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68 | 2004
Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/rccs/839
DOI: 10.4000/rccs.839
ISSN: 2182-7435
Editora
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
Edição impressa
Data de publição: 1 junho 2004
ISSN: 0254-1106
Refêrencia eletrónica
António Sousa Ribeiro e Margarida Calafate Ribeiro (dir.), Revista Crítica de Ciências
Sociais, 68 | 2004, « As mulheres e a Guerra Colonial » [Online], posto online no dia 01
agosto 2012, consultado o 19 setembro 2020. URL :
http://journals.openedition.org/rccs/839 ; DOI : https://doi.org/10.4000/rccs.839
Introdução
Artigos
Dossier
Dois depoimentos sobre a presença e a participação femininas na Guerra
Colonial
Margarida Calafate Ribeiro
Recensões
Mary Nash; Susanna Tavera (orgs.), Las mujeres y las guerras: el papel
de las mujeres en las guerras de la Edad Antígua a la Contemporánea
Tatiana Moura
Espaço Virtual
Título da página electrónica: International Committee of the Red Cross
(ICRC) – Women and War Section
Endereço: http://www.icrc.org/Web/eng/siteeng0.nsf/iwpList2/Focus:Women_and_War
Tatiana Moura
AUTORES
ANTÓNIO SOUSA RIBEIRO
Professor Associado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra na área de estudos
germanísticos e investigador do Centro de Estudos Sociais. Os seus interesses de
investigação incluem: literaturas e culturas de expressão alemã, temas de literatura
comparada, estudos pós-coloniais, estudos de tradução, estudos sobre o Modernismo e
estudos sobre a violência.
asr@ces.uc.pt
Abril de 1917, que, quarenta e tal anos mais tarde, foram populares
junto dos soldados na Guerra Colonial. A secção feminina da Cruz
Vermelha, presidida por Amélia Pitta e Cunha, e o Movimento
Nacional Feminino, liderado por Cecília Supico Pinto e criado na
sequência do rebentamento da guerra em Angola, em 1961, têm
nestas instituções da Primeira República as suas raízes de base de
apoio aos militares, embora se distanciem da ideologia feminista que
animava as mulheres da “Cruzada Portuguesa”. Mesmo a ida de
mulheres para o espaço de guerra, como aconteceu com as
enfermeiras que acompanharam Corpo Expedicionário Português
(CEP) na Primeira Guerra Mundial, ou o caso das enfermeiras
pára‑quedistas da Força Aérea, 11 na Guerra Colonial, obedecia a
esta lógica de apoio reservada às mulheres. No entanto, estas são as
primeiras mulheres portuguesas a ir à frente de combate no ingrato
trabalho de assistir e recolher feridos, e as suas experiências,
algumas com mais de dez anos de África, nas três frentes de batalha,
constituem testemunhos importantíssimos e únicos sobre a frente de
combate, as relações entre homens e mulheres nas Forças Armadas e
a sua relação com as populações.
7 Mas esta era, como referi, uma situação de excepção. A manutenção
do mito de que a guerra é tarefa de homens possibilitava uma certa
estabilidade social, cara ao regime que promovia a guerra. O
estímulo que era esperado das mulheres era o de apoiar a guerra e,
com ela, a ida dos homens, maridos ou filhos, para África e o seu
bem‑estar lá. No entanto, em Portugal não assistimos a campanhas
de propaganda como vimos, por exemplo em Inglaterra, na Segunda
Guerra Mundial. Oficialmente, não estávamos em guerra, mas nas
publicações do Movimento Nacional Feminino, Presença e Guerrilha,
12 eram feitos apelos às mães portuguesas para que sacrificassem
os seus filhos “pela Nação” (apud Pimentel, 1996: 639) e nos jornais
da época eram aplaudidas as mulheres que tinham muitos filhos e
que os “davam” para a defesa do Ultramar português, numa atitude
que relembra a propaganda de guerra tradicional que liga
maternidade, nacionalismo e militarismo. Contudo, um movimento
porventura inédito nesta guerra e pouco documentado nestes
embarques foi o da ida de mulheres acompanhando os maridos em
missão militar em África. Aproximando assim a chamada “frente
interna” da frente de guerra, proporcionou-se uma certa
estabilidade social dentro de um quadro de inevitável mudança.
Paradoxalmente, criaram-se também, a prazo, as condições para a
mudança, na medida em que essas mulheres seriam também
testemunhas e, de alguma forma, cúmplices de um mundo de guerra,
aparentemente reservado aos homens.
8 Lídia Jorge, escritora que registou ficcionalmente esta experiência
feminina da Guerra Colonial em A Costa dos Murmúrios, refere numa
entrevista que, quando chegou à Beira, em Moçambique, um militar
fez a seguinte observação: “Só os Cartagineses levavam as mulheres
para a guerra – e agora, os Portugueses.” (Pedrosa, 1988: 10). A
questão imediata seria: por que razão esta situação de excepção das
mulheres portuguesas revelada na provocadora afirmação do
militar?
9 Após o 25 de Abril de 1974, falou-se das mulheres que partiram com
os maridos na ficção escrita por mulheres que tem por pano de
fundo a Guerra Colonial e na crítica que subsequentemente tem
vindo a ler estes livros. Mas antes do 25 de Abril, apenas nas
publicações do Movimento Nacional Feminino, Presença e Guerrilha,
se proclamava a “missão muito certa” das mulheres-esposas que
acompanhavam os maridos vivendo “dois anos em África” com a
missão de “valorizar a mulher negra” (apud Pimentel, 1996: 639).
10 Cabe perguntar: seria esta ida das mulheres para África, em
acompanhamento dos seus maridos na guerra, parte de uma política
traçada nos termos tradicionais, corporativos e ideológicos do
regime ao combinar a missão familiar (acompanhar o marido, na
retórica da política de família do Estado Novo) com a missão
civilizadora (“valorizar a mulher negra”)? Qual seria de facto o papel
destas mulheres? Pensar-se-ia em colonizar com pessoas que, por
definição, estavam numa situação transitória como são as comissões
de serviço em tempo de guerra?
11 Relembre-se que, ao mesmo tempo que decorria a Guerra Colonial, o
regime estimulava a ida de famílias para colonizar as terras
africanas, oferecendo passagens, concedendo empréstimos para
explorações agrícolas através das Juntas Provinciais de Povoamento
e outras facilidades.
Partida de uma família de colonos para Angola a bordo do paquete “Vera Cruz”
Fonte: O Século, Arquivo de Fotografia de Lisboa – CPF/MC; SEC/AG/01-170/1142AR
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NOTAS
1. Gostaria de agradecer aos directores e funcionários do Arquivo Histórico Militar, do
Arquivo Geral do Exército, do Arquivo Histórico da Força Aérea e do Arquivo do Ministério
da Educação pela generosidade e eficiência de que deram provas, pelos conhecimentos que
me transmitiram e que tornaram possível a recolha de grande parte da informação referida
ao longo deste artigo. Relativamente ao material fotográfico, gostaria de agradecer ao
coordenador do Arquivo de Fotografia de Lisboa, Dr. Fernando Costa, pela generosidade e
rigor de todas as indicações que me deu, e à Senhora Dona Rosa Nogueira, que me facultou
algumas das suas fotografias dos tempos em que viveu em Moçambique acompanhando o
marido em missão militar durante o período da Guerra Colonial.
2. Belisário Pimenta, apud Bebiano, 1993: 75.
3. Sobre a batalha de Alcácer-Quibir, ver Valensi, 1996.
4. Cf. as seguintes estrofes do Canto VI de Os Lusíadas : “Mas já a amorosa Estrela
cintilava/Diante do Sol claro, no horizonte,/Mensageira do dia, e visitava/A terra e o largo
mar, com leda fronte./A Deusa que nos Céus a governava,/De quem foge o ensífero
Orionte,/Tanto que o mar e a cara armada vira,/Tocada junto foi de medo e de ira. […]/Assi
foi; porque, tanto que chegaram/À vista delas, logo lhe falecem/As forças com que dantes
pelejaram,/E já como rendidos lhe obedecem; /Os pés e mãos parece que lhe ataram/Os
cabelos que os raios escurecem./A Bórea, que do peito mais queria,/Assi disse a belíssima
Oritia:/– Não creias, fero Bóreas, que te creio/Que me tiveste nunca amor constante,/Que
brandura é de amor mais certo arreio/E não convém furor a firme amante./Se já não pões a
tanta insânia freio,/não esperes de mim, daqui em diante,/Que possa mais amar-te, mas
temer-te;/Que amor, contigo, em medo se converte./[…] Desta maneira as outras
amansavam/Subitamente os outros amadores;/E logo à linda Vénus se
entregavam,/Amansadas as iras e os furores./Ela lhe prometeu, vendo que amavam,/
Sempiterno favor em seus amores, /Nas belas mãos tomando-lhe homenagem/De lhe serem
leais esta viagem.” (Camões, 1992: 170/1 [Canto VI, estrofes 84; 88; 89 e 91]). Cf. Macedo,
1998.
5. Cf. os seguintes passos de Jaime Cortesão: “Pálidos, magros, exaustos, os pulmões roídos
dos gases, os pés triturados das marchas, sem esperança nem apoio moral, arrastam?se sob
o imenso fogo que tomba do céu, por essas estradas, como uma legião miserável de
abandonados.”; “Nisto um silvo galopante vem de lá, rasa numa lufada horrível as nossas
cabeças; um estampido cataclísmico, a terra, os sacos, a madeira, nós mesmos tudo dança
projectado; depois uma chuva de pedras, torrões, detritos, cai do alto, bate no capacete,
fustiga a carne, graniza à volta, com violência.” ( apud Dias, 1995: 431).
6. Refiro-me ao reconhecimento da neurose de guerra (“shell shock”), no decorrer da
Primeira Grande Guerra, em que as interpretações de histeria e outros comportamentos
psicológicos tradicionalmente atribuídos às mulheres ajudaram a compreender o fenómeno.
Cf. os escritos de W. H. Rivers, nomeadamente o seu texto inicial e polémico “The
Repression of War Experience”, publicado em The Lancet , a 2 de Fevereiro de 1918, e Conflict
and Dream (1923), entre outros textos. Ver também Showalter, 1987a. Sobre doenças do foro
psicológico atribuidas às mulheres e que no pós-guerra serviram para compreender o
drama do “shell shock”, ver Showalter, 1987b.
7. Cf. como a problemática se mantém em guerras mais recentes em Meintjes et al. , 2001.
8. Sobre esta discussão, cf. Lorentzen e Turpin, 1998: 119-154, e os seguintes estudos
recentes: Nação e Defesa , 88, 2 série, Inverno 1999 (número temático “A Mulher e as Forças
Armadas”); Goldstein, 2001; Browne, 2001; e Carreiras, 2002.
9. Para o desenvolvimento desta ideia, cf. Ruddick, 1990.
10. A “Cruzada da Mulher Portuguesa” era liderada pelas mulheres da nova elite política
republicana e estava ideologicamente marcada pelos ideais feministas de então; por seu
turno à “Assistência das Portuguesas às Vítimas de Guerra” ligavam-se nomes da recém
deposta monarquia (Pimenta, 1989: 82-83).
11. Sobre o assunto cf. Alves, 1999: 75-76; Ferreira, 1986.
12. Presença , Revista do Movimento Nacional Feminino , publicação mensal dirigida por Luíza
Manoel de Vilhena, e Guerrilha , revista mensal, dirigida por Cecília Supico Pinto e tendo
como chefe de redacção, primeiro, Martinho Simões e depois, Mário Matos Lemos.
13. Cf., por exemplo, o seguinte texto de Pedro Cabrita: “[…] que se faz para além do esforço
militar para permanecermos Lá? Na resposta a esta pergunta encerra-se o julgamento
futuro que a Nação vai fazer aos governantes de hoje. E, se eles não envidarem todos os
esforços no único sentido válido, mal vai a Nação, pior irá a Pátria. E o único sentido válido
sai desta verdade: se em quatro ou cinco anos não forem qualificados na Metrópole (e
qualificados técnica, cultural e politicamente) centenas de milhares de portugueses
metropolitanos capazes de irem para Angola e Moçambique e se não forem colocadas essas
centenas de milhares de portugueses no Ultramar, Portugal sairá de África.A opção do
Governo, portanto, só pode ser uma: criar condições através da acção de todos os
Ministérios (desde o mais político ao menos político) para que seja possível colocar em
Angola e Moçambique, no mais curto espaço de tempo, centenas de milhares de portugueses
metropolitanos. […] A grandeza da ideia ultramarina – e essa é a ideia de Portugal – exige
colada a esse sacrifício [dos jovens militares] toda uma enorme tarefa de povoamento, de
progresso económico, cultural e social.” (Cabrita, 1964: 5).
14. Sobre o valor terapêutico da família na ordem salazarista, ver o interessante estudo de
Moisés de Lemos Martins (1986: 77-83).
15. Em A Costa dos Murmúrios , de Lídia Jorge, Evita e Helena de Tróia dominam o cenário
que tem na retaguarda outras mulheres, cujas identidades ora se definem em conjunto – as
“mulheres do Stella” (p. 119) as “raparigas de cabelo passado a ferro”, “mulheres dos
vestidos sem costas”, “raparigas de cabelo comprido” ou “de cabelo em forma de colmeia”
(p. 116), “uma moldura de mulheres que habitam o Stella” (p. 232) – ora em relação ao
marido, incorporando o seu nome ou a sua categoria militar – a mulher do Ladeira, do
Zurique, do Góis, do major, “a mulher do Astorga”, “a mulher do Fonseca” (p. 109), “a
mulher do capitão Pedro Deus” (p. 110), “a mulher dum capitão piloto-aviador” (p. 19),
“uma mulher de alferes” (p. 21). Todas estas mulheres, descritas de forma pouco elogiosa e
irónica pela narradora viviam no Stella Maris mais preocupadas com as promoções e
oportunidades de ascensão social e de riqueza que a guerra trazia do que com os perigos que
os maridos corriam. “As mulheres do terraço […] ouvindo o piloto […] sabiam que estavam
em fila, esperando que os seus homens desempenhassem um papel histórico” (p. 114), diz-se
também em A Costa dos Murmúrios .
16. Veja-se as protagonistas de A Costa dos Murmúrios , de Lídia Jorge, e de Percursos – do
Luachimo ao Luena , de Wanda Ramos.
17. Citações retiradas da entrevista de Inês Pedrosa a Lídia Jorge (Pedrosa, 1988: 10).
RESUMOS
Procura‑se traçar as linhas gerais que no discurso crítico histórico, político, sociológico e
literário levaram a considerar a guerra como um fenómeno não exclusivamente masculino.
Dentro da situação portuguesa, visa‑se interpretar o “papel de apoio” que sempre esteve
reservado às mulheres, de um ponto de vista público e privado, e analisar com mais detalhe
a situação das mulheres portuguesas que acompanharam os maridos em missão militar em
África, durante o período da Guerra Colonial.
This paper seeks to delineate the general lines that, in the historical, political, sociological
and literary critical discourse, have led to a consideration of the war as a not exclusively
male phenomenon. Concerning the Portuguese situation, the author seeks to interpret the
“supporting role” that has always been reserved for women in public and private, and
analyze in greater detail the perhaps unprecedented situation of the Portuguese women
who accompanied their husbands on military missions to Africa during the period of the
Colonial War.
Dans cet article, je chercherai à tracer les lignes générales qui, dans le discours critique
historique, politique, sociologique et littéraire, ont mené à considérer la guerre comme un
phénomène non exclusivement masculin. Dans la situation portugaise, je chercherai à
interpréter le “rôle d’appui” qui a toujours été réservé aux femmes, d’un point de vue
public et privé; je tenterai d’analyser d’une manière plus détaillée la situation, peut-être
inédite, des femmes portugaises qui, pendant la période de la Guerre Coloniale, ont
accompagné leur mari en mission militaire en Afrique.
ÍNDICE
Keywords: Portuguese Colonial War – women’s role, Portuguese society, Africa
Mots-clés: Guerre coloniale portugaise - rôle de la femme, société portugaise, Afrique
Palavras-chave: Guerra colonial portuguesa - papel da mulher, sociedade portuguesa,
África
AUTOR
MARGARIDA CALAFATE RIBEIRO
É investigadora associada do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e
Visiting Research Associate do King’s College, Universidade de Londres. Doutorada em
Literatura Portuguesa pelo King’s College, foi leitora de português em França e no Reino
Unido e professora convidada na Holanda e Brasil. As suas publicações mais recentes
incluem: “Empire, Colonial Wars and Post-Colonialism in the Portuguese Contemporary
Imagination”, Portuguese Studies, 17, 2002, e Fantasmas e fantasias imperiais no imaginário
português contemporâneo, Porto: Campo das Letras, 2003 (organização com Ana Paula
Ferreira). No prelo: Uma história de regressos: Império, Guerra Colonial pós‑colonialismo, Porto:
Afrontamento, 2004.
margaridacr@mail.telepac.pt
As mulheres e a Guerra Colonial:
Um silêncio demasiado ruidoso
Women and the Colonial War: An excessively loud silence
Les femmes et la Guerre Coloniale : un silence trop bruyant
Manuela Cruzeiro
1 Diz-se que os povos felizes não têm história. É talvez porque nos
queremos imaginar um povo feliz que temos um problema com a
história, o que faz de nós um povo distraído e de curta memória. Por
um complexo jogo de luz e sombras, rasuramos do longo passado
episódios infelizes, atirando sobre eles sucessivas camadas de
silêncio, e compensamos essa ausência com fogos-fátuos de uma
mitologia delirante. Cerramos os olhos à realidade, para os abrir
extasiados ao vazio do imaginário mais vertiginoso. E, no entanto,
esses episódios silenciados perduram na razão directa do seu
recalcamento. São os traumas que a psicanálise obriga a encarar, a
verbalizar e até a reviver, sob pena de sucumbirmos à compulsão da
repetição, que é a forma psíquica do destino.
2 Escondemos demasiados esqueletos no armário, que um dia, quando
menos esperamos, nos caem aos pés. Guardamos no bolso bombas ao
retardador que vão ardendo lentamente, e que, quando explodem,
nos deixam total ou parcialmente inutilizados.
3 Entretanto, fingimos que tudo vai bem. Somos exímios gestores do
silêncio, mesmo quando falamos. Especialmente quando falamos.
Dizia, a propósito, Adolfo Casais Monteiro: “o português não é nada
inclinado ao conhecimento de si próprio. Gosta imenso de falar de si,
mas daí a conhecer-se, vão mundos”. Esta magnífica síntese traduz,
como muito bem assinala Boaventura de Sousa Santos, “uma das
contradições estruturantes da nossa personalidade colectiva, onde se
casam de forma surpreendente um gosto exagerado pelo falar de si
com um autodesconhecimento que a própria fala, em vez de atenuar,
potencia” (Santos, 1993).
4 Na verdade, este falar de si, disperso, fragmentário, gratuito e
distraído, é quase sempre a outra face de um silêncio que se quer
preservar. A nossa sociedade está cheia de ruídos tagarelas e de
pesados silêncios. Uns e outros escondem pequenas ou grandes
tragédias inominadas, mas nem por isso menos tragédias, ou talvez
até a mais refinada e incomunicável das tragédias, como
insistentemente nos tem lembrado, sem grande proveito, Eduardo
Lourenço, justamente a propósito da maior das nossas tragédias
actuais: a Guerra Colonial. Cada vez mais insistentemente designada
de novo por Guerra do Ultramar…
5 No tempo da Censura, fomos iludindo o silêncio com discursos
transversais, enredados de subtilezas, meias palavras, metáforas,
ambiguidades, analogias, e até com jogos de ironia e de sarcasmo,
cujo efeito foi a desconstrução do sentido, o estilhaçar em mil
pequenos sentidos do sentido global e autêntico dessa guerra.
6 A começar pelo poder político: o que havia não era guerra, mas uma
revolta a exigir uma contra-revolta. Os soldados não iam para a
guerra, mas em “Missão de Soberania”. E, mesmo no meio militar,
havia todo um glossário, entre o anedótico e o evasivo, para não
chamar as coisas pelos nomes. Os mobilizados que chegavam de novo
eram, respectivamente, os maçaricos para Angola, os checa-checa para
Moçambique, os piriquitos para a Guiné (piriquito é pior do que
terrorista, dizia-se em jeito de boas vindas…). Os generais do
Estado‑Maior eram os generais de alcatifa, ou de ar condicionado, a
metralhadora do inimigo era a costureirinha.
7 Guerra a sério, não havia, mas sim pequenas guerras, e essas, fora
das zonas de combate: nas repartições, nas messes, nos hospitais, nas
lojas, nos espaços de convívio públicos e privados, onde o apelo à
normalidade mais se fazia sentir, aí sim, fazia-se a guerra, pequena,
banalizada e até parodiada.
As próprias mulheres ficavam com a sua guerra, que era a gravidez, a
amamentação, algum pequeno emprego pelas horas da fresca. Uma loja de
indiano e de chinês era uma guerra. Como vai aqui a sua guerra? – já tinha o
noivo perguntado a um paquistanês que vendia pilhas eléctricas, de mistura com
galochas e canela… (Jorge, 1988: 74)
8 Hoje, verifica-se quão difícil tem sido recentrar, a sério e a fundo,
essa questão nacional, devido às sucessivas desfocagens que vem
sofrendo. E descobrimos como essas desfocagens persistem como
efeitos, mesmo desaparecidas as causas. Abolida a Censura, o silêncio
hoje consentido parece ser um perverso sucedâneo do silêncio antes
imposto.
9 É certo que se tem falado seriamente da Guerra Colonial, em já
numerosos encontros, colóquios e debates, bem como através de
muitos e importantes estudos e análises de natureza económica,
política, militar, de incontestável mérito. É sobretudo verdade que,
de forma progressiva, se vem afirmando uma pujante literatura de
guerra, em que se conjuga o dissídio, a denúncia, o memorialismo e o
confessionalismo, a culpa e a catarse, a força testemunhal e
autobiográfica. Decisivamente, é no campo da literatura que vamos
encarando de frente os nossos fantasmas. Ou seja: na solidão de um
encontro pessoal e íntimo entre escritor e leitor.
10 Contudo, como observa Eduardo Lourenço, “apesar de esses
romancistas que viveram a guerra de África, salvarem a honra do
convento, não foram as suas obras sobre os célebres acontecimentos
africanos que lhes trouxeram qualquer aura. Essa parte da sua obra,
têm de vivê-la como exterior às obras que os consagraram e tiveram
pouco sucesso junto do público metropolitano, como A Costa dos
Murmúrios de Lídia Jorge, ou a grande contra-epopeia de Lobo
Antunes, As naus” (Lourenço, 1999: 221).
11 Por seu lado, tanto o cinema como a televisão, em clara oposição ao
que se verifica em países que viveram experiências idênticas, pouco
se interessaram por esse tema. Destaque para Um adeus português de
João Botelho, Non ou a vã glória de mandar, de Manoel de Oliveira, e Ao
Sul de Fernando Matos Silva, no primeiro caso, e para a peça Um jeep
em segunda mão de Fernando Dacosta, e o telefilme Monsanto, de Ruy
Guerra, no segundo caso. Não tivemos ainda o nosso Coppola,
justamente porque não incorporámos as nossas tragédias, nem
sequer as vivemos como nossas, a não ser como acidentes
lamentáveis, rapidamente ocultados, porque incompatíveis com a
imagem que temos de nós como povo.
12 Nesse sentido, o regime democrático, nos 29 anos que já leva, não
conseguiu construir uma contra-imagem nacional suficientemente
consistente para opor à imagem laboriosamente construída pelo
salazarismo ao longo de 48 anos. A ideia tantas vezes repetida de que
encerrámos um ciclo histórico, “o ciclo do império”, paradoxalmente
não foi suficientemente forte para desencadear energias colectivas
de mudança e transformação radical. Bem pelo contrário, reciclámos
rapidamente esse capital, reconvertendo-o à mais poderosa e
persistente imagem de “país saudoso de si mesmo como império” na
feliz expressão de Lourenço, hoje, como ontem, mais sonhado do que
vivido.
13 O poder democrático, e seus sucessivos representantes, prisioneiro
da ficção consensualista, esgota-se na busca desesperada do que nos
liga, e nunca do que nos separa. Sem coragem nem arrojo, limita-se a
ir a reboque de pressões e de influências que surgem quer da
sociedade civil, quer da instituição militar, compreensivelmente a
mais dilacerada e ainda hoje profundamente dividida por essa
guerra. Em nome do consenso e da pacificação, acolhe iniciativas da
Liga dos Combatentes, como a que culminou no primeiro acto
público de homenagem aos ex-combatentes do Ultramar (sic): o
monumento do Forte do Bom Sucesso. Pouco tempo depois, apoia a
cerimónia da colocação de placas com os nomes dos militares
mortos; posteriormente, a colocação da chama da pátria nesse
monumento; e, já com este governo, a colocação de dois militares de
sentinela permanente no referido monumento. Actos estes de
enorme e evidente carga simbólica, impulsionados mais pela
activíssima Associação de Comandos, do que propriamente pela
referida Liga dos Combatentes, que, tendo iniciado o processo, se viu
claramente ultrapassada.
14 Igualmente reconheceu, com um atraso incompreensível (passados
cerca de 25 anos), e sem dúvida devido ao esforço e combatividade da
ADFA (Associação dos Deficientes das Forças Armadas) e da APOIAR
(Associação de Apoio aos Ex‑Combatentes Vítimas do Stress de
Guerra), finalmente a existência de uma doença designada por
Perturbação Pós‑Traumática, vulgo stress de guerra, que, por
cálculos aproximados, atingirá cerca de 140 000 homens. Estes são
apenas dois exemplos que nos obrigam a perguntar: Se não fosse a
pressão destas associações, que de comum apenas têm uma forte
capacidade negocial (em tudo o resto com manifestas divergências),
o que faria o poder político no sentido de encarar de frente esse
verdadeiro trauma nacional?
15 Mas, limitando-nos ao universo dos militares, ou seja, a Liga dos
Combatentes e a Associação de Comandos, por um lado, e a
Associação dos Deficientes das Forças Armadas, por outro: é fácil
concluir que não as movam as mesmas razões, nem a mesma
avaliação da Guerra Colonial.
16 Ela continua, pois, a dividir-nos, como nos dividiu no passado: não
só no binómio mais simples dos pró (que os há ainda…) e dos contra,
mas antes nas complexas e várias mini‑razões, que nasceram
justamente na ausência de uma grande razão.
17 A razão do soldado de Quadrícula (tropa fandanga ou tropa pacaça,
segundo o glossário já referido) não é a mesma das Tropas Especiais.
A razão dos chefes militares (muitas vezes a guerra da cadeira, ou do
prestígio) não é a mesma dos colonos (cuja solução, em muitos casos,
era uma guerra de extermínio de todos os “terroristas”), nem sequer
a do poder político e económico central. A razão dos oficiais do
Quadro não é a mesma dos Milicianos. E, de entre estes, a razão dos
que, ideologicamente amorfos, iam à guerra para comprar o Mini,
não é a mesma dos que iam por assumidos imperativos políticos de
direita (a defesa da Pátria pluricontinental e da Civilização
Ocidental) ou então por fortes convicções de esquerda: lutar contra a
guerra, na guerra.
18 E nenhuma destas mini-razões é a razão ou sem-razão das mulheres,
quase tão silenciosas hoje como há 29 anos, tão aparentemente
resignadas ao papel que lhes estava destinado no quadro
sociocultural de uma sociedade tradicional, que condiciona com
frequência a mulher portuguesa ao desempenho de um papel
protector e maternal em relação ao homem.
19 Mas também aqui é impossível a generalização. Também na razão ou
sem‑razão das mulheres, há que fazer divisões: antes do mais, entre
as que ficaram (e que são, obviamente, a grande maioria) e as que
“foram à guerra”. Umas e outras definitivamente afectadas pessoal,
familiar e profissionalmente por essa guerra, mas não certamente da
mesma forma.
20 Para as que ficavam, o combate era em duas frentes: na metrópole,
para garantir a sobrevivência da estrutura familiar drasticamente
ferida pela ausência do namorado, do marido ou do filho; em África,
para que os laços afectivos se não quebrassem e fossem uma ajuda e
um suporte. A real dimensão desta tragédia vivida no feminino
ficaria para sempre silenciada, não fossem as marcas, escassas mas
impressivas, na literatura sobre a guerra, maioritariamente escrita
por mulheres (mas não exclusivamente) e exaustivamente
referenciada por Margarida Ribeiro, na comunicação apresentada ao
II Congresso Internacional sobre Guerra Colonial (Ribeiro, 2002).
21 Mas essa dimensão surge também referenciada em obras de carácter
testemunhal ou jornalístico, como Lágrimas de guerra de Mário
Brochado Coelho, ou na mais recente Marcas da Guerra Colonial de
Jorge Ribeiro. Em qualquer um deles é possível avaliar a fragilidade
dos laços que teimavam em ligar dois mundos completamente
distintos, e o irremediável silêncio em que se iam transformando,
apesar de todos os sacrifícios pessoais para que tal não acontecesse.
É bom que em Portugal as nossas famílias saibam quais as dificuldades inegáveis
que aqui enfrentamos, até para que mais tarde, quando voltarmos, não nos
olhem como turistas em regresso, ou como se fossemos exactamente os mesmos
que viram partir para aqui. Tenho vivido a minha parte de sofrimento. É justo
que tome parte do banquete dos homens verdadeiros,
22 diz-nos Mário Brochado Coelho no seu “diário de guerra” (Coelho,
1989: 178), para continuar mais adiante:
É o lavar dos cestos de um conjunto de infelicidades pessoais que todos os meus
familiares e amigos em Portugal estão longe de supor ou avaliar. Umas coisas não
se contam para não assustar, e outras por serem perigosas de contar, graças à
tradicional violação da correspondência. Por essas e por outras razões, acho
perfeitamente natural que nas cartas que vêm de Portugal haja sinais evidentes
de um total alheamento, cómico por vezes. (Coelho,1989: 219).
23 Este sentimento de incompreensão dos reais contornos da
experiência-limite da guerra, e das suas dramáticas consequências
na estrutura da personalidade de quem a vive, esbarra do outro lado
com uma impotência, um bloqueio, de efeitos igualmente
devastadores e irreversíveis. Escreve Lobo Antunes, em Os Cus de
Judas:
Tenho uma filha que não conheço, uma mulher que é grito de amor sufocado
num aerograma, amigos cujas feições começo inevitavelmente a esquecer, uma
casa mobilada sem dinheiro que não visitei nunca, tenho vinte e tal anos, estou a
meio da minha vida, e tudo me parece suspenso à minha volta, como as criaturas
de gestos congelados, que posavam para os retratos antigos. (Antunes, 1979)
24 Essa vida interrompida, suspensa, congelada, só podia suscitar nas
mulheres que ficaram duas respostas: a da resignação ou a da
revolta. Sabemos que a primeira foi, por razões culturais,
económicas, sociológicas, a mais comum nas mulheres portuguesas,
sobretudo das classes mais baixas. Elas não poderiam suportar o
remorso e a culpa de aumentarem ainda mais o sofrimento e o
desespero. “Aturei um cabo, durante uma noite inteirinha, de carta
na mão e em choro convulso e contínuo, por a namorada ter cortado
com ele. Outro, de outra companhia, não suportou notícias desse tipo
e suicidou-se” (Ribeiro, 1999: 287). Por isso engoliram o silêncio e as
lágrimas que se calhar lhes pareciam obscenas comparadas com as
dos companheiros.
Dessa época guarda a lembrança muito viva das mulheres que lhe escreviam, as
noivas e viúvas de África. E das esposas que não podiam abrir a boca em casa e
desabafavam no papel, derramando as dores do quotidiano. Eram mulheres
muito sofridas, ignoradas, oprimidas pela resignação e pelo medo. (Caires, 1994:
57)
25 São as novas vítimas da guerra. Muitas atingidas por essa ferida
invisível que afecta milhares de ex-combatentes: o stress de guerra.
Invisível porque ela própria se disfarça e mascara com outras
patologias (depressão, alcoolismo, estados de pânico, fobias, etc).
Invisível também, porque os seus padecentes e famílias, e mesmo o
próprio Estado, tudo fazem para a esconder como pecado ou culpa
secreta, que se deve expiar no silêncio anónimo, ou mesmo secreto,
dos hospitais psiquiátricos ou dos consultórios médicos, quando não
mesmo na mais funda solidão.
26 Solidão apenas mitigada nos convívios regulares de batalhões ou
companhias, a que comparecem, tantas vezes surpreendidos pela
força desse apelo e dos sentimentos tão opostos e desencontrados
que ele encerra: uma inquietante mistura de dor e de felicidade.
Naquilo que muitos vêem como “catarse colectiva”, como ajuste de
contas colectivo, exorcização de fantasmas, extravasar de
recordações paradoxalmente traumáticas e pacificadoras, junto dos
únicos que as podem entender: os camaradas e amigos que com eles
desceram aos infernos do ódio e da violência, e nessa estranha
viagem descobriram o verdadeiro sentido da coragem, da abnegação,
da solidariedade e do companheirismo. Como se do pior nascesse o
melhor, num percurso dramaticamente dividido entre a náusea e o
encantamento, entre a angústia e o sonho. É um pacto de vida e de
morte, indestrutível e intransmissível.
27 Por isso as mulheres ficam de fora desse ritual. Mesmo as poucas
que os acompanham, como refere Jorge Ribeiro:
A generalidade das mulheres e dos filhos mantêm-se na confraternização entre
uma postura atónita pelo que ouvem contar e a figura de corpo presente,
constatando em muitos casos o extravasar de mais um ano de assaltos à
memória, ao longo do qual voltaram a acumular-se pequenos e grandes
recalcamentos. Traumas de guerra cuja explosão e exteriorização por vezes são
essas mesmas mulheres e esses mesmos filhos a suportar e a sofrer, saldando‑se
afinal, por novas e inocentes vítimas da guerra colonial” (Ribeiro, 1999: 287)
28 Inocência que nem como tal pode ser vivida, porque se esconde por
detrás de uma culpa absurda e incompreensível, o que leva uma
delas a desabafar “gostava de ter vivido com ele tudo o que ele por lá
passou” (Ribeiro, 1999: 286).
29 E, na verdade, muitas foram as mulheres que viveram a guerra, não
certamente pelas mesmas razões, ou sequer do mesmo lado.
30 Começando naturalmente pelo famoso Movimento Nacional
Feminino, a única iniciativa concertada e consequente do regime, no
sentido de vencer a proverbial apatia e alheamento das mulheres
(contrariando até a imagem tradicional), fazendo delas uma coluna
avançada do exército português. Foi sem dúvida a face mais visível, e
até espectacular, da participação das mulheres na guerra, pelo que
tem merecido a atenção de vários estudiosos, existindo hoje um
razoável acervo para a sua história e acção efectiva. Num balanço
muito sintético, podemos dizer que o projecto que nasceu da vontade
de Cecília Supico Pinto, com o apoio entusiástico de Salazar e a
benção de Cerejeira, e definido à partida como “um movimento
independente do Estado, sem ser político, apenas patriótico”, se
transformou numa poderosa máquina de propaganda, e numa
fantástica rede de informação e contra-informação. O MNF
promoveu peditórios nacionais e campanhas como a célebre
Operação Saudade, instituiu os famosos aerogramas, e chegou a
interferir na própria esfera estritamente militar, tendo sido por sua
acção que foi aumentado o número de helicópteros e aviões na zona
de intervenção, que começaram a efectuar-se evacuações nocturnas,
e que foi alterado o transporte de feridos entre Cabo Delgado e
Lourenço Marques.
Curiosamente não foi o controverso sentido altruísta e aparentemente ingénuo
da venda de senhas e angariação de donativos que manchou desde cedo a sua
imagem. As operações no terreno, “mexendo” perigosamente com o sentir mais
íntimo do soldado, abalaram irremediavelmente a torre das boas intenções do
MNF, e o atrevido maternalismo desacreditou a instituição. Repugnava sobretudo
o pretensiosismo ridículo e insuportável de quem se convencia estar a substituir
a mãe, a esposa, a noiva. Para mais em momentos de infortúnio, quando
desfilavam pelas enfermarias com saquinhos de rebuçados, cigarros, ladrilhos de
marmelada, e abraços da família (que não conheciam) para os rapazes mutilados.
(Ribeiro, 1999: 92‑93)
31 Não devemos iludir-nos, contudo, com a propagada popularidade
desta organização: Mais de 80 000 mulheres, integradas em 22
secções, dirigidas por uma Comissão Central. Muitas delas aderiam
não por convicção política clara, mas por uma reacção quase
instintiva de solidariedade e de humanidade, que o poder tão bem
soube explorar, ou mesmo por razões bem menos elevadas e
altruistas: a esperança de conseguirem o mesmo que as chefes do
Movimento – livrar os filhos da tropa, ou pelo menos mantê-los na
retaguarda, “sem ir lá fora”. Ou ainda conseguir-lhes emprego após o
período de mobilização.
32 Igualmente, tal sucesso não foi extensível às outras duas
organizações ligadas ao MNF: as Madrinhas de Guerra e a Cruz
Vermelha Portuguesa. Paradoxalmente, a primeira, tendo sido a
iniciativa de maior notoriedade do referido movimento, foi,
simultaneamente, a razão do seu declínio:
Perderam, portanto, o controlo numa das suas principais instituições – as
madrinhas de guerra. Elas deixaram de ser as confidentes e as encorajadoras,
para passarem a ser mulheres jovens, alegres e namoradeiras. As revistas
femininas mais lidas encheram-se de apelos de potenciais afilhados e a guerra
passou a ser falada por outras vozes e com outras palavras – entendida como
desnecessária, denunciada como tal. (Espírito Santo, 2002: 333)
33 Quanto à Cruz Vermelha, apesar de mais discreta e menos
comprometida politicamente, não deixava de depender directamente
do governo e das suas directrizes.
34 O mesmo não se passou com esse pequeno grupo constituído pelas
enfermeiras pára‑quedistas, verdadeiras heroínas que levaram o
cumprimento das suas missões humanitárias de assistência aos
feridos ao limite da quase imolação. Mas o seu número foi
reduzidíssimo.
Durante a guerra inscreveram-se 126 concorrentes para os nove cursos que
foram ministrados em Tancos. Mas só 47 obtiveram o brevet. O Quadro de
Enfermeiras pára‑quedistas era de 21 postos (9 oficiais e 12 sargentos) mas nunca
esteve completo. O máximo que registou ao serviço foram 14. (Ribeiro, 1999: 100)
35 O mesmo se não passou igualmente com as missionárias de variadas
congregações: Filhas de S. Paulo, dos Missionários do Espírito Santo
de Angola, Congregação das Irmãs de Nossa Senhora de África, as
Irmãs Brancas, a Sociedade Missionária Portuguesa de Cucujães, etc.
As missionárias portuguesas, juntamente com muitas estrrangeiras,
lutaram por ideais humanitários, em obediência estrita à sua
consciência humana e religiosa, o que lhes custou pressões e
ameaças várias, a prisão, a expulsão e até a própria morte. Tiveram a
coragem de se juntar aos padres italianos para denunciar um dos
episódios mais negros da Guerra Colonial: o massacre de Wiriamu.
36 E há, finalmente, as que foram à guerra para acompanhar os
maridos mobilizados, e que também o não fizeram todas pelas
mesmas razões: algumas refugiaram-se das agruras do clima (em
sentido real e figurado!) nos vários Stella Maris coloniais, e fizeram a
sua guerra privada, tricotando enredos, medos e segredos. Eram as
mulheres do cabelo passado a ferro, ou em forma de colmeia, de
Lídia Jorge, “as que esperavam em fila que os seus homens
desempenhassem um papel histórico naquela marcha” (Jorge, 1988:
114). Mas outras lutaram por compreender a estranha realidade em
que aterraram, não só por razões afectivas, mas por imperativos de
compromisso ético e político. Dessas, muitas exerceram as suas
profissões, na quase esmagadora maioria de professoras. Pelas
condições concretas de trabalho, que, apesar de não totalmente
liberto de constrangimentos, as fazia contactar com uma realidade
de certa forma estranha ao puro universo militar dos maridos, é
muito possível que se tenham e os tenham confrontado com
experiências sociais e humanas do colonialismo muito para além da
máquina de guerra a que eles se confinavam. Naturalmente, uns mais
do que outros, mais uma vez conforme as suas razões.
37 O silêncio em que ainda permanecem estas mulheres parece-me
muito diferente do silêncio das que cá ficaram. Se o destas me parece
tragicamente próximo da resignação e da impotência, pelo assombro
e pelo desconcerto de um dia acordarem junto de um estranho, o
daquelas pode conter chaves para decifrar as estranhas
metamorfoses da guerra no corpo e na alma dos que acompanharam
até África.
38 Além disso, como muito bem observa Margarida Ribeiro, essas
mulheres
registaram essa experiência, ouviram, observaram, traçaram relações com o
poder, e foram revelando um olhar-outro, elaborando uma razão-outra, que se
tornou uma ferramenta fantástica de representação das falsas razões do conflito
bélico. (Ribeiro, 2002: 220)
39 “Dizem que os reis não têm memória. Parece que os povos têm
muito menos ainda”, proclamava Salazar em 1930. E se houve um
traço genialmente perverso na ditadura que nos dominou durante 48
anos, foi a sábia gestão do silêncio. Um silêncio que Marcelo Caetano
apodava de “seriedade e honestidade”, em contraste com o “teatro”
do congénere regime fascista italiano.
40 Passados todos estes anos, a nossa opinião pública parece ainda
sujeita a inquietantes princípios de secretismo e ocultismo que,
aliados a estratégias várias de branqueamento da história, conduzem
a uma total incapacidade de compreensão e transmissão do passado
às novas gerações. As várias razões ou sem-razões das mulheres
envolvidas de alguma maneira na Guerra Colonial não podem ser
dispensadas, quer para a história da tragédia, quer para a da sua
negação que nos trouxe o 25 de Abril. Porque, como nos diz ainda
Lídia Jorge, “se ninguém fotografou, nem escreveu o que aconteceu
durante a noite, acabou com a madrugada. Não chegou a existir.”
(Jorge, 1988: 215).
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Revista Crítica de Ciências Sociais, 38, 11‑39.
RESUMOS
O texto pretende denunciar as várias camadas de silêncio com que a sociedade portuguesa
fugiu ao encontro inevitável com a maior tragédia da sua contemporaneidade: a Guerra
Colonial. A estratégia de ocultação, que oscila frequentemente entre o recalcamento e a
denegação, atinge, quer os seus directos intervenientes (os militares mobilizados), quer as
instituições do poder “político” e outro, quer sobretudo as suas vítimas mais ignoradas: as
mulheres. Afastadas naturalmente da máquina de guerra, mas profundamente implicadas
nos seus efeitos devastadores, o seu silêncio torna duplamente absurdo e incompreensível
esse momento traumático da nossa história recente.
The aim of this paper is to expose the different layers of silence that have enabled
Portuguese society to evade the inevitable encounter with the greatest tragedy of its
contemporary history: the Colonial War. The strategy of concealment, which frequently
swings between repression and denial, touches both its direct participants (the mobilized
military) and the established institutions, as well as, especially, its most ignored victims:
women. Naturally excluded from the machinery of war, though deeply involved in its
devastating effects, the women’s silence renders this traumatic moment of our recent
history doubly absurd and incomprehensible.
Cet article tente de dénoncer les diverses strates du silence grâce auxquelles la société
portugaise a fui à la rencontre inévitable de la plus grande tragédie de sa contemporanéité:
la Guerre Coloniale. La stratégie d’occultation, qui oscille fréquemment entre le
refoulement et la dénégation, affecte soit ses intervenants directs (les militaires mobilisés),
soit les rapports entre les institutions du pouvoir “politique” et l’autre, soit surtout les
victimes les plus ignorées de la Guerre Coloniale: les femmes. Eloignées naturellement de la
machine de guerre, mais profondément impliquées dans ses effets dévastateurs, leur silence
rend doublement absurde et incompréhensible ce moment traumatique de notre histoire
récente.
ÍNDICE
Mots-clés: Guerre coloniale portugaise - rôle de la femme, société portugaise
Keywords: Portuguese Colonial War – women’s role, Portuguese society
Palavras-chave: Guerra colonial portuguesa - papel da mulher, sociedade portuguesa
AUTOR
MANUELA CRUZEIRO
É mestre em Filosofia Social e Política com uma tese intitulada Mito, política e sociedade: o caso
português. É investigadora do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de
Coimbra. Estudiosa da obra de Eduardo Lourenço, publicou Eduardo Lourenço – o regresso do
corifeu e Tempos de Eduardo Lourenço – Fotobiografia (em co-autoria com Maria Manuel
Baptista). Outras obras: O pulsar da revolução (em co-autoria com Boaventura de Sousa Santos
e Natércia Coimbra); Costa Gomes, o último marechal; 25 de Abril – Outras maneiras de contar a
mesma história (em co-autoria com Augusto Monteiro); Vasco Gonçalves, Um general na
revolução; e Maria Eugénia Varela Gomes – Contra ventos e marés.
mcruzeiro@mail.pt
Amor em tempo de guerra: Guerra
Colonial, a (in)comunicabilidade
(im)possível 1
Love in a time of war: The (im)possible (in)communicability of the Colonial
War
L’amour en temps de guerre : la Guerre Coloniale, la (in)communicabilité
(im)possible
Helena Neves
BIBLIOGRAFIA
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Fondation Nationale des Sciences Politiques.
NOTAS
1. O presente trabalho tem, no essencial, uma natureza empírica, visando fornecer a base
para uma problematização e fundamentação da análise, que urge realizar, dos efeitos do
tempo da Guerra Colonial nas relações amorosas.
2 Referidos por Françoise Thébaud (1995: 32).
3 Além dos estudos anteriormente referidos, salienta-se ainda os trabalhos de Knibiehler
(1977) e Bard (1999, 2001).
4 “Porque camandro é que se não fala nisto? Começo a pensar que o milhão e quinhentos
mil homens que passaram por África não existiram nunca e que lhe estou contando uma
espécie de romance de mau gosto impossível de acreditar...” (Antunes, 1979: 67).
5 O trabalho que suscitou estas entrevistas visava ser publicado na revista Mulheres que,
entretanto, interrompeu a sua edição em 1989. Retomou-a depois durante um ano, mas, no
início de 1991, deixou, em definitivo, de publicar‑se.
6 Recolhi também dois depoimentos de mulheres do meio rural, os quais, não sendo
representativos como amostra das mutações desencadeadas pela guerra no espaço rural,
permitem a hipótese de a problemática em causa se colocar de forma ainda mais densa
neste contexto. Cito o exemplo de uma mulher de Portel. Casou muito nova, quando da
mobilização do namorado. O marido morreu em Angola em 1973, deixando-a viúva aos 22
anos. Passava os trinta anos quando a entrevistei e continuava de negro, com xaile
dissimulando o corpo, lenço cobrindo os cabelos, meias sem transparência, blusa fechada de
mangas compridas, censurada por vizinhas porque estava no interior de sua casa de porta
aberta, com o lenço colocado para trás. Outra mulher, agricultora de Ansiães, contou que,
com a ida do marido para a guerra, pela primeira vez passou a ir vender os animais à feira
do gado, aprendeu a passar cheques, meteu-se em “coisas de homens”.
7 Ao contrário das entrevistadas, alguns dos entrevistados manifestaram o desejo de se
omitir o nome e outros elementos. Daí ter-se optado por um critério comum de
identificação dos ex‑combatentes, referindo apenas a patente e a colónia onde ocorreram as
comissões.
8 Refira-se que, nomeadamente na sua imprensa e nas intervenções na rádio, o Movimento
Nacional Feminino aconselhava as famílias a não irem despedir-se, para evitar os prantos de
“abjectas carpideiras” (Presença, orgão oficial do MNF, n.º 1, 1963: 6) suspeitas de serem
infiltradas, pois as verdadeiras mães portuguesas abençoariam os filhos sacrificados pela
inteireza da pátria (Neves, 2001: 80). A publicação na imprensa de fotografias das partidas
seria progressivamente condicionada, vindo a ser interdita em 1969.
9 “Carta Aberta ao Caro Militar”, folheto Por Deus e pela Pátria, Lourenço Marques, Ed. da
Comissão Provincial do MNF, Moçambique, Maio de 1963.
10 O desgaste da solidão, da saudade, nos combatentes tornou-se de tal modo problemático
que, em 1969, o Estado criaria condições de incentivo para a deslocação das famílias dos
oficiais e, em Agosto desse ano, estipulava-se que as famílias deveriam permanecer no
“território ultramarino” pelo menos doze meses.
11 Num número da Presença, surge uma fotografia deveras eloquente: mulheres jovens,
caravana do Movimento, num palco, em Bafatá, na Guiné, poses nitidamente coquetes frente a
uma multidão de militares de braços estendidos. Note-se que o Movimento Nacional
Feminino, desenvolverá um investimento de compensação emocional, alimentando
fantasias e o sentimentalismo dos combatentes. A Guerrilha “insere duas páginas de
telenovelas e imagens de misses estrangeiras e calendários de jovens em biquini que fariam
fugir dirigentes da OMEN e corar as da Mocidade Portuguesa Feminina” (Neves, 2001:92).
12 Companhias inteiras foram atingidas pela blenorragia. Entrevistados da Guiné falam de
como o pénis, inchado, infectado, era entalado em talas de madeira.
13 Relativamente a relacionamentos amorosos com mulheres das colónias, relatados pelos
entrevistados como não correspondendo a vivência própria mas por conhecimento de casos,
na insinuação dos afectos parece verificar-se menor efemeridade na Guiné, meio mais
pequeno do que em Moçambique ou Angola, dada a vastidão do território nestas colónias, a
dispersão dos aquartelamentos, a maior mobilidade das tropas e uma prostituição branca
que parece mais frequente.
RESUMOS
O período da Guerra Colonial (1961-1974) produziu em Portugal profundas alterações de
ordem demográfica, económica, social e cultural. Mas se o que é mensurável se encontra,
hoje em dia, mais ou menos visível, há uma vertente que praticamente permanece por
estudar: as vivências da intersubjectividade, dos afectos e das relações amorosas em tempo
de guerra. O que se apresenta é um levantamento empírico desta problemática que urge
analisar.
The period of the Colonial War (1961-1974) produced deep demographic, economic, social
and cultural changes in Portugal. But if what is measurable is currently more or less visible,
there is another dimension that remains practically unstudied: intersubjective experiences,
emotions and love relationships during the time of the war. This paper presents an
empirical survey of this problematic which needs to be further analyzed.
ÍNDICE
Mots-clés: Guerre coloniale portugaise, comportement sexuel - aspects socio-culturels,
relations interpersonnelles
Keywords: Portuguese colonial war, sexual behaviour – sociocultural aspects, interpersonal
relations
Palavras-chave: Guerra colonial portuguesa, comportamento sexual - aspetos
socioculturais, relações interpessoais
AUTOR
HELENA NEVES
Helena Neves é mestre em Sociologia Aprofundada da Realidade Portuguesa pela
Universidade Nova de Lisboa. É professora de Pensamento Contemporâneo e de Filosofia e
Deontologia na Universidade Lusófona e investigadora do Centro de Estudos
Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra. Publicou recentemente: O
Estado Novo e as mulheres: o género como investimento ideológico e de mobilização. Lisboa: Museu
República e Resistência, 2001.
“Até ao fim do mundo”: Amor,
rancor e guerra em Hélia Correia
“To the end of the world”: Love, resentment and war in Hélia Correia
“Jusqu’à la fin du monde” : amour, rancœur et guerre chez Hélia Correia
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RESUMOS
A peça de teatro de Hélia Correia, O rancor: Exercício sobre Helena, oferece a base para uma
análise textual do entendimento clássico e moderno do papel da mulher no contexto da
guerra. As mulheres, na versão contemporânea de Hélia Correia, reproduzem e acentuam
alguns dos indícios já disseminados pela tragédia e epopeia gregas, nomeadamente a
problemática da sexualidade feminina e da paixão, enquanto forças contrapostas ao instinto
belicoso masculino, por aquelas eventualmente derruido. A leitura aqui apresentada
focaliza aspectos variados da justaposição dos sexos no contexto da guerra: nomeadamente,
a dinâmica entre mãe e filha enquanto agentes de um feminino solidário em confrontação
com o imperativo belicoso masculino; a relação mãe-filho conforme inscrita no dilema
edipiano filial de opção entre o pai guerreiro e a mãe atavicamente amada; a questão da
maternidade/paternidade e do sacrifício voluntário ou recusado de filhos e filhas aos
interesses da guerra; e o problema da representação passional do inimigo enquanto objecto
de desejo e figuração do ideal do bem-amado.
Hélia Correia’s play O rancor: Exercício sobre Helena is the basis for a textual analysis of both
classical and modern understandings of the role of women in the context of war. In Hélia
Correia’s contemporary version, women reproduce and highlight some of the signs already
present in Greek tragedy and epic poetry in what concerns the problematic of female
sexuality and passion, as countervailing forces to the male warlike instinct, which they
eventually overthrow. The reading presented here focuses on different aspects of the
juxtaposition of the sexes in the context of war: namely, the dynamic between mother and
daughter as agents of female solidarity in confrontation with the male warlike imperative;
the mother-son relationship as inscribed in the filial oedipal dilemma of choice between the
warrior father and the atavistically loved mother; the question of maternity/paternity and
of the voluntary or refused sacrifice of sons and daughters to the interests of war; and the
problem of the passional representation of the enemy as an object of desire and figuration
of the ideal of the beloved.
La pièce de théâtre d’Hélia Correia, La rancœur : exercice sur Helena, sert ici de fond pour une
analyse textuelle de l’appréhension classique et moderne du rôle de la femme dans le
contexte de la guerre. Les femmes, dans la version contemporaine d’Hélia Correia,
reproduisent et relèvent certains indices disséminés par la tragédie et l’épopée grecques,
notamment la problématique de la sexualité féminine et de la passion en tant que position
opposée à celle de l’instinct belliqueux masculin, qu’elles abolissent parfois. La lecture
présentée ici met en relief les divers aspects de la juxtaposition des sexes dans le contexte
de la guerre, et surtout la dynamique des rapports entre mère et fille en tant qu’agents
d’une féminité solidaire dans sa confrontation à l’impératif belliqueux masculin. On
examinera de même la relation mère-fille inscrite dans le dilemme oedipien filial de l’option
entre le père guerrier et la mère activement aimée, ainsi que la question de la
maternité/paternité et du sacrifice, qu’acceptent volontairement ou refusent les fils et les
filles, aux intérêts de la guerre. Pour finir, on abordera le problème de la représentation
passionnelle de l’ennemi en tant qu’objet de désir et de figuration de l’idéal du bien-aimé.
ÍNDICE
Mots-clés: Hélia Correia, amour, sexualité, féminilité, guerre – rôle de la femme, théâtre,
littérature
Palavras-chave: Hélia Correia, amor, sexualidade, feminilidade, guerra - papel da mulher,
teatro, literatura
Keywords: Hélia Correia, love, sexuality, femininity, war – women’s role, drama, literature
AUTOR
MARIA MANUEL LISBOA
Roberto Vecchi
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NOTAS
1. Sobre a problemática do testemunho como resto na literatura da Guerra Colonial,
permito-me remeter para Vecchi, 2001a: 317-327, e Vecchi, 2001b: 389-399. Para uma crítica
da perspectiva de qualquer modo inovadora de Agamben, onde em relação ao nome de
Auschwitz “a toponímia se torna antonomásia”, veja-se Mesnard e Kahan, 2001: 55.
2. Cf. e.g. autores como Fernando Assis Pacheco ou José Bação Leal.
3. De acordo com a leitura criptofórica de Abraham e Torok sobre a incorporação do
trauma como cripta (cf. Abraham e Törok, 1987: 247).
4. Ambos derivam do grego sêma , que indica a pedra tumular.
5. Sobre a importância da problematização entre falta e perda para a distinção entre
traumas trans?históricos e históricos, cf. La Capra, 2001: 43-85.
6. Sobre a relação memória-história em A Costa dos Murmúrios , cf. em particular a
contribuição de Paulo de Medeiros (1999: 61-77) e também a sua instigante leitura
contrastiva do uso da memória no romance da guerra de Lobo Antunes e Lídia Jorge em
Medeiros, 2000: 47-76.
7. Relativamente a essa diferença entre o primeiro livro “Os Gafanhotos” e o segundo livro
de Eva em A Costa dos Murmúrios , Helena Kaufman foi chamando a atenção para a
“alternância da voz narrativa” (Kaufman, 1992: 42).
8. Lettre à M.r Chauvet sur l’unité de temps et de lieu dans la tragédie (1823), que decorreu da
experiência de composição duma tragédia “moderna” como Il conte di Carmagnola (1820). Cf.
Manzoni, 1999.
RESUMOS
Se a guerra é por excelência o território do androcêntrico, a experiência traumática da
guerra e a sua representação pelo olhar feminino enxertar‑se‑ão numa margem periférica,
numa orla de deslocação da própria experiência traumática. Deste ponto de vista, o feminino
torna-se por excelência um “olhar testemunhal”, sendo a possibilidade sobrevivente,
residual, da impossibilidade do testemunho integral diante do evento traumático. Uma
deslocação esta que evidencia a não coincidência entre experiência e imagem, própria do
testemunho, em que lógos e memória femininos se tornam portadores contundentes de um
outro lógos, duma contra‑memória. Os romances de Wanda Ramos e Lídia Jorge são
recolocados também na problemática trágica da aporia testemunhal, mostrando como uma
reflexão crítica sobre o trágico moderno pode proporcionar uma perspectiva mais
compreensiva de uma literatura problemática – pelo seu corpo a corpo com a história –
como a da Guerra Colonial.
If war is primarily the territory of the androcentric, the traumatic experience of war and its
representation by the feminine eye insert themselves in a peripheral margin, a border of
dislocation of the traumatic experience itself. From this point of view, the feminine becomes
a “witnessing eye” par excellence, the surviving, residual possibility of the impossibility of
fully bearing witness to the traumatic event. This dislocation reveals the non-coincidence
between experience and image, characteristic of the testimony, in which feminine logos and
memory become trenchant carriers of another logos, a counter-memory. The novels of
Wanda Ramos and Lídia Jorge are also resituated in the tragic problematic of the testimonial
aporia, showing how a critical reflection on the modern tragic enables a more inclusive
view of a problematic literature – because of its struggle with history – such as that of the
Colonial War.
AUTOR
ROBERTO VECCHI
Ana de Medeiros
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NOTAS
1. A autora agradece ao Dr. Rogério Bonifácio a sua excelente tradução do original inglês
deste texto.
2. Em 1994, num ensaio sobre a relação entre história e ficção nas novelas de Djebar, a
critica Beïda Chikhi escreve : “Encarada numa perspectiva de renovação do estatuto da
feminilidade, a obra romanesca de Assia Djebar não pode deixar de se confrontar com estes
sistemas que não cessaram de ver, por exemplo, na revolução de 1954 uma revolução total.
A autora, naturalmente alinhada com esta ideia, depressa a abandonou, tal como milhares
de outros. ‘Os que pensavam que a libertação nacional [...] traria consigo a libertação da
mulher perderam as ilusões depois da independência da Argélia [...]’” (Khadda, 1994: 29).
3. “Para além disso, quando as mulheres, durante a Revolução Francesa e ao longo do
século XIX, tentaram organizar-se publicamente de acordo com os seus interesses,
arriscaram?se a violar os princípios constitutivos da esfera pública burguesa: em vez do
singular, puseram o plural, em vez de desinteresse, revelaram-se interessadas. Pior ainda, as
mulheres arriscaram?se a perturbar a organização sexualmente diferenciada da natureza,
da verdade e da opinião que lhes atribuía um lugar no domínio privado e doméstico, mas
não no domínio público.” (Landes, 1995).
4. É importante sublinhar a forma como se dispõem as primeiras duas partes do romance.
Na primeira parte, apenas as secções respeitantes à história da jovem e da sua família são
providas de título. As outras secções, onde a narradora trata dos problemas da colonização
da Argélia, são apenas numeradas. Porém, na segunda parte, esta situação inverte-se: os
títulos aparecem nas secções históricas, sendo as secções autobiográficas agora numeradas.
A forma como o autobiográfico e o histórico estão entretecidos põe em relevo a ligação
entre eles. O político e o privado estão, assim, inexoravelmente ligados.
5. Aparentemente, isto deve-se em parte ao facto de ela redescobrir o sentido secreto
imerso na língua (árabe) da mãe, recordada da primeira infância quando estas palavras não
tinham significado claro: “Silenciosa, separada das palavras da minha mãe por uma
mutilação da memória, percorri as águas escuras do corredor como uma miraculada, sem
me aperceber das muralhas [...]. Uma vez iluminadas as palavras – estas mesmas que o
corpo desvelado descobre – cortei as amarras.” (16-17). Num outro contexto, seria
interessante explorar as ligações entre árabe e francês, maternidade e paternidade, que
Djebar aqui pressupõe.
RESUMOS
Dentro do tema geral da incompatibilidade entre a vida privada e a vida pública, decidi
concentrar a minha atenção numa série de elementos comuns aos dois textos em análise e
que explicam, em parte, a sua qualidade subversiva, num sentido político e histórico: a ideia
das representações dominantes da mulher como falsas representações, o restaurar do
passado da auto-representação feminina e o reconhecimento da necessidade de representar
as diferenças entre mulheres. O trabalho de Lynn Hunt sobre a Revolução Francesa servirá
como espaço teórico para início da minha análise.
Within the general theme of the incompatibility between private and public life, this paper
focuses on a series of elements that are common to both texts to be analyzed here and that
partly explain their subversive quality, in a political and historical sense: the idea of
dominant representations of woman as false representations, the restoring of the past of
female self-representation, and the recognition of the need of representing the differences
among women. Lynn Hunt’s work on the French Revolution provides the theoretical basis
for the beginning of this analysis.
A l’intérieur du thème général de l’incompatibilité entre la vie privée et la vie publique, j’ai
décidé de porter mon attention sur une série d’éléments communs aux deux textes objets
de mon analyse et qui expliquent en partie leur qualité subversive, dans un sens politique et
historique: l’idée des représentations dominantes chez la femme comme de fausses
représentations, celle aussi de restaurer le passé de l’auto-représentation féminine et la
reconnaissance de la nécessité de représenter les différences entre les femmes. Le travail de
Lynn Hunt sur la Révolution Française servira ici du cadre théorique pour le début de mon
analyse.
ÍNDICE
Palavras-chave: Lídia Jorge, Assia Djebar, feminismo, história de Portugal, representação
da mulher, literatura
Keywords: Lídia Jorge, Assia Djebar, feminism, history of Portugal, representation of
women, literature
Mots-clés: Lídia Jorge, féminisme, histoire du Portugal, représentation de la femme,
littérature
AUTOR
ANA DE MEDEIROS
Professora de Literatura Francesa e de Literatura Comparada na Universidade de Kent, em
Canterbury, Reino Unido. Les visages de l’autre (1996) consagrou Ana de Medeiros como
especialista em Marguerite Yourcenar. Recentemente organizou, em Canterbury, uma
conferência internacional sobre a autora, intitulada Ecritures de l’exil e foi organizadora do
volume de actas. Ana de Medeiros é autora de vários artigos sobre escrita de mulheres do
século XX; o seu próximo livro intitula-se Identity in Exile: A study of the works of Conde, Djebar,
Hebert and Yourcenar.
AdeMEDEIROS@aol.com
Dois olhares e uma guerra
Two views and a war
Deux regards et une guerre
Olhares em confluência
16 Como sabemos, Noémia só escreve até 1951, ano em que deixa
Moçambique, como ela diz, “porque estava muito visada pela Pide”
(Chabal, 1994: 118). Assim, sua produção não se liga diretamente aos
anos da guerra, ao contrário de Alda que a vive e representa de modo
intenso, até o estalar das “últimas balas coloniais”. Depois, ela cobre
o tempo da libertação e exalta o sentido histórico da conquista da
independência. É o que mostram os trechos de seus poemas a seguir:
Cinco séculos estrangeiros no solo pátrio
Regressamos do exílio da exploração
Expulsando com a força do povo
O colosso colonial e seus sequazes.
(Santo, 1978: 181)
Na grande praça do povo
Clarins em regozijo
Ressoam soltando amarras.
Ó povo do meu país
O hino da independência
Cala fundo...
Cala fundo...
(ibid.: 161)
17 O fato dessas duas vivências poéticas temporalizadas distintamente
leva a dois estágios diferentes do olhar sobre a guerra. Para Noémia,
desejo e esperança. Para Alda, desejo, esperança, realização e vitória.
Não obstante isso, há muitos pontos de confluência de seus olhares
que perspectivam a mesma experiência histórica, no decorrer dos
anos 50, quando compartilham a ebulição do projeto nacionalista
africano em Lisboa, freqüentando os espaços onde tal projeto se
fomentava, como a casa da tia de Alda, Andreza; o Centro de Estudos
Africanos; a Casa dos Estudantes do Império; etc. Como diz Alda, em
entrevista a Michel Laban: “Criámos encontros com mulheres,
através da Maria Vilhena Rodrigues, e Noémia de Sousa, Rute Neto e
outras” (Laban, 2002: 77).
18 A teia, sempre uma simbolização tão feminina, se entretece com
mais vigor com os fios de outras mulheres mobilizadas pelo mesmo
sonho. A cumplicidade entre Alda e Noémia, partes da teia, acaba por
se projetar no modo como passam a conceber o texto, nele
imprimindo suas marcas históricas, como se fossem digitais. Tais
marcas assim digitalizadas se deixam entrever tanto na própria
forma de pensar e realizar o poema como materialidade discursiva,
quanto nos temas sobre os quais se debruçam e cujo traço mais
significativo talvez esteja na ânsia de contribuir para a criação de
uma nova humanidade, no que fazem eco, por exemplo, com Fanon
para quem “a descolonização é, em verdade, criação de homens
novos” (1979: 26).
19 Pelos textos de Alda e Noémia, podem-se perceber pontos de
convergência no que concerne a suas carpintarias poéticas onde a
dissidência se faz a principal meta do movimento de produção
artística. Há um estremecimento nos africanos padrões
versificatórios femininos de modo geral. A leitura das antologias
então produzidas, principalmente pela CEI, e mesmo a análise do
boletim Mensagem, por ela publicado, são disso uma evidência que
aqui não cabe explorar. Por agora, basta insistir no fato de que seus
textos se fazem dissidentes, de certo modo declarando também uma
guerra no plano escritural.
20 A emoção dos sujeitos líricos, a sua rebeldia e insubordinação
impedem qualquer pacto de submissão na forma poética. Os poemas
ora têm um ritmo longo e frenético, ora se encurtam e como que os
versos estalam como se fossem chicotes ou ruído de bala. Não há
qualquer rigidez no esquema rímico e na estrofação. Por outro lado,
as línguas nacionais africanas reforçam a dissidência, a rebelião e o
reforço da alteridade:
Com sonhos de melodia no fundo dos olhos abertos
somos os muchopes de penas saudosas nos chapéus de lixo;
zampunganas trágicos – xipócués vagos nas noites munhuanenses,
e mamparras coroados de esperança, e magaíças,
e macambúzios com seu shipalapala ecoando chamamentos...
[...] somos os que não têm lugar na Vida, ah na Vida que se abre luminosa,
com cada dia de pétala!
(Sousa, 2001: 41-42)
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RESUMOS
A partir da leitura das obras poéticas Sangue negro (2001) e É nosso o solo sagrado da terra
(1978), respectivamente de Noémia de Sousa e Alda Espírito Santo, o texto procura
surpreender dois olhares africanos sobre a guerra, em perspectiva ao mesmo tempo étnica e
de género. Para além disso, discute‑se o duplo gesto de nomeação do conflito; a mudança,
no universo discursivo, do sistema de referências imposto pelo colonialismo e,
consequentemente, a encenação da interioridade de novos sujeitos históricos femininos.
Starting from a reading of the poetical works Sangue negro (2001) and É nosso o solo sagrado da
terra (1978), by Noémia de Sousa and Alda Espírito Santo, respectively, this paper seeks to
capture two African views on the war, following simultaneously an ethnic and a gender
perspective. It discusses the double gesture of naming the conflict; the changing, in the
discoursive universe, of the reference system imposed by colonialism and, as a
consequence, the staging of the interiority of new female historical subjects.
A partir de la lecture des œuvres poétiques Sang nègre (2001) et Le terrain sacré de la terre est
nôtre (1978), respectivement de Noémia Sousa et Alda Espírito Santo, on cherche à
surprendre deux regards africains sur la guerre, dans la perspective ethnique et en même
temps du point de vue du genre. En outre, on examinera le double geste de la nomination
du conflit, le changement, dans l’univers discursif, du système des références imposé par le
colonialisme, et, par conséquent, la mise en scène de l’intériorité de nouveaux sujets
historiques féminins.
ÍNDICE
Palavras-chave: Noémia de Sousa, Alda Espírito Santo, colonialismo português, Guerra
colonial portuguesa, mulher - identidade sexual, África lusófona, poesia
Mots-clés: Noémia de Sousa, Alda Espírito Santo, colonialisme portugais, Guerre coloniale
portugaise, femme - identité sexuelle, Afrique lusophone, poésie
Keywords: Noémia de Sousa, Alda Espírito Santo, Portuguese colonialism, Portuguese
colonial war, woman – gender identity, Lusophone Africa, poetry
AUTOR
LAURA CAVALCANTE PADILHA
Doutorada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Professora Adjunta IV da
Universidade Federal Fluminense, na área de Literaturas de Língua Portuguesa, em
particular Literaturas Africanas. Foi presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Letras, vice‑presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada,
directora da Faculdade de Letras da Universidade Federal Fluminense, dirigiu a Editora da
Universidade Federal Fluminense e hoje é representante da sua área no CNPq. Para além de
inúmeros artigos publicados em revistas da especialidade, Laura Cavalcante Padilha é
autora de Entre voz e letra – a ancestralidade na literatura angolana, 1995, que recebeu o Prémio
Mário de Andrade da Biblioteca Nacional como o melhor ensaio do ano. Em 2001, publicou
Novos pactos, outras ficções: Ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras, que conta também com
uma edição portuguesa.
lcpadi2@terra.com.br
Dossier
Dois depoimentos sobre a
presença e a participação
femininas na Guerra Colonial
Margarida Calafate Ribeiro
71 Era tudo à experiência: ver como é que nós nos dávamos, ver como é
que os pára-quedistas reagiam à nossa presença. Mas não foi nada de
especial porque aqueles pára-quedistas que nós fomos encontrar no
avião para a Serra da Canda, tinham estado em Tancos em Junho,
quando nós tínhamos ido para lá. Eles tinham embarcado para
Angola em Julho. Portanto, já estavam mais ou menos próximos de
nós, sabiam da nossa existência, conheciam-nos e nestas situações a
relação humana é muito rica. Foi tudo muito fácil, sentia-se uma
grande abertura em relação a nós. Éramos todos irmãos, no sentido
em que parecia que nos conhecíamos, mesmo sem nos falarmos.
Havia uma empatia muito grande.
72 Em Luanda onde inicialmente aterrámos e onde ficávamos –
tínhamos a messe e os alojamentos lá – vimos que as pessoas, os
africanos e os europeus que estavam lá radicados tinham uma
relação humana boa. Eram pessoas muito abertas a uma relação e,
mesmo com a população local, não há dúvida nenhuma de que havia
uma relação rica de sensibilidade e de vivência.
73 É claro que a situação de guerra veio alterar as coisas em todos os
sentidos. E nós, a nossa presença militar também alterava tudo, mas
nunca senti fricções.
AUTOR
MARGARIDA CALAFATE RIBEIRO
REFERÊNCIA
Maria Manuel, Paula Rego’s Map of Memory. National and Sexual Politics.
Lisboa: Hants, Ashgate, 2003, 220 pp.
1 Foi no princípio da década de 80, longe já da tempestade cultural do
pós-Abril, que começaram a surgir os primeiros estudos sistemáticos
acerca do Estado Novo que puderam ser concebidos sem um
manifesto parti-pris. Esse então novo espaço de análise, retirado de
início à prática exclusiva do jornalismo de investigação por alguns
historiadores, passou pouco depois a ser também abordado pela
ciência política, pelos estudos literários, pela sociologia, pelas
ciências da educação ou pela antropologia, num processo de
crescente permuta de saberes. Vozes do Povo, uma obra colectiva
acabada de editar pela Celta, funciona como testemunho notável
dessa pluralidade disciplinar, aplicada, neste caso, ao
reconhecimento do processo de folclorização em Portugal. No
entanto, este esforço manteve-se durante muito tempo confinado a
observações dominadas por uma perspectiva essencialmente
historicista e retrospectiva, empenhada em observar, descrever e
interpretar o colectivamente vivido em função dos factos e dos
fenómenos produzidos no interior do tempo-passado que o
acompanhava. Quer isto significar que os fenómenos de integração
cultural produzidos ao longo da época em causa, nomeadamente
aqueles que puderam ir sendo armazenados pelo território de
memória, afirmando-se através de um trajecto de extensa duração
que incluía o reflexo das sucessivas práticas vivenciais, permaneciam
praticamente ignorados.
2 Não se questionava assim o papel dinâmico e integrador das
experiências de vida, e menos ainda os reflexos traumáticos que
estas pudessem conter e transportar até ao presente. Ao longo de
sensivelmente vinte anos, omitiram‑se, nas abordagens propostas
pelas ciências sociais e humanas – apesar de mais cedo terem sido
integradas na criação literária e artística –, tanto a memória legada
da cultura do salazarismo que sobreviveu à sua derrocada, como a
referência a experiências capazes de deixarem marcas profundas no
psiquismo individual e colectivo, como ainda o fortíssimo impacte de
uma propaganda política intensa e de uma educação fortemente
dirigida e autoritária. O mesmo aconteceu com a reminiscência de
uma sexualidade vivida dentro de parâmetros extremamente rígidos,
ou com as ondas de choque da violência, transmutada em guerra a
partir de um dado momento, que se manteve sonegada dos relatos e
afastada do quotidiano. Apesar da imediata visibilidade do Labirinto
da Saudade, publicado em 1978 por Eduardo Lourenço – onde se
falava já da necessidade de se proceder a “uma autêntica psicanálise
do nosso comportamento global” – mantinha-se o esforço de
levantamento de um imaginário de ruptura, assente nas novas
convicções democráticas e europeístas, que preferia fechar o álbum
do passado a observá-lo na sua continuidade.
3 Neste contexto, o livro de Maria Manuel Lisboa (MML) sobre a
pintura de Paula Rego (PR) articula-se com um esforço ainda
pioneiro. A partir de uma abordagem detalhada de parte importante
da obra da pintora – principalmente aquela que se desenvolveu a
partir de 1980 – a autora procura mostrar de que forma, após um
período centrado em trabalhos com acrílico e de colagem, esta
evoluiu para “uma arte narrativa mais naturalista”, coincidente com
um período ao longo do qual “a dimensão do pessoal e do familiar
contaminou a sua preocupação política e pedagógica com a vida
nacional portuguesa” (p. 15). Será sobre este pano de fundo que, de
uma forma particularmente original, MML irá identificar uma
memória dinâmica, centrada numa análise muito detalhada da obra
da artista. Esta articula os interesses mais pessoais de PR com um
background de infância – o tempo vivido em Portugal, desde o
nascimento até à mudança para Inglaterra em 1951, com apenas
dezasseis anos – que, varrido para debaixo do tapete por muitos dos
seus compatriotas, parece aqui revelar-se omnipresente, evocando a
experiência evidente, ou subliminar, mas assumida, do salazarismo e
do seu destino. Aliás, a pintora tem considerado repetidamente ser
“sempre e visceralmente portuguesa”, afirmando que as suas
pinturas nunca foram sobre outra coisa que não sobre Portugal (p.
4). A detalhada abordagem dos últimos vinte anos da obra de PR é,
por isso, desenvolvida aqui a partir de um pressuposto, de acordo
com o qual os trabalhos deste período integram uma elevadíssima
carga simbólica, em condições de remeter todas as leituras para uma
incontornável articulação com os sinais fundadores que integram a
perspectiva distanciada, mas intensa e omnipresente, que PR possui
do seu país.
4 A identificação desses elementos simbólicos remete para áreas que
dizem simultaneamente respeito à vida individual e à vida colectiva,
através de formas de representação que têm como referente a
presença da autoridade, a iconografia de raiz histórica, a vida
familiar, a experiência da sexualidade, o lugar da mulher ou a
quietude do tempo e da paisagem, de acordo com uma definição
imagética e conceptual que se inscreve claramente dentro de um
certo imaginário do universo português pré-revolucionário.
5 Tal como é mostrado por MML, estas formas são construídas, na
pintura da artista, a partir de um conjunto de referências que
integram em larga medida os “valores de Braga” – Deus, Pátria,
História, Autoridade, Família, Trabalho – matriciais na definição do
salazarismo enquanto doutrina e arquétipo cultural e proclamados
pelo ditador em Maio de 1936. Por outro lado, a figura do próprio
Salazar, enquanto protótipo-homem providencial destinado a
promover e a modelar um ideal de cidadão, encontra-se presente na
própria pintura de PR, revelando-se de uma forma quase óbvia em
Partida e A Dança, quadros de 1988. Todavia, este referencial não é
estabelecido, de forma alguma, sem uma forte contrapartida
iconoclasta, a qual, como a autora deste livro sublinha, “se aproxima
por vezes do profano”, definindo uma perspectiva violenta e
subversiva de fragmentos de um passado, de um acontecido, que fora
apresentado na sua fonte primordial como modelar e inapelável.
6 Todo este esforço é desenvolvido, de uma forma coerente, muito
documentada e detalhada, ao longo do volume. Desde logo na
importante introdução, onde se apresentam, aos leitores de língua
inglesa, os quadros basilares da política e da moral do salazarismo,
na sua ligação com a vida e a obra, ambas distantes mas feitas de
constantes regressos, de PR. Central é também, neste contexto, o
primeiro capítulo de Paula Rego’s Map of Memory, no qual se procede a
uma releitura da obra da pintora no período que antecede a década
de 1980, em ligação com os processos de identificação política e
pessoal de Portugal e com os reflexos que desde cedo eles foram
tendo na sua obra. No segundo capítulo, procura fazer-se a
identificação de um conjunto de símbolos e de figuras que, de uma
maneira ou de outra, foram integrando na pintura de PR uma parte
da vida pessoal e da sua comunidade de origem. O capítulo terceiro
tenta principalmente a apropriação de um conjunto de sinais que
funcionam como forma de integração da vida familiar e sexual numa
espécie de universo primordial proposto pela autora e ao qual ela
permanece unida. Numa abordagem mais específica, o último
capítulo, o quarto, trata o corpo feminino e os quadros de PR sobre o
aborto, procedendo, uma vez mais, a uma “leitura portuguesa”
destes temas. Por fim, uma conclusão bastante prospectiva procura
definir o universo da pintora por analogia com outras construções
detectadas no campo geral da produção artística, mostrando-o como
um mundo próprio e de alguma forma irrepetível, mantendo uma
ligação ao passado que, ao mesmo tempo, foi capaz de encontrar as
condições para percorrer o seu próprio caminho.
7 No geral, a autora fornece-nos, através da sua leitura pessoal e
comparada da obra de PR, uma perspectiva simultaneamente
específica e panorâmica, que nos permite reconhecer elementos
fundamentais na definição da nossa peculiar contemporaneidade. Foi
ainda Lourenço quem anotou que, ao longo de décadas, tudo, ou o
essencial, parecia ao português estar sempre em algum outro lado,
nas Paris, Londres ou Nova Iorque “que não éramos, nem podíamos,
ser”. Maria Manuel Lisboa revela-nos aqui, por interposição da sua
leitura original, e de uma certa forma ousada, da obra de Paula Rego,
que o inverso se passou igualmente. Algures, longe do solo materno,
permanecia, na actividade criadora de uma portuguesa da diáspora,
uma demanda das raízes destinada a preservar, e ao mesmo tempo a
reconstruir, a memória de um conjunto de sinais e de experiências
com as quais os Portugueses efectivamente conviveram. Será
também por isso que a obra de Paula Rego quase sempre “dói”. Como
dói, até que os reconheçamos e integremos, a lembrança de todos os
traumas.
AUTORES
RUI BEBIANO
Professor auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e investigador do
Centro de Estudos Sociais, onde coordena o projecto «Culturas Juvenis e Participação Cívica:
diferença, indiferença e novos desafios democráticos». Publicações mais recentes: “As
esquerdas e a oposição à Guerra Colonial”, A Guerra do Ultramar: Realidade e ficção. Lisboa,
Editorial Notícias - Universidade Aberta, 2002; “Temas e problemas da história do presente”,
A história tal qual se faz, Lisboa, Edições Colibri, 2003; e O poder da imaginação. Juventude, revolta
e resistência nos anos 60, Coimbra, Angelus Novus, 2003.
ruibebiano@mail.telepac.pt
Mary Nash; Susanna Tavera
(orgs.), Las mujeres y las guerras: el
papel de las mujeres en las guerras de
la Edad Antígua a la Contemporánea
Tatiana Moura
REFERÊNCIA
Mary Nash; Susanna Tavera (orgs.), Las mujeres y las guerras: el papel
de las mujeres en las guerras de la Edad Antígua a la Contemporánea.
Barcelona: Icaria editorial,2003, 549 p.
I am tired of being the blood, the earth and the scream.
I address the storyteller and those who have passed
the tale down, written it down, recited and believed it.
Is that all? I ask the storyteller. Where am I then? Do I
have to be Abel if I don’t want to be Cain? Is there no
other way?
Dorothee Solle
1 Ao longo dos séculos, as experiências das mulheres foram
marginalizadas e secundarizadas nos acontecimentos históricos mais
relevantes, em particular nas guerras, contrastando com o
protagonismo e primordialidade atribuídos aos papéis assumidos por
homens. A história das guerras e dos seus impactos é portanto uma
história incompleta, parcial, caracterizada pela ausência das
experiências e análises centradas nos papéis desempenhados pelas
mulheres.
2 Na opinião de Betty Reardon (1985), o sistema patriarcal produziu o
sistema de guerra, e os seus aspectos violentos afectam as nossas
relações, desde as interpessoais às internacionais. Por isso, mesmo a
guerra é vista como sendo a pedra angular da masculinidade, o
momento que marca a transição para a fase adulta na vida dos
homens (Enloe, 1983). Já a participação das mulheres nas guerras não
foi, nem é, considerada um acontecimento importante no processo
de construção da sua identidade social. Pelo contrário, a
maternidade é considerada o acontecimento que marca a transição
para a idade adulta da mulher. A imagem de mãe contraposta à
imagem de guerreiro, dar a vida e provocar a morte, serviu para
legitimar, ao longo dos séculos, a construção dos papéis sexuais
relacionados com a paz e com a violência. Do mesmo modo, a divisão
entre “protectores” e “desprotegidas” contribuiu para a relação de
dependência no plano colectivo e individual (Martínez López, 2000:
257-258), associando os homens à violência e à agressividade e as
mulheres à passividade e ao cuidado, características relegadas para a
esfera subjectiva e privada (e portanto subalternizada). Esta visão
estereotipada e profundamente enraizada na nossa cultura manteve-
se ao longo de séculos, moldou a escrita da História, e ainda se
mantém.
3 As propostas de análise da participação das mulheres nas guerras e
dos impactos destas guerras nas suas vidas correspondem a uma
análise dos espaços sem história, com actores silenciados. Tais
propostas começaram a emergir nos anos 80, em resultado de uma
linha de investigação feminista sobre a paz e a violência, com
investigadoras como Betty Reardon ou Cynthia Enloe. Apenas há
pouco mais de uma década começou a considerar‑se a especificidade
das necessidades das mulheres em contextos bélicos e na fase de
reconstrução pós‑conflito, em particular no âmbito das Nações
Unidas. No entanto, o reconhecimento e aceitação das mulheres
enquanto “grupo vulnerável” nos contextos de conflito armado e de
reconstrução pós-bélica tem conduzido à minimização e ausência de
informação e análises sobre a ampla variedade de papéis que as
mulheres (tal como os homens) assumem nestes períodos. Esta
necessidade já foi reconhecida, recentemente, pelas Nações Unidas.
A 31 de Outubro de 2000, o Conselho de Segurança aprovou a
Resolução 1325 sobre Mulheres, Paz, Segurança e Direitos Humanos
que resultou, por um lado, da avaliação negativa relativamente à
implementação da Plataforma de Acção de Pequim e, por outro, da
necessidade de resposta às preocupações manifestadas e sentidas por
mulheres em conflitos com características cada vez mais complexas.
4 De facto, a guerra foi e tem sido motivo de preocupação e de
posicionamento colectivo e individual para as mulheres de todas as
épocas históricas, independentemente de as suas vozes de protesto
ou de envolvimento beligerante serem reconhecidas nas esferas de
tomada de decisão. Las mujeres y las guerras: el papel de las mujeres en
las guerras de la Edad Antígua a la Contemporánea, que corresponde à
publicação das Actas do VIII Colóquio Internacional da Asociación
Española de Investigación Histórica de las Mujeres (AEIHM), que
decorreu na Universidad de Barcelona em Maio de 2000, dá-nos
conta destes espaços sem história e constitui uma proposta que
pretende em grande medida colmatar a ausência de reflexão (em
Espanha) sobre esta temática.
5 Na opinião das suas organizadoras, Mary Nash e Susanna Tavera,
este livro pretende abordar questões inovadoras e incorporar o
instrumental analítico produzido pela interconexão entre história
das mulheres e história feminista, por um lado, e história social, por
outro. Por isso mesmo os trabalhos que o compõem colocam em
evidência a heterogeneidade de interpretações sobre os papéis e o
protagonismo político e social alcançado pelas mulheres em
conjunturas de guerra, e dão também testemunho da variedade de
olhares historiográficos produzidos pela capacidade de inovação das
mulheres nos procedimentos de luta e resistência pacífica.
6 Esta obra, bem como o colóquio que esteve na sua origem,
inscrevem-se na trajectória percorrida pela AEIHM, que desde 1993
tem vindo a organizar colóquios anuais que pretendem desenvolver
a investigação sobre a experiência histórica das mulheres e que
constituem espaços de recuperação e discussão sobre o papel das
mulheres em vários momentos e espaços da história. No que diz
respeito às análises de mulheres em períodos de conflitos armados e
em momentos de reconstrução de sociedades devastadas por
conflitos, são de salientar o colóquio realizado em Valência (1998)
intitulado “Mujeres, regulación de conflictos y cultura de paz” e o
último coló- quio que teve lugar em Barcelona (2003) também sobre
as mulheres e as guerras. Mary Nash, uma das organizadoras deste
livro, é catedrática de História Contemporânea da Universidad de
Barcelona e directora do Grupo de Investigação sobre
Multiculturalismo e Género da mesma universidade. Foi a presidente
e fundadora da Asociación Española de Investigación de História de
las Mujeres e é autora de obras como Rojas: las mujeres republicanas en
la Guerra Civil española (Taurus, 1999), Women and Socialism. Socialism
and Women. Europe between the Two World Wars (Berghahn, 1998),
Constructing Spanish Womanhood. Female Identity in Modern Spain (Suny,
1999), entre outras.
7 Após uma introdução das organizadoras (Nash e Tavera), o livro
segue o esquema adoptado no colóquio realizado em 2000, ou seja,
estrutura-se em quatro partes, que correspondem aos quatro
grandes períodos históricos considerados: Idade Antiga, Média,
Moderna e Contemporânea. Cada parte é encabeçada pela
comunicação que abriu a respectiva sessão do colóquio, e que
pretende fixar as linhas de debate (de Ana Iriarte, Cristina Segura,
Anna Bravo e Cynthia Enloe, respectivamente), seguindo-se-lhe as
restantes comunicações ou capítulos.
8 O primeiro capítulo, “La virgen guerrera en el imaginario griego”, de
Ana Iriarte, coloca em relevo o contraste e a dicotomia existentes na
representação de diversas imagens guerreiras femininas na Grécia
antiga. A imagem da mulher enquanto símbolo de equilíbrio político
da Atenas democrática, representado em Atena, contrastava com a
imagem do caos, simbolizado pelas amazonas. Como nos mostra Ana
Iriarte, a incompatibilidade fundamental de todo este imaginário
radica na oposição de papéis entre mulheres guerreiras e
maternidade. A tentativa de superar o essencialismo (que associa as
mulheres com práticas pacíficas e determina a sua ausência durante
as guerras pelo facto de serem detentoras de um suposto pacifismo
natural inerente à sua condição de mulher) e os estereótipos
discursivos sobre a participação das mulheres em tempos de guerra,
bem como a denúncia dos vários rostos do sistema patriarcal que
subjazem à guerra e que tentam invisibilizar o protagonismo das
mulheres, são também os objectivos dos artigos de María Dolores
Mirón (“Las mujeres de Atenas y la Guerra del Peloponeso”), de
Aurelia Martín Casares (“De pasivas a beligerantes: los intereses del
discurso dominante respecto a la intervención de las mujeres en la
guerra”), entre outras.
9 O capítulo que encabeça a II parte do livro, “Las mujeres en las
guerras del Antíguo Regímen”, de Cristina Segura, dá-nos conta da
contradição existente entre a obrigação de proteger os mais débeis
(considerada pela autora como um pretexto para iniciar uma guerra)
e as contínuas agressões sexuais cometidas contra as mulheres nas
guerras feudais, contradição que se mantém até aos dias de hoje. No
entanto, a autora tenta ultrapassar a imagem das mulheres enquanto
simples vítimas de violência sexual em tempos de guerra, analisando
também a presença de mulheres em exércitos e a participação activa
de mulheres do povo e da nobreza em contextos de violência (dando
os exemplos de María Pacheco ou Toda, a rainha de Pamplona).
10 De facto, as análises sobre a participação de mulheres e grupos de
mulheres em conflitos armados e sobre os impactos destes conflitos
nas vidas das mulheres têm recorrido à universalização destas
experiências de guerra, recorrendo a uma formulação do tema que
parece reduzi-lo à violência sexual, omitindo qualquer outro
envolvimento das mulheres. No entanto, durante os conflitos
armados, independentemente da época histórica a que
correspondam, ocorre um esbatimento das fronteiras que separam a
esfera privada da esfera pública. Este esbatimento, na opinião de
Murguialday e Vázquez (2001), conduz a uma transformação dos
papéis das mulheres considerados como tradicionais, permitindo a
vivência daquilo a que estas autoras chamam “experiência
parêntesis”, que transforma a percepção que as mulheres têm de si
mesmas e molda as suas expectativas para o período posterior à
guerra. Na segunda secção de Las mujeres y las guerras: el papel de las
mujeres en las guerras de la Edad Antígua a la Contemporánea, as análises
destas experiências nas guerras da Idade Média é feita nos artigos de
Fina Birulés, Carmen García Navarro, Patricia Mayayo, Paula
Fortsner, Raquel Flores e Mónica Carabias.
11 O capítulo de Anna Bravo, “Mujeres y Segunda Guerra Mundial:
estrategias cotidianas, resistencia civil y problemas de
interpretación” (III parte) aborda, justamente, a maior
permeabilidade na transposição das fronteiras entre a esfera privada
e a militar (pública) através da análise de estratégias de
sobrevivência, de resistência civil e de repúdio da violência levadas a
cabo por mulheres durante a II Guerra Mundial. Do mesmo modo,
são analisados os vários papeis assumidos por mulheres na
Revolução Mexicana (Tabea Linhard), o papel das feministas
portuguesas durante a I Guerra Mundial (Rosa Mª Ballesteros), o
papel das mulheres durante os primeiros anos da União Soviética
(Meritxell Benedí), o exemplo das Mães da Praça de Maio (Laia
Herrera e Marc Lecha) e as violações de guerra e as mulheres em
França durante a I Guerra Mundial (Brigitte Terrason).
12 A quarta e última secção do livro, que corresponde à análise da Idade
Contemporânea, e é encabeçada pelo artigo de Cynthia Enloe
intitulado “Como se militariza una lata de sopa?”, que corresponde à
tradução do primeiro capítulo do seu livro Manoeuvres. The
International Politics of Militarizing Women’s Lives (Berkeley, California
University Press, 2000). Este artigo aborda o problema da
“militarização” enquanto tema de alcance cultural e não
exclusivamente político, que se desenvolve não só em períodos de
guerra mas também em tempos de paz, e que chega com eficácia à
população, inserindo-se nos padrões de consumo através da
publicidade, da moda, dos próprios jogos infantis e até da
alimentação (como sucede com a sopa com massinhas em forma de
naves da Guerra das Estrelas), que atravessa e influencia toda a
rotina diária. Para Enloe, a militarização não corresponde ao simples
acto de ingressar no exército ou de possuir e utilizar uma arma.
Trata-se de um processo bastante mais subtil, enraizado na
ideologia, nas instituições ou na economia, chegando a ser
considerado algo de normal ou mesmo valioso. O objectivo deste
artigo é pois o de sublinhar a necessidade de analisar abertamente o
militarismo a partir da perspectiva do sistema patriarcal, a fim de
desmascarar os privilégios de uma forma de masculinidade
dominante e hegemónica que existe e opera activamente nas
sociedades actuais. Os capítulos que se seguem a este capítulo
introdutório têm como objectivo analisar a actuação e participação
das mulheres durante e após a Guerra Civil e a ditadura espanholas,
resultantes das comunicações de Immaculada Blasco e Regine Illion,
Lourdes Martínez Prado, Teresa González Pérez e Marian Lorenzo,
entre outras.
13 Este livro constitui um contributo importante para a (re)escrita da
história das guerras e das tentativas de resistência e de repúdio da
violência, procurando dar conta de episódios e momentos históricos
que têm estado invisibilizados, e dando protagonismo a grupos que
continuam, até aos dias de hoje, a ser marginalizados. É uma obra
que vem mostrar, uma vez mais, que a história, em particular a
história das guerras, foi escrita excluindo metade da população que
nelas participa. Também por isso é um livro importante, já que a
escassez de informação e de análises é largamente responsável por
esse silenciamento de experiências fundamentais.
BIBLIOGRAFIA
Enloe, Cynthia (1993), The Morning After: Sexual Poltics at the End of the Cold War . Berkeley:
University of California Press.
Martínez López, Candida (2000), “Laz mujeres e la paz en la historia”, in F. Muñoz; M.
Martínez (orgs.), Historia de la Paz. Tiempos, espacios y actores . Granada: Editorial
Universidade de Granada, 255-291.
Mazurana, Dyan; McKay, Susan (1999), Women and Peacebuilding. Montréal: International
Centre for Human Rights and Democratic Development.
Murguialday, Clara; Vázquez, Norma (2001), “Género y Reconstrucción Posbélica”, Papeles de
Cuestiones Internacionales, 73, 33-39.
Reardon, Betty (1985), Sexism and the War System. New York: Teachers College Press.
Skjelsbaek, Inger; Smith, Dan (2001), Gender, Peace and Conflict. London: Sage.
AUTORES
TATIANA MOURA
REFERÊNCIA
Hinde, Robert; Rotblat, Joseph, War No More. Eliminating Conflict in the
Nuclear Age. London: Pluto Press, 2003, 228 p.
We appeal as human beings to human beings: remember
your humanity and forget the rest. If you can do so, the way
lies open to a new paradise. If you cannot, there lies before
you the risk of universal death.
Manifesto Russell-Einstein
(Conferências de Pugwash, 9 Julho 1955)
1 Estar à beira do abismo nuclear durante quarenta anos sem nele cair
trouxe uma falsa tranquilidade à comunidade internacional que se
tem revelado contraproducente para lidar com a nova era nuclear do
pós-Guerra Fria.
2 Para os autores de War No More, os riscos de acumulação e emprego
de armas nucleares que representaram, desde 1945, uma ameaça
contínua à estabilidade mundial e à própria sobrevivência da
humanidade não desapareceram. Pelo contrário, mantêm-se mais
acutilantes do que é generalizadamente presumido, ainda que a
iminência de um holocausto nuclear esteja, por enquanto, fora de
cogitação. Tendo em conta o novo cenário de insegurança que se
afigura no início do século XXI, é vital que o alerta que pautou a
Guerra Fria relativamente ao perigo deste tipo de armamento
regresse à ribalta da opinião pública internacional. É, de certa forma,
esse o intuito mais imediato deste livro, que se pretende acessível
não só a académicos e decisores políticos mas, muito
particularmente, ao cidadão comum.
3 Robert Hinde e Joseph Rotblat vão, todavia, mais além. Numa altura
em que as perspectivas de paz parecem menos prometedoras do que
há uma década atrás, apresentam-nos uma proposta ousada, desde
logo evidente no título, bastante peremptório. Considerando a
magnitude dos perigos que põem em causa a segurança mundial,
argumenta‑se no livro que só o caminho no sentido da eliminação
das armas de destruição maciça e, necessariamente, do próprio
fenómeno da guerra pode devolver à espécie humana a certeza da
sua continuidade. Os dois objectivos – o primeiro sendo um passo
para o segundo – estão intimamente ligados e têm pautado, de forma
inabalável, as vidas de ambos os autores.
4 O ex-físico nuclear Joseph Rotblat, polaco, naturalizado britânico em
1946, esteve envolvido no Projecto Manhattan que desenvolveu a
primeira bomba atómica durante a Segunda Guerra Mundial e
passou o resto da sua vida em campanha contra aquilo que ajudou a
criar. Acreditando que só a ameaça de perder a guerra contra a
Alemanha poderia justificar a criação de uma arma com semelhante
poder destrutivo, retirou-se do projecto – o único cientista a fazê-
lo –, antes mesmo de ela ter sido construída, assim que teve a certeza
da inverosimilhança de perigo análogo em mãos nazis.
5 Uma volumosa obra sobre a questão do nuclear testemunha a sua
batalha de 60 anos – uma batalha que lhe valeu alguma
impopularidade junto de instâncias oficiais, ao desistir do esforço de
guerra aliado ainda durante o conflito mundial e ao bater‑se contra a
corrida armamentista no pico da Guerra Fria. Viu, finalmente, o seu
empenho reconhecido de forma inequívoca ao ser laureado pelo
Prémio Nobel da Paz em 1995 em conjunto com as Conferências de
Pugwash – organização que fundou juntamente com Albert Einstein
e Bertrand Russell, entre outros, em 1955, e que reúne cientistas,
académicos e figuras públicas de todo o mundo preocupados com a
eliminação do armamento nuclear e a resolução pacífica de conflitos.
6 Com noventa e quatro anos de idade, Joseph Rotblat é uma
personagem histórica de peso (como tive oportunidade de
testemunhar numa palestra, há uns anos atrás), o que lhe dá uma
autoridade para escrever este livro que pouca gente teria.
7 Companheiro de campanhas e co-autor desta obra, Robert Hinde, é
um biólogo e psicólogo consagrado, cuja inclinação pelo estudo do
fenómeno da guerra também deriva da sua experiência pessoal
enquanto piloto da RAF (Royal Air Force) durante a Segunda Guerra
Mundial. Igualmente envolvido nas Conferências de Pugwash, como
presidente do British Pugwash Group, e actualmente professor jubilado
da Universidade de Cambridge, Robert Hinde é um autor
extremamente conceituado que tem inúmeros livros e artigos
escritos sobre as causas da violência institucionalizada. Rejeitando a
noção de que a guerra é uma actividade intrínseca à natureza
humana, o autor tem procurado explicar extensivamente os factores
psico-sociais que levam aos conflitos armados e tem explorado o
modo como as relações humanas podem desenvolver‑se de forma
pacífica.
8 Fica claro que ambos os autores combinam o activismo com uma
importante elaboração teórica sobre a real ameaça que os conflitos
armados representam – ameaça ainda mais premente numa era
nuclear. O seu interesse por este tema é, sem dúvida, fruto das suas
vidas pessoais. É indispensável termos em conta esta evidência para
podermos compreender por inteiro e apreciar verdadeiramente o
intuito deste livro.
9 Assim, lançado no início do século XXI, War No More representa o
produto final de décadas de reflexão sobre a temática da guerra e da
paz e apresenta-se como a ocasião certa para se tentar prevenir os
conflitos armados do novo milénio, como refere Robert McNamara,
ex-Secretário da Defesa norte-americano, no prefácio. Partindo da
premissa de que, em face da presença de armas de destruição maciça,
as consequências das guerras serão inevitável e exponencialmente
mais devastadoras do que no passado – e tendo em consideração que
todas as guerras carregam consigo o potencial da escalada –, a
eliminação total da ameaça de confrontação militar surge como uma
necessidade vital.
10 Um dos contributos mais importantes desta obra é, precisamente, o
facto de tratar a guerra como um fenómeno passível de ser extirpado
de forma definitiva. Ao longo do livro, os autores não se perdem em
descrições demoradas das consequências das guerras – não mais do
que o necessário para alertar os leitores para os perigos de um
conflito nuclear em larga escala. Recusam a inevitabilidade da guerra
como inerente à natureza humana, apresentando, por sua vez, uma
interpretação deste fenómeno como uma instituição que é
alimentada quotidianamente por diversos factores sociais, culturais,
científicos e militares e que depende da interacção de múltiplas
causas para ser desencadeada. A existência e proliferação de
armamento convencional e de destruição maciça, o sistema político e
o papel do líder, a etnicidade e a religião, a disputa de territórios e
recursos ou a globalização podem ser importantes fontes de
instabilidade e potenciais conflitos para os quais o livro nos chama a
atenção. A verdadeira preocupação dos autores é, então, explorar
estas causas mais profundas das guerras e apresentar propostas de
caminhos a seguir, com o manifesto intuito de as reduzir e, em
última análise, de as eliminar.
11 Robert Hinde e Joseph Rotblat produzem, assim, um livro que tem a
coragem de nos propor “o fim do mundo tal como o conhecemos”.
“What has always been does not have to remain the case” (p. 1). É-
nos, no entanto, bastante difícil aceitar os ecos de idealismo que este
livro encerra, em especial numa altura em que o argumento realista
parece mais certeiro. Não se nos afigura plenamente credível esta
visão quase romântica das relações internacionais, em que prevalece
o primado do direito internacional, em que a proibição da guerra
enquanto forma de resolução de disputas é cumprida, em que a
Organização das Nações Unidas surge finalmente com poder para
cumprir o seu papel de entidade reguladora do sistema internacional
ou em que a ideia de bem comum se reflecte nas políticas externas
dos Estados. Por mais que partilhemos das posições dos autores, a
ideia de um mundo sem guerras assemelha-se sempre a uma utopia
longínqua. É difícil controlar o nosso automático cepticismo. Mas
nem por isso o livro nos decepciona, muito pelo contrário. A
argumentação é consistente e bem elaborada. Os autores exploram,
de forma séria e exaustiva, os pequenos passos fundamentais para
assegurar a paz e a segurança internacionais, quebrando ao longo da
leitura a nossa inicial relutância. Ainda que resistamos a acreditar na
concretização destes dois objectivos finais, as pistas de intervenção
fornecidas pelos autores são extraordinariamente importantes para
guiar uma comunidade internacional algo perdida entre a evidência
de um mundo unipolar e a política agressiva de George W. Bush.
12 Trata-se, indubitavelmente, de um livro para acordar consciências. É
o próprio móbil de uma vida inteira que Hinde e Rotblat se
incumbem de passar ao leitor. Calculo que as esperanças de ambos os
autores poderem assistir à concretização do seu objectivo de longo
prazo já tenham desaparecido. E, perante a actual conjuntura
internacional, leia-se administração Bush – relativamente à qual
ambos são particularmente críticos ao longo de toda a obra –,
arriscaria dizer que as esperanças relativamente ao objectivo de
curto prazo de eliminação das armas de destruição maciça num
futuro próximo também tenham ido pelo mesmo caminho. Mas é
precisamente por se estar perante este cenário que os autores
consideram importante reavivar a noção de que o conflito armado
não é uma inevitabilidade nas relações internacionais. Alguns sinais
positivos, ainda que episódicos, têm reforçado esta ideia. Mesmo
numa altura aparentemente menos favorável à discussão deste tema,
as manifestações contra a guerra no Iraque revelaram-se não só
contra esta guerra em particular mas contra o fenómeno da guerra
em si, abrangendo milhões de pessoas e desvendando uma
consciencialização relativamente às alternativas ao imediato uso de
meios militares para a resolução de um conflito. Para além disso,
como disse Rotblat numa entrevista há pouco tempo, “se
conseguirmos evitar um holocausto nuclear na era Bush, existe
esperança”.
13 Na verdade, esta obra é, do início ao fim, um repto a partilhar deste
optimismo, a responder, de forma empenhada e militante ao apelo
de prosseguir um sonho porventura dissonante da realidade actual
mas que, segundo os autores, é exequível.
14 Para quem acha que depender meramente da lógica da dissuasão
para a inexistência de guerras fica aquém de uma verdadeira ideia de
paz, e pretende enveredar por caminhos mais exigentes na busca de
um “war-free world”, este livro recomenda-se vivamente.
AUTORES
TERESA CRAVO
Docente de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Licenciada em Relações Internacionais pela mesma faculdade. Pós-graduação em Direitos
Humanos e Democratização da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. É mestre
pelo Departamento de Estudos sobre a Paz da Universidade de Bradford, Reino Unido, com
uma tese intitulada “Post-War Mozambique: A Test-Case for the United Nations
Peacebuilding Model”. Faz parte da equipa de investigação do Núcleo de Estudos para a Paz
do Centro de Estudos Sociais.
tcravo@fe.uc.pt
Espaço Virtual
Título da página electrónica:
International Committee of the
Red Cross (ICRC) – Women and
War Section
Endereço:
http://www.icrc.org/Web/eng/siteeng0.nsf/iwpList2/Focus:Women
_and_War
Tatiana Moura
AUTOR
TATIANA MOURA
Licenciada em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra. Mestre em Sociologia pela mesma Faculdade, com uma tese intitulada “Entre
Atenas e Esparta: Mulheres, paz e conflitos violentos”. Doutoranda no programa “Paz,
Conflictos y Democracia” da Universidad Jaume I, Castellon de la Plana, Espanha. Faz parte
da equipa de investigação do Núcleo de Estudos para a Paz do Centro de Estudos Sociais.
tatiana@ces.uc.pt
Título da página electrónica:
Women Waging Peace
Endereço: http://www.womenwagingpeace.net
Tatiana Moura
AUTOR
TATIANA MOURA
Tatiana Moura
AUTOR
TATIANA MOURA
Licenciada em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra. Mestre em Sociologia pela mesma Faculdade, com uma tese intitulada “Entre
Atenas e Esparta: Mulheres, paz e conflitos violentos”. Doutoranda no programa “Paz,
Conflictos y Democracia” da Universidad Jaume I, Castellon de la Plana, Espanha. Faz parte
da equipa de investigação do Núcleo de Estudos para a Paz do Centro de Estudos Sociais.
tatiana@ces.uc.pt