anos de guerra, apontada pelos estudos acima
referidos.
4 Nas grandes guerras mundiais e na Guerra Colonial, a mobilização
feminina no discurso governamental fundamentou-se na
representação social dos sexos, e fundamentou-a por sua vez,
reforçando a identidade feminina e a identidade masculina,
acentuando a simbologia de um modelo de virilidade masculina e de
abnegação feminina, díade intrínseca à cultura e subculturas da
guerra. A ocupação feminina dos lugares dos homens era encarada
pelo poder como uma necessidade de um tempo de crise. E se o
trabalho feminino, ampliando-se a esferas tradicionalmente
masculinas, suscitou o temor de masculinização da mulher, o
discurso dominante garantia a salvaguarda da feminilidade tão
duramente posta à prova (Thébaud, 1995: 45). Em relação à Guerra
Colonial, é flagrante o discurso das publicações da Mocidade
Portuguesa Feminina, nomeadamente a revista Menina e Moça, e do
Movimento Nacional Feminino, nas publicações Presença, Mensagem e
Guerrilha.
5 Mesmo o trabalho feminino de assistência apologeticamente
enaltecido, durante o tempo de guerra e tão conforme à defesa da
feminilidade suscitará inesperadas consequências subversivas, ainda
que o seu impacto não seja imediato. A assistência social,
mobilizando mulheres voluntárias e incrementando a sua
profissionalização, produz uma mobilidade social nova e conduz as
mulheres a universos até aí interditos ou condicionados de
participação no espaço público, de encontro com o outro. A
enfermagem coloca as mulheres, não só perante o sofrimento e
fragilidade humanas, fora do âmbito familiar, mas também frente ao
corpo masculino, ao risco de perturbação pelo toque de homens
desconhecidos, em situações dramáticas, anómalas, de isolamento
familiar e vulnerabilidade afectiva. As estruturas do poder conhecem
estes riscos, mas ficarão progressivamente mais atentas à
importância da presença feminina no apoio psicológico ao esforço da
guerra. Na I Guerra Mundial, a imagem da enfermagem como missão
evangélica é ferida por uma representação erótica de evocação de
vorazes apetites sexuais das enfermeiras, fantasma masculino
esgrimido a par do estereótipo familiar da enfermagem, uma e outra
representação simbolizando a eterna dualidade de mulher, anjo ou
fatalidade, Eva ou Maria. Tal não parece verificar-se no discurso
oficial e oficioso do Estado Novo, que consagra a enfermagem na
Guerra Colonial como expressão do espírito missionário e dever
patriótico das mulheres, simbolicamente representada como
maternidade social. A mesma lógica subjaz à representação das
enfermeiras pára-quedistas, cuja missão envolvia riscos: apesar de
jovens e bonitas são louvadas pela sua coragem varonil.Nos estudos
históricos e sociológicos sobre os efeitos das grandes guerras nas
mutações do protagonismo profissional e social das mulheres,
surgem, por vezes, referências ao facto de a guerra, pelo sentimento
de efemeridade, a consciência do risco de não haver reencontro, que
lhe são inerentes, suscitar outro ritmo e intensidade nas relações
amorosas. Michelle Perrot considera que a I Guerra Mundial
contribui para “o aparecimento do casal moderno centrado na
urgência da realização individual e já não patrimonial” (apud
Thébaud, 1995: 52). Porém, são escassas as análises sobre os efeitos
das guerras nas relações amorosas. Algumas obras no âmbito de
estudos de mulheres focando a infelicidade de mulheres afastadas do
mundo do trabalho depois das duas guerras mundiais permitem
alguma leitura sobre o ambiente conjugal. Segundo alguma reflexão
feminista, 3 no pós‑II Guerra Mundial, entre a interiorização das
autonomias conquistadas nos anos da guerra e o retorno ao lar no
pós‑guerra terá resultado a insatisfação em mulheres com estudos
médios e superiores, da qual foi porta‑voz em França, nos anos 50, o
movimento Jeunes Femmes, e que, nos Estados Unidos, surge expressa
na obra A mística da mulher da autoria de Betty Friedan, publicada em
1963, acutilante análise sobre o mal estar físico e psíquico, esse
problema sem nome que atingia mulheres donas de casa da classe
média americana, bem casadas, em lares equipados, desfrutando de
condições materiais de qualidade de vida.

Amor em tempo de guerra


6 Pelo termo amor não designo unicamente os sentimentos e uniões
amorosas e sexuais, mas também as vivências da sexualidade
autónomas do amor, que constam de todos os quadros de todas as
guerras.
7 Numa interpretação literal do título, poderia entender‑se que me
detenho fundamentalmente sobre as vivências amorosas durante os
anos da Guerra Colonial, de 1961 a 1974. Não é assim. Nesta
designação de tempo de guerra, perspectivo o tempo não como uma
mera coincidência temporal restrita em simultaneidade com os anos
do conflito e a sua sequência imediata, mas como uma dilação. Em
rigor, refiro o tempo que os anos da Guerra Colonial, conjugando-se
com outros factores, fizeram emergir de forma decisiva. Enquadro,
particularmente, o tempo que, produzindo-se entre 1961 e 1974,
ultrapassa este quadro cronológico, numa extensão da guerra e além
da duração temporal da guerra. Englobo, também, as profundíssimas
transformações das quais a estrutura económica, social e política,
constituindo‑se como a base inultrapassável, constitui apenas a
superfície. Clarifico: ainda que necessariamente implicada, a
mutação social que se mede estatisticamente, que se analisa
quantitativamente, configura somente o rosto objectivo do tempo
produzido nos anos de guerra. O tempo do exterior, digamos. Mas a
proposta que apresento é de análise do tempo do interior, o tempo
gerado pela interiorização das experiências dos anos da Guerra
Colonial vividas, no país, por mulheres e, no terreno da guerra, por
homens, e de como esse tempo se revelou e continua a revelar-se nos
(des)encontros amorosos ocorridos no regresso da guerra e no
retomar da vida em comum, em que umas e outros se descobrem
“outros” quando se esperavam os “mesmos”. O tempo, numa
palavra, das subjectividades e das intersubjectividades.

A escrita literária sobre a guerra colonial


8 Algumas vertentes desta temática foram primeiramente abordadas
em termos ficcionais. Relativamente à Guerra Colonial, sobressai
uma literatura de raiz acentuadamente autobiográfica, exercício
solipsista sobre as memórias, ainda não muito abundante, mas, na
generalidade, de grande qualidade: a literatura de autoria feminina
que, situando-se do lugar das mulheres – o lugar das esperas –
aborda mais especificamente a relação, mais ou menos estruturada,
entre os sexos na retaguarda da guerra, quase unicamente no
território das colónias; e a literatura de autoria masculina que,
relatando, predominantemente, as experiências dos homens no
terreno do combate, contém muitas referências sobre as relações
amorosas. E não raramente com uma maior abrangência, porque
inclui não só o modo como os homens vivem a ausência das suas
mulheres, o seu pudor em confidenciá‑lo, posto à prova em situações
limite, mas também o relacionamento com as mulheres das colónias,
o recurso à prostituição, as doenças venéreas, as paixões
inesperadas, as violações, esse crime de todas as guerras.
9 Mesmo quando a questão amorosa surge apenas de passagem – a
referência ao correio, à saudade, ao terror da traição, a solidão dos
afectos, o sofrimento sexual, mesmo quando no conjunto da obra
aparece em estado de quase vestígio, a literatura masculina
representa uma fonte extremamente rica, apelando a uma
hermenêutica multidisciplinar. Impõe-se, porém, uma perspectiva
crítica. Em primeiro lugar, porque esta literatura é produzida por um
grupo social específico: os autores narram quase sempre a sua
experiência de oficiais, com um capital cultural diferenciado, e o seu
olhar era crítico anteriormente à guerra ou tornou-se crítico no seu
decorrer, ou, pelo menos, verifica-se a consciência do absurdo da
guerra ou uma sensibilidade de repúdio pela violência. Por outro
lado, o desenrolar da memória, enquanto construção literária, pode
tornar mais espessa a inultrapassável diferença entre o vivido
recordado e o vivido real.
10 Quanto à literatura de autoria feminina, quase toda nos apresenta
mulheres que acompanharam os maridos na mobilização e que,
portanto, viveram o tempo da guerra, total ou parcialmente, em
África. A experiência que narram resulta de uma vivência de
isolamento, de condicionamento no espaço das protagonistas, num
país estranho, obrigadas quer pelo imperativo da segurança, quer
ainda porque o seu lugar recolhido é objectiva e simbolicamente
determinado. É o caso de Percursos (do Luachimo ao Luena), de Wanda
Ramos, e de A Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge. A experiência
narrada diferencia-se da masculina porque é mais personalizada,
intimista, enquanto as vivências individuais dos autores são
profundamente entrecruzadas na vivência de outros, como aliás se
evidencia nos testemunhos recolhidos, traduzindo uma iniciação,
por natureza, colectiva.
11 Na literatura escrita por mulheres, falta, contudo, ainda o outro
lado: o das mulheres que, permanecendo num país, durante treze
anos, esvaziado de homens, conheceram uma outra abertura do
espaço social, experimentaram outras sociabilidades, por força dos
imperativos da guerra, relacionados com outros factores,
nomeadamente de ordem económica, como o aumento de
investimento estrangeiro em Portugal. Enquanto as primeiras,
confinadas ao espaço concentracionário das casas e da messe, fazem
parte do repouso do guerreiro, as que ficaram tomaram os lugares dos
guerreiros em tempo de paz. Apesar das lacunas referidas em termos
temáticos, coloco a hipótese de esta literatura na e sobre a Guerra
Colonial poder servir como prolegómeno a estudos sociológicos e
psico‑sociológicos, quer pela hermenêutica a que faz implicitamente
apelo, quer porque pode incluir intencionalmente o recurso a
testemunhos directos. Embora a memória constitua sempre uma
construção, na qual se filtram materiais, se adoçam ou não arestas,
se transformam representações, esta construção é, no depoimento,
mais imediata, enquanto a criação do romance a faz passar pela
mediação da escrita literária. Neste sentido, importa salientar uma
experiência que, partindo do campo literário se constituiu como uma
extraordinária reserva de fontes testemunhais sobre a Primeira
Guerra Mundial, a ser trabalhada por historiadores e sociólogos
franceses. Refiro a iniciativa do escritor Roger Boutefeu, que, no
início dos anos 60, publicou em jornais da província um anúncio
pedindo testemunhos inéditos dos combatentes da I Guerra Mundial.
Obteve, assim, 425 testemunhos, que lhe serviram de base para a
obra Les camarades, soldats français et allemands au combat 1914-1918,
publicada em 1966, pela editora parisiense Fayard. A documentação
compreende
um volumoso conjunto de documentos: dois enormes pacotes, com um peso
superior a 45 quilos, e contendo quer diários da guerra, quer relatos
dactilografados, [...] inumeráveis testemunhos manuscritos, de humildes
combatentes sem patente, alguns redigidos em mau papel escolar, com uma
ortografia comovente. (Prost, 1977: 5, 6)
12 O processo desencadeado por Roger Boutefeu, permitindo obter uma
amostra mais representativa das vivências da guerra e, portanto,
uma outra visualização no plano social, configura hipóteses de
interdisciplinaridade potencialmente muito vastas. Mas já
anteriormente, e independentemente da intencionalidade do
escritor, a literatura sobre a guerra, em particular a autobiográfica e
memoralista, parece ter um efeito de provocação testemunhal. Nas
entrevistas que referirei, todos os ex‑combatentes reconhecem que
as obras sobre a Guerra Colonial, escritas por pares, parecem tornar
menos impossível o dizer, após um primeiro momento crítico da sua
recepção.
Foi como se voltasse lá. (Alferes, comissão em Angola)
13 Tempo reencontrado, reabertura de uma ferida de impossível
cicatrização, imersão da memória naquilo que se preferia não
lembrar. Os entrevistados referem sobretudo Os Cus de Judas, de Lobo
Antunes, publicado em 1979, e Autópsia de um mar em ruínas, de João
de Melo, publicado em 1984. Dois entrevistados declaram que a
primeira obra, contestando o silêncio instalado, os perturbou
bastante. 4

Vozes de mulheres e de homens comuns


14 A proposta que apresentei de análise do que chamei amor em tempo
de guerra tem como base um trabalho de âmbito meramente
jornalístico. 5 Dada a sua natureza e âmbito, optei por recolher
histórias de vida e realizar algumas entrevistas dirigidas. Procurei,
em primeiro lugar, chegar a mulheres de diferentes estratos
socioeconómicos que tiveram familiares – maridos, namorados,
irmãos, filhos – na guerra. Num segundo momento, porque se impõe
uma perspectiva relacional, entrevistei homens combatentes, que
projectava seleccionar de diferentes estratos sociais e num quadro
proporcional segundo as diferentes colónias. Contudo, não foi
possível seguir rigorosamente o critério planeado, porque se se pode
seleccionar no universo das mulheres uma amostra relativa ao
estrato social ou ao espaço geográfico, o mesmo tipo de selecção
resulta difícil, e afigura‑se limitado, para o universo masculino.
Foram mobilizados cerca de 800 000 homens, dos quais morreram
cerca de 8000, contando‑se cerca de 110 000 feridos e doentes, 4000
deficientes físicos e, estima‑se, cerca de 100 000 vítimas de stress de
guerra. A questão torna-se complexa, não pela heterogeneidade
deste universo masculino, mas pelo facto de sujeitos de diferentes
meios socioculturais terem vivido, nos mesmos locais, a mesma
experiência que, pela sua anormalidade, criou elos singulares. Todos
eles, actores sociais do confronto bélico, ficaram irreversivelmente
marcados por esse protagonismo, que lhes conferiu uma condição: a
de (ex)combatente. Se é, efectivamente, difícil traçar com rigor o
perfil do combatente, dada a diversidade de meios sociais de origem,
classe social, território, cultura, sensibilidades e ideologias, a guerra,
independentemente das diferenças individuais, representa para
todos uma experiência fundadora de um estado, de uma condição: a
de combatente. Experiência individual e individualizada, mas
irreversivelmente colectiva, funda uma comunidade de situação, de
exílio e também de passagem.
15 A análise dos efeitos da guerra nas vivências amorosas masculinas
torna‑se especialmente complexa pelo facto de impor um
conhecimento rigoroso, documentado, das diversas vertentes das
vivências no contexto do território de combate. No entanto, apesar
da escassez de dados, as dificuldades que referi na aplicação do
critério de pertença social, a morosidade natural das entrevistas,
particularmente em relação ao universo masculino, a natureza do
trabalho, não inserido no campo académico, o seu carácter empírico,
que não permite definir conclusões, mas apenas hipóteses de
enquadramento, as vozes que aqui trago conseguem permitem
vislumbrar a natureza de alguns dos problemas das vivências
amorosas, nomeadamente no período pós‑desmobilização, por efeito
da guerra.
16 Entrevistei vinte e sete mulheres do meio urbano,6 da classe média
baixa e da classe média, a maioria com instrução secundária
incompleta. E entrevistei 16 ex-combatentes. Não entrevistei
soldados nem cabos. Apenas sargentos e oficiais oriundos do meio
urbano e com escolaridade média ou superior, quase sempre
incompleta porque alguns eram estudantes universitários na altura
da mobilização. Estas entrevistas não são equilibradas quanto à
distribuição geográfica da vivência da guerra: 11 correspondem a
comissões, às vezes repetidas, na Guiné; 3 em Moçambique e apenas
2 em Angola. Foram entrevistas muito difíceis, porque é enorme a
barreira de silêncio,7 de que apenas terão tocado a superfície e
porque nesta problemática infiltra-se o inabordável.
17 No percurso destas mulheres e destes homens pelo tempo da guerra
sucedem-se três momentos: o da pré‑mobilização, com os homens
inseridos já no serviço militar; o período de prestação de serviço no
território da guerra, em África; e o período pós‑desmobilização. O
segundo momento, o da ausência, domina os outros momentos –
experimentada, no período prévio, como uma antecipação ansiosa,
essa ausência é vivida depois do regresso como um denso hiato
relacional, na maioria dos casos complexo de gerir.
18 Logo que ocorria o recrutamento, a ausência, antes de ser um facto,
surge como um factor de inquietação que parece alterar o ritmo da
relação amorosa. Várias entrevistadas expressam, como efeito da
iminência da mobilização, uma maior vibração sentimental.
A paixão parece que ficou mais acesa. (Carlota, 42 anos, empregada de comércio)
Percebi como o meu namorado era importante para mim. (Fátima, enfermeira)
Não sabia como iria suportar a ida dele. (Manuela, 41 anos, empregada de
escritório)
19 Mulheres e homens referem exemplos em que a proximidade da
mobilização surge como factor de precipitação da estabilidade da
relação, embora no universo dos entrevistados tal se verificado
apenas num caso:
Se não fosse a mobilização, não tínhamos casado e era escusado o que passámos
no meu regresso até ao divórcio. (Furriel, comissão em Angola)
20 Deste primeiro momento, marcado pelo recrutamento e a
mobilização, todos os entrevistados, mulheres e homens relatam a
partida do Cais de Alcântara como a primeira de uma série de
provações bem mais pungentes do que haviam imaginado.
Parecia que não estava em mim, era como um sonho. Quando ele subiu para o
barco eram tantos os homens que deixei de vê-lo, acenava sem saber onde ele
estava, por mais que olhasse não o via e depois quando o navio começou a
afastar-se e ficar cada vez mais pequeno, chorei, chorei, não quero que me
lembre, e as senhoras do Movimento Nacional Feminino a ralhar porque nós, as
mulheres e as mães choravam e algumas gritavam. (Carlota, 42 anos, empregada
do comércio)
As gajas do MNF andavam por lá todas sorridentes a dar-nos cigarros, livros de
bolso, cordel, só cordel, e meias, vejam bem, meias! E a dizer que não havia
motivos para aquela aflição das nossas mulheres e nós, tão aflitos como elas, mas
a disfarçar. (Furriel, comissões na Guiné) 8
21 Com a partida dos homens, iniciava-se o longo tempo das ausências
e das esperas, vividas, segundo ressalta nas entrevistas, com um
mesmo sentimento de estranheza, ainda que uma estranheza
desigual entre elas e eles. Para os homens era mais brutal, mais
imediata, e começava com a chegada.
Para mim África era uma parte do estudo, bem chato, da história do Matoso. E dei
por mim lá. Era uma natureza bonita, mas as chuvas, o calor, a humidade, os
pântanos, era tudo estranho. (Alferes miliciano, comissão em Angola)
22 Uma estranheza crescente, uma iniciação num outro mundo, a que
se acostumavam como estratégia inconsciente de sobrevivência.
Felizmente a gente habitua-se a tudo, se não dávamos em malucos. E no meio
daquilo fazíamos amizades, o jogo de cartas ajudava a passar as noites e a bebida
também ajudava. No meio dos copos dizia-se uma piada, falava-se da vida, do
regresso... (Furriel, comissão na Guiné)
23 De uma outra forma, menos aguda, as entrevistadas acabam por
verbalizar sensações de estranheza quer quando dizem como foi
árduo habituarem-se à ausência dos seus homens, quer quando falam
das situações daí derivadas. Muitas das entrevistadas
(concretamente, dezanove) começaram ou recomeçaram a trabalhar.
A entrada no mercado de trabalho surge como um marco distintivo
do antes e do depois na vida destas mulheres, através do acesso a
uma autonomia, da qual, mais do que o salário, é salientada a
aprendizagem de uma outra gestão dos recursos e da vida
quotidiana.
Ao princípio custava-me muito levantar-me cedo, mas conviver com outras
mulheres, éramos muitas nos Armazéns, e receber dinheiro ganho por mim,
sabia-me tão bem. Antes de eu trabalhar, tinha mais tempo mas fazia menos
coisas. (Carlota, 42 anos, empregada do comércio)
Lembro-me que a primeira vez que passei um cheque, enganei-me e tive de
passar outro. E não era uma analfabeta, tinha o sétimo ano. Só depois da guerra é
que tirei o curso. (Maria, 45 anos, engenheira)
24 É surpreendente como passar um cheque é referido pelas mulheres
como sintoma da autonomia que a guerra provocou. Depositar
dinheiro, ir pagar contas, mesmo as domésticas (electricidade,
telefone), tratar dos impostos e contribuições, comprar bens de
equipamento, gerir sozinha a casa – tudo isto surge como uma
incursão num domínio até aí masculino. Ter, de repente, tempo livre,
porque o jantar não tem de estar na mesa a horas, é sentido com
surpresa pelas mulheres casadas.
Ao princípio faltava-me qualquer coisa. Não sabia o que fazer. Andava em casa de
um lado para o outro, limpava o pó, inventava que fazer. A dada altura começou
a saber-me muito bem, ter tempo para fazer o que queria e podia não querer
fazer nada. (Manuela, 41 anos, empregada de escritório)
25 A travessia de uma situação para outra, com maior abertura e
responsabilidade pessoal, não se processava pacificamente. A
transição implica adaptações, aprendizagem, contradições,
percepcionadas com alguma perplexidade, nem sempre cómodas.
Eu antes não tinha auto-estima, independência, e até gostava, acho que
alimentava a ideia de uma certa incapacidade a que o meu marido achava graça.
As coisas tornaram‑se, por um lado, mais difíceis. (Carlota, 42 anos, empregada
de escritório)
26 O alargamento das sociabilidades, a emergência de novas amizades,
verifica-se no quadro das novas vivências de maior autonomia,
ocorrendo frequentemente como resultado da convivência no meio
profissional. Ir a um café, ir ao cinema com amigas ou, mais
raramente, sozinha, começam por surgir como aventuras que depois
se banalizam.
27 Pelo contrário, as amizades entre os homens no terreno da guerra
eram tecidas num contexto de partilha de insegurança, dor e
confronto com situações limite.
O que passámos juntos criou laços muito fortes, às vezes não fáceis de
compreender. Nenhum outro tipo de amizade é como estas da guerra. Até posso
gostar mais de um ou outro amigo do trabalho ou da escola, mas não é igual. Só
os que por lá passaram sabem como é. (Capitão, comissão em Moçambique)
Só com os amigos que lá fiz, alguns nem são assim tão amigos, mas só com eles
me sinto bem. (Furriel, comissão na Guiné)
28 Observa-se também que, embora com muito menor frequência,
alguns ex‑combatentes não fizeram amizades e não querem manter
qualquer contacto com companheiros de armas:
Éramos só isso, companheiros de armas. Fizemos e passamos juntos coisas
inesquecíveis. Mas fora um caso ou outro, não tínhamos nada em comum quando
nos encontrámos, não escolhemos encontrarmo-nos naquela situação e
momentos de grande ligação, que os houve sem dúvida, foi no campo da guerra.
Na paz não tenho nada para lhes dizer, não quero encontrar ninguém dessa
altura, não quero nada que me faça lembrar o que não posso esquecer. (Alferes,
comissão em Angola)
29 Algumas entrevistadas confessam que tinham “um certo cuidado”
no contar aos namorados ou maridos “certas coisas, sem importância
como ir ao cinema”, por receio de que não entendessem, as
censurassem ou julgassem que elas não tinham saudades. Coloca-se a
hipótese de que as mutações na vida das mulheres, relatadas nas
cartas aos homens, pudessem provocar um sentimento de
insegurança que, embora não constituindo o único factor,
concorresse para rupturas em namoros, por vezes de longa duração,
decididas pelos combatentes debaixo de carga emocional.
Quando regressasse logo se via. Assim não havia compromisso, ela ficava livre.
(Furriel miliciano, Moçambique).

Amor e sexualidades em tempo de ausência


30 Em todas as entrevistas, o correio surge mencionado como o
elemento que torna suportável a insuportabilidade da separação. As
cartas constituem o único meio de contacto entre os homens
ausentes e as mulheres que os esperam. É pelo correio que passam a
saudade, as afirmações de amor, o encorajamento mútuo. É pela
chegada do correio que as mulheres sabem que os homens estão
vivos e os homens sabem se são esperados e amados. As mulheres
referem a ansiedade, o desassossego quando as cartas tardavam.
Ficávamos com o coração nas mãos. Os maus pensamentos vinham logo. (Fátima,
enfermeira)
31 Mas é no terreno da guerra nas colónias que o correio assume uma
importância que alguns dos entrevistados designam por “vital”:
Não era só a ansiedade de termos notícias, a saudade, mas também o modo como
os outros chateavam os que não recebiam cartas. Não era por mal mas havia logo
bocas um bocado cruéis: “Já estás enfeitado”, “pôs-te os cornos”, como calcula a
linguagem mais vernácula não era a dos oficiais. Mas, depois, quando viam o
companheiro em baixo tentavam consolar. Diziam, “És maluco, a miúda gosta
mesmo de ti”. (Sargento, comissões em Angola)
32 Refira-se que a importância do correio na manutenção da ânimo das
tropas motivou em todas nas grandes guerras do século XX um
investimento estatal, directo ou indirecto, no âmbito do esforço
psicológico de apoio à guerra, nomeadamente utilizando as
organizações oficiais ou oficiosas de mulheres. No caso da Guerra
Colonial, o correio foi objecto de uma acção programada e eficaz do
Movimento Nacional Feminino através da criação e ampla
distribuição dos aerogramas, os papa‑estradas, e da organização de
uma rede de madrinhas de guerra, que, à semelhança de outros
países, nomeadamente desde o primeiro conflito mundial, visava em
particular soldados de famílias não alfabetizadas e famílias de parcos
meios. Como é evidente, para jovens sem relações afectivas
femininas, a madrinha de guerra representava a ligação mais
contínua com o país, mulher sem rosto ou quanto muito de rosto
numa fotografia de passe, mas a única que os ouvia, quase a única que
lhes escrevia regularmente, a que, de vez em quando, lhes enviava
lembranças. Daí o frequente envolvimento emocional por parte dos
homens referido, em tom de censura, na imprensa do Movimento.
[S]oldados [que] tomam para com as Madrinhas atitudes de intimidade
sentimental que, por serem inoportunas e grosseiras, magoam as senhoras que
tão generosamente se prontificaram a dar-lhes o amparo material que nunca
pode nem deve ser excedido. 9
33 A solidão afectiva, mesmo se mencionada pelas entrevistadas como
muito dolorosa, não assume o tom amargo das declarações dos
homens. Ao contrário dos homens, elas nunca relatam a privação da
vivência sexual como dramática. Das entrevistas com os
ex‑combatentes ressalta como o desejo acossava os homens. Desejo
das mulheres que deixavam no país. 10 Desejo de qualquer mulher, de
um qualquer corpo, no qual se esquecesse, mesmo num momento
breve, a guerra, através do qual se afirmasse, mesmo efemeramente,
que se estava vivo.
Os que tinham noiva ou mulher continham-se mais. Os que não tinham, queriam
qualquer uma. Não importava a cara, nem se lembravam depois dela, alguns era
de pé, era só aliviarem-se. (Sargento, comissões em Angola)
Às vezes estávamos nós há semanas e semanas sem ver uma mulher branca e
apareciam as gajas do Movimento Nacional Feminino. Ninguém gramava o
movimento, mas naquelas ocasiões a gente comia-as com os olhos. Elas sabiam-
no e deviam pensar nisso quando fornicavam com os maridos. (Furriel, comissões
na Guiné) 11
34 Daí que a prostituição tenha representado outro suporte
significativo do processo de mecanismo psicológico pela manutenção
do estado de espírito dos homens na guerra. Quando existia a
promessa ou a expectativa de que no aquartelamento os aguardavam
prostitutas, os homens portavam-se com mais ânimo no mato.
Quando passavam longos períodos sem recurso à prostituição e lhes
era concedida a ida a uma cidade, “chegavam a parecer animais
selvagens”, relata um oficial entrevistado.
35 Os entrevistados referem como muito frequentes as doenças
venéreas, mas sublinham que este risco não afastava os homens da
vivência do prazer e alguns soldados, apesar da incomodidade,
pareciam orgulhar-se da contaminação. A doença venérea
representaria certamente nestes casos uma ferida simbólica de
afirmação viril. Uma vez recuperados, regressavam ao recurso à
prostituição com a mesma desprotecção. Aliás, poucos meios tinham
de se proteger. Não eram distribuídos preservativos e sobretudo os
soldados temiam que as sulfamidas dadas pelos médicos lhes
retirassem a potência.
Abríamos a breguilha e o enfermeiro, de bisnaga na mão, besuntava-nos com
pomada antivénerea. (Furriel, comissões na Guiné) 12
36 A vivência solitária da sexualidade é dita como comum,
particularmente entre as patentes mais baixas. Chamavam à
masturbação a instituição dos soldados.
Fartavam-se de masturbarem-se para as latrinas. Não era uma vez por outra.
Muitos quanto mais se masturbavam mais medo tinham de ficarem doentes.
Havia rapazes que perguntavam ao enfermeiro se o líquido não vinha da espinha,
se não se esgotava e não ficavam doidos. (Capitão, comissão em Moçambique)
37 Entre as entrevistas às mulheres surgem confidências sobre alguns
flirts, atracções, uma ou outra mais séria, durante a ausência dos seus
homens, vividas e recordadas com culpabilização, uma ou outra com
nostalgia.
Quem sabe se eu tivesse ficado antes com o outro, se o meu namorado não
estivesse, na altura, em África, se calhar tinha acabado, mas também se calhar
não acontecia. (Fátima, 39 anos, enfermeira)
38 Mas enquanto estes casos não são assumidos como importantes e
muito menos decisivos de rupturas, entre os ex-combatentes
entrevistados é mencionada a ocorrência de relacionamentos mais
sérios com as mulheres das colónias, dos quais alguns, raros, “davam
em casamento”.
Colegas chegavam lá e enamoravam-se. Um que eu conhecia apaixonou-se por
uma moça amulatada, acabou o namoro de cá e quando veio embora, trouxe-a e
casou com ela. (Alferes de Moçambique)
Vivi com uma rapariga na Guiné dois anos e mais dois anos. Era lavadeira,
comecei por lhe dar roupa a lavar e acabámos a viver juntos. Era cá casado e com
filhos. Quando vim de vez chorava ela e chorava eu. Nunca me hei-de esquecer
daquela mulher. (Sargento, comissões na Guiné) 13
39 Os entrevistados declaram também, ainda que não o assumindo
como sentimento pessoal, o medo obsessivo da impotência, de
“perder a tesão”, entre os combatentes, e o pavor entre os casados de
que a impotência se mantivesse uma vez regressados ao país.
Ouvi uma vez uns tipos, eles deram conta de que eu estava a ouvir. Dizia um que
nem com um carro de bois era capaz de levantar o coiso, ele não lhe chamava
assim como calcula, era mais vernáculo, e o outro que era de Lisboa, respondia-
lhe com uma certa piada: “Deixa lá que eu nem com um guindaste”. (Capitão,
comissão em Moçambique)
40 A homossexualidade só abordada quando colocada directamente por
quem entrevista, é negada com firmeza
No Exército nunca... (Alferes, comissão em Angola)
41 Maior incomodidade suscita a questão sobre a ocorrência de
violações como arma de guerra, ou simplesmente praticadas sobre
mulheres da população local. No primeiro caso, os entrevistados
negam ter assistido a violações nas investidas bélicas, mas conhecem
a sua prática em prisioneiras.
Era sabido que em quartéis da PIDE violavam mulheres, acusadas, com razão ou
não, de ligação à guerrilha. (Alferes, comissão em Angola)
42 O segundo caso, violação de mulheres da população, é dado como
frequente, como acontecimento quase banal:
As lavadeiras muitas vezes não escapavam. Os soldados e até furriéis não estavam
com meias medidas. (Alferes miliciano, comissão em Moçambique)

O regresso: entre o dizível e o indizível


43 Se o regresso dos homens é vivido intensamente, como o fim de uma
ameaça, como um reencontro ansiado e acolhido com euforia,
segundo as declarações de todas as mulheres e da maioria dos
homens, frequentemente as tensões pareciam instalar-se quase de
imediato no retomar da vida em comum. As entrevistadas não são
capazes de determinar uma causa concreta. Algumas reconhecem a
contradição interior entre a necessidade de liberdade a que se
habituaram na ausência dos homens e a dependência amorosa que
tende a perdurar.
Às vezes eu até queria voltar a ser como ele estava habituado a que eu fosse.
(Ana, 38 anos, estudante universitária)
44 Falam sobretudo de um “mal‑estar instalado”, “silêncios”,
“estranheza mútua”, mas acabam por identificar sintomas. Eis
alguns passos das entrevistas gravadas:
Ele não aceitou que eu tinha mudado. (Luísa, 40 anos, professora do ensino
secundário)
Não havia nada a fazer. Depois de ele vir da guerra não nos entendíamos. Ele
acusava‑me de não ser a mulher com quem casara e eu achava que ele também
não era o mesmo. (Maria, 45 anos, engenheira)
Separámo-nos por uma coisa que parece ridícula, foi a gota de água. Foi em 77,
cheguei a casa e levava uns folhetos para escolhermos as férias. Ele fez uma fita.
Foi mesmo violento, que sempre tinha sido ele a escolher as férias, se agora
andava a meu mando. (Carlota, 42 anos, empregada de comércio)
45 Contudo, o mais frequente são os desabafos sobre o desajustamento
sexual.
Antigamente estava sempre pronto, por vezes até tinha de me esforçar porque
nem sempre uma pessoa está para aí voltada, agora ele nunca está com
disposição. Estamos mais de um mês que não nos tocamos. (Luísa, 38 anos,
empregada de escritório)
Veio desenfreado. Pensei que era pela falta lá na guerra. Mas os anos passaram e
continua assim. Diz que sou frígida. Antes nunca me disse tal coisa. Eu trabalho.
Tenho actividade sindical e ele quer que eu esteja sempre disposta. E antes
preocupava-se com a minha satisfação, agora só ele é que conta. (Manuela, 41
anos, empregada de escritório)
Fez-me sofrer muito. Deixei de prestar como mulher. Ele dizia que uma negra até
lhe lambia o rabo, desculpe lá a expressão, e eu não estava para isso. (Lourdes, 37
anos, caixa num supermercado)
Ficou muito afectado e não vejo solução. Só consegue excitar-se, masturbando-se.
Não é capaz de penetração. Só fazemos sexo oral. (Fernanda, 48 anos, empregada
administrativa)
Divorciámo-nos com certeza por muitas razões mas o que tornou a nossa vida
impossível foram os ciúmes do meu marido. Ele considerava que eu estava muito
mais activa sexualmente e tinha razão. Mas ele atribuía o facto à experiência que
eu teria tido na sua ausência, o que não era verdade. Nunca o traí mas não
acreditou. (Cristina, 46 anos, professora do ensino secundário)
46 Se alguns dos homens entrevistados responsabilizam, por vezes, a
mudança que vislumbraram nas mulheres, outros evidenciam a
percepção, o lamento, a raiva, de que a vivência da guerra os coloca
numa irreversível solidão face à mulher que amam.
Não dá mesmo para contar. Às vezes nem parece verdade o que dizemos. E há
coisas que elas não podem entender. Tudo o que se poder dizer, não diz. (Alferes,
comissão em Moçambique)
47 Consideram intransmissível a angústia da espera do ataque, do
bombardeamento, a terrível invisibilidade do “inimigo”, o enfrentar
da morte: a morte dos outros, os outros desconhecidos, e,
fundamentalmente, a morte dos amigos.
Um rapaz da minha terra morreu comigo a tentar meter-lhe os intestinos para
dentro e a dizer-lhe que se ia safar. Foi o primeiro gajo que vi morrer, logo
aquele. Antes ele do que eu, mas custou muito. Andei para aí uma semana
bêbado. Era a forma de cair para o lado sem o ver, sem sentir as entranhas dele
nas mãos, a escorregarem. (Sargento, comissão na Guiné)
Era um gajo porreiro. Filho único, um bocado ingénuo, um bocado verde, mas
estava sempre bem disposto. Eu gostava mesmo do tipo. Só embirrava porque ele
fumava como uma chaminé e estava sempre a cravar-me. Uma tarde, quando já a
caminho da picada, de repente, rebentou uma mina. Ele era só uma massa de
sangue mas agarrei-me aos bocados dele e chorei como não me lembro e berrei:
“Cabrão de merda não me morras. Eu deixo-te fumar o maço todo”. (Furriel
miliciano, comissão na Guiné)
48 No entanto, a experiência mais indizível é a vizinhança, a
possibilidade concreta da sua própria morte.
Ninguém nos prepara para aquilo. Nem deve ser possível. (Sargento, comissões
na Guiné)
49 Entre o incomunicável, intraduzível mesmo para eles próprios,
referem a experiência do pânico, “borrarem-se de medo”, chorarem
clamando pela mãe, os pesadelos antes do combate, em pleno
combate, no limiar da morte; o não quererem mexer-se com pavor
dos “turras”, quererem que os deixassem no mato, as automutilações
desesperadas, mesmo arriscando uma deficiência, infligidas para
escapar ao horror da guerra.
Nunca pensei que os homens morressem assim, chamando pela mãe como se
fossem crianças. Ainda sonho com os “Ai minha rica mãezinha...”. (Capitão,
comissão em Moçambique)
Quantos não davam um tiro no pé, nas pernas, para serem desmobilizados, para
regressarem. Quantos não atazanavam o médico, quando ele era um gajo
porreiro para ele lhes arranjar uma doença. Pediam-lhe quando estavam pelos
cabelos ou brincando. Brincando, brincando... (Sargento, comissões na Guiné)
50 Assim, entre o dizível delas e o indizível deles, entre o verbalizado e
o oculto, entre as palavras amargas e os silêncios pesados, situam-se
desajustamentos, rupturas mas também a tentativa, por vezes, de
reencontro de dois seres que, apesar das enormes mudanças,
permanecem ainda os que se amaram.
Pode ser que com o tempo... (Capitão, comissão em Moçambique)
Desde que ele concordou em ir às sessões do stress pós-traumático de guerra, as
coisas parecem, às vezes, melhores... (Luísa, empregada de escritório)

Em conclusão: a urgência de análises


multidisciplinares
51 Se todas as entrevistas efectuadas expressam a intraduzível dor das
ausências e das esperas, é no universo da dezena e meia de
ex‑combatentes que se vislumbra o mais espantoso sofrimento,
dilacerado e dilacerante. As práticas e as representações
relativamente ao masculino não pressupõem a fragilidade
emocional, manifestada na situação limite que é a guerra, e a
vivência desta fragilidade que os homens experimentaram
envergonhadamente e com enorme estranheza ora é relatada numa
terceira pessoa, ora é representada, dissimulada com alguma
brutalidade e um humor não raramente obsceno. Note-se que os
entrevistados falam não somente de si, mas também, de uma forma
muito intensa, dos seus companheiros ou, como dizem em caso de
comando “dos seus homens”. Aliás, nas primeiras conversas, falam
mais dos outros (ou do que apresentam como outros), do que de si. E
falam desses outros como um nós, inacessível aos que não passaram
pela guerra. Ressalta das declarações que as experiências partilhadas
produziram, quase sempre, um tipo de intimidade entre os
combatentes que eles pensam ser incompreensível para as mulheres.
Não somente as experiências do horror mas também as outras, as
solidariedades, as confidências sobre a mulata ou a negra que os
começava a prender, sobre o desejo pelas lavadeiras, muitas vezes
não atendido, sobre o receio de que as doenças venéreas os “lixassem
para sempre”, o fantasma da impotência. E também o medo de não
regressarem, de serem esquecidos, de não chegarem a conhecer os
filhos, entretanto nascidos, não voltarem a ver os que iam crescendo.
52 Esta incomunicabilidade parece constituir-se como uma das
vertentes mais importantes dos desencontros amorosos no regresso
e no pós‑guerra. Mesmo quando os ex-combatentes se esforçam por
transmiti‑las às mulheres amadas, não conseguem reproduzir as
experiências que tiveram, como se as coisas ditas se distanciassem
das coisas vividas.
53 Entre a perplexidade e a culpabilização, consciente ou inconsciente,
muitos dos ex-combatentes só entre si encontram apaziguamento,
através do que alguém já denominou catarsis colectiva. Daí a
necessidade, o ritual dos encontros que tantos continuam a cultivar.
Como se pertencessem a uma outra espécie.
54 Por seu lado, as entrevistas realizadas a mulheres revelam, não
somente a mágoa da separação, o constante temor de que
“acontecesse alguma coisa aos seus homens”, mas também a
convicção de que a guerra trouxe alterações concretas ao seu
quotidiano, que consideram positivas. Nas suas vozes passa o reflexo
das profundas transformações do país durante os anos da guerra.
Nas suas palavras o testemunho de como, de diferentes maneiras, no
âmbito das suas vidas, protagonizaram estas transformações. A
actividade profissional surge aqui como um patamar decisivo para
outras autonomias objectivas, mas sobretudo subjectivas.
55 Se as estatísticas apresentam num desenho fundamental os traços
quantitativos das mudanças sociais, é preciso conjugar, entrelaçar as
mudanças qualitativas inscritas no processo das identidades. Neste
sentido, a própria natureza empírica do presente trabalho faz apelo a
uma análise fundamentada sobre os efeitos da guerra nas relações
amorosas, que problematize, entre outras, estas questões:
de que modo interiorizaram as mulheres as suas novas vivências no tempo das esperas,
como viveram a autonomia, em que meios, em que níveis e segundo que variações (de
classe, territorial, urbano, rural)?
de que forma viveram os homens a ausência das mulheres, desde a tropa (a experiência
da ausência não se prenunciava logo quando do recrutamento?), ao embarque, ao
aquartelamento, à campanha, ao mato, à espera do correio, até às ligações com outras
mulheres nas colónias?
que desencontros provocaram as novas vivências e sociabilidades de parte significativa
da população feminina quando do regresso dos homens, elas e eles tornados “outros” e
aguardando-se os “mesmos”? Como pode a barreira da incomunicabilidade das
experiências pungentes dos homens na guerra fazer avizinhar a morte do amor?
através de que mecanismos respondeu o regime ao dilacerar das intersubjectividades
que a guerra desencadeou, como se processou ideologicamente neste terreno o esforço
de guerra do regime, e qual foi aí o papel desempenhado pelo Movimento Nacional
Feminino e as madrinhas de guerra, iniciativa que mobilizou mais de 23 750 mulheres
correspondendo‑se com 33 400 homens?

56 Penso que urge a recolha de testemunhos como os que reuni e que,


em parte, utilizei como base para este breve levantamento empírico
da problemática do amor em tempo de guerra, e o seu enquadramento
numa análise profunda num contexto multidisciplinar. O momento é
propício, pois assiste-se actualmente a um significativo
desenvolvimento de estudos sobre a Guerra Colonial, no domínio
histórico e sociológico e, mais escassamente, no âmbito psicológico e
sociopsicológico, no qual se enquadra a questão proposta neste
texto. Talvez que o impulso que se observa para estudos
multidisciplinares e interdisciplinares sobre a Guerra Colonial
corresponda também afinal à passagem de um tempo interior de que
necessitámos para o recuperar deste tempo da nossa história.

BIBLIOGRAFIA
Antunes, António Lobo, (1979), Os Cus de Judas. Lisboa: Vega.
Bard, Christine (org.) (1999), Un siècle d’antiféminisme. Paris: Fayard.
Bard, Christine (2001), Les femmes dans la société française au 20ème siècle. Paris: A. Colin.
Knibiehler, Yvonne (1977), La révolution maternelle depuis 1945. Paris: Perrin.

Neves, Helena (2001), O Estado Novo e as mulheres: o género como investimento ideológico e de
mobilização. Lisboa: Museu República e Resistência.
Prost, Antoine (org.) (1977), Les anciens combattants et la societé française. Paris: Presse de la
Fondation Nationale des Sciences Politiques.

Thébaud, Françoise (1991), “A Grande Guerra. O triunfo da divisão sexual”, in Françoise


Thébaud (org.), História das mulheres. Porto: Afrontamento, 31‑93.

NOTAS
1. O presente trabalho tem, no essencial, uma natureza empírica, visando fornecer a base
para uma problematização e fundamentação da análise, que urge realizar, dos efeitos do
tempo da Guerra Colonial nas relações amorosas.
2 Referidos por Françoise Thébaud (1995: 32).
3 Além dos estudos anteriormente referidos, salienta-se ainda os trabalhos de Knibiehler
(1977) e Bard (1999, 2001).
4 “Porque camandro é que se não fala nisto? Começo a pensar que o milhão e quinhentos
mil homens que passaram por África não existiram nunca e que lhe estou contando uma
espécie de romance de mau gosto impossível de acreditar...” (Antunes, 1979: 67).
5 O trabalho que suscitou estas entrevistas visava ser publicado na revista Mulheres que,
entretanto, interrompeu a sua edição em 1989. Retomou-a depois durante um ano, mas, no
início de 1991, deixou, em definitivo, de publicar‑se.
6 Recolhi também dois depoimentos de mulheres do meio rural, os quais, não sendo
representativos como amostra das mutações desencadeadas pela guerra no espaço rural,
permitem a hipótese de a problemática em causa se colocar de forma ainda mais densa
neste contexto. Cito o exemplo de uma mulher de Portel. Casou muito nova, quando da
mobilização do namorado. O marido morreu em Angola em 1973, deixando-a viúva aos 22
anos. Passava os trinta anos quando a entrevistei e continuava de negro, com xaile
dissimulando o corpo, lenço cobrindo os cabelos, meias sem transparência, blusa fechada de
mangas compridas, censurada por vizinhas porque estava no interior de sua casa de porta
aberta, com o lenço colocado para trás. Outra mulher, agricultora de Ansiães, contou que,
com a ida do marido para a guerra, pela primeira vez passou a ir vender os animais à feira
do gado, aprendeu a passar cheques, meteu-se em “coisas de homens”.
7 Ao contrário das entrevistadas, alguns dos entrevistados manifestaram o desejo de se
omitir o nome e outros elementos. Daí ter-se optado por um critério comum de
identificação dos ex‑combatentes, referindo apenas a patente e a colónia onde ocorreram as
comissões.
8 Refira-se que, nomeadamente na sua imprensa e nas intervenções na rádio, o Movimento
Nacional Feminino aconselhava as famílias a não irem despedir-se, para evitar os prantos de
“abjectas carpideiras” (Presença, orgão oficial do MNF, n.º 1, 1963: 6) suspeitas de serem
infiltradas, pois as verdadeiras mães portuguesas abençoariam os filhos sacrificados pela
inteireza da pátria (Neves, 2001: 80). A publicação na imprensa de fotografias das partidas
seria progressivamente condicionada, vindo a ser interdita em 1969.
9 “Carta Aberta ao Caro Militar”, folheto Por Deus e pela Pátria, Lourenço Marques, Ed. da
Comissão Provincial do MNF, Moçambique, Maio de 1963.
10 O desgaste da solidão, da saudade, nos combatentes tornou-se de tal modo problemático
que, em 1969, o Estado criaria condições de incentivo para a deslocação das famílias dos
oficiais e, em Agosto desse ano, estipulava-se que as famílias deveriam permanecer no
“território ultramarino” pelo menos doze meses.
11 Num número da Presença, surge uma fotografia deveras eloquente: mulheres jovens,
caravana do Movimento, num palco, em Bafatá, na Guiné, poses nitidamente coquetes frente a
uma multidão de militares de braços estendidos. Note-se que o Movimento Nacional
Feminino, desenvolverá um investimento de compensação emocional, alimentando
fantasias e o sentimentalismo dos combatentes. A Guerrilha “insere duas páginas de
telenovelas e imagens de misses estrangeiras e calendários de jovens em biquini que fariam
fugir dirigentes da OMEN e corar as da Mocidade Portuguesa Feminina” (Neves, 2001:92).
12 Companhias inteiras foram atingidas pela blenorragia. Entrevistados da Guiné falam de
como o pénis, inchado, infectado, era entalado em talas de madeira.
13 Relativamente a relacionamentos amorosos com mulheres das colónias, relatados pelos
entrevistados como não correspondendo a vivência própria mas por conhecimento de casos,
na insinuação dos afectos parece verificar-se menor efemeridade na Guiné, meio mais
pequeno do que em Moçambique ou Angola, dada a vastidão do território nestas colónias, a
dispersão dos aquartelamentos, a maior mobilidade das tropas e uma prostituição branca
que parece mais frequente.

RESUMOS
O período da Guerra Colonial (1961-1974) produziu em Portugal profundas alterações de
ordem demográfica, económica, social e cultural. Mas se o que é mensurável se encontra,
hoje em dia, mais ou menos visível, há uma vertente que praticamente permanece por
estudar: as vivências da intersubjectividade, dos afectos e das relações amorosas em tempo
de guerra. O que se apresenta é um levantamento empírico desta problemática que urge
analisar.

The period of the Colonial War (1961-1974) produced deep demographic, economic, social
and cultural changes in Portugal. But if what is measurable is currently more or less visible,
there is another dimension that remains practically unstudied: intersubjective experiences,
emotions and love relationships during the time of the war. This paper presents an
empirical survey of this problematic which needs to be further analyzed.

La période de la guerre coloniale (1961-1974) a produit au Portugal des altérations d’ordre


démographique, économique, sociale et culturelle. Mais si ce qui est mesurable est palpable
et plus ou moins visible aujourd’hui, il y a une dimension qui reste à être élucidée: le vécu
de l’intersubjectivité, des affects et des relations amoureuses en temps de guerre. Cet article
présente un inventaire empirique de cette problématique qu’il est urgent d’analyser.

ÍNDICE
Mots-clés: Guerre coloniale portugaise, comportement sexuel - aspects socio-culturels,
relations interpersonnelles
Keywords: Portuguese colonial war, sexual behaviour – sociocultural aspects, interpersonal
relations
Palavras-chave: Guerra colonial portuguesa, comportamento sexual - aspetos
socioculturais, relações interpessoais

AUTOR
HELENA NEVES
Helena Neves é mestre em Sociologia Aprofundada da Realidade Portuguesa pela
Universidade Nova de Lisboa. É professora de Pensamento Contemporâneo e de Filosofia e
Deontologia na Universidade Lusófona e investigadora do Centro de Estudos
Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra. Publicou recentemente: O
Estado Novo e as mulheres: o género como investimento ideológico e de mobilização. Lisboa: Museu
República e Resistência, 2001.
“Até ao fim do mundo”: Amor,
rancor e guerra em Hélia Correia
“To the end of the world”: Love, resentment and war in Hélia Correia
“Jusqu’à la fin du monde” : amour, rancœur et guerre chez Hélia Correia

Maria Manuel Lisboa

Quando a morte cerrar meus olhos duros


– Duros de tantos vãos padecimentos,
Que pensarão teus peitos imaturos
Da minha dor de todos os momentos?
Vejo-te agora alheia, e tão distante:
Mais que distante – isenta. E bem prevejo,
Desde já prevejo o exato instante
Em que de outro será não teu desejo,
Que o não terás, porém teu abandono,
Tua nudez! Um dia hei-de ir embora
Adormecer no derradeiro sono.
Um dia chorarás... Que importa? Chora.
Então eu sentirei muito mais perto
De mim feliz, teu coração incerto.
Manuel Bandeira ( Soneto Inglês n.º 1 )
An enemy is a friend waiting to be made.
Desmond Tutu (entrevista com Zahra Khalidi,
Palestine‑Israel Journal )
1 O Acto Constitutivo da Organização das Nações Unidas para a
Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), redigido a 16 de Novembro de
1945, ainda à vista da carnificina da Segunda Guerra Mundial, abre
com a declaração de que “como as guerras nascem no espírito dos
homens, é no espírito dos homens que devem ser erguidas as defesas
da paz”, a fim de “preservar as gerações vindouras do flagelo da
guerra [reafirmando] a fé nos direitos fundamentais do homem, na
dignidade e no valor da pessoa humana” (UNESCO, 1945).
2 Deixando passar, por agora, e à excepção da última oração desta
frase, a exclusiva referência a direitos do homem, algo que virá
adiante a adquirir significado independentemente de um feminismo
considerado por alguns como rezinguento e coca‑bichinhos, a ênfase
dada pela declaração acima citada ao papel fundamental da cultura
em questões relativas à sobrevivência da espécie vem já de trás: “No
princípio”, diz-nos o Evangelho de S. João, “era o Verbo, e o Verbo
estava com Deus” (S. João 1:1). No princípio, porém, diz-nos o Livro
do Génesis, existia também, e existiu desde sempre, a guerra. Menos
edificantemente ainda, e desde sempre – lembrando o mau exemplo
de Jeová, castigador impiedoso dos filhos edénicos que tentaram
infiltrar o que até aí era o monopólio paterno sobre a sabedoria, ou
ainda o péssimo exemplo de Abel e Caim – a guerra em família e
entre famílias.
3 Sigmund Freud, o grande superintendente da nossa sabedoria
emocional contemporânea, debruçou-se, em torno da análise de
fenómenos tais como o complexo de Édipo e o problema do tabu,
sobre o ímpeto parricida de filhos contra pais, seleccionando,
segundo esse critério de violência unidireccional, exemplos retirados
da teologia e de clássicos antigos e recentes (Freud, 1962; Freud,
1991). Mas Freud, porventura, enganou-se e enganou-nos, ou, então,
cedeu a um parti pris, ao dar uma prioridade paranóica ao instinto
parricida. É possível demonstrar que o que manda na loja psíquica é
o imperativo infanticida, de pais contra filhos, e não parricida, de
filhos contra pais. Só quando o patrão está fora é que é dia santo na
loja. Seja como for, o sangue derramado, com frequência inquietante,
é o de um qualquer Eu em guerra contra os seus.
4 Quer no pelouro do mito, quer da religião, quer da cultura, quer,
como exporei adiante, da psicanálise e, por associação, da família, a
guerra bem entendida começa por casa. E que melhor exemplo de
carnificina familiar do que o exemplo dos irmãos míticos Atreu (pai
de Agamemnon) e Tiestes, este último levado à traição pelo irmão a
aceitar o convite para um banquete em que “come os filhos
guisados”. Esta descrição de filhos guisados e de “uma família em
que até já serviram [as crianças] ao jantar como prato principal”, é
de Hélia Correia, em O rancor: Exercício sobre Helena (Correia, 2000: 13,
97), peça hilariante em que o panorama galopante da tragédia e da
epopeia gregas transformadas em farsa nos alicia para o terreno de
gargalhadas que, muito queirosianamente, nos deixam com mau
travo na boca. A peça de Hélia Correia, pela sua dimensão dupla de
ancestralidade e contemporaneidade, servir-me-á de ponto de apoio
textual para o desenvolvimento de algumas considerações sobre o
tema das mulheres e da guerra.
5 Os registos ancestrais do Mito e da Literatura estão semeados de
banhos de sangue familiares, de despudores e de sem-vergonhas.
Helena, esposa devassa e marafona, foge ao marido, causa
mortandades sem fim ao longo de uma década, e ocasiona o ruir da
civilização troiana, antes de regressar incólume ao marido e à
pacatez da vida conjugal restaurada. Para além disso, e para refinar o
insulto, quando lhe é imposto o embaraço de acolher Telémaco, filho
de um Ulisses à data supostamente morto no regresso de Tróia – ou
seja, indirectamente morto por culpa dela – a dita, na epopeia
homérica, entrega-se a recordações assaz descontraídas acerca das
suas aventuras na Ílion, e comenta que, efectivamente, poderia
ter‑se comportado melhor, “desavergonhada mulher que eu então
era” (Homero, 1984: 68).
6 O perdão, e o auto-perdão, foram, para Helena, escandalosamente
fáceis de alcançar, o que fará naturalmente engulhos a quem
alimente pruridos mais rígidos em relação às fraquezas
morais/conjugais femininas. Helena, está bem de ver, é a mãe-esposa
despudorada que nos amamentou e aliciou no berço da nossa
cultura. As páginas primevas dos Gregos estão povoadas das suas
irmãs (incluindo irmãs de facto, não metafóricas): Clitemnestra,
assassina de um marido infanticida da própria filha; Medeia,
assassina dos filhos do marido infiel; Antígona, parente
insubordinada e semeadora de discórdia. Etcetera. Duas
componentes constituem os factores constantes e as circunstâncias
atenuantes destas várias equações de insurreição feminina: primeiro,
tratar‑se de crimes em resposta a uma provocação e, segundo, a
realidade de mulheres apanhadas em conflitos familiares, políticos e
nacionais regidos por imperativos masculinos belicosos que a elas só
tangencialmente, embora com a maior pungência, diziam respeito.
7 Primeiro, então, a provocação. Axioma: um pai que mata uma filha
por motivos de avanço na profissão merece a morte às mãos de
qualquer mãe digna desse nome; quanto mais um pai que, tal como
Agamemnon, matou, não uma, mas duas filhas daquela mater
dolorosa, brutalmente traduzida em criminosa descontrolada, que foi
Clitemnestra. É sabido que Agamemnon sacrificou Ifigénia aos
deuses em troca de uma brisa propícia à largada para Tróia
(Eurípides, 1978). O que é menos sabido é que o mesmo Agamemnon
matara também já outro filho (ou filha, conforme a versão), que
Clitemnestra trouxera de um casamento prévio (Grant e Hazel, 1993:
16). Perante esta provocação dupla, que mãe não teria feito o
mesmo? Em O rancor, Etra, rainha transformada em escrava, figura
angustiosa mas nunca angustiada e sempre espirituosa, comenta em
jeito de conversa ligeira que “os vencidos desenvolvem uma
estranha aptidão para a mentira, sofrendo, por conseguinte, de uma
espantosa falta de rigor” (38). Não sem justificação, diríamos nós
agora, visto que a História, como é sabido, nunca foi escrita nem
pelos vencidos nem para os vencidos. Seja pela via da mentira, da
intriga, da traição ou do homícidio, há vinganças que são não só
justas e compreensíveis, como necessárias. Ou não seja verdade que
em tempo de guerra tudo vale, até tirar olhos, incluindo, está bem de
ver, as guerras começadas por outros, e combatidas segundo as
regras dos outros.
8 Passando, em segundo lugar, à questão do feminino encurralado em
conflitos alheios, em O rancor, Helena observa que quando “as
mulheres falam contra a guerra, os homens zangam-se” (14), e ainda
que “tem muita fome, a guerra. E boa boca. Não escolhe a qualidade
da comida. Se novos não houver, os velhos servem” (27). A percepção
feminina da guerra, que para as mulheres, efectivamente, de um
modo geral é a guerra dos outros, ou de um Outro masculino,
contrasta acentuadamente com a visão masculina, conforme
transmitida aqui por Menelau, que, embora confessando que “esta
guerra contra Tróia [tenha sido excessiva]. Longínqua, prolongada,
invernos, verões, falta de banhos. E de fruta, já se vê” (23-24), dela
conserva boas recordações:
Lá uma guerrazita de vez em quando, um saque, umas escravas, não está mal. É
como os jogos: exercita os músculos e até se não se ganha alguma coisa valeu a
pena ter participado, mais que não seja pela mudança de ares. (23)
9 Ganhar ou perder é desporto, seja na guerra ou não seja, e a guerra,
como fica estabelecido, pode ser um bom desporto. Para Menelau, a
guerra é “uma grande senhora”, ao passo que, para Etra,
representante do sofrimento feminino grego (rainha de Atenas) e
troiano (porque capturada como espólio de guerra em Tróia), a
guerra é “uma cabra” (15). Resume-se aqui o fenómeno, histórica e
antropologicamente aceite, mas, como argumentarei adiante,
também contestado e em Hélia Correia desconstruído, segundo o
qual o homem está para a guerra como a mulher está para a paz, em
oposição hegeliana (heliana?) sem síntese visível. O binómio
guerra/paz, então, intuitiva e culturalmente, segundo a sabedoria
vigente, põe a mulher em paralelo com a paz, situando o homem nas
fileiras da guerra, sendo que à mulher compete parir e ao homem
matar. A pergunta chistosa feita em França a uma mãe de muitos
filhos, “vous travaillez pour l’armée, Madame?”, é a articulação
jocosa, mas pungente, do imperativo que à mulher exige que
perpetue ad infinitum o abastecimento de carne de canhão, parindo
para fornecer os filhos da geração guerreira seguinte, a qual ao
homem, por sua vez, de seu direito, e se assim lhe convier, cumpre
ciclicamente chacinar.
10 Será então um facto incontestável que o pelouro da produtividade e
da procriação é feminino e o seu oposto masculino? Ideia algo
contraditória no contexto de uma tradição metafísica greco-judaico-
cristã dominada por versões múltiplas, divergentes e contraditórias
dos processos de origem e perpetuidade: por um lado, o guião
prototípico de mulheres semeadoras da discórdia entre machos (Eva,
Helena, Ginebra, Iracema, etc.); por outro, o de um Deus-Pai criador
supremo e governante de mulheres submissamente subalternas,
preponderantemente passivas e apenas secundariamente
participantes (enquanto escravas do Senhor) no processo de geração;
e, por fim, o de um Deus potencialmente cataclísmico e aniquilador
dos seus insatisfatórios filhos (é ver os exemplos de Adão e Eva, do
dilúvio genesíaco, ou das cidades da planície).
11 Seja como for, à mulher, como já ficou dito, compete parir, com
certas excepções – tais como, por exemplo, a Medeia de Eurípides,
que, como é sabido, afirmou que, perante a dor do parto, preferiria
combater três vezes na frente de batalha do que parir um único filho
(Eurípides, 1986: 25). Pode argumentar-se que quem enfrenta a dor
inerente ao acto de dar à luz tem uma aversão maior a matar o que
tanto trabalho (de parto) lhe deu a produzir. Não matarás. Afigura-
se-nos que o sexto mandamento da lei de Deus, embora assuma
autoria e enunciação masculina, é de sua essencial natureza
feminino, conforme atestam aliás as estatísticas universais do crime
de homicídio, quase invariavelmente um acto de origem masculina,
em qualquer país e em qualquer época. Quando produz um filho ou
uma filha, a mulher investe em ver a sua obra perpetuada. Quando
produz um filho, o homem investe em ver-se a si próprio
perpetuado. E quando produz uma filha, que não lhe transmitirá o
nome, não investe nada. É a diferença entre a arquitectura
construtiva de moralidade a longo prazo e o narcisismo
potencialmente sem saída a curto ou médio prazo.
12 Com referência a Homero, Eurípides, Virgílio, Chaucer e
Shakespeare, Lorraine Helms desenvolve o conceito da guerra à
outrance combatida pelas mulheres nas tragédias destes autores, ou
seja, a guerra combatida em paralelo à luta armada convencional, e
que visa o desiderato não de destruição do oponente, mas antes de
defesa e protecção dos seus ou, no mínimo, de reconstrução
resgatada das ruínas, como alternativa à acção guerreira masculina
(Helms, 1989: 25-42). Nesta guerra à outrance, o amor desempenha
um papel que Barbara Freeman, em outro ensaio, com razão rejeita
enquanto antítese da guerra, entendendo-o antes como
participante – com voz diferente – no mesmo diálogo mortífero
(Freeman, 1989: 303‑322). No entanto, ele pode funcionar não só
como agente subversivo, mas ainda como arauto da sua longevidade
triunfantemente superior. Haverá tema mais português do que o de
uma Inês de Castro cujo ímpeto amoroso sobrevive inscrito nos
túmulos de Alcobaça, “até ao fim do mundo”, enquanto os
imperativos políticos que a condenaram estão há muito esquecidos?
Em Hélia Correia, perante o ímpeto belicoso masculino de Gregos e
Troianos, perante a misoginia de Aquiles e Pirro, perante o
paternalismo alvar, embora mais ou menos bem intencionado, de
Menelau e perante a perplexidade confusa de Telémaco e Orestes
perante os efeitos do imponderável feminino, a táctica de guerrilha
desenvolvida por Helena, Etra e Hermíone confronta a simplicidade
de sangue masculino e masculinamente (masculamente) derramado
com a complexidade de hipóteses alternativas: nomeadamente, a
recuperação histórica da voz dos vencidos (e vencidas), a formulação
de categorias humanas opcionais (femininas), a revisão de conceitos
estabelecidos (de valor e de heroísmo, de culpa e de castigo), e a
reversibilidade do problema da ausência, morte e obliteração do
Inimigo/Outro bem-amado.

Olhar para Ontem


13 Em O rancor, este reaver do desejado perdido, conforme acima
identificado, adopta uma série de formatos divergentes. Pirro, digno
filho do embirrento Aquiles, reclama o dia em que – estando
Menelau e Helena já residentes nos infernos – passará a ser rei de
Esparta, e recebe como resposta por parte de Hermíone, sua esposa e
filha daqueles, o remoque de que nem ele nem nenhum seu sucessor
jamais passará de “marido da rainha, faz favor.” Pirro responde que
“isso acabou” (31-32), e Etra confirma que “o poder das mulheres já
não existe” (32), e Menelau resume com complacência que “o que lá
vai, lá vai. Já é passado” (30). Em vez desse passado que as mulheres
recordam com nostalgia mas que os homens se apressam a esquecer,
deparamos, porém, em O rancor, com um presente povoado de
homens cujo ostensivo exercício de poder sexual, belicoso,
doméstico e político, deixa entrever nos bastidores as fracturas que
assinalam a masculinidade precária por detrás da violência
exibicionista. Temos assim o exemplo de Menelau, cujas fantasias
acerca de uma Helena já reavida apenas subsistem à custa da ilusão
que a reinventa enquanto escrava estrangeira e cativa, Outra, trazida
como troféu de guerra.
MENELAU – Já passara tanto tempo... Tinham-te recebido na família. Falavas e
vestias como elas. Pode dizer-se, sim, que eras uma princesa troiana como as
outras, e que eu te ganhei como presa de guerra.
HELENA – É isso que imaginas, não é, marido meu, sempre que me desejas no teu
leito? Que tens uma mulher vencida as tuas ordens? (42)
14 Ou ainda o exemplo de Aquiles, violador da rainha amazona
Pentesileia já morta, e apenas quando morta, desejável (100). Ou o de
Pirro, impotente com a mulher porque “uma mulher que livremente
o aceitou não o interessa” (99), e apenas sexualmente capaz com
mulheres concreta ou metaforicamente mortas (as escravas
pontualmente encontradas degoladas em recantos escuros do
palácio; Andrómaca, testemunha petrificada – morta-viva – do
infanticídio do filho bebé, atirado por Pirro das muralhas de Tróia):
HELENA (para Pirro) – Amas a morte e as mortas, não as vivas. Por isso
Andrómaca concebeu dois filhos teus. Porque a pobre cativa morreu naquele
momento em que tu lhe arrancaste o filho do regaço. Estava branca e gelada, e
assim ficou. (101)
15 A proclamação de Pirro, de que “nada do que se faz num campo de
batalha é criminoso […]. O guerreiro confere grandeza a tudo. Até
mesmo o seu mijo tem grandeza” (95), carece, por isso, de poder
persuasivo perante actos que a desmentem, e que ficam afinal
claramente classificados como crimes (de guerra), que, como se sabe,
na ética clássica de crime e castigo, mais tarde ou mais cedo se
pagam.

O que parece não é


16 No segundo acto, Helena, antes de se inteirar de que o visitante
semi-enlouquecido, recém-chegado a Esparta, é Orestes, filho
matricida de Clitemnestra, e seu sobrinho, recomenda a Etra que,
como louco que é, o trate bem, porque os loucos “são seres sagrados,
embora normalmente cheirem bastante mal” (55). A conjuntura de
reverência tradicionalista e irreverência corriqueira coaduna-se com
a forma como, em O rancor, de um modo geral, as expectativas
relativas às personalidades, naturezas e acções dos protagonistas em
questão, conforme evocadas pelo tema e género literário (epopeia
homérica, tragédia clássica), são quer cumpridas, quer desmontadas
pela via da farsa. A cólera grandiosa de Aquiles no texto original
homérico é aqui apresentada à distância como uma mistura de birra
infantil e psicopatologia monstruosa. O estatuto de Etra, antiga
rainha de Atenas, voluntariamente auto-oferecida como refém de
Helena e Menelau, resulta numa escrava que trai a patroa sempre
que ocasião para tal se apresenta. Porém, ri-se com ela à laia de
cúmplice ante o desconcerto de Menelau frente aos embustes da
mulher, e, com genuína ternura, confessa a Helena não ser capaz de
adormecer de noite antes de lhe ter aconchegado a colcha, como
qualquer mãe extremosa. E, mais dramaticamente, a própria Helena
descobre tardiamente ter sido não afinal a tia, mas sim a mãe, agora
enlutada, da sacrificada Ifigénia, postumamente desvendada como
sendo não sua sobrinha, mas a filha que lhe fora roubada à nascença
e falsamente proclamada nada‑morta. Por conseguinte, o que parece,
nem sempre, ou quase nunca é. E esta incerteza perene aplica-se até,
ou sobretudo, àqueles conceitos que acima de todos os outros regem
a lógica, a moralidade e a ética da Grécia antiga, nomeadamente os
problemas da fatalidade, da responsabilidade e da culpa.
17 No final do primeiro acto, Telémaco lastima que, tendo quase
terminado a sua visita a Esparta, embarque sem ter visto os famosos
cabelos de Helena “tanto deles falam todos os poetas” (43), cabelos
esses agora sempre ocultos sob a cabeleira egípcia que Helena nunca
abandonara desde que regressara de Tróia. Depois de algum debate,
Menelau arranca-lhe a cabeleira, e a assembleia estarrecida verifica
que a bela Helena traz a cabeça rapada, sinal conhecido de luto
arvorado pelas viúvas inconsoláveis, mas também, contrariamente,
pelas esposas apanhadas em flagrante delito (“HELENA – Como as
viúvas! Como as descasadas!” [52]). Após a revelação de luto
perpétuo por um Páris supostamente esquecido, porém, verifica-se
agora, afinal sempre lembrado, Etra comenta que, contra todas as
aparências de uma dor desatinada, Helena nunca enlouquecerá,
porque “somente os inocentes enlouquecem” (48). Mas, em Hélia
Correia, a questão da culpa e do seu castigo fica sempre fluida e
indefinida, seja ela a culpa de Clitemnestra ao matar o marido
(“qualquer mãe mataria o assassino de sua filha,” 62; “Qualquer
deusa-mulher lhe perdoava,” 79), ou seja a da própria Helena,
suposta causadora da guerra de Tróia, mas porventura absolvida,
perante outros motivos mais prováveis:
HELENA – Ai, houve tanta gente a querer-me mal... Como se a guerra fosse culpa
minha. Quando não passou tudo de um jogo de imortais.
HERMÍONE – Dizem até que Zeus quis esta guerra para livrar a Terra de bom
número de humanos. Que havia gente a mais e era preciso uma matançazinha.
(28)
ORESTES – O que tinham os gregos a ver com a cidade de Tróia, não me dizes? [...]
Se não fosse o rapazinho mimado por seu pai a vir buscar a prenda que lhe dera
Afrodite...
ETRA – Pois aí tens. Seja qual for o modo de se encarar a coisa, Helena acaba
sempre por ficar inocente. A deusa prometeu-a a Páris, que a ganhou, como se
ganha um belo cavalo nas corridas. (56)
ETRA – A que remorsos julgas ter direito? Destruiste meio mundo, é certo, mas
que culpa terás tu da promessa de Afrodite? (76)
18 Curiosamente, as Fúrias ou Erínias, deusas do remorso que
aplicadamente perseguem Orestes enquanto filho matricida, são
primeiro invisíveis perante Helena (“ORESTES – Tendes assim as
almas tão limpas de pecado?” [53]), depois inofensivas (“As Erínias, a
um canto, desafiam Helena com os seus sons, mas mantêm distância, como
se a receassem” [75]) e, por fim, transformam-se em suas escravas
(“ORESTES – Há que pedir a Apolo que as faça retirar. HELENA –
Quem? As minhas escravas? [...] As Erínias resistem um pouco, mas
parecem entontecidas e aceitam o seu papel. Dançam e servem à mesa”
[109]). Será Helena, por conseguinte, verdadeiramente culpada,
quando nem as próprias deusas do remorso a vislumbram como alvo
merecedor de perseguição ? Quem tem culpa de quê? Quem define a
culpa? Quem institui o castigo? Quem é castigado?

Meninas da sua mãe


19 Tradicionalmente, as mulheres participam nas aventuras guerreiras
dos machos proporcionando-lhes adulação (“todas as mulheres
gostam de um homem de uniforme”), abastecimento de combatentes
(filhos) e um lar ao qual regressar. Porém Cooper, Munich e Squier
questionam a força dos estereótipos do homem guerreiro e da
mulher que no lar o espera e chora, e elaboram o conceito do
“momento contraceptivo” em textos em que se verifica que a
protagonista feminina se desliga das suas funções tradicionais de
carpideira e fornecedora de futuros soldados (Cooper et al., 1989: 9-
24). Esse momento de recusa simboliza também a rejeição de uma
função de cumplicidade com o empreendimento de guerra. Em O
rancor, a possibilidade de continuidade do macho, quer como
indivíduo (homem, marido, pai), quer como participante da máquina
bélica (guerreiro, líder, rei) – e, a partir daí, a longevidade do
projecto de guerra que ele valoriza e perpetua (“a guerra é uma
grande senhora”) – aparece explícita e duplamente ameaçada:
primeiro, pela impotência de heróis jactanciosos, mas sexualmente
inviáveis (Pirro), incapazes de cumprirem o seu papel fecundador na
produção da geração seguinte de filhos e soldados (“TELÉMACO – E
se nem houver filhos? Acontece. HERMÍONE – Acontece. Está sempre
a acontecer.” [26]). E, em segundo lugar, pela agressividade nem
sequer dissimulada de mulheres (esposas) que, em vez de chorarem
guerreiros mortos, potencialmente encorajam essas mortes ou nelas
participam. Em O rancor, os dois fenómenos coincidem na pessoa de
Deífobo, segundo marido troiano de Helena após a morte de Páris, o
qual, na versão pressurosamente oficializada por Menelau, foi morto
por aquela sem dela usufruir conjugalmente:
MENELAU – Casaram, isto é... Que não se leve à letra. Uma formalidade. Não se
esqueçam de que Tróia era já Ásia. Tinha costumes muito... estranhos, para nós.
De qualquer modo, Helena estraçalhou-o. Sim, senhor. Estraçalhou-o sem
piedade. Ao que se diz, a ponto de a sua própria mãe não o reconhecer. Foi ou
não, querida?
HELENA – Eu tinha de fazer qualquer coisa...
HERMÍONE – Estraçalhar maridos é um bom passatempo. (23)
20 Para além da neutralização ou não-consumação sexual (Pirro,
Deífobo) e do homicídio (Deífobo, Agamemnon) restam ainda duas
estratégias por via das quais o desígnio guerreiro é inutilizado pela
instância feminina: primeiro, através da produção, não de filhos mas
de filhas, e segundo, por meio da metamorfose do guerreiro em
menino da sua mãe.
21 No primeiro caso, e fazendo eco de Naomi Segal, “há duas cadeias
genealógicas no contexto das quais a mãe pode integrar‑se”:
[A mãe] ou se inscreve numa estrutura patrilinear, dando um filho ao seu pai ou
marido, ou se situa numa estrutura matrilinear, dando uma filha à sua mãe. [...]
As mulheres que são mães na literatura de autoria masculina são pouco
numerosas, habitualmente engravidando – com frequência como resultado de
uma noite de núpcias super-potente – com o objectivo de exemplificar o trauma
obstétrico. As mulheres que dão à luz filhas são ainda menos numerosas e um
número extraordinário são adúlteras. [...]
Há algo nas mulheres discernidas como seres sexuais que, ao que parece, faz com
que mereçam o castigo de se reproduzirem a si próprias; o adultério
desqualificou-as da única tarefa aprazível que Freud identificou como dar à luz
um rapaz. (Segal, 1990, 136-137)
22 Segal, porém, identifica outra possibilidade, nomeadamente a de
uma dinâmica entre mãe e filha, sendo que, para além do padrão de
narcisismo e auto-repetição que, segundo a óptica masculina,
circunscreve o acto de uma mulher que dá à luz uma filha,
deparamos com um potencial “outro‑mundo” – subreptício e
porventura ameaçador – em que as mulheres dialogam e se amam
entre si: “Nas mães de filhas [o homem] vislumbra uma maneira
oculta por meio da qual a mulher ama a criança mais exactamente
carne da sua carne, na qual o marido não deixou rasto” (Segal, 1990,
137-38). Não deixou rasto ou, se deixou, teme vê-lo variamente
apagado por mulheres que fazem eclipsar o marido/pai sem sequer
terem o pudor de com ele se parecerem: “HERMÍONE – Estraçalhar
maridos é um bom passatempo. PIRRO – Minha mulher Hermíone
tem carácter. Sai à mãe.” (23, sublinhado meu).
23 Em segundo lugar, se a mulher-mãe ameaça desconstruir o edifício
de glória guerreira do macho fornecendo-lhe não um filho que o
imite, mas uma filha que dele dissida, quando é produzido um filho,
o potencial impacto da mãe sobre esse descendente, que
teoricamente providenciaria ao macho a garantia de continuidade,
torna-se porventura ainda mais controverso.
24 No segundo acto, Orestes, previamente compelido ao matricídio
para vingar o pai que Clitemnestra assassinara, aparece em Esparta,
perseguido pelas Fúrias, e depara com Helena, despojada da sua
cabeleira egípcia, careca e com aspecto de mendiga. O fascínio que
Helena, seja qual for o estado em que se encontre, exerce
indiscriminadamente sobre os que a rodeiam, já anteriormente bem
documentado (“ETRA – Sabes qual foi maior humilhação do que ser
tua escrava? Foi amar-te.” [78]), culmina, no caso de Orestes, no
efeito habitual de um homem absolutamente rendido, quer no
sentido sexual, quer militar da palavra. Já antes do encontro entre
Orestes e Helena se tinha verificado a vigência de uma confusão
entre sexualidade e maternidade, e o poder que essa confusão,
justamente por sê-lo (mãe/amante), exerce sobre a prepotência
masculina supostamente triunfante:
TELÉMACO – Contam que Menelau, em cólera, seguiu a bela Helena ao longo das
muralhas de Tróia, decidido a matá-la, por vingança. E que ela, de repente, se
deteve e virou-se de frente para ele. E que um seio se avistava, porque a veste
tinha sido rasgada e descaíra. E Menelau ajoelhou e perdoou-lhe, novamente
perdido de paixão. (102)
25 Se Menelau ficara rendido (perdido) ao vislumbrar o peito de
Helena, foi este porventura o resultado não só de desejo sexual mas
também filial – visto que é com o seio que a mãe amamenta o filho. É
também esse desejo bifacetado que o atrai de novo a uma
domesticidade restabelecida com a esposa marafona, mas também
condescendentemente maternal (“HELENA acaricia[-o] com desprezo”
[42]). E também Orestes, no momento da grande confrontação com a
mulher que causara a guerra da qual resultaram todas as outras
mortes familiares (a carnificina nos campos de Tróia, o sacrifício de
Ifigénia, a retaliação de Clitemnestra contra Agamemnon e o
assassínio daquela como vingança filial), também ele fica
rapidamente reduzido à condição de menino na mão das bruxas,
ansioso por refúgio no colo carinhoso de uma mãe. De uma qualquer
mãe, até mesmo daquela Helena a quem ele, à laia aliás de típico
filho sofocliano e freudiano, tão frequentemente apelidara de “a
maior das putas” (55):
Orestes dormitando no regaço de Helena. [...] HELENA – Já me basta ter este aqui,
adormecido nos meus braços, inteiramente à minha mercê, e no entanto as
minhas mãos não querem fazer mais do que acariciá-lo e protegê-lo. [...] Que vou
fazer com ele? Por que razão o trouxeram as fúrias para cá? Coitadinho é ainda
uma criança. (78)
26 Psiquicamente, a cronologia freudiana estabelece que o filho ama a
mãe e odeia o pai, mas subsequentemente abandona a mãe e passa a
identificar-se com o progenitor congénere. Todavia, em O rancor, a
associação entre Clitemnestra e Helena, culpadas de análogos crimes
de traição contra maridos e patriarcas, inverte a transição da mãe
para o pai no trajecto amoroso de Orestes, o qual desiste de
assassinar a tia como assassinara a mãe. Em vez disso, através do
encontro com a tia, Orestes revive o momento da morte da mãe às
suas próprias mãos, mas, acima e para além deste acontecimento
sangrento, relembra nostalgicamente o momento do seu próprio
parto (sendo qualquer parto, por natureza, um acontecimento
também sangrento), e ainda o amor que edipianamente sempre
sentira pela mãe. Amor nunca tão angustioso como na ocasião em
que, ao matá-la, presenciara também a cena primeva freudiana de
Clitemnestra nos braços do pai (ou padrasto) rival:
ORESTES – E se, chamado pela irmã, o rapazinho regressasse a Micenas para
vingar a morte e a desonra do pai?... Se entrasse no palácio, devagar, pé ante pé,
a percorrer os corredores de que não tinha o menor eco na memória, guiado
apenas pelo gemido dos amantes, ocultos nas cortinas doiradas do seu leito... E
tudo o que ele queria era encostar-se ao regaço da mãe, de quem tivera tanta, tanta
saudade ao longo de todos aqueles anos no exílio... E quando o braço com o punhal
desceu sobre os dois corpos que dormiam enlaçados, e o sangue o atingiu em
pleno rosto, ele viu os olhos dela e desejou que tudo se tivesse passado
exactamente de maneira contrária. Ele de bom grado mataria a irmã, e o pai, e a
tia, Helena, a grande prostituta. (69, sublinhado meu)
Não existia mais ninguém no mundo, além de um filho e sua mãe que ali morria
às suas mãos, tão devagar... E agarrava-se a ele, ó deuses, escorregando na maciez
do sangue... E olhava, olhava, e não tinha surpresa no olhar, só uma espécie de
doçura, a dor de um parto novamente vivida, que ela, sim, reconheceu Orestes... (70,
sublinhado meu)
E o filho, a querer sustê-la, escorregava também. Um longo abraço. Nunca um filho
amou tanto a sua mãe como Orestes naquele momento em que a matou. O que ele daria
para voltar atrás. Para ficar ao lado da mãe puta, assassina do pai, madrasta de
seus filhos... (71, sublinhado meu)
27 O que ele daria para voltar atrás, ou seja, para regressar
psiquicamente ao útero, ao estado pré-edipiano e amniótico de fusão
com o corpo materno. Se o assassínio da mãe é outra versão, apenas
um pouco mais brutal, da traição edipiana da progenitora freudiana
pelo filho, em O rancor, afinal de contas, é a mãe, ou a sua suplente,
Helena, quem triunfa e permanece, enquanto rainha, amante, amada
e mãe: “Olhai: Helena afaga o seu sobrinho e ele depõe armas e aceita
o seu afago” (Correia, 2000: 83). “Vamos ter outra cena de incesto na
família” (Correia, 2000: 78). Haverá, para o homem, pesadelo mais
imponderavelmente paradisíaco e mais visceralmente temível do
que esse, do regresso ao ventre materno restaurado, e à mãe
uterinamente amada?
A existência física e mental do recém-nascido depende [exclusivamente] da mãe
[...] e leva-o a uma sensação de união tal que a consciência do eu requer também
a consciência da possibilidade de separação da mãe. A mãe é o ser que o filho ama
com amor auto-centrado e primário, e à qual fica fundamentalmente ligado. [...]
Em fases posteriores, a relação inicial com a mãe leva à preocupação com
questões de intimidade e de fusão. [...] Quem viveu esse amor primário, deseja
sempre recriar a sensação de fusão [...] mas o medo de fusão pode vir a exceder
esse desejo. (Chodorow, 1979, 78-79).
Os homens ainda não articularam a violência do impulso que os atrai para a
mulher, e, em paralelo a esse desejo, o pânico de que, através dela, possam
morrer e desvanecer-se. (Horney, 1993, 134).

Amor com amor se paga


ETRA – Que direito [tenho eu]? Uma escrava!
TELÉMACO (rindo) – Uma escrava!... Mulher do rei Egeu, mãe de Teseu, o salvador
de Atenas, uma escrava... Ah! Ah! (Olhando em volta os rostos sérios) Uma escrava?
MENELAU – Uma escrava... São modos de falar. Escrava, rainha, que diferença
faz? (31)
28 A perpétua incompreensão de Telémaco, a quem tudo tem que ser
constantemente explicado, e o modo descontraído como Menelau
põe de parte como desnecessárias e picuinhas as definições e rótulos
que identificam o status quo que governa (distinções entre rainha e
escrava, esposa casta e esposa foragida, mulher honrada e
prostituta), explicam não só as origens iniciáticas do problema (a
fuga de Helena com Páris), mas também a sua conclusão.
29 O nosso entendimento dessa conclusão depende da nossa
capacidade, enquanto leitores, de digerirmos dois factos: primeiro, o
facto de que, citando Cooper et al., “pode ser que num mundo
patriarcal os homens assinem os contratos de guerra, mas as
mulheres contribuíram para redigi‑los” (Cooper et al., 1989: 10). E,
segundo, conforme argumentado por Adam Phillips, o facto de que
se, pós-Freud, o inconsciente nos surge como mais legível, essa
legibilidade aumentada relaciona-se com um entendimento da
guerra, ou, especificamente, da colaboração entre guerra e amor,
Eros e Tânato (Phillips, 2000a: 42). Psicanaliticamente, a necessidade
edipiana — e, portanto, primordialmente masculina – de um inimigo
contra o qual erigir o eu psíquico, fundamenta o desenvolvimento
psicológico do indivíduo. Nas suas “Reflexões tempestivas sobre a
guerra e a morte” (1915), Freud sugeriu que todos dependemos de
um inimigo, seja ele um inimigo externo ou um inimigo dentro de
nós, contra o qual possamos reagir. “Haverá algo mais inspirador do
que um inimigo? […] Sem esta magnitude do que é mau, seria
possível esta intensa consciência do que é bom?” (Phillips, 2000a: 45).
A representação do Mal inspira o Bem. Durante períodos de guerra, o
inimigo externo providencia uma série de representações “prontas-
a-vestir” dos nossos medos. O inimigo externo, menos perigoso
porque externo, associa-se ainda ao inimigo interno do eu impelido
para o instinto de morte (Tânato) que Freud também investigou
(Freud, 1961). A guerra evoca recordações de medos atávicos da
infância primeva, mas oferece também a possibilidade de evasão a
esse inimigo residente portas-a-dentro, o inimigo do/no eu, porque
encarna o inimigo em formato exterior a esse eu, e apresenta-o sob
uma aparência visceralmente menos próxima. Citando Phillips, “a
guerra interior é sempre pior do que a guerra exterior. […] A guerra
interior corresponde à verdade acerca do eu; a guerra exterior
limita-se a ser história” (Phillips, 2000a: 52).
30 Passando, por via destas observações, aos temas mais directamente
debatidos neste colóquio, assinale-se aqui a faceta de uma guerra, a
troiana, que, de um certo ponto de vista, e como a bela Helena
belamente o entendeu, também foi, ou foi primordialmente, colonial
e motivada por interesses mercantis:
ETRA – Cada homem em casa, com a sua família e com os seus negócios.
HELENA – Que, por causa de Tróia não lhes corriam bem. Cada chefe, ao abrigo da
sua cidadela, procurando um pretexto para lhe mover guerra. Porque lá isso,
diga-se a verdade, não somos gente bárbara. Nunca fazemos uma guerra sem
pretextos. (56)
ETRA – A que remorsos julgas ter direito? Destruiste meio mundo, é certo, mas
que culpa terás tu [...] de que os reis da Grécia decidissem que era uma boa altura
e um bom pretexto para destruirem Tróia, como queriam? (76)
31 Será então, que, de certo modo, (ou pelo menos no entendimento do
colonizador e, certamente, do colonizador português) a Guerra
Colonial foi também, ou porventura exclusivamente, uma guerra
civil, a guerra dentro do eu (visto que, no caso, e salazaristicamente
falando, as colónias faziam supostamente parte integral do eu pátrio,
parte da família?) Na secção final desta leitura, será sugerido que em
O rancor o inimigo (Páris, os Troianos) que, embora perigoso,
cobiçoso, usurpador e ocasionalmente mortífero, tinha tido,
pressupostamente, pelo menos o mérito de ser identificavelmente
Outro, estrangeiro, diferente, reconhecível, gerível e controlável
como tal vem a ser afinal, por acção de Helena, clandestinamente
contrabandeado para o próprio âmago da família grega, que
descobre, afinal de contas, nunca ter conseguido verdadeiramente
excomungá-lo.
32 Para Phillips, a guerra oferece os parâmetros (assim como a
psicanálise oferece a disciplina paradigmática), necessários à
enunciação da pergunta “o que é um inimigo?” (Phillips, 2000a: 44).
Phillips deixa-nos com uma pergunta retórica: será que,
psicanaliticamente, a definição de desenvolvimento psicológico e
erótico se resume afinal ao processo de identificação do inimigo e de
estabelecimento de um relacionamento amistoso com ele(a)?
(Phillips, 2000a: 39). Se a identificação de um inimigo e a promoção
de boas relações com ele(a) definem o processo de desenvolvimento
psíquico que nos transpõe da infância para a maturidade, o que esse
processo de mudança implica, por definição, é uma alteração
fundamental, uma vez que nada jamais voltará a ser o que era. You
can’t go home again. E quando as coisas não voltam a ser o que eram, o
imperativo que se levanta é o da necessidade de novas
representações para um novo status quo.
33 Nesta última secção, será abordada a questão de uma carnavalização
pseudo-bakhtiniana, segundo a qual, quando as máscaras são
depostas (ou, como especificamente aqui, arrancadas), o espectáculo
que se nos depara é o de um mundo às avessas, em que, aconteça o
que acontecer, nada nem ninguém jamais voltará a ser o mesmo.
34 A revelação de que Helena trazia a cabeça rapada é uma encenação
semiótica de ressonância dupla e confusa na sua categorização: ao
arvorar simultaneamente a auréola das viúvas fiéis e a ignomínia das
adúlteras ostracizadas (“Como as viúvas! Como as descasadas!” [52]),
a figura de Helena desmorona todo o entendimento colectivo do
status quo pós‑troiano, que promovera a versão de uma Helena
involuntariamente raptada, cativa, fiel ao marido, grata pelo
eventual regresso ao lar conjugal, em suma, sempre e visceralmente
grega. A hipótese perturbante que, para os Gregos fica sempre
inquietantemente críptica e enunciada apenas por associação com o
caso de Etra – que, fica subentendido, se assemelha ao de Helena – é
a possibilidade de ter sido esta, tal como porventura aquela,
voluntariamente foragida e não refém:
HELENA – Diz, Etra, [...] parece que foste tu quem sugeriu [que] ficasse[s] minha
escrava, era vingança que bastava e assim não mais se falaria do assunto.
ETRA – Eu é que sugeri?
HELENA – Ou eu, não sei. Não te queria deixar.
ETRA – Não nos deixámos. (51)
35 E se Helena não foi raptada mas, tal como Etra, partiu de seu livre
arbítrio, sendo que o seu estatuto de refém/emigrante voluntária
fica sempre ambíguo, ambíguas ficam também a vitória grega sobre
uma Tróia estranha, agreste, “já Ásia” (23), e todas as certezas
advindas dessa vitória. Como representar, então, este admirável
mundo novo, com as suas verdades ocultas e tardiamente,
relutantemente, reconhecidas como imponderáveis? Adam Phillips,
relendo André Green, relaciona o problema da paixão com o da sua
representação. É através da representação que evitamos a
deslembrança de sensações vividas, e o desespero, porque “o
desespero é uma forma de se estar desatento”. Se “o ser passional é a
melhor parte do que somos”, o acto de sentir é também um acto de
representação, o significante da carne e a mise en scène da paixão
(Phillips, 2000b: 300). Uma vida passional, por definição, apenas se
torna possível se essa paixão alcançar enunciação, perante nós
próprios e perante o seu objecto (e ainda perante a colectividade que
é o palco e a assistência dessa paixão). Para Green e para Phillips, não
existe a possibilidade de uma paixão privada, ou de uma linguagem
passional privada: a paixão requer movimento, intercâmbio e
comunicação (Phillips, 2000: 300-309). E ainda, diríamos agora,
representação: é, de facto, no espírito dos homens, e acima de tudo
das mulheres (é ver o exemplo da Lisístrata de Aristófanes), que se
erguem as defesas da paz, pela via do amor.
36 Homero, n’A Odisseia, dera-nos a versão balsâmica dos
acontecimentos míticos (balsâmica para tudo aquilo que em nós é
grego e não troiano, euro-clássico e não asiático, convencional e não
desabrido, e, acima de tudo, receoso e não seduzido pelo poder
disruptor da paixão). A Helena homérica devolvida a Esparta,
perfeita anfitriã e fada do lar restaurada, acolhe Telémaco, cujo pai
continua desaparecido, afinal de contas e indiscutivelmente por
culpa dela, e, com soberbo auto-domínio, evoca os acontecimentos
que levaram a que “vós, Gregos, declarásseis guerra contra Tróia por
amor de mim, desavergonhada criatura que eu era!” (Homero, 1985:
68)
37 “Vós, Gregos”, porém, estabelece não o remorso tardio mas antes
uma recalcitrante e teimosa linha divisória entre ela e eles, o Eu e o
Outro, deixando entrever de que lado da rixa a bela Helena afinal de
contas, desde sempre e para sempre se situa. Também em Hélia
Correia, quando a cabeleira é arrancada, a representação até então
privada (secreta) da paixão e do luto eterno infiltra à força o discurso
da família, da polis e da colectividade grega, e o efeito é o de uma
declaração de guerra, apenas com um formato ligeiramente
diferente: um formato feminino e, por essa razão, não militarista,
mas, à outrance, discursivo/político/diplomático. A declaração feita
por aquela cabeça desnudada – cujo efeito é roubar aos Gregos o seu
mais precioso troféu (a mulher mais bela do mundo, agora reduzida
a uma “mulherzinha” feia e careca) – é o desmentido da versão
pacata de um regresso grego e espartano, de guerreiros triunfantes e
de esposas comprovadamente amantíssimas, bem como a afirmação
de que afinal a esposa supostamente submissa de Menelau é, afinal
de contas, a viúva inconsolável de Páris, aquele menino da sua
mãe/amante, que “no plaino abandonado jaz morto e arrefece”
(Pessoa, 1981: 31-32).
38 Se, conforme proclama Desmond Tutu na epígrafe que escolhi para
este texto, um inimigo é um amigo (ou, digo eu agora, um amante) à
espera de se tornar realidade, num texto tão ressonante dos enredos
épicos e trágicos como o de Hélia Correia, não é o filho edipiano que
vem a transformar-se em amante/marido da mãe, mas,
contrariamente, é o inimigo, Páris, quem renasce, por via da
intensidade e persistência memorializante da amante, Helena,
enquanto ser a quem ela pseudo‑maternalmente gerou, existência e
ressurreição por via da acção da memória renitente, contrabandeada
para o seio de uma família tão arisca, tão em guerra (civil) como as
famílias gregas míticas sempre foram. N’A Odisseia, Helena aparece
enquanto esposa aparentemente impávida, restaurada à
respeitabilidade conjugal, e aparentemente serena frente ao
cataclismo que aniquilou um amante, um povo e uma civilização.
Mas no final de O rancor, o seu trunfo e o seu triunfo residem na
constatação de possuir ela afinal de contas um coração
helenicamente isento, é certo, porém fidelissimamente troiano,
através do qual sonega à Grécia, supostamente triunfante, o amor
que permaneceu na cidade sitiada. E Ílion rendida retém, a pesar
disso, a vitória que lhe concedeu a mulher mais bela do mundo, por
via do sucesso alcançado na transfiguração do inimigo troiano
(Páris), em eterno amante eternamente bem-amado, em vida e para
além da morte, mas em ambos os casos sempre de algum modo
presente. Até ao fim do mundo.
39 No imaginário lusófono, caracterizado por Fernando Pessoa em
Mensagem, por “olhos gregos, lembrando” (Pessoa, 1979: 21), o amor
é quase sempre de perdição. E o rancor, a este tão frequentemente
ligado, também. A definição de “rancor” é o ódio que não esquece, e
que, aqui, perpetua os meandros indestrinçavelmente emaranhados
de Eros e de Tanatos, do amor e do ódio, assegurando não ser nada
jamais o que parece. Na Grécia pressupostamente restaurada, as
esposas são infiéis e/ou assassinas; os filhos amam as mães
assassinas e vingam os pais sem convicção (“E quando o braço com o
punhal desceu [...], e o sangue o atingiu em pleno rosto, [Orestes] viu
os olhos [da mãe] e desejou que tudo se tivesse passado exactamente de
maneira contrária. Ele de bom grado mataria a irmã, e o pai, e a tia,
Helena, a grande prostituta.” [69, sublinhado meu]); os irmãos
choram-se uns aos outros com lágrimas de crocodilo (“HELENA – É
um rei com juízo, Menelau. Morto o irmão, é nele que habita agora
toda a grandeza do triunfador. [...] Sempre que fala nisso, Menelau
não consegue evitar um pequeno, pequenino sorriso.” [60-61]); os
vencedores decaem (“HELENA – Pobre Agamemnon. Vir morrer
numa banheira, às mãos de uma mulher, entre perfumes, ele, chefe
supremo dos exércitos.” [61]); e os vencidos (Páris) são
inquietantemente restaurados. Restaurados, porém, não por uma
força militar já agora comprovadamente ineficaz, mas, no caso do
belo amante “de olhos langorosos” (76) da bela Helena, pelo poder da
memória, da representação, e daquele feminino amor ardente que,
com erros de todos e má fortuna, em sua imortalização se
conjuraram.

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RESUMOS
A peça de teatro de Hélia Correia, O rancor: Exercício sobre Helena, oferece a base para uma
análise textual do entendimento clássico e moderno do papel da mulher no contexto da
guerra. As mulheres, na versão contemporânea de Hélia Correia, reproduzem e acentuam
alguns dos indícios já disseminados pela tragédia e epopeia gregas, nomeadamente a
problemática da sexualidade feminina e da paixão, enquanto forças contrapostas ao instinto
belicoso masculino, por aquelas eventualmente derruido. A leitura aqui apresentada
focaliza aspectos variados da justaposição dos sexos no contexto da guerra: nomeadamente,
a dinâmica entre mãe e filha enquanto agentes de um feminino solidário em confrontação
com o imperativo belicoso masculino; a relação mãe-filho conforme inscrita no dilema
edipiano filial de opção entre o pai guerreiro e a mãe atavicamente amada; a questão da
maternidade/paternidade e do sacrifício voluntário ou recusado de filhos e filhas aos
interesses da guerra; e o problema da representação passional do inimigo enquanto objecto
de desejo e figuração do ideal do bem-amado.

Hélia Correia’s play O rancor: Exercício sobre Helena is the basis for a textual analysis of both
classical and modern understandings of the role of women in the context of war. In Hélia
Correia’s contemporary version, women reproduce and highlight some of the signs already
present in Greek tragedy and epic poetry in what concerns the problematic of female
sexuality and passion, as countervailing forces to the male warlike instinct, which they
eventually overthrow. The reading presented here focuses on different aspects of the
juxtaposition of the sexes in the context of war: namely, the dynamic between mother and
daughter as agents of female solidarity in confrontation with the male warlike imperative;
the mother-son relationship as inscribed in the filial oedipal dilemma of choice between the
warrior father and the atavistically loved mother; the question of maternity/paternity and
of the voluntary or refused sacrifice of sons and daughters to the interests of war; and the
problem of the passional representation of the enemy as an object of desire and figuration
of the ideal of the beloved.

La pièce de théâtre d’Hélia Correia, La rancœur : exercice sur Helena, sert ici de fond pour une
analyse textuelle de l’appréhension classique et moderne du rôle de la femme dans le
contexte de la guerre. Les femmes, dans la version contemporaine d’Hélia Correia,
reproduisent et relèvent certains indices disséminés par la tragédie et l’épopée grecques,
notamment la problématique de la sexualité féminine et de la passion en tant que position
opposée à celle de l’instinct belliqueux masculin, qu’elles abolissent parfois. La lecture
présentée ici met en relief les divers aspects de la juxtaposition des sexes dans le contexte
de la guerre, et surtout la dynamique des rapports entre mère et fille en tant qu’agents
d’une féminité solidaire dans sa confrontation à l’impératif belliqueux masculin. On
examinera de même la relation mère-fille inscrite dans le dilemme oedipien filial de l’option
entre le père guerrier et la mère activement aimée, ainsi que la question de la
maternité/paternité et du sacrifice, qu’acceptent volontairement ou refusent les fils et les
filles, aux intérêts de la guerre. Pour finir, on abordera le problème de la représentation
passionnelle de l’ennemi en tant qu’objet de désir et de figuration de l’idéal du bien-aimé.

ÍNDICE
Mots-clés: Hélia Correia, amour, sexualité, féminilité, guerre – rôle de la femme, théâtre,
littérature
Palavras-chave: Hélia Correia, amor, sexualidade, feminilidade, guerra - papel da mulher,
teatro, literatura
Keywords: Hélia Correia, love, sexuality, femininity, war – women’s role, drama, literature

AUTOR
MARIA MANUEL LISBOA

Professora de Literatura Portuguesa, Brasileira e Lusófona na Universidade de Cambridge e


St. John’s College, Cambridge. Autora de Machado de Assis and Feminism: Re-reading the Heart of
the Companion (Edwin Mellen, 1996), Teu amor fez de mim um lago triste: Ensaios sobre Os Maias
(Campo das Letras, 2000); Paula Rego’s Map of Memory: National and Sexual Politics (Ashgate,
2003); e de vários artigos sobre literatura portuguesa, brasileira e africana dos séculos XIX e
XX.
mmgl100@cam.ac.uk
Incoincidências de autoras:
Fragmentos de um discurso não só
amoroso na literatura da Guerra
Colonial
Non-coincidences of women authors. Fragments of a not-only-about-love
discourse in the literature of the Colonial War
Incoincidences d’auteurs : fragments d’un discours entre autres amoureux
dans la littérature de la Guerre Coloniale

Roberto Vecchi

Não testemunhará isto quem morreu.


Antígona, 515

1. Uma dupla impossibilidade


1 Não são necessárias muitas reflexões para perceber de imediato que
o plano onde vão escorrer as considerações que se seguem é
inexoravelmente inclinado e até escorregadio. De facto, como é
possível pensar num objecto em si já tão opaco como a assim
chamada “literatura da Guerra Colonial” que apresenta problemas
críticos ainda não solucionados acrescentando um elemento a mais
de perturbação, como a sua reconfiguração dentro duma vertente
feminina? Poderá existir uma literatura feminina da Guerra Colonial
se não temos certeza de que exista autonomamente (cf. Laranjeira,
1991: 12) uma literatura da Guerra Colonial? A pergunta é
obviamente retórica, porque, se não implicasse uma resposta
afirmativa, não mereceria a pena aprofundar este discurso. Mas é
escusado considerar que há, nessa impossibilidade pelo menos dupla,
um emaranhado bastante complicado por destrinçar.
2 A guerra como experiência do trauma perturba a ordem da
representação, ainda que, por paradoxo, a codificação da sua
memória necessariamente transite através de um acto de autor,
dependendo portanto das virtualidades implicadas pelo domínio do
literário. Mas as mulheres, para afirmar o seu ponto de vista, têm
que travar uma outra guerra, uma guerra mais subtil e menos
perceptível, entranhada nas vísceras ocultas e profundas da história
humana a que chamamos “do homem”, que é aquele lugar de guerra
(Magli, 1985: 15), a linguagem, onde se colocam as relações polémicas
e os jogos de força dos sentidos ocultos e patentes, em que
convencionalmente o sujeito feminino se inscreve no marco da
derrota, como ausência ou falha da linguagem, pura vivência sem
pensamento ou palavra.
3 Um ícone nesta perspectiva emblemático, pelo vazio que o demarca,
é representado pela narratária feminina de Os Cus de Judas de Lobo
Antunes, figura complexa e decisiva, cuja presença muda e
transparente torna, no entanto, viável o monólogo-testemunho do
narrador. Pela aporia própria do mecanismo testemunhal que de
facto não poderia realizar‑se sem um processo de re‑subjectivização
da experiência vivida e incomunicável do trauma – como mostra o
paradigma de Auschwitz definido por Giorgio Agamben (Agamben,
1998) –, a mulher com o corpo quase invisível, reduzido a poucos
detalhes descritivos e que sobretudo nunca toma a palavra,
desempenha uma função básica na realização do acto de autor que é
o romance, tornando o testemunho não só possível mas até viável.
Mas será que é só pela sua posição deslocada, pela sua incoincidência
entre experiência e imagem do trauma bélico que, como sabemos,
pelo menos em termos de guerra moderna e convencional, é um
domínio androcêntrico, que o sujeito feminino, mantendo-se na
obscuridade da margem, possibilita a representação “dramática” da
experiência, simplesmente fornecendo um tu a um eu vitimado pelo
evento traumático que assim pode assumir a máscara ainda toda
masculina de um ele, de uma terceira pessoa? Ou não passaria isso de
mais uma ratificação da ordem sexista, quando, na verdade, a escrita
feminina da Guerra Colonial deveria tomar um rumo drasticamente
oposto e opositivo?
4 No entanto, o problema existe: como é que uma figura silenciosa e
silenciada, a mulher perante a guerra, pode contribuir para
representar um tema, silencioso e silenciado, como a representação
da Guerra Colonial? Aqui, é preciso frisar que até as dimensões do
próprio corpo textual feminino da Guerra Colonial não se prestam a
nenhuma imediata canonização. Deverão os textos ser incluídos em
função da maior ou menor distância do evento que representam? A
Guerra Colonial deverá ser entendida stricto sensu ou, pelo contrário,
na acepção ampla que por exemplo lhe dá João de Melo, ao
interpretá‑la como uma teoria sem solução de continuidade a partir
do começo da expansão, portanto fazendo com que ela adira à
história da expansão tout court e, portanto, a iconografia
historicamente sedimentada da expansão, a viagem, o cais, o tempo
plúmbeo das esperas frequentemente desiludidas (Ribeiro, 2002:
212), deverá ou não ser contemplada? Textos‑chave que simbolizam
todos os tipos de oposição feminina à cultura sexista e patriarcal
como as Novas cartas portuguesas poderão ser incluídos enquanto
metáfora de todas as formas de opressão (Magalhães, 1995: 22)?
5 A cartografia da literatura feminina sobre a Guerra Colonial poderia
até reduzir-se aos traços esverdeados de um hotel da costa do Índico,
a dois rios de Angola que marcam as temporalidades diferenciadas
de uma vivência, a um cais de despedida com um mar trágico ao
fundo, ou, mas já outro é o contexto, um remoto campo militar
timorense. A conjugar esses lugares fragmentados seriam outros
fragmentos de um tema, a guerra, que não se deixam captar a não
ser pela margem, pelo externo, por uma proximidade emotiva que é
distância física e lógica do contexto bélico. Isso sem negar que há
traços conjuntivos mais profundos nessa perspectiva sexuada da
guerra que não decorre só do ângulo de visão sociológico, o papel
desempenhado pelas autoras, de “mulher de alferes miliciano”,
distantes portanto dos factos testemunháveis, como por exemplo no
apego à memória como palimpsesto da escrita, comum a essa
literatura como um todo, mas que aqui assume conotações próprias.
6 A pergunta que pode surgir é se essa deslocação proporciona um
sentido de conhecimento mais amplo do que um ponto de vista
individual de uma experiência como a do trauma colectivo que não
se deixa apreender, fugindo às tentativas de representação. De facto,
o que não faltam são exemplos, a guerra com os seus excessos –
traumas, extremos – resiste, não se entrega à representação. Aliás, é
um excesso que transpõe os limites estéticos funcionais da arte. Foi
justamente perante essa dimensão do ilimitado, própria da
modernidade, que se criou uma categoria inclusiva do que não cabia
nas molduras do belo, a do sublime. A relação aliás entre trauma e
sublime é evidente: o trauma é uma ocasião de sublime, são os
pontos extremos em contraste que não admitem ou até desfiguram
qualquer mediação (La Capra, 2001: 190).
7 Mas será possível combinar o limite que a mulher habita perante o
evento traumático da guerra (colonial) com o ilimitado da
experiência traumática “excessiva” (Friedlander, 1992: 19) que dá
lugar ao sublime? Essa incoincidência, contrariamente a quem pensa
que só a autoridade da experiência directa da guerra legitima a sua
escrita, na verdade, confere à perspectiva feminina uma imensa
vantagem: efectivamente, escrever o trauma, poderíamos dizer,
como metáfora implica um distanciamento, o da escrita, que tornaria
a literatura feminina da Guerra Colonial um lugar paradoxalmente
privilegiado da sua possível representação (La Capra, 2001: 186). Mas
a condição testemunhal da autora embate na densidade peculiar do
objecto, da experiência, traumática, que não se deixa representar, na
condição constitutiva de irrepresentabilidade implicada pelo
sublime e sedimentada desde a sua origem, que pertence como
sabemos ao campo do medo, medo da perda do eu, da morte, do
inconcebível (Seligmann-Silva, 1998-99: 115).
8 É tentando conjugar esses temas em torno de uma diferença sexual
que consegue articular formas do sublime que pensei que talvez não
fosse errado, embora ainda não se tenha tentado, encontrar um elo
compreensivo da literatura feminina da Guerra Colonial justamente
nas suas dobras mais problemáticas, na margem mais obscura e
silenciosa que perturba a sua própria instituição como objecto que
foge a qualquer tentativa de apreensão. A sua precariedade ou o
limite leva a meu ver a pensar essa literatura a partir da sua própria
aporia, da sua dupla impossibilidade.
9 Fora de saídas viáveis, das mediações que se podem alcançar através
de um percurso crítico, de um método, o problema da representação
do trauma encontra, na modernidade, um campo paradoxal que
deixa aberto os extremos inconciliáveis dos conflitos, sem os fechar
em impossíveis sínteses, um campo onde, como diz Sergio Givone, há
“um pensamento que uma vez pensado se entrega à sua
impensabilidade” (Givone, 1996: XIII). Trata-se do campo opaco e
mudo onde se tenta representar o que em si é irrepresentável, mas
de que ao mesmo tempo é necessário tentar, e possivelmente
encontrar, a representação: o mal, a morte, o trauma, a dor. Ou o
trauma da guerra. E não é por acaso que o sublime fornece a esse
campo um importante paradigma. Esse campo é o campo do trágico.
O trágico moderno, mais exactamente, para distingui-lo do género
aristotelicamente canonizado da tragédia ou do trágico antigo com
que ao mesmo tempo mantém relações complexas, residuais, sendo
uma sua actualização – ou melhor uma sua “tradução” – fora do
contexto mitológico originário.
10 A dupla impossibilidade da literatura feminina da Guerra Colonial
talvez possa encontrar numa reflexão sobre o seu núcleo trágico um
território onde o pensamento do trauma possa chegar a uma
representação própria e a representação da experiência traumática
possa, assim, ser pensada, para expressar a aporia trágica a partir de
uma figura – digamos assim – recompositiva do contraste como a do
quiasmo. Sobretudo a transcrição da aporia no campo do trágico
moderno proporciona um arsenal crítico considerável, de índole
transdisciplinar, filosófico e estético, que transforma o limite da
dupla impossibilidade, de pensar e representar o conflito, num
limiar que escancara um campo onde reconjugar as questões em
jogo. Aliás, talvez seja possível, a partir do recorte da
problematização da literatura feminina da Guerra Colonial dentro
das porosas molduras do trágico moderno (que se apoiam no
repositório crítico de uma imensa tradição aliás conflituosa) esboçar
bases conceptuais de problematização mais ampla, que investem –
elipticamente, nestas considerações – a literatura da Guerra Colonial
ou ainda, de modo mais geral, da representação da guerra como um
todo.
2. (Quase) lutos, cicatrizes, epitáfios
11 A primeira questão, digamos assim, trágica com que deparamos –
assumindo aqui uma ideia moderna de trágico como conflito
inconciliável (Goethe) – é certamente a mais aporética e fundacional
da literatura da guerra, ou seja, a da testemunha. Um testemunho
que se articule a partir de uma não coincidência entre a testemunha
integral, que é titular da experiência traumática mas não pode
expressá-la, e o acto que por definição jurídica chamamos de autor,
isto é, de quem torna válido um acto que em si não o poderia ser. O
testemunho, portanto, na reconstrução já bastante conhecida de
Giorgio Agamben, surge sempre como acto de um autor (de uma
autora, no caso) dentro de um conflito, de uma dualidade essencial,
em que uma insuficiência e uma incapacidade se integram e validam,
tornando assim o testemunho um resto, o que resta entre as suas
duas lacunas constitutivas, entre os mortos e os sobreviventes, entre
indizível e dizível, entre o titular mudo da experiência
incomunicável e o autor que fala da experiência dum Outro
(Agamben, 1998: 138-140 e 152-153). 1
12 Nesse sentido, a literatura feminina da guerra coloca-se plenamente
enquanto acto de autoras que preenchem a lacuna linguística das
testemunhas integrais e o distanciamento que se evidencia do
cenário bélico é o pressuposto que possibilita o acto testemunhal
doutro modo impossível ou, pelo menos, problemático. Por isso,
nessa literatura dá-se testemunho de eventos indizíveis, como os
massacres (por exemplo o de Wiriamu) ou os horrores da guerra
documentados fotograficamente e que todos vimos e gravámos na
memória, mas que em si não poderiam testemunhar, dando portanto
voz às vítimas silenciosas, isto é, às testemunhas integrais, que
doutro modo permaneceriam sem representação. Na era da
testemunha, em que é árdua – até trágica – a relação entre
testemunho e história, a literatura oferece actos de autores/as
essenciais para uma efectiva compreensão histórica.
13 Há uma frase‑chave que a meu ver o famoso jornalista da “Coluna
involuntária” de A Costa dos Murmúrios entrega a Eva Lopo que foi
Evita: “Devemos enterrar os mortos e cuidar dos vivos” (Jorge, 1988:
171) e que corporiza uma tópica fundadora da literatura da guerra.
2 Nessa relação entre vivos e mortos dá-se um tema fundamental

da literatura da guerra que também remete para a problematização


(trágica) do resto. A melancolia das representações já foi vista como
um traço estruturador do corpus literário, mas é no conflito
pós‑freudiano entre luto e melancolia que se desvenda uma matriz
importante a ser repensada, que confere aos autores (às autoras) o
papel de “guardadores de túmulos” 3 de uma literatura que se
propõe patentemente um fim terapêutico, fazer o trabalho do luto,
reactivando, aliás, assim o importante elo etimológico que une
túmulo e signo 4 . De facto, a relação entre melancolia e luto é hoje
recolocada nos seguintes termos trágicos, de reabilitação da
melancolia sobre o luto: há sempre um resto que não pode ser
integrado na elaboração do luto e no melancólico a fidelidade até ao
extremo é a que é dirigida para esse resto, como se o luto fosse uma
traição, uma segunda morte. Como foi notado, isso torna-se possível
por um erro “teorético” do melancólico que coloca a resistência num
objecto realmente existente mas perdido: o erro é confundir a perda
com a falta, de acordo com o qual um objecto que nunca se teve, mas
que se considera como perdido, pode ser assim possuído (Zizek, 2002:
39-40). 5 Nessa reconstrução, o que vale a pena sublinhar – além de
mais uma conceptualização que centraliza a problemática residual,
do resto, não só pela vertente testemunhal, mas também pela
relativa à elaboração das perdas traumáticas da guerra – é a relação
de proximidade conflituosa entre melancolia e luto, onde a primeira,
ambivalente e complexa, teria um paradoxal disfarce enlutado, um
“quase” luto (Agamben, 1993: 26), de modo que um corte crítico fora
do campo das tensões trágicas se tornaria aporético.
14 A melancolia, portanto, também exigiria, por sua vez, uma
incoincidência, uma deslocação, como ocorre, por seu lado, com a
aporia testemunhal, no deslize, no shifting, entre falta e perda que
recoloca a distância do evento traumático como fundamental para
articular o seu trabalho, a sua elaboração. De algum modo, se
quiséssemos iconizar o núcleo trágico da questão, poderíamos
encontrar um correlativo adequado num resto específico do passado,
na relíquia e no complexo por ela implicado que pressupõe um
processo pelo menos dual: a relíquia, desde os mitos mais antigos,
simboliza que o passado, o morto, não regressa no presente, mas ao
mesmo tempo cria também a ilusória reunião do passado com o
presente, dos mortos com os vivos. A relíquia une e separa o
presente do passado. Como a recordação que é por excelência
relíquia secularizada, como na célebre definição de Benjamin.
15 Essas generalidades testemunhais e metapsicológicas servem para
recolocar na literatura feminina da Guerra Colonial uma questão que
lhe é crucial e até fundamentadora, a questão da memória. De facto,
se há um traço que une os textos literários da Guerra Colonial, e
particularmente os femininos, este é, como notou Maria Irene
Ramalho, num ensaio sobre A Costa dos Murmúrios, seminal de muitos
outros estudos sucessivos, o uso duma memória disjuntiva,
conflituosa, em “um aproveitamento aparentemente paradoxal do
modo autobiográfico como estratégia de distanciação” (Santos, 1989:
64). Aliás, sobre a questão da memória podemos contar com
excelentes ensaios como os de Paulo de Medeiros 6 que não vou
aqui resumir. Quanto à memória “trágica” presente na literatura
feminina da Guerra Colonial (refiro‑me, em particular, aos romances
de Wanda Ramos e de Lídia Jorge), gostaria de frisar que o
“murmúrio”, a “bolha” da memória da experiência bélica se
sexualiza (cf. Magalhães, 1997: 294) de modo peculiar nestes textos.
O primeiro aspecto, que a meu ver se torna evidente, é o de uma
memória de cicatrizes. Entendo aqui cicatriz num duplo sentido,
próprio de ferida física, mas também figurado, ou seja, de marco de
ofensa, rasto de uma experiência destrutiva, figura que mantém viva
uma tensão, um conflito entre lembrar e esquecer. De facto, se em
português o verbo esquecer deriva do latim cadere (Weinrich, 1999:
9) que aproxima o seu sentido ao de ruína (deverbal de ruo, queda,
desabamento) ou seja, o que sobrevive à destruição ainda que
submerso no esquecimento, também a palavra cicatriz pode
considerar-se o deverbal do mesmo verbo latino, o que não é
desprovido de consequências relevantes se a cicatriz for
interpretada, no corpo, à luz da rica semiologia das ruínas. A arte da
memória sobrepõe-se, assim, à prática de leitura de cicatrizes, como
mostra eloquentemente, por exemplo, Georges Perec quando atesta a
importância de uma cicatriz no seu lábio superior que desencadeia
as suas memórias autobiográficas (Seligmann-Silva, 1999: 46).
16 A rede de cicatrizes literárias é plural: temos as superexpostas como,
em A Costa dos Murmúrios, a cicatriz resplandecente do capitão Forza
Leal, o símbolo violáceo e exibido da ideologia bélica colonial e dos
seus retóricos, mas ainda sedutores e fatais, mitos heróicos que se
lhe associam ou se procuram barbaramente em seus turvos reflexos,
ou até as irónicas simultaneidades trágicas que sempre pela figura da
cicatriz surgem e organizam o fluir da memória paradoxal e
inconsequente, como no caso da “vergonhosa” cicatriz (para todo o
sistema) esfinctérica da mulher do tenente Zurique. No entanto, uma
ilumina o sentido – trágico – da outra. Mas, ao lado dessas cicatrizes
próprias, ainda que carregadas de sentidos íntimos e profundos do
acto crítico, há inúmeras outras cicatrizes que tecem uma rede de
feridas bem ou mal cicatrizadas mas que se reabrem facilmente
quando encontram o acesso às fontes afectivas inconscientes. Por
todas as narrativas estão disseminadas essas cicatrizes, cacos
cortantes da infância do contexto colonial, os flashes de fel e de
mágoa do Leste de Angola (Percursos), atrocidades lúdicas, mitos de
uma honra anacrónica, massacres gratuitos que não admitem
testemunha, mas que o narcisismo delirante capta e arquiva na
superfície sensível da película fotográfica (A Costa dos Murmúrios). A
memória de cicatrizes que se tece é uma memória de vácuos,
intermitências, restos, mas que reconfigura e borda uma imagem do
passado que se subtrai ao esquecimento ou luta contra ele. O
esquecimento é um dos fios essenciais dessa nova textura, como
também exibem os textos.
17 A inscrição da ferida no corpo, a memória de cicatrizes, não só
temporaliza, data a experiência (e, como a relíquia, une e separa
daquele passado), mas, ao mesmo tempo, confere às cicatrizes
metafóricas uma espessura física, traduzindo o trauma numa
memória inapagável que se pode conservar. Assim, converte-se a
cicatriz (portanto a dor) em ícone, em tatuagem que outros podem
decifrar pelo texto, pela textura nova que as conjugações
impensadas de cicatrizes formam (no peito de Forza, no esfíncter da
mulher do tenente), proporcionando um novo modo de re-escrever
e, portanto, de ler a história. O corpo conserva a dor, mas conserva
também a resistência à dor.
18 A verdade (aletheia) depreende-se dum corpo a corpo com o
esquecimento, como um movimento que de qualquer modo não pode
prescindir, apesar da resistência, da dimensão do esquecimento. Lete
e Mnemosyne, o rio e a fonte, o Luachimo e o Luena da experiência
surgem como conflito que não se recompõe, não se resolve. E é na
diferença sexual, onde o corpo é registo de repressão e resistência,
que se pode tecer a memória trágica de cicatrizes. E é por esse viés
metonímico mais do que metafórico do corpo que pode dar‑se a
passagem alegórica do individual para o colectivo, da crise pessoal
para a da nação que é experiência da crise mais do que a metáfora
dela.
19 Há também um segundo aspecto ainda “trágico” por sublinhar,
sempre em relação à memória (por sua vez trágica) da guerra. Um
traço bem perceptível que marca as prosas da Guerra Colonial, é o da
voz das contranarrativas. 7 É verdade que a memoria vocis que assim
se configura assume feições bem características que afectam a
própria textura discursiva, tanto em A Costa dos Murmúrios como em
Percursos. O problema da voz em função da escrita feminina desvenda
uma questão muito interessante: houve de facto uma ruptura no
âmbito da cultura ocidental do que se definiu com Aristóteles como a
“voz significante” (phonè semantikè) por excelência fundadora do
discurso humano. A desvocalização platónica da voz significante
abre uma fenda entre voz e lógica, entre dizer e dito, de modo que
Adriana Cavarero, reconstruindo uma tradição e dialogando com a
reflexão de Cixous e Kristeva, indica como o território da voz (e do
corpo) é prevalentemente feminino, enquanto o logos se centraliza
em torno do domínio masculino (Cavarero, 2003: 110-114, 154-161). A
peculiaridade da voz que se articula a partir das escritas femininas
da Guerra Colonial necessita da configuração de uma outra lógica
discursiva que possa preencher as lacunas do antigo pacto da “voz
significante”.
20 Se repararmos bem nas estruturas dos romances, aperceber-nos-
emos de como o seu funcionamento “out of joint”, fora de padrão,
aparentemente a-lógico ou anti‑lógico, é talvez motivado pela cisão
originária entre voz e lógica. Por isso, em Percursos temos uma voz
que se articula a partir de uma montagem caótica e não linear de
reminiscências que tecem uma outra lógica discursiva. De forma
semelhante, o estranhamento que provoca o aparente caos mnésico
da segunda parte de A Costa dos Murmúrios contrasta com a simetria
falsa da primeira, de “Os gafanhotos” de autoria masculina, até a
anular. E, justamente, em A Costa dos Murmúrios ressalta
admiravelmente a violação dos códigos que organizam o eu, a lógica
do discurso pelo fluxo das vozes em que há gritos, choros, risos,
sensações que proporcionam na escrita o evento da sua
desagregação, da sua desorganização. E qual é a história que pode
surgir dos restos dessas memórias vocais e individuais, se uma
história puder efectivamente surgir? É uma história que explora
dimensões implícitas e singulares, o que normalmente fica fora da
história: os sentimentos, os desejos, a consciência, os instintos.
21 Um outro ícone que talvez contribua para entender melhor o sentido
só aparentemente caótico e absurdo dessas memórias despedaçadas
é o do epitáfio, pela constelação de elementos simbólicos que
coagula. De facto, o epitáfio tem origem discursiva (epitàfios lògos),
como oração funerária para honrar os caídos em batalha que depois
se transforma em inscrição tumular (etimologicamente), mas
também, como assinala Johanna Dahm, em monumento que não se
ergue no túmulo, mas, frequentemente, nas suas cercanias (Dahm,
2002: 166). Ou seja, o epitáfio simboliza, enquanto obra, a memória
na ausência do cadáver, desempenhando, no entanto, uma função
primária comemorativa, que se justapõe também a uma função
secundária e menos evidente de tipo moral-didascálico: o
monumento institui-se exibindo a distância dos restos que o
justificam, mas trata-se de uma distância que articula o que os restos
em si não poderiam recompor, ou seja, um certo sentido, ainda que
precário, da história para as não testemunhas. Epitáfios dispersos da
crise que só remetem para fragmentos do que se escoou, do passado.
Na literatura feminina da Guerra Colonial, bem mais do que uma
história há de facto uma genealogia que procura não um fim, mas os
restos, os escombros que se mantiveram na dispersão do tempo,
circunstância que, de acordo com a genealogia foucaultiana, faz da
história uma contra‑memória. Não é por acaso que Foucault sublinha
a relação que se institui entre corpo e história, remetendo para outra
visão trágica e ruinosa do tempo: “O corpo: superfície de inscrição
dos eventos […] volume em perpétua erosão. A genealogia, como
análise da proveniência, è, portanto, a articulação do corpo e da
história: deve mostrar o corpo todo marcado pela história, e a
história que devasta o corpo”. (Foucault, 1977: 37)

3. Enterrar os mortos: as Antígonas trágico-


modernas da Guerra Colonial
22 Mas reunindo todos os fios trágicos, residuais, das autoras da Guerra
Colonial, como interpretar a dimensão trágica que (res)surge – como
pensamento e representação – na modernidade e qual a sua relação
com os moldes da tragédia clássica? E de que modo o
reconhecimento dessa dimensão trágica nos ajuda a elaborar o luto,
a encontrar para os mortos o seu lugar de sepultura, enfim, a pensar
num sentido histórico que torne citáveis os sofrimentos inconclusos
dos mortos no presente, no mundo dos vivos? E além desta vertente
benjaminiana, como é que o trágico recoloca a literatura da Guerra
Colonial a partir da sua voz feminina?
23 É preciso desde logo frisar que a tragédia clássica é um género de
retaguarda em relação ao teatro da guerra, o que de algum modo
contribui para pautar as relações entre tragédia e épica. A tragédia
assume motivos da épica e tradu-los em objecto de meditação ético-
política. Há uma incoincidência originária, portanto, entre trágico e
épico (que Aristóteles aliás glosa na Poética, derivando a épica da
tragédia e não vice‑versa [Aristotele, 2000: 123]). É por isso que é
imediato associar às profundezas do trágico a literatura feminina da
Guerra Colonial e a sua deslocação em relação aos eventos
traumáticos percebidos à distância, como reflexo deformado, no
entanto fundador, de um pleno acto testemunhal, de um acto de
autora, porque eles são recolocados como motivos de uma reflexão
que recostura um sentido outro da história conectando os
fragmentos dispersos do passado, num gesto redentor do sentido
histórico. Um gesto carregado de um conteúdo ético‑político, ainda
que não coincidente com a história sobre a qual se debruça.
24 O fragmentarismo, aliás, revela a dimensão plenamente moderna do
trágico que está em jogo. Um trágico “abastardado” em relação à
tragédia clássica: não irei aqui aprofundar uma questão complexa – e
até “trágica” em si – como a de detectar as relações entre trágico
antigo e trágico moderno sobre as quais se confronta uma tradição
de pensamento amplíssima e contrastante, mas basta pensar que,
numa das suas leituras clássicas, Kierkegaard (“O reflexo do trágico
antigo no trágico moderno”) aponta para o traço residual que o
funda, observando que, no processo, o trágico permanece o trágico
mas que é preciso sondar o que “enriqueceu” (portanto
transformou) o conceito (Kierkegaard, 1988: 22). Ou seja, há como
uma deflagração dos estilhaços dos motivos da tragédia que se
traduzem no trágico moderno e que se realinham na textura
narrativa – por um rebaixamento e uma oscilação, poderíamos dizer,
que chega a roçar até o kitsch, próprios do polimorfismo da forma
romance – conservando, no entanto, os restos da memória trágica.
25 Os cacos trágicos (e metatrágicos) disseminam-se pelas prosas em
questão: pense-se na estrutura “teatral” da escrita de Percursos ou
em rasgos críticos do tipo “Era preciso não dizer nada ao tenente,
porque de novo aquela era uma coincidência trágica. E o que é a
tragédia senão uma deslumbrante coincidência?” (Jorge, 1988: 188)
ou “despudoradamente fabricar inúmeras escritas, catarse
mastigada, a fala por fim logrando recuperar-se” (Ramos, 1981: 80).
26 No trágico moderno, se quisermos esboçar uma conceptualização
simplificadora, ocorre uma substituição peculiar que nos reconduz a
um dos pais fundadores do romantismo italiano, Alessandro
Manzoni. Ele dedica-lhe uma atenção especial, num texto teórico 8
sobre a tragédia em que explica uma intuição evidente, mas
esclarecedora, que redefine as relações entre tragédia e trágico. Para
Manzoni, o trágico moderno deve reelaborar o lado obscuro da
história, mas nisso ele capta também uma analogia essencial: há de
facto uma simetria directa entre o mito da tragédia antiga e a
história da tragédia moderna; ou seja, no trágico moderno, a
realidade histórica vai substituindo o mito, o que implica – como foi
observado – que na tragédia clássica é o mito que representa o seu
material da realidade, mas também que a função do mito da tragédia
é exercida no trágico moderno pela realidade histórica (Maj, 2001:
1269).
27 A substituição do mito pela história dentro da memória escrita da
guerra desenha o perfil do trágico nas obras a partir inclusive de
marcos que remetem directamente para o mito (épico) como Helena
de Tróia em A Costa dos Murmúrios – “Mas Helena de Tróia era a
abstracção de quê? […] Os gregos, pais dos nossos mitos, não
inventaram essa fragilidade nem a malevolência dessa fragilidade
(Jorge, 1988: 90) – ou imagens onde a história se enxerta na carne
viva do trágico – “despertar de terra libertando-se/do marasmo de
musgo da opressão/extensa tragédia tecida/ancestralmente com
vagares de sangue” (Ramos, 1981: 67).
28 Ora, nas dobras ocultas da história, o mito continua a pulsar, ainda
que residual. E como seria possível não se deixar sugestionar pelo
mito trágico daquela que é considerada (Hegel) o paradigma da
tragédia por excelência que é a Antígona de Sófocles, sobretudo nos
elos trópicos analógicos que surgem contrastando-a com as
narrativas da Guerra Colonial?
29 De facto, Antígona viola o nomos graptòs (a lei escrita) da polis ao
pretender enterrar o corpo do irmão Polinice, que Creonte (por
Polinice ter ousado lutar contra a polis) quer deixar insepulto
naquele limiar de ninguém que é fora dos muros da cidade, domínio
por excelência da alteridade. Se assim acontecesse, isto significaria
apagar o nome e todos os traços do morto. Por isso, Antígona, em
nome do nomos àgraphos (da lei antiga, mas não escrita) resolve
transgredir a proibição, crime execrável em relação à comunidade
que lhe custará a condenação a uma morte horrível – mas,
significativamente, numa outra condição dual, trágica, ou seja, a de
“enterrada viva”.
30 Como pode facilmente depreender‑se dessa reconstrução sumária,
há muitos elementos que remetem para a vertente feminina da
literatura da Guerra Colonial. Antígona encena o conflito entre
ontologia e política, privado e público, entre intimidade e polis, entre
corpo e ordem. O conflito da “beleza terrível” do trágico chega a uma
perfeição (Hegel) que não pode encontrar uma conciliação, uma
resolução, o que torna o embate trágico um extraordinário
correlativo do sublime.
31 Mas é a relação corpo-política (Cavarero, 1995: 17-22) que se revela
bem interessante. De facto, Antígona (embora pensemos nas autoras
portuguesas) mostra a impossibilidade de construir um luto público,
um céu da memória que simbolize uma perda colectivamente
problemática (a memória do vencido): a condenação da polis, pelo
contrário, é pelo apagamento de qualquer traço, portanto, pelo
esquecimento sem resto ou, mas numa dimensão privada e fora de
qualquer espaço público, pela conservação de restos que
desencadeiam um inexaurível complexo melancólico. E também um
outro elemento relevante é a posição de Antígona, limiar,
fronteiriça, mas dentro duma relação trágica que, portanto, não se
deixa traduzir, não admite mediações.
32 O que talvez diga mais respeito ao nosso tema, é uma questão por
excelência trágica que Antígona aprofunda ainda mais, a questão da
culpa. Encontramos de facto o conflito entre a culpa objectiva da
tragédia, a amartia, e a responsabilidade da memória, o que torna a
tragédia sofocliana uma obra absolutamente moderna, o que, por sua
vez, explica o seu elevado número de “traduções” (George Steiner)
até contrastantes entre si. O que interessa não é tanto interpretar o
problema trágico na tragédia, mas ver como fora da rede da
necessidade, da anakè trágica, e dentro do mundo da técnica isso se
reflecte. Porque, como foi observado, e não somente em relação à
vertente feminina, há na literatura da Guerra Colonial um tópico
axial que é o da culpa (Teixeira, 1998: 103), o que poderia ser de
algum modo compreensível, não pela redução ideológica da
literatura da Guerra Colonial à “literatura de requiem”, mas sim
porque há uma culpa – trágica – que caracteriza o processo pós-
colonial de Portugal. E a tematização feminina da culpa, sub specie
Antigonae poderíamos dizer, ganha uma evidência enorme. Pense-se
na reminiscência do autoritarismo colonial da companhia, os
ranchos folclóricos das culturas tradicionais, o elitismo da presença
portuguesa. Em A Costa dos Murmúrios, a problematização do conflito
trágico torna-se ainda mais evidente.
Não compreendo que pensamento cínico habitualmente me leva a estabelecer
sobre o mundo, para sempre chegar à conclusão de que a culpa é um corpo
celeste que existe além de nós e independentemente de nós. Não compreendo
porque penso assim, e contemplando o que é nocivo, nunca culpe. […] Agora
porém, eu culpo (Jorge, 1988: 124; cf. também 156-157)
33 O que se nota no contraste entre corpo e política, que talvez seja o
lugar (trágico) onde pode dar‑se a conjugação, obviamente
complexa, entre crise individual e crise colectiva do fim da
colonização, é que a culpa objectiva (de ser português, de pertencer a
um “destino” português, ultramarino, atlântico, de acordo com os
mitos “escritos” da portugalidade que aliás ecoam irónicos em
Percursos e em A Costa dos Murmúrios como em muita literatura da
Guerra Colonial) é violada pela responsabilidade das autoras de dar
testemunho ao que em si não se poderia testemunhar, uma
responsabilidade bem mais ampla que só o trágico moderno admite.
A responsabilidade – poderia observar‑se – ocorre através de uma
outra forma trágica que é o mecanismo do testemunho, que se
articula a partir duma memória por sua vez trágica. No entanto, isso
não impede que a culpa seja inexoravelmente exposta como fractura
irrecuperável e os restos testemunhais possam instituir o elo entre
memória e história, formando uma reflexão sobre a memória trágica
do vencido massacrado que, como também ocorre na tragédia, se
torna realmente objecto de meditação ético‑política para a polis
(Simone Weill). Este é o elemento que confere a essas poéticas
trágicas o peso e o conteúdo de políticas trágicas sobre a
desapropriação da experiência da guerra.
34 As descendentes portuguesas de Antígona talvez mostrem então
justamente isso: as suas incoincidências trágicas em relação ao
objecto do seu canto (a guerra) permitem-lhes “politizar o corpo”
contra as políticas – nómicas mas impróprias – da polis com uma
contra‑memória trágica de restos e de rastos que devolve e anula,
por murmúrios e bolhas, leve mas inexoravelmente, as revisões
históricas racionalizadoras sobre a Guerra Colonial.

BIBLIOGRAFIA
Abraham Nicolas; Törok Maria (1993), La scorza e il nocciolo. Roma: Borla.

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NOTAS
1. Sobre a problemática do testemunho como resto na literatura da Guerra Colonial,
permito-me remeter para Vecchi, 2001a: 317-327, e Vecchi, 2001b: 389-399. Para uma crítica
da perspectiva de qualquer modo inovadora de Agamben, onde em relação ao nome de
Auschwitz “a toponímia se torna antonomásia”, veja-se Mesnard e Kahan, 2001: 55.
2. Cf. e.g. autores como Fernando Assis Pacheco ou José Bação Leal.
3. De acordo com a leitura criptofórica de Abraham e Torok sobre a incorporação do
trauma como cripta (cf. Abraham e Törok, 1987: 247).
4. Ambos derivam do grego sêma , que indica a pedra tumular.
5. Sobre a importância da problematização entre falta e perda para a distinção entre
traumas trans?históricos e históricos, cf. La Capra, 2001: 43-85.
6. Sobre a relação memória-história em A Costa dos Murmúrios , cf. em particular a
contribuição de Paulo de Medeiros (1999: 61-77) e também a sua instigante leitura
contrastiva do uso da memória no romance da guerra de Lobo Antunes e Lídia Jorge em
Medeiros, 2000: 47-76.
7. Relativamente a essa diferença entre o primeiro livro “Os Gafanhotos” e o segundo livro
de Eva em A Costa dos Murmúrios , Helena Kaufman foi chamando a atenção para a
“alternância da voz narrativa” (Kaufman, 1992: 42).
8. Lettre à M.r Chauvet sur l’unité de temps et de lieu dans la tragédie (1823), que decorreu da
experiência de composição duma tragédia “moderna” como Il conte di Carmagnola (1820). Cf.
Manzoni, 1999.

RESUMOS
Se a guerra é por excelência o território do androcêntrico, a experiência traumática da
guerra e a sua representação pelo olhar feminino enxertar‑se‑ão numa margem periférica,
numa orla de deslocação da própria experiência traumática. Deste ponto de vista, o feminino
torna-se por excelência um “olhar testemunhal”, sendo a possibilidade sobrevivente,
residual, da impossibilidade do testemunho integral diante do evento traumático. Uma
deslocação esta que evidencia a não coincidência entre experiência e imagem, própria do
testemunho, em que lógos e memória femininos se tornam portadores contundentes de um
outro lógos, duma contra‑memória. Os romances de Wanda Ramos e Lídia Jorge são
recolocados também na problemática trágica da aporia testemunhal, mostrando como uma
reflexão crítica sobre o trágico moderno pode proporcionar uma perspectiva mais
compreensiva de uma literatura problemática – pelo seu corpo a corpo com a história –
como a da Guerra Colonial.

If war is primarily the territory of the androcentric, the traumatic experience of war and its
representation by the feminine eye insert themselves in a peripheral margin, a border of
dislocation of the traumatic experience itself. From this point of view, the feminine becomes
a “witnessing eye” par excellence, the surviving, residual possibility of the impossibility of
fully bearing witness to the traumatic event. This dislocation reveals the non-coincidence
between experience and image, characteristic of the testimony, in which feminine logos and
memory become trenchant carriers of another logos, a counter-memory. The novels of
Wanda Ramos and Lídia Jorge are also resituated in the tragic problematic of the testimonial
aporia, showing how a critical reflection on the modern tragic enables a more inclusive
view of a problematic literature – because of its struggle with history – such as that of the
Colonial War.

Si la guerre est par excellence le territoire de l’androcentrique, l’expérience traumatique de


la guerre et sa représentation par le regard féminin se grefferont à une marge périphérique,
dans une orée de dislocation de l’expérience traumatique elle-même. De ce point de vue, le
féminin devient par excellence un “regard témoin”, étant la possibilité survivante,
résiduelle, de l’impossibilité du témoin intégral devant le fait traumatique. Cette dislocation
révèle la non coincidence entre expérience et image, propre au témoin, dans laquelle logos
et mémoire féminins deviennent porteurs blessants d’un autre logos, d’une contre-mémoire.
Les romans de Wanda Ramos et de Lídia Jorge sont replacés, de même, dans la
problématique tragique de l’aporie de témoignage, montrant comment une réflexion
critique sur le tragique moderne peut fournir un point de vue plus compréhensif d’une
littérature problématique – par son corps à corps avec l’histoire – comme celle de la Guerre
Coloniale.
ÍNDICE
Mots-clés: mémoire, tragédie, traumatisme, Guerre coloniale portugaise, rôle de la femme,
littérature
Keywords: memory, tragedy, trauma, Portuguese colonial war, women, literature
Palavras-chave: memória, tragédia, trauma, Guerra colonial portuguesa, mulher,
literatura

AUTOR
ROBERTO VECCHI

Professor associado de literatura portuguesa e brasileira na Faculdade de Línguas e


Literaturas Estrangeiras da Universidade de Bolonha e do Programa de Doutoramento em
Iberística do Departamento de Línguas e Literaturas Estrangeiras Modernas da mesma
universidade. As suas directrizes de investigação aprofundam sobretudo a vertente crítica
das relações entre história e literatura e as questões da teoria cultural e pós-colonial em
vários ensaios e volumes. Entre as publicações mais recentes, os ensaios “A catástrofe como
representação” (Roma, 2003), “Das relíquias às ruínas. Fantasmas imperiais nas criptas
literárias da Guerra Colonial” (in Margarida Calafate Ribeiro e Ana Paula Ferreira, Fantasmas
e fantasias imperiais no imaginário português contemporâneo, Porto, 2003) e os volumes Formas e
mediações do trágico moderno. Uma leitura do Brasil (com Ettore Finazzi-Agrò, São Paulo, 2004)
e Periferie della storia: il passato come rappresentazione nelle culture omeoglotte (com Silvia
Albertazzi e Barnaba Maj, Macerata, 2004).
rvecchi@lingue.unibo.it
Re-escrevendo a História: A Costa
dos Murmúrios de Lídia Jorge e
L’Amour, la fantasia de Assia Djebar
1
Rewriting History: Lídia Jorge’s A Costa dos Murmúrios and Assia Djebar’s
L’Amour, la fantasia
Récrire l’Histoire : La Côte des Murmures de Lídia Jorge et L’Amour, la
fantasia d’Assia Djebar

Ana de Medeiros

1 Em 1999, a revista Portuguese Literary and Cultural Studies dedicou um


número à escritora Lídia Jorge. Na introdução de Claúdia Pazos
Alonso, Lídia Jorge é descrita como “indubitavelmente, uma das mais
proeminentes romancistas que apareceram desde a Revolução de
1974. Como outros prolíficos escritores do período pós-
revolucionário, Lídia Jorge conta com dez títulos no espaço de duas
décadas. ‘Espantosa’ é provavelmente a palavra mais correcta para
uma autora cuja fértil imaginação tem tratado tópicos tão variados
como o impacto da Revolução de Abril e das Guerras Coloniais, por
um lado, e a natureza abrangente de uma esquiva relação pai-filha
numa pequena aldeia, por outro.” (Alonso, 1999: xii).
2 O artigo continua apresentando-nos uma sinopse dos artigos
incluídos no número especial da revista. Nele o leitor pode encontrar
artigos dedicados aos mais prestigiados livros da escritora: O dia dos
prodígios (1980), Notícia da cidade silvestre (1984) e O jardim sem limites
(1995) bem como A Costa dos Murmúrios (1988), recentemente descrito
por Paulo de Medeiros como continuando “a ser uma das mais
conseguidas representações da guerra colonial e, de todas as obras
da autora, […] a que tem recebido maior atenção crítica” (Medeiros,
2003: 136). Contudo, o que mais me interessa para o presente estudo
e a razão pela qual Lídia Jorge e Assia Djebar são lidas em conjunto
aqui liga-se ao que Alonso sublinha relativamente a Lídia Jorge na
sua introdução:
[É] impossível ler Lídia Jorge sem referir o seu sexo. Na verdade, parte da
originalidade da autora reside precisamente no facto de a sua ser uma voz das
margens, proporcionando uma perspectiva nova e feminina sobre
acontecimentos históricos determinantes (ou considerados como tal) e
empenhando-se no processo de recuperação de acontecimentos, vozes e posições
frequentemente consideradas de importância secundária pela ordem dominante.
(Alonso, 1999: xii)
3 De forma semelhante, Vera Lúcia Soares descreve o trabalho de
Djebar nos seguintes termos:
Dar voz ao silêncio secular imposto à mulher árabe. Este é o projeto literário de
Assia Djebar. Mas como exprimir o silêncio? Somente através de um outro
silêncio: a escritura, forma de expressão vedada à mulher árabe-muçulmana. No
entanto, para a romancista, sua escritura ao se fazer na língua do outro deixa de
ser um silêncio e se transforma em voz, na voz que se propõe a romper outros
múltiplos silêncios. (Soares: 1998: 68).
4 Revisitando o passado de forma a re-escrever a história e, ao fazê-lo,
dar voz às muitas participantes femininas silenciadas é um dos
elementos que Lídia Jorge e Assia Djebar partilham, apesar de
estarem interessadas em diferentes histórias coloniais e pós-
coloniais. Djebar, tal como Jorge, publicou numerosos romances
premiados numa carreira que abarca várias décadas como autora,
historiadora e realizadora. Num artigo de 1996, Patricia Geesey
escreveu que “Assia Djebar (nascida em 1936) é a principal
romancista argelina de língua francesa.” (Geesey, 1996: 153). Desde a
publicação de La Soif (1957), Djebar tem tido uma carreira
extremamente prolífica, ao longo da qual conquistou o
reconhecimento do público e da crítica, com a publicação de, entre
outros: Femmes d’Alger dans leur appartement (1980), L’amour, la
fantasia (1985), Oran, langue morte (1997) e La femme sans sépulture
(2002). Reconhecer o papel da mulher na História, destacando as suas
actividades fora da esfera privada, é uma das temáticas que
atravessam as suas narrativas, desde os anos 80.
5 Dentro do tema geral da incompatibilidade entre a vida privada e a
vida pública, decidi concentrar a minha atenção numa série de
elementos comuns aos dois textos em análise – A Costa dos Murmúrios,
de Lídia Jorge e L’amour, la fantasia, de Assia Djebar – e que explicam,
em parte, a sua qualidade subversiva num sentido político e
histórico: o encarar das representações dominantes da mulher como
falsas representações, o restaurar do passado da auto-representação
feminina e o reconhecimento da necessidade de representar as
diferenças entre mulheres.
6 Para guiar esta leitura dos textos, é importante relembrar a
aclamada obra de Lynn Hunt, The Family Romance of the French
Revolution (1992), na qual se revisitam, numa perspectiva feminista,
os acontecimentos ocorridos antes, durante e pouco depois da
Revolução Francesa de 1789. Na sua introdução, a autora relembra-
nos que, de acordo com a hipótese das origens da sociedade
expressas por Freud em Totem e tabu, “as mulheres não tinham lugar
na nova ordem política e social, a não ser como sinais das relações
sociais entre os homens” (Hunt, 1992: 7). Freud tinha, claro,
imaginado uma “horda primeva” de filhos que matavam
colectivamente o pai de forma a poder dispor das mulheres do
grupo. Hunt sugere então que, dado o Rei ser visto como uma figura
paternal, aqueles que o derrubassem estariam a derrubar o seu pai.
Esta mudança de poder nada augurou de bom para as mulheres, uma
vez que se a sociedade patriarcal do Antigo Regime estava morta, ela
foi imediatamente substituída por uma nova sociedade patriarcal em
que as aspirações de igualdade dos revolucionários não durariam
muito tempo. Carole Pateman, na sua obra The Sexual Contract (1988),
recua ainda mais no tempo para examinar as raízes da ausência de
poder de decisão das mulheres. Ao discutir o contrato social e sexual,
Pateman sublinha o facto de que “a liberdade civil não é universal. A
liberdade civil é um atributo masculino e depende do direito
patriarcal. Os filhos derrubam o poder paternal, não apenas para
conquistarem a liberdade, mas para assegurar as mulheres para si“
(Pateman, 1988: 2).
7 Porém, de acordo com Hunt, ainda que esta análise possa contrastar
com as representações das mulheres na vanguarda da Revolução
Francesa, lutando nas ruas e arriscando a vida ao lado dos homens,
uma vez a revolução terminada, as mulheres teriam de regressar aos
seus papéis tradicionais ou enfrentar pena de castigo. Hunt adverte-
nos de que devemos ter o cuidado de não institituir uma falsa
simetria entre Rei e Rainha ou homens e mulheres. Embora o Rei
fosse frequentemente representado como pai da nação, isto não
significa que Maria Antonieta fosse automaticamente considerada
uma figura maternal por parte dos súbditos do seu marido. Ela não
exercia poder algum sobre o povo e, para além do mais, era
estrangeira. Porém, num caso sem precedentes, foi julgada e
decapitada. O seu crime parece residir no facto de ela ter ousado
entrar na esfera pública da vida social. O papel principal das
mulheres, na óptica da maioria dos homens e mulheres da época, era
o de serem mães dos novos republicanos. O papel delas, como
reprodutoras, não deveria porém ser extensível à criação de um
novo regime político. As mulheres que tentaram ter uma voz política
foram tratadas como bestas inumanas que transgrediam as
fronteiras do seu sexo. Apenas alguns meses após a execução de
Maria Antonieta, o novo governo republicano ilegalizou todos os
clubes de mulheres de forma a “restabelecer a ‘ordem natural’ e
impedir que a mulher se emancipasse da sua identidade familiar”
(Hunt, 1992: 119).
8 Debrucemo-nos agora sobre os dois textos em análise. L’Amour, la
fantasia é o primeiro de uma série de autobiografias ficcionais, cujo
enredo é dividido por Djebar em três partes. No caso em apreço, ao
longo do livro, a primeira parte oscila entre a história da ocupação
francesa da Argélia, em 1830, e a aventura no presente de um
narrador cuja história se assemelha em muitos detalhes à da própria
autora. Para revisitar a Argélia de 1830, Djebar incorpora cartas e
textos escritos pelos colonizadores logo após a guerra, mas
justapostos em contraste com passos que contam a história a partir
da esquecida perspectiva argelina. Este método permite-lhe ser
historicamente correcta e, simultaneamente, apontar as limitações e
omissões de tais documentos. Ao dar voz às mulheres que morreram
e às que sobreviveram à invasão da Argélia, Djebar re-escreve a
História e fala da importância de se ser vista, ouvida e referida. Num
passo tocante, ela cita excertos da Revue des Deux Mondes, onde o
conde de Castellane no seu regresso a Paris faz a crónica da invasão e
assinala o “estranho” comportamento das mulheres locais cobrindo
a cara com o que quer que tivessem à mão de forma a não serem
vistas pelos franceses, e, acima de tudo, de forma a não verem o
inimigo. Por outras palavras, as mulheres pareciam querer tratar o
inimigo da mesma forma que elas haviam sido tratadas ao longo de
gerações.
Elas ocultam-se todas como podem, e fá-lo-iam com o seu sangue, se necessário
fosse... O indígena, mesmo quando aparenta submissão, não está vencido. Não
levanta os olhos para encarar o seu vencedor. Não o ”reconhece”. Não o nomeia.
O que é uma vitória se não lhe é dado nome? (Djebar, 1985: 73)
9 De forma semelhante, o significado de “o olhar” é reforçado em A
Costa dos Murmúrios a partir do começo da desconstrução da história
original, quando Evita é descrita como um olho ou um olhar:
Embora eu tivesse descrito Evita como um olho intenso, observando, nada mais
que um olho. Aliás, ele chegou a apaixonar-se por olhos isolados como ilhas fora
do corpo. Evita seria para mim um olho ou um olhar. (Jorge, 1988: 43)
10 A leitura feita por Djebar das leis e tradições que encarceram as
mulheres dentro das paredes dos seus lares ou atrás do véu é que o
olhar masculino público receia a libertação do olhar feminino
privado.
Uma mulher – em movimento, portanto “nua” – que olha, não é além disso uma
nova ameaça à prerrogativa masculina da exclusividade do mirar? (Djebar, 1985:
152).
11 A atitude convencional da prisão das mulheres, argumentada como
necessária para a sua própria protecção, é subvertida como uma falsa
representação da sua situação e da relação com a autoridade
masculina.
12 Um paralelo interessante pode ser traçado com o encarceramento
auto‑imposto de Helena em A Costa dos Murmúrios, cujo propósito,
durante a maior parte do texto, parece ser a obediência aos desejos
do marido e manutenção de uma promessa pessoal a Deus. No final
do texto, o leitor toma consciência de que a única razão pela qual ela
persiste na perda da sua liberdade é a crença que o sacrifício dessa
liberdade satisfará o seu desejo de vingança e a libertará do marido
ao invés de lhe assegurar um retorno seguro ao lar. Assim, Helena
subverte o desejo de encarceramento feminino por parte do marido,
ao usar esse desejo para tentar destruí-lo.
13 As mulheres dos textos de Djebar, tal como Helena, não são bem
sucedidas. Às heroínas do século XX dos seus romances apenas foi
concedida uma liberdade momentânea – liberdade de lutar contra o
inimigo, liberdade de ser encarcerada e torturada pelo inimigo. Mas
quando a Argélia conquistou a sua independência da França, as
mulheres que tinham participado na luta de libertação tornaram-se
outra vez prisioneiras da sua cultura e passaram a ser encaradas
como um perigo para o antigo status quo. 2
14 Em ambos os textos a hierarquia patriarcal é ameaçada pela
capacidade de comunicação das mulheres. A primeira página de
L’Amour… aponta para este problema e renova a urgência de manter
as mulheres sem instrução de forma a melhor as controlar.
15 É também interessante notar como é feita a ligação entre expressão
oral e escrita desde o ínicio. Ambas as formas de comunicação
precisam de ser censuradas para as mulheres se manterem
enclausuradas, mas apenas uma delas pode ser cuidadosamente
vigiada e controlada. O poder emancipatório da palavra escrita é
assinalado ao longo do texto, mas o mais notável episódio ocorre no
capítulo apropriadamente intitulado “Mon père écrit à ma mère”,
onde a mãe da narradora se torna o centro das atenções da aldeia
porque o marido lhe escreveu e assim se lhe dirigiu directamente de
uma forma pública. Isto conferiu poder à mulher ao dar‑lhe uma
identidade e um reconhecimento a que nenhuma das outras
mulheres tinha acesso.
A revolução era manifesta: o meu pai, pelo seu próprio punho, e numa carta que
ia viajar de cidade em cidade, que iria passar sob tantos e tantos olhares
masculinos, incluindo, por fim, o do carteiro da nossa aldeia, ainda por cima um
carteiro muçulmano, o meu pai, dizia eu, ousava escrever o nome da sua mulher
designando-a à maneira ocidental : “Senhora dona tal...”; ora, qualquer
autóctone, pobre ou rico, apenas evocava a mulher e os filhos através desta vaga
perifrase: “a casa”. (Djebar, 1985: 52)
16 Em A Costa dos Murmúrios, os maridos de Evita e Helena requerem-
lhes o abandono da comunidade do Hotel e a entrega à reclusão nos
seus lares, aquando das suas ausências. Joan B. Landes na sua
discussão da teoria da esfera pública de Habermas, concorda com os
críticos feministas quanto ao potencial das palavras e do discurso
para gerar poder e distingue este potencial da esfera pública da
violência ou da força. De forma semelhante, em L’Amour, la fantasia,
os homens desejam silenciar as mulheres ou relegar as suas vozes
para o universo da esfera privada. As mulheres que se manifestam
são vistas como questionadoras de uma sociedade que precisava de
marginalizar mulheres para simular um controlo que já não podia
ser conseguido na esfera política. 3 Em ambos os textos, as
personagens femininas têm uma crescente necessidade de
comunicar. Em “Os Gafanhotos”, Evita permanece uma personagem
cuja história é dita por um outro. Mas, em A Costa dos Murmúrios, é
concedida a Eva a liberdade de simultaneamente construir e
desconstruir a história da sua vida. Ao longo do texto, é enfatizada a
importância do dizer. A partir do primeiro capítulo, o refrão
constantemente repetido é “disse Eva”. A necessidade de as
mulheres se manifestarem atinge o clímax quando Eva conta uma
das suas visitas ao jornalista a quem tinha pedido que investigasse a
história das inúmeras mortes ocorridas pela distribuição de metanol
em embalagens de vinho. Ela começa por falar suavemente, para
progressivamente levantar a voz até vir a bater furiosamente com os
punhos na secretária.
17 A selvajaria das mortes não pode ser representada com palavras.
Historiadores e jornalistas com as suas narrativas não representam a
realidade. Esta perspectiva é reforçada por Djebar na segunda parte
de L’Amour… numa sucessão de sete breves capítulos, cuja acção tem
lugar dez anos após a invasão de Oran pelos franceses. A guerra
continuava, com inúmeras vítimas. Djebar prefere colocar a ênfase
nas vítimas argelinas, uma vez que os registos da época tendiam a
cobrir os feitos dos franceses vitoriosos. Porém, a vitória não era
completa. As cartas dos que estavam presentes falam de
Uma Argélia feminina impossível de domesticar. Fantasma de uma Argélia
subjugada: cada combate torna o esgotamento da rebelião cada vez mais distante.
(Djebar, 1985: 73)
18 A Argélia é tomada pelos franceses, mas não sem luta, e a violação da
Argélia no século XIX ressoa na real violação e tortura de mulheres
argelinas durante a guerra da independência nos anos 60.
Este mundo estrangeiro que eles penetravam de forma quase sexual, este mundo
gritou continuamente ao longo de vinte ou vinte cinco anos, após a tomada da
Cidade Inexpugnável. Eles penetraram-na como numa desfloração. A África é
tomada apesar da recusa que ela é incapaz de abafar. (Djebar, 1985: 74)
19 Num capítulo intitulado “Mulheres, crianças, bois deitados nas
grutas”, Djebar informa o leitor acerca das acções do coronel
Pélissier, que decide gasear os árabes que se tinham refugiado numa
caverna com o catastrófico resultado da morte de todos – homens,
mulheres e crianças. O pormenorizado relatório de Pélissier foi
enviado para Paris onde causou uma contra-reacção que não
impediu que tais atrocidades fossem cometidas mais vezes; apenas
assegurou que no futuro seriam tomadas medidas para as manter
secretas. Na vez seguinte foi o coronel Saint-Arnaut que decidiu
imitar as acções de Pélissier e
massacrou por sua vez a tribo dos Sbéah. Fecha todas as saídas e, “concluído o
trabalho”, não procura exumar nenhum rebelde. Não entra nas grutas. Não deixe
ninguém fazer as contas. Não há contabilidade. Não há conclusão. (Djebar, 1985:
94)
20 Todas as pistas escritas são destruídas e quando, em 1913, um
historiador repete a história, ela é referida como uma invenção de
Saint-Arnaud. Djebar, porém, revela que a narrativa do genocídio
permanece nas memórias dos descendentes dos sobreviventes da
tribo. A importância e o papel da tradição oral, mantida
principalmente pelas mulheres de cada tribo, junto com a sua
vulnerabilidade, são sublinhadas no passo onde
o inspector reencontra a lembrança nas narrativas orais dos descendentes da
tribo. (Djebar, 1985: 94)
21 Djebar não quer com isto dizer que a oralidade é superior às formas
escritas de comunicação. Podemos ver quão importante é para as
mulheres ganhar poder através do acesso à palavra escrita. Isto é
enfatizado na abertura a L’Amour, la fantasia intitulada “menina árabe
indo pela primeira vez à escola”. 4 Neste passo, Djebar assinala o
facto de a decisão do seu pai de a mandar à escola ser efectivamente
o começo de uma vida suspensa entre duas culturas. Este momento,
tão significativo para uma menina árabe particular, não o é menos
para a comunidade árabe no geral. A reacção desta comunidade é de
medo. Isto é expresso indirectamente à medida que o narrador passa
imperceptivelmente da descrição de uma menina a ir à escola pela
primeira vez para falar do que inevitavelmente acontece às mulheres
que sabem ler e escrever. A preocupação da comunidade não é o
progresso das mulheres enquanto sujeitos pensantes, mas a questão
de quão impossível é restringir e controlar as raparigas que sabem
escrever:
Se a moça escreve? A sua voz, apesar do silêncio, circula. Um papel. Um lenço
amarrotado. Uma mão de criada, no escuro. Uma criança em segredo. O guarda
terá de vigiar noite e dia. O escrito escapará pelo pátio, será lançado de um
terraço. De súbito, um azul demasiado vasto. Tudo está para recomeçar. (Djebar,
1985: 15-16)
22 É interessante notar como, logo a partir do início desta abertura, a
expressão oral e a escrita são contrastadas na mentalidade da
comunidade. Parece ser relativamente fácil impedir mulheres de
falar a homens. Afinal, nem os homens podem facilmente entrar
numa casa sem serem detectados, nem as mulheres podem sair
facilmente sem ser veladas e enclausuradas. A palavra escrita,
porém, pode escapar ao escrutínio, minar a moral doméstica e, em
última análise, levar à desintegração das estruturas sociais que
dependem de um cuidadoso controlo dos corpos das mulheres.
23 É importante assinalar que, de acordo com a experiência de
juventude de Djebar, os medos da comunidade são bem fundados,
pois é através da escrita que ela primeiro descobre o mundo do
desejo sexual ao receber uma carta escrita em francês por um rapaz
que deseja entabular correspondência com ela. Todavia, esta carta só
adquire uma carga erótica por causa da reacção do pai – ele rasga-a;
ela recupera-a do cesto dos papéis e, em resultado disso, tece a sua
primeira intriga.
As palavras convencionais e em língua francesa do estudante em férias foram
invadidas por um desejo imprevisto, hiperbólico, simplesmente porque o pai quis
destrui‑las. Nos meses, nos anos seguintes, mergulhei em histórias de amor, ou
melhor, na interdição de amor, a intriga foi‑se alargando pelo simples facto da
censura paterna. (Djebar, 1985: 16)
24 Embora tivesse escolhido educar a sua filha, o pai partilha dos medos
da comunidade acerca da ligação entre a palavra escrita e a ideia de
que uma rapariga jovem possa estabelecer um contacto ilícito com
rapazes e, assim, ganhar liberdade sexual. Da forma como Djebar o
descreve, isto ocorre precisamente por causa do interdito; o medo
das consequências do escrever torna essas consequências realidade.
25 No entanto, isto não implica uma justificação das suspeitas da
comunidade relativas à educação feminina por duas razões. Por um
lado, Djebar apresenta a descoberta da sua sexualidade adolescente
como uma libertação:
o desafio juvenil libertou-me do cerco que sussurros de antepassadas invisíveis
traçaram à minha volta e em mim. (Djebar, 1985: 16)
26 Por outro lado, se o pai não tivesse adoptado uma atitude hostil em
relação à carta dela, a filha não a teria erotizado, nem embarcado
numa correspondência secreta. O episódio serve antes, e mais uma
vez, para representar a complexidade da vida no seio do hibridismo,
na sobreposição entre duas culturas. O pai teve acesso à educação
francesa. Concedeu-a à sua filha. Contudo, ele imbuiu-se de uma
certa maneira tradicional argelina de ver a escrita não como
educação, mas como algo que torna possível a mulher como objecto
sexual e, por extensão, um ser autodeterminado. Entretanto, a filha,
vivendo também a complexidade do hibridismo, erotiza o interdito
precisamente porque é imposto pelo pai. 5 A carta em francês,
censurada pelo pai falante dessa língua, abre as comportas da
sensualidade. A libertação sexual da filha, baseada na leitura e
escrita de cartas proibidas, é possibilitada pela educação. Esta
libertação inicial prefigura futuras liberdades baseadas na educação,
incluindo a liberdade de escrever L’Amour, la fantasia.
27 Ambas as autoras assinalam a necessidade de todas as formas de
comunicação serem consideradas em conjunto e não tratadas de
forma hierárquica como se uma pudesse ser mais importante ou
fiável que as outras.
28 É durante uma conversa que Evita toma consciência das acções do
marido durante a guerra, quando Helena lhe mostra inúmeras
fotografias de forma a criar um diário visual das atrocidades
cometidas pelos soldados. Como Paulo de Medeiros mostra no seu
recente artigo “War Pics: Photographic Representations of the
Colonial War”, é através das fotografias que Evita compreende, não
só a verdade acerca do marido, mas também a verdade acerca da sua
situação e acerca das atrocidades da guerra:
Eva recorda como, ainda jovem mulher, descobrira que o marido com quem
acabara de se casar se tinha tornado um assassino sádico, ao mesmo tempo que
descobre a natureza atroz da guerra colonial. É através das fotografias saídas dos
envelopes fechados na caixa que Evita – como ela se designava então – assume
pela primeira vez uma consciência diferente de si e da realidade que a rodeia.
(Medeiros, 2002: 93).
29 Uma banda sonora é adicionada a este diário silencioso quando ela
toma conhecimento do “canto de guerra” da autoria do seu marido e
por este cantado. O canto em si é interessante porque reflecte a
pouca fiabilidade da palavra falada, uma vez que a sua letra não só
reflecte o facto de que a promessa de uma guerra sem problemas não
é de fiar, como também sublinha o desprezo pelas palavras como um
sub-produto, como fezes.
30 Não é surpreendente que um romance auto-reflexivo como A Costa
dos Murmúrios, não permita que o uso da representação visual seja
fiável. Como assinala Linda Hutcheon:
Tal como a escrita, a fotografia tem tanto de transformação como de registo; a
representação é sempre alteração, seja na linguagem, seja na imagem, e tem
sempre uma dimensão política. (Hutcheon, 1989: 92)
31 A razão para a existência das fotografias ou para o uso que se
tenciona fazer delas não é claramente afirmada. Elas são propriedade
privada do capitão e não para consumo público. As fotografias são
uma faca de dois gumes, uma vez que, dependendo do resultado da
guerra, podem içar os retratados ao estatuto de heróis de guerra ou
condená-los à morte, se o inimigo for vitorioso. Roland Barthes em
Camera lucida sublinha o facto de que “cada fotografia é lida como a
aparência em privado do seu referente: a Idade da Fotografia
corresponde precisamente à explosão da esfera privada no seio da
esfera pública, ou antes, na criação de um novo valor social, a
publicidade do privado” (Barthes, 1993: 98).
32 À medida que as fotografias se vulgarizaram, elas produziram um
mundo que é indiferente. O soldado que tira as fotografias actuando
como jornalista, em lado algum regista o seu choque ou repulsa pelas
cenas que capta. No seu capítulo de conclusão, Barthes reforça o
perigo inerente à universalização das imagens, ao escrever que a
imagem “quando generalizada, torna totalmente irreal o mundo
humano de conflitos e desejos a pretexto de o ilustrar” (Barthes,
1993: 118).
33 As fotografias perdem o seu significado por causa da sua
acessibilidade. As imagens que representam tornam-se anódinas.
Eva, ao olhar para elas pela primeira vez, está interessada no
pormenor, mas Helena, que já teve acesso a elas em ocasiões
anteriores, mostra-se desinteressada e impaciente com o escrutínio
cuidadoso de Eva. As fotografias são dissecadas de modo muito
semelhante à forma como o texto é desconstruído, a ponto de se
tornarem irreconhecíveis e as imagens que Eva descreve já não
serem aquelas que Helena vê. A sua pouca fiabilidade é sublinhada
mais do que uma vez, dado que não contam toda uma história e o
destino da senhora idosa ou do recém‑nascido não está nessas
fotografias. Para completar a história, Eva tem de interrogar um
soldado presente na altura em que as fotografias foram tiradas. Este
confia nela apenas porque ela tem um conhecimento parcial
providenciado pelas fotografias e usa esta cena parcial e incompleta
para o fazer falar e confessar-lhe que o recém-nascido tinha sido
morto pelos soldados após o terem ajudado a nascer. A importância
das fotografias e da narrativa foram sublinhadas desde o ínicio do
texto quando em “Os Gafanhotos” lemos:
Sim, se ninguém fotografou nem escreveu, o que aconteceu durante a noite
acabou com a madrugada – não chegou a existir. (Jorge, 1988: 21)
34 Numa anterior colectânea de contos (Mulheres de Argel no seu
apartamento), Djebar tinha já desconstruído a famosa pintura de
Delacroix a que o título se refere. Em L’Amour…, Djebar substitui
inteiramente a imagem do harém exótico pela imagem de corpos
calcificados uns em cima dos outros, assim se opondo à tendência
ocidental de representar as mulheres orientais como objectos de
desejo. As mulheres comuns a quem Djebar dá voz são descendentes
de um milhar de mortos, sem contar todos os que, empilhados uns sobre os
outros, formam apenas uma massa; sem ter em conta as crianças de peito, quase
todas envolvidas nas túnicas das mães. (Djebar, 1985: 91)
35 Os dois textos estudados acentuam, como Hutcheon descreve, “a
tensão que existe entre o ser passado (e a ausência) do passado e o
ser presente (e a presença) do presente, por um lado, e, por outro,
entre os verdadeiros acontecimentos do passado e o acto do
historiador de os processar em factos” (Hutcheon, 1989: 73).
36 Em A Costa dos Murmúrios, a tendência do patriarcado para agrupar as
mulheres de maneira a controlá-las de forma mais eficiente é
sublinhada por várias cenas, onde o que acontece a uma mulher é
representado como se acontecesse a todas. O momento mais
memorável é talvez aquele em que todas as mulheres, como se
fossem uma só, são esbofeteadas pelos companheiros: “tudo isso era
vermelho. Sobretudo os vergões que muitas delas tinham pelas
caras” (Jorge, 1988: 33). Repetição e mímica são as duas ferramentas
usadas pela autora para simultaneamente sublinhar e desvalorizar as
acções descritas. Tal como os nativos são referidos apenas por
“pretos” sem distinção alguma, as mulheres dos soldados são vistas
como abelhas na colmeia ao serem tratadas como um colectivo e o
seu falar castigado.
37 A enormidade do genocídio perde o significado pela força do número
de vítimas. No texto original, é a morte do noivo que se destaca
enquanto a morte de milhares de negros é narrada de uma forma
casual. Os homens também não escapam a este tratamento colectivo.
Eles são vistos, ainda mais do que as personagens femininas, como
imitando os gestos uns dos outros, enquanto objectos da acção. O
marido de Evita, em particular, é visto copiando as acções do capitão
na forma como ele se relaciona com a mulher. Em público, ele
“caminhava atrás com Evita pelo pescoço, tal como o capitão
caminhava com Helena” (Jorge, 1988: 73). Ele vê-a da mesma maneira
que o capitão, que diz de Evita: “‘Irra, que a sua mulher é de força’”
(Jorge, 1988: 78). Ele usa as mesmas palavras para falar com Evita
duas páginas a seguir: “Irra que a minha mulher é de força” (Jorge,
1988: 80). Comparemos os dois passos seguintes:
O noivo vai ao quarto de banho onde existe uma faca de fruta. Tem um gume
fino, um pequeno cabo preto, coloca-o entre os lábios como se a fosse limpar
desse modo, introdu-la na boca e puxa-a. Quando a puxa, um dos lábios fica a
sangrar. É um corte fino, não profundo que não sangra logo, é um corte
necessário para que, passados instantes um fio de sangue corra pela boca abaixo
do noivo. O noivo vem até muito perto, olha-me de imensamente perto – é uma
ameaça. (Jorge, 1988 :83)
Nessa altura, ele tinha chegado a entalar uma lâmina de faca no meio da boca,
deixado que por ela escorresse um fio de sangue para que Helena visse e
entendesse o que deveria fazer. Dizia lembrar-se da impressão que lhe havia
causado a imagem do capitão apertando a faca na boca, puxando a faca entre os
lábios apertados. Lembrava‑se disso como se tivesse ocorrido na véspera. Fora
terrível, terrível. (Jorge, 1988: 99)
38 Torna-se claro que o jovem marido foi instruído pelo capitão a
intimidar a sua mulher até à submissão. O método usado é idêntico e
o narrador parece distorcer a acção original com a sua cópia, uma
vez que o leitor é informado da cópia antes de ser informado do
gesto original. O sangue a escorrer pela face do jovem é, claro, uma
lembrança do sangue das mulheres esbofeteadas pelos maridos e,
desta forma, as imagens são confundidas tornando-se difícil
distinguir entre os diferentes níveis narrativos usados para
desconstruir “Os Gafanhotos”. E quando Eva é interrogada acerca dos
seus sentimentos, ela sublinha claramente, mais uma vez, a ligação
entre os dois homens e, por extensão, a sua ligação com os homens
em geral.
Sim, sei que pareço triste mas não sou. Nem posso perceber porque pareço triste
porque não me escapa a verdadeira razão. Mas se não me escapasse e se soubesse,
não seria para dizer a Helena de Tróia a quem me une apenas um homem por ser
a imitação de outro homem. (Jorge, 1988: 101)
39 A voz de Eva eleva-se acima da história comunal para que assim ela a
possa contar sob o seu ponto de vista. É o dizer da história que a
ajuda a reconstruir as cenas relegadas a meras sombras da mente. A
história do genocídio é complementada pela história da gradual
transformação do jovem que ela amava num “alferes” que a
aterrorizava; a subsequente morte dele e a transformação da história
de Evita na desconstrução e re-escrita de “Os Gafanhotos” de Eva.
40 De forma semelhante, Djebar acentua as vozes de mulheres
individuais sobre as vozes e histórias do todo das mulheres. Cada
uma das heroínas descritas exprime a sua insatisfação com o status
quo. A comunidade tradicional de mulheres é frequentemente
criticada por ser demasiado lenta para evoluir. Djebar representa as
idosas da tribo como as mais agarradas à tradição. Estas mulheres
são frequentemente descritas como um grande impedimento à
libertação da geração de mulheres do pós-guerra, que, tendo lutado
ao lado dos homens, não desejam pura e simplesmente regressar aos
seus papéis uma vez a guerra ganha. Estas mulheres, tal como
aquelas no Hotel Stella Maris, não estão ao corrente das divisões de
espaço e de poder determinadas pelo sexo. As jovens heroínas de
Djebar, tal como Eva em A Costa dos Murmúrios, tentam usar todos os
meios de representação (sejam visuais ou orais) num esforço contra-
hegemónico de oposição ao poder estabelecido de forma a beneficiar
“os seres ex-cêntricos, relegados para as franjas da cultura
dominante – as mulheres” (Hutcheon, 1989: 17).
41 É um facto incontroverso que, nas suas obras, Lídia Jorge e Assia
Djebar abordam os seus temas a partir de perspectivas culturais
muito diferentes. Não é menos incontroverso, no entanto, que os
esforços de ambas visam o mesmo objectivo de tornar visível o papel
das suas compatriotas nas malhas que formam a tapeçaria cultural
das suas nações.

BIBLIOGRAFIA
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feminino. Niterói, RJ: Editora da Universidade Federal Fluminense.

NOTAS
1. A autora agradece ao Dr. Rogério Bonifácio a sua excelente tradução do original inglês
deste texto.
2. Em 1994, num ensaio sobre a relação entre história e ficção nas novelas de Djebar, a
critica Beïda Chikhi escreve : “Encarada numa perspectiva de renovação do estatuto da
feminilidade, a obra romanesca de Assia Djebar não pode deixar de se confrontar com estes
sistemas que não cessaram de ver, por exemplo, na revolução de 1954 uma revolução total.
A autora, naturalmente alinhada com esta ideia, depressa a abandonou, tal como milhares
de outros. ‘Os que pensavam que a libertação nacional [...] traria consigo a libertação da
mulher perderam as ilusões depois da independência da Argélia [...]’” (Khadda, 1994: 29).
3. “Para além disso, quando as mulheres, durante a Revolução Francesa e ao longo do
século XIX, tentaram organizar-se publicamente de acordo com os seus interesses,
arriscaram?se a violar os princípios constitutivos da esfera pública burguesa: em vez do
singular, puseram o plural, em vez de desinteresse, revelaram-se interessadas. Pior ainda, as
mulheres arriscaram?se a perturbar a organização sexualmente diferenciada da natureza,
da verdade e da opinião que lhes atribuía um lugar no domínio privado e doméstico, mas
não no domínio público.” (Landes, 1995).
4. É importante sublinhar a forma como se dispõem as primeiras duas partes do romance.
Na primeira parte, apenas as secções respeitantes à história da jovem e da sua família são
providas de título. As outras secções, onde a narradora trata dos problemas da colonização
da Argélia, são apenas numeradas. Porém, na segunda parte, esta situação inverte-se: os
títulos aparecem nas secções históricas, sendo as secções autobiográficas agora numeradas.
A forma como o autobiográfico e o histórico estão entretecidos põe em relevo a ligação
entre eles. O político e o privado estão, assim, inexoravelmente ligados.
5. Aparentemente, isto deve-se em parte ao facto de ela redescobrir o sentido secreto
imerso na língua (árabe) da mãe, recordada da primeira infância quando estas palavras não
tinham significado claro: “Silenciosa, separada das palavras da minha mãe por uma
mutilação da memória, percorri as águas escuras do corredor como uma miraculada, sem
me aperceber das muralhas [...]. Uma vez iluminadas as palavras – estas mesmas que o
corpo desvelado descobre – cortei as amarras.” (16-17). Num outro contexto, seria
interessante explorar as ligações entre árabe e francês, maternidade e paternidade, que
Djebar aqui pressupõe.
RESUMOS
Dentro do tema geral da incompatibilidade entre a vida privada e a vida pública, decidi
concentrar a minha atenção numa série de elementos comuns aos dois textos em análise e
que explicam, em parte, a sua qualidade subversiva, num sentido político e histórico: a ideia
das representações dominantes da mulher como falsas representações, o restaurar do
passado da auto-representação feminina e o reconhecimento da necessidade de representar
as diferenças entre mulheres. O trabalho de Lynn Hunt sobre a Revolução Francesa servirá
como espaço teórico para início da minha análise.

Within the general theme of the incompatibility between private and public life, this paper
focuses on a series of elements that are common to both texts to be analyzed here and that
partly explain their subversive quality, in a political and historical sense: the idea of
dominant representations of woman as false representations, the restoring of the past of
female self-representation, and the recognition of the need of representing the differences
among women. Lynn Hunt’s work on the French Revolution provides the theoretical basis
for the beginning of this analysis.

A l’intérieur du thème général de l’incompatibilité entre la vie privée et la vie publique, j’ai
décidé de porter mon attention sur une série d’éléments communs aux deux textes objets
de mon analyse et qui expliquent en partie leur qualité subversive, dans un sens politique et
historique: l’idée des représentations dominantes chez la femme comme de fausses
représentations, celle aussi de restaurer le passé de l’auto-représentation féminine et la
reconnaissance de la nécessité de représenter les différences entre les femmes. Le travail de
Lynn Hunt sur la Révolution Française servira ici du cadre théorique pour le début de mon
analyse.

ÍNDICE
Palavras-chave: Lídia Jorge, Assia Djebar, feminismo, história de Portugal, representação
da mulher, literatura
Keywords: Lídia Jorge, Assia Djebar, feminism, history of Portugal, representation of
women, literature
Mots-clés: Lídia Jorge, féminisme, histoire du Portugal, représentation de la femme,
littérature
AUTOR
ANA DE MEDEIROS
Professora de Literatura Francesa e de Literatura Comparada na Universidade de Kent, em
Canterbury, Reino Unido. Les visages de l’autre (1996) consagrou Ana de Medeiros como
especialista em Marguerite Yourcenar. Recentemente organizou, em Canterbury, uma
conferência internacional sobre a autora, intitulada Ecritures de l’exil e foi organizadora do
volume de actas. Ana de Medeiros é autora de vários artigos sobre escrita de mulheres do
século XX; o seu próximo livro intitula-se Identity in Exile: A study of the works of Conde, Djebar,
Hebert and Yourcenar.
AdeMEDEIROS@aol.com
Dois olhares e uma guerra
Two views and a war
Deux regards et une guerre

Laura Cavalcante Padilha

É preciso arrancar da boca do silêncio a comida da


palavra e deixar que se semeie por aí à solta, porque o
ódio, esse pega de estaca.
Ana Paula Tavares
1 A frase por onde começo, retirada de uma crônica da autora
(“Manifesto”, Tavares, 1998: 32-33), parece dar conta, embora seu
objetivo não seja a questão da Guerra Colonial, do que se passa no
imaginário africano nos chamados anos da luta e/ou naqueles em
que se dá a sua preparação. No afã de reverter o estado de ódio que a
estaca do colonialismo implantou e fez crescer, os produtores
literários procuram “arrancar da boca do silêncio a comida da
palavra”, semeando-a no solo do texto. É o que aconteceu com o
gesto de semeadura de duas mulheres que se fazem, recorrendo uma
vez mais a outra crônica da mesma Ana Paula, “o rosto visível da
história que, quanto ao mais, se encarrega de esquecer a metade
silenciada da humanidade” (1988: 103). São elas a moçambicana
Noémia de Sousa (1926-2002) e a santomense Alda Espírito Santo
(1926).
2 A leitura de Sangue negro, escrito entre 1948 e 1951, por Noémia, mas
só publicado em 2001/2002, e de É nosso o solo sagrado da terra, 1978,
de Alda, mostra‑as como narrativas de guerra em seu mais amplo
sentido, não obstante o registro lírico que as enforma. A primeira
anuncia a guerra como desejo e urgência histórica, embora o
significante em si apareça pouco nas malhas textuais. Ele de certo
modo se camufla em outros pelos quais se evidencia o estado de
beligerância, marca do eu-lírico: ameaça, raiva, grito, revolta, luta,
todos adensados no corpo dos poemas.
3 Já com relação a Alda, a guerra se apresenta com toda a sua crueza,
desdobrando-se em várias direções semânticas: massacre, guerrilha,
martírio, sangue, devastação. O conflito aí encenado e os mártires da
causa, para além de vários de seus heróis, tomam lugar na cena
poética, em uma espécie de reconvocação histórica para que a sua
memória sobreviva. É o que se dá com o poema de Alda para
Deolinda Rodrigues, militante angolana desaparecida no confronto.
Irmã, a terra mártir
Embebeu teu sangue
Alastrando sobre o continente inteiro
Como uma sementeira
florescente de glória.
(Santo, 1978: 114)
4 Retorna aqui a metáfora da semente tão produtiva nos anos da luta,
bem como a do sangue como agente fertilizador da terra e do futuro.
O movimento é sempre de expansão e os corpos martirizados se
encenam com força e de modo expressionista, como se dá com o
quadro seguinte, desenhado pelas palavras de Noémia pelas quais
tenta traçar o mapa de um corpo cultural silenciado e agônico, na
clave do feminino, mostrando-lhe as veias abertas, bem como suas
órbitas vazias no desespero de possuir a vida,
boca rasgada em feridas de angústia,
mãos enormes, espalmadas,
erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,
corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis
pelos chicotes da escravatura...
(Sousa, 2001: 49)
5 Há, desse modo, um deslocamento do suporte ético sobre o qual a
colonialidade, com suas rasuras e apagamentos, se erguera. Lucía
Guerra analisa de modo pertinente:
En todo sistema de colonización, el Sujeto colonizador marginaliza de la Historia
al Otro colonizado con el objetivo de mantener su posición de poder en la
inmovilidad absoluta. (Guerra, 1995: 26)
6 Tal sujeito marginalizado, ao tomar consciência de si e de sua
história, começa a querer desimobilizar-se, ação pela qual emergem
outros valores a demandarem um também outro conjunto de normas
para sustentar o processo de decodificação. Não se trata de substituir
os centros, trocando um pelo outro, como adverte Edward Said, mas
de ampliar e refinar um procedimento em cujo centro, isso sim,
sempre avultaram os parâmetros éticos e estéticos do europeu
colonizador, no presente caso, em sua versão portuguesa. A
mobilização objetiva que a voz secularmente silenciada se faça ouvir
e que o corpo se deixe conhecer, daí o título do poema de Noémia
atrás citado, “Se me quiseres conhecer”, a indicar a mudança da
direção do olhar, pois o sujeito histórico, sempre se pensando como
um coletivo – e agora os versos são de Alda –, empenha-se em
afirmar o seu querer: “Nós queremos a nossa hora/A hora dos nossos
passos” (Santo, 1978: 99). Ou seja: propõe-se um novo sistema de
referências, pelo qual se consiga reverter a destruição dos valores
culturais, no sentido trabalhado por Frantz Fanon en Pela revolução
africana (Fanon, 1975).
7 Neste ponto, queria começar, mesmo correndo o risco de insistir no
óbvio, pela questão da duplicidade fundante do olhar histórico sobre
a guerra de independência das hoje nações africanas de língua oficial
portuguesa. Para tanto, retomo o ensaio de Marilena Chauí sobre o
olhar, onde, dentre outras coisas, ela afirma: “quem olha, olha de
algum lugar”, havendo sempre, pois, “variação no olhar”, isto é, de
perspectiva. Citando a filósofa:
Com ela [a perspectiva], o olho do observador se faz medida do visível e prepara,
na filosofia, o advento de um sujeito do conhecimento que se julga capaz de
evidência e intuição. (Chauí, 1988: 35-37)
8 Por outra parte, Sérgio Cardoso, na mesma obra organizada por
Adauto Novaes, e retomando Merleau-Ponty, esclarece: “o olhar [...]
remete, de imediato, à atividade do sujeito, e atesta a cada passo
nesta ação a espessura de sua interioridade” (Cardoso, 1988: 348).
Ora, quando se pensa a guerra de que falamos, deve-se
necessariamente considerar essas duas noções básicas: perspectiva e
interioridade dos sujeitos em enfrentamento, pois, na relação
colonizado vs. colonizador, elas são absolutamente conflitantes.
Nota-se, ainda, que tal conflito se maximiza ainda mais na era
cunhada por Eric Hobsbawm como a dos nacionalismos (Hobsbawm,
1990) e que corresponde ao movimento da luta africana.
9 A duplicidade do olhar do oprimido e do opressor leva a uma
nomeação divergente e igualmente dupla, para além de gerar duas
formas narrativas. Para o poder metropolitano, a guerra se fazia
necessária como um movimento, estertorado embora, de
preservação de territórios apontados pelo imaginário político como
seus, porque perenes fontes de lucro, mormente após a mudança da
forma de organização política da ocupação ultramarina, decorrência
das imposições da Conferência de Berlim (1884-1885). Com a perda
do Brasil e com tais imposições, o império português se consolida no
continente africano. A narrativa surgida nesse momento de ameaça e
de perda, que leva à guerra, tem, portanto, assegurado o seu sentido
dentro da macro-narrativa histórica do imperialismo.
10 Por outro lado, para os povos vistos como subalternos pela
perspectiva do olhar eurocêntrico, porque “ontologicamente dados”,
na expressão de Said, a guerra se apresenta de modo diametralmente
inverso e em franca rota de colisão. Não se trata de preservação, mas
de ruptura e enfrentamento. Sai-se do reino da narrativa,
adentrando-se o da “contra-narrativa de libertação” (Said, 2003: 135-
136). Em “Giovani”, Alda Espírito Santo elabora tal dissidência
narrante, ao dizer:
As últimas balas coloniais
Descarregaram toda uma epopeia sangrenta
No corpo de Giovani estirado na via pública.
As últimas balas à hora do meio-dia
Badaladas decisivas
do Relógio da Revolução
Sepultaram o colonialismo
No cadafalso do Povo.
(Santo, 1978: 179)
11 O movimento anti-colonialista se alicerça ideologicamente como
revolução e não como mais uma das muitas guerras travadas em solo
africano. A luta é para que os povos subjugados tornem seus, por
direito inalienável e constituído, o que sabem ser seus por direito de
pertença. Em carta datada de 1960 à mesma Deolinda Rodrigues,
Lúcio Lara, um dos líderes do Movimento Popular de Libertação de
Angola, expressa com clareza o sentido de tal ação anti-colonialista:
[...] temos o dever imperioso de lutar até ao limite das nossas forças para que a
repressão feroz não deite a perder o que com tanto sacrifício se consolidou – a
consciência nacional do nosso Povo. [...] Este movimento engloba nativos de
todas as colónias portuguesas de África [...] desde que estejam dispostos a lutar
dentro de suas possibilidades pela independência de suas pátrias. (Lara, 1997:
223-224)
12 Propõe-se, então, uma nova cartografia pela revaloração dinâmica
da cultura própria, arrancando-se da boca do silêncio, repetindo Ana
Paula, a comida das novas palavras de ordem então pronunciadas. A
guerra se torna a resposta inevitável desse movimento – pensando
com Fanon – cujo alvo é a libertação total do espaço territorial
subjugado (Fanon, 1975: 50-51). O que se quer é a mudança do
sentido de propriedade, voltando o africano, parodiando Kwame
Anthony Appiah (1997), a ser o dono da casa do seu pai. Se tudo se
resolve, só o tempo vai dizer, como, aliás, parece estar dizendo...
13 Saindo do campo parentético, necessário para se esclarecer a
duplicidade fundante do olhar sobre a guerra , retorno a Noémia de
Sousa e a Alda Espírito Santo, cujos poemas se fazem sintomáticos
dessa postura histórica rebelde e revalorativa. Eles significam uma
espécie de resposta à síndrome da subjugação pela qual o sujeito
histórico africano permaneceu em exílio, mesmo sem nunca ter
deixado a própria terra. Se o exílio é o máximo do despaisamento,
pela ausência do reconhecível e das referências identificatórias, o
estar exilado em seu próprio lugar, sofrendo a confrontação
simbólico-cultural a cada passo, se faz o exílio dos exílios, já que os
modos de viver legítimos são alvo de uma profunda desconfiança
histórica do opressor, para quem sempre significaram uma menos
valia cultural. A “fratura incurável” do exílio, usando palavras de
Said (2003: 46 ss.), se torna muito mais exposta quando se dá dentro
e não fora dos territórios de origem e de experiências. Lembro os
versos seguintes de Noémia:
Somos os despojados, somos os despojados!
Aqueles a quem tudo foi roubado,
Pátria e dignidade, Mãe e riquezas e crença e Liberdade!
(Sousa, 2001: 42)
14 Do mesmo modo que as mulheres, os povos colonizados foram, como
analisa ainda Lucía Guerra, privados “de su propia Historia y de las
historias que modelizan su propia experiencia” (1995: 25-26). O
quadro se adensa ainda mais quando o sujeito produtor de texto,
como é o caso, vive em uma dupla exclusão, seja por seu gênero, seja
por sua pertença étnico-cultural. O resultado é a elaboração de uma
literatura dissidente, termo de Lucía, ou duplamente dissidente,
acrescento, pela qual
los contratextos se elaboran principalmente invirtiendo o deformando modelos y
paradigmas en los cuales también están presentes los rasgos relevantes en la
construcción imaginaria de la mujer como Otro. (Guerra, 1995: 28-29)
15 A “construção imaginária como Outro” também atinge o africano.
Assim, na condição de mulheres e africanas, ou seja, como seres
humanos duplamente colonizados, Noémia e Alda declaram-se em
guerra e fazem seu comunicado em forma de poesia. É o que, a partir
de agora, esta intervenção privilegiará, trazendo à cena, de modo
esquemático, as duas falas de mulher e suas interioridades e
perspectivas. Caminharemos pelos mapas onde se traçaram os
acidente geográficos de um tempo de silêncio e o impulso incoercível
dos sujeitos assim cartografados de romperem tal silêncio, com raiva
e urgência. Para além das obras literárias editadas, outras falas
dessas duas mulheres africanas serão aqui convocadas, como
entrevistas, ensaios, etc., em busca de surpreender a perspectiva de
seus

Olhares em confluência
16 Como sabemos, Noémia só escreve até 1951, ano em que deixa
Moçambique, como ela diz, “porque estava muito visada pela Pide”
(Chabal, 1994: 118). Assim, sua produção não se liga diretamente aos
anos da guerra, ao contrário de Alda que a vive e representa de modo
intenso, até o estalar das “últimas balas coloniais”. Depois, ela cobre
o tempo da libertação e exalta o sentido histórico da conquista da
independência. É o que mostram os trechos de seus poemas a seguir:
Cinco séculos estrangeiros no solo pátrio
Regressamos do exílio da exploração
Expulsando com a força do povo
O colosso colonial e seus sequazes.
(Santo, 1978: 181)
Na grande praça do povo
Clarins em regozijo
Ressoam soltando amarras.
Ó povo do meu país
O hino da independência
Cala fundo...
Cala fundo...
(ibid.: 161)
17 O fato dessas duas vivências poéticas temporalizadas distintamente
leva a dois estágios diferentes do olhar sobre a guerra. Para Noémia,
desejo e esperança. Para Alda, desejo, esperança, realização e vitória.
Não obstante isso, há muitos pontos de confluência de seus olhares
que perspectivam a mesma experiência histórica, no decorrer dos
anos 50, quando compartilham a ebulição do projeto nacionalista
africano em Lisboa, freqüentando os espaços onde tal projeto se
fomentava, como a casa da tia de Alda, Andreza; o Centro de Estudos
Africanos; a Casa dos Estudantes do Império; etc. Como diz Alda, em
entrevista a Michel Laban: “Criámos encontros com mulheres,
através da Maria Vilhena Rodrigues, e Noémia de Sousa, Rute Neto e
outras” (Laban, 2002: 77).
18 A teia, sempre uma simbolização tão feminina, se entretece com
mais vigor com os fios de outras mulheres mobilizadas pelo mesmo
sonho. A cumplicidade entre Alda e Noémia, partes da teia, acaba por
se projetar no modo como passam a conceber o texto, nele
imprimindo suas marcas históricas, como se fossem digitais. Tais
marcas assim digitalizadas se deixam entrever tanto na própria
forma de pensar e realizar o poema como materialidade discursiva,
quanto nos temas sobre os quais se debruçam e cujo traço mais
significativo talvez esteja na ânsia de contribuir para a criação de
uma nova humanidade, no que fazem eco, por exemplo, com Fanon
para quem “a descolonização é, em verdade, criação de homens
novos” (1979: 26).
19 Pelos textos de Alda e Noémia, podem-se perceber pontos de
convergência no que concerne a suas carpintarias poéticas onde a
dissidência se faz a principal meta do movimento de produção
artística. Há um estremecimento nos africanos padrões
versificatórios femininos de modo geral. A leitura das antologias
então produzidas, principalmente pela CEI, e mesmo a análise do
boletim Mensagem, por ela publicado, são disso uma evidência que
aqui não cabe explorar. Por agora, basta insistir no fato de que seus
textos se fazem dissidentes, de certo modo declarando também uma
guerra no plano escritural.
20 A emoção dos sujeitos líricos, a sua rebeldia e insubordinação
impedem qualquer pacto de submissão na forma poética. Os poemas
ora têm um ritmo longo e frenético, ora se encurtam e como que os
versos estalam como se fossem chicotes ou ruído de bala. Não há
qualquer rigidez no esquema rímico e na estrofação. Por outro lado,
as línguas nacionais africanas reforçam a dissidência, a rebelião e o
reforço da alteridade:
Com sonhos de melodia no fundo dos olhos abertos
somos os muchopes de penas saudosas nos chapéus de lixo;
zampunganas trágicos – xipócués vagos nas noites munhuanenses,
e mamparras coroados de esperança, e magaíças,
e macambúzios com seu shipalapala ecoando chamamentos...
[...] somos os que não têm lugar na Vida, ah na Vida que se abre luminosa,
com cada dia de pétala!
(Sousa, 2001: 41-42)
Aqui tens o meu poema, irmão.

Meu poema insuficiente e baço,


palavras, sangue, emoção,
grito que se soltou do fundo das veias
e ficou pairando feito estandarte...
(Sousa, 2001: 105)
Não gritaremos mais
Os nossos cânticos dolorosos
Prenhes de eterna resignação...
Outro canto se elevará, Irmãs
Por cima das nossas cabeças
(Santo, 1978: 75)
Coqueiros e palmares da Terra Natal,
Mar azul das ilhas perdidas na conjuntura dos [séculos
[...]
Sedenta de espaço e de vida
Nos cantos amargos do ossobô
[...]
Ilhas paradoxais do Sul do Sará
Os desertos humanos clamam
Na floresta virgem
Dos teus destinos sem planuras...
(ibid.: 37)
21 Voltando à questão da guerra e do desejo de criação de uma nova
humanidade, e ainda dada a brevidade requerida por esta minha fala,
deixo outros pontos de confluência significativos, elegendo apenas
dois como objeto de meu próprio olhar leitor: a cartografia
pronominal dos poemas e o pacto com a configuração de um espaço
solidário de fraternidade que acaba por se transformar na principal
estratégia bélica para o enfrentamento das forças do inimigo.
22 Começando pelo processo de pronominalização. Sabemos ser o
pronome, com o dicionarista e filólogo Antenor Nascentes, a
“palavra que denota o ente ou a ele se refere, considerando-o apenas
como pessoa do discurso” (1972, V: 1341-b). Assim ele, o pronome, se
faz um elemento lingüístico pelo qual o sujeito se encena no
discurso, denotando-se e aos outros imaginários com quem
contracena.
23 No caso das obras de Alda e Noémia, há um extenso e obsidiante
plano pronominal que transita entre o pessoal e o possessivo.
Aparecem o eu e o tu, levando ao nós, ao mesmo tempo em que o meu,
forma de extensão e conseqüência do eu, acumplicia-se com o teu,
conduzindo ao nosso. O par vós/vosso é menos freqüente. Um
levantamento não exaustivo mostrou a prevalência do campo
possessivo sobre o pessoal, embora o eu seja a referência maior em
Noémia. Em Alda, a grande recorrência é dada pelo par nós/nosso,
este último nosso também adensado no corpo textual da
moçambicana.
24 Por tal via pronominal, é possível detectar-se a mobilização do
sujeito poético que revela ser sua subjetividade um fruto do próprio
coletivo em que imerge com deliberação. O eu ganha consistência no
processo identificatório com os iguais, daí a resultante que é o nós,
pelo qual o tu se engloba. Voltando a Lucía Guerra, pode-se estender
para a África e à literatura dissidente então produzida o que a
ensaísta afirma sobre a América Latina:
Esta situación de alteridad en un entorno heterogéneo, fracturado y dividido,
hace del “nosotros” la señal de aquella diferencia que posee la potencialidad para
constituir al otro latinoamericano. (Guerra, 1995: 30)
25 A alteridade, emergindo em força pela pronominalização em
excesso, toma os textos de assalto e como que “ilumina” o encontro
fecundante entre o eu que fala, a coisa de que fala e o tu, alvo da ação
da fala. Chega-se, no jogo inclusivo, ao nós e, principalmente, ao
nosso, fim último da declaração de guerra falante e falada. Melhor
seria dizer: gritada.
26 A fraternidade é a via estratégica para que o campo do outro, o
dominador, seja minado. O próprio gesto da escritura é forma de
reforço dessa fraternidade como mostrou a estrofe do poema de
Alda, “Deolinda Rodrigues”. Os textos assim concebidos, como os que
se encontram no “Livro de João”, uma das partes de Sangue negro ou
no conjunto “Aos combatentes da liberdade” de É nosso o solo sagrado
da terra, podem servir como paradigmas do gesto de fraternidade que
anima o impulso de Noémia e o de Alda, fazendo‑os confluir para um
mesmo lugar simbólico:
Neste anoitecer sangrento de Moçambique
chega-me, segura, a tua voz irmão,
[...]
Misturada com os cantos escravos dos negros
regressando do trabalho,
chega-me de longe a tua voz fraterna,
nítida como a lua cheia no espaço,
[...]
(Sousa, 2001: 112)
Nessa hora, meu irmão
Iremos cimentar os alicerces
Das nossas vidas
E erguer do braseiro, o nosso país
De África
Num ritmo de tam tans e quissanjes
A vida, a paz e a liberdade
Na grande batucada
Da pátria libertada.
(Santo, 1978: 88)
27 No conjunto imagístico da fraternidade proposto pelas duas vozes
poéticas, destacam-se, para além do constelado irmão, companheiro,
amigo, um quadro composicional em feminino – irmã, companheira,
amiga, – que serve como elemento intensificador das cores da
privação. Não por acaso perceberam vários estudiosos das autoras
que elas se debruçam sobre os corpos de suas congêneres, fazendo
dos poemas uma forma de resgate dessas figuras de mulher.
28 A tal propósito, Noémia revela, em entrevista a Patrick Chabal, o
porquê do seu debruçar-se:
[...] acho natural [...] são as mães que educam os filhos na nossa sociedade
tradicional, que foi sempre machista [...] As mulheres é que transmitem as coisas.
Quase todos os contos que eu ouvi eram as mulheres que os contavam, e também
as coisas que cantam [...] também as mulheres trabalhavam muito. (Chabal, 1994:
125)
29 Do mesmo modo, no ensaio “Luares de África”, publicado em
Mensagem da CEI, Alda analisa a questão da mulher negra, dizendo –
[...] sigo passo a passo a mulher de pele bronzeada – que é a minha história, das
avós dos meus avós e da geração futura [...]
[a mulher é] a última que é a última entre os negros que já são últimos na
concepção dos demais povos da categoria civilizada [...] A sua voz não se levanta.
Morre na distância. Ela nem voz tem. É escrava. – É mulher negra [...] é vítima de
todos.
(1949, n.º 7, ano I, p. 13-15)
30 Na visão das escritoras, portanto, as mulheres são elementos de
sustentação e transmissão da cultura (educam, contam, cantam,
trabalham) e, de outro, se marginalizam duplamente na história
branca, machista e patriarcal. Ao comporem o quadro estético da
privação, é uma demanda natural o voltar‑se para os corpos das
iguais, envolvendo-os em, usando uma metáfora cara a Noémia e
fragmentos de seus versos, suas “capulanas quentes” “de ternura” e
de “compreensão” tecidas por palavras. Não por acaso a mesma
Noémia projeta nas “Moças das docas” esse movimento de proteção e
esperança, pelo jogo metonímico extensível que vai muito além dos
corpos das prostitutas:
Sob o chicote da esperança
nossos corpos capulanas quentes
embrulharam com carinho marítimos nómadas de outros portos
(Sousa, 2001: 93).
Do mesmo modo, Alda canta para as mulheres de sua terra:

Irmãs, do meu torrão pequeno


Que passais pela estrada do meu país de África
É para vós, irmãs, a minha alma toda inteira
(Santo, 1978: 81)
31 Assim, as mulheres se fazem a face por excelência onde a opressão, a
menos valia, a privação, enfim, deixaram suas marcas mais fundas. A
guerra acirra tais marcas e, por isso, é preciso cantar para a irmã do
mato; as moças das docas; as lavadeiras; as que descascam o caroço
ou vendem o peixe nas ruas de bairros miseráveis. Sempre irmãs e
negras.
32 Noémia de Sousa e Alda Espírito Santo, ao oferecerem um lugar em
seus textos, para suas iguais em gênero e cor, as envolvem em suas
“quentes capulanas” de palavras. O corpo feminino africano é
recuperado, nesse espaço de fraternidade consentida, fazendo-se ao
mesmo tempo emblema do martírio e da esperança. Por isso, o eu-
lírico, vai ao fundo da boca do silêncio em que tal corpo sempre
esteve imerso, para, através de sua imagem multiplicada,
acumpliciar-se com a nova ordem histórica da liberdade que suas
palavras e seus gestos insubordinados procuram construir. Sempre
como falas de mulheres em guerra.
BIBLIOGRAFIA
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Santo, Alda Espírito (1978), É nosso o solo sagrado da terra. Lisboa: Ulmeiro.

Sousa, Noémia de (2001), Sangue negro. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos.
Tavares, Ana Paula (1998), O sangue da buganvília: crónicas. Praia-Mindelo: Embaixada de
Portugal/Centro Cultural Português.
RESUMOS
A partir da leitura das obras poéticas Sangue negro (2001) e É nosso o solo sagrado da terra
(1978), respectivamente de Noémia de Sousa e Alda Espírito Santo, o texto procura
surpreender dois olhares africanos sobre a guerra, em perspectiva ao mesmo tempo étnica e
de género. Para além disso, discute‑se o duplo gesto de nomeação do conflito; a mudança,
no universo discursivo, do sistema de referências imposto pelo colonialismo e,
consequentemente, a encenação da interioridade de novos sujeitos históricos femininos.

Starting from a reading of the poetical works Sangue negro (2001) and É nosso o solo sagrado da
terra (1978), by Noémia de Sousa and Alda Espírito Santo, respectively, this paper seeks to
capture two African views on the war, following simultaneously an ethnic and a gender
perspective. It discusses the double gesture of naming the conflict; the changing, in the
discoursive universe, of the reference system imposed by colonialism and, as a
consequence, the staging of the interiority of new female historical subjects.

A partir de la lecture des œuvres poétiques Sang nègre (2001) et Le terrain sacré de la terre est
nôtre (1978), respectivement de Noémia Sousa et Alda Espírito Santo, on cherche à
surprendre deux regards africains sur la guerre, dans la perspective ethnique et en même
temps du point de vue du genre. En outre, on examinera le double geste de la nomination
du conflit, le changement, dans l’univers discursif, du système des références imposé par le
colonialisme, et, par conséquent, la mise en scène de l’intériorité de nouveaux sujets
historiques féminins.

ÍNDICE
Palavras-chave: Noémia de Sousa, Alda Espírito Santo, colonialismo português, Guerra
colonial portuguesa, mulher - identidade sexual, África lusófona, poesia
Mots-clés: Noémia de Sousa, Alda Espírito Santo, colonialisme portugais, Guerre coloniale
portugaise, femme - identité sexuelle, Afrique lusophone, poésie
Keywords: Noémia de Sousa, Alda Espírito Santo, Portuguese colonialism, Portuguese
colonial war, woman – gender identity, Lusophone Africa, poetry

AUTOR
LAURA CAVALCANTE PADILHA
Doutorada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Professora Adjunta IV da
Universidade Federal Fluminense, na área de Literaturas de Língua Portuguesa, em
particular Literaturas Africanas. Foi presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Letras, vice‑presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada,
directora da Faculdade de Letras da Universidade Federal Fluminense, dirigiu a Editora da
Universidade Federal Fluminense e hoje é representante da sua área no CNPq. Para além de
inúmeros artigos publicados em revistas da especialidade, Laura Cavalcante Padilha é
autora de Entre voz e letra – a ancestralidade na literatura angolana, 1995, que recebeu o Prémio
Mário de Andrade da Biblioteca Nacional como o melhor ensaio do ano. Em 2001, publicou
Novos pactos, outras ficções: Ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras, que conta também com
uma edição portuguesa.
lcpadi2@terra.com.br
Dossier
Dois depoimentos sobre a
presença e a participação
femininas na Guerra Colonial
Margarida Calafate Ribeiro

1 Nesta secção apresentamos dois depoimentos de mulheres que


viveram no cenário da Guerra Colonial de formas distintas. O
primeiro depoimento, de Elsa Adler Gomes da Costa, refere a
experiência de uma mulher portuguesa que, como muitas outras,
acompanhou o marido em missão militar em África na Guerra
Colonial; o segundo é da enfermeira-páraquedista Maria Ivone Reis,
que integrou o primeiro grupo de Enfermeiras Páraquedistas da
Força Aérea Portuguesa.
Esta recolha foi feita por Margarida Calafate Ribeiro no âmbito do
trabalho de investigação que está a levar a cabo no Centro de Estudos
Sociais sobre “As Mulheres Portuguesas e a Guerra Colonial”. Apesar
de este trabalho ter como grupo de estudo as mulheres que
acompanharam os maridos em missão militar em África, assinalando
assim esta presença feminina portuguesa, bem como o seu impacto
privado e público, não poderíamos deixar de contemplar o grupo de
mulheres portuguesas composto pelas enfermeiras pára-quedistas
que, pelo seu trabalho, registaram uma experiência única na relação
da mulher com a guerra.
Desta forma, pretendemos oferecer aos nossos leitores testemunhos
de duas faces do envolvimento da mulher portuguesa em África
durante os anos da Guerra Colonial, ora registando a sua presença,
manifesta no acompanhamento familiar, ora a sua participação
activa como membro das Forças Armadas Portuguesas no trabalho
de recolha, evacuação e acompanhamento de feridos em combate.
Agradecemos a Elsa Adler Gomes da Costa e a Maria Ivone Reis a
disponibilidade e generosidade com que colaboraram connosco.

Depoimento de Elsa Adler Gomes da Costa


2 Comecei a ouvir falar na guerra quando estava ainda no liceu, teria
quinze anos. Em casa dizia-se pouco – o meu Pai lia regularmente o
Spiegel, às vezes o Match – mas era nítido que África seria para os
negros. “L’Afrique pour les noirs”, era o slogan e seria essa a
realidade do futuro mais tarde ou mais cedo. Chamar-lhe Portugal
não iria adiantar nada, o que estávamos era a meter toda a gente
numa grande complicação. Hoje fala-se muito de identidade, mas não
creio que na altura ela existisse sequer em relação à Europa. Daquilo
que em casa chamávamos a Europa, que viveu duas guerras e onde o
meu Pai tinha crescido, nunca ouvi falar a outros portugueses. Creio
que esta inocente ignorância nos ajudou a ir para a “nossa” guerra
com grande simplicidade.
3 A primeira referência à nossa ida como mulheres de, ouvi-a na
Faculdade a uma colega que já vinha do liceu. Foi já para o fim do
curso, a propósito do que iríamos fazer depois ou do nosso
desencanto em ir ensinar. “Depois, ora, vamos todas para as
Angolas”, disse ela. Aquilo caiu em mim como uma bomba. Nessa
altura toda a gente tinha namoro. Não namorados nem amores (que
também se tinham), mas fazia parte da vida “ter namoro”. Pelos
vistos eram uma porta aberta de conhecimentos, os namoros.
4 Uma outra amiga falou-me um dia dos que eventualmente pensavam
em não ir. “Creio que, se ele tivesse uma mínima certeza de que eu ia
com ele, iria para França e fugiria à tropa para não ir para a guerra”.
Pagar o preço da expulsão, da distância de muitos anos fora, de uma
certa excomunhão. E percebi que também esses existiam e teriam as
suas razões. Só mais tarde percebi, embora não nitidamente, que
haveria sempre uma mistura de razões – concepções políticas,
convicções pessoais, medo, capacidade económica, influências várias,
ligações profundas a outro país ou a partidos políticos na
clandestinidade, motivações profissionais.
5 Lembro-me também de uma outra conversa entre raparigas, na
viagem de curso, e da referência ao “que eu sei que se portou como
um valente, mas que se recusa obstinadamente a falar disso”. Era
típico. E muito irritante. Mesmo coisa de “meninos bem”,
portugueses. O arvorarem-se esse direito de superiormente se
afastarem. Como se aquilo não os transcendesse e não dissesse
respeito a todos nós. Os meus protestos de “não têm esse direito”
esbarraram com a indignação do costume. Ainda hoje me sinto
irritada. Era assim que se dispunham a mais tarde ir mandar nos
outros.
6 Mas isto eram conversas esporádicas, entre nós, que tínhamos
eventualmente namorados em risco de serem mobilizados para
África. De resto, não se falava da guerra. Por trás do liceu – andei no
Maria Amália, na Rua Rodrigo da Fonseca – ao lado do prédio da
Mocidade Portuguesa Feminina, era o Centro de Reabilitação dos
(Mutilados) Militares. Mesmo vendo-os fisicamente passar, ninguém
falava disso. À maneira portuguesa nós e todos, não falávamos da
guerra, quanto mais de legitimidade. Quando muito dos mortos e da
falta que à família fariam, dos estropiados, dos casamentos
destruídos, das crianças sem pais. Mas era assim como se tivessem
morrido num desastre de automóvel ou de inevitável doença
contagiosa. Dizer simplesmente “que era por causa da guerra”, era
visto por muita gente como provocação pouco educada ou mesmo
como coisa escandalosa, assim como as amantes e os filhos ilegítimos
das histórias velhas de família.
7 Em casa eu era rapariga e filha única e também não se falava muito
nisso. O meu pai já tinha estado na Primeira Guerra e o meu tio mais
velho morreu nessa guerra. Falou-me uma vez dos que vinham
estropiados, dos que vinham e às vezes se recusavam até a contactar
a família, de pudor e de sofrimento. Quando lhe disse: “eu vou-me
embora para África”, ou “talvez vá para o mês que vem”, ele disse,
com muita doçura: ”Ó filha, tu não vês que não podes ir!”. Ele sabia
muito bem o que estava a dizer sob todos os pontos de vista, e eu
disse: “ Pai, vai ver que eu vou e vai correr tudo bem. Eu posso ir e eu
quero ir”. Nunca mais dissemos nada. Ele nunca mais disse nada. Não
sei o que passou, deve ter sido horrível.
8 Conheci o meu marido através de uma grande amiga minha, que
hoje é neurologista, um génio da nossa praça. Tínhamos sido colegas
de liceu e quando fui para a Faculdade dávamo-nos muito. Acabei por
entrar no grupo dela e depois conheci o meu marido, que é mais
velho do que nós dois anos. Fomos amigos durante muito tempo, só
começámos namoro dois anos antes de casar. Não tínhamos pressa
nenhuma, mas a tropa e a ideia da guerra faziam uma enorme
pressão sobre os casamentos. Se as pessoas não se casavam antes,
perdiam, não só a possibilidade de viver juntas durante os próximos
três ou quatro anos – que era um tempo imenso – como não sabiam
exactamente o que é que ia acontecer ao outro. Isto não gerava
propriamente um grande pânico, mas decerto uma grande
insegurança. Esta dose de insegurança, de incerteza de um namoro,
pesava muito – adiou uns e apressou outros casamentos. Para mim
não foi exactamente isso, dois anos de namoro chega e sobra. Depois
punha-se também o problema da educação que nós tínhamos.
Vivíamos numa sociedade que não nos educava para coisa nenhuma,
especialmente para a vida sexual, para a vida matrimonial, para o
planeamento familiar, muito menos, e aconteciam as coisas mais
inauditas, as pessoas ficavam à espera de criança quase sem saber
como nem porquê, outras porque eram desleixadas, outras porque
não tinham cuidado, outras porque não tinham noção da quantidade
de cuidados, da variedade de cuidados que era preciso ter, outras
porque as circunstâncias eram de tal modo violentas, quer nos
casamentos das férias, quer nas idas para África, que abalavam
completamente toda e qualquer preparação e cuidados que se
estivessem a ter – variadíssimas razões, umas mais indesculpáveis e
mais terríveis do que as outras.
9 Como é que eu fui para África, porque é que eu fui para África?
10 “Pelo sonho é que vamos, comovidos e mudos...” Mas qual sonho?
Aqui não há sonho. “Foi o vento”, dizem as anedotas. É engraçado
que ontem abri as Cartas, do Padre António Vieira e numa carta de
1562, escrita de Cabo Verde, ao Príncipe D. Teodósio, ele está a
lamentar-se porque não sabe porque é que foi, porque até ao dia da
partida não sabia se ia, nem por que é que ia, e eu pensei: “Que raio
de Portugueses estes! Do Padre António Vieira ao mais anónimo
soldadinho estamos todos na mesma. Não sabemos nem quando
vamos, nem porque vamos, nem se vamos, nem porque não vamos!”.
O Padre António Vieira não sabia se ia, porque lhe tinham dito que
talvez não fosse e ele está a lamentar-se porque de facto foi. E foi
porque não veio nenhuma contra‑ordem para não ir, tal como nós na
altura da Guerra Colonial que estávamos aqui, até ao dia de
embarcar, à espera que acontecesse um milagre, que viesse uma
contra-ordem para não embarcarmos, mas como não vinha a
ordem… lá íamos. Isto é uma coisa difícil de explicar ou
aparentemente sem explicação, porque até nós próprios não fomos
para a guerra para fazer guerra. É uma geração, que sem saber
porquê, sem questionar, ia. Havia o sentido de fazer parte de um
grupo e o grupo naquela altura … era suposto fazer aquilo e mais
nada.
11 Mas esta “ida”, esta guerra, não começava quando a pessoa era
chamada para ir para o mato, quando os soldados iam para os
quartéis das regiões de conflito, essa guerra começava cá, cumpria-se
cá e às vezes já muito mal. Talvez a nossa primeira guerra fosse
interiormente contra o sistema militar. A certa altura, para mim, um
militar de carreira era “meu inimigo”, não no sentido pessoal,
conheci pessoas muito simpáticas, muito amáveis, muito honestas,
muito boas, muito generosas, que eram militares, mas era uma
espécie de doença terrível, devastadora da própria pessoa e que
alterava completamente não só a humanidade dessa pessoa como a
sua relação com os outros, que somos nós, os civis. Na época, havia
uma distância intransponível entre um militar que estava na tropa
por ter sido chamado (um miliciano) e um militar de carreira, e havia
um enorme desprezo por todo e qualquer civil que pensasse, no fim
da tropa, passar para o outro lado, para o campo do “inimigo”
profissional – era uma guerra dentro da guerra ou talvez o contrário.
Outra coisa que pairava durante esse ano era a terrível questão: ir ou
não ir para África. Para ir não eram precisas razões, não era preciso
pensar, tão‑só aguentar. Para não ir era preciso reflectir, escolher,
decidir; e aguentar.
12 O que é certo é que ainda hoje os homens dessa geração se dividem
entre os que foram e os que não foram. A guerra funciona ainda hoje
como um espaço à parte onde entusiasmadamente se encontram, se
avaliam. É um mundo mágico e exclusivo, masculino, claro. E
exasperante.
13 Eu nunca tive contacto com uma pessoa que poderia querer não ir.
As pessoas que não iam eram muito mal vistas, porque havia muitas
dúvidas acerca das razões que as levavam a não ir e isso está ligado a
outra coisa de que eu gostava de falar, que era do medo. O medo
começava a insinuar-se na vida dos homens quando iam para a tropa
cá, portanto, durante aquele ano, e ia fazendo a sua obra terrível. O
medo é uma coisa horrível, com o seu sofrimento tão deformante,
tão incontrolável, é uma coisa que não se pode evitar, que temos que
deixar habitar em nós e não sabemos do seu poder devastador –
ninguém sabe. Essas atitudes de fuga à guerra estavam, para
qualquer mortal, directamente ligadas ao medo. Percebia-se muito
bem que não havia uma única razão para ir ou para não ir, havia
muitas. Garantia-se sempre uma larga margem de dúvida em relação
às verdadeiras e fundamentais razões que levavam a não ir: era mais
medo ou era mais coragem de não irem; era mais capacidade
monetária de se irem embora ou era mais capacidade de aventura de
se irem embora; era mais adolescente capacidade de rebeldia em
relação à família e em relação ao país, como atitude social, ou era, de
facto, a vontade amadurecida e a capacidade de escolher. Havia de
facto muitas dúvidas e as dúvidas negativas eram maiores do que as
dúvidas positivas e isso agudizava-se muito no regresso.
14 Olhava-se para outra pessoa da nossa idade e pensava-se: ”Onde é
que estiveste? O que estiveste a fazer durante estes três anos do meu
inferno? Já lá foste? Porque não foste?”. Mais tarde essa situação
mudou, muito mais tarde, e nos últimos dez anos há uma enorme
abertura, um enorme respeito de uns pelos outros – dos que foram e
dos que não foram. Neste momento, e à distância de trinta anos,
olha-se para o outro com um certo respeito pela coragem que foi
necessária para fazer o que fez, quer ir para África, quer ir para
Paris. Olha-se com muito mais tolerância – foi uma espécie de outra
guerra. É uma coisa recente, e importante, pois representa estarmos
a entrar na fase madura. Mas entre aqueles que tinham ido gerava-se
uma inocentíssima relação de pura fraternidade. Situações que
contadas parecem ridículas. Lembro-me de estar parada para meter
gasolina e o rapaz da bomba tinha umas botas da tropa. O meu
marido, quando saiu para abrir o depósito, olhou para as botas e
reconheceu o irmão, sabe como é? Olhou para as botas e também não
é preciso dizer muito. Perguntou: “Onde é que esteve?” O outro
respondeu com a mesma reserva e o mesmo sentido de
fraternidade… e a conversa ficou por ali. Mas era uma coisa tão
profunda, tão comovente, ao mesmo tempo, tão bonita – não parece,
contada assim. Era o outro lado da medalha, era o lado positivo da
desconfiança, da reserva, da raiva contra os que não tinham ido e da
imensa pena dos que ainda lá estavam e dos que não sabiam para o
que é que iam. Lembro-me de ir um dia de carro e à nossa frente ia
um camião da tropa cheio de soldados. Não me pergunte porquê, mas
nós sabíamos que eles se iam embora, daí a umas horas, daí a uns
dias, e lembro-me dos acenos, dos beijos que eles nos atiravam e que
nós lhes retribuíamos de carro para carro, como se fôssemos amigos,
conhecidos, como se fôssemos pais e mães, irmãos – e não nos
conhecíamos de lado nenhum. Isso são coisas que não se podem
esquecer, por muito errada que tenha sido a nossa ida. Esta é a face
humana, portuguesa, é a chamada face dos relatos de guerra que não
têm importância nenhuma, senão para quem os viveu. Era deste tipo
de coisas que o mundo dos militares estava definitivamente afastado,
eles não entravam neste mundo, não tinham nada a ver, moviam-se
no mundo deles, tão artificial, tão desumano, que eles próprios nem
sabiam. Isto talvez não tenha muita importância, são pormenores,
mas podem ajudar a olhar de outra maneira.
15 O meu marido foi para Angola de barco, em Outubro de 1970, e eu fui
dois meses depois. Essas partidas no cais eram um horror. Todos
desfilavam no cais, antes de embarcarem. Ninguém tinha dormido,
pelo menos na última noite, por causa da vinda para Lisboa, dos
transportes e da ansiedade. No cais apinhavam-se as famílias. Os que
podiam vinham de carro, famílias inteiras, às vezes, os pais, os
irmãos pequenos, os primos, só na ânsia de os vislumbrar mais uma
vez, de dar mais um abraço. O pior eram as recém-casadas, às vezes
de dias, de semanas, às vezes já grávidas, chegavam a desmaiar de
cansaço, de enjoo, de ansiedade. Daquela vez os médicos recusaram-
se a desfilar, só se fosse ‘de seringa em punho’ e eu vim-me logo
embora.
16 Foi ao telefone com o meu marido que decidimos quando e como é
que eu ia, num episódio incrível. Havia tanto barulho que eu não
ouvia nada, mas eu tinha que perceber como é que era. Havia duas
telefonistas, uma que estava em Portugal e outra que estava em
Angola, e era através dessas telefonistas que se fazia a ligação.
Felizmente uma, não sei qual, teve dó de nós, ouviu a conversa, e a
de cá disse-me: “Olhe, minha senhora, eu sei que não posso fazer
isto, é proibido e eu posso ser despedida, mas eu transmito, eu vou
dizer o que o Senhor Doutor está dizer do lado de lá, a senhora diga
que eu digo à minha colega para lhe dizer a ele”. Foi assim que
percebi que podia ir descansada, que não havia problema, que no
nosso caso as coisas até não eram tão dramáticas, porque o pai de
uns amigos nossos tinha negócios em Angola e ele disse logo que não
estivéssemos preocupados, que nos podia ajudar. Nós não tínhamos
dinheiro para pagar uma viagem daqui para lá, eu nem sei como é
que as pessoas aguentavam pagar as viagens para Moçambique, para
Timor, que era do outro lado do mundo. Eram viagens caras e isto
era tudo muito bonito quando eram duas pessoas, dois adultos, mas
quando havia crianças? Eu não imagino o que fosse! Agora quando
penso nas coisas, ao mesmo tempo dá-me vontade de rir, porque se
programassem um grupo de pessoas, um povo para fazer estas
coisas, toda a gente se riria, mas era assim que as coisas aconteciam.
17 E tudo isto acontecia placidamente com os aviões a ir e a vir, depois
de duas Guerras Mundiais. E eu falo de uma situação de absoluto
privilégio. Primeiro privilégio fundamental da minha vida é que
casei com um médico. Nestas circunstâncias é uma situação que
altera tudo. Entre os milicianos todas as profissões activas ficavam
sob as ordens da tropa. Só a medicina escapava. Os doentes são todos
iguais e sempre iguais e os médicos, embora não fossem os únicos a
não combater, podiam manter uma independência e um poder
razoáveis. Mais tarde, no Longa, ao serem rendidos, um enfermeiro
do meu marido dizia que “isto aqui é como na Cruz Vermelha, é para
amigos e inimigos”. O pior é que ele incluía a Companhia que os
vinha render nos inimigos. Mas isso é outra história.
18 O segundo, e não menos importante privilégio, foi a sorte que
sempre tivemos, com as situações e com as pessoas.
19 Fui de avião, numa viagem paga por nós, pois a tropa numa manobra
política extremamente hábil, responsabilizava-se pelo pagamento
das viagens, pagamento esse que depois era descontado
mensalmente nos ordenados. Os aviões iam apinhados e aos vinte
quilos juntavam-se quase outros tantos de tralhas, sacos, inúteis
presentes que ainda se levavam às calamitosas despedidas no
aeroporto. Era um autêntico banho de família e amigos, não sei por
que se usava aquele cerimonial de fundos abraços e de beijos. Dentro
da sala de embarque, que era só uma, o ambiente era outro. Olhei
então os que partiam para África. O que mais me chocou foi um casal
com dois filhos pequenos, tinham já as caras contraídas pelo
sofrimento, o olhar procurava ansiosamente os que ficavam. Quando
entrei para o autocarro vi-os sentados no banco corrido de trás, os
olhos pregados na família do outro lado dos vidros, ajoujados de
sacos e mais sacos de que não davam já conta, calados, as lágrimas
em fio pelas caras dos quatro, pareciam ter entrado no túnel de um
violentíssimo sofrimento, uma espécie de antecâmara do tenebroso
futuro. Seriam funcionários, emigrantes, pertenceriam a alguma
grande firma? Na sua desorientação deixaram para trás a menina.
Fui dos últimos passageiros a subir para o avião. Dei com ela no
fundo das escadas, chorando silenciosamente, sem conseguir dar
conta dos vários sacos que lhe tinham distribuído. Nem protestou
quando lhe tirei uns sacos com uma mão e no outro braço a levei.
Encostou-se a mim tão frágil, tão abandonada e lá fomos as duas para
cima. Penso muitas vezes o que terá acontecido a esta família, àquela
menina morena, magrinha e sem graça, a chorar. Estas eram assim
umas amostras gratuitas do incerto futuro do império. Por mais
públicas e óbvias, ninguém queria saber.
20 Cheguei a Luanda de noite e dormi lá uma noite, num hotel onde a
TAP me pôs. Em Luanda estava um grande amigo do meu marido e a
mulher dele – que também estava sozinha com os três filhos, porque
ele estava não sei onde – foi ao aeroporto buscar-me, noite cerrada.
Sozinha no carro, colou-se à carrinha da TAP até ao hotel. Luanda
não era sítio por onde se andasse assim, de noite. Fez-me um
bocadinho de companhia e depois foi para casa sozinha às tantas da
manhã. De manhã fui-me embora, completamente estonteada do
calor, era tudo diferente, não percebia nada, achava as pessoas todas
iguais. Antes de chegar ao meu destino, Serpa Pinto, passava‑se
naquela cidade muito simpática – Nova Lisboa – e parava-se uma
hora. Serpa Pinto, que não sei como se chama agora, foi o meu
primeiro contacto com África. Cheguei lá com um calor sufocante,
não sei, acho que era a meio do dia. Chamavam àquele sítio “as terras
do fim do mundo”, ficam entre o Cuango e o Cubando e muito mais
para sul, era mesmo o fim do mundo, como um vastíssimo Alentejo.
A capital daquela vastidão era de desenho largo, uma rua larga, de
terra batida, a todo o comprimento. Num dos topos ficava o cinema,
um hotel e umas lojas (dizia-se comércio), feudo de um dos
importantes da terra. Ao longo da rua casas e lojas. A meio corria um
rio, ladeado por uma espécie de jardim público. A rua continuava
sempre em frente, passando pelo hotel do outro rico, obviamente
inimigo do primeiro, lá para o fim era o colégio, mais para norte o
hospital, tudo assim estilo construção à estado-novo-anos-sessenta.
Um autêntico filme de cowboys, género os maus contra os maus e
nenhuns bons.
21 O batalhão do meu marido cobria o Cuando Cubango, a partir do
Cuito, mas como em Serpa Pinto havia um hospital o meu marido foi
aí colocado, passando metade do tempo no Longa, onde estava a sua
Companhia. Ia e vinha no avião dos frescos, o que era muito menos
perigoso do que fazer os noventa quilómetros de estrada. Os dois
pilotos (civis, creio) eram uns perfeitos ases, além disso conheciam o
terreno de cor. Acreditávamos que eles aterrariam fosse onde fosse e
em que circunstâncias fosse, o que tornava as viagens a parte melhor
do programa. Lembrava-me de Impala, de Henrique Galvão, vendo
aquilo de cima: as chanas sem fim, os bichos em correrias assustadas,
às vezes, como num filme verdadeiro, as cores e os contornos
recriando a cada hora do dia, a cada mês, a cada estação do ano,
mundos diferentes. Esta dimensão de grandeza e de perfeição não
fazia mal, pelo contrário, compensava o sentir-se perdido em
espaços aparentemente sem contorno, ao invés da estreiteza das
mentalidades e dos hábitos, os de cá como os de lá. Mas ao reler
Impala, revejo também a presença branca em África como uma
intrusão. Em toda a sua grandeza e perfeição é um mundo natural.
Apenas como humildes e cerimoniosos visitantes aí deveríamos ter
sido admitidos. Creio que Karen Blixen, em Shadows on the grass e Out
of Africa tem uma abordagem semelhante, até pela sua profundíssima
e camoniana ou platónica paixão por África de poder transformar-se
‘o amador na coisa amada’. Mas isso é outra história, porque nessa
terra fertilíssima onde eu estava, os soldados comiam muito mal –
quase não havia fruta e os poucos e pouco frescos eram
transportados de avião. Nessa imensidão de espaço dormiam e
viviam lado a lado, num calor africano em sufocantes tendas de lona.
A água era um bem escasso e mal distribuído. Proibidos de sequer se
lavarem no rio por razões várias de segurança.
22 No dia em que eu cheguei o meu marido foi-me pôr a casa, disse
“esta é a nossa casa”, fechou a porta, foi-se embora e eu fiquei à
espera que ele chegasse até ao fim do dia. Teve que ir ao Longa, a
noventa quilómetros. Teoricamente deveria lá ficar, mas lá arranjou
uma maneira de voltar outra vez. As casas, lá, mais modernas,
normalmente eram geminadas para protecção das próprias pessoas,
em cada metade tinham dois andares. Muito vulgarmente eram
divididas por dois oficiais: um morava em baixo, outro morava em
cima. Nós tivemos imensa sorte, porque o meu marido alugou a casa
com outro casal. Eles viviam em baixo e eu em cima. Faziam-me
companhia e eu nunca estava sozinha.
23 Era muito importante a presença da mulher em África naquela
altura, e sim, foi uma arma política muito forte, muito bem usada,
muito habilmente e muito, não digo secreta, mas encobertamente
usada, tanto quanto era possível e bom e útil que fosse. As mulheres
funcionavam género “avião dos frescos”, colocadas, distribuídas e
controladas segundo a lógica da utilidade. Davam muito jeito. Não
deviam mover-se, nem pensar, nem agir. Tanto melhor se não
quisessem olhar, quanto mais ver. Mas no dia-a-dia, naquele
ambiente, naquele abandono, via-se como uma mulher, se tivesse
bom feitio, era mesmo muito importante. Para um grupo grande de
dez/vinte homens, ela podia ser a mãe, a irmã, a distracção amorosa,
a imagem feminina, boa, a pura gota de água, a imagem também da
casa perdida, do país perdido, da família perdida. Eu vivia muito bem
entre os homens, nunca tive problemas de viver entre eles, eram
muito amorosos comigo, mas eu era distante, cerimoniosa e estava
sozinha. Naquela época os homens eram extremamente vulneráveis
a uma mulher sozinha, tinham muita dificuldade em estabelecer com
ela uma relação saudável. Se tivesse um marido ao lado era muito
mais fácil. Não estavam habituados de outro modo, se fosse hoje
seria completamente diferente.
24 Depois, o batalhão do oficial que vivia connosco rodou. O casal que
vivia connosco, cuja mulher era uma excelente comunicadora, foi-se
embora e aí fiquei mesmo muito sozinha. Sempre fui muito
independente, sempre fiz sozinha o que se faz acompanhado, mas
pela primeira vez sentia-me profundamente insegura, vulnerável,
tive paludismo, sentia-me muito mal, o tratamento quase “me
matou” e o meu marido ia para fora durante bastante tempo. Houve
um dia em que eu estava tão farta de estar em casa, daquele
isolamento, que saí, fui andar a pé. Serpa Pinto era grande, uma
cidade planeada para o tamanho da região, de maneira que tentei
dar a volta pelo perímetro e não consegui, fiquei cansada. Mas foi aí
que me apercebi de que uma população esparsa vivia na periferia,
em casas paupérrimas ou mesmo cubatas. Uns tempos depois
perguntei ao lavadeiro, ao miúdo que vinha buscar a roupa, “Onde é
que tu moras?” E ele respondeu: “É naquele sítio onde a senhora foi
passear naquele domingo”. Toda a gente na cidade ficou a saber que
eu me tinha atrevido a ir a pé e andar por lá.
25 Também uma vez levei um raspanete por ter ido à rua das
prostitutas, no Béu, no Norte, onde estive na segunda parte da
comissão do meu marido. Nestas terras ao grupo das mulheres
legítimas, juntavam-se as outras. As que sempre seguiram os
exércitos, em ocupação mais do que em guerra, como um bem de
consumo especialmente apropriado. Mesmo no Béu (uma pequena
aldeia com dez casas, cinco famílias), as necessidades dos cento e
cinquenta homens criaram aquelas quatro ou cinco cubatas, um
pouco à parte. Eu não sabia, disse boa tarde como de costume, elas
sorriram, tinham um ar levemente diferente, menos miseráveis ou
envelhecidas. Eu, mulher legítima e oficialmente bem-vinda, não
devia estar naquele sítio, engano meu. Não serviu de nada protestar
que queria lá saber, não iam aliás civilizadamente à consulta? Só
podia andar um quilómetro para baixo e outro para cima, ou menos
ainda, estava farta. Era tudo um sufoco. Numa terra imensa, rica,
fecunda.
26 Nós sabíamos que aquela situação era eventualmente perigosa, não
sabíamos donde viria o perigo, nem porquê. E gerava-se um medo
latente – era certo que no Sul não acontecia absolutamente nada de
nada, muito menos situações perigosas, não era uma zona de guerra,
mas esse medo que nunca se resolve como certas equações, conforme
a situação interior das pessoas, a vulnerabilidade das pessoas, ia
aumentando. A fragilidade física também aumentava e uma coisa
ajudava a outra: a comida não era boa, as casas, o conforto, nem
pensar, podia-se requisitar uma cama, não era nada mau – usada por
soldados – podiam-se requisitar lençóis que mal tapavam os
colchões. Mas isto criava um desconforto e a precariedade, a falta de
dinheiro – os oficiais ganhavam pouco – a incapacidade de gastar
pouco, até porque para gastar pouco era preciso ter capacidades
domésticas, sociais, de sobrevivência, que nós não tínhamos,
especialmente o nosso grupo que tinha tido sempre uma criada a
fazer a cama e a cozinhar. Aqui a única coisa de que não
prescindíamos era dos lavadeiros, nunca sabíamos onde nem como
se lavava a roupa, a roupa vinha sempre com um cheiro especial, o
cheiro das casas.
27 As precauções contra eventuais perigos eram tomadas
privadamente, claro: os oficiais deixavam às mulheres a pistola a que
tinham direito, imagine! E uma vez cheguei a descer a escada com ela
na mão, a meio da noite. Lembro-me da tensão insuportável que
senti e quase desejava que acabasse por acontecer alguma coisa. Mas
tudo era na nossa imaginação. De facto não tínhamos noção
nenhuma do que se passava ou poderia passar, nem do que fazer.
28 Lembro-me de que a dada altura, ia dormir a casa de um colega do
meu marido, que era o médico do sono e que tinha lá a mulher e um
filho. Tinham um quarto a mais e as pessoas eram todas muito
simpáticas, mesmo que não gostassem umas das outras estavam
sempre prontas a ajudar. Havia de facto um tipo de ajuda que era
quase fundamental, que se tinha que dar, que não se recusava: não se
deixava uma mulher a dormir sozinha em casa se ela achasse que
não era capaz, e eu precisava de aliviar a tensão – era uma questão
de cabeça, porque não havia nenhuma situação que fosse
especialmente perigosa ou que deixasse de o ser. Era o isolamento,
também, a tensão.
29 Sabe, o medo é como uma alergia, uma doença incurável: uma vez
desencandeado nunca mais nos livramos dele, ao contrário do que se
espera é em situações normais que ele mais se infiltra. Por isso, o
nosso quotidiano era habitado por um medo pequeno, fininho e
vago, infiltrava-se na vida, descaradamente. Durante o dia afastava-
se com a crueza da luz, a segurança dos gestos repetidos, a
companhia dos outros. Mas de noite os ruídos tinham significados
diferentes, as sombras cobriam de perigos desconhecidos o que nos
rodeava. Este medo coexistia com uma vida totalmente
despreocupada, sem quaisquer regras ou precauções especiais. Era
um medo por dentro. Sem escape ou justificação, acumulava-se
numa enorme tensão interior, muito cansativa. Porque durante os
meus dois anos lá, nada aconteceu de especial.
30 Em Serpa Pinto, se algum grupo armado tivesse querido entrar, pela
calada da noite, só tinha que atravessar a rua, do outro lado era a
chana sem fim, quilómetros de horizonte quase sem árvores – uma
das poucas árvores ficava em frente da nossa casa – e o quartel ficava
longe, num dos topos da cidade, já na periferia. Do quartel, aliás,
ninguém esperava nada de especial.
31 Portanto tive que viver com o meu medo todos os dias, com uma
agravante: foram quatro anos, um cá, dois lá e um dividido pelas idas
e vindas, porque nunca se ia exactamente ao fim de um ano, nem se
vinha exactamente ao fim de dois anos, portanto, vá lá, três anos e
meio de vida é muito tempo. Durante uma parte desses três anos e
meio, pode ser ao princípio, pode ser ao fim, o medo aumenta muito.
Há uma altura em que o medo galopa, e o medo como destrutivo que
é, é destrutivo da própria capacidade de raciocínio, de avaliação, de
valorização do que quer que seja. Há muitos para quem o vencer do
medo se tornou uma arma. Aliás a guerra está, sobretudo para os
homens, tradicionalmente ligada, e em Portugal muito, à ideia do
domínio desse medo, do medo da vida, do medo do perigo, do medo
da violência física e que se traduzia por “fazer do menino um
homem”. As jovens raparigas das aldeias não aceitariam casar com
os rapazes que não tivessem “ido às sortes”, porque ainda não eram
homens, ainda não tinham feito prova que eram capazes de aguentar
a parte do medo que lhes cabia. Eu penso que no subconsciente dos
homens portugueses – é um subconsciente muito pouco trabalhado,
muito pouco trazido para as situações concretas – isto foi
fundamental.
32 Ainda no outro dia a propósito disto e numa discussão com o meu
marido lhe disse: “Pois é, vocês foram brincar às guerras, brincaram
durante dois anos, nem perceberam que andavam a brincar às
guerras e depois admiram-se com as consequências!” Eu apercebi-me
de que tinha dito uma coisa que, pelo menos para mim, era
importante. Penso que para uma grande percentagem de homens
portugueses, de rapazes, a guerra foi um prolongar de brincar aos
soldadinhos, um jogo organizado, com inimigo, armas e tudo. Não
sabiam para o que é que iam, não tinham noção nenhuma! Tinham
medo sim, tinham a intuição de que aquilo não era bem a brincar,
mas foram praticar aquilo que tinham praticado a brincar antes, só
que era a sério. Alguns assustaram-se, vieram doentes, sem braços,
sem pernas, sem cabeça, muitos. Muitos, muitos.
33 Os inimigos na guerra, os turras, não creio que se individualizassem
tão facilmente, estariam para lá de uma certa linha no horizonte,
habitariam outro mundo de cubatas isoladas numa ainda maior
pobreza, e englobados e dominados por interesses, ordens e uma
estrita disciplina que não era exactamente a deles. Essa tinha sido
em geral violentamente rompida por nós. Tínhamos impedido os
homens de caçar, arrancámos populações ao seu habitat normal, as
lavras eram abandonadas, as migrações proibidas, impossíveis as
trocas, o comércio espontâneo, as naturais relações entre grupos e
etnias – difíceis já de si – eram espicaçadas e mal usadas pela nossa
ignorância e mesquinhez. Destruída a organização social original,
estes africanos, os pobres dos pobres, entravam directamente na
sociedade de consumo local: os panos em que se enrolavam
passavam a ser adquiridos em pronto--a-vestir aos comerciantes dos
minúsculos povoados, os homens trabalhavam como costureiros,
todo o dia debruçados sobre velhíssimas Singers nas varandas dos
comerciantes, esses que, com os administradores, eram a medida
humana do nosso império, naqueles matos; também aos
comerciantes compravam peixe seco, quase podre, que misturavam
na farinha (nunca percebi porque é que no interior de Angola se
vendia peixe!); os mais expeditos “iam no contrato”, voltavam
sempre com uma telefonia portátil que para todo o lado
transportavam ao ombro, ligada, claro, sinal indispensável do seu
novo estatuto.
34 Na verdade, nunca percebi como é que as populações entendiam e
aceitavam a nossa presença. Mas talvez as pequenas histórias
expliquem parte das coisas. Um dia o meu marido veio buscar-me a
casa para eu ir ao hospital. Tinha entrado uma menina muito mal e
ninguém sabia o grupo sanguíneo da criança. Quando lá cheguei dei
com o colega do meu marido empoleirado num banco, em cima de
uma bancada, com uma placa de reagentes encostada à janela. Ele e o
meu marido já tinham testado o seu próprio sangue, e como os
reagentes não funcionavam (estariam fora de prazo?), tentavam por
exclusão de partes. Como a criança iria certamente morrer e eu era a
mais próxima de dador universal (sou O+), não se perdia muito em
experimentar. Perguntei se seria preciso mais no dia seguinte, mas o
meu marido garantiu que não: de manhã, quando chegasse ao
quartel, diria aos soldados que eu já tinha dado sangue e os soldados
encher-se-iam de brios e haveria algum dador universal. Uns tempos
depois, uma tarde bateram à porta. Era uma mulher com uma
criança ao colo, um sorriso embaraçado. Vinha para “mostrar
menina...”.
35 Ao rever as fotografias que o meu marido foi tirando naqueles dois
anos, bem preciso de lembrar-me das histórias bonitas. Como a da
mulher que limpava o chão para um colega do meu marido passar.
Tinha levado o filho ao hospital uns dias antes. Já não me lembro dos
pormenores, mas uns dias depois o João ia no corredor e surgiu uma
mulher acocorada. Com um trapo, tão esfarrapado como os que
vestia, limpava reverentemente o chão por onde ele ia passar. O João
é um distraído, que disparate, limpezas àquela hora: “Ó mulher
deixe-me passar, vá lá.” Mas ela teimava, arreganhando a cara num
enlevado e reverente sorriso. Até que alguém explicou: “É para
agradecer ter salvo o menino...”. Esta é a parte mais importante das
minhas histórias da guerra.
36 Qualquer médico tinha com as populações uma relação especial. No
mato não havia outros médicos a quem pudessem recorrer senão aos
militares e a fama corria depressa: quando morria alguém, os
doentes desapareciam. Como em todo o lado a fome e a miséria
abrem a porta a todas as patologias, mais ou menos graves –
“kubabala”, era o que diziam. A sorte e o despacho do jovem médico
fariam toda a diferença e a rotina dos casos crónicos de subnutrição
enchia os hospitais durante a época mais propícia ao paludismo. Os
doentes raramente vinham sós, como poderiam, aliás? Tinham que
caminhar horas, dias, ou serem transportados pela família. Traziam a
sua comida, farinha ou mesmo cereal que moíam no pilão, à porta
das cubatas do hospital. As consultas eram sempre feitas com um
intérprete, o enfermeiro, porque no mato não se falava português.
Das aldeias menos pobres as mulheres grávidas vinham também à
consulta, para “serem vistas no aparelho” e saber se tudo estava
bem. Morriam bastantes crianças, não contando as perdidas durante
a gravidez.
37 No Norte, na segunda parte da comissão, em Maquela do Zombo, as
enfermeiras do hospital eram as freiras da Missão Católica. Chegava
a haver sessenta ou setenta doentes na consulta, às vezes já não
havia espaço para os deitar. Porque no fundo, os verdadeiros
problemas de saúde são iguais no mundo inteiro, sem pudermos
excluir os que têm outras causas, ali muito presentes – a fome, a
pobreza, a exclusão, a maldade, a ignorância.
38 Estes eram os contactos com a população local nativa, da qual nos
separava um abismo intransponível. Só a profissão exercida pelo
meu marido possibilitava algum contacto normal e humano. Mas
havia também os angolanos brancos, com os quais a tropa tinha uma
relação difícil. Mais uma vez, devido à profissão do meu marido,
tivemos alguns contactos e percebia‑se claramente que aquela gente
nada esperava de Lisboa. Havia uma tensão latente entre os dois
grupos, mas que, felizmente, raramente tomava expressão pública.
Lembro-me que uma noite ouvimos uns apitos, uns carros, e pouco
depois, uns murros na porta. Abrimos logo, e era um homem
completamente desvairado. Num dos cafés da terra um soldado de
um dos aquartelamentos ali à volta, já bêbedo, entrou em discussão
com uma pessoa local. Furioso, foi buscar uma espingarda e o tiro
atingiu mortalmente um homem que ia a passar na rua, um colono
branco de lá. O homem foi a correr com o meu marido para o
hospital, e o nosso amigo, que era o médico do sono, foi também a
correr. Fiquei com a mulher dele, ambas preocupadíssimas,
pensando no que é que aquilo poderia desencadear. E foi aí, também,
que eu vi e percebi que a população civil branca não esperava nada
da tropa, nem tinha nada a esperar da tropa.
39 Como é que eu explico? Nas cidades que já existiam, não havia entre
a população civil e a tropa nenhuma relação, qualquer que fosse a
ideia de sobrevivência política do angolano branco. Não quer dizer
que não houvesse excepções, e não quer dizer também que isto fosse
absoluto, mas penso que na generalidade era assim. Havia também
nos mais aguerridos e nos mais africanistas uma grande má vontade
contra o poder militar instalado, que eles achavam que era um poder
que não lhes traria nada de bom. Podia aguentar a situação durante
uns anos, mas não resolvia o problema. Para eles a comunidade
militar era muito vista como a soldadesca. Como em todas as tropas,
jogava-se muito, perdiam-se rios de dinheiro todos os dias e bebia-se
muito, coisa que aliás a própria tropa fornecia, muito habilmente, e
lavava as suas mãos. Por isso, estas populações passageiras eram
duplamente perigosas, desestabilizavam as relações económicas e
sociais. Mas também e para dizer a verdade os africanos brancos que
conheci eram pessoas muito pouco simpáticas, muito pouco
interessantes. Como país parecia termos exportado para as colónias,
pelo menos para Angola, aquilo que não era intrinsecamente bom, o
que não quer dizer que fosse intrinsecamente mau. Também conheci
muita gente boa, muito generosa, honesta, que foi de certo modo
atraiçoada, comprada, vendida, “carne para canhão de troca”, e
foram eles que pagaram o preço da nossa política. Na população
feminina, particularmente nas mulheres e mães, havia
intrinsecamente o medo de que a farda lhes violasse a filha,
deixando-a de barriga e fosse embora. Pelo contrário, para algumas
raparigas casadoiras, atiradas para aquelas aldeias, a tropa era a
possibilidade de um casamento fora dali. Muitas queriam
ansiosamente sair de África porque aquela África, das cidades do
interior, era também uma aldeia, em termos humanos e em termos
sociais. Habitualmente, as mulheres dos oficiais milicianos não
tinham nada a ver com este mundo civil, nem com o mundo militar,
e talvez por isso, o acolhimento que poderia ter sido muito
agradável, foi inexistente. As casas vazias que eram alugadas às
famílias dos militares ou mantinham-se vazias ou passavam de
militar para militar. As formas de relação que estabelecíamos com
esta população civil era, por exemplo, através da escola, com os
alunos. Eu, por exemplo, em Serpa Pinto dava aulas, até ganhava
mais do que o meu marido, mas não foi uma experiência gratificante.
Para além de serem pouco simpáticos, os alunos eram todos muito
maus, não sabiam nada de nada. Esforçados eram os negros, como
por exemplo, a filha de um dos enfermeiros do hospital. Era
excepcionalmente esperta e esforçava-se muito, queria aprender.
Para estes a instrução, a verdadeira, fazia toda a diferença, e era tida
como um bem necessário e precioso, imprescindível no futuro que os
esperava, qualquer que este fosse. Teoricamente, os professores
davam tudo, do 1.º ao 7.º ano. Dei inglês, francês e alemão. Eu não era
grande professora, reconheço, e para me consolar da má consciência
dizia para mim mesma que seria pior se não houvesse professor
nenhum.
40 Mas à distância as coisas são bem diferentes. Embora eu saiba que
não teria sido capaz de o fazer, todos estes anos lamentei não ter
nunca tentado uma escola nocturna de coisas que pudesse ensinar
aos soldados do Béu, um cavalete grande com folhas brancas de
papel, viria quem quisesse para ler ou escrever melhor, ler poemas,
contar histórias. À melhor maneira de Sebastião da Gama seria um
pouco uma escola a acontecer, onde tudo se poderia ensinar,
eventualmente com a ajuda de outros oficiais, matemática, biologia,
história... E quando leio Karen Blixen ou Henrique Galvão e encontro
aquela África que poderia ter conhecido, só penso: que parvos, que
parvos fomos, que desperdício de tempo, de energias, de tudo. É
como se tudo o que se passou naqueles anos estivesse de antemão
viciado, não pudesse ser vivido normalmente, como se o que estava
por detrás da nossa ida nos acompanhasse até ao íntimo de nós
mesmos. Mas não é o que acontece em todas as guerras, todas as
ocupações, em todas as histórias dos gloriosos impérios?
41 Vivíamos numa espécie de alheamento, às vezes, como naquelas
aulas no liceu em que só pensávamos como sobreviver até ao toque
da campainha mas parecia impossível aguentar até lá, um segundo
mais e rebentávamos de certeza, o mundo pararia, o sol entornava-
se, tal era a tensão ou o tédio, não sei bem qual escolher. Como
sonâmbulos fomos e viemos, presos à capacidade necessária para
aguentar. Pagámos com a pouca, mas preciosa capacidade de
compreender, de aceitar, de pôr em prática qualquer alternativa de
colaboração, de rompimento, de diálogo.
42 Há uns dias só me vem à lembrança o que diz Julieta quando acorda
no túmulo dos Capuletos: “I do remember well where I should be and
there I am. Where is my Romeo?” Só que, de facto, aquele não era
sítio para ninguém estar, ela muito menos. O que a mata não é só o
desespero de ver o marido morto. Ela parece ser engolida pelo
engano, pela confusão que o destino teceu. Creio que em nós havia,
ao tempo, uma grande confusão. Uma coisa era o que queríamos
privadamente – ir, estar perto, valia quase tudo para não perder dois
anos de vida com a pessoa com quem se queria viver. Nas mulheres
não tem nada a ver com dever cumprido, era aquele tão‑só o sítio
certo. Outra coisa era o desdobrar de outra realidade que a nossa
deslocação nos facultava: era ter de encarar de frente o insuportável
espanto de perceber o engano da situação. Mas o que é que estou
aqui a fazer? Era o que muitos se perguntavam, creio. Porque tal
como Romeu está morto, não havia justificação possível para nada,
onde estava então a glória, o prémio da certeza confirmada? Então o
maior desejo era que aquilo acabasse depressa, sem danos de maior,
se pudéssemos passar sem deixar rasto, às vezes até isso se aceitava,
secretamente se rezava, faziam-se promessas, logo esquecidas à
chegada ou passada a saída para o mato. Uma das razões porque me
reporto ao Mash é, entre outras, aquela imagem antecipada do
cirurgião quando no bloco lhe dizem que foi desmobilizado, e ele vê
a mulher correndo para ele à saída do avião – assim viviam em
mítica e antecipada realidade. Ou melhor, viviam antes um tempo
intermédio, inconsistente, entre um passado e um futuro igualmente
mitificados. Era um tempo de engano.
43 Também para os africanos era um tempo de engano e confusão, em
que a dúvida, como o medo, se ia instalando. Para que lado pender?
Ouvir a propaganda proteccionista do branco português? Passar a
viver à margem da tropa portuguesa? Arriscar miséria ainda maior
com os clandestinos, aderindo a um dos grupos organizados? Muito
falamos das nossas dúvidas existenciais, mas e as deles, dos
africanos...? O que pensariam as mulheres deles quando nos viam
chegar ao lado dos soldados?
44 Era desta mistura de um resignado desespero e de um imenso tédio
que se alimentava o célebre cacimbo. Afinal estar cacimbado era tão
só estar deprimido. Mas cacimbo era também algo de muito mais
vasto e indefinido – incapacidade de viver sozinho, especialmente
grave em homens, desorientação, falta de carácter e de educação,
oportunismo, lei do vale tudo para sair dali.
45 Ao tentar contar, lembrar-me correctamente, perceber, conservar,
sinto‑me sempre hesitante em isolar as pessoas, especialmente as
mulheres, como visitantes ainda mais alheias, porque mais alheadas
de qualquer razão de lá existir, que não fosse a sua privada teimosia
em viver com o seu marido ou com o seu amor. Mais ridículo me
parece, como mulher, falar da minha paralela experiência de tropa e
de tropa na guerra, quando já antes de eu nascer as mulheres por lá
passavam por conta própria. Mas talvez assim possa chegar ao que
em mim ainda trago de tudo o que uns dos outros aprendemos e
talvez assim desse enfim voz àquilo de que não se fala. Dar voz às
humildes mulheres dos soldados, a trabalhar nas lojas ou sabe Deus
em que mais, essas completamente isoladas, porque eram raras.
Contar da aflição e da saudade das que cá ficavam acabando por
casar por procuração, às vezes, não havia dinheiro nem tempo para
mais viagens, iam sem saber para quê, de debaixo da asa dos pais
passavam para debaixo da dos maridos, às vezes também por
insistência deles. Viam-se perdidos, não aguentavam aquilo
sozinhos. E falar também das mulheres dos profissionais, de certo
modo casadas com o exército, teimosamente recriando um lar com
filhos pequenos, no terror constante de que aquilo não durasse,
enxertando à sua custa nos quartéis e na guerra uma vida paralela,
familiar e doméstica, que afastasse para mais longe os mitos do país,
da segurança, da família, à sua custa carregando a hipócrita intenção
de uma ocupação pacífica. Como se alguma coisa pudesse ser
pacífica. Em si próprias penso que tentavam anular a violência dos
sucessivos desterros.
46 Penso que todas, de diferentes modos, tentávamos instintivamente
fazer companhia umas às outras, íamos directamente buscar a face
escondida, fraterna e universal. Falávamos, conversávamos,
contávamos coisas de vidas anteriores. Assim conheci a face
escondida, delicada e rica de muitas mulheres vulgares e
aparentemente sem interesse.
47 A I. do Mavoio é um caso típico. O marido deixou-a em casa dos pais,
à espera de uma criança. Mas o bebé perdeu-se, ainda a caminho. No
mesmo dia em que ele matou um turra, numa operação. A
coincidência deixou-o desvairado. Entretanto um colega veio de
férias e foi ter com ela. “Vá-se embora, que ele não aguenta aquilo
sozinho, está a dar em doido.” E ela foi. Vinha do Norte de Portugal e
era simultaneamente de uma grande doçura e de um imenso
despacho. Vivia no Mavoio, era a única mulher do destacamento. Os
homens adoravam-na. Parecia ali posta para os ajudar a continuarem
a ser pessoas verdadeiras. Sempre que podia vinha-me visitar a
Maquela do Zombo. Nessa altura tínhamos uma casa de ricos, com
mobílias horrorosas e loiça verdadeira, era escura e um pouco
tenebrosa, mas teria sido extremamente confortável se tivéssemos
sabido arranjá-la. Era uma casa à africana, colonial, a casa do médico
que só existia no papel e que deveria ter sido lá colocado pela
Administração. Passávamos a tarde na varanda, a conversar, com a
minha filha, Rita, entre nós.
48 Conheci outras mulheres, nomeadamente mulheres de militares que
encaravam a vida dos maridos como as suas vidas e, portanto, “as
suas comissões”. Mas a presença delas dependia também muito da
idade dos filhos e das vidas escolares. O problema maior era com as
mulheres dos capitães, porque atingia-as na idade em que os filhos já
iam à escola primária. Habitualmente, iam às escolas locais que eram
péssimas. Mas havia também a situação amorosa do casal, ouvi
comentários do género: “Ai que desgraça, eu só vejo desgraças nas
vidas dos que não trazem mulheres, depois arranjam uma preta. Eu
cá não quero desgraças na minha vida.” “Eu prefiro ir” – ouvi isto
muitas vezes dito pela mulher de um capitão de um dos sítios por
onde passei – “seja lá para onde for, nem que seja para os confins do
mato, eu cá me arranjo”. E, de facto, era verdade, ela com três panos
indígenas e com duas camas de tropa arranjava uma casa
confortável, era uma boa cozinheira, tinha criados. Era uma vida
burguesa completamente organizada. Esta organização que elas
faziam da vida familiar no meio da guerra, dava a tal margem de
normalidade às vidas daqueles homens. Eles saíam do quartel e iam
para casa (que às vezes era dentro da cerca do quartel), com a
naturalidade de quem sai do escritório, com a naturalidade de quem
se mete no carro. Elas humanizavam, desdramatizavam,
simplificavam as coisas e essa foi uma arma muito habilmente
utilizada pelo regime. A mulher do capitão que tenho em mente era
uma pessoa muito bondosa, muito limitada, mas ela fez mais pela
Pátria portuguesa do que quarenta generais e fez repetidamente,
porque quando a conheci ela já ia na segunda comissão, coisa que ela
enfrentava como a sua vida, a sua obrigação cívica. E isso errado ou
não, é muito bonito. Não me consta que tivesse sido condecorada.
49 A profissionalização da tropa, a normalidade da vida, que estas
mulheres de certa forma asseguravam passava, como que por
contágio, para as mulheres dos outros militares como eu. Mas a
minha situação foi extremamente privilegiada, correu sempre tudo
muito bem, nunca tivemos problemas sérios. Não foi a mesma coisa
de outras mulheres. Houve mulheres que passaram muito, de facto,
que viam os maridos a embebedarem-se, a jogarem a dinheiro com
elas lá, a visitarem as cubatas das pretas, a zangarem-se, a romperem
as ligações, a morrerem. Lembro-me do caso da irmã de uma grande
amiga minha. O helicóptero em que o marido dela ia caiu. Morreram
todos. Ela já tinha duas filhas, uma era bebé. Meteram‑na no avião de
volta para Portugal. A família foi buscá-la ao avião, esperando que
viesse desfeita e ela parecia encarar aquilo como se tudo tivesse sido
antecipadamente aceite. Lembro-me ainda de um outro caso
significativo. Éramos colegas desde o liceu. Ela apaixonou-se
loucamente por um oficial de carreira. E de antemão aceitou viver cá
sozinha durante o que se previa ir ser uma vida de comissões fora,
ter os filhos e criá-los sozinha, criá‑los no amor de um pai semi-
ausente; e recebê-lo a cada regresso como se fora o dia do seu
noivado, arriscando que não seria exactamente a mesma pessoa a
regressar. Imagino-os sempre ligados por um amor que nenhuma
geografia ou nenhum modo de viver abalaria. Nunca mais nos vimos.
Mas ainda hoje penso, perplexa, como se pode uma pessoa apaixonar
por um oficial de carreira?
50 Sabe, hoje de repente lembrei-me, talvez por ter estado a ver os
slides de África, que, antes de ir, percebi muito bem que iria viver
muito tempo sozinha, lá; que não deveria ser muito presente, mas
discreta, paciente; que o que se esperaria de mim não era
exactamente que fosse ao lado de, mas um pouco por detrás de, como
um regaço, uma força de retaguarda. E só muito mais tarde entendi
como fiz o meu marido correr riscos temerosos, por lá estar, não só
no dia-a-dia, mas com o meu paludismo, a minha gravidez, os
primeiros meses de vida da minha filha. A Rita nasceu em Portugal e
logo que fez um mês fomos de novo para África. Suprema veleidade,
loucura, inconsciência. Ainda me lembro que ela ia naqueles berços
dos carrinhos antigos (as rodas foram despachadas) e nós pegávamos
um de cada lado. Ainda me lembro na altura da multidão de amigos a
despedirem-se de nós no aeroporto e nós a passarmos o berço por
cima da barreira da polícia, como se aquilo fosse uma coisa
divertidíssima, como se fosse uma viagem gloriosa e nós radiantes da
vida, porque íamos enfim juntos, agora para o Norte de Angola, onde
o meu marido tinha sido colocado. Tudo diferente, pessoas, clima,
terra. Aliás um choque para todos. Depois da vastidão do Sul, aqueles
homens pareciam presos naquela paisagem de floresta subtropical.
51 A esta distância vejo como tudo se passava sem dramas nem
exigências, com uma naturalidade e uma ligeireza que já nem
entendo. Seria da idade, ou por termos as cabeças mais vazias ou
mais tontas, ou porque queríamos apenas mansamente sobreviver
àqueles dois anos? Seria por mais capacidade de sofrimento ou por
menos de livre arbítrio?
52 Lembro a visita dos pais do meu marido a Maquela do Zombo, como
exemplo desta surrealidade que vivíamos como natural. O pai do
meu marido também era médico, bioquímico, e houve um congresso
em Moçambique, em Lourenço Marques, onde a mãe do meu marido
tinha nascido e vivido. Do grupo de conferencistas vários tinham
filhos em África e portanto, informalmente e em paralelo, foram
organizando visitas aos filhos que estavam na guerra. Assim aqueles
que estavam em Angola, como era o nosso caso, receberam as visitas
dos pais e o resto das pessoas esperaram uns dias em Luanda. Os pais
do meu marido chegaram a Maquela do Zombo num dia em que
desabou a maior tempestade de que tenho memória naquela zona. A
mãe do meu marido era como um peixe na água, estava outra vez em
casa, nunca a vi tão à vontade, mas o pai do meu marido não. Acho
que ele sentia a estranheza que qualquer europeu sente num
continente violento como é África. Estiveram connosco dois ou três
dias, já não me lembro, e com um casal amigo levámo-los a passear
pela região: era uma região de minas de cobre, de floresta
subtropical, com pequeninas colinas muito fundas, muito vincadas.
Lá fomos, o tal casal amigo e os três filhos, os pais do meu marido e
nós com a nossa filha de berço. Foi muito divertido, mas como nessa
altura as coisas já não eram tão inocentes, fomos ao quartel buscar
umas espingardas. Imagine, a inocência, a naturalidade com que
tudo era feito. Lembro-me do ar completamente perplexo do pai do
meu marido. Era na época um senhor com setenta e tal anos, e deve
ter pensado: “Em que raio de mundo é que eu estou? Onde é que os
meus filhos vivem? Onde é que eu vim parar?” Esta zona do Norte
era uma zona pouco segura, porque era uma zona de passagem, de
infiltrações, mas as coisas passavam-se assim. Isto é surreal, não há
muito mais a dizer: poderia, no entanto, dizer ainda que ninguém
sabia usar as espingardas, ninguém iria alguma vez usar as
espingardas, só numa situação de grande tensão que se podia gerar e
isso teria sido uma grande desgraça.
53 Com todo este divagar estou sempre a fugir ao que de facto África
teve de interessante. Coisas que aconteceram por acaso ou mesmo
por engano. Como por duas vezes ouvir música verdadeiramente
africana. Com eles temos ainda tudo a aprender, se pudermos
prescindir, por um momento, da nossa sofisticada música ocidental.
Uma tarde ouvi um som e cheguei perto da janela. Um rapaz vinha a
tocar quissange pela rua, seriam assim as harpas dos anjos? Ele
apenas vinha andando e tangendo com os dedos o quissange, passou
debaixo da janela e acabou por desaparecer no outro topo da rua,
levando com ele o som celestial. Não sei quanto tempo durou esta
passagem, esta visitação, só sei que nem antes nem depois mais
alguma tive uma sensação tão perfeita do poder mágico dos sons. O
outro acaso surgiu no Béu, numa minúscula capela de madeira,
construída à africana, onde uma vez se disse missa. De raro que era
transformou-se num acontecimento, fomos todos, os brancos à
frente, os negros atrás. No fim, depois de saídos todos os
importantes, uma voz começou a cantar, pianíssimo, foram-se
juntando as outras, um crescendo perfeito até ao fortíssimo, os
corpos ondulavam com a melodia e depois começou a diminuir
gradualmente até acabar numa única voz. Não sei o que cantavam,
nunca sabíamos nada do que diziam. No canto do primeiro banco,
que era agora o último, encostados um ao outro para não ocupar
espaço, ali ficámos petrificados, o meu marido e eu. Na confusão de
saber que só por puro acaso nos era dado ouvir aquela maravilha, na
ânsia de não perder nem uma gota, no desejo de passar
despercebidos para não perturbar, teria ficado ali eternamente presa
daquele encanto. Tal como quando o tocador de quissange
desapareceu ao fim da rua. Quando se calaram foi como se me
tivessem fechado as portas do paraíso; como ser visitado pela visão
de um mundo outro, sem dúvida real.
54 Já estou a cair nas histórias, as tais histórias de África. Não era isso
que eu queria. Sabe, agora, nós as mulheres, quase de repente,
falamos todas mais daquele tempo, com outra seriedade e outra
distância, apesar dos sustos que apanho com o que vou ouvindo.
Como se as verdadeiras razões que nos levaram viessem
inevitavelmente ao de cima. Ou talvez porque sentimos o tempo a
fugir, o fim da vida a anunciar-se. Não teremos já muitos anos de
lucidez, coisa que, aliás, nunca foi grande preocupação da nossa
geração – salvo algumas excepções – mas alcançamos já a necessária
distância; não estamos ainda a morrer, mas já muitas “mortes
antecipadas” vão acontecendo nas famílias e nos amigos. Quando
éramos pequenos, muitos adultos ensinavam-nos a pesar sempre o
bem e o mal. Começamos agora a desconfiar que só existem como um
princípio abstracto, mas todo poderoso; queremos em geral firmar
um qualquer acordo que nos garanta uma plataforma de paz, um
compromisso. E uma parte desse compromisso é com o que deixámos
que nos acontecesse, com as escolhas que fizemos. Preferimos ter
pena ou desejar ardentemente que certas coisas tivessem acontecido
de outra maneira e, talvez por isso, procuramos eco nos outros,
quase secretamente comparamos as posições interiores, as
afinidades e as diferenças. Naquela altura, desde que não fugíssemos
de casa, não roubássemos ou não casássemos quatro vezes de
seguida, teríamos um lugar social assegurado: ali instaladas
ficaríamos, com toda a correcção e para todo o sempre.
55 Há quarenta anos o patriotismo, ainda que não espicaçado, era um
natural sentimento de lealdade a um grupo, uma geografia, um
clima, uma língua, uma cultura, a certeza de se pertencer a um e não
a outro conjunto destas coisas. Era um sentimento, não se explicava,
nem se justificava. A organização política do país nunca impediu esse
patriotismo; uns eram mais patriotas em aceitá-la, errada que lhes
parecesse, outros a combatiam para manter a lealdade à pátria. Para
a maior parte das pessoas não se punha sequer a questão de não
fazer tropa, quaisquer que fossem as consequências. Seria uma
violência que só um medo de tamanho igual justificaria. E a isso
ninguém estava disposto. Para admitir que se era cobarde, ou apenas
que se tinha medo, era preciso um outro tipo de coragem que não
nos tinha sido incutido.
56 Somos uns parvos, fomos e viemos, “manhãs inteiras”, diria a
Mafalda. Mas não aprendemos nada. Não percebemos nada.
57 Tenho pena de que para as gerações mais novas só tenhamos rostos
ficcionais. Penso que a minha geração tem uma dívida imensa com
António Lobo Antunes, porque ele foi a única voz que se levantou em
nome próprio, e porque em nome próprio em nome de todos falava e
é essa a grandeza daquela fase da sua escrita. E por mau que
literariamente Os Cus de Judas sejam, eles constituem um documento
tão fundamental para toda uma geração, tão honesto e de certo
modo tão frágil que nunca ninguém, nem todos nós juntos lhe
poderemos pagar, nem que lhe fizéssemos um monumento. Da Lídia
Jorge eu desconfio. Desconfio da sua atitude. Ela é brilhante em A
Instrumentalina, mas A Costa dos Murmúrios não aceito. Se é verdade
que as escolhas femininas foram intrinsecamente privadas e pessoais
– e essa foi a grande habilidade política de as usar como tais, nunca
as deixando transbordar para o domínio público e colectivo –
magoa‑me que uma pessoa que fez parte daquela teia, se ponha a
ridicularizar aquilo que já de si era/é surrealista. O que me chocou
profundamente foi o colar sobre aquela história, as histórias trágico-
cómicas, mas muito mais trágicas do que cómicas, de quantas noivas
ficaram por casar, etc., etc., e dos casamentos brancos, dos
casamentos por correspondência, da angústia e da ansiedade das
famílias de um lado e do outro, da sensação de perda, da sensação de
sufoco e da falta do outro, da tragédia verdadeira para tantos.
58 A nossa geração tem uma grande culpa. Quando eu me vim embora,
perguntava a mim mesma: “Daqui a vinte anos quando os meus
filhos me perguntarem: o que é que lá estiveste a fazer? Meu Deus, o
que é que lhes vou dizer? Como é que lhes vou explicar?” Não era
nada agradável, e ainda hoje não é. Quando se tem culpa numa coisa,
não há desculpabilização possível, tem de se viver com ela. Por muito
que se explique, explicar não é justificar. A guerra traz-se connosco a
vida inteira. Depois da guerra, começa a outra guerra, ou seja, a da
vida em que a primeira eternamente se transporta; a trégua, como
diz Primo Levi, é o tempo de “estado de graça” entre as duas.
59 Soube há muito pouco tempo, e por estar a falar deste depoimento
sobre as mulheres e a Guerra Colonial, que a minha filha mais velha –
que viveu os seus primeiros meses de vida em África, na guerra –
farta das nossas histórias de África, a duas versões, tinha querido
saber o outro lado da verdade e tinha pedido a uns amigos que
fugiram para Paris para lhe contarem a sua parte dos medos, da
pobreza, da solidão, da fome, das aflições. Para mim, isto foi
extremamente comovente.

Depoimento de Maria Ivone Reis


60 Nasci em Venda Seca, Belas, concelho de Sintra, em 1929. Éramos
quatro irmãos, sendo eu a terceira. Lembro-me do nosso Pai, doente
em casa; às vezes levava-me à rua a passear. Faleceu, tinha eu cinco
anos. A nossa Mãe era doméstica. Após a morte do Pai, fomos para
casa dos nossos avós maternos. Dois anos depois, a Mãe faleceu,
tinha eu sete anos. A causa da morte de ambos foi tuberculose
pulmonar.
61 Os nossos avós maternos tiveram nove filhos. Viviam da agricultura
e dos produtos lácteos dos animais. A minha Avó acolheu-nos, quatro
netos, com carinho, mas muito exigente, sobretudo comigo, a
rebelde! À noite, ao deitar, a Avó rezava connosco, e perguntava-me:
“Qual foi a maldade que hoje fizeste e que amanhã não voltas a
fazer?”. E essas palavras ao fim do dia acalmavam a minha rebeldia
justificada ou não, eram uma reflexão. A Avó, “analfabeta”, foi a
minha grande catequista, ensinando-nos a fazer o bem e “nunca” o
mal. O meu Avô nunca mandou os filhos estudarem. Logo, aos netos
também não. Assim, os tios após a primária, se a fizessem ou não,
trabalhavam na terra.
62 Na minha juventude, procurei trabalho, acompanhando crianças,
desde que me facilitassem o tempo para estudar. Estive em três
famílias, todas extraordinárias no acolhimento que me deram.
63 A primeira família era de um diplomata americano. Tinham um
filho, com dois anos. Seis meses depois de eu estar com eles, o senhor
foi nomeado para outro país. Queriam que eu os acompanhasse, mas
declinei o convite, pois tinha sonhos e projectos para me realizar no
meu país. A segunda família era muito agradável. Eram franco‑belgas
e tinham três filhos. Tratavam-me por “mademoiselle” e a senhora
disponibilizou‑se para me dar aulas de francês, o que me ajudou
muito a avançar no programa liceal. Passados quatro anos, conheci
outra família, próxima de amigos comuns, que me desafiou para
acompanhar uma criança de dois anos. Teria assim mais tempo para
estudar. Assim continuei até que, em 1958, conclui o Curso de
Enfermagem Geral na Escola das Franciscanas Missionárias de Maria.
O terminar deste curso foi para mim a realização de um sonho que
desde sempre alimentei.
64 Quando era criança tinha estado num sanatório, em Francelos, perto
de Espinho, porque naquela altura havia a primo-infecção e aquelas
outras doenças do foro respiratório. Foi lá que conheci uma senhora,
Guilhermina Suggia, que era violoncelista e era mundialmente
conhecida, fazia concertos na Rússia e pelo mundo fora. Ela ia lá
passar as férias, e contava muitas coisas das suas viagens, dos seus
concertos e nós ficávamos todas espantadas… são coisas que para as
crianças parecem sonhos. Pensei logo que queria ser pianista, mas foi
no sanatório que percebi que queria mesmo era ser enfermeira. Nós,
as crianças com essas patologias respiratórias, íamos à praia,
descansávamos, brincávamos, mas o que eu gostava era de ajudar as
enfermeiras. Sempre achei aquele trabalho bonito e fui ganhando
uma inclinação mais concreta, mais objectiva de que um dia poderia
vir a ser enfermeira. Agradava-me a ideia de tratar de doentes, no
sentido de estar com os doentes, ajudar as pessoas em situação de
carência. De maneira que quando terminei o liceu pensei logo ir para
uma escola de enfermagem.
65 Comecei a trabalhar em 1959, no hospital da CUF e foi aí que fui
abordada por uma colega da Escola para integrar uma equipa de
enfermagem na Força Aérea, mais concretamente nos Pára-
quedistas, para actuar em Angola, onde a guerra tinha estoirado, em
1961. O convite seduziu-me de imediato, disse logo: “Olhe, conte
comigo, mas eu amanhã confirmo”. Eu tinha que dar uma satisfação
à família com quem vivia, mas a minha decisão estava tomada. Os
meus amigos e a família com quem vivia acharam a ideia um pouco
louca, mas houve quem dissesse: “Se ela não vai, quem é que vai?”
Esse era realmente o meu argumento e quando me perguntavam
passei a dizer: “Claro que vou, se eu não vou quem é que vai? Eu não
tenho projectos, não tenho nada que me prenda e lá precisam de
mim.” Respondiam-me que era a altura de ficar sossegada. Mas eu
era desassossegada e respondia: “Mas…eu volto para cá, e depois fico
quieta”.
66 Quando me contactaram pensei que a minha ida como enfermeira
era útil, e o importante era atenuar o sofrimento daquele que não
tinha culpa nenhuma e que estava na frente de guerra. Não pensei na
estratégia de guerra, o porquê da guerra. Achava que aquilo seria
uma situação temporária e depois voltávamos. Na verdade, nunca
tinha pensado trabalhar em África. Quando as notícias da guerra em
Angola chegaram, para mim, como para muita gente, foi uma
surpresa. Tínhamos uma opinião desinformada e uma população que
também não estava esclarecida, muito menos sobre o que se passava
em África. E aceitei o desafio, embora o vencimento fosse menor do
que na CUF. Na verdade, eu nem perguntei nada, não perguntei quais
eram as condições. Assim como os capelães têm um quadro próprio,
os músicos têm o seu quadro próprio, assim as enfermeiras passaram
a ter também um quadro próprio. Fomos o princípio de um quadro
de enfermeiras graduadas militares na Força Aérea. A nossa missão
específica era de, a bordo, assistir e tratar os feridos ou doentes,
combatentes ou população civil, e conduzi-los para o hospital
indicado.
67 O pára-quedismo despertou em nós a consciência do medo,
desenvolvendo, simultaneamente, a audácia de agir, com segurança,
no risco e na adversidade. Na “retaguarda” da guerra, as equipas de
evacuação aérea, pilotos e enfermeiras, estavam sempre prontas a
responder à chamada, viesse ela das zonas de combate ou dos mais
“esquecidos” aquartelamentos das tropas. Era uma vida intensa.
68 Mas a nossa preparação tinha sido cuidada. Quando se reuniu o
grupo de voluntárias – éramos 11, uma fracção de uma companhia –
fomos convocadas para fazer testes de adaptação e de capacidade.
Naquele tempo a mulher não estava ginasticada, não havia a prática
de ginástica que temos hoje. Mas estes testes iniciais não eram
eliminatórios. No curso que se seguiu as pessoas desenvolviam-se ou
não, cumpriam as metas fixadas ou não. Começámos onze e só
ficámos seis, porque as outras não aguentaram os treinos. A guerra
tinha começado em Março e nós fomos convocadas em fins de Maio.
Fomos para Tancos fazer os testes a 25 ou 26 de Maio, e depois fomos
para lá iniciar o curso no dia 6 de Junho, que é o dia do desembarque
da Normandia, o dia mais longo, o dia D, como eu digo sempre. Era
um curso adaptado a nós, à nossa capacidade física, que não era igual
à dos homens, tínhamos que fazer tudo numa dimensão adaptada à
nossa resistência física. O primeiro salto foi a 2 de Agosto e fizemos
todos os outros saltos até 8 de Agosto, data em que fomos
brevetadas.
69 Na Força Aérea, nos pára-quedistas, já havia mulheres, civis, na
parte administrativa. A nossa relação com os pára-quedistas era
muito cordial. Claro que eles tinham sido advertidos das
circunstâncias em que nós íamos, porque é que íamos e portanto o
estatuto que nos deram – e que lhes deram a eles – também
acautelou o nível de relação que se propunha que houvesse e tudo
correu muito bem. Depois, no decorrer do curso fomos tendo uma
relação mais próxima, de conversa e quando se começa a conversar
as coisas desenvolvem-se com outra dimensão; soubemos que faziam
apostas sobre as nossas capacidades e coisas assim muito saudáveis.
No fim do curso estávamos envolvidas numa afectividade muito
grande, porque realmente os pára-quedistas são excepcionais, são
pessoas muito abertas, muito solidárias e amigos. E isso foi muito
importante para nós vivermos a nossa missão.
70 A 23 de Agosto fomos duas enfermeiras para Angola, como teste.
Estávamos ainda a fazer fardas em Lisboa, quando foi anunciado que
ia haver uma operação especial dos pára-quedistas no norte de
Angola, na Serra da Canda e eles gostavam da nossa presença.
Enfermeiras pára-quedistas Maria Arminda e Maria Ivone Reis.
Aeroporto de Luanda, Agosto, 1961. Embarque para a Serra da Canda
Fonte: Ivone Reis

71 Era tudo à experiência: ver como é que nós nos dávamos, ver como é
que os pára-quedistas reagiam à nossa presença. Mas não foi nada de
especial porque aqueles pára-quedistas que nós fomos encontrar no
avião para a Serra da Canda, tinham estado em Tancos em Junho,
quando nós tínhamos ido para lá. Eles tinham embarcado para
Angola em Julho. Portanto, já estavam mais ou menos próximos de
nós, sabiam da nossa existência, conheciam-nos e nestas situações a
relação humana é muito rica. Foi tudo muito fácil, sentia-se uma
grande abertura em relação a nós. Éramos todos irmãos, no sentido
em que parecia que nos conhecíamos, mesmo sem nos falarmos.
Havia uma empatia muito grande.
72 Em Luanda onde inicialmente aterrámos e onde ficávamos –
tínhamos a messe e os alojamentos lá – vimos que as pessoas, os
africanos e os europeus que estavam lá radicados tinham uma
relação humana boa. Eram pessoas muito abertas a uma relação e,
mesmo com a população local, não há dúvida nenhuma de que havia
uma relação rica de sensibilidade e de vivência.
73 É claro que a situação de guerra veio alterar as coisas em todos os
sentidos. E nós, a nossa presença militar também alterava tudo, mas
nunca senti fricções.

A bordo de um Nord Atlas, Angola 1961


Fonte: Ivone Reis

74 Nestas primeiras viagens os contactos com o trabalho que tínhamos


pela frente foram variados, aliás o ritmo e a configuração do
trabalho era muito diferente de território para território.
75 Na Guiné, por exemplo, como era um território pequeno até de
noite, quando havia uma situação de emergência, íamos
imediatamente. O dia tem 24 horas quando é preciso e o inimigo não
atacava só ao nascer do sol. Nós éramos quatro e havia sempre uma
todas as semanas a caminho de Lisboa, para assistir os feridos
evacuados para o Hospital Militar. De maneira que entre as três que
ficávamos, trabalhávamos em sistema rotativo. A Guiné, embora
fosse um território violento do ponto de vista da guerra, era mais
acessível por ser mais pequeno e geravam-se relações mais próximas
entre as pessoas. Estávamos em cima de todos os acontecimentos de
uma forma muito solidária e muito humana e tínhamos uma boa
relação uns com os outros: militares, civis e africanos. Com
frequência ouvia-se em Bissau rebentamentos e poderia não
acontecer nada que afectasse as pessoas. Mas, muitas vezes era um
rebentamento em qualquer zona da Guiné e tocava o telefone. A
enfermeira que estava escalada, entrava no jipe e imediatamente
partia para a pista e voávamos para o local. Em Angola ou
Moçambique era muito diferente devido à vastidão dos territórios.
Às vezes ir buscar um ferido era como ir daqui a Frankfurt.
76 Depois há a diferença das situações, que tem a ver com a diversidade
de cada pessoa, de cada situação… era consoante o grau de paciência
ou de sofrimento daquele que acompanhávamos. Um dia, um jovem
soldado, foi vitimado por uma mina, que lhe esfacelou um pé. Já
instalado no avião que fazia a sua evacuação para o hospital militar,
a enfermeira pára-quedista que o acompanhara, perguntou-lhe se
tinha muitas dores. Com a cabeça ele acenou-lhe que não, mas o seu
rosto continuava a espelhar todo o sofrimento que lhe ia na alma. A
enfermeira tentou confortá-lo, dizendo-lhe para ter confiança na
competência e dedicação dos médicos e de toda a equipa hospitalar
que o iria tratar. Prontamente, ele olhou fixamente para a
enfermeira e diz-lhe com contida emoção: “Senhora enfermeira, com
pé ou sem pé, estou vivo! O que me preocupa é a dor da minha mãe
quando souber.”
77 Era frequente os jovens combatentes tocados pela adversidade
esquecerem-se das próprias dores, preocupando-se antes com o
sofrimento que a sua família iria sentir quando a notícia cruel lhe
fosse dada. Para nós, enfermeiras, era particularmente doloroso
sentirmo-nos impotentes para aliviar o seu sofrimento físico ou
moral. A força moral daqueles jovens, naquela época, era tremenda e
isso transmitia-nos uma grande força para enfrentar os problemas e
para lhes dar resposta. Agora o que era mais grave para mim, era
quando púnhamos o ferido na maca, víamos os sinais vitais, pulsação
e tomávamos consciência de que a vida estava em risco. Aí o
problema era chegar a tempo ao hospital. Felizmente que todos os
que tive em mãos chegaram a tempo. São situações de muito
sofrimento, que nos tocam muito. A memória daqueles jovens que
entregaram a sua juventude, sem saber bem porquê.
78 Recordo um outro caso, esse de alto risco a vários níveis.
79 No quartel nós podíamos sair do avião, mas na zona de combate nós
não devíamos sair do avião ou do helicóptero. Era uma circunstância
de muito risco. Se houvesse ataque do inimigo o helicóptero teria de
levantar voo imediatamente ficando a enfermeira em terra em
grande risco, sem meios nem ambiente para tratar dos feridos.
Eventualmente fizemos isso em situações muito excepcionais, bem
medidas, porque podia tornar-se um altruísmo muito arriscado para
a vida dos outros. Nesse aspecto é muito importante a questão do
medo, porque ajuda ao raciocínio e ao controlo. O importante é
perceber como controlar o medo, para termos oportunidade de
perceber a razão do medo e para que possamos ultrapassá-lo. Ter a
consciência do perigo é fundamental para avançar e saber agir na
margem de segurança que a situação e o nosso pensamento sobre ela
nos oferece.
Assistência a feridos, Guiné 1970
Fonte: Zulmira André

80 Mas como dizia, o episódio que recordo foi muito no início da


guerra, ainda com o Allouette II, que era um avião muito pequeno
sem espaço para as macas dentro do avião. As macas iam fixas
lateralmente – cá fora – de modo que nem podíamos assistir ao
ferido. Depois, com o Allouette III, já tínhamos espaço para as macas
cá dentro e para assistir ao ferido. Um dia fomos buscar um ferido e
estávamos no quartel numa zona de guerra no Sul da Guiné, onde
tinha havido um bombardeamento. Num local mais avançado em
relação ao quartel estava o chamado posto avançado das tropas que
era um tenda de campanha com um médico e o pessoal militar que
dava apoio no campo da enfermagem. Nessa manhã houve muitos
feridos. Quando o avião estava para aterrar fazia uma volta sobre o
aquartelamento para avisar que ia chegar à pista. Logo a ambulância
avançava, e simultaneamente seguia para a pista um jipe de apoio e
segurança. Na pista mudávamos o ferido da maca de campanha para
a maca do helicóptero ou do avião. Naquela altura aterrámos na pista
e lembro-me de ouvir dizer que o doente estava em estado grave.
Perguntei de imediato se poderia ir lá abaixo à tenda. E fui. Encontrei
um ambiente de luta pela vida. O rapaz, um soldado, tinha levado um
tiro no tórax, e estava um fogareiro de petróleo a ferver material
agulhas e outros instrumentos. Perguntei ao médico o que é que
podia fazer, informando que tínhamos o avião à espera. O rapaz
tinha uma hemorragia pulmonar, estava em risco, e eles tentavam
cateterizar uma veia para pôr soro. Mas havendo uma hemorragia
muito grande, as veias ficam colapsadas. Foi então que o médico
pediu a um dos colaboradores que fosse ao quadro eléctrico do
quartel buscar daqueles tubos vermelhos da electricidade e,
retirando-lhes os fios metálicos, cateterizou a veia e conseguiu
colocar o soro. E foi debaixo de perigo que avançamos com aquele
corpo frágil, o colocámos num UNIMOG com uma tela com a Cruz
Vermelha em cima e o transferimos para o avião. Chegou ao hospital
com a pulsação mínima para poder sobreviver e recuperou. Ele era
da zona de Castelo Branco e sei que a mãe dele me procurou, mas eu
não fiz nada, apenas o assisti a bordo. O médico e a sua equipa é que
fizeram um trabalho extraordinário.
81 Havia muita solidariedade e muito empenhamento de todos, nas
horas difíceis e nas circunstâncias mais adversas estabelecia-se uma
relação de empenhamento. Eu senti muito isso entre todos os que
viviam em África na luta contra uma guerra. Ao longo de tantos anos
e com tantos casos tive muita sorte. Nunca tive mortes, mas também
nunca tive partos. Uma colega minha ficou muita aflita, porque um
bebé nasceu a bordo e não sei o que ela fez, sei que depois daquela
ansiedade acabou por conseguir entregar a criança à mãe. Para além
deste trabalho dos feridos, de um lado e do outro, havia o contacto
com as populações, o apoio àquelas pessoas.
82 Havia a população que encontrávamos nas saídas de apoio
operacional no mato e com quem estabelecíamos relações. Mais uma
vez dou o exemplo da Guiné, onde as coisas eram mais imediatas,
devido à dimensão do território. Era tudo muito pequenino, negros,
brancos, mestiços, civis, militares vivíamos todos em conjunto.
Lembro-me de uma criança que vinha com frequência ao nosso Posto
de Socorro visitar-nos. Era filha de um carpinteiro da Base Aérea.
Um dia ele, o pai, disse-me que gostava muito que eu pudesse levá-la
para Lisboa, para lhe dar uma vida que ele não lhe poderia dar.
Expliquei-lhe que a minha actividade profissional era imprevisível e
por isso era impossível impor uma responsabilidade dessas à minha
família.
83 Tínhamos um empregado na messe que era o Cherne, um homem
com porte muito nobre, muito calmo e muito sereno. Era filho de
soba. Um dia ele pediu‑me dinheiro por empréstimo; penso que
foram 500 escudos, e pensei esquecer. Mau juízo, injusto juízo.
Passados alguns dias, o Cherne veio‑me entregar o dinheiro e eu
comentei “Cherne, eu nem me lembrava já. Deixe estar, esqueça”, ao
que ele respondeu de imediato: “Senhora, se diz que não aceita, eu se
um dia precisar outra vez, não posso contar com a senhora”. Era de
uma delicadeza, de uma nobreza edificante. Penso que eram pessoas
muito dignas e que gostavam de nós. Ao longo dos anos da guerra
estive na Guiné em 63, depois em 65 e finalmente em 69, e de cada
vez que lá voltava, encontrava uma outra Ivone, porque eles davam
aos filhos os nomes das pessoas de quem gostavam. Entre eles e nós
havia uma relação simpática e gratificante.
84 Socorríamos também os feridos do lado adversário.
Deontologicamente, homem/mulher, ferido/doente é, e deve ser
sempre tratado como humano que é. Quando “o” tinha diante de
mim como ferido, não fazia julgamentos, não se faz qualquer
julgamento sobre uma pessoa que sofre. O humano fala sempre mais
alto e penso que nós portugueses, por aquilo que me foi dado
observar, temos uma sensibilidade muito humana. Mas chegavam-
nos alguns papéis dos movimentos de libertação. Tenho ainda hoje
um livro do Amílcar Cabral de iniciação primária dos combatentes,
escrito em português, onde se ensina e se veicula a doutrina política
da independência. A guerra para o bem ou para o mal ajudou ao
desenvolvimento e à precoce autonomia. Eu tinha dúvidas em
relação à descolonização, não que achasse que as coisas estavam
bem. Mas Salazar deixou de governar em 1968. De 1968 a 1974 vão
seis anos, ninguém mudou nada e só Salazar é que tem culpa? Todos
nós fomos culpados, eu também porque não era capaz de dar gritos
pela Paz. O que se passava é que enquanto havia um homem inocente
a combater, que era o soldado, nós deveríamos estar numa
retaguarda de apoio. No entanto, eu perguntava com frequência
desde os primeiros dias: “Quando é que isto acaba, não há direito que
isto aconteça…” É complicado, porque eu achava que nem que fosse
por um minuto a guerra não deveria existir. Mas as circunstâncias
levaram-nos a viver uma série de situações. Não estava ao nosso
alcance descobrir a razão da guerra!
85 Falávamos da guerra, daquilo que se passava de forma muito
objectiva e das coisas engraçadas, fazíamos umas partidas, festas.
Lembro-me da Companhia CCE274, aquartelada em Falacunda, na
Guiné, em 1963. Tinha sido uma Companhia muito sacrificada e um
dia em que eu e uma colega fomos em missão prestar assistência e
evacuar feridos na sequência do rebentamento de uma mina, um
militar desabafou: “Que pena, estas senhoras só vêm cá em dia de
azar”. Respondemos prontamente: “Fechem a guerra e convidem-
nos”. O convite veio no último domingo de Maio, para a festa do
Senhor Santo Cristo. A Companhia CCE 274 era constituída por
açorianos e os festejos iniciaram-se com uma missa celebrada pelo
capelão-militar, seguida de almoço e batuque, em que os soldados,
passados pela chaminé, ficaram negros e “transformaram-se” em
negros. E as duas enfermeiras foram de Fafás. A guerra tinha estes
aspectos humanos, agradáveis, solidários, ainda que na sombra
daqueles festejos estivessem os mortos na picada e a eles prestámos
homenagem.
86 Tínhamos uma vida mentalmente saudável, mas com o coração
sempre “atento”, um pouco sentido, porque as circunstâncias eram
complicadas. Quando acompanhávamos um ferido perguntávamo-
nos: “Como é que esta mãe amanhã vai saber deste filho? Ou a
mulher?”. Estávamos sempre numa vivência de sofrimento. Todas as
semanas, vinham feridos para Lisboa e uma de nós acompanhava-os,
embarcando de regresso logo que possível. Eventualmente também
vinham alguns feridos na TAP, dependia das circunstâncias. Morreu
no ano passado um homem que tive ocasião de acompanhar numa
destas viagens. Era oficial de Artilharia. Conheci-o na Beira, vindo de
Nampula e recordo que quando chegou o avião o médico estava a
tratar de um doente idoso, um colono branco. Quando o avião entrou
em linha de voo, perguntei ao médico o que tinha aquele doente e se
precisaria do meu auxílio. O médico disse-me que ele era cego dos
dois olhos, e que não tinha uma perna. Fiquei apreensiva. Fui ter com
ele, apresentei-me e disse-lhe que poderia contar comigo ao longo da
viagem. Muito serenamente, com os olhos vendados, pôs as mãos
dele nas minhas e disse-me: “Tive um azar muito grande, mas tive
sorte”. Lembro-me que pensei onde estaria a sorte daquele homem.
Perguntei-lhe se tinha dores. Disse-me que não e continuou: “Tive
sorte por que os meus rapazes ficaram todos ilesos”. Lembro-me de
estremecer perante a nobreza daquele homem. Ele era alferes do
quadro, tinha um pelotão à sua responsabilidade e naquele estado
dizia-me que tinha tido sorte, porque os seus rapazes estavam todos
bem. Admiro profundamente esses homens que tanto sofreram.
Muito pouca gente lhes dá o valor e tudo o que eles merecem, porque
são homens extraordinários. Tenho a maior simpatia, admiração e
respeito por esses homens e sempre que me chamam,
nomeadamente da Associação dos Deficientes das Forças Armadas,
vou sempre. Admiro extraordinariamente aqueles homens que não
se queixam, que são cegos, deficientes em geral, por causa da guerra.
87 Tive viagens difíceis para Portugal porque acompanhava-me sempre
a preocupação de como é que a família daquele combatente iria
reagir, a quem o deixaria entregue. Eram viagens muito longas e
nesse aspecto era muito importante o apoio dado pela senhoras da
Cruz Vermelha e do Movimento Nacional Feminino. Os aviões
militares não tinham um serviço de bordo, e portanto a Cruz
Vermelha providenciava lanches; por exemplo o percurso de
Nampula para Lourenço Marques, com paragem na Beira, eram
muitas horas, eram os Dakota e os DC4 que os faziam. Eram aviões
muito lentos. O DC6, o avião mais rápido da altura, demorava de
Moçambique a Lisboa, cerca de 28 horas, mais do que um dia; de
Luanda eram 20 horas e da Guiné eram 8 ou 10.
88 No acompanhamento dos feridos a Cruz Vermelha dava muito apoio
ao visitar os doentes nos hospitais militares ou afins. O Movimento
Nacional Feminino estava mais vocacionado para a relação entre os
combatentes e as famílias. Se, por exemplo, um soldado tinha
deixado os seus haveres em qualquer sítio, tinha sido ferido e depois
vinha para o hospital e daí para Portugal, o Movimento Nacional
Feminino através de cartas ou por contactos através dos seus núcleos
fazia o possível para que as coisas fossem entregues ao soldado ou às
famílias. Eu tenho cartas de militares, que me pediam que falasse
com pessoas por eles indicadas, familiares ou que tratasse de
pequenos assuntos, o que contribuía para o bem-estar daqueles
jovens. Nessa medida, a Cruz Vermelha e o Movimento Nacional
Feminino foram instituições solidárias e humanas, importantes para
suavizar o vazio e o desconforto da viagem de um combatente,
particularmente daqueles que sofriam fisicamente e para quem o
desconforto psíquico e moral se tornava ainda mais difícil de
suportar.
89 Aliás, a mulher portuguesa é uma mulher solidária. Por exemplo,
aquelas que acompanharam os seus maridos tiveram também um
importante papel.
90 Lembro-me de uma amiga para quem eu trazia notícias quando
vinha a Lisboa. Falava-lhe do marido e ela comovida e grávida,
imaginava o pior, o que poderia acontecer, porque ao longe há
fantasmas que se criam e que aumentam o sofrimento humano.
Dizia-lhe sempre que depois de o bebé nascer, ela deveria ir. Dizia-
lhe que na Guiné, as crianças eram lindas, andavam tranquilas na rua
e tinham olhos bonitos. Falava-lhe da importância da retaguarda de
apoio que as mulheres que lá estavam constituíam. Os próprios
homens só quando elas lá estavam é que muitas vezes se percebiam
que era fácil e saudável estarem todos juntos. Claro que não era
possível que a mulher estivesse numa zona de combate e de risco,
mas seria melhor que o marido viesse quando possível, do que
verem-se de seis em seis meses ou de ano a ano. Para a dimensão
familiar foi muito importante a presença das mulheres e para o
equilíbrio dos combatentes também. Elas deram um contributo
fundamental. Para mim, por exemplo, a dimensão espiritual, a minha
prática e vivência de fé, deu-me (e dá‑me) força para na honestidade
da minha intenção desafiar as coisas difíceis, para ir até ao fim, com
toda a entrega, porque não se pode desistir, não se pode vacilar
quando está em jogo a vida humana, e na guerra a vida humana é
muito frágil.
91 Por isso, vivi o 25 de Abril toda contente, a bater palmas, porque
finalmente acabava a guerra. Mas ao fim de uma semana fiquei triste
deixei de perceber o que estava a acontecer. Eu tinha regressado
após tantos anos de África e estava na Força Aérea, a trabalhar no
Hospital. Fui saneada a 17 de Abril de 1975 e isso surpreendeu-me. O
hospital, no qual tanto me empenhara, ia abrir em Janeiro de 1976.
Nunca me disseram a razão do meu saneamento e para que
efectivamente eu saísse tinha de assinar uma rescisão de contrato
com a Força Aérea. Andei um ano e meio naquela situação, falei com
o General Costa Gomes, mas nunca me disseram a causa e eu nunca
assinei nada. Após a eleição do General Eanes fui reintegrada na vida
activa hospitalar até à minha reforma.
92 Através da Associação da Força Aérea, que promove encontros e
outro tipo de eventos, mantenho um convívio frequente com
algumas das pessoas que estiveram em África na mesma altura que
nós, enfermeiras. Sempre disse que não queria voltar a África.
93 Contudo, há uns tempos, na minha paróquia, onde sou catequista e
nos dedicamos em equipa a preparar pessoas adultas para o
baptismo, na década de 80, apareceu um rapaz da Guiné, de 19 ou 20
anos. Andava nas obras e estudava. O pai era muçulmano, mas ele
queria ser baptizado. Cultivámos uma certa relação afectiva, de
amizade e, por vezes, encontrávamo-nos em grupo. Finalmente o
rapaz baptizou-se e continuou a conviver connosco. Um dia, disse
que gostava de ser padre. E há dois anos foi ordenado sacerdote. No
ano passado, quando fez um ano de ser ordenado, convidou-nos a
acompanhá-lo à Guiné. Vivi um terrível dilema, não queria mesmo ir,
expliquei-lhe as minhas razões, mas acabei por ceder e sofri muito.
Lembrei-me das casas cor‑de‑rosa velho ou caiadas de branco
naquele verde luxuriante de Bissau e olhava para aquilo tudo
degradado, aquela pobreza extrema, aquelas crianças na rua, ao
abandono. Não há explicação, não há justificação possível para mim.
Fiquei muito chocada. Não quero voltar a Angola nem a
Moçambique.
94 Costumo dizer que estas guerras para mim, e talvez para muita
gente, foram duas edições de um mesmo livro em que há as duas
partes bem distintas nos seus prós e contras. Se não houvesse mortos
e feridos no passado era tudo muito bom. Mas não os posso esquecer,
nem quero, tenho muito respeito pelos ex-combatentes. Para mim,
aqueles anos foram de uma realização muito completa e guardo
saudade, mas a saudade não é saudosismo, é sim a memória de tudo o
que foi saudável.

AUTOR
MARGARIDA CALAFATE RIBEIRO

É investigadora associada do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e


Visiting Research Associate do King’s College, Universidade de Londres. Doutorada em
Literatura Portuguesa pelo King’s College, foi leitora de português em França e no Reino
Unido e professora convidada na Holanda e Brasil. As suas publicações mais recentes
incluem: “Empire, Colonial Wars and Post-Colonialism in the Portuguese Contemporary
Imagination”, Portuguese Studies, 17, 2002, e Fantasmas e fantasias imperiais no imaginário
português contemporâneo, Porto: Campo das Letras, 2003 (organização com Ana Paula
Ferreira). No prelo: Uma história de regressos: Império, Guerra Colonial pós‑colonialismo, Porto:
Afrontamento, 2004.
margaridacr@mail.telepac.pt
Recensões
Maria Manuel, Paula Rego’s Map of
Memory. National and Sexual Politics
Rui Bebiano

REFERÊNCIA
Maria Manuel, Paula Rego’s Map of Memory. National and Sexual Politics.
Lisboa: Hants, Ashgate, 2003, 220 pp.
1 Foi no princípio da década de 80, longe já da tempestade cultural do
pós-Abril, que começaram a surgir os primeiros estudos sistemáticos
acerca do Estado Novo que puderam ser concebidos sem um
manifesto parti-pris. Esse então novo espaço de análise, retirado de
início à prática exclusiva do jornalismo de investigação por alguns
historiadores, passou pouco depois a ser também abordado pela
ciência política, pelos estudos literários, pela sociologia, pelas
ciências da educação ou pela antropologia, num processo de
crescente permuta de saberes. Vozes do Povo, uma obra colectiva
acabada de editar pela Celta, funciona como testemunho notável
dessa pluralidade disciplinar, aplicada, neste caso, ao
reconhecimento do processo de folclorização em Portugal. No
entanto, este esforço manteve-se durante muito tempo confinado a
observações dominadas por uma perspectiva essencialmente
historicista e retrospectiva, empenhada em observar, descrever e
interpretar o colectivamente vivido em função dos factos e dos
fenómenos produzidos no interior do tempo-passado que o
acompanhava. Quer isto significar que os fenómenos de integração
cultural produzidos ao longo da época em causa, nomeadamente
aqueles que puderam ir sendo armazenados pelo território de
memória, afirmando-se através de um trajecto de extensa duração
que incluía o reflexo das sucessivas práticas vivenciais, permaneciam
praticamente ignorados.
2 Não se questionava assim o papel dinâmico e integrador das
experiências de vida, e menos ainda os reflexos traumáticos que
estas pudessem conter e transportar até ao presente. Ao longo de
sensivelmente vinte anos, omitiram‑se, nas abordagens propostas
pelas ciências sociais e humanas – apesar de mais cedo terem sido
integradas na criação literária e artística –, tanto a memória legada
da cultura do salazarismo que sobreviveu à sua derrocada, como a
referência a experiências capazes de deixarem marcas profundas no
psiquismo individual e colectivo, como ainda o fortíssimo impacte de
uma propaganda política intensa e de uma educação fortemente
dirigida e autoritária. O mesmo aconteceu com a reminiscência de
uma sexualidade vivida dentro de parâmetros extremamente rígidos,
ou com as ondas de choque da violência, transmutada em guerra a
partir de um dado momento, que se manteve sonegada dos relatos e
afastada do quotidiano. Apesar da imediata visibilidade do Labirinto
da Saudade, publicado em 1978 por Eduardo Lourenço – onde se
falava já da necessidade de se proceder a “uma autêntica psicanálise
do nosso comportamento global” – mantinha-se o esforço de
levantamento de um imaginário de ruptura, assente nas novas
convicções democráticas e europeístas, que preferia fechar o álbum
do passado a observá-lo na sua continuidade.
3 Neste contexto, o livro de Maria Manuel Lisboa (MML) sobre a
pintura de Paula Rego (PR) articula-se com um esforço ainda
pioneiro. A partir de uma abordagem detalhada de parte importante
da obra da pintora – principalmente aquela que se desenvolveu a
partir de 1980 – a autora procura mostrar de que forma, após um
período centrado em trabalhos com acrílico e de colagem, esta
evoluiu para “uma arte narrativa mais naturalista”, coincidente com
um período ao longo do qual “a dimensão do pessoal e do familiar
contaminou a sua preocupação política e pedagógica com a vida
nacional portuguesa” (p. 15). Será sobre este pano de fundo que, de
uma forma particularmente original, MML irá identificar uma
memória dinâmica, centrada numa análise muito detalhada da obra
da artista. Esta articula os interesses mais pessoais de PR com um
background de infância – o tempo vivido em Portugal, desde o
nascimento até à mudança para Inglaterra em 1951, com apenas
dezasseis anos – que, varrido para debaixo do tapete por muitos dos
seus compatriotas, parece aqui revelar-se omnipresente, evocando a
experiência evidente, ou subliminar, mas assumida, do salazarismo e
do seu destino. Aliás, a pintora tem considerado repetidamente ser
“sempre e visceralmente portuguesa”, afirmando que as suas
pinturas nunca foram sobre outra coisa que não sobre Portugal (p.
4). A detalhada abordagem dos últimos vinte anos da obra de PR é,
por isso, desenvolvida aqui a partir de um pressuposto, de acordo
com o qual os trabalhos deste período integram uma elevadíssima
carga simbólica, em condições de remeter todas as leituras para uma
incontornável articulação com os sinais fundadores que integram a
perspectiva distanciada, mas intensa e omnipresente, que PR possui
do seu país.
4 A identificação desses elementos simbólicos remete para áreas que
dizem simultaneamente respeito à vida individual e à vida colectiva,
através de formas de representação que têm como referente a
presença da autoridade, a iconografia de raiz histórica, a vida
familiar, a experiência da sexualidade, o lugar da mulher ou a
quietude do tempo e da paisagem, de acordo com uma definição
imagética e conceptual que se inscreve claramente dentro de um
certo imaginário do universo português pré-revolucionário.
5 Tal como é mostrado por MML, estas formas são construídas, na
pintura da artista, a partir de um conjunto de referências que
integram em larga medida os “valores de Braga” – Deus, Pátria,
História, Autoridade, Família, Trabalho – matriciais na definição do
salazarismo enquanto doutrina e arquétipo cultural e proclamados
pelo ditador em Maio de 1936. Por outro lado, a figura do próprio
Salazar, enquanto protótipo-homem providencial destinado a
promover e a modelar um ideal de cidadão, encontra-se presente na
própria pintura de PR, revelando-se de uma forma quase óbvia em
Partida e A Dança, quadros de 1988. Todavia, este referencial não é
estabelecido, de forma alguma, sem uma forte contrapartida
iconoclasta, a qual, como a autora deste livro sublinha, “se aproxima
por vezes do profano”, definindo uma perspectiva violenta e
subversiva de fragmentos de um passado, de um acontecido, que fora
apresentado na sua fonte primordial como modelar e inapelável.
6 Todo este esforço é desenvolvido, de uma forma coerente, muito
documentada e detalhada, ao longo do volume. Desde logo na
importante introdução, onde se apresentam, aos leitores de língua
inglesa, os quadros basilares da política e da moral do salazarismo,
na sua ligação com a vida e a obra, ambas distantes mas feitas de
constantes regressos, de PR. Central é também, neste contexto, o
primeiro capítulo de Paula Rego’s Map of Memory, no qual se procede a
uma releitura da obra da pintora no período que antecede a década
de 1980, em ligação com os processos de identificação política e
pessoal de Portugal e com os reflexos que desde cedo eles foram
tendo na sua obra. No segundo capítulo, procura fazer-se a
identificação de um conjunto de símbolos e de figuras que, de uma
maneira ou de outra, foram integrando na pintura de PR uma parte
da vida pessoal e da sua comunidade de origem. O capítulo terceiro
tenta principalmente a apropriação de um conjunto de sinais que
funcionam como forma de integração da vida familiar e sexual numa
espécie de universo primordial proposto pela autora e ao qual ela
permanece unida. Numa abordagem mais específica, o último
capítulo, o quarto, trata o corpo feminino e os quadros de PR sobre o
aborto, procedendo, uma vez mais, a uma “leitura portuguesa”
destes temas. Por fim, uma conclusão bastante prospectiva procura
definir o universo da pintora por analogia com outras construções
detectadas no campo geral da produção artística, mostrando-o como
um mundo próprio e de alguma forma irrepetível, mantendo uma
ligação ao passado que, ao mesmo tempo, foi capaz de encontrar as
condições para percorrer o seu próprio caminho.
7 No geral, a autora fornece-nos, através da sua leitura pessoal e
comparada da obra de PR, uma perspectiva simultaneamente
específica e panorâmica, que nos permite reconhecer elementos
fundamentais na definição da nossa peculiar contemporaneidade. Foi
ainda Lourenço quem anotou que, ao longo de décadas, tudo, ou o
essencial, parecia ao português estar sempre em algum outro lado,
nas Paris, Londres ou Nova Iorque “que não éramos, nem podíamos,
ser”. Maria Manuel Lisboa revela-nos aqui, por interposição da sua
leitura original, e de uma certa forma ousada, da obra de Paula Rego,
que o inverso se passou igualmente. Algures, longe do solo materno,
permanecia, na actividade criadora de uma portuguesa da diáspora,
uma demanda das raízes destinada a preservar, e ao mesmo tempo a
reconstruir, a memória de um conjunto de sinais e de experiências
com as quais os Portugueses efectivamente conviveram. Será
também por isso que a obra de Paula Rego quase sempre “dói”. Como
dói, até que os reconheçamos e integremos, a lembrança de todos os
traumas.

AUTORES
RUI BEBIANO
Professor auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e investigador do
Centro de Estudos Sociais, onde coordena o projecto «Culturas Juvenis e Participação Cívica:
diferença, indiferença e novos desafios democráticos». Publicações mais recentes: “As
esquerdas e a oposição à Guerra Colonial”, A Guerra do Ultramar: Realidade e ficção. Lisboa,
Editorial Notícias - Universidade Aberta, 2002; “Temas e problemas da história do presente”,
A história tal qual se faz, Lisboa, Edições Colibri, 2003; e O poder da imaginação. Juventude, revolta
e resistência nos anos 60, Coimbra, Angelus Novus, 2003.
ruibebiano@mail.telepac.pt
Mary Nash; Susanna Tavera
(orgs.), Las mujeres y las guerras: el
papel de las mujeres en las guerras de
la Edad Antígua a la Contemporánea
Tatiana Moura

REFERÊNCIA
Mary Nash; Susanna Tavera (orgs.), Las mujeres y las guerras: el papel
de las mujeres en las guerras de la Edad Antígua a la Contemporánea.
Barcelona: Icaria editorial,2003, 549 p.
I am tired of being the blood, the earth and the scream.
I address the storyteller and those who have passed
the tale down, written it down, recited and believed it.
Is that all? I ask the storyteller. Where am I then? Do I
have to be Abel if I don’t want to be Cain? Is there no
other way?
Dorothee Solle
1 Ao longo dos séculos, as experiências das mulheres foram
marginalizadas e secundarizadas nos acontecimentos históricos mais
relevantes, em particular nas guerras, contrastando com o
protagonismo e primordialidade atribuídos aos papéis assumidos por
homens. A história das guerras e dos seus impactos é portanto uma
história incompleta, parcial, caracterizada pela ausência das
experiências e análises centradas nos papéis desempenhados pelas
mulheres.
2 Na opinião de Betty Reardon (1985), o sistema patriarcal produziu o
sistema de guerra, e os seus aspectos violentos afectam as nossas
relações, desde as interpessoais às internacionais. Por isso, mesmo a
guerra é vista como sendo a pedra angular da masculinidade, o
momento que marca a transição para a fase adulta na vida dos
homens (Enloe, 1983). Já a participação das mulheres nas guerras não
foi, nem é, considerada um acontecimento importante no processo
de construção da sua identidade social. Pelo contrário, a
maternidade é considerada o acontecimento que marca a transição
para a idade adulta da mulher. A imagem de mãe contraposta à
imagem de guerreiro, dar a vida e provocar a morte, serviu para
legitimar, ao longo dos séculos, a construção dos papéis sexuais
relacionados com a paz e com a violência. Do mesmo modo, a divisão
entre “protectores” e “desprotegidas” contribuiu para a relação de
dependência no plano colectivo e individual (Martínez López, 2000:
257-258), associando os homens à violência e à agressividade e as
mulheres à passividade e ao cuidado, características relegadas para a
esfera subjectiva e privada (e portanto subalternizada). Esta visão
estereotipada e profundamente enraizada na nossa cultura manteve-
se ao longo de séculos, moldou a escrita da História, e ainda se
mantém.
3 As propostas de análise da participação das mulheres nas guerras e
dos impactos destas guerras nas suas vidas correspondem a uma
análise dos espaços sem história, com actores silenciados. Tais
propostas começaram a emergir nos anos 80, em resultado de uma
linha de investigação feminista sobre a paz e a violência, com
investigadoras como Betty Reardon ou Cynthia Enloe. Apenas há
pouco mais de uma década começou a considerar‑se a especificidade
das necessidades das mulheres em contextos bélicos e na fase de
reconstrução pós‑conflito, em particular no âmbito das Nações
Unidas. No entanto, o reconhecimento e aceitação das mulheres
enquanto “grupo vulnerável” nos contextos de conflito armado e de
reconstrução pós-bélica tem conduzido à minimização e ausência de
informação e análises sobre a ampla variedade de papéis que as
mulheres (tal como os homens) assumem nestes períodos. Esta
necessidade já foi reconhecida, recentemente, pelas Nações Unidas.
A 31 de Outubro de 2000, o Conselho de Segurança aprovou a
Resolução 1325 sobre Mulheres, Paz, Segurança e Direitos Humanos
que resultou, por um lado, da avaliação negativa relativamente à
implementação da Plataforma de Acção de Pequim e, por outro, da
necessidade de resposta às preocupações manifestadas e sentidas por
mulheres em conflitos com características cada vez mais complexas.
4 De facto, a guerra foi e tem sido motivo de preocupação e de
posicionamento colectivo e individual para as mulheres de todas as
épocas históricas, independentemente de as suas vozes de protesto
ou de envolvimento beligerante serem reconhecidas nas esferas de
tomada de decisão. Las mujeres y las guerras: el papel de las mujeres en
las guerras de la Edad Antígua a la Contemporánea, que corresponde à
publicação das Actas do VIII Colóquio Internacional da Asociación
Española de Investigación Histórica de las Mujeres (AEIHM), que
decorreu na Universidad de Barcelona em Maio de 2000, dá-nos
conta destes espaços sem história e constitui uma proposta que
pretende em grande medida colmatar a ausência de reflexão (em
Espanha) sobre esta temática.
5 Na opinião das suas organizadoras, Mary Nash e Susanna Tavera,
este livro pretende abordar questões inovadoras e incorporar o
instrumental analítico produzido pela interconexão entre história
das mulheres e história feminista, por um lado, e história social, por
outro. Por isso mesmo os trabalhos que o compõem colocam em
evidência a heterogeneidade de interpretações sobre os papéis e o
protagonismo político e social alcançado pelas mulheres em
conjunturas de guerra, e dão também testemunho da variedade de
olhares historiográficos produzidos pela capacidade de inovação das
mulheres nos procedimentos de luta e resistência pacífica.
6 Esta obra, bem como o colóquio que esteve na sua origem,
inscrevem-se na trajectória percorrida pela AEIHM, que desde 1993
tem vindo a organizar colóquios anuais que pretendem desenvolver
a investigação sobre a experiência histórica das mulheres e que
constituem espaços de recuperação e discussão sobre o papel das
mulheres em vários momentos e espaços da história. No que diz
respeito às análises de mulheres em períodos de conflitos armados e
em momentos de reconstrução de sociedades devastadas por
conflitos, são de salientar o colóquio realizado em Valência (1998)
intitulado “Mujeres, regulación de conflictos y cultura de paz” e o
último coló- quio que teve lugar em Barcelona (2003) também sobre
as mulheres e as guerras. Mary Nash, uma das organizadoras deste
livro, é catedrática de História Contemporânea da Universidad de
Barcelona e directora do Grupo de Investigação sobre
Multiculturalismo e Género da mesma universidade. Foi a presidente
e fundadora da Asociación Española de Investigación de História de
las Mujeres e é autora de obras como Rojas: las mujeres republicanas en
la Guerra Civil española (Taurus, 1999), Women and Socialism. Socialism
and Women. Europe between the Two World Wars (Berghahn, 1998),
Constructing Spanish Womanhood. Female Identity in Modern Spain (Suny,
1999), entre outras.
7 Após uma introdução das organizadoras (Nash e Tavera), o livro
segue o esquema adoptado no colóquio realizado em 2000, ou seja,
estrutura-se em quatro partes, que correspondem aos quatro
grandes períodos históricos considerados: Idade Antiga, Média,
Moderna e Contemporânea. Cada parte é encabeçada pela
comunicação que abriu a respectiva sessão do colóquio, e que
pretende fixar as linhas de debate (de Ana Iriarte, Cristina Segura,
Anna Bravo e Cynthia Enloe, respectivamente), seguindo-se-lhe as
restantes comunicações ou capítulos.
8 O primeiro capítulo, “La virgen guerrera en el imaginario griego”, de
Ana Iriarte, coloca em relevo o contraste e a dicotomia existentes na
representação de diversas imagens guerreiras femininas na Grécia
antiga. A imagem da mulher enquanto símbolo de equilíbrio político
da Atenas democrática, representado em Atena, contrastava com a
imagem do caos, simbolizado pelas amazonas. Como nos mostra Ana
Iriarte, a incompatibilidade fundamental de todo este imaginário
radica na oposição de papéis entre mulheres guerreiras e
maternidade. A tentativa de superar o essencialismo (que associa as
mulheres com práticas pacíficas e determina a sua ausência durante
as guerras pelo facto de serem detentoras de um suposto pacifismo
natural inerente à sua condição de mulher) e os estereótipos
discursivos sobre a participação das mulheres em tempos de guerra,
bem como a denúncia dos vários rostos do sistema patriarcal que
subjazem à guerra e que tentam invisibilizar o protagonismo das
mulheres, são também os objectivos dos artigos de María Dolores
Mirón (“Las mujeres de Atenas y la Guerra del Peloponeso”), de
Aurelia Martín Casares (“De pasivas a beligerantes: los intereses del
discurso dominante respecto a la intervención de las mujeres en la
guerra”), entre outras.
9 O capítulo que encabeça a II parte do livro, “Las mujeres en las
guerras del Antíguo Regímen”, de Cristina Segura, dá-nos conta da
contradição existente entre a obrigação de proteger os mais débeis
(considerada pela autora como um pretexto para iniciar uma guerra)
e as contínuas agressões sexuais cometidas contra as mulheres nas
guerras feudais, contradição que se mantém até aos dias de hoje. No
entanto, a autora tenta ultrapassar a imagem das mulheres enquanto
simples vítimas de violência sexual em tempos de guerra, analisando
também a presença de mulheres em exércitos e a participação activa
de mulheres do povo e da nobreza em contextos de violência (dando
os exemplos de María Pacheco ou Toda, a rainha de Pamplona).
10 De facto, as análises sobre a participação de mulheres e grupos de
mulheres em conflitos armados e sobre os impactos destes conflitos
nas vidas das mulheres têm recorrido à universalização destas
experiências de guerra, recorrendo a uma formulação do tema que
parece reduzi-lo à violência sexual, omitindo qualquer outro
envolvimento das mulheres. No entanto, durante os conflitos
armados, independentemente da época histórica a que
correspondam, ocorre um esbatimento das fronteiras que separam a
esfera privada da esfera pública. Este esbatimento, na opinião de
Murguialday e Vázquez (2001), conduz a uma transformação dos
papéis das mulheres considerados como tradicionais, permitindo a
vivência daquilo a que estas autoras chamam “experiência
parêntesis”, que transforma a percepção que as mulheres têm de si
mesmas e molda as suas expectativas para o período posterior à
guerra. Na segunda secção de Las mujeres y las guerras: el papel de las
mujeres en las guerras de la Edad Antígua a la Contemporánea, as análises
destas experiências nas guerras da Idade Média é feita nos artigos de
Fina Birulés, Carmen García Navarro, Patricia Mayayo, Paula
Fortsner, Raquel Flores e Mónica Carabias.
11 O capítulo de Anna Bravo, “Mujeres y Segunda Guerra Mundial:
estrategias cotidianas, resistencia civil y problemas de
interpretación” (III parte) aborda, justamente, a maior
permeabilidade na transposição das fronteiras entre a esfera privada
e a militar (pública) através da análise de estratégias de
sobrevivência, de resistência civil e de repúdio da violência levadas a
cabo por mulheres durante a II Guerra Mundial. Do mesmo modo,
são analisados os vários papeis assumidos por mulheres na
Revolução Mexicana (Tabea Linhard), o papel das feministas
portuguesas durante a I Guerra Mundial (Rosa Mª Ballesteros), o
papel das mulheres durante os primeiros anos da União Soviética
(Meritxell Benedí), o exemplo das Mães da Praça de Maio (Laia
Herrera e Marc Lecha) e as violações de guerra e as mulheres em
França durante a I Guerra Mundial (Brigitte Terrason).
12 A quarta e última secção do livro, que corresponde à análise da Idade
Contemporânea, e é encabeçada pelo artigo de Cynthia Enloe
intitulado “Como se militariza una lata de sopa?”, que corresponde à
tradução do primeiro capítulo do seu livro Manoeuvres. The
International Politics of Militarizing Women’s Lives (Berkeley, California
University Press, 2000). Este artigo aborda o problema da
“militarização” enquanto tema de alcance cultural e não
exclusivamente político, que se desenvolve não só em períodos de
guerra mas também em tempos de paz, e que chega com eficácia à
população, inserindo-se nos padrões de consumo através da
publicidade, da moda, dos próprios jogos infantis e até da
alimentação (como sucede com a sopa com massinhas em forma de
naves da Guerra das Estrelas), que atravessa e influencia toda a
rotina diária. Para Enloe, a militarização não corresponde ao simples
acto de ingressar no exército ou de possuir e utilizar uma arma.
Trata-se de um processo bastante mais subtil, enraizado na
ideologia, nas instituições ou na economia, chegando a ser
considerado algo de normal ou mesmo valioso. O objectivo deste
artigo é pois o de sublinhar a necessidade de analisar abertamente o
militarismo a partir da perspectiva do sistema patriarcal, a fim de
desmascarar os privilégios de uma forma de masculinidade
dominante e hegemónica que existe e opera activamente nas
sociedades actuais. Os capítulos que se seguem a este capítulo
introdutório têm como objectivo analisar a actuação e participação
das mulheres durante e após a Guerra Civil e a ditadura espanholas,
resultantes das comunicações de Immaculada Blasco e Regine Illion,
Lourdes Martínez Prado, Teresa González Pérez e Marian Lorenzo,
entre outras.
13 Este livro constitui um contributo importante para a (re)escrita da
história das guerras e das tentativas de resistência e de repúdio da
violência, procurando dar conta de episódios e momentos históricos
que têm estado invisibilizados, e dando protagonismo a grupos que
continuam, até aos dias de hoje, a ser marginalizados. É uma obra
que vem mostrar, uma vez mais, que a história, em particular a
história das guerras, foi escrita excluindo metade da população que
nelas participa. Também por isso é um livro importante, já que a
escassez de informação e de análises é largamente responsável por
esse silenciamento de experiências fundamentais.

BIBLIOGRAFIA
Enloe, Cynthia (1993), The Morning After: Sexual Poltics at the End of the Cold War . Berkeley:
University of California Press.
Martínez López, Candida (2000), “Laz mujeres e la paz en la historia”, in F. Muñoz; M.
Martínez (orgs.), Historia de la Paz. Tiempos, espacios y actores . Granada: Editorial
Universidade de Granada, 255-291.

Mazurana, Dyan; McKay, Susan (1999), Women and Peacebuilding. Montréal: International
Centre for Human Rights and Democratic Development.
Murguialday, Clara; Vázquez, Norma (2001), “Género y Reconstrucción Posbélica”, Papeles de
Cuestiones Internacionales, 73, 33-39.

Reardon, Betty (1985), Sexism and the War System. New York: Teachers College Press.
Skjelsbaek, Inger; Smith, Dan (2001), Gender, Peace and Conflict. London: Sage.

AUTORES
TATIANA MOURA

Licenciada em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de


Coimbra. Mestre em Sociologia pela mesma Faculdade, com uma tese intitulada “Entre
Atenas e Esparta: Mulheres, paz e conflitos violentos”. Doutoranda no programa “Paz,
Conflictos y Democracia” da Universidad Jaume I, Castellon de la Plana, Espanha. Faz parte
da equipa de investigação do Núcleo de Estudos para a Paz do Centro de Estudos Sociais.
tatiana@ces.uc.pt
The End of the World As We Know
It
Teresa Cravo

REFERÊNCIA
Hinde, Robert; Rotblat, Joseph, War No More. Eliminating Conflict in the
Nuclear Age. London: Pluto Press, 2003, 228 p.
We appeal as human beings to human beings: remember
your humanity and forget the rest. If you can do so, the way
lies open to a new paradise. If you cannot, there lies before
you the risk of universal death.
Manifesto Russell-Einstein
(Conferências de Pugwash, 9 Julho 1955)
1 Estar à beira do abismo nuclear durante quarenta anos sem nele cair
trouxe uma falsa tranquilidade à comunidade internacional que se
tem revelado contraproducente para lidar com a nova era nuclear do
pós-Guerra Fria.
2 Para os autores de War No More, os riscos de acumulação e emprego
de armas nucleares que representaram, desde 1945, uma ameaça
contínua à estabilidade mundial e à própria sobrevivência da
humanidade não desapareceram. Pelo contrário, mantêm-se mais
acutilantes do que é generalizadamente presumido, ainda que a
iminência de um holocausto nuclear esteja, por enquanto, fora de
cogitação. Tendo em conta o novo cenário de insegurança que se
afigura no início do século XXI, é vital que o alerta que pautou a
Guerra Fria relativamente ao perigo deste tipo de armamento
regresse à ribalta da opinião pública internacional. É, de certa forma,
esse o intuito mais imediato deste livro, que se pretende acessível
não só a académicos e decisores políticos mas, muito
particularmente, ao cidadão comum.
3 Robert Hinde e Joseph Rotblat vão, todavia, mais além. Numa altura
em que as perspectivas de paz parecem menos prometedoras do que
há uma década atrás, apresentam-nos uma proposta ousada, desde
logo evidente no título, bastante peremptório. Considerando a
magnitude dos perigos que põem em causa a segurança mundial,
argumenta‑se no livro que só o caminho no sentido da eliminação
das armas de destruição maciça e, necessariamente, do próprio
fenómeno da guerra pode devolver à espécie humana a certeza da
sua continuidade. Os dois objectivos – o primeiro sendo um passo
para o segundo – estão intimamente ligados e têm pautado, de forma
inabalável, as vidas de ambos os autores.
4 O ex-físico nuclear Joseph Rotblat, polaco, naturalizado britânico em
1946, esteve envolvido no Projecto Manhattan que desenvolveu a
primeira bomba atómica durante a Segunda Guerra Mundial e
passou o resto da sua vida em campanha contra aquilo que ajudou a
criar. Acreditando que só a ameaça de perder a guerra contra a
Alemanha poderia justificar a criação de uma arma com semelhante
poder destrutivo, retirou-se do projecto – o único cientista a fazê-
lo –, antes mesmo de ela ter sido construída, assim que teve a certeza
da inverosimilhança de perigo análogo em mãos nazis.
5 Uma volumosa obra sobre a questão do nuclear testemunha a sua
batalha de 60 anos – uma batalha que lhe valeu alguma
impopularidade junto de instâncias oficiais, ao desistir do esforço de
guerra aliado ainda durante o conflito mundial e ao bater‑se contra a
corrida armamentista no pico da Guerra Fria. Viu, finalmente, o seu
empenho reconhecido de forma inequívoca ao ser laureado pelo
Prémio Nobel da Paz em 1995 em conjunto com as Conferências de
Pugwash – organização que fundou juntamente com Albert Einstein
e Bertrand Russell, entre outros, em 1955, e que reúne cientistas,
académicos e figuras públicas de todo o mundo preocupados com a
eliminação do armamento nuclear e a resolução pacífica de conflitos.
6 Com noventa e quatro anos de idade, Joseph Rotblat é uma
personagem histórica de peso (como tive oportunidade de
testemunhar numa palestra, há uns anos atrás), o que lhe dá uma
autoridade para escrever este livro que pouca gente teria.
7 Companheiro de campanhas e co-autor desta obra, Robert Hinde, é
um biólogo e psicólogo consagrado, cuja inclinação pelo estudo do
fenómeno da guerra também deriva da sua experiência pessoal
enquanto piloto da RAF (Royal Air Force) durante a Segunda Guerra
Mundial. Igualmente envolvido nas Conferências de Pugwash, como
presidente do British Pugwash Group, e actualmente professor jubilado
da Universidade de Cambridge, Robert Hinde é um autor
extremamente conceituado que tem inúmeros livros e artigos
escritos sobre as causas da violência institucionalizada. Rejeitando a
noção de que a guerra é uma actividade intrínseca à natureza
humana, o autor tem procurado explicar extensivamente os factores
psico-sociais que levam aos conflitos armados e tem explorado o
modo como as relações humanas podem desenvolver‑se de forma
pacífica.
8 Fica claro que ambos os autores combinam o activismo com uma
importante elaboração teórica sobre a real ameaça que os conflitos
armados representam – ameaça ainda mais premente numa era
nuclear. O seu interesse por este tema é, sem dúvida, fruto das suas
vidas pessoais. É indispensável termos em conta esta evidência para
podermos compreender por inteiro e apreciar verdadeiramente o
intuito deste livro.
9 Assim, lançado no início do século XXI, War No More representa o
produto final de décadas de reflexão sobre a temática da guerra e da
paz e apresenta-se como a ocasião certa para se tentar prevenir os
conflitos armados do novo milénio, como refere Robert McNamara,
ex-Secretário da Defesa norte-americano, no prefácio. Partindo da
premissa de que, em face da presença de armas de destruição maciça,
as consequências das guerras serão inevitável e exponencialmente
mais devastadoras do que no passado – e tendo em consideração que
todas as guerras carregam consigo o potencial da escalada –, a
eliminação total da ameaça de confrontação militar surge como uma
necessidade vital.
10 Um dos contributos mais importantes desta obra é, precisamente, o
facto de tratar a guerra como um fenómeno passível de ser extirpado
de forma definitiva. Ao longo do livro, os autores não se perdem em
descrições demoradas das consequências das guerras – não mais do
que o necessário para alertar os leitores para os perigos de um
conflito nuclear em larga escala. Recusam a inevitabilidade da guerra
como inerente à natureza humana, apresentando, por sua vez, uma
interpretação deste fenómeno como uma instituição que é
alimentada quotidianamente por diversos factores sociais, culturais,
científicos e militares e que depende da interacção de múltiplas
causas para ser desencadeada. A existência e proliferação de
armamento convencional e de destruição maciça, o sistema político e
o papel do líder, a etnicidade e a religião, a disputa de territórios e
recursos ou a globalização podem ser importantes fontes de
instabilidade e potenciais conflitos para os quais o livro nos chama a
atenção. A verdadeira preocupação dos autores é, então, explorar
estas causas mais profundas das guerras e apresentar propostas de
caminhos a seguir, com o manifesto intuito de as reduzir e, em
última análise, de as eliminar.
11 Robert Hinde e Joseph Rotblat produzem, assim, um livro que tem a
coragem de nos propor “o fim do mundo tal como o conhecemos”.
“What has always been does not have to remain the case” (p. 1). É-
nos, no entanto, bastante difícil aceitar os ecos de idealismo que este
livro encerra, em especial numa altura em que o argumento realista
parece mais certeiro. Não se nos afigura plenamente credível esta
visão quase romântica das relações internacionais, em que prevalece
o primado do direito internacional, em que a proibição da guerra
enquanto forma de resolução de disputas é cumprida, em que a
Organização das Nações Unidas surge finalmente com poder para
cumprir o seu papel de entidade reguladora do sistema internacional
ou em que a ideia de bem comum se reflecte nas políticas externas
dos Estados. Por mais que partilhemos das posições dos autores, a
ideia de um mundo sem guerras assemelha-se sempre a uma utopia
longínqua. É difícil controlar o nosso automático cepticismo. Mas
nem por isso o livro nos decepciona, muito pelo contrário. A
argumentação é consistente e bem elaborada. Os autores exploram,
de forma séria e exaustiva, os pequenos passos fundamentais para
assegurar a paz e a segurança internacionais, quebrando ao longo da
leitura a nossa inicial relutância. Ainda que resistamos a acreditar na
concretização destes dois objectivos finais, as pistas de intervenção
fornecidas pelos autores são extraordinariamente importantes para
guiar uma comunidade internacional algo perdida entre a evidência
de um mundo unipolar e a política agressiva de George W. Bush.
12 Trata-se, indubitavelmente, de um livro para acordar consciências. É
o próprio móbil de uma vida inteira que Hinde e Rotblat se
incumbem de passar ao leitor. Calculo que as esperanças de ambos os
autores poderem assistir à concretização do seu objectivo de longo
prazo já tenham desaparecido. E, perante a actual conjuntura
internacional, leia-se administração Bush – relativamente à qual
ambos são particularmente críticos ao longo de toda a obra –,
arriscaria dizer que as esperanças relativamente ao objectivo de
curto prazo de eliminação das armas de destruição maciça num
futuro próximo também tenham ido pelo mesmo caminho. Mas é
precisamente por se estar perante este cenário que os autores
consideram importante reavivar a noção de que o conflito armado
não é uma inevitabilidade nas relações internacionais. Alguns sinais
positivos, ainda que episódicos, têm reforçado esta ideia. Mesmo
numa altura aparentemente menos favorável à discussão deste tema,
as manifestações contra a guerra no Iraque revelaram-se não só
contra esta guerra em particular mas contra o fenómeno da guerra
em si, abrangendo milhões de pessoas e desvendando uma
consciencialização relativamente às alternativas ao imediato uso de
meios militares para a resolução de um conflito. Para além disso,
como disse Rotblat numa entrevista há pouco tempo, “se
conseguirmos evitar um holocausto nuclear na era Bush, existe
esperança”.
13 Na verdade, esta obra é, do início ao fim, um repto a partilhar deste
optimismo, a responder, de forma empenhada e militante ao apelo
de prosseguir um sonho porventura dissonante da realidade actual
mas que, segundo os autores, é exequível.
14 Para quem acha que depender meramente da lógica da dissuasão
para a inexistência de guerras fica aquém de uma verdadeira ideia de
paz, e pretende enveredar por caminhos mais exigentes na busca de
um “war-free world”, este livro recomenda-se vivamente.
AUTORES
TERESA CRAVO
Docente de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Licenciada em Relações Internacionais pela mesma faculdade. Pós-graduação em Direitos
Humanos e Democratização da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. É mestre
pelo Departamento de Estudos sobre a Paz da Universidade de Bradford, Reino Unido, com
uma tese intitulada “Post-War Mozambique: A Test-Case for the United Nations
Peacebuilding Model”. Faz parte da equipa de investigação do Núcleo de Estudos para a Paz
do Centro de Estudos Sociais.
tcravo@fe.uc.pt
Espaço Virtual
Título da página electrónica:
International Committee of the
Red Cross (ICRC) – Women and
War Section
Endereço:
http://www.icrc.org/Web/eng/siteeng0.nsf/iwpList2/Focus:Women
_and_War

Tatiana Moura

1 O Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) tem como objectivo


e grande responsabilidade a protecção e promoção do respeito pelo
direito internacional humanitário em tempos de guerra. As mulheres
constituem um colectivo particularmente afectado e vulnerável em
situações de conflitos armados, apesar da ampla protecção
outorgada pelo direito internacional humanitário. Neste sentido, o
CICV criou a secção “Mulheres e Guerras”, dedicada à análise dos
múltiplos papéis assumidos por mulheres em tempos de guerra e aos
impactos sofridos pelas mulheres em distintas situações de conflitos
armados, em grande medida provocados pelo desrespeito de normas
internacionais de protecção humanitária.
2 Esta secção contém publicações do CICV, estudos e documentos
sobre a participação de mulheres em contextos de guerra, um
observatório de imprensa com artigos relacionados com esta
temática, bem como sugestões de outros endereços electrónicos
relevantes. A visibilidade e o maior conhecimento sobre a
participação das mulheres em conflitos armados são os princípios
que pautam a actuação da organização, através de estudos e de
projectos específicos. Estes estudos e projectos centram-se na análise
dos impactos específicos das guerras nas vidas das mulheres,
nomeadamente enquanto vítimas de violência sexual, prisioneiras de
guerra, refugiadas e deslocadas, tendo em consideração a
especificidade de cada conflito armado. Os casos analisados passam
pelo Afeganistão, Burundi, Eritreia, Colômbia, entre outros.

AUTOR
TATIANA MOURA
Licenciada em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra. Mestre em Sociologia pela mesma Faculdade, com uma tese intitulada “Entre
Atenas e Esparta: Mulheres, paz e conflitos violentos”. Doutoranda no programa “Paz,
Conflictos y Democracia” da Universidad Jaume I, Castellon de la Plana, Espanha. Faz parte
da equipa de investigação do Núcleo de Estudos para a Paz do Centro de Estudos Sociais.
tatiana@ces.uc.pt
Título da página electrónica:
Women Waging Peace
Endereço: http://www.womenwagingpeace.net

Tatiana Moura

1 O programa Women Waging Peace, uma iniciativa do Hunt Alternatives


Fund lançada em 1999 com uma duração de seis anos, tem como
principal objectivo promover a plena participação de mulheres em
processos de paz formais e informais em todo o mundo. Para tal, esta
rede reúne mulheres provenientes de diferentes áreas do mundo que
vivem situações de conflito armado com o intuito de partilharem
estratégias de consolidação da paz e de moldarem políticas públicas.
Esta rede conta actualmente com cerca de 200 especialistas com
distintos backgrounds (como membros de governos, directoras de
organizações não governamentais, advogadas, professoras,
jornalistas, entre outras) que contribuem com investigações e
análises sobre as actividades de mulheres na prevenção de conflitos,
negociação e reconstrução pós-bélica em quinze situações de conflito
armado. Estes estudos têm como finalidade o desenho de propostas
alternativas que pretendem moldar programas oficiais e influenciar
políticas públicas.
2 Women Waging Peace é também membro do Women, Peace and Security
Web Ring, um projecto da Women’s International League for Peace and
Freedom, que tem como objectivo acompanhar a implementação da
Resolução 1325 do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre
mulheres, paz, segurança e direitos humanos.
3 Neste site podemos aceder a inúmeros estudos sobre a participação
de mulheres na prevenção de conflitos, em negociações de paz e nos
processos de reconstrução pós-conflito que decorrem em várias
regiões (África, Américas, Ásia, Europa e Médio Oriente), bem como
às publicações da rede, a documentos de política internacional e a
uma base de dados bibliográfica sobre o tema.

AUTOR
TATIANA MOURA

Licenciada em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de


Coimbra. Mestre em Sociologia pela mesma Faculdade, com uma tese intitulada “Entre
Atenas e Esparta: Mulheres, paz e conflitos violentos”. Doutoranda no programa “Paz,
Conflictos y Democracia” da Universidad Jaume I, Castellon de la Plana, Espanha. Faz parte
da equipa de investigação do Núcleo de Estudos para a Paz do Centro de Estudos Sociais.
tatiana@ces.uc.pt
Título da página electrónica:
UNIFEM’s Portal on Women, Peace
& Security
Endereço: http://www.womenwarpeace.org

Tatiana Moura

1 O UNIFEM’s Portal on Women, Peace and Security foi recentemente


lançado pelo United Nations Development Fund for Women
(UNIFEM) e constitui uma das medidas adoptadas para a
implementação da Resolução 1325/2000 do Conselho de Segurança
das Nações Unidas sobre Mulheres, Paz e Segurança, em particular
no que diz respeito à necessidade de reunir e disponibilizar dados
sobre os impactos de conflitos armados nas vidas de meninas e
mulheres.
2 Segundo Noeleen Heyzer, Directora Executiva da UNIFEM, as
mulheres em todo o mundo vivem as guerras de forma distinta. No
entanto, muitos dos problemas e necessidades são comuns. Esta
página fornece análises sobre questões que afectam de forma
particular as mulheres, durante e após os conflitos armados. Entre
elas podemos destacar o problema das minas antipessoais, do tráfico,
da violência, ou as operações de manutenção da paz e de
reconstrução pós-conflito.
3 As informações reunidas e disponibilizadas neste site pretendem
colmatar em grande medida a falta de sistematização de dados e
análises existentes sobre as experiências vividas por mulheres
durante e após os conflitos armados, bem como sobre a sua
participação na construção da paz. A informação sistematizada nesta
página provém de diversas fontes (como o Conselho de Segurança e a
Assembleia Geral das Nações Unidas, o Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Direitos Humanos, a UNICEF, entre outras), com links
para relatórios e dados do sistema das Nações Unidas, de académicos,
organizações não governamentais (ONG) e artigos de imprensa.
4 Através desta página, podemos também aceder a páginas
electrónicas de ONGs internacionais que trabalham sobre esta
temática e a revistas como o Journal of Women’s Studies e o Journal of
Conflict Resolution, entre outros.

AUTOR
TATIANA MOURA
Licenciada em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra. Mestre em Sociologia pela mesma Faculdade, com uma tese intitulada “Entre
Atenas e Esparta: Mulheres, paz e conflitos violentos”. Doutoranda no programa “Paz,
Conflictos y Democracia” da Universidad Jaume I, Castellon de la Plana, Espanha. Faz parte
da equipa de investigação do Núcleo de Estudos para a Paz do Centro de Estudos Sociais.
tatiana@ces.uc.pt

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