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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Os “nós” da questão agrária na


Amazônia

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Os “nós” da questão agrária na


Amazônia

Cátia Oliveira Macedo


Fabiano Oliveira Bringel
Rosiete Marcos Santana
Rafael Benevides de Sousa
(Organizadores)

Editora Açaí
Belém-PA
2016

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

APRESENTAÇÃO

O simpósio contou com sessões de comunicação oral - espaços


de diálogos, mesas-redondas e palestras sobre os mais variados temas
relacionados ao campo amazônico. Desde concepções de movimentos
sociais no rural da região. Leituras sobre as diversas faces da Questão
Agrária. A aplicação ou não de políticas públicas ajustadas as realidades
amazônicas. Até possíveis alternativas radicais de transformação sócio-
espacial da realidade do agrário nestas porções setentrionais.
O livro procurou seguir a disposição temática do simpósio. Com
15 (quinze) artigos que passam pelos temas debatidos procuramos
refletir sobre a realidade da produção do conhecimento na geografia
agrária, estudos das diversas comunidades quilombolas, o avanço de
setores do agronegócio no solo e subsolo amazônico a partir de
estratégias estabelecidas no tempo e no espaço. Além disso, as novas
lógicas da fronteira capitalista na região, o estabelecimento de relações
entre o campo e a cidade, a condição da mulher e características
fundantes da sociedade camponesa na Amazônia, os diversos sistemas
agrícolas possíveis inovações tecnológicas e os novos desafios que se
impõem para a educação do campo.
Fazemos este convite à leitura. E mais do que isso. Um chamado
à práxis a partir da Amazônia. Deixamos aqui esta pequena
contribuição de nosso grupo de pesquisa. Certos de que ela possa ser
mais um instrumento para compor essa grande construção de uma
filosofia dos de “baixo”, um olhar a partir da Amazônia e do continente
latino-americano, uma compreensão de mundo “cabloquinha” da
existência!

Belém, abril vermelho de 2016.

Cátia Oliveira Macedo


Fabiano Oliveira Bringel
Rosiete Marcos Santana
Rafael Benevides de Souza
(Organizadores)

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

SUMÁRIO

9 Novas (ou) velhas alternativas para o campo na Amazônia e


a questão agrária na atualidade
Valéria de Marcos

27 Geografia Agrária: inserções e aprendizados no campo


paraense
Otávio do Canto

75 Novos projetos, velhas práticas: os impasses entre agricultura


camponesa e agronegócio do dendê em terras amazônicas
Catia Oliveira Macedo e Rafael Benevides de Sousa

107 Fronteiras agrárias e processos de territorialização do


campesinato na Amazônia: uma análise comparativa de
projetos de assentamento no sudeste e sudoeste do Pará
Fabiano de Oliveira Bringel e Cláudio Ubiratan Gonçalves

131 Quilombo de Narcisa: territorialidade, limites de respeito e


narrativas de expropriação
Petrônio Medeiros

161 Tensões territoriais entre rizicultores e quilombolas no


arquipélago do Marajó
Dérick Lima Gomes e Fabiano de Oliveira Bringel

177 Quilombolas e agronegócio do dendê em disputa pelo


território no Alto Acará-PA
Fabiana C. da Silva, Jamilli M. O. da Silva e Catia Oliveira
Macedo

199 Memórias interioranas: campo e cidade através do rádio


numa comunidade ribeirinha amazônica
Cátia Oliveira Macedo e Antônio Mauricio Dias da Costa

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

217 Paisagem e relação campo-cidade em assentamentos de


reforma agrária na Amazônia: o caso de Palmares II,
Parauapebas/PA
Arthur Brito e Fabiano Oliveira Bringel

235 Biodiversidade dos SAFs dos agricultores inovadores na


Amazônia oriental brasileira: sinônimo de sustentabilidade
José Sebastião Romano de Oliveira

247 Adentrando o território camponês: formas de organização


social, do trabalho e da produção
Rosiete Marco Santana

261 Meandros da condição camponesa na Comunidade de


Arapiranga -Nordeste do Pará
Rafael Benevides de Sousa e Jacob Binsztok

281 Pescadores Artesanais em Unidades de Conservação:


situando o debate no contexto da Reserva Extrativista
Marinha de Soure, Marajó (PA)
Evandro Carlos Costa Neves e Fabiano de Oliveira Bringel

297 Por uma educação do campo na Amazônia: cultura e


natureza na narrativa de educadores em Ponta de Pedra,
Marajó-Pará
Cátia Oliveira Macedo e Antônio Maurício Dias da Costa

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Novas (ou) velhas alternativas para o campo na Amazônia e


a questão agrária na atualidade1

Valeria de Marcos2

Introdução

Vivemos na atualidade sob a lógica de um discurso que tem por


objetivo construir a compreensão de que o capitalismo impera em todo
canto e lugar e de que todos estão plenamente integrados a ele. No
campo, busca-se passar a ideia de que há apenas uma única forma de
produzir e que o que diferencia o grande do pequeno “agricultor” é
apenas o tamanho de sua propriedade. De acordo com essa visão,
todos, pequenos e grandes, estão inseridos no mercado da mesma
forma e produzem com o mesmo grau de mecanização e tecnificação.
Essa compreensão, porém, não corresponde à realidade. Se é
verdade que o capitalismo é na atualidade o modo de produção
hegemônico e que todos estão a ele integrados através do mercado, não
é verdade que todos, pequenos e grandes “agricultores” são, no fundo,
“a mesma coisa”. Tratam-se de dois modelos distintos de organização
da produção que refletem, no fundo, diferentes visões de mundo,
projeto de futuro e preocupação com o país: um o do agronegócio e o
outro o da agricultura camponesa. O que se busca esconder é, de um
lado, a existência de uma questão agrária cada vez mais atual, marcada
pela existência de conflitos e contradições decorrentes do processo de
desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro e, de outro, a
existência de uma luta de classes cada vez mais clara no campo
brasileiro. A presença ainda hoje de conflitos por terra, a contraposição
entre modelos distintos de mercado - aquele externo do agronegócio e
aquele local e das redes de economia solidária da agricultura
camponesa-, a contraposição entre práticas produtivas - aquela
monocultora e altamente dependente de insumos químicos do
1
Trabalho apresentado como Conferência de Encerramento do I Simpósio de
Geografia Agrária: os “nós” da Questão Agrária na Amazônia, UEPA/IFPA,
Belém-PA, dezembro de 2013.
2
Professora doutora do Departamento de Geografia FFLCH USP e do
Programa de Pós Graduação em Geografia Humana FFLCH USP.
Pesquisadora 2 CNPq. Email: demarcos.vale@usp.br
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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

agronegócio e aquela diversificada, de base agroecológica da agricultura


camponesa -, entre tantas outras, são marcas da existência e persistência
dessa questão agrária na atualidade.
Assim, é preciso romper com a visão hegemônica que relaciona a
questão agrária automática e exclusivamente à luta pela terra e que, ao
assim fazer, dá a ela um caráter negativo, arcaico, gerador de atraso. É
necessário entender a questão agrária no seio – e como consequência –
do processo de desenvolvimento do capitalismo no campo, em suas
diferentes expressões: expansão dos agrocombustíveis sobre a
produção de alimentos; a expansão dos monocultivos de commodities e
a concentração de terras; a expansão da presença de capital estrangeiro
no campo, em diferentes ramos da produção; as alterações no processo
produtivo e a precarização cada vez maior das condições de trabalho no
campo; a luta pela terra feita por camponeses sem terra organizados
através de movimentos sociais como o MST ou de forma “autônoma”,
em busca da reforma agrária ou da regularização fundiária para
permanência em suas terras; a luta e resistência por parte dos
camponeses quilombolas, ribeirinhos, seringueiros, faxinalenses e tantos
outros que, sob a categoria de “populações tradicionais”, têm
conquistado o direito à terra e ao território de vida e trabalho, ao
mesmo tempo em que têm tido que continuar a lutar pelo direito de
ser, viver e produzir de modo diverso daquele hegemônico 3. Todas
essas são expressões da questão agrária na atualidade e, como pode ser
visto, a luta pela terra é apenas parte dela.

O que é questão agrária

Como procuramos deixar claro nessa introdução, a questão


agrária não é algo do passado. Ao contrário, ela existe e faz parte do
presente e se manifesta nas mais diferentes formas, como as que
elencamos acima: nas ocupações, acampamentos e luta pela terra; no
latifúndio, no agronegócio, na produção de commodities; na luta contra

3
Na maior parte dos casos, os camponeses e/ou os quilombolas em áreas de
Unidades de Conservação –RESEX e RDS – têm tido que continuar a lutar
pela autonomia de gestão de seus territórios e contra o controle do Estado
através das inúmeras regras e proibições que terminam por comprometer a
possibilidade de realização plena de seu modo de vida e, com ele, de sua
recriação tal como são de fato.
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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

o uso excessivo de agrotóxico, na difusão de experiências baseadas na


agroecologia, na priorização do mercado externo como canal de
comercialização, na construção de mercados alternativos de base
solidária, entre tantas outras formas. Como ressalta Fernandes (2010),
ela nasce da contradição estrutural do capitalismo que concentra
riqueza e expande pobreza e miséria. Resultado de um conjunto de
fatores políticos e econômicos, ela é produzida pela diferenciação do
campesinato e pela sujeição da renda da terra ao capital. O movimento
paradoxal resultante desse processo é, de um lado, o de destruição (pela
sujeição da renda da terra até o limite da expropriação/proletarização)
e, de outro, o de resistência (pela luta pela terra) do campesinato. Em
outras palavras, trata-se de um movimento de destruição e recriação de
relações sociais, de territorialização – desterritorialização –
reterritorialização do capital e do campesinato; de monopolização do
território camponês pelo capital e de reconquista do território
capitalista pelo campesinato (Fernandes, 2010).
A contradição existente decorre do fato de que o capital se
realiza desenvolvendo sua própria relação social, o trabalho assalariado
– para tal, destruindo o campesinato – mas também, igual e
contraditoriamente, criando e recriando o campesinato (Oliveira). Nesta
situação, a recriação se dá pela subordinação à lógica do capital, tendo
por estratégia econômica o arrendamento, a compra e venda de terras, a
integração à indústria, processos que, ao fim do processo, acabam
propiciando a sujeição da renda da terra ao capital. Essa, porém, é
apenas uma das situações de recriação do campesinato. A outra se dá
através da luta pelo acesso ou pela permanência na terra de trabalho,
estratégia política através da qual se verifica, conjuntamente, uma
luta/resistência contra a lógica do capital, dada pela priorização da lógica
da produção camponesa sobre aquela capitalista. É fato, porém, que
essa luta/resistência encontra seu limite na falta de controle político que
os camponeses têm das situações de decisão diversas, como aquelas que
definem as políticas públicas, o que termina, muitas vezes, por sujeitá-
los ao capital em processo semelhante àquele que ocorre quando a
estratégia de recriação é econômica. Isso ocorre porque, sem
possibilidade de escolher formas distintas e alternativas de
comercialização da produção, terminam muitas vezes subordinados
pelos atravessadores, centrais de abastecimento ou indústrias, tal qual

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

ocorre com os camponeses que buscam sua recriação por meio de uma
estratégia econômica.
A reprodução das contradições do capitalismo e a prática política
camponesa de reprodução de sua existência geram uma situação de
conflito contínuo, a conflitualidade, expressa na luta de classes: de um
lado o capital em seu processo de territorialização, expropria, concentra
terra, subordina a produção, ou seja, destrói e recria o campesinato; de
outro, em seu processo de territorialização (através da luta pela terra), o
campesinato destrói o capital e reconstrói formas mais autônomas de
organização da vida e da produção. Assim, a luta de classes expressas
no processo de dominação e resistência permanente é constituinte
estrutural da questão agrária, o que a torna insolúvel no seio do
capitalismo.
De acordo com Fernandes (2010), as formas de tratamento
político da questão conduzem a dois caminhos, o do tensionamento –
através do incentivo ao modelo de desenvolvimento que promove a
concentração de terras e da riqueza, e, ao assim fazer, aumenta a
conflitualidade e reforça a questão agrária – ou o da distensão – através
do incentivo a um modelo de desenvolvimento que desconcentra a
terra e a riqueza, como por exemplo a reforma agrária e o
reconhecimento do direito à propriedade de comunidades tradicionais e
que diminui, mas não elimina, a luta de classes que constitui a essência
da questão agrária, atenuando-a e mascarando-a temporariamente. Isto
porque, ao fim e ao cabo, a luta é pelo controle da apropriação da renda
da terra e, enquanto existir a propriedade privada capitalista da terra,
essa questão existirá.
Assim, o que é importante ter claro, como ressaltam Oliveira
(1995, 2003, 2005) e Fernandes (2010), é o fato de que as contradições
fazem parte do processo de desenvolvimento do capitalismo, ou seja,
conflito por terra e desenvolvimento rural são partes do mesmo
processo. O conflito é um momento do processo e não é externo ao
desenvolvimento do capitalismo mas, ao contrário, acontece em seu
interior. Em outras palavras, se queremos ter uma compreensão ampla
e concreta da questão agrária, não podemos reduzi-la apenas ao
momento do conflito e, sobretudo, não podemos pensar que a solução
do conflito – por meio da conquista da terra – resolve o problema. A
conquista da terra resolve o problema do acesso à terra, mas dá início a
um outro, o conflito pelo direito de existir de modo diferente, expresso

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

no conflito entre projetos de desenvolvimento territorial distintos, e


que constitui-se na essência da questão agrária. É preciso entender o
que há por trás da luta pela terra, mas também o que há por trás das
concepções de “desenvolvimento” implantadas pelo Estado e pelo
capital, ou seja, o que há por trás das opções de incentivo a
determinadas monoculturas, de priorização da produção de
commodities em detrimento da produção de alimentos para o mercado
interno, da concentração de terras em mãos de poucos proprietários, da
expansão da presença do capital estrangeiro no campo brasileiro. Todas
essas dimensões devem ser analisadas de modo articulado, pois uma
influencia a outra e é apenas por meio da correlação entre todas elas
que conseguiremos compreender a verdadeira face da questão agrária
na atualidade. Assim, o ponto crucial para a compreensão da dimensão
da Questão Agrária na atualidade é entender qual o papel do
campesinato diante do avanço do capitalismo no campo.
É nesse quadro que devemos olhar para a Questão Agrária na
Amazônia, para buscar entender suas características na atualidade e,
nesse contexto, pensar em alternativas que efetivamente contemplem as
necessidades e especificidades dos que vivem em seu campo.

A imposição de uma imagem comum

A ideia que se busca veicular e difundir entre todos é aquela com


a qual iniciei essa reflexão. No seio da difusão de um pensamento
único, fruto do estágio atual do capitalismo neoliberal no qual nos
encontramos, o objetivo é o de fazer acreditar que o que temos no
campo é um único modo de produzir, uma única lógica de organização
da produção, um único objetivo para a produção. É assim que todos se
tornam “agricultores”, não importando muitas vezes o seu tamanho.
Em casos excepcionais, por rigor “científico”, diferenciam-se aqueles
“familiares” dos demais. Mas mesmo aqui, a diferença recai sobre a
força de trabalho majoritária usada para a prática agrícola, nada além
disso. Tamanho da propriedade, acesso a crédito e forma de negociação
do não pagamento, índice de mecanização, tipo e destino da produção
não são observados nessa homogeneização. E isso convém, sobretudo,
quando o Censo Agropecuário do IBGE (2006) evidencia o papel da
chamada agricultura familiar brasileira na produção de alimentos para o
mercado interno. Porém, mesmo diante da comprovação de que o valor

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

da produção por hectare é maior para a agricultura familiar do que para


o agronegócio, fato que evidencia a concentração improdutiva da terra,
ou seja, a manutenção da terra como reserva de valor, a leitura feita não
é obviamente a de que os “grandes agricultores” são improdutivos. Ao
contrário, passa-se a destacar a alta produtividade da agricultura
brasileira, inclusive daquela “familiar” e, rapidamente, para soldar essa
compreensão, criam-se campanhas publicitárias estreladas por artistas e
esportistas reconhecidos nacionalmente e veiculadas em horário nobre.
É o caso da campanha “Sou Agro – Um Brasil que cresce forte e
saudável” lançada em 2011 e promovida por empresas e entidades que
representam o agronegócio, entre as quais a UNICA, a BUNGE, a
BRACELPA, com apoio do Ex-Ministro da Agricultura do Governo
Lula e um dos principais representantes do Agronegócio, João Roberto
Rodrigues, e estrelada por Lima Duarte e Giovanna Antonelli 4. É
também o caso da Campanha “Time Agro Brasil”, lançada em 2012
pela CNA, estrelada por Pelé com a participação especial de dois
expoentes do agronegócio nacional, João Roberto Rodrigues e Kátia
Abreu.
Na academia, intelectuais se empenham em mostrar o lado
“moderno” da agricultura capitalista em sua forma mais avançada – o
agronegócio – debruçando-se sobre estudos acerca da competitividade
do setor; do papel do agronegócio no mercado internacional – e
portanto de sua contribuição para a elevação do superávit da balança
comercial –; da contribuição do setor na redução do desmatamento
através de suas “florestas de eucalipto” para a produção de pasta de
celulose destinada à fabricação de papel; do empenho do setor na busca
de matrizes energéticas renováveis – como é o caso do setor
sucroenergético – e, sempre nesse âmbito, de sua valiosa contribuição
na busca de soluções para a questão ambiental através da produção e
difusão de um combustível que reduz a emissão de gases de efeito
estufa, contribuindo assim para a redução dos efeitos do aquecimento
global.

4
O curioso é que em reportagem feita sobre o lançamento da campanha “Sou
Agro” pelo Canal Mix Notícias a jornalista informa que a campanha representa
uma tentativa de reverter a imagem negativa que o agronegócio possui junto ao
público. Para maiores detalhes, ver http://www.youtube.com/watch?
v=1O7DHxXR2Ig&feature=related. Acesso em 13 nov 2013.
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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Neste quadro “moderno e avançado” do campo brasileiro


também estão os pequenos agricultores familiares, de acordo com esses
intelectuais, igualmente modernizados e inseridos no mercado global.
Nesses trabalhos, contradição, conflito, violência, são palavras que não
compõem o vocabulário usado. O objetivo é o de tratar do avanço do
capitalismo no campo como algo inevitável, sem retorno e
exclusivamente benéfico. Os camponeses, quando aparecem nesses
trabalhos, é para receber sua sentença de morte: sendo eles sujeitos
incapazes de se adaptarem à modernidade, resíduos de um passado que
fatalmente desaparecerá do campo tão logo o capitalismo complete seu
processo de avanço, também eles desaparecerão. Justiça deve ser feita:
nem todos os camponeses são considerados “incapazes” por esses
intelectuais. Há aqueles que conseguem se adaptar à modernidade e, ao
assim fazerem, abandonam suas antigas lógica e práticas produtivas e se
transformam – para usar o termo correto, cunhado por Abramoway, o
intelectual que alicerça essa forma de interpretação, se metamorfoseiam –
em agricultores familiares (Abramoway, 1998). Nesta leitura, a questão
agrária é, efetivamente, algo do passado. Os estudos são feitos na
perspectiva do capitalismo agrário, evidenciando exclusivamente o
“progresso” e o “desenvolvimento” por ele promovido.
Há, porém, o outro lado dessa realidade, sobre a qual esses
intelectuais se calam. Se é fato que todos são agricultores, como
insistem ambas campanhas publicitárias, também o é que há profundas
diferenças entre eles, como já salientamos anteriormente, e colocar no
mesmo saco agricultores familiares e “patronais” – para usar a
denominação do IBGE – serve apenas a encobrir o caráter
improdutivo e rentista do agronegócio. Se é fato que o agronegócio
aumentou sua presença no mercado internacional, também o é, de um
lado, que tal aumento não implicou, necessariamente, em sua subida no
ranking dos países que mais comercializam alimentos no mundo e, de
outro, apostar na reprimarização da economia externa brasileira pode
levar o país a uma situação de dependência cada vez maior do mercado
externo, seja para a obtenção de outros gêneros agrícolas que deixará de
cultivar para priorizar aqueles destinados ao mercado externo, seja para
a obtenção de produtos industrializados, como ocorreu até bem pouco
tempo atrás, em um passado ainda presente em nossa memória e o
qual, esse sim, seria bom evitar.

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Por sua vez, se é fato que a produção de eucalipto reduz o


desmatamento de matas nativas para a produção de papel, também o é
que ela elimina tudo o que ali existia até então: culturas agrícolas e
camponesas, famílias, fauna e flora, tudo é varrido do campo e
transformado em um imenso deserto verde, cujo resultado é um
impacto ambiental de proporção tão grande, senão maior, do que
aquele que ele se vanta de evitar. Se é fato que o setor sucroenergético
tem crescido nos últimos tempos, também o é que o preço pago pela
sociedade tem sido enorme. A expansão da cultura de cana-de-açúcar
tem se dado, via de regra, sobre áreas antes produtoras de alimentos
para o mercado interno, ainda que o setor se obstine a negar esse fato.
No caso de São Paulo, o maior produtor de cana-de-açúcar do país, a
cana-de-açúcar se expandiu para o noroeste do estado, sobre áreas
antes ocupadas pela pecuária e também pela produção de alimentos da
cesta básica do brasileiro, como o arroz e o feijão. Ainda que ocorra
uma reorganização produtiva – fazendo com que o que se deixou de
produzir desses gêneros agrícolas em algumas áreas passe a ser
produzido em outras e que, no fim das contas, o volume geral da
produção se mantenha de certo modo inalterado – o deslocamento das
áreas de cultivo desses gêneros agrícolas para locais distantes do centro
de consumo faz com que o preço desses produtos se eleve
consideravelmente, o que impacta diretamente o consumidor que passa
a ter que pagar mais caro por eles ou que reduzir seu consumo.
A mecanização do corte e plantio da cana, também apontada
pelo setor como iniciativas que contribuem para a melhoria da questão
ambiental, tem repercussões diretas sobre as condições de vida e
trabalho dos trabalhadores, resultando em condições de precarização e
barbarização do trabalho cada vez maiores para aqueles que ainda se
mantém no corte manual. Se na década de 1980 um trabalhador cortava
6 toneladas diárias de cana, hoje, para competir com a máquina e
garantir seu posto de trabalho, ele é obrigado a cortar de 13 a 15
toneladas diárias, o que implica em um desgaste físico que, aliado às
más condições de alimentação, pode levar à morte por penosidade do
trabalho. Se isso tudo não fosse já deplorável, para elevar suas margens
de lucro, muitos capitalistas – entre eles também alguns ligados ao
agronegócio sucroenergético – lançam mão do emprego do trabalho
escravo contemporâneo, prendendo o trabalhador a uma dívida que ele
não consegue saldar e submetendo-o a condições de trabalho e

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

violência, física e psicológica, que extrapolam a do limite da dignidade


humana. Por fim, uma outra questão importante e sobre a qual não se
fala é que, para a produção de um combustível “sustentável”, se usa e
se consome uma grande quantidade de produtos derivados do petróleo,
tanto nos tratos culturais – fertilizantes e agrotóxicos – quanto no
abastecimento das inúmeras máquinas que trabalham durante o plantio,
fertilização, fumigação, colheita e transporte da cana do campo para as
usinas, as quais trabalham ininterruptamente de maio a dezembro.
No caso da produção agroenergética do dendê no estado do
Pará, a expansão da cultura tem se dado através da expulsão de famílias
do campo – ainda que através de compra e venda de terras – ou da
incorporação de parte dessas famílias no processo produtivo, seja
através da integração das mesmas no processo de cultivo da palma 5, seja
através da contratação de parte desses camponeses como operários das
usinas de beneficiamento do dendê. Em ambos os casos, por trás de
uma ideia de “progresso e desenvolvimento” levado à região, temos a
superexploração da força de trabalho daqueles que trabalham na usina,
em especial daqueles que se dedicam à colheita do dendê 6, de um lado,
e a subordinação das famílias que permanecem no campo, integrando-
se à usina para a produção do dendê, caracterizando o processo de

5
Muito embora a propaganda veiculada é a de que o cultivo do dendê destina-
se à produção de agrodiesel, de fato, ainda hoje a produção do dendê é
destinada majoritariamente para a indústria alimentícia e de cosméticos e a
maior parte do cultivo é feito pela própria indústria e não pela chamada
agricultura familiar. Em visita à Biopalma, empresa do Grupo Vale situada em
Moju-PA, ocorrida em 2014, o funcionário entrevistado revelou-nos que a área
total ocupada pelo cultivo de dendê nas terras dos camponeses integrados não
totalizava 1000ha (cada família destina 10ha para tal cultivo). De acordo com
Glass (dados da Repórter Brasil, 2013), a área plantada pela empresa é de
42.000ha, havendo planos de se chegar a 80.000ha.
6
O grau de penosidade do trabalho daqueles que se dedicam à colheita de
dendê é semelhante àquele dos cortadores de cana: ainda que trabalhem com
os Equipamentos de Proteção Individual (EPI) necessários, as roupas são
grossas e suportá-las no calor amazônico não é algo banal. Além disso,
caminham longas distâncias durante o dia à procura de cachos maduros, se
curvam várias vezes para cortar o cachos e deixá-los em local de fácil retirada,
os cachos são espinhosos e há risco de que os espinhos perfurem as luvas e
penetrem nas mãos dos trabalhadores e, além disso, estão sujeitos a
encontrarem animais peçonhentos no meio dos dendezais.
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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

monopolização do território pelo capital conforme entendido por


Oliveira, de outro. Também esses são aspectos desse lado moderno do
campo brasileiro, dimensões de uma questão agrária que muitos
intelectuais querem esconder. É neste quadro que temos que entender o
papel da Amazônia na Questão Agrária Nacional para que, a partir de
então, possamos pensar em alternativas para um futuro diverso do
atual.

A Amazônia vista de fora

Muitas foram as classificações recebidas pela Amazônia ao longo


do tempo: “Terra inóspita”, “vazio humano”, “celeiro do mundo”,
“santuário ecológico”, “nova fronteira do desenvolvimento brasileiro”.
São tantas as imagens quantas são as visões estereotipadas da Amazônia
e nenhuma delas contempla, sequer considera, a Amazônia dos
Amazônidas.
Desde que passou a ocupar lugar de destaque na política nacional
com o Plano de Valorização Econômica da Amazônia criado no
segundo Governo Vargas em 1953 e supervisionado pela
Superintendência para a Valorização Econômica da Amazônia
(SPVEA), organismo antecessor da SUDAM, a Amazônia foi vista
pelos políticos e capitalistas e “vendida” para a sociedade brasileira
através da mídia e da produção de alguns intelectuais como última
fronteira a ser explorada e inserida no cenário nacional. Tal visão
motivou inclusive a tese dos “Dois Brasis” e reforçou a criação, na
ditadura militar, da SUDAM, com a responsabilidade de gerenciar os
vários projetos agropecuários, agrominerais e agroflorestais que tinham
por objetivo “levar o desenvolvimento à região”. De fato ela foi
“palco” de várias políticas criadas para garantir a reprodução do capital
nacional e internacional, pouco comprometidas com o
desenvolvimento efetivo da região. Prova disso foram os vários
escândalos de fraudes de vendas de terras, de fazendas “de papel” que
contaram com grandes quantias de recursos públicos para sua
implantação, como tão bem denunciou Oliveira em seus estudos sobre
a Amazônia.
Ao longo dos anos 1970 o governo implantou o Projeto Radam
com o intuito de mapear as riquezas nela existentes, criou a
infraestrutura rodoviária (Cuiabá-Santarém, Belém-Brasília,

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Transamazônica, Perimetral Norte, entre outras), ferroviária (Carajás-


Itaqui) e energética (hidrelétricas de Tucuruí, Balbina e Samuel) e, nos
eixos das rodovias, implantou os projetos de colonização que, muito
embora tenham atraído camponeses do Sul e Centro-Oeste que se
transferiam para a Amazônia visando melhores condições para a
reprodução de sua existência, eram voltados em especial para os
“homens sem terra do Nordeste” buscando, de um lado, reduzir o
potencial revolucionário das Ligas Camponesas do Nordeste em plena
efervescência nos anos 1960/70 e, de outro, garantir a formação de
uma classe de trabalhadores e, com ela, proporcionar todas as
condições necessárias para a plena reprodução do capital na região.
Nesse quadro, vários foram os projetos agropecuários,
agroflorestais e agrominerais implantados na região por capital nacional
e estrangeiro (unidos ou separados), todos com grandes quantias de
recursos públicos via SUDAM, alguns dos quais ganharam destaque
pelas suas dimensões continentais, como é o caso do Projeto Jarí
Florestal e Agropecuário, localizado no vale do rio Jarí entre o Pará e o
Amapá e, no setor minerário, do Projeto Grande Carajás. Por fim, nos
anos 1980 é a vez do Projeto Calha Norte cujo objetivo era o de
garantir o controle militar das fronteiras internacionais na Amazônia.
Diante de todas essas condições garantidas, várias empresas do
setor industrial e financeiro passaram a investir em terras na Amazônia,
boa parte delas griladas, e a usar os incentivos fiscais da SUDAM para
garantir suas atividades no Centro-Sul. Assim, nos anos 1970 e 1980, a
imagem da Amazônia veiculada pela mídia era a da “região progresso”,
dos grandes projetos que levavam o país a uma posição de “país
desenvolvido”. Imagens do “formigueiro humano” em que se
transformou o garimpo de Serra Pelada, ou ainda da indústria de papel
e celulose transportada por navio do Projeto Jarí, marcaram aquela
época de ufanismo nacional e eram aceitas sem questionamento pela
sociedade de modo geral.
Ocorre que a proposta de desenvolvimento que abarcava todos
os projetos implantados na Amazônia era externa à realidade local e
não contemplava a população que nela habitava, a qual, ao contrário,
era muitas vezes vista como “empecilho” à implantação desses projetos.
Porém, aos poucos uma voz dissonante começou a se fazer sentir,
denunciando os impactos desse “desenvolvimento” para a região: a de
Chico Mendes, e com ele, a dos seringueiros, ribeirinhos, castanheiros,

19
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

índios, povos da floresta que, ao denunciarem os impactos desses


projetos à sociedade, davam prova de sua existência, ao mesmo tempo
em que apresentavam à sociedade uma outra proposta para a
Amazônia, que contemplava os povos que a habitavam, além da própria
floresta: a das Reservas Extrativistas.
Aos poucos essa proposta foi ganhando espaço na sociedade,
impulsionada pelo movimento ambientalista que começava a se fazer
ouvir no país. Construída pelos camponeses que habitavam a floresta -
seringueiros e demais povos da floresta – em colaboração com
pesquisadores que se dedicavam ao assunto – e a esse respeito o papel
de Carlos Walter Porto-Gonçalves e de Ariovaldo U. de Oliveira deve
ser destacado – as Reservas Extrativistas passaram a ser apresentadas
como a “reforma agrária” para a Amazônia.
O que havia de novo nessa proposta – e que continua a meu ver
ainda atual – é algo que muitos de nós, ainda hoje, temos dificuldades
de entender: a luta não pela propriedade privada da terra, mas pelo
direito de usufruto da floresta (e da terra) com domínio público sobre a
área. Em outras palavras, a luta pelo território e não pela terra, e mais, a
luta não apenas pelo acesso familiar à floresta – para a extração da
borracha e coleta de outros frutos, pelo direito à caça e à pesca, bem
como pelo direito de abrir as clareiras para o cultivo das roças e criação
de animais que iriam garantir a reprodução da família – mas também
pela garantia da manutenção de um modo de vida, de uma forma de
relação com a floresta e com os outros camponeses que habitavam
aquela mesma porção de floresta, numa compreensão de que a
existência de um era dada e garantida pela existência dos demais, nas
mesmas condições de reprodução. A gestão dessas frações de território
compreendidas nessas Resex, de acordo com a proposta original, seria
feita pelos próprios camponeses que a habitavam, na certeza de que
ninguém melhor do que eles para saber o que era melhor para si e para
a floresta na qual viviam e da qual dependia a sua existência.
É claro que essa formulação sofreu alterações no que havia de
mais substancial: sua forma de gestão. Se de um lado o Estado garantiu
a criação das Resex como queriam os seringueiros e demais camponeses
que a construíram – com o domínio da União e o usufruto dos que nela
habitam –, de outro a gestão passou a ser feita por um Conselho no
qual o Estado tem parte ativa já que cabe ao “Gestor” da Resex papel
fundamental na construção – ou definição – das regras e limites de ação

20
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

desses camponeses, tão mais rígidas e impeditivas/proibitivas quanto


mais preservacionista é a visão do Gestor. De fato, a visão que impera
nesses órgãos é a da centralidade da floresta e não das pessoas que nela
habitam, o que significa dizer que antes de garantir a reprodução da
vida dessas pessoas é preciso garantir a reprodução da floresta
museificada, tal qual boa parte desses gestores a concebem. Assim, a
garantia da permanência na terra/floresta não garantiu a esses
camponeses, tal qual era desejado, a possibilidade de autodeterminação,
de existência de modo diverso, o que faz com que eles tenham que
estar em luta contínua para reafirmar tal direito. A mesma situação se
dá para as comunidades quilombolas que, diante da morosidade do
processo de reconhecimento como tal, acabam aceitando sua
transformação em Resex e RDS e, ao assim fazerem, passam a ter que
conviver com imposições e regras que se referem à forma como o
Estado concebe a sua existência e não como elas próprias o fazem.
Não é apenas o Estado quem controla a existência dessa classe.
Muitas vezes os próprios movimentos sociais o fazem ao impor a esses
camponeses formas de existência absolutamente alheias à sua lógica de
existência. Foi o caso, por exemplo, das experiências de coletivização
propostas pelo MST nos anos 1980 e que tinham como horizonte a
proposta da coletivização acelerada implantada por Stalin na URSS e as
CPAs de Cuba, mas não os seus resultados. A proposta era de uma
produção mecanizada e modernizada, com alto uso de mecanização e
insumos químicos, feita através das cooperativas de produção para
competir com a grande produção capitalista. Em que pese o sucesso
alcançado por muitas delas, apesar dos desafios de sua realização, o
fracasso de muitas dessas propostas foi lido pelas lideranças como
incapacidade dos camponeses de se adequarem a elas, como prova da
resistência dos camponeses à cooperação, ao invés de ser lido como o
que deveria ser: um indicativo de que ela não cabia, da forma como
estava sendo apresentada, a eles. A cooperação está na essência do
campesinato e a prova disso são as inúmeras práticas de solidariedade –
como ajuda mútua, mutirão, troca de dias de serviço – ou mesmo os
inúmeros grupos de afinidades, de famílias, grupos coletivos ou semi-
coletivos que se formam em diferentes assentamentos pelo pais afora,
com grupos mais restritos de camponeses, onde eles podem continuar
sendo o que são: camponeses. E essa realidade não pertence apenas ao
Centro-Sul do país. No Pará, o próprio assentamento Mártires de Abril

21
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

vivenciou uma tentativa não concluída de coletivização da produção


que deixou marcas ainda hoje entre os assentados (THOMAZ, 2013).
Assim, se queremos pensar em um outro futuro para a
Amazônia, seria importante ouvir o que os povos que a habitam têm a
dizer. Nesse sentido, a proposta de Resex construída pelos camponeses
há quase 30 anos atrás, calada pela ação do Estado, mas ainda hoje
atual, carrega em si o germe de uma forma revolucionária de
organização do campo e da vida que merece ser destacada por passar
inobservada para muitos de nós:
1. Ela é fruto da autodeterminação dessa classe, tendo sido
construída pelos camponeses e não por porta-vozes;
2. Ela marca uma posição política clara em um campo de
disputas e em disputa: ela é a proposta da classe camponesa em
oposição e em alternativa à proposta dos grandes projetos e
monocultura da classe capitalista;
3. Ela nega o que há de mais sagrado para a sociedade
capitalista, pilar sobre o qual se assenta o capitalismo rentista do campo
brasileiro: a propriedade privada da terra;
4. Ela afirma a existência coletiva do grupo ao lutar pelo
território e não pela terra; e
5. Ela afirma a capacidade da classe de definir seu próprio futuro
ao propor a autogestão como forma de gestão das Resex.
Portanto, se queremos pensar em uma “nova” alternativa para o
campo na Amazônia, recuperar essa “velha” proposta deve ser um
primeiro passo.
Assim, pensar a questão agrária na atualidade implica pensar em
todas essas diferenças. Significa pensar muito além do conflito. Significa
pensar em projetos de futuro absolutamente distintos dos que estão
sendo apresentados à sociedade na atualidade como o caminho para a
modernidade. E se quisermos ousar, e manter viva a perspectiva de
uma transformação RADICAL da sociedade, para darmos sentido ao
conhecimento que produzimos na academia, é preciso pensar a busca
dessa autonomia conjuntamente a um projeto político e estratégico,
centrado numa concepção diferenciada de poder, na negação de um
poder centralizado e na sua superação por uma forma de poder
coletivo, compartilhado, disperso, onde paulatinamente todos possam
se sentir parte ativa e responsável pela realidade em que vivem. E eu
diria mais, é preciso pensar isso com os camponeses.

22
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Uma pista possível penso que possa ser buscada na experiência


de Chiapas e nos ensinamentos que ela nos traz sobre a compreensão
de poder, ordenada de acordo com quatro diretrizes, como exposta por
Zibechi:
1. Comandar obedecendo: os zapatistas reconhecem a
necessidade de alguém que comande, mas esse alguém deve, por sua
vez, obedecer a outros que são os depositários da soberania. No caso
da comunidade, é a assembleia quem toma as decisões que, depois, um
grupo por ela eleito, irá executar. Os eleitos devem seguir as linhas
diretivas decretadas pela assembleia que, por sua vez, vigia e controla o
cumprimento do mandato podendo, a qualquer momento, reconfirmá-
lo ou revogá-lo. Por trás dessa ideia está a compreensão de que
SOMOS TODOS SUJEITOS COM IGUAIS DIREITOS E
DEVERES, todos temos a mesma responsabilidade na realização de
qualquer atividade/experiência. Assim, rompe-se com a ideia de um
sujeito que toma as decisões e as transfere a outros que a executam.
Isso implica na ideia da soberania popular. O poder se torna algo
TRANSPARENTE, e se supera com isso a contraposição
dirigentes/dirigidos, sujeitos/objetos.
2. Perguntando, caminhamos: em outras palavras, aprender a
escutar. Isso pressupõe colocar-se no lugar do outro, compreender que
o outro tem algo importante a dizer por que vive a opressão de maneira
diversa da minha. Significa analisar a sociedade do ponto de vista dos
oprimidos, do outro lado da linha, como nos diz Boaventura de Souza
Santos. Significa a compreensão de que os sujeitos revolucionários, e
a teoria da revolução, se constroem na luta e não fora dela.
Significa que a revolução não é uma resposta mas uma pergunta, e à
medida em que integra os sujeitos que a realizam e os fazem
participantes ativos de sua construção, dispersa o poder entre iguais,
deposita em cada um a confiança na capacidade de resolver os
problemas que vão aparecendo, constrói com isso a autodeterminação.
A revolução deixa de ser uma ação para transformar-se numa
construção, num processo, não em um projeto de uma liderança
revolucionária, mas em um desejo de todos. E o mais importante nisso,
conforme o Subcomandante Marcos, não é o programa nem o inimigo,
mas o conceber uma nova forma de relacionar-se entre os
companheiros, o construir um espaço diferente e uma maneira

23
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

diferente de fazer política, baseada numa cultura organizativa e política


diversa.
3. Caminhar no passo do mais lento: o que significa a
valorização da lógica da comunidade, onde o consenso é algo inclusivo,
no qual todos possam encontrar-se e reconhecer-se. Significa construir
um mundo que contenha todos os mundos, que contenha a diferença.
Um projeto inclusivo e participativo que requer tempo e, sobretudo,
esperar que todos cumpram juntos todos os passos. Tal prática nega o
conceito de eficiência tal qual o concebemos normalmente: não importa
como, mas o que, de que forma. Não importa chegar primeiro, mas
chegar juntos. Pressupõe um sujeito coletivo que respeita os tempos de
cada sujeito individual. A imagem desse mundo que contempla todos
os mundos é a do arco-íris: muitas cores diferentes que se harmonizam
entre si e constroem algo maior e mais belo do que cada cor
individualmente.
4. Entre todos sabemos tudo: significa negar a superioridade
de um saber sobre o outro, daquele cientifico sobre o popular, negar a
superioridade do trabalho intelectual sobre o trabalho manual, tanto
defendida pelos anarquistas (em especial Kropotkin), e considerar que
todos os saberes, todos os trabalhos, têm igual importância para a
condução e existência da comunidade e da revolução.
Para os zapatistas, a única forma de não reproduzir o sistema é
combater a dominação, não apenas a externa, mas aquela dentro de
nossas posições. Isso implica incluir – não excluir – posições
divergentes. A forma de difundir e fortalecer essas experiências é
através do estabelecimento de organizações horizontais, uma “rede de
redes” onde cada parte tenha sua autonomia e possa interconectar-se
diretamente com outras, sem ter que passar por um órgão decisório.
Uma rede composta por todos aqueles que resistem, seja de que forma
se dê essa resistência, de modo a que as experiências possam ser
trocadas e fortalecidas.
Penso que sejam essas as bases em que devemos pensar hoje a
luta pela terra, pelo território, pela existência na Amazônia, no Brasil, na
América Latina, em que devemos pensar em caminhos para superar a
questão agrária. Penso que se quisermos realmente caminhar na direção
da transformação dessa realidade – e de superação da questão agrária –
é preciso pensar nessa questão de uma outra perspectiva, e é nesse
sentido que entendo que a perspectiva zapatista – que eu entendo como

24
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

anarquista - é uma perspectiva NECESSÁRIA, na verdade a única


perspectiva possível para aqueles envolvidos com a transformação da
realidade atual e a superação da questão agrária e, com ela, a superação
do capitalismo. É preciso conhecer a realidade da qual se fala, sair do
discurso hegemônico de um mundo uniforme presente em boa parte
dos textos acadêmicos e livros didáticos e dar voz à diferença não para
ridicularizá-la e decretar seu fim, mas para mostrar que existe um outro
modo de ser e viver no campo, em especial no campo Amazônico, e
que pode vir dali a saída para essa realidade de exploração do homem
pelo homem que caracteriza o momento histórico que vivemos na
atualidade.
Se o Estado não cumpre a Lei, é preciso faze-lo cumpri-la. Se os
meios de comunicação nos mostram um lado da realidade, precisamos
desvendar o outro. Se o possível não mais nos contempla, é preciso
buscar o impossível.

Referências Bibliográficas

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São Paulo: Hucitec, Campinas-SP: Editora da Unicamp, 1998.

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GLASS, V. Expansão do dendê na Amazônia brasileira: elementos


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________. Agricultura brasileira, transformações recentes. In: ROSS, J.


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25
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

________. A geografia das lutas no campo. Ed. revista e ampliada.


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________.A longa marcha do campesinato brasileiro: movimentos


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agrária. São Paulo: Labur edições, 2007, 184 p.

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THOMAZ, F. Uma análise da coletivização agrícola do


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ZIBECHI, R. Zapatisti e sem terra. Milano, ITA: Zero in Condotta,


2001

26
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Geografia Agrária: inserções e aprendizados no campo


paraense

Otávio do Canto7

Introdução

A Geografia Agrária pode ser um fértil caminho interpretativo da


realidade do campo paraense, sua dimensão será definida pelo trabalho
do pesquisador que dela se vale. Nesse sentido, a reflexão sobre um
determinado problema, o tempo necessário para organizar a pesquisa e
os desafios que são colocados durante os trabalhos de campo têm
levado a pensar que a trajetória realizada pelo pesquisador é sempre um
aperfeiçoamento teórico-metodológico independente do tempo que o
geógrafo já percorreu esse caminho.
A tarefa neste texto é simplesmente apresentar algumas inserções
e aprendizados no campo paraense, realizados nas duas últimas décadas
de pesquisas nas adjacências de diversos rios que drenam o estado do
Pará. É mais um instrumento de incentivo e reflexão aos estudantes de
geografia e das ciências afins, interessados em interpretar o campo
paraense. Assim sendo, o leitor não encontrará uma seção destinada às
considerações finais, uma vez que o objetivo é trazer algumas
experiências de uma trajetória que está em curso, ou seja, fazer
Geografia Agrária no Pará, dialogando com diferentes dimensões do
conhecimento.
Em cada inserção que será apresentada, observou-se a
manifestação de dinâmicas territoriais moldada pelos sujeitos
historicamente estabelecidos e pelos sujeitos que chegaram de modo
mais recente em busca de novas oportunidades, ao estado do Pará. As
ações destes sujeitos, muitas vezes se configuraram como verdadeiras
ameaças aos territórios pré-existentes, condição que é possível se
remeter à "chegada do estranho", nos escritos de Martins (1993).

7
Professor do Programa de Pós-Graduação em Gestão de Recursos Naturais e
Desenvolvimento Local na Amazônia (PPGEDAM) e Coordenador do
Programa de Formação Interdisciplinar em Meio Ambiente (PROFIMA) do
Núcleo de Meio Ambiente da Universidade Federal do Pará (NUMA-UFPA).
E-mail: docanto@ufpa.br
27
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Em muitos casos essa "chegada" implica em desestruturação


parcial ou total dos modos de vida e dos territórios pré-existentes e, em
seu lugar uma nova ordem territorial é estabelecida para atender
fundamentalmente os interesses dos sujeitos que se instalam e passam a
operar os comandos dos novos territórios em escalas muito
diferenciadas de articulações, algumas delas chegaram ao nível
planetário. Nessa condição encontram-se grandes empresas
mineradoras no território paraense, a exemplo da Alcoa que opera,
dentre outros lugares, no município de Juruti, localizado no extremo
oeste do Pará.
No município de Juruti, a exploração de bauxita, pela Alcoa, não
foge à regra histórica da territorialização dos grandes empreendimentos
em detrimento dos territórios abrigos (SANTOS, 2005) das
comunidades, ainda que, durante as pesquisas de campo, se tenha
detectado um grande esforço da empresa para minimizar os efeitos dos
conflitos por ela gerado.
A dinâmica territorial envolvendo o território abrigo das
comunidades paraenses tem sido objeto de estudos nas diversas
ciências sociais, dentre elas a Geografia Agrária. Entretanto, se faz
necessário ampliar esforços acadêmicos que possam aprofundar
conhecimentos em relação às diferenças desses territórios abrigos, dos
sujeitos envolvidos no processo de sua construção e da qualidade das
transformações. Para que possam servir de base às novas políticas
públicas capazes de gerar maior eficiência em seus resultados.
É necessário desenvolver estudos com base em retrospectivas
históricas e ao mesmo tempo aprofundar conhecimentos com base
empírica, possível a partir de detidos levantamentos de campo,
condição indispensável para analisar e conhecer as múltiplas razões que
podem explicar o porquê dos projetos de base econômica, implantados
ao longo das últimas décadas serem marcados por dinâmicas territoriais
enxameadas de conflitos e prejuízos às comunidades locais. Condição
importante para evitar o simplismo analítico e respostas rápidas para
problemas cada vez mais complexos.
Tem-se consciência dos limites e do propósito deste texto, ele
apenas pretende trazer ao conhecimento de estudantes universitários,
atraídos pela dinâmica territorial do campo, mais uma possibilidade de
interpretação da realidade - a Geografia Agrária, por meio de algumas
inserções e aprendizados no campo paraense. Os quais serão

28
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

apresentados em sequência da experiência mais antiga para a mais


recente, sem se preocupar com unidade e conclusões. O autor não teve
por preocupação apresentar algo finalizado, uma vez que a questão é
tratar de algo que se encontra em curso, ou seja, a ação do pesquisador
no campo da Geografia Agrária. Por outro lado, teve-se a preocupação
de trazer uma vasta referência bibliográfica utilizada pelos projetos de
pesquisa ao longo dos anos. Acredita-se que isso pode ser útil como
forma de indicação de leituras sobre a temática para os estudantes
interessados na questão em pauta.
Destaca-se ainda que a escolha das "inserções e aprendizados"
ocorreram durante a organização da palestra "(Re)Organização
Territorial e População Ribeirinha no Estado do Pará", ministrada em
novembro de 2013, na Universidade do Estado do Pará (UEPA), a
convite do Grupo de Pesquisa Territorialização Camponesa na
Amazônia, liderado pelos professores Cátia Macedo, Fabiano Bringel e
Rosiete Santana. Assim sendo, o texto é construído a partir de
adaptações e recortes de trabalhos já publicados na forma de livro,
capítulos de livros, relatórios e, no último caso - Inserções e
aprendizados no Lago Juruti Velho -, em maior detalhe a trajetória
metodológica da pesquisa e algumas conclusões da tese de doutorado
sobre conflito socioambiental e (re)organização territorial no município
de Juruti-Pará (2012), defendida no Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(PGDR/UFRGS), como forma de orientar a estruturação de projetos
de pesquisa de estudantes, interessados em investigar o campo
paraense.

Inserções e aprendizados no campo paraense

Ao longo das duas últimas décadas se somaram diversas


inserções aos diferentes rincões do campo paraense, foram projetos de
pesquisa que privilegiaram fundamentalmente o uso dos rios, de suas
adjacências e, em diversas ocasiões, nos ambientes de várzea (ora
domínio das terras, ora domínio das águas) ou de terras-firmes e, nessas
dimensões foi necessário trabalhar com diferentes sujeitos que, no
embate cotidiano, dão conformação aos seus territórios, a exemplo dos
varzeiros ou vargeiros, terra-firmeiros, ribeirinhos, beradeiros, colonos,

29
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

assentados, posseiros, sem terra, pescadores, garimpeiros, fazendeiros,


madeireiros, etc.
O aprendizado com esses trabalhos no campo paraense têm
fortalecido, via a Geografia Agrária, o entendimento de que é
necessário conhecer as especificidades do campo para pensar de
maneira mais eficiente o desenvolvimento rural num estado de tão
grande dimensão territorial. Neste aspecto vale ressaltara que o Pará é o
segundo maior Estado brasileiro em extensão territorial, sendo
superado apenas pelo Amazonas, que também está localizado na região
Norte. Sua dimensão é de 1.247.689 km² (IBGE, 2010) –
aproximadamente 30 vezes o tamanho da Suíça, 13 vezes o de Portugal
e mais de 2 vezes o da França.
O território paraense está dividido em 12 Regiões de Integração 8
(RI). Cada uma delas apresenta configurações territoriais muito
distintas. Por essas razões, se torna importante promover estudos que
valorizem essas especificidades, adentrando na dinâmica dos lugares,
sem deixar de valorizar as indispensáveis conexões existentes entre o
lugar e o mundo.
Na Figura 1, a seguir, podem ser observadas as 12 grandes RI do
Pará, com destaque para a RI Baixo Amazonas, onde estão
identificados os municípios que a compõem e a localização das suas
respectivas sedes municipais. Dentre esses municípios, pode-se notar a
localização de Juruti, no extremo oeste do Pará, onde está sendo
desenvolvido o Projeto de Pesquisa Juruti (PPJUR), apoiado pelo
Núcleo de Meio Ambiente da Universidade Federal do Pará (NUMA-
UFPA) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq). Ao final será apresentado alguns de seus
resultados, juntamente com outras inserções e aprendizados em
diferentes cantos desse imenso estado.

8
“A nova proposta de regionalização para o Estado do Pará surgiu da
constatação de que as regionalizações estabelecidas pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) – Mesorregião e Microrregião – não mais
refletiam a realidade estadual. A identificação das 12 Regiões de Integração
levou em consideração as características de concentração populacional,
acessibilidade, complementaridade e interdependência econômica”. (PARÁ,
[2009, p.01]).

30
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Figura 1: Pará - Regiões de Integração


Fonte: CANTO (2012).
Mapa elaborado pelo Projeto de Pesquisa Juruti (PPJUR), utilizando a Base Digital do IBGE (2008); SEIR (2007), 2012.

31
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Inserções e aprendizados nas várzeas do rio Amazonas

Um dos estudos foi realizado nas várzeas da RI Baixo


Amazonas, mais especificamente no município de Óbidos, onde estão
localizadas diversas comunidades, tais como: Marituba, Maritubinha,
Santa Cruz, São Lázaro, Livramento, Trindade, Vila Roberta, São
Raimundo, Santa Rita, Vila Barbosa, Vila Vieira, Vila Poranga, Menino
Deus, São Jorge etc. As inserções no campo ocorreram entre 1994-
1998 e seus resultados sistematizados em 1998, na forma de dissertação
de mestrado realizada na Universidade de São Paulo, sob o título
"Várzea e Varzeiros: a vida de um lugar no Baixo Amazonas". Mais
tarde, em 2007, foram publicados na Coleção Eduardo Galvão do
Museu Paraense Emílio Goeldi, com o título "Várzea e Varzeiros da
Amazônia". As pesquisas e reflexões se deram à luz da Geografia
Agrária, ainda que muitas formulações tenham partido do diálogo com
outras áreas do conhecimento, tal como Antropologia, Sociologia e
História, com objetivo de compreender a dinâmica territorial varzeira
do grupo estudado.
O levantamento bibliográfico de época revelou que eram
restritos os estudos geográficos relativos às populações varzeiras no
Pará. Situação que demonstrava a necessidade de dedicação por parte
dos geógrafos paraenses, em tratar dessa temática tão importante. É
indispensável, portanto, esforço cada vez maior dos geógrafos para que
se possa, juntamente com outros profissionais e com essas populações,
apontar de maneira sensata soluções para os diferentes problemas
vividos localmente, mesmo que os lugares estejam conectados às
diferentes escalas do espaço geográfico.
O grupo estudado se auto-definiu como ribeirinho-varzeiro, ou
seja, além de viver às margens e em sintonia com o rio, que lhe dá a
condição de ribeirinho, ocupa e produz a sua substância numa área de
várzea. Nessa situação a natureza não se limita à condição de base
material de sua vida, natureza e comunidade fazem parte de uma única
estrutura orgânica, algo indissociável, um amálgama.
O trabalho e as suas relações são definidas pelas demandas
sociais da vida comunitária. A ajuda mútua e a solidariedade estão
sempre presentes, porque a sobrevivência de uma unidade familiar está
conectada a do outro. No interior dessas relações o assalariamento

32
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

temporário tem presença, no entanto está longe da conotação


explorador-explorado tão evidente na dimensão capitalista de produção.
A organização do trabalho familiar sintetiza a feição das relações
sociais no seio das famílias e entre as famílias da comunidade. Do
mesmo modo que as relações destas com a natureza, produzindo
equilíbrio entre produção, consumo e esperança frente aos desafios
cotidianos que não são poucos.
As principais atividades socioeconômicas, que têm dado suporte
à (re)produção territorial do grupo estudado nas últimas décadas, são o
chamado gado (o gadinho), a roça, a juta (até a década de 90) e a pesca.
O gadinho é constituído por um reduzido rebanho de gado bovino,
cuja quantidade oscila de acordo com as necessidades da unidade
familiar; é uma espécie de poupança. O produto do trabalho na roça e
gadinho está voltado basicamente para o autoconsumo da unidade
familiar; sendo apenas uma parte destinada ao mercado que, quando
não está saturado, absorve seus produtos a preços desestimulantes.
Assim, parte deles se deterioram como sinal da ausência de uma política
de aproveitamento dos produtos agrícolas regionais. É comum
encontrar na cidade Óbidos produtos similares provenientes do sudeste
e sul do Brasil, essa situação evidentemente é a face perversa da
chamada competitividade do mercado. Enquanto isso, os varzeiros
ficam cada vez mais excluídos da possibilidade de colocarem seus
produtos agrícolas no mercado por uma condição favorável, por falta
de política pública eficiente.
Mesmo em condições adversas para manter suas atividades
tradicionais o grupo estudado tem resistido, sempre procurando
mecanismos para se reproduzir, por isso nas duas últimas décadas esses
varzeiros têm ampliado cada vez mais suas atividades em direção à
pesca comercial, ressentindo-se e consciente das dificuldades que esta
modalidade imprime para a sua sobrevivência, tendo em vista que o
crescimento desse tipo de pesca provoca diminuição da sua principal
fonte de alimento. Isso, portanto, demonstra que a comunidade é
compelida a desenvolver certas atividades que não estão sob o controle
de seus desejos e o seu território abrigo torna-se cada vez mais
vulnerável.

33
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Inserções e aprendizados no rio Xingu

As pesquisas envolvendo comunidades do rio Xingu e suas


adjacências se deram, inicialmente, em função dos trabalhos que
objetivavam a elaboração dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) da
Usina Hidrelétrica de Belo Monte, entre 2000-2001, nos municípios de
Altamira, Vitória do Xingu, Senador José Porfírio e Anapú. Nesse
sentido, como se tratava de uma situação que envolvia a
(re)estruturação territorial de comunidades, tomou-se a decisão de
identificar as principais trajetórias adotadas que permitissem entender a
dinâmica territorial existente, a qual estava sob ameaças de mudanças
radicais, inclusive implicando em deslocamento compulsório, por conta
do barramento do rio Xingu e de outros tipos de construção que
acompanham um empreendimento de tal magnitude.
Com base na perspectiva histórica regional foram identificadas
duas trajetórias da maior importância. A primeira relativa ao processo
de construção do território via o rio Xingu e seus afluentes, com
destaque para o Tucuruí que banha a cidade de Vitória do Xingu. Essa
construção remonta ao período colonial e só passou a ter sua
hegemonia ameaçada na segunda metade do século XX, com a abertura
da rodovia Transamazônica (BR-230). Esse processo teve início no
período colonial com base na exploração dos recursos naturais, a
exemplo das drogas do sertão, peles de animais, carne de pirarucu,
tartarugas (Podocnemis expansa), ovos, peixes, borracha (Hévea brasiliensis),
castanha-do-pará (Bertholletia excelsa) e um forte controle por meio das
estruturas militares, religiosas e posteriormente pelos aviadores
seringalistas. Por essa via, tronou-se regra a instalação de unidades
familiares às margens dos rios e que, ao longo do tempo, foram criando
as chamadas comunidades ribeirinhas, à medida que aprenderam
conviver com o rio e dele fazer uso, no sentido de suprir as suas
necessidades fundamentais.
A segunda relativa ao processo que teve origem com a
construção da Transamazônica no início da década de 1970. A partir de
então, são provocadas gradativamente significativas rupturas na
dinâmica territorial com base na ocupação beira (do rio)-centro (da
floresta). O rio continuou sendo referência de ocupação e circulação.
Entretanto, passou, cada vez mais, a ceder sua condição hegemônica do
passado, para se integrar a uma nova dinâmica territorial, cada vez mais

34
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

forte, imposta pela ocupação das margens da Transamazônica e de suas


vicinais, que se estendiam por diversos quilômetros para dentro da
floresta. Essa condição foi estimulada pelo projeto oficial de
colonização do Governo Federal, por meio do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA) que, planejou um sistema
misto de ocupação com base na concepção de urbanismo rural que
resultou em uma nova estrutura de povoamento da região, inclusive
criado a figura de agrovilas, agrópolis e rurópolis, que mais tarde,
algumas delas, deram origem à vilas e cidades. Esse sistema misto teve
por objetivo assegurar a fixação da força de trabalho no espaço regional
para criar maiores possibilidades de integração, planejada pelos
governos militares da época.
Vale destacar que nessa região, onde ocorreu a implantação do
Programa Integrado de Colonização (PIC Altamira), a colonização
oficial trouxe mudanças substanciais, estimulando a ruptura do velho
sistema econômico baseado no extrativismo animal e vegetal para
implantar um outro sistema com base na substituição da floresta por
pasto e cultivos agrícolas, tais como cana-de-açúcar, pimenta, cacau,
mandioca etc. Nessa perspectiva, ocorreu o crescimento demográfico,
maior disponibilidade de mão de obra e, consequentemente, os
conflitos derivados das disputas pela propriedade e uso das terras e de
seus recursos naturais. Paralelo a isso, a produção aurífera na Volta
Grande do Xingu, com destaque para os garimpos no entorno da Ilha
da Fazenda e Ressaca, seguiam seus próprios estímulos, contabilizando
enorme atração populacional de diversos lugares do Brasil; baixíssima
condição de trabalho, segurança, saúde e graves prejuízos de caráter
ambiental.
O abandono do projeto de colonização pelo governo federal
impôs uma nova ordem, a qual passou a ser comandada pela "lei do
mais forte". Assim, as áreas prioritariamente destinadas à ocupação por
pequenos produtores foram ampliadas pela lógica do mercado,
intimidação, ameaças e outros tipos de violência, rompendo
completamente com o modelo urbano-rural conduzida pelo Estado, no
início da década de 1970.
Nessa perspectiva, na Volta Grande do Xingu, a especulação
fundiária e a própria pressão demográfica empurrou, cada vez mais, os
assentados e aqueles que chegavam em busca terra para trabalhar, para

35
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

as áreas mais distantes dos disputados eixos compostos por rodovia-


vicinais.
Um dos mais importantes resultados desse estudo decorreu do
fato de se compreender que muitas unidades familiares chegaram às
margens dos rios como que de costas para ele e de frente para um
ramal que levava a alguma vicinal dando acesso à estrada principal - a
Transamazônica. Dessa maneira, essa inserção permitiu o aprendizado
de que não basta um grupo de pessoas viverem à beira de um rio para
que o mesmo seja definido como ribeirinho.
Outro aspecto importante das inserções no campo foi identificar
as comunidades que seriam afetadas pela formação do reservatório
(canais) da UHE Belo Monte na Volta Grande do Xingu. Na área
compreendida entre a Transamazônica e a Volta Grande do Xingu, nas
Glebas Jôa e Paquiçamba a situação identificada foi a seguinte:
a) Comunidades inundadas - Santo Antônio, localizada no Km-
50 da rodovia Transamazônica (25 famílias identificadas), São
Raimundo Nonato, Travessão do Km-45 - Cobra Choca (58 famílias
identificadas), Santa Luzia, Travessão do Km-55 - CNEC (54 famílias
identificadas) e São Francisco das Chagas ou Deus é Amor, Travessão
do Km-55 - CNEC (31 famílias identificadas); com um total de 170
famílias identificadas, correspondendo aproximadamente 850 pessoas.
b) Comunidades parcialmente inundadas: Sagrado Coração de
Jesus, Travessão do Km-18 (13 famílias identificadas), São José
( Travessão do Km-23 (15 famílias identificadas), Boa Esperança,
Travessão do Km-27 (20 famílias identificadas), São Francisco de Assis,
Travessão do Km-27 (63 famílias identificadas) e Vila Rica, Travessão
do Km-27 (21 famílias identificadas), Bom Jardim, Travessão do Km-
45 (20 famílias identificadas), Terra Preta, Travessão do Km-62, (36
famílias identificadas). Alem disso foram identificadas comunidades que
ficarão isoladas, sem vias de acesso para as cidades, são elas: Santa
Terezinha, Travessão do Km-27 (39 famílias identificadas) e Bom
Jardim II ou Goianos, Travessão do Km 45 (17 famílias identificadas).

Inserções e aprendizados nas várzeas do rio Mapuá

Em 2002 foi realizado, no rio Mapuá, município de Breves, ilha


de Marajó, estado do Pará, um estudo envolvendo seis comunidades
ribeirinhas: São Sebastião, Bom Jesus, Vila Amélia, Nossa Senhora do

36
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Perpétuo Socorro, Cantagalo, Santa Maria. O referido estudo foi uma


demanda da Central de Cooperativas Nova Amafrutas, através do
Convênio Nº 518 - Nova Amafrutas/Ufpa/Fadesp, em conjunto com a
Empresa Ecomapuá Conservação Ltda., cujo objetivo foi a elaboração
de um diagnóstico socioeconômico e ambiental das comunidades
agroextrativistas às margens do rio Mapuá e de um projeto piloto na
comunidade de Vila Amélia.
O estudo implicava em grandes desafios uma vez que havia uma
proposta de implementação da um projeto de desenvolvimento
sustentável na área reivindicada pela empresa Ecomapuá, conhecida
localmente como Santana Madeireira Ltda. O primeiro pelo fato de se
tratar de uma área privada com aproximadamente 98.000 ha,
supostamente pertencente a Ecomapuá que havia adquirido as terras
nos últimos cinco anos. O segundo fato era a presença de cerca de 200
famílias, distribuídas em comunidades ribeirinhas, que reivindicavam,
de modo organizado, seus direitos de continuarem vivendo nas terras e
nas águas, que lhes deram vida ao longo de diversas gerações.
A empresa teimava em definir as regras da produção econômica
das famílias com apoio do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), essa tentativa provocou
grande descontentamento por parte da sociedade local que resolveu se
manifestar por meio de uma grande passeata pelas ruas da cidade de
Breves, deixando aflorar o conflito socioambiental entre empresa,
IBAMA e a sociedade civil organizada, cuja questão maior se assentava
na dimensão fundiária e no uso dos recursos naturais, com destaque
para o madeireiro, embora maior parte da madeira de lei já houvesse
sido retiradas dá área em questão.
Identificou-se que a centralidade do conflito girava em torno da
questão fundiária e dificuldade de obtenção de renda por parte das
comunidades ribeirinhas que estavam habituadas ao extrativismo da
madeira e palmito, ainda que extremamente subordinado aos patrões
aviadores, uma prática econômica desenvolvida na região desde o
tempo dos exploradores de borracha (Hévea brasiliensis) e peles de
animais. As comunidades temiam não conseguirem sobreviver apenas
com a extração do açaí, pequena agricultura da mandioca e pesca
(muito pobre devido a acidez das águas, principalmente na
comunidades como Santa Maria).

37
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Do ponto de vista metodológico, o estudo conduziu seus


levantamentos e análises considerando a distribuição espacial das
famílias ribeirinhas; a organização da sociedade civil; a estrutura da
empresa na região; a ação governamental e seu aparato institucional
existente na região e os conflitos fundiários existentes, uma vez que foi
detectado indícios de que grupos econômicos apropriavam-se das terras
mediante cobrança de dívidas ou mesmo se apropriavam das terras por
meio ilícitos.
Em síntese, identificou-se que o modo de vida das comunidades
ribeirinhas do rio Mapuá, até o momento da pesquisa, estava baseado
em num tipo de extrativismo subordinado aos patrões madeireiros.
Nesse sentido, foi possível detectar uma situação extremamente grave e
com sérias dificuldades em relação às condições de reprodução social
das famílias ribeirinhas do rio Mapuá. Por meio dessa inserção foram
detectadas a formação de territórios com base na prática de servidão,
típica do século XIX, em áreas de atuação de extração madeira, ainda
que em uma região tão próxima da capital do Estado.

Inserções e aprendizados no rio Tapajós - São Luiz do Tapajós

Em 2003 foi iniciado um estudo sobre dinâmicas territoriais de


comunidades ribeirinhas no Baixo Tapajós no interior do Projeto
Caruso, liderados por professores da Université du Québec à Montréal
(UQÀM). Entre 2005 e 2006, a pesquisa passou a ser realizada como
parte dos estudos que compuseram o Zoneamento Ecológico-
Econômico da Área de Influência da Rodovia BR-163 (Cuiabá-
Santarém). São Luiz foi uma das principais comunidades
territorialmente investigada, dessa maneira, em 2007, foi publicado pela
Embrapa o livro "São Luiz do Tapajós: Uso do território na
Amazônia".
São Luiz é uma comunidade ribeirinha localizada na margem
direita do rio Tapajós, local de rara beleza nas primeiras corredeiras do
rio. A origem de São Luiz é muito antiga e esta ligada à formação de um
pequeno povoado na ilha de Lauritânia, inclusive registrado na
passagem de Henri Coudreau, em 1895. Esse lugar se tornou
estratégico para o comércio de peles de animais silvestres, ovos de
tartaruga (Podocnemis expansa), castanha-do-pará (Bertholletia excelsa),
borracha (Hévea brasiliensis), ouro e outros recursos naturais, uma vez

38
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

que a sua localização está no ponto de contado entre o alto curso, com
muitas corredeiras, dificultando a navegação e o baixo curso, sem
maiores obstáculos e inteiramente navegável até a sua foz no rio
Amazonas na altura da cidade de Santarém.
Entre as atividades econômicas que mais atraíram migrantes,
principalmente nordestinos e dinamizaram o território local foram o
extrativismo da borracha e o garimpo de ouro. Ao longo dos anos, os
grupos sociais que chegaram à região foram assimilando com os grupos
locais, a convivência com os ambientes. Muitos, porém, aprenderam e
ensinaram a viver uma espécie de simbiose com os rios, tornando-se
verdadeiros ribeirinhos.
Um importante fator para a comunidade de São Luiz do Tapajós
foi o deslocamento de antigos moradores da área que foi transformada
no Parque Nacional da Amazônia (PARNA). A criação desse parque
em 1974 se deu no contexto do Plano de Integração Nacional (PIN),
que ao imobilizar uma área de seis milhões de hectares de terra, o
conhecido Polígono de Altamira, para a “reforma agrária”,
disponibilizou cerca de um milhão de hectares para conservação,
nascendo assim, umas das primeiras unidades de conservação criada na
Amazônia. Esse fato indica a inauguração, também por parte do
governo, de uma política de “preservação” ambiental. Embora, o
principal objetivo governamental era estimular a ocupação de terras sob
a influência da rodovia Transamazônica e estabelecer programas
agropecuários.
Nessa área, entretanto, havia diversas unidades familiares que se
reproduziam por meio da extração de borracha, coleta da castanha,
caça, pesca e pequenos cultivos agrícolas, principalmente da mandioca.
Essas pessoas foram pressionadas a abandonar a área com a promessa
de que seriam indenizados, porém, os depoimentos obtidos em campo
revelaram atos de intimidação e o não cumprimento integral do
processo indenizatório prometido pelos agentes do governo aos antigos
moradores.
A imposição não se limitou ao abandono da terra por parte dos
antigos moradores, mas a todo seu modo de vida, uma vez que muitos
deles saíram das margens do rio Tapajós e passaram a viver às margens
da Rodovia Transamazônica, outros seguiram para a cidade ou
comunidades mais próximas, como foi o caso daqueles que se dirigiram
para São Luiz do Tapajós.

39
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Em São Luiz foi criada infraestrutura para apoiar a produção de


borracha, foi instalada casa de aviamento, compra e controle dos
seringais, além de um porto equipado para receber navios de carga. A
chegada da empresa Alto Tapajós, de capital americano e brasileiro
(financiamento do Banco da Borracha, atual Banco da Amazônia -
BASA), posteriormente comprada pela empresa Arruda & Pinto
também fez parte do processo de estímulo à produção da borracha.
Assim, os habitantes de São Luiz vivenciaram relativa prosperidade
econômica, porém os seus verdadeiros habitantes, na sua maioria
continuaram vivendo de modo muito modesto, uma vez que os ganhos
com esse sistema de produção foram investidos muito longe dela,
principalmente em Belém.
A desestruturação do processo produtivo da borracha na
segunda metade do século XX impôs uma nova organização produtiva
na Amazônia. Em São Luiz se deu a partir da retomada de aspectos
fundamentais do seu modo de vida baseado na pesca, agricultura
familiar de subsistência, com destaque para as roças de mandioca,
milho, feijão, arroz, banana, pequena parcela de pessoas se dedicando à
criação de gado bovino e o pequeno comércio. Dessa maneira, a
comunidade de São Luiz conseguiu sair da dependência do aviamento e
prosseguir seu modo de vida ribeirinho.
Do ponto de vista da delimitação da configuração territorial de
São Luiz, a pesquisa foi exaustiva, uma vez que demandou um árduo
trabalho de levantamentos das informações junto às unidades
familiares, envolvendo entrevista sobre suas atividades, o
georreferenciamento das residências, sobretudo aquelas distanciadas do
núcleo de povoamento e interpretação de imagens de satélite.
Concebeu-se inicialmente uma configuração territorial arbitrária para
realizar a primeira investida a campo de modo que, sua representação
aproximava de um quadrado com um ponto ao centro indicando a
existência de um núcleo de povoamento às margens do rio Tapajós.
Após os estudos realizados por meio das entrevistas;
georreferenciamento (residências, roças, pastos) e interpretação das
imagens de satélite, partiu-se para uma segunda fase de representação
da configuração territorial. Dessa maneira, foi produzida uma carta-
imagem contendo o conjunto das informações colhidas em São Luiz.
No segundo trabalho de campo, em 2004, foi apresentada a carta-
imagem acompanhada de estímulos e orientações para que os

40
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

comunitários pudessem fazer a leitura e interpretação da mesma,


contribuindo para o seu refinamento e correções dos possíveis
equívocos de representação. Assim, o trabalho foi realizado com
pequenos grupos, em média de três a quatro pessoas. Via esse processo,
chegou-se ao que foi chamado de “limite dialogado”, justo por ter sido
o resultado de um conjunto de técnicas e diálogos com os moradores
de São Luiz, por meio de uma cartografia participativa.
Durante a pesquisa também se observou, como parte do modo
de vida, sistemas explicativos próprios, uma espécie de relação mítico-
material com a natureza para explicar a razão dos seus medos. A
natureza é algo que se distancia pelo medo e se aproxima na construção
material da vida, tudo isso decorre concomitantemente. Isso certamente
revela a existência de sistemas complexos desenvolvidos por esses
ribeirinhos para dar conta das suas realidades. Portanto, é nessa
perspectiva que se entende São Luiz como uma comunidade
tipicamente ribeirinha. Embora se saiba que a comunidade é dinâmica e
os agentes modernizadores (televisão, telefonia, energia constante,
estrada), tenham, como em todo lugar, papel de (re)estruturadores
espaciais e, por conseguinte, impõem novas qualidades, tanto do ponto
de vista do espaço, como propriamente do modo de vida das pessoas.
Atualmente a comunidade vive a expectativa da construção da
Usina Hidrelétrica de São Luis do Tapajós a cerca de seis quilômetros a
montante do rio. Estudos de Impacto Ambiental e Relatório de
Impacto no Meio Ambiente (EIA-RIMA), já concluídos, indicam
possibilidades de sua construção. Situação que tem envolvido muita
polêmica entre governo, comunidades locais, ativistas, etc.

Inserções e aprendizados no Lago Juruti Velho

Destaca-se que todas as inserções e aprendizados anteriores


contribuem para a execução das pesquisas mais recentes, inclusive na
escolha e tomada de decisão relativa a trajetória metodológica a ser
adotada em cada novo trabalho. Por outro lado, servem também para
alargar horizontes de interpretação acadêmica à medida que se funde
teoria e empiria assimilada nos trabalhos de campo.
O Projeto de Pesquisa Juruti (PPJUR), ao longo desses anos de
trabalho tem contado com uma forte empiria, desenvolvido pelo
pesquisador desde a década de 1970. Tempo em que se aprendeu

41
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

remar, pescar, reconhecer as batidas dos peixes nas águas mansas dos
lagos e respeitar os perigos dos banzeiros dos rios, sobretudo os do
Amazonas sob ventos de leste.
A observação realizada ao longo desse tempo pretérito, ensinou
reconhecer como uma balança podia subtrair os ganhos dos produtores
de juta, pescado, farinha, etc., para enriquecer os patrões aviadores. Foi
nesse tempo que se começou a perceber que a propriedade privada da
terra deveria ser extinta, que o seu arrendamento era uma forma injusta
de apropriação do trabalho de outrem e que o sistema de
apadrinhamento se prendia ao seio de uma escravidão consentida pela
sociedade, que a justificava e lhe dava suporte de realização e chancela.
É importante esclarecer que o conhecimento empírico gerado a
partir dessas observações e vivências do passado foi fundamental para
orientar os levantamentos da nossa mais nova inserção no campo
paraense, desta vez focada na implantação e operação do projeto de
exploração de bauxita da mineradora Alcoa e os conflitos
socioambientais no município de Juruti e, mais especificamente, no lago
Juruti Velho. Inserção iniciada em 2006, durante levantamentos de
campo destinados à elaboração do Zoneamento Ecológico-Econômico
da Área de Influência da Rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém). A partir
de então serão apresentados os principais passos dessa pesquisa e
alguns de seus resultados, na seguinte sequência:

a) Construção e ajustes das ferramentas de pesquisa para o


campo e no campo

A pesquisa em Juruti foi um exaustivo processo de construção e


ajustes das ferramentas de pesquisa conforme as dificuldades
enfrentadas no campo para obter as informações necessárias e analisar
as dimensões do conflito socioambiental. Além da (re)organização
territorial que se estabeleceu em função da instalação e funcionamento
do projeto de exploração de bauxita da mineradora Alcoa no município
de Juruti. Assim, as idas e vindas ao campo sempre demandaram ajustes
dos instrumentos de pesquisa (conversas livres, anotações de campo,
fotografias, mapeamentos, cartografias participativas, formulários,
roteiros de entrevistas, etc.).
Os procedimentos dessa pesquisa, foram realizados em duas
etapas, a primeira privilegiou as experiências acumuladas por meio dos

42
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

trabalhos de campo anteriores à formalização do Projeto de Pesquisa


Juruti (PPJUR), em 2009, os quais passaram a ser chamados de
"campos exploratórios". A segunda privilegiou os passos do PPJUR.
Assim sendo destacam-se as seguintes etapas:
Primeira etapa:
I- reconhecimento das áreas investigadas. Essa condição sempre
implicou em abstrair o ambiente e características gerais das unidades
familiares ou populações que ali habitavam, valorizando a observação
sobre as relações entre eles e deles com os ambientes que o
circundavam, além das instituições que se faziam presentes no seu
espaço de vivência e reprodução social. Dessa observação, procurava-se
perceber se poderiam ser identificados como varzeiros, terrafirmeiros,
ribeirinhos, índios ressurgidos, quilombolas, habitantes do centro (da
mata), beiradeiros (do rio, a exemplo daqueles que foram empurrados
por proprietários de terras para a beira do rio, mas que, sobretudo por
questões de ordem cultural, não têm relação orgânica com o rio, estão
como que “de costas para o rio”), e assim por diante;
II- mapeamento das áreas de interesse da pesquisa e seu entorno.
Ação foi desenvolvida com auxílio de cartas de navegação, com
destaque para as da Diretoria de Serviço Geográfico do Exército
(DSG), as do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e
Carta-imagem elaborada a partir da utilização da Imagem Landsat5,
atualizada a cada retorno do trabalho de campo;
III- reflexão relativa à forma de chegada junto aos ambientes e às
pessoas que ali habitavam, do mesmo modo que os mais adequados
instrumentos de pesquisa para cada situação identificada. Nesta
condição, definia-se a estratégia e o uso de instrumentos de pesquisa,
em muitos casos com os próprios pesquisados. A título de exemplo,
vale destacar os “cenários participativos” feitos nas comunidades-alvo e
com a participação efetiva das mesmas. Esse tipo de trabalho foi
implementado em três comunidades do Projeto Agroextrativista do
Lago Grande e uma comunidade do Projeto de Assentamento Moju,
ambos no município de Santarém. Em outros casos, para atender a
objetivos diferentes - por exemplo, identificar o perfil socioeconômico
e demográfico de comunidades -, foi construído, testado e ajustado um
formulário, com a participação dos membros das comunidades.
Segunda etapa:

43
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

I- o trabalho desenvolvido nos “campos exploratórios” auxiliou


na delimitação do problema de pesquisa: o Projeto Mina de Bauxita de
Juruti, implantado pela mineradora Alcoa a partir de 2006, no
município de Juruti, tem produzido conflito socioambiental de grande
monta entre a empresa mineradora e as comunidades locais. Além
disso, os marcos regulatórios não conseguem assegurar os direitos
compensatórios às comunidades, pelas suas perdas socioambientais e
pelas retrações territoriais, causando ainda mais insatisfação e revolta. O
conflito socioambiental tem sua maior expressão nas comunidades
ribeirinhas do lago Juruti Velho no interior do Projeto Agroextrativista
(PAE) Juruti Velho;
II- os “campos exploratórios” também foram importantes para
escolha e execução do recorte espacial e temporal da pesquisa. Nesse
sentido, definiu-se o município de Juruti como área maior. O epicentro
das análises foi definido, porém, nas comunidades ribeirinhas do lago
Juruti Velho, no interior do PAE Juruti Velho;
III- no sentido da temporalidade, estabeleceu-se uma flecha do
tempo, fazendo uma tomada histórica desde o início do século XIX,
momento da origem da principal povoação da região do Lago de Juruti
Velho, para se ter ideia geral do espaço de vivência comunitária do lago
antes da chegada da Alcoa. Por outro lado e, de maneira mais precisa
temporalmente, a análise se prendeu ao período de 2006, ano do início
da implantação da mineradora, a abril de 2012, mês da última visita de
campo, para esse trabalho;
IV- diferentes ordens de problemas, evidenciados com o
andamento das pesquisas, exigiram a elaboração de uma série de mapas
para facilitar uma visão espacial deles. Por essa razão, foram elaborados
instrumentos de análise espaciais, que tiveram suas bases impressas e
dialogadas com diferentes sujeitos envolvidos nas problemáticas em
foco. A maioria dos referidos mapas passou por ajustes no próprio
campo.
Posteriormente, partiu-se para identificar os grupos de sujeitos
mais importantes no contexto geral da problemática de pesquisa. Esses
grupos de sujeitos, os “porta-vozes” do movimento geral que passou a
ser vivido no município de Juruti, a partir da instalação e
funcionamento do Projeto Mina de Bauxita de Juruti.
Assim, conseguiu-se chegar a um primeiro agrupamento de
sujeitos: empresarial, comunitário, administração pública, associações e

44
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

sindicatos. Além disso, para reforçar a representatividade de visões em


torno da problemática, preferiu-se introduzir mais um grupo de escolha
aleatório, constituído por pessoas apontadas como “de notória
influência sobre a formação de opinião pública no município”, que não
estivessem enquadradas como representantes de nenhuma das cinco
categorias acima definidas (ex: professor(a), advogado(a), religioso(a),
estudante, entre outros).
Após essa etapa, e de minuciosa observação das complexas
relações institucionais nos arranjos, que vão da escala lugar à escala
mundo, procurou-se fazer um segundo agrupamento de sujeitos que, ao
mesmo tempo, contemplasse os grupos anteriormente definidos, mas
que facilitasse a organização dos campos para a realização das
entrevistas, potencializando tempo, recurso e eficiência na coleta das
informações. Por essas razões, realizou-se um novo arranjo
organizacional para as entrevistas, pelo qual definiu-se cinco grupos de
sujeitos com o total de 117 entrevistas, das quais 113 foram gravadas no
sistema DVD e quatro apenas registradas em caderno de campo, a
saber:
a) membros e/ou lideranças das “comunidades do centro” –
Projetos de Assentamentos Socó I e Nova Esperança (37 entrevistas);
b) membros e/ou lideranças das “comunidades ribeirinhas” do
PAE Juruti Velho (35 entrevistas);
c) membros e/ou lideranças das “comunidades varzeiras” dos
Projetos de Assentamento Agroextrativistas nas várzeas (4 entrevistas
não gravadas);
d) membros do Conselho Juruti Sustentável – CONJUS (20
entrevistas);
e) lideranças locais e outros membros da sociedade civil (21
entrevistas).
A seguir, serão apresentadas quatro das seis tabelas-síntese
construídas, contendo dados das entrevistas feitas entre dezembro de
2010 e abril de 2012. Entretanto, vale esclarecer os seguintes aspectos:
a) “comunidades do centro” estão localizadas às margens das
estradas, cuja ideia de “centro” está ligada ao interior da floresta e
distanciada do rio, o Amazonas, no caso. As “comunidades ribeirinhas”
do PAE Juruti Velho são aquelas que vivem às margens dos lagos Juruti
Velho e do Miri. As “varzeiras” estão localizadas nas várzeas;

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

b) a identidade dos entrevistados foi substituída pela sua


condição de “liderança”, de “comunitário(a)”, de “membro” ou de sua
“ocupação”. Essa condição resultou do acordo entre o pesquisador e o
entrevistado, momentos antes de cada entrevista, motivado
principalmente por questões de segurança e para evitar possíveis
constrangimentos, intimidações ou perseguição ao entrevistado, uma
vez que se tratava de um conflito em curso, e alguns desses atores já
haviam sofrido ameaças, inclusive de morte, com suspeitas de que
tenham partido de grileiros e/ou madeireiros. É importante esclarecer
que não há registro desse tipo de ameaça por parte da mineradora
Alcoa;
c) maior parte das entrevistas foi feita em 2011, com os seguintes
percentuais: 2010 (14,53%), 2011 (81,20%) e 2012 (4,27%);
d) do total dos entrevistados, 69,25% cursaram, no máximo, o
Ensino Fundamental completo; 11,1%, no máximo, o Ensino Médio
completo, e 11,11%, o Ensino Superior, sendo que este grupo conta
com pessoas atraídas pelo projeto de mineração da Alcoa;
e) O “nível de satisfação sobre as atividades da Alcoa” foi
resultado da análise das entrevistas e, para isso, foram considerados os
seguintes critérios:
- entrevistas que apresentam somente críticas ao projeto
de mineração da Alcoa (incluindo os que se mostraram muito
revoltados e admitiram não gostar de falar sobre o assunto). Esta
situação foi entendida com nível de satisfação “muito baixo”;
- entrevistas que apresentam críticas moderadas ao projeto
de mineração da Alcoa foram entendidas com nível de satisfação
“baixo”;
- entrevistas que apresentam críticas seguidas de
ponderações em relação ao projeto de mineração da Alcoa foram
entendidas com nível de satisfação “médio”;
- entrevistas que apresentam elogios seguidos de
ponderações em relação ao projeto de mineração da Alcoa foram
entendidas com nível de satisfação “alto”;
- entrevistas que apresentam defesa do projeto da
mineração da Alcoa foram entendidas com nível de satisfação
“muito alto”.

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

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b) Escolha das amostras de pesquisa

Procurou-se sempre estar atento ao fato de que, a todos os


momentos da pesquisa, se promove pressão sobre nossas escolhas, até
porque é impossível valorizar tudo que vemos com a mesma
desenvoltura, intensidade, capacidade técnica, acadêmica e emocional.
Por isso, a escolha é sempre desafiadora e, por vezes, muito cara ao
pesquisador.
Tomando por base essas preocupações e todos os exercícios
feitos anteriormente, procedeu-se, com precaução, a escolha das
pessoas para entrevistas, evitando dar mais ou menos peso para as
diferentes tendências dentro do conflito. A escolha dos entrevistados
ocorreu em função do papel social que desempenhavam.
Nesse sentido, para a pesquisa tornou-se cada vez mais
importante ter acesso às mais diferentes opiniões, preocupações,
formas de organização e de luta pelas conquistas dos direitos
econômicos, ambientais e sociais - ao longo do trabalho também ficou
perceptível que se apresentavam fundamentalmente no campo das lutas
pelas compensações que não foram contempladas pelos marcos
regulatórios e que, por isso, ensejam o acirramento dos conflitos
socioambientais, principalmente motivados pelas perdas ambientais e
territoriais impostas pela chegada do projeto Mina de Bauxita de Juruti
da Alcoa.
A escolha dos sujeitos para entrevistas, organizados em cinco
grupos, favoreceu o trabalho, destacado em dois aspectos: economizou
recursos financeiros e minimizou esforço físico, além de facilitar os
contatos e a aceitação por parte dos entrevistados, sobretudo quando se
era indicado e/ou apresentado por alguém que já havia sido
entrevistado e se reconhecia a seriedade e importância do trabalho que
vinha sendo desenvolvido. Nesse contexto, destacam-se:
a) as entrevistas com os gestores e lideranças locais e com os
membros do Conselho Juruti Sustentável demandaram muitas idas e
vindas, principalmente por se tratar de autoridades e, por conseguinte,
geralmente muito atarefadas. Os sucessivos deslocamentos – apesar da
maioria ter sido feito na cidade de Juruti – provocaram ônus financeiro.
Assim sendo, para esta etapa não se utilizou carro alugado, evitando
aumento dos custos. Por isso, utilizou-se mototáxis, táxis e, em outras

51
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

ocasiões, caminhando. Isso não poderia ter ocorrido eficientemente


sem a devida separação dos grupos;
b) durante as entrevistas com os membros comunitários do
centro foi utilizanda uma caminhonete L-200/diesel, que facilitou as
idas e vindas às comunidades em busca de localizar as pessoas mais
indicadas para entrevistas. Esta foi uma das mais longas etapas da
pesquisa, e só foi possível por conta dos diversos contatos durante os
“campos exploratórios”, uma boa cartografia que havia sido elaborada;
c) os custos mais elevados - financeiro, físico e mental - foram
empreendidos para fazer o levantamento nas comunidades ribeirinhas
do PAE Juruti Velho, onde, durante todo o período da pesquisa,
incluindo os “campos exploratórios” desde 2006, se concentraram as
maiores preocupações. Fazer esse levantamento e seus registros foi uma
árdua tarefa, por vezes burocrática (exigência de formalização por meio
de documento), cansativa, porém seus resultados foram muito
significativos academicamente, além do enriquecimento pessoal no
contato com os entrevistados. A logística da atividade demandou
aluguel de casa na Vila de Muirapinima e uso de lancha (tipo voadeira)
para o deslocamento nas visitas às comunidades, uma vez que o lago de
Juruti Velho mede cerca de 40 km de comprimento e abriga 35
comunidades ribeirinhas. Por isso, localizar uma pessoa escolhida para
entrevista em alguns casos demandava várias viagens.

c) Levantamento dos dados de campo

Este estudo contou com duas fontes básicas de investigação.


Primeiro, foi feito um exaustivo levantamento de dados bibliográficos
impressos e digitais disponíveis sobre Geografia, História, Demografia,
Economia, Ambiente, Estrutura Fundiária, Cultura e vida comunitária
no município de Juruti. Paralelamente a isso foram levantados
documentos relativos à mineradora Alcoa, à implantação do Projeto
Mina de Bauxita de Juruti e ao conflito socioambiental da atividade
mineradora. Além do levantamento dos dados secundários, houve
levantamentos empíricos por meio de trabalhos de campo no
município de Juruti. Assim sendo, os levantamentos de dados seguiram
os seguintes passos:

52
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

a) levantamentos nos arquivos institucionais e na literatura


especializada (iniciados em março de 2006 e estendidos até
2012);
b) levantamentos de dados institucionais em Belém,
Santarém, Juruti, além de outros municípios paraenses, com
visitas sistemáticas ou esporádicas às seguintes instituições:
UFRGS; NUMA/UFPA; NAEA/UFPA; NCADR/UFPA;
MPEG; UFRA; INPE; EMBRAPA; SUDAM; IBGE; IDESP;
SEMA; IBAMA; INCRA; ITERPA; PMJ e SMS;
c) leitura e releitura da bibliografia especializada para a
elaboração e ajustes do projeto de investigação e construção do
trabalho final;
d) consulta às anotações detalhadas nos cadernos de
campo feitas durante os chamados “campos exploratórios” e
seus respectivos relatórios;
e) realização de trabalhos de campo, executados em três
longas incursões a campo, a saber:
- a primeira incursão ocorreu em aproximadamente 30
dias, em novembro e dezembro de 2010, cuja meta foi:

 organização de uma base de apoio na


cidade de Juruti;
 instalação da infraestrutura necessária (no
Lago Juruti Velho) para o desenvolvimento da
pesquisa, incluindo aluguel do espaço para
instalação e deslocamento de uma voadeira para
o interior do lago;
 levantamento de dados institucionais
locais;
 observações seguidas de anotações;
 identificação dos principais atores
envolvidos no conflito, que poderiam ser
entrevistados posteriormente;
 verificação da viabilidade ou não da
aplicação do formulário previamente elaborado
para caracterização das comunidades. Nesta etapa
do campo, fui convencido de que não seria
possível e necessária a aplicação do referido
formulário, uma vez que se decidiu trabalhar com
o máximo possível de comunidades envolvidas
53
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

no conflito, usando roteiros de entrevistas, nas


quais as informações passariam a ser mais de
ordem qualitativa do que quantitativa. Por outro
lado, teve-se acesso aos levantamentos feitos pelo
Sistema de Informação de Atenção Básica
(SIAB). Assim sendo, para efeito da
caracterização das comunidades foram utilizados
os dados levantados pelos agentes comunitários
de saúde, que alimentam a plataforma do SIAB,
vinculado à Secretaria Municipal de Saúde de
Juruti e ao Ministério da Saúde (MS);
 mapeamento com uso de cartas, imagens
de satélite e Sistema de Posicionamento Global
(GPS).

- a segunda incursão foi feita em aproximadamente 40


dias, em janeiro e fevereiro de 2011, e teve como meta:

 levantamento de dados institucionais


locais;
 observações seguidas de anotações;
 aplicação de entrevistas, com os principais
sujeitos identificados nas comunidades do centro;
ribeirinhas, de várzea, membros do CONJUS,
lideranças locais e outros integrantes da sociedade
civil;
 mapeamento com uso de cartas, imagens
de satélite e GPS.

- a terceira incursão foi concluída em aproximadamente


45 dias, de maio a julho de 2011 e teve como meta:
 levantamento de dados institucionais
locais;
 observações seguidas de anotações;
 entrevistas com os principais sujeitos
identificados entre gestores e lideranças locais,
CONJUS e comunidades ribeirinhas do PAE
Juruti Velho;
 mapeamento com uso de carta-imagem
para orientar as lideranças entrevistadas e GPS;

54
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

 checagem de dados levantados nas etapas


de campo.

- a quarta incursão foi feita em abril de 2012 e teve como


meta a checagem de alguns dados e foi o momento oportuno
para realizar as últimas entrevistas com lideranças dos projetos
agroextrativistas da região de várzea e uma liderança do Lago
Preto, que ainda não havia sido encontrada nos trabalhos
anteriores de campo.

d) Organização dos dados de campo

Foram organizados dois grandes grupos de dados levantados ao


longo desses anos de pesquisa. Um deles constituído de materiais
impressos: livros, teses, dissertações, monografias, artigos, revistas,
jornais, documentos, mapas, figuras, fotografias, etc. O outro
constituído de materiais digitais, adquiridos de múltiplas fontes, com
destaque para a internet e trabalhos em multimídia.
Os dados de campo foram organizados em três bancos. O
primeiro banco foi construído no programa ArtView e equivale aos
dados e informações cartográficas. Por meio deste banco, foram
elaborados os mapas da pesquisa.
O segundo banco foi organizado em DVDs e corresponde às
entrevistas gravadas no campo, totalizando 117, devidamente
autorizadas para este fim e distribuídas em 50 DVDs.
Devido às condições tensas do conflito e do baixo grau de
escolaridade de diversos entrevistados, se decidiu por não usar qualquer
tipo de assinatura em papel (termo de consentimento impresso), pelos
entrevistados e pelo pesquisador, autorizando as gravações e sua
utilização pela pesquisa. Entendeu-se que a assinatura em papel criaria
dificuldades para o andamento e à qualidade do trabalho. Entretanto,
depois de se fazer todos os esclarecimentos necessários, a autorização
para gravar e fazer uso acadêmico da entrevista era demandada e
registrada (gravada em DVD) antes do início de cada uma delas.
Também era esclarecido que, se no ato da entrevista ou ao seu final, o
entrevistado solicitasse a supressão da gravação, a mesma seria
imediatamente interrompida e apagada.

55
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

O terceiro banco foi organizado no programa Excel e


corresponde a um conjunto de tabelas de sistematização de dados
gerados nas atividades de campo, tanto pelas entrevistas quanto pelas
anotações no caderno de campo. Desse trabalho, foram construídas
seis tabelas-síntese, quatro delas apresentadas na seção anterior a esta.
O tratamento dos dados de campo conferiu com o auxílio direto
dos programas acima citados. Com a ajuda deles, fez-se a organização e
a triagem de dados para análise. Nesse sentido, o programa Excel foi
fundamental, seja na construção de tabelas e gráficos como para ajudar
a fazer quantificações, comparações e interpretações acerca dos
fenômenos visualizados por meio das conversas, observações e
entrevistas.

56
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

e) Quadro síntese da estrutura analítica

Quadro 1: Síntese da estrutura analítica da pesquisa.


Questão Central Objetivos Categoria Instrumentos e Sistematizaçã
da pesquisa teórica e social técnicas o e pré-
metodológicas análise de
dados

Como o conflito •Identificar as • Conflito • Levantamento • Por meio


socioambiental se formas de socioambiental de dados do programa
configura e manifestação do secundários Excel:
influencia na conflito quadros,
(re)organização socioambiental; • Território Institucionais tabelas
territorial de gerais,
comunidades •Descrever as Bibliográficos tabelas para
ribeirinhas do formas • Ribeirinho geração de
Projeto conflitivas e as gráficos,
Agroextrativista principais • Levantamento planilhas de
Juruti Velho mudanças de dados transcrições
(PAE Juruti territoriais; primários de
Velho), a partir Visitas entrevistas.
do processo de •Analisar o
instalação e conflito Observação e • Por meio
operação do socioambiental anotações do programa
Projeto Mina de como vetor das Power Point:
Bauxita de Juruti, mudanças Mapeamento por registro
da Aluminum territoriais. GPS fotográfico
Company of temático.
America Entrevistas
(ALCOA)? gravadas • Por meio
de Sistema
Quantificação de
Informação
Geográfica
(Arc View,
Arc GIS)
cartas-
imagem e
mapas.

57
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

f) Alguns resultados da pesquisa

A implantação e a operação de projetos econômicos no território


paraense apresentam dinâmicas territoriais marcadas por conflitos
socioambientais e prejuízos às comunidades locais. De acordo com o
acompanhamento da pesquisa, no município de Juruti, o
empreendimento da mineradora Alcoa não foge à regra histórica da
territorialização dos grandes empreendimentos em detrimento dos
territórios comunitários locais.
Dentre os sujeitos envolvidos no conflito socioambiental em
Juruti, dois deles tiveram maior atenção por parte dessa pesquisa: a
Alcoa, por meio do Projeto Mina de Bauxita de Juruti, e as
comunidades ribeirinhas do PAE Juruti Velho. A escolha destes se deu
durante os trabalhos exploratórios de campo, a partir do acirramento
das disputas territoriais entre eles.
A partir de 2005 a empresa passou a exercer intervenções
sistemáticas tanto na zona rural quanto na zona urbana do município, a
partir da execução dos Estudos de Impactos Ambientais (EIA),
exigência da legislação brasileira para licenciar projetos minerários de
grande monta. A partir de então, os contatos se tornaram mais
frequentes, muitos deles amistosos e outros bastante conflituosos,
impondo (re)organização territorial importante ao município.
Ao tentar construir imagem nacional e internacional de empresa
que prima pelo desenvolvimento sustentável, a Alcoa tem divulgado,
em site e documentos impressos, um modelo sustentável (“Juruti
Sustentável: uma proposta de modelo para o desenvolvimento local”).
Porém, a pesquisa feita por meio das análises de entrevistas e
observações de campo constatou que aproximadamente 80% das
lideranças locais entrevistadas demonstram insatisfação com a atuação
da mineradora no município.
Com base nas análises de documentos, inclusive da proposta
“Juruti Sustentável” da Alcoa, do conteúdo divulgado em seu site e da
fala dos seus representantes entrevistados, a pesquisa concluiu que a
mineradora minimizou a importância do problema derivado da sua
atuação no município de Juruti, demonstrando que não há interesse em
reconhecer a existência do conflito. Assim, negar a existência do
conflito socioambiental parece fazer parte de uma estratégia da
empresa, uma vez que o aguçamento do conflito tem demonstrado a

58
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

fragilidade do modelo de desenvolvimento local sustentável que tem


produzido insatisfação entre diferentes atores sociais locais.
Nessa perspectiva, torna-se evidente que, dos seis grupos de
lideranças entrevistadas em Juruti (total de 117), a maioria deixou muito
claro a insatisfação em relação à atuação da mineradora no município
(45% do Conselho Juruti Sustentável; 100% do Projeto de
Assentamento Nova Esperança; 95,65% do Projeto de Assentamento
Socó I; 100% dos Projetos Agroextrativistas da Várzea; 73,67% de
outras lideranças do município, e 81,71% do Projeto Agroextrativista
de Juruti Velho).
O conflito socioambiental resultante da disputa entre Alcoa e os
moradores locais de Juruti não resulta da extração ou não do minério
de bauxita. A pesquisa concluiu que o problema real decorre da forma
de apropriação desse “recurso natural”, na qual a infraestrutura e o
funcionamento da mina territorializam a empresa. E ela se sobrepõe
aos territórios preexistentes como os de caça, pesca, extração e de roças
e roçados, sem que muitos dos seus antigos ocupantes tenham sido
adequadamente compensados, gerando disputas e níveis elevados de
insatisfação.
Este trabalho também verificou que a maioria das pessoas
envolvidas na pesquisa não se manifesta contrária à implantação e
operação do projeto de extração de bauxita, pois acredita ser
importante seu processamento. Todavia, questiona a forma de atuação
da mineradora, principalmente a partir da sua operação. Dessa maneira,
a pesquisa pôde concluir que a maior parte dos questionamentos feitos
é relativo ao modelo de operação implantado pela Alcoa e não à
exploração da bauxita em si.
Por fim, reitera-se a perspectiva de que o território em questão se
constitui em um campo de possibilidades, ou seja, é um constante
exercício de conflito socioambiental (re)organizando indefinidamente o
território local, respondendo aos múltiplos interesses em conflito.
Assim sendo, chega-se à conclusão de que não há solução para o
conflito enquanto a mineradora estiver operando no PAE Juruti Velho
e adjacências, uma vez que a transformação do território abrigo em
território recurso é intrínseco ao processo de operação da mineradora.
Embora tentativas de mediação venham sendo feitas, seus efeitos são
apenas paliativos para minimizar o atrito entre as partes em disputa. Por
outro lado, é o próprio conflito socioambiental que tem provocado a

59
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

(re)organização territorial das comunidades ribeirinhas do PAE Juruti


Velho, sejam (re)organizações consideradas “negativas” ou “positivas”,
dependendo da perspectiva dos atores envolvidos no processo de
mudanças no território abrigo. Nessa perspectiva, o importante não é
solucionar o conflito, porque ele não é passível de solução; o
importante é criar mecanismos de oportunidades para o acesso
democrático aos recursos e aos seus benefícios. Só assim seria possível
construir um desenvolvimento local sustentável.

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74
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Novos projetos, velhas práticas: os impasses entre agricultura


camponesa e agronegócio do dendê em terras amazônicas

Cátia Oliveira Macedo9


Rafael Benevides de Sousa10

Introdução

Nos primeiros dias de janeiro, a fuligem – das queimadas da


floresta alcança as casas dos camponeses, nas vilas, e avança para o
interior das residências anunciando o preparo de mais uma roça e o
início do ano agrícola. Questão ambiental à parte, tem sido assim, nos
dez anos em que visitamos as comunidades rurais dos municípios de
Bujaru e Concórdia do Pará, no Nordeste do Pará. Porém, nos últimos
anos, o trabalho familiar, direcionado quase que exclusivamente para às
unidades de produção doméstica, vem se dividindo entre a roça e os
cuidados com o sítio, e os campos de produção do dendê nas
propriedades da empresa Biopalma. Neste ínterim, subordinação e
resistência camponesa se tornam latentes.
Desvendar os impactos ocorridos no território camponês
decorrentes da expansão da produção do dendê nesta região é o que
procuramos neste artigo. Entre os anos de 2011 e 2013, percorremos
seis comunidades rurais (São Judas, Nossa Sra. do Perpetuo Socorro,
Cravo, Nova Esperança, Curuperezinho e Arapiranga,) ao longo da
Rodovia PA 140, no sentido Bujaru, Concórdia respectivamente. Para a
coleta de dados analisamos relatórios e documentos institucionais
(INCRA, EMBRAPA). Porém, a etapa primordial da pesquisa foi a
realização dos trabalhos de campo, quando pudemos nos aproximar e
vivenciar o cotidiano dos sujeitos da pesquisa. As observações em
campo, a realização das entrevistas e as conversas informais
constituíram-se nos elementos basilares do exercício reflexivo
desenvolvido neste artigo.

9
Professora Adjunta da Universidade do Estado do Pará-UEPA e Instituto de
Educação Federal do Pará-IFPA. E-mail: catiamacedo@yahoo.com
10
Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade
Federal Fluminense. E-mail: benevidessousa@gmail.com

75
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Partimos do princípio de que ao mesmo tempo em que o


capitalismo se expande, contraditoriamente constrói relações não
capitalistas (MARTINS, 1996). Assim, a expansão do capitalismo no
campo gera além da expropriação e proletarização, a possibilidade de
criação de novos territórios camponeses. Partindo desta perspectiva
nos aproximamos de Oliveira (2004) na defesa de que,

O estudo da agricultura brasileira deve ser feito


levando-se em conta que o processo de
desenvolvimento do modo capitalista de
produção no território brasileiro é contraditório e
combinado. Isso quer dizer que, ao mesmo
tempo em que esse desenvolvimento avança
reproduzindo relações especificamente
capitalistas (implantando o trabalho assalariado
pela presença no campo do boia-fria), ele (o
capitalismo) produz também, igual e
contraditoriamente, relações camponesas de
produção (pela presença e aumento do trabalho
familiar no campo). (p. 35-36).

E continua,
Ou entende-se a questão no interior do processo
de desenvolvimento do capitalismo no campo ou
continuar-se à ver muitos autores afirmarem que
os camponeses estão desaparecendo, mas,
entretanto, eles continuam lutando para
conquistar o acesso às terras em muitas partes do
Brasil. (OLIVEIRA, 2004, p. 35).

Compreendemos que a disputa territorial que se instituiu no


Nordeste paraense com a expansão dos agrocombustíveis, na primeira
década do século XXI, se impôs com adversidade aos camponeses
desta região da Amazônia. Nossa tese é de que a expansão do cultivo
do dendê, na região, reproduz antigos mecanismos de expropriação e
subordinação a estes sujeitos. Porém, da mesma forma, com que o
capital ergue seu território capitalista, os camponeses demonstram uma
“real habilidade para se ajustar as novas condições e também uma
grande flexibilidade para encontrar novas formas de se adaptar e ganhar
a vida” (SHANIN, 2008, p. 25).

76
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

A Rodovia PA 140 (no trecho que compreende os Municípios de


Bujaru e Concórdia do Pará) nos anos de 1970 atraiu as fazendas de
gado financiadas pelos incentivos fiscais. No século XXI, tem seu
território reordenado para garantir a política de agrocombustiveis no
Brasil, através do cultivo do dendê. Ainda no contexto da Integração
Nacional, formaram-se também comunidades rurais as margens desta
rodovia, compostas por nordestinos que seguiram as trilhas da “terra
liberta” e ou/do trabalho nas fazendas de gado. É o caso das
Comunidades Nossa Senhora do Perpétuo Socorro (Km 35) e Nova
Esperança (Km 37). As demais comunidades pesquisadas se originam
na ocupação, orientada pelo rio, portanto, de formação mais antiga,
com referência ao período colonial como é o caso das comunidades de
São Judas, Cravo, Curuperezinho e Arapiranga. Assim, a formação
territorial destas comunidades se inscreve de um lado, a uma ocupação
mais recente, década de 1970, 1980, implementada pelo Instituto de
Colonização e Reforma Agrária - INCRA direcionadas às terras
devolutas e de patrimônio da União sob a denominação de Gleba
Bujaru e de outro, ocupações antigas, objeto de colonização de épocas
distintas (CASTRO, 2003; COSTA, 2008).

77
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Mapa 01: Localização das Comunidades

Fonte: Autores
78
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

A produção das unidades domésticas se caracteriza pela


formação de duas roças ao longo do ano agrícola: a roça de inverno e a
roça de verão. A primeira é a mais importante, “ocupa maior área, pois
de seu amadurecimento sairá a massa necessária para a confecção da
farinha”, e que será responsável pelo sustento da família ao longo do
ano (CANETE, 2006). Já a roça de inverno é o plantio principal. A
roça de verão caracteriza-se como o plantio da entressafra, permitindo
ao camponês maior equilíbrio trabalho-consumo (CHAYANOV,1981).
Durante o trabalho de campo observamos que a produção da
mandioca para a fabricação da farinha é atividade comum às
comunidades estudadas. Além disso, verificamos nestas localidades
fortes laços religiosos, evidenciados nas práticas de festas de santos,
novenas, adorações, cultos e outros. A forte expressividade religiosa
destas comunidades também pode ser observada na relação do santo
padroeiro com o nome que as designa.

Quadro: 1- Nome das comunidades e seus Santos Padroeiros

Comunidade Santo Padroeiro


Comunidade de São Judas São Judas
Comunidade do Cravo Nossa Sra. das Graças
Comunidade Km 35 Nossa Sra. Do Perpétuo
Socorro
Comunidade de Nova Esperança Santo Expedito
Comunidade de Curuperezinho Santa Terezinha do Menino
Jesus
Comunidade de Arapiranga Nossa Sra. do Perpétuo Socorro
Fonte: Grupo pesquisa/Autores

Em grande medida o modo de vida nestas comunidades se


articula em torno de dois elementos centrais, que o organiza e é
organizado por ele: o trabalho na roça e a religiosidade. Através destas
atividades se articulam muitas outras, forjando através delas os laços de
pertencimento, sentimento de vida em comunidade e vizinhança.

79
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

De latifúndio a agronegócio: a expansão dos agrocombustíveis no


Nordeste Paraense

Os mercados mundiais promissores para a comercialização dos


agrocombustiveis se forjam sob o slogan da sustentabilidade e da
perspectiva de que a energia verde ou a agroenergia desponta como a
solução para o futuro do planeta. (BELLACOSA, 2013). Neste cenário,
o Brasil se torna peça chave, seja pelo seu potencial edafoclimático e
extensão territorial, bem como por sua experiência na produção de
agroenergia, em particular com a produção de etanol na década de
1970.
Com a crise do petróleo, o Brasil centrou sua política energética
na substituição de combustíveis importados por nacionais. Definem-se
a partir de então novos parâmetros, reduzindo-se drasticamente o
espaço das empresas estatais na formulação e implementação de
projetos relacionados à política energética nacional.
Nas últimas décadas do século XX, o Brasil persegue
enfaticamente seu objetivo na busca por uma nova política energética.
Neste contexto, a corrida do Estado Neoliberal para garantir, no país, o
bom funcionamento do mercado capitalista, em consonância com as
exigências do capital financeiro global, elege o agronegócio como o
carro chefe da agricultura brasileira, tornando-o paradigmático
(FABRINI, 2010, p. 60). A Aliança entre agronegócio e
agrocombustiveis tornou-se o trunfo do Estado brasileiro para
alavancar o desenvolvimento nacional. Rapidamente este setor da
economia se expandiu, “impulsionado pela abertura do mercado
brasileiro e pela ampliação de investimentos diretos de empresas
multinacionais do sistema agroalimentar no país” (MARQUES, 2008,
p.59). Justificado pelas supostas vantagens competitivas e eficiência
econômica, o agronegócio é legitimado “para operacionalizar
hegemonicamente, o projeto do agrocombustível” (FABRINI, 2010, p.
65-66).
De acordo com Welch e Fernandes (2008), trata-se de agricultura
altamente mecanizada, usuária dos pacotes tecnológicos modernos,
produção em larga escala, que explora grandes extensões de terras,
geralmente de base monocultora e voltada para os mercados de
exportação. Fernandes destaca ainda que “a palavra agronegócio é nova

80
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

(década de 1990), e é também uma construção ideológica para tentar


mudar a imagem latifundista da agricultura capitalista”. E prossegue,

O latifúndio carrega em si a imagem de


exploração, trabalho escravo, extrema
concentração da terra, coronelismo, clientelismo,
subserviência, atraso político e econômico. É,
portanto, um espaço que pode ser ocupado para
o desenvolvimento do país: latifúndio está
associado à terra que não produz e pode ser
usada para reforma agrária. A imagem do
agronegócio foi construída para renovar a
imagem da agricultura capitalista, para
“modernizá-la”. É uma tentativa de ocultar o
caráter concentrador, predador, expropriatório e
excludente para relevar somente o caráter
produtivista. Houve o aperfeiçoamento do
processo, mas não a solução dos problemas: o
latifúndio efetua a exclusão pela improdutividade,
o agronegócio promove a exclusão pela intensa
produtividade. (FERNANDES, 2013, p. 1).

Notadamente a transformação do latifúndio em agronegócio, é


peça chave do capitalismo para garantir a permanência e expansão da
propriedade capitalista no campo, neste início de século. A
transfiguração do latifúndio em agronegócio torna este território
inviolável, não podendo ser ameaçado pelas ocupações de terra, devido
a sua suposta produtividade e geração de riquezas. Desloca-se a atenção
do caráter concentrador e predador do latifúndio para a alta
produtividade e eficiência da “assim chamada” moderna agricultura
(CANUTO, 2004).
Neste ínterim, as decisões sobre a agricultura passam a ser
definidas no interior do território do agronegócio: o mercado, ao
mesmo tempo em que se impõe aos camponeses, intensifica a
exploração por meio da renda capitalizada da terra, que expropria os
camponeses de parte das riquezas que produzem. Por trás da aparência
moderna, o agronegócio esconde “a barbárie da exclusão social e
expropriação dos camponeses” (CAMACHO; CUBAS;
GONÇALVES, 2011, p. 2).

81
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Neste ritmo de reprodução do capital no campo impõe-se a


territorialização do capital monopolista na agricultura, processo pelo
qual “indústria e agricultura são parte ou etapas de um mesmo
processo”. Instala-se assim, a lógica especificamente capitalista e a
reprodução ampliada do capital se desenvolve em sua plenitude
(OLIVEIRA, 2004, p. 42).
Neste contexto, o capitalista-proprietário da terra domina
simultaneamente o lucro da atividade agrícola, além da renda da terra
gerada por esta. “A monocultura se implanta e define/caracteriza o
campo, transformando a terra num “mar” de cana de açúcar, de soja, de
laranja, de pastagem etc” (OLIVEIRA, 2004, p. 42). Este processo que
unifica o capital industrial e proprietário de terra transforma também,
os grandes proprietários rurais do agronegócio, “vilões” que eram no
passado, em “heróis” da nação (FABRINI, 2010, p. 60).
No Estado do Pará, o plantio do dendê se expandiu na primeira
década do século XXI, assentado na ideologia da eficiência produtiva e
desenvolvimento regional, similar ao que se propunham os latifúndios
do contexto da Integração Nacional. Criados com investimentos dos
incentivos fiscais, estas propriedades monocultoras atuaram
diretamente na destruição da natureza e expropriação dos camponeses.
Porém, enquanto os camponeses das comunidades de formação mais
antiga (século XVIII e XIX) se colocavam a caminho da cidade fugindo
do conflito estabelecido pelo fazendeiro, forjaram-se novas
comunidades rurais, às margens das rodovias, a exemplo da Rodovia
PA 140, reinventando a subordinação e a resistência camponesa ao
capital. Tal qual as fazendas de gado, o agronegócio do dendê pressiona
o território camponês nesta região, estabelece fissuras, conflitos, avança
impondo a dinâmica da economia capitalista globalizada. Enfim, a
produção dos agrocombustiveis gerou uma sagaz combinação
agronegócio-latifúndio que aprofundou as desigualdades no campo,
acirrou a disputa territorial e ampliou as conflitualidades (CAMACHO;
CUBAS; GONÇALVES, 2011).

O território da Biopalma e o agronegócio do dendê no Nordeste


Paraense

No início do século XXI, o Estado do Pará se sobressai, no


cenário nacional, como produtor de dendê, passando a concentrar

82
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

aproximadamente 90% da produção nacional, com destaque para os


plantios do Nordeste paraense. Ainda no século XX (1982) se destaca o
cultivo do Grupo Real AGROPALMA S.A nos Municípios de Moju e
Tailândia. Soma-se, em 2007, a produção da Agropalma, os cultivos de
dendê da Biopalma.
Criada em 2007 pela empresa MSP, a Biopalma, formaliza o
consórcio Vale (41%) e MSP (59%), já em 2009. Em 2011, a Vale
aumentou a sua participação para 70%, passando a controlar a empresa
e, por conseguinte, definir suas diretrizes e todas as suas políticas,
inclusive aquelas relacionadas às questões trabalhistas.
Vale frisar que apesar da produção do dendê ter se pulverizado
nos municípios que englobam a região metropolitana de Belém e
ganhado destaque no estado desde a década de 1990, é no início do
século XXI, com a chegada da Biopalma no Nordeste Paraense,
fomentada pela política de produção e Uso do Biodiesel-PNPB (2004),
que a produção regional ganha destaque nacional. A criação do Pólo de
Tomé-Açu, em 2010, associado ao Programa Nacional de Produção
Sustentável de Óleo de Palma (PSOP) corrobora esta afirmativa.
De acordo com Becker (2010, p. 33), o lançamento pelo
Presidente Lula do Plano Palma Verde no Municipio de Tomé-Açu, em
2010 (Pará), desencadeou intensa procura pela atividade. “Porta vozes
do governo informaram que se hoje há apenas 66.800 ha plantados
com dendê no país, pelo menos 15 empresas já planejam aumentar a
área plantada para 235,5 mil ha nos estados do Pará, Bahia, Roraima e
Rondônia”.
Distribuídas em quatro pólos de produção (Moju, Tomé-Açu,
Acará e Concórdia) no inicio de 2013, a Biopalma apresentava sob seu
domínio aproximadamente 42.000 ha de área plantada, com projeto de
expansão para 60.000,00 ha, até o final deste ano, encerrando assim, sua
área de cultivo. Além disso, a empresa pretende estabelecer parcerias
com a agricultura familiar camponesa em uma área de
aproximadamente 20.000 ha de terra. O planejamento da empresa era
alcançar através do PRONAF-ECO Dendê para a safra 2012-2013, 500
contratos familiares em 5.000 ha de terra, distribuídas da seguinte
forma: Biopalma-Vale, 200 famílias nos Municípios de Abaetetuba e
Moju e 300 famílias nos Municípios de Tomé-Açu e Concórdia do
Pará.

83
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Em 2012 a Biopalma instalou a primeira usina extratora de óleo,


no Município de Moju e em 2014 deverá ser inaugurada uma segunda
usina extratora no Município de Acará, onde em 2015 deverá ser
instalada uma usina de biodiesel da Vale.
O território da Biopalma se espraia no Nordeste Paraense a
partir do quilômetro 50 da PA 140 do Município de Concórdia do Pará,
onde está localizada a sede da empresa. No seu entorno encontram-se
inúmeras comunidades rurais, afloradas em momentos históricos
distintos, tal como apresentado na primeira sessão deste texto (que
surgiram ainda no século XVIII ao longo do rio Bujaru e Guamá,
outras ao longo das rodovias PA 140 e PA 252). Estas comunidades,
até o início do século XXI, experimentavam um cotidiano de vida
ligado preferencialmente ao sistema de roça e às relações de vizinhança
e sociabilidade que se constituíram nas e com as localidades vizinhas.
A paisagem local até então homogeneizada, por camponeses,
seus sítios, e fazendeiros de gado, se transforma com chegada da
empresa e a implantação dos campos de dendê. Forjou-se, neste
contexto (a partir de 2007) um mercado de terras que avançou de
forma significativa sobre as fazendas de gado no município de
Concórdia em especial, porém pressionou também o território
camponês, levando-os a venderam seus lotes e migraram para a cidade
ou para a beira da estrada, fixando residência provisória ou não em
sítios de parentes, conhecidos e compadres.

Gráfico 1 - Composição da área de domínio da Biopalma

Fonte: INCRA / SR 01 – Org. Autores


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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

De acordo com levantamento feito pelo INCRA – SR 01, em


março de 2013, a área de domínio da Biopalma reunia 145
propriedades, entre sítios (até 15 ha) e Fazendas de até (4.500 ha).
Chamou-nos atenção neste levantamento a presença de um cemitério
com 22 ha e uma área quilombola com aproximadamente 145 ha. A
presença de um cemitério e uma área remanescente de quilombo no
conjunto das propriedades sob o domínio da Biopalma revela a força
com que o capital atua na disputa para garantir o território do
agrocombustível. Tanto o cemitério quanto a área remanescente de
quilombos seriam invioláveis. A primeira pela importância, simbólico-
cultural-religiosa e a segunda, refere-se à proteção de área
remanescentes de quilombos e a viabilização do uso comum da terra. O
uso desta área para o cultivo do dendê estaria inviabilizado, seja pela
impossibilidade da venda, e ou pelo estabelecimento da parceria, já que
o contrato pressupõe a propriedade individual da terra.
Já a presença de sítios na composição da área de domínio da
Biopalma se distancia das diretrizes do PNBP e do PSOP, em especial
no que tange à prerrogativa negativa do modelo monocultor para
produção do dendê e ao fortalecimento da agricultura camponesa
através do Selo Social. Isto nos remete a perspectiva de que tanto os
espaços quanto os territórios resultam das ações das diferentes relações
sociais. Portanto, inevitavelmente a relação social capitalista cria
espaços e territórios capitalistas e contraditoriamente espaços e
territórios não capitalistas que se confrontam criando diversas
territorialidades. Além disso, as grandes produções, desde as plantations
até a monocultura mecanizada do agronegócio, produzem territórios de
dominação e desigualdades sociais (FERNANDES, 2010).
As propriedades que deram origem ao território da Biopalma,
são em grande medida, antigas fazendas de gado, o que corrobora com
a tese que defendemos ao longo deste artigo. Porém, a sua expansão
não se limita a estas áreas, como mostrado em levantamento feito pelo
INCRA, gráfico 1. A corrida por terra incluiu também sítios de
colonos, o que demonstra que a disputa territorial promovida pelo
agrocombustivel avança sobre o território camponês, fracionando-o,
fragilizando-o.
Nos últimos cinco anos, observamos que o trecho da PA 140,
(compreendido entre o Km 1 ao 35) no Município de Bujaru, as

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

fazendas de gado e as propriedades camponesas ainda se destacam.


Neste intervalo observamos uma única fresta de dendê a margem da
rodovia no km 26 (um contrato de parceria com 10 ha de plantio de
dendê). No Km 29, (6 km adentrando uma vicinal), encontra-se o
canteiro de mudas da Biopalma (criado em 2006), no coração da
Comunidade Conceição do Guajará. Diferentemente do Município de
Bujaru, em terras de Concórdia do Pará (a partir do Km 39) o território
da Biopalma cresce em ritmo acelerado e as pequenas e médias
fazendas de gado começam a rarear. A partir do Km 37 da rodovia, nos
deparamos com um mar de dendê, impondo uma nova fisionomia a
paisagem.
Porém, a presença dos camponeses é sentida, quer seja pela
presença de uma multidão (dependendo do horário em que se trafegue
pela rodovia) de trabalhadores que marcham como soldados às
proximidades da sede da Bipalma, a caminho do trabalho ou de retorno
dele, ou dos pequenos sítios que insistem em afrontar o imponente
território da palma. Ao mesmo tempo em que a propriedade da
Biopalma ganhava forma e imponência, na PA 140, a paisagem local se
modificava: formaram-se pequenas vilas ao longo da PA e com ela
saltam aos olhos práticas agrícolas antes comuns ao interior, ou “centro
do território”, distantes da beira da estrada. Verificamos nestes espaços
pequenas roças de mandioca, plantações de verduras (quiabo, maxixe,
jerimum e outras) e casas de farinha improvisadas. Chamou-nos
atenção o uso de uma caixa de amianto para armazenar água e amolecer
a mandioca. Estas estratégias somadas a tantas outras nos indicam os
mecanismos de reprodução do campesinato em meia às adversidades
impostas pelo capital.

Os impasses entre camponeses e agronegócio

A expansão do agronegócio do dendê no Nordeste paraense e


seu corolário, a propriedade capitalista da terra, reordena o uso do
território nesta região e pressiona o território camponês em diferentes
frentes, quer seja pela tentativa de domínio do seu território, como pela
subordinação camponesa ao capital. Dentre as questões levantadas ao
longo da pesquisa, destacam-se: a formação de um mercado de terras; a
superexploração do trabalho, a fuga do trabalho da roça (familiar) para
os campos do dendê (trabalho assalariado) e a consequentemente

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

diminuição da roça e da produção, além dos problemas ambientais,


materializados na poluição dos rios e igarapés por insumos e
agrotóxicos.

O mercado de terras e a produção capitalista do território

A medida que a Biopalma constituía seu território às margens da


PA 140, sua presença era refletida no interior das comunidades. Com
sede na rodovia, mas com os olhos voltados para as unidades
camponesas, povoados encolheram ou foram cercados pelo dendê, a
exemplo da Comunidade de Conceição do Guajará (acesso no km 29
da PA – 6 a 8 km em uma vicinal) e Castanhalzinho (acesso pelo
quilometro 38, distante 5 km da margem da rodovia). Em Conceição do
Guajará, a escola fechou por falta de alunos e na igreja os sinos já não
se dobram, por falta de devotos. O antigo arraial deu lugar ao canteiro
de mudas da Biopalma. Estudantes e devotos que se puseram a
caminho da estrada frequentavam em fins de 2013 escola e capela
localizada no km 29, onde encontramos 3 famílias moradoras da
comunidade. Na estrada Vicinal que dá acesso ao Km 29 encontramos
7 famílias. Soubemos ainda que outras famílias migraram para Santa
Isabel, Bujaru e para a Capital do Estado.
Indagada sobre a sua transferência de Conceição do Guajará para
a margem da rodovia (km 29), Auxiliadora Oliveira revela,

Não vendi minha terra, mas via que não dava


mas pra morar ali. Meus filho dizia, mãe vende
tudo e vamo pra curva, lá a senhora vai viver
bem, tem energia elétrica, água, o ônibus passa na
porta, mas meu coração dizia que eu não podia
vender. Criei meu filho sozinha na terra, porque
o pai morreu. Minha vida toda tava lá, mas ficou
muito difícil. Entra e sai moto o dia todo, gente
estranha. Muita gente vendeu, eu não vendi,
ainda vou pra rocinha, mas vou com medo.
Parece que lá virou fantasma, a igreja, a escola
(Entrevista concedida por Auxiliadora Oliveira,
moradora da comunidade Conceição do Guajará,
em fevereiro de 2011).

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Relatos como o de Auxiliadora se multiplicaram a partir de 2006


ao longo da PA 140, revelando a corrida por terra que se estabeleceu
com a chegada da Biopalma. Outro exemplo do fracionamento do
território camponês é a Comunidade de Castanhalzinho. Localizada as
margens do Igarapé Castanhal, os camponeses foram pressionados a
venderem seus lotes. Tal qual em Conceição do Guajará, a Comunidade
de Castanhalzinho, apresenta uma dinâmica interna fortemente
marcada pelo tripé família- terra/trabalho e religiosidade. Este último,
elo articulador do modo de vida. A produção agrícola é direcionada
para o consumo entrando em circulação no mercado apenas o
excedente produzido.
Seu Zé, e seu Boa, nos relatam sobre a corrida por terra ocorrida
na Comunidade Nova Esperança. O primeiro vendeu o lote localizado
no “centro”, área mais distante da rodovia e se mudou com a família
para um lote que possuía a margem da rodovia, onde plantava pimenta
do reino e cultivava espécies de grande valor comercial. Nossa conversa
ocorreu ainda no período em que a Biopalma preparava o terreno para
a plantação do dendê e instalação da sede da empresa. Neste momento
observamos que tanto a casa quanto o quintal de seu Zé se
apresentavam como uma extensão da propriedade da Biopalma, visto o
transito de maquinário e funcionários. Esse contato tão aproximado
levou seu Zé a alugar por seis meses sua casa de moradia para uma
empresa que prestava serviço para a Biopalma, e tendo que viver em
“um barraco”, como denominado por ele.
Apesar dessa relação, de certa forma, estreitada de seu Zé com a
Biopalma, este afirmava que só havia vendido parte de suas terras por
que tinha um “outro canto para morar”, e que não se imaginava
vivendo de outra forma que não fosse na terra. “(...)Essa foi uma forma
que encontrei para ganhar um dinheirinho, e puder continuar com a
minha produção, criação (..) muitos dos seus conhecidos que venderam
suas terras se arrependera, mas não tinha mas como voltar atrás”,
destaca seu Zé.
Seu Boa, também morador da Nova Esperança há mais de 30
anos, trabalha com uma filha e no período da capina da roça e da
colheita da pimenta contrata trabalhadores. Refere-se a chegada da
Biopalma como um momento de tristeza porque “o investimento
nunca chega para pequeno produtor”

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Tamo aqui abandonado a mais de 30 anos, e


agora a gente vê o governo investindo pesado
nessa empresa que tá aqui. Já cansei de distribuir
ou ver estragar minha colheita porque não tem
transporte, o preço do transporte não me deixa
levar o produto para a cidade, e agora tá todo
mundo acreditando que vendendo ou plantando
dendê a gente vai melhorar de vida. Me dá uma
tristeza em saber que a gente não tem com quem
contar, só posso contar comigo mesmo. Vai
chegar a hora que a gente não vai te o que comer.
Quem vendeu a terra vai come o que? Daqui a
pouco o projeto acaba a empresa vai embora e
ninguém vai lembrar da gente que fica aqui.
(Entrevista concedida por Seu Boa, morador da
comunidade Nova Esperança, em agosto de
2010).

E continua,
O certo era o governo investir no pequeno que tá
aqui, que produz pra gente come. Tô vendo o dia
que não vai ter mais mandioca. Aqui só alguma
família não compra o que podia produzir. Só sei
que é que tem muita gente vendendo terra, mais
tarde vai sofrer, vai chorar. (Entrevista concedida
por Seu Boa, morador da comunidade Nova
Esperança, em agosto de 2010).

Tanto seu Zé, quanto seu Boa, relacionam a chegada da


Biopalma na comunidade com a corrida por terra e a possibilidade da
escassez. Seu Zé nos informou que “(...) quase todo dia vinha alguém
aqui, encostava o carro e ficava falando do preço da terra e se a gente
não queria vender”.
A territorialização do capital no campo, materializada com a
introdução das empresas associadas a conglomerados nacionais e
internacionais, tende a produzir única e exclusivamente para atender as
necessidades do mercado globalizado. Esta produção, por sua vez, se
associa a uma nova dinâmica do mercado de terras, caracterizada pela
concentração fundiária e direcionamento da produção para os
agrocombustiveis, afetando com isso a soberania alimentar. “Isto se

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

torna mais grave, quando a ação do Estado se dá de maneira passiva”,


não agindo imediatamente corrigindo (ELIAS, 2010, p. 13)
A rapidez com que a Biopalma constituiu os campos de dendê
nos Municípios de Bujaru e Concórdia demonstra a força do capital
para modelar segundo os seus interesses a organização e o uso do
território. Isto por sua vez, “permite justamente que o trabalho que nela
se dá, o trabalho agrícola, se torne subordinado ao capital” (MARTINS,
1990, p. 162). Porém, em meio às adversidades os camponeses têm
“apresentado surpreendente flexibilidade e capacidade de adaptação”
(MARQUES, 2008, p. 52).
Apesar da Biopalma ter sido criada em 2007, a corrida por terra
começa em meados de 2006, com grande impacto nas comunidades
localizadas à margem da rodovia e às proximidades da sede da empresa.
Nova Esperança e Arapiranga, Conceição do Guajará e Castanhalzinho
foram as comunidades onde a corrida por terra desferiu maior impacto,
despertando na população estratégias de resistência, como podemos
observar neste relato,

(...) a gente fez um pacto de nós não vendermo.


Ninguém aqui da comunidade pretende vender.
Se você for pra cá tem dendê, pra cá tem dendê,
todo canto tem dendê. Tamo nessa bolinha que
nós, nós somos poucas famílias, somos no
máximo 40 familias, somos poucas famílias aqui
né. Nosso problema aqui, é que alguns anos, com
os nosso filhos, nosso netos, nós vamos ficar
muito imprensados, porque a família cresce, mas
a terra não, ela continua do mesmo tamanho.
Isso é um problema. (Entrevista concedida por
Maria José, moradora da Comunidade Nova
Esperança, em maio de 2013).

Observamos em campo que era latente a preocupação das


comunidades com a possibilidade da venda da terra e aproximação
entre o território camponês e o da empresa. Assim, mesmo nas
comunidades mais distantes e onde não houve procura por terra o
assunto era recorrente, nas conversas informais entre vizinhos, no culto
dominical, nos espaços de lazer e sociabilidade. O direcionamento das
conversas expressava o sentido negativo da venda da terra e sua

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

importância para a vida na comunidade. Em conversa informal com o


presidente da Comunidade do Cravo me foi relatado “Tamo
conscientizando o povo, quem vende terra, a pedir vem... como o
home da roça vai viver se vender a terra, vai por que o que a gente sabe
fazer bé mexer com a terra”.

Entre a roça e os campos de dendê

Entre 2008 e 2009, a oferta de postos de trabalhos pela Biopalma


despertou o interesse da população local, tanto daqueles residentes nas
comunidades rurais quanto de parte da população da sede municipal.
Neste período os trabalhadores se dividiam entre contratados das
empresas terceirizadas prestadoras de serviço à Biopalma e empregados
ligados diretamente a empresa. Em julho de 2013, em visita as
comunidades, verificamos que já não havia oferta de trabalho por
empresas terceirizadas. Quase a totalidade dos trabalhadores dos
campos de dendê eram contratados diretamente pela Biopalma. O
gráfico abaixo, apresenta a relação trabalho assalariados e trabalho
familiar presente nas comunidades.

Gráfico 2- Relação entre trabalho assalariado e trabalho familiar

Fonte: Autores

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

O gráfico destaca que quase metade das famílias da Comunidade


Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, possui um membro da família
trabalhando na Biopalma, o que se configura como a maior
concentração de assalariados entre as comunidades pesquisadas. Da
mesma forma, esta comunidade apresenta a menor área de roça se
comparada com as demais. Das comunidades localizadas à margem da
estrada, Nova Esperança chama atenção pelo baixo número de
moradores da comunidade trabalhando na Biopalma, se comparada
com as demais comunidades, e grande extensão da área de plantio.
Nova Esperança, diferencia-se no universo das demais comunidades
pesquisadas pela diversidade de produtos cultivados. Além dos
produtos da “lavoura branca” (milho, feijão, arroz e mandioca) produz
ainda cacau, pimenta do reino, mel de abelha e uma diversidade de
frutas para a venda da polpa, levando-os a criarem uma Associação de
Produtores em 2008. Isto possibilitou um contrato com a Prefeitura
para a venda de polpa de frutas para a merenda escolar.
Soubemos em campo que na Comunidade Nossa Senhora do
Perpetuo Socorro, pelo menos um membro da família já trabalhava,
anteriormente a Biopalma, nas fazendas de gado, pimentais e outros,
possuindo, portanto, alguma familiaridade com o trabalho acessório.
Processo pelo qual o camponês se transforma periodicamente em
trabalhador assalariado, recebendo pela jornada de trabalho (SANTOS,
1984).
Identificamos trabalhadores da Biopalma nas seis comunidades
pesquisadas, como mostra o gráfico 2. Porém, nosso convívio nestas
localidades, nos indica que o trabalho fora da unidade camponesa não
se traduziria em abandono da organização e do modo de vida
camponês. Observamos que em grande parte dos casos o dinheiro
ganho na Biopalma retornava para unidade doméstica (garantindo a
compra da chapa para a fabricação da farinha a formação da roça e
outros) permitindo, assim a sua reprodução enquanto camponês. O
relato de Valter dos Santos Belém corrobora com a afirmativa: “Isso a
gente ainda faz, eu pago para fazer roça pra mim, uma tarefa, uma
tarefa e meia, só pra gente não ficar sem comer. A pior coisa é o cara
morar na colônia e ficar sem farinha”.
Através deste relato, podemos inferir que o trabalho na
Biopalma, nem sempre afasta as famílias do trabalho habitual da roça.
Ele, porém, forja novos rearranjos territoriais em muitas situações

92
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

viabilizando a simultaneidade do assalariamento com o trabalho na


roça, ou mesmo do assalariamento temporário, ou seja trabalho
acessório, nos momentos de baixa de trabalho na unidade doméstica.
Nas comunidades pesquisadas o trabalho assessório é muito comum no
período de colheita da pimenta.
É certo que o assalariamento nos campos de dendê reordenou a
divisão do trabalho nas comunidades. Assim, quando o pai sai para
trabalhar fora, a roça fica sob os cuidados da mãe (que vem
gradativamente assumindo o trabalho com a fabricação da farinha para
o consumo) e dos filhos mais velhos. Quando os filhos mais velhos
saem a roça fica sob os cuidados dos pais, que quando idosos, pagam,
pela construção da roça e dividem a farinha ( meio a meio) com o seu
fabricante, processo conhecido na comunidade como sistema de meia.
Observamos também que muitos homens apresentam duas
jornadas de trabalho: o trabalho na empresa e o trabalho na roça. O
trabalho na roça “é no final de semana, no sábado, domingo à tarde,
quando chego também venho pra cá”. Esta dupla jornada ocorria
principalmente, no momento da fabricação da farinha para a venda.
Nas comunidades de Arapiranga e Curuperezinho se evidenciou
de forma mais intensa a associação entre o trabalho da roça e o trabalho
na Biopalma. Não que isto não ocorresse nas outras comunidades,
porém com menor expressão. Na comunidade do Cravo nos foi
relatado que “o final de semana é para trabalhar na roça do pai, ajudar a
mãe com a farinha”, além do descanso, é claro.
Soubemos em campo que apesar do dia de trabalho começar às
6:00 horas da manhã, a rotina de trabalho começa às 4:30, quando os
trabalhadores saem de suas comunidades em direção a PA 140, onde
aguardam o transporte cedido pela BIOPALMA, com exceção de Nova
Esperança e Km 35, comunidades localizadas às margens da rodovia. A
jornada de trabalho é de 44 horas, distribuídas de segunda a sexta de 6
às 15 h 45, com intervalo para o Almoço (11 às 12 h) e no sábado, de 6
às 10 h. O retorno para casa acontece por volta das 17 horas. Entre o
tempo de deslocamento e de trabalho propriamente dito, os
contratados da Biopalma somam uma carga horária diária de 13 horas,
o que pode variar para mais dependendo da distância entre a área de
cultivo e o espaço de morada do trabalhador.
Foi recorrente nos relatos apresentados pelos interlocutores que
a carga de trabalho se torna-se insuportável, devido as metas

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

estabelecidas pela empresa. “Quanto mais tempo o trabalhador vai


ficando na empresa, a meta é aumentada, sendo uma forma de
pressionar o trabalhador a pedir demissão” (INSTITUTO
OBSERVATÓRIO SOCIAL, 2014). Além disso, as temperaturas
muito elevadas tornam o trabalho no campo exaustivo e penoso.
Ressaltaram ainda a inexistência de banheiros e água potável no campo,
obrigando os trabalhadores a carregarem consigo ao longo do dia uma
garrafa térmica que pesa em média 10 quilos. Todos estes elementos
têm contribuído para uma intensa rotatividade desses trabalhadores na
empresa.
Neste ínterim, o trabalho no cultivo do dendê se descortina
como oposição ao trabalho na roça, como destaca Osmarino Maciel,

Eu pensava outra coisa, achei que empregado eu


ia mudar de vida, melhorar de vida, mas eu acho
que eu fiquei pior. Porque eu deixei as minhas
coisas achando que ia melhorar e fui lá trabalhar
nas coisa dos outros. Quase perdi a minha roça,
graças a Deus a mamãe e a minha mulher dero
conta, se não ainda tinha perdido a roça. Aquilo é
que é exploração! No papel diz uma coisa quando
a gente ia receber era outra. A gente ganhava um
tanto, mas só chegava um tanto menor na nossa
mão. Aquilo é escravidão. Trabalho de sol a sol e
no final do mês era um dinheirinho. É melhor
pegar sol na cabeça e trabalhar na terra da gente,
porque a gente sabe que é nossa. Agora aquilo,
não é meu, não é pra mim pra minha família. Me
arrependi de deixar meu roçado pra me meter lá
na Biopalma, mas eu pensei que era uma coisa e
era outra. (Entrevista concedida por Osmarino
Maciel, morador da comunidade de Arapiranga,
em dezembro de 2011).

A perspectiva do emprego formal apareceu num primeiro


momento como uma possibilidade de melhoria de vida, permitindo o
acesso a bens não produzidos nas comunidades, a exemplo dos
eletrodomésticos, peças do vestuário, material de construção,
motocicletas e outros. Contudo, o trabalho assalariado, os colocou “na
condição de escravos”, de acordo com o excerto acima. O trabalho fora

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

da terra não se traduziu em trabalho fácil de ganhos abundantes. Pelo


contrário, o trabalho para outrem, se traduziu na perda da liberdade e
na exploração, uma vez que “tinha hora para entrar, mas não tinha hora
para sair” (ainda de acordo com Osmarino Maciel) diferente da roça,
onde o camponês tem a liberdade para decidir a quantidade de trabalho.
Para este camponês, a referência ao “trabalho de sol a sol” está
relacionado a perda do controle de seu tempo, uma vez que o tempo da
empresa é o tempo regulado pelo “(...) mundo dos relógios que
controla os horários da produção, o cartão de ponto, a fiscalização da
produção no ambiente de trabalho” (COSTA, 2009, p. 14). Da mesma
forma externa, seu descontentamento com relação ao salário, uma vez
que “(...) a gente ganhava um tanto, mas só chegava um tanto menor na
nossa mão (...)”, o que se choca com a expectativa de ganhos sem
pagamento prévio de impostos no trabalho da lavoura.
Trabalhar na própria terra significa ter liberdade e autonomia.
Liberdade para dispor de tempo maleável, enquanto que a autonomia
está relacionada ao controle total do processo de trabalho na terra, “o
que significa ser senhor do seu próprio tempo e próprio espaço”. Essa
liberdade de não ter patrão é que vai definir o ritmo do tempo na
propriedade camponesa (BOMBARDI, 2004, p. 200).
Apesar dos relatos indicarem que o trabalho nos campos do
dendê, é penoso e difícil, o fluxo de trabalhadores que se dirigem para
lá ainda é intenso. Porém, neste ínterim se forjam representações
políticas colocando em discussão as demandas apresentadas pelos
trabalhadores. Por iniciativa dos gestores da empresa, encarregados,
fiscais, instituiu-se o “paradão”, momento após o café da manhã
utilizado para orientações e acompanhamento das atividades
desenvolvidas pelos trabalhadores do campo. Porém, gradativamente o
paredão vem se tornando espaço de discussão acerca das demandas
apresentadas pelos trabalhadores. Muitos destes momentos reúnem
representantes da empresa, sindicato e empregados.
Na concepção do Presidente da Associação de Nova esperança,
o trabalho nos campos do dendê é similar ao trabalho escravo,

Tem duas maneiras de se vê a Biopalma (...) Pra


agricultura familiar, ela é um desastre. Para o
desenvolvimento econômico do município é
regular, não chega a ser bom, mas a gente não
pode negar que a presença dela aqui, ela acabou
95
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

dando vários empregos, pra várias pessoas né.


Nós agricultores familiares consideramos
trabalho escravo, pela forma que é tratado os
trabalhadores, da Biopalma, mas das firmas
terceirizadas né. Então é, como se diz assim, é
uma faca de dois gumes, né. (Entrevista
concedida por José Maria, morador da
comunidade Nova Esperança, em maio de 2013).

Martins (1994, p.1) nos ensina que a acelerada expansão do


capital na região amazônica durante o regime militar revigorou a
escravidão por dívida ou peonagem. Processo caracterizado “(...) por
extrema violência física contra os trabalhadores, em alta proporção,
culminando com o assassinato daqueles que procuram fugir”. Para
Martins (1994, p.1), Trata-se da incorporação de elementos de
acumulação primitiva no processo de reprodução ampliada do capital:
“(...) a escravidão por dívida é variação extrema do trabalho assalariado
em condições de superexploração, (...) levada ao limite de comprometer
sua própria sobrevivência”.
Martins (1994) destaca ainda que a peonagem foi a forma
predominante de exploração do trabalho para a formação das fazendas
no contexto da expansão da fronteira amazônica. Da mesma forma, os
interlocutores identificam a atuação das terceirizadas, que limparam a
área para a implantação da Biopalma, como o momento de extrema
exploração do trabalho. “Agora a coisa mudaro um pouco, pouca coisa,
a empresa contratada, todo dia mandava gente embora, sem direito a
nada, ali a gente era escravo, o nosso único direito era trabalhar”,
afirma José Santana.
Dados do Instituto Observatório Social (2014, p. 62) mostram
que em 2013, o cultivo da palma de dendê foi incluído na relação das
atividades que se utilizam do “trabalho escravo”. “Dois dendeicultores
– Hirohisa, em castanhal (PA), e Altino Coelho Miranda, vice prefeito
(PSB) do Município de Moju (PA), foram incluídos na “lista suja”
elaborada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e pela
Secretaria de Direitos Humanos (SDH) pela exploração de mão-de-
obra em condições de escravidão”.
Ainda de acordo com dados deste relatório, além do Vice
Prefeito de Moju que fornecia dendê para a empresa Agropalma, outros
sete políticos foram incluídos na lista de proprietários de terra que

96
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

mantinham trabalhadores em suas propriedades em condições análogas


à escravidão.
Sem perder de vista os contextos históricos, a reflexão proposta
por Martins há aproximadamente três décadas nos coloca diante de um
passado-presente que exige posicionamento teórico e político, se não
incorremos no risco de camuflar as velhas-novas faces da questão
agrária brasileira e amazônica. A atualidade da questão agrária indica
que, “a grande propriedade, sempre foi um enclave sujeito a critérios de
direito, embora ilegais; lugar do reino do arbítrio do senhor de terras,
que se torna por isso mesmo, ainda hoje, senhor de consciência e de
pessoas” (MARTINS, 1995, p.4).
As condições de trabalho implementadas pela Biopalma,
juridicamente não se enquadram nas condições apresentadas por
Martins, análogas à escravidão, uma vez que a empresa atenderia a
critérios legais da legislação trabalhista (carteira assinada, dentre outras
prerrogativas). A referência à escravidão apresentada por parte dos
assalariados da Biopalma, utiliza outro par de comparação. Trata-se, na
maioria das vezes da relação: trabalho familiar-roça versus trabalho
assalariado-empresa. Na primeira, há o tempo da liberdade e da
autonomia. Já no assalariamento, ocorre o tempo da prisão, da
obediência, do desequilíbrio entre o consumo e fadiga (CHAYANOV,
1981). Observamos que se o salário aparece como algo positivo, por
ser certo e liquido no final do mês, a dinâmica do trabalho divorciado
das necessidades acaba por torna-lo penoso, difícil, por isso negativo e
comparado ao trabalho na roça. “Na roça ganha pouco, né, o preço do
produto é baixo, mas na empresa a gente é escravo”
Historicamente as políticas para o campo brasileiro, priorizam as
grandes propriedades. Sob o manto protetor do Estado brasileiro, na
segunda metade do século XX, os Incentivos Fiscais financiaram as
grandes propriedades na Amazônia e viabilizara a expropriação
camponesa, coincidência ou não com a produção do dendê na região,
não tem sido diferente, evidenciando a disputa entre terra de trabalho e
terra de negócio (MARTINS, 1980).

Parceria entre Biopalma e camponeses

No Pará, até o lançamento do Polo de Tomé- Açu (2010), o


cultivo do dendê pela agricultura camponesa reunia aproximadamente

97
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

20 mil hectares. Em 2012, teriam sido firmados 581 contratos, em uma


área de 5.810 ha. Para 2013, Banco da Amazônia- Basa previa
financiamento de mais de 1610 contratos, incorporando, mais 15, 3 mil
ha do território camponês a produção do dendê. Nos Municípios de
Concordia e Bujaru eram 17 contratos de parceria (produção do dendê
em unidades camponesas) até 2012 e em 2013 a parceria teria alcançado
25 unidades domésticas.
Por se tratar de um polo de produção, o Município de Concórdia
do Pará apresenta baixo número de contratos de parceria, conforme
apresentado no gráfico 2. Os dados do Relatório do Observatório
Social (2014) indicam que, de acordo com a empresa (Biopalma), isto se
deve a diversos fatores. Dentre eles, a idade avançada dos camponeses
(entre 50 e 60 anos) e a possibilidade de sucessão, por se tratar de
cultura de longo prazo. Outra questão apresentada pela empresa foi o
tamanho reduzido do lote das unidades familiares (entre 15 e 25 ha),
impedindo-os de produzirem outras culturas, uma vez que o camponês
deverá destinar ao cultivo da palma no mínimo 10 ha. O relatório
aponta também o analfabetismo funcional, como um entrave uma vez
que mais de 50% dos camponeses nesta região se encontram nesta
condição.
Na perspectiva dos camponeses, a parceria com a Biopalma é
inviável por que o contrato é pouco inteligível por eles, além de terem
pouca experiência com transações financeiras e bancárias. Além disso, a
pouca familiarização com tal cultura os colocariam em condição de
dependência total com relação a assistência técnica da empresa,
impedindo-os de tomar qualquer decisão com relação ao plantio.
Observamos também certo descrédito, dos camponeses, com
relação à cultura do dendê, levando-os a preferir o trabalho assalariado,
por que também o veem como temporário, passageiro “tudo aqui é
passageiro, vem e passa (...) quando passar o que vamo fazer o plantio
do dendê. É tudo muito duvidoso”, afirma Elias Santana.
A parceria com a Biopalma para a produção do dendê ocorre
apenas em uma das comunidades pesquisadas: Comunidade de
Arapiranga com três contratos de parceria. Porém, soubemos em
campo que a primeira intenção da empresa foi comprar esses lotes,
devido os mesmos fazerem limites com o território da empresa.

Eles queriam comprar o nosso terreno lá, sabe.


(...)eles viero aqui, e pediram pra mim vender.
98
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Mas eles queriam me dá 15 mil no terreno, 500


metros de largura por 1.000 de comprimento. Ai
eu disse que não vendia por esse preço, nesse
tempo eu queria 20 mil, mas eles não quisero me
dá. (...)O que eu ia comprar com 15 mil? Eu ia
ficar sem área para trabalhar, e eu tenho dois
lotes de terra. Ai quando foi um dia, lá o pessoal
da Biovale vem fazer uma reunião aqui, viero
avisar o presidente da comunidade. Ai ela
marcou...o pessoal da Biovale vem aqui tal dia. Ai
eles viero e nos fomo lá, ai fizeram a reunião
sobre agricultura familiar e oferecero vantages.
(Entrevista concedida por Jonas Ferreira,
morador da comunidade de Arapiranga, em maio
de 2013).

A formação do cultivo foi controlada diretamente pela empresa,


desde a derrubada, preparo do solo e plantio, assim como o crédito
(PRONAF-eco). Este processo gerou incertezas em seu Jonas, quanto a
sua capacidade de gerir o cultivo do dendê, bem como se a parceria se
traduziria em melhoria da renda da família. Sua principal queixa se
referia à contratação dos serviços (tratores, caminhões) além compra de
mudas e adubos diretamente da Biopalma, transferindo quase que o
montante do financiamento para a empresa.

Viero com o trator, derrubaram lá, só sei que lá


era capoeira grosso, não era capoeira fina que
nem aqui. (...) Ai lá foi plantado, ai eles viero, a
empresa plantar, o dinheiro que saiu que era pro
dono plantar, ficou lá para a empresa, ai eles so
ficaro fazendo coroa, colocando adubo, isso é
eles que tá fazendo. (Entrevista concedida por
Maria Silene Almeida, moradora da comunidade
de Arapiranga, em maio de 2013).

Embora o financiamento esteja em seus nomes, os camponeses


não têm o seu controle, tampouco conhecem as tecnologias utilizadas, e
possuem pouco conhecimento sobre a produção. “Esta é uma
completa relação de subordinação” (FERNANDES, mimeo). Com o
esgotamento do dinheiro para atender as demandas do cultivo de
dendê, seu Jonas Ferreira, por vezes, tem recorrido a recursos oriundos
99
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

da produção na roça. “Primeiro tava indo só ele, o Valdemir com o


Jonas, por que eles não tava tendo dinheiro, ai quando arrumava, que
vendia alguma farinha, ele arrumava um rapaz que trabalhava com ele”
O número elevado de roças existentes e o pequeno número de
contratos de parceria nas comunidades onde se desenvolveu a pesquisa
nos revelam, de certa forma, o caráter provisório, temporário com que
os camponeses concebem o assalariamento e mesmo a presença do
cultivo do dendê na região. “Aqui já teve a febre da malva, da pimenta,
agora e do dendê, quem disse que amanhã não vai ser outra coisa?” Da
mesma forma como concebem a roça e o trabalho familiar como
permanente, apesar da possibilidade de encontrar sempre um outro
emprego e assalariar-se novamente. Mais do que manter a roça, para
não passar a vergonha de ter que comprar farinha, a roça materializa,
laços e subjetividades que os associam e os permitem partilhar eventos
que os singularizam e permite sua reprodução no seio da sociedade
capitalista.
O reordenamento do território para a implantação e expansão do
cultivo do dendê gerou também fortes impactos ambientais nas
comunidades pesquisadas. Nas conversas e entrevistas descortina-se a
forma predatória como a empresa lida com a natureza. Exploração do
trabalho e exploração da natureza são condições para a
produção/reprodução, acúmulo e centralização do capital. Para
Camacho (2010, p. 05), “a relação entre monocultura e latifúndio tem
formado uma combinação impactante socioambientalmente”.

(...) Olha uns dos problemas que a Biovale nos


trouxe, foi o grande desmatamento e
desequilíbrio ecológico né. Por que as aves e os
animais que viviam nas terras que eram da
Biopalma elas migraram para as nossas. Ai
atacam tudo mais, as nossas frutas, as raízes que
nós plantamos, e com isso a nossa produção caiu
muito, nós tivemos muitos prejuízos, a
agricultura familiar quem continuou com a
fruticultura e raízes né, foram, fomos muito
prejudicados(Entrevista concedida por José
Maria, morador da comunidade Nova Esperança,
em maio de 2013).

100
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

José Maria, morador da comunidade Nova Esperança, nos relata


a perda de um pomar, em decorrência do ataque de aves que migaram
das áreas vizinhas desmatadas para a implantação do cultivo do dendê.
Esse foi o impacto mediato. Posteriormente, com a construção dos
campos da palma, o problema alcança as comunidades mais distantes
do território da empresa, com a contaminação da água dos igarapés em
decorrência do uso de agrotóxicos na plantação. Em fins de 2013, os
Igarapés que banham as comunidades se apresentaram impróprios para
o consumo humano e mesmo para o banho, causando sérios impactos
a saúde da população local.
Em conversa com Maria da Silva moradora de Nova Esperança,
soubemos que,

A água como nós não moramos próximo a


nascente ou igarapés aonde a Biopalma tem, nós
não fomos atingidos, mas as nossas comunidades
vizinhas, que são banhadas pelos igarapés, que
ficam entremeio os plantios da Biopalma, foram
muito atingidas. Na questão, aumento de doenças
intestinal, problema na pele, irritação na pele, e o
grande crescimento de problemas respiratórios.
Nós imaginamos que seja por conta da química
que é utilizado, a grande quantidade de química.
(Entrevista concedida por Maria da Silva,
moradora da comunidade Nova Esperança, em
dezembro de 2012).

Os impactos ambientais aparecem de forma uníssona nos relatos


recolhidos nas comunidades onde se desenvolveu a pesquisa. As águas
dos igarapés importantes, por serem historicamente ligados à produção
de alimentos e sociabilidades, vêm se tornando tema de preocupação,
para as comunidades. O aumento da temperatura, a contaminação de
açudes por envenenamento de agrotóxicos através da lixiviação da água
da chuva; o desmatamento de áreas de matas primarias e de áreas já
recuperadas são apenas alguns dos elementos observados nas falas dos
camponeses.

Ensaiando algumas conclusões

101
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Não se pode perder de vista que “o capitalismo é o modo


hegemônico de produção e sua relação com o campesinato é sempre de
dominação” (FERNANDES; WELCH; GONÇALVES, 2010, p. 4).
Portanto a participação dos camponeses na produção de
agrocombustiveis e sua suposta integração ao capitalismo se dá sob a
prerrogativa da subordinação.
Observamos que o incentivo à expansão da produção do dendê
na região se assenta em velhas práticas materializadas na supremacia do
grande capital e sua dinâmica territorial especifica. As vantagens
garantidas pelos incentivos fiscais nos idos dos anos de 1960, 1970
“trouxeram grandes prejuízos ecológicos, desperdiçaram ou desviaram
os recursos públicos colocados à sua disposição, (...) e não trouxeram o
prometido desenvolvimento para a região” (LOUREIRO; PINTO,
2005, p. 78).
Neste contexto, “as facilidades legais concedidas para atrair
empresários estimulavam o acesso a grandes extensões de terras e à
natureza em geral” (LOUREIRO; PINTO, 2005, p. 79). A devastação
florestal as margens das estradas, a concentração fundiária, os conflitos
e a subjugação do campesinato regional não são particularidades
daquele contexto, mas se apresentam como elementos estruturais
atuais, que nos acompanham ainda hoje, por que compõem o modelo
de desenvolvimento ainda vigente.
Na atualidade, vêm se reproduzindo a exclusão e ou submissão
do camponês em meio ao fortalecimento das redes do agronegócio.
Nosso levantamento em campo nos induz a pensar que os territórios da
produção de agrocombustiveis se mostram como novos territórios de
exclusão e de reprodução das desigualdades sócio territoriais. Porém,
em meio ao mercado de terras que se forjou com a expansão do dendê
e a consequente expulsão de camponeses, aos problemas ambientais
decorrentes da contaminação da água e do solo pelos insumos e
agrotóxicos, e à superexploração do trabalho, nas plantações do dendê,
os camponeses forjaram estratégias para permanecerem e garantirem a
manutenção da unidade camponesa e sua autonomia.
Destaca-se o reordenamento da divisão do trabalho, colocando a
mulher em muitas situações na linha de frente da roça, a dupla jornada
de trabalho (roça, feriados e finais de semana e o trabalho na empresa),
a plantação de mandioca e leguminosa (maxixe, quiabo, jerimum e
outros) à margem da rodovia, a partilha do lote entre parentes e

102
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

compadres, a diversificação da produção, além da conscientização


política.
A venda de terras nas comunidades e as incertezas geradas com a
chegada da empresa no município estimulou longas conversas entre os
camponeses e suscitou estratégias de mobilização e luta. Em 2012, os
moradores da Comunidade de Nova Esperança ocuparam a rodovia
exigindo que a Secretaria Municipal de Meio Ambiente fizesse um
estudo da água, alegando doenças de pele e estomacais. Além disso,
apesar da campanha sedutora por parte da empresa, tanto para a
compra da terra quanto para o estabelecimento da parceria, o número
de interessados em firmar o contrato foi inexpressivo. Já a venda da
terra permanece como um tema recorrente nas reuniões ocorridas nas
comunidades.
Nossa imersão no cotidiano das comunidades nos indica que a
expansão do cultivo do dendê no Nordeste Paraense e a mobilização
que esta atividade promoveu na região exigem um olhar atento,
vigilante e audacioso, que atravesse a rodovia e alcance os rincões da
vida camponesa. Se não, correremos o risco de enxergar apenas o
aparente-visível, ou seja, os trabalhadores do campo do dendê. Nossos
dados nos induzem a pensar que se o capital tem pressionado os
camponeses para garantir a sujeição da renda da terra ao capital, os
camponeses, por sua vez têm reagido e lutado para permanecerem
vivendo da terra e construindo sua autonomia.

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107
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Fronteiras agrárias e processos de territorialização do


campesinato na Amazônia – uma análise comparativa de
projetos de assentamento no Sudeste e Sudoeste do Pará

Fabiano de Oliveira Bringel 11


Claudio Ubirantan Gonçalves12

Apresentação da discussão

Os sujeitos do grande capital em articulação com estado


brasileiro elegeram a Amazônia como uma grande “fronteira de
acumulação”. Desde a década de 1960 vemos o processo de ocupação
da região se intensificar e com eles os conflitos, em várias dimensões.
Surgiu, então, a ideia inicialmente de estudar a organização dos
camponeses em diferentes tempos e espaços da fronteira a partir de sua
lógica de territorialização. Organizamos então um projeto de pesquisa
que tinha como lócus de estudo três objetos geográficos – o PA
Palmares II, no Sudeste do Pará, o PDS Esperança no Sudoeste do
Pará e o Comunidade Remanescente de Quilombo São Pedro no Baixo
Amazonas.
O objetivo seria entender que mecanismos de construção de seus
territórios esses diferentes objetos geográficos utilizam já que são
“animados” por diferentes sujeitos como MST, Igreja Católica e
Movimento dos Remanescentes de Quilombo. Isso tudo na fricção
com os chamados Grandes Projetos na Amazônia, como exemplo o
Projeto Ferro Carajás, a UHE de Belo Monte e a Mineração Rio do
Norte – MRN. Nossa intenção inicial aí seria fazer uma análise
comparativa entre esses diferentes territórios. Porém, o tempo, as
dificuldades de acesso aos diferentes campos e a dificuldade teórica em
comparar quilombola com trabalhador assentado foram os elementos
que fizeram repensar o projeto de pesquisa inicial. Abaixo
apresentamos uma figura com a localização dos municípios.

11
Professor Assistente de Geografia do Centro de Ciências Sociais e Educação
da Universidade do Estado do Pará. E-mail: fabianobringel@gmail.com
12
Professor do programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade
Federal de Pernambuco. E-mail: birarural@ig.com.br
108
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

FIGURA 01 – Localização dos Municípios onde ficam os Projetos de


Assentamentos

Optamos por ficar apenas com os assentamentos (PA Palmares


II em Parauapebas e PDS Esperança em Anapu) pela lógica da
proximidade e também pela facilidade de se trabalhar com uma unidade
categórica – assentamento rural. Nossa pergunta inicial é: qual a relação
entre a fronteira capitalista e as territorialidades camponesas na
Amazônia paraense? Nossa hipótese para essa questão é que as frentes
de expansão da fronteira capitalista na Amazônia paraense tendem a
desterritorializar as sociedades camponesas. Porém, sua organização e
resistência podem contribuir para um recuo da fronteira permanecendo
seus modos de vida transformados, agora, em novas territorialidades (ou
uma nova campesinidade).
Neste trabalho três conceitos são fundamentais – fronteira,
território e camponês. Eles são trabalhados desenvolvimento do
trabalho. Juntamente com os procedimentos metodológico.
Isso para entendermos, de um lado, que a correlação de forças
entre os diversos sujeitos sociais (madeireiros, fazendeiros, mineradoras
e Estado de um lado e, de outro, camponeses) na fronteira capitalista da
Amazônia paraense tende a prevalecer o ordenamento territorial das
classes hegemônicas. No entanto, se esquadrinha uma contra-
hegemonia capaz de garantir uma estagnação da fronteira, ou mesmo,
de uma involução da mesma. Pensamos isso na relação com o
109
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

território. Por isso compreendemos que a ação que desterritorializa o


campesinato na fronteira é acompanhada frequentemente e de forma
paralela, por ações reterritorializadoras, portadoras de uma capacidade
de reinvenção do camponês.
Na segunda parte da pesquisa trabalhamos o contexto sócio-
espacial de cada mesorregião que os assentamentos estão circunscritos
(Sudeste e Sudoeste do Pará) e tratamos dos dados coletados no
decorrer do campo da pesquisa. Desenvolvendo aí uma comparação
entre os assentamentos e os diferentes tempos e espaços da fronteira.
Partimos da premissa que existem espaços que estão num momento de
pouca ação antrópica (muita entropia) e espaços com muita ação
humana (pouca entropia). Isto não quer dizer que a fronteira evolua
linearmente, em etapas, numa escala que vai de sua abertura até seu
fechamento (consolidação).
Por outro lado, na relação com a fronteira os processos de
territorialização dos camponeses no Pará são tão variados que não se
restringem nem a recriação de sociedades tradicionais e nem levam
necessariamente a uma proletarização desse sujeito e nem a uma
urbanização generalizada do espaço paraense.
Fazemos essa análise a partir de quatro características da história
de vida desses assentados. Chamaremos aqui essas características de
clivagens territoriais – trabalho, migração, família e saberes. Investigamos
esses quatro elementos estruturantes do território convictos de que eles
têm relação com as dimensões desse mesmo território.
Trabalho/migração mais vinculados a dimensão político-econômica e
família/saberes mais relacionada à dimensão cultural/ambiental.
Para concluir retomaremos o debate sobre o campesinato.
Tentaremos responder se os assentamentos rurais no contexto da
fronteira de acumulação são forjados a partir do que chamamos de
matriz camponesa. Essa matriz apresenta os seguintes elementos: a
busca pela posse da terra; no trabalho, essencialmente, agrícola; na
mão-de-obra prioritariamente familiar; nas relações familiares primárias;
num estilo de vida que valoriza a relação mais direta com a natureza e
na busca pela autonomia nas suas relações de produção.

110
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Definindo fronteira

Quando começamos o estudo sobre as referências bibliográficas


concernentes à fronteira acreditávamos que o exercício de defini-la e
apresentar um estado da arte como parte do resultado da pesquisa
pareceria uma atividade fácil. Ledo engano. Por duas razões básicas.
Uma, pelo uso e abuso que o conceito teve ao longo de pelo menos 100
(cem) anos de reflexão em torno dele. Outra, pela controvérsia, no
campo das ciências sociais, sobre a existência ou não, em nossos dias,
de uma fronteira para o modo de produção capitalista? Se existe uma
delas estaria na Amazônia?
Partimos da hipótese que sim. A Amazônia ainda é uma fronteira
para os agentes do capital. Não exatamente àquela das décadas de 1960
e 1970. Mas uma nova. Com contornos e sujeitos diferenciados.
Conteúdo e intensidades modificados. Com heranças de períodos
anteriores e características novas. Aí nos perguntamos, centralmente,
em nosso trabalho - de que forma o avanço dessa fronteira capitalista
contemporânea, a partir da década de 1960, aprofunda processos de
territorialização das sociedades camponesas na Amazônia paraense?
Começaremos aqui pelos diversos usos que a palavra tem nas
suas mais diversas aplicações até chegar à que queremos. Em termos
gerais a fronteira, de imediato, nos remete a noção de zona ou linha
divisória. Entre algo que conhecemos e que num certo sentido nos
pertence e algo que desconhecemos que nos é estranho e inexplorado.
Apresentamos sentidos similares como fronteira tecnológica, fronteira
do conhecimento, fronteira política, ou mesmo, a “última fronteira, o
espaço sideral”. O termo pode ser empregado, segundo Marc Augé,
para significar o universo, para dar um sentido ao mundo e torná-lo
habitável. Assim, no essencial, a demarcação de fronteiras se constituiu
em “opor categorias como masculino e feminino, o quente e o frio, o
céu e a terra, o seco e o úmido, para simbolizar o espaço
compartimentando-o” (AUGÉ, 2010).
Na revisão de literatura sobre o fenômeno, diversos tipos de
abordagem aparecem. Primeiro, a fronteira é geralmente remetida à
noção política “da parte do país que enfrenta o outro”. Noção que
geralmente aparece mais estática (tendo a clareza que se pode
transformar-se com o tempo) e que surgem com a “concretude
territorial do estado” (GUICHONET & RAFFESTIN, 1974). Existem

111
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

os que compreendem a fronteira como “fronteiras de assentamentos”,


nos remetendo a uma lógica mais demográfica, que para Reboratti
(1990) estaria vinculada a “fenômenos móveis e transformadores que
são dinâmicos e nem sempre resultam de forças claramente definidas
dentro ou fora de si mesmas” (REBORATTI, 1990:02). Por outra
perspectiva aparecem os que definem a fronteira como conflito entre
diferentes sujeitos na qualidade de classe e/ou étnica. É o caso de
Almeida (2005) “uma dicotomia entre as identidades territoriais, pois é
deste território ou não é. Isto nos leva a entender porque a fronteira é
um espaço de conflito.” (pag.107). Por esse caminho também se move
Ribeiro (2012) que em sua tese traz uma proposta interessante de
transportar a ideia de fronteira para a ideia de front, que seria assim “a
fronteira na sua máxima explicitação do conflito” (pag. 59). Na
aplicação dessa abordagem ao espaço amazônico destaca-se Jean
Hébette, com vários artigos sobre o assunto (Hébette, 2004).
Com base nessas diferentes abordagens elencaremos os
elementos que nos ajudam a definir nossa concepção de fronteira:

a) A fronteira é mais um espaço do que exatamente uma


linha divisória;
b) Espaço este heterogêneo tanto no que se refere aos
domínios naturais quanto de organização social. Por isso,
coexistiriam, contraditoriamente, dois ou mais tipos de
organização espacial;
c) A condição de fronteira é sempre balizada numa
conjuntura dada e numa sociedade especificamente estabelecida
no tempo e no espaço;
d) Tendo como advertência o ponto anterior,
entendemos que um lugar num dado tempo-espaço pode se
converter em fronteira. Pode deixar de sê-lo em outro. E
retornar a ser em outra conjuntura.
e) Fazemos aqui a distinção entre frente e fronteira. As
“frentes” estão contidas na fronteira e separamos, a título de
entendimento, em duas feições: i) frente como momento
histórico da fronteira subdivida em “frente de expansão” e a
“frente de pioneira”; ii) frente como expressão territorial da
expansão econômica tendendo a utilizar um recurso especifico,

112
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

porém efêmero (frente madeireira; frente mineradora; frente


agropecuária etc.);
f) Temos clareza que fronteira em sua acepção original tem um
forte componente colonial e etnocêntrico. A fronteira aparece
como separação entre o “Nós” – a “civilização”, o ecúmeno, os
de “dentro”. E os “Outros” – “selvagens”, indômitos,
incivilizados, os de “fora”.

Questões importantes para a fronteira amazônica hoje – pela


construção de uma abordagem territorial sobre a fronteira e o
campesinato

Depois deste percurso sobre diversas percepções sobre a situação


de fronteira procuraremos aqui destacar alguns elementos que julgamos
importantes para ajudar na construção de uma teoria geográfica sobre a
fronteira à luz de uma abordagem territorial. Acreditamos que esse tipo
abordagem ajudará na reflexão de duas questões levantadas,
primeiramente, por Brandão (2007) e, depois, por Acselrad (2013) e
que, no nosso entendimento, acabam se encontrando.
Para Brandão (2007) teríamos no Brasil, dois grandes tipos de
estudos sobre as sociedades camponesas: um que, ao estudar as
sociedades camponesas tradicionais, privilegia o espaço e a cultura; e outro que,
ao estudar as sociedades camponesas no interior da fronteira, nas frentes
pioneiras ou de expansão, áreas de conflito agrário, enfoca o tempo e a
história. O resultado, segundo o autor é ter

[...] então, de um lado, um excesso de cultura


(espaço) sem história e, de outro, um excesso de
história (tempo) sem cultura. Há muitos espaços
sem tempos, de um lado, e muitos tempos sem
espaços, de outro. E é difícil encontrar um ponto
de equilíbrio entre essas duas dimensões que
tanto na natureza quanto nas sociedades humanas
não existem nunca em separado. (BRANDÃO,
2007, p. 38)

Por outro lado, mais recentemente, Acselrad (2013) com base em


Fraser (2006: 10) apresentou duas problemáticas que foram construídas
em separado, “a questão das demandas por terra por parte de grupos

113
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

camponeses fundados na tradição do trabalho familiar” e, por outro


lado, “as demandas por território formuladas por grupos indígenas,
quilombolas e extrativistas detentores de modos de vida associados ao
uso de terras tradicionalmente ocupadas”. Tanto as lutas por terra e as
lutas por território foram construídas em separado como os próprios
estudos dos fenômenos foram desenvolvidos igualmente em separado.
Sobre essa situação discorre

Esses esforços teóricos e paralelos e pouco


dialógicos entre si foram simultâneos, por certo, a
movimentos de elaboração de estratégias políticas
também paralelas e pouco comunicantes entre si:
por um lado atores das lutas por reforma agrária
reivindicando direitos universais à terra e, de
outro, movimentos indígenas, remanescentes de
quilombos e grupos extrativistas reivindicando
direitos específicos à delimitação, demarcação e
proteção de seus territórios. (ACSELRAD, 2013,
p.10)

Teríamos, então, de um lado, uma luta redistributiva (luta por


terra), ligada aos movimentos camponeses. Afiliar-se-iam aí um
conjunto de pesquisadores que ao se debruçarem sobre essa questão
estudariam tempos sem espaço, um excesso de tempo sem cultura. Por outro
lado, teríamos lutas por reconhecimento (luta por território) ligadas aos
movimentos dos povos tradicionais. E outra gama de pesquisadores que
analisariam espaços sem tempo, um excesso de cultura sem história.
Neste sentido, acreditamos que a abordagem territorial é
fundamental para integrar esses espaços sem história com esses tempos sem
espaços. Já que na fronteira agrária amazônica temos num determinado
tempo-espaço, além da fronteira de acumulação do capital essas sociedades
tradicionais (como Indígenas e Quilombolas) e em outro as sociedades
camponesas das frentes pioneiras, dos acampamentos e dos
assentamentos, inseridos de forma contraditória ou precária, na fricção
com os agentes do capital ou aquém da fronteira.
No momento apresentaremos algumas situações-problema
acerca das diversas percepções sobre fronteira e suas dificuldades em
nossa empiria trabalhada. Na análise geral sobre o entendimento de

114
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

fronteira acreditamos que temos duas questões para serem levantadas e


enfrentadas:

Desencontros na (des)construção do território camponês – as


fronteiras dentro da fronteira

1. O estranhamento do trabalho camponês

No sudeste do Pará, no município de Parauapaebas, o MST


organizou um assentamento chamado Palmares II (um de nosso lócus
de pesquisa). De imediato, foram aprovados 05 grandes cooperativas
agroindustriais para os assentados trabalharem coletivamente, muito
com base no modelo do sul do país, onde as cooperativas
agroindústrias tiveram um relativo êxito. As agroindústrias foram de
farinha, suinocultura, rizicultura, lacticínio e de avicultura. A estrutura
foi montada e as agroindústrias começaram a funcionar. Depois de dois
anos todas fracassaram. Independente das possíveis causas da derrota
desse modelo, já trabalhadas em Monteiro (2004), chamo atenção para
uma situação especifica na agroindústria da avicultura.

FIGURA 02 – Sede da Associação dos Produtores da Palmares II

Fonte: Bringel, 2012.

115
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Montada a estrutura para produção de frango de granja em escala


industrial, com suas respectivas divisões do trabalho, com jornadas
distribuídas ao longo de quatro turnos, um sistema técnico exógeno à
lógica camponesa, já que desde o fornecimento de pintos à ração
utilizada para os frangos, passando pela quantidade de unidades animais
a serem criadas e abatidas, tudo era ditado por uma grande indústria
alimentícia, a Frango Americano. Depois de um ano nesse “regime”, os
assentados realizaram uma assembleia para desmontar a agroindústria,
dividir os frangos entre as famílias e convertê-los em frangos caipira.
Como observamos na fala da coordenadora de produção do MST

Nós fizemos uma experiência aqui num


assentamento nosso. De produção de frango de
corte. Mas as famílias que pegaram o projeto de
frango de corte nunca tinham produzido. Nunca
tinham criado galinha em um sistema intensivo.
E muitas delas tinham características urbanas. Os
pais foram do campo, mas ele teve uma vida na
cidade. Primeiro que na região não se produzia,
nós atentamos para isso, o que tinha aqui (fala da
Microrregião de Marabá). Comprava de
Conceição, de Redenção, São Paulo. A lógica de
trabalho que seria incorporada a esse sistema para
poder manter o horário. Fazer todo o processo
de criação das galinhas. Trocar água. Fazer tudo.
Ter toda uma disciplina. Nós, ainda, ficamos sem
ter a assistência técnica necessária. A tendência
foi ir abandonando. Largaram tudo aquilo lá.
Largaram para continuar com a galinha caipira.
(“Joana”, coordenadora do Setor de Produção do
MST/PA, entrevista realizada no dia 20 de julho
de 2004).

Podemos identificar dois grandes problemas levantados junto à


entrevistada para justificar o insucesso da agroindústria da avicultura: a)
a não experiência em relação a um sistema intensivo de criação de
galinhas (projeto de cooperação coletiva com divisão social do trabalho,
horários estabelecidos, etc) junto com a falta de assistência técnica e b)
as características urbanas dos assentados, sem experiência em atividades
rurais. Observa-se que o próprio MST tem uma leitura equivocada de

116
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

sua base social, na medida em que aponta a não vocação para o


trabalho agrícola dos assentados e não entende o projeto de autonomia
que o campesinato desenvolve ao longo de sua trajetória. Neste caso, a
atividade de produção avícola intensiva tem muito mais chance de ser
exercida por pessoas que tenham hábitos disciplinados e informações
para dominar as técnicas modernas do que um camponês ignorante e
adaptado a outro sistema de criação.
Esse fato nos remete ao que nos trouxe José Graziano da Silva
quando discorre sobre o processo de tecnificação dos agricultores e
uma das faces de sua proletarização na fronteira agrícola. Essa
tecnificação levaria a recriação do camponês sob outras bases
transformando-o em um novo camponês, agora, como um trabalhador para
o capital. Este caso, embora é verdade carecendo de generalizações, nos
demonstra a força de resistência do camponês à tecnificação, sua recusa
ao regime de jornadas fixas de trabalho e da proletarização como um
todo e sua insubordinação à dependência da própria indústria. Tal
situação nos leva a questionar essa transformação mecânica tanto no
sentido da “capitalização”, onde conflito seria, agora entre frações de
classe (pequeno empresário capitalista versus empresas) quanto no
“sentido particular de proletarização” no que se refere à transformação
desse camponês na fronteira em um simples “trabalhador em
domicílio”.

2. Ação do estado e a diferenciação espacial

Uma das áreas de nosso estudo é o PDS Esperança no


Município de Anapu, região conhecida como Terra do Meio no Estado
do Pará e que faz parte da Microrregião de Altamira. O PDS é uma
modalidade de assentamento rural onde se associa a agricultura com
práticas extrativistas florestais. Fundado em 2002, o PDS foi resultado
de intensa luta de colonos ao longo da rodovia Transamazônica contra a
grilagem de terras e extração ilegal de madeira que se estabeleceu na
região a partir da década de 1980.
O estado brasileiro dividiu a Rodovia Transamazônica em dois
polos (Transa-Oeste e Transa-Leste). O polo Transa-Oeste com terra
considerada “boa”, de terra roxa, a chamada “faixa”, onde os
agricultores ali instalados seriam rapidamente inseridos no mercado,
com a assistência técnica, com ramais abertos pelas máquinas do

117
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Estado, instalação de escolas a cada 10 quilômetros e produção voltada


para a exportação. Objetivando aí transformar os camponeses, colonos
do sul, em agricultores familiares exemplos de uma pequena produção
que “deu certo”. Outro polo, o Transa-Leste, abandonado à própria sorte,
com trabalhadores oriundos do nordeste brasileiro, onde “em 1975, os
primeiros colonos começaram a abrir as picadas e ramais ‘no braço’
(com facão e foice) [...] sem nenhuma estrutura ou apoio governamental
esses colonos mediam os seus lotes com cordas” (GUZZO &
SANTANA 2009, 41).

FIGURA 03- Inauguração da Rodovia Transamazônica

Fonte: (indefinida)

O projeto político do estado brasileiro para esse polo (transa-


leste), desde o seu início, foi sempre contar com a derrota da agricultura
camponesa e estabelecer a concentração fundiária objetivando a
territorialização da “grande empresa rural” através da CATP’S
(Contratos de Alienação de Terras Públicas) com lotes em média de
3.000 hectares. Podemos constatar isso na fala de Fábio, uma das
lideranças do PDS Esperança

Antes era só na margem, aí vieram ocupando, o


pessoal veio ocupando essas áreas de C.A.T.P.,
veio ocupando essas áreas de C.A.T.P.
abandonadas, é poucos que tem em Anapu que

118
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

ainda ta lá com o C.A.T.P. em dia, cumpriam


todas as regras, e a maioria ta em litígio, já teve o
C.A.T.P. cancelado, ta na justiça pra retomada do
INCRA, o INCRA brigando pela posse da área
de novo, pelo não cumprimento do C.A.T.P., a
venda do C.A.T.P. que praticamente todos, eu só
conheço dois no Anapu que tem ainda o
C.A.T.P. que é o legitimo dono do C.A.T.P. que
é o seu Arí [...] (Fábio, Coordenador da
Associação Agroecológica da Comunidade Santo
Antônio do PDS Esperança, entrevista realizada
em 18 de julho de 2013)

A partir da situação apresentada acima, nossa hipótese, a partir


da proposta de José de Souza Martins (1997), é que houve uma
sobreposição da frente de expansão sobre a frente pioneira nesta área
da Transamazônica. Isso porque o acesso à terra “obtida pela posse” se
estabeleceu sob o signo de “colonização espontânea” na Transa-Leste.
Ao mesmo tempo e espaço, na Transa-Oeste se estabeleceu “um
regime de propriedade privada da terra”, ordenada pelo estado
brasileiro e chamada de “colonização dirigida” o que poderíamos
caracterizar de uma “frente pioneira”. O resultado seria uma tensão
entre a terra de negócio e a terra de trabalho.

3. Mineração vista sob a Questão Agrária

O assentamento Palmares II está localizado no entorno da Serra


de Carajás, no interior do município de Parauapebas, sofre a influência
direta do Projeto Ferro Carajás – PFC da companhia de mineração
Vale. Assim, a lógica do vetor da mineração, como mais uma frente
econômica, é um componente importante na reflexão sobre a fronteira
e da questão agrária que lhe é subjacente.

119
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

FIGURA 04 – Ferrovia Carajás – Itaqui.

Fonte: Bringel, 2014.

A influência se dá basicamente através de três situações. Duas


ligadas diretamente à Vale. A primeira através da utilização do trabalho
dos assentados pelo assalariamento feito por empresas terceirizadas
atingindo parte importante da juventude. A segunda pela sua ferrovia 13
que “corta” o assentamento (no momento sendo duplicada). É grande
o número de acidentes provocados pelo trem envolvendo tanto
humanos como outros animais de criação dos assentados (bovinos,
suínos, caprinos e equinos). Uma terceira situação se articula com o
processo de expansão da malha urbana da cidade de Parauapebas, com
a demanda crescente por areia e seixo pela indústria da construção civil.

13
São 892 km da Estrada de Ferro Carajás (EFC). Em processo de duplicação,
esta ferrovia vai de Parauapebas (PA) a São Luís (MA). Vale também é
proprietária do Porto Ponta do Madeira, localizado na capital maranhense.
Atualmente, a EFC passa por 27 municípios, 28 Unidades de Conservação e
atravessa diretamente mais de 100 comunidades quilombolas, indígenas e
camponesas no Pará e no Maranhão, além de abranger 86 comunidades
quilombolas na sua área de influência direta ou indireta.
120
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Nesta cidade é grande o assédio por esses recursos junto aos lavradores.
Como a maioria dos lotes no assentamento são cortados pelo rio
Parauapebas, que contém tais recursos minerais, o resultado é um
processo crescente de “subordinação” desses camponeses ao capital
mercantil na figura das estâncias de venda de materiais de construção.
Neste sentido, é que se estabelece a “articulação entre
acumulação primitiva e formas de acumulação propriamente
capitalistas” e nesse jogo, o campesinato é fundamental. Cumpre um
papel importante. Mesmo em condições subordinadas às regras de
acumulação do capital que no “capitalismo autoritário, onde quer que
preexista uma base camponesa, ela não é destruída pelo
desenvolvimento capitalista (a não ser em parte), mas é mantida como uma
forma subordinada de produção e a acumulação primitiva prosseguem às
suas custas” (VELHO, 1976, p. 49). Temos, então, além da lógica de
subordinação pela agricultura, também a subordinação pelo
extrativismo. No caso, mineral.

4. Entre o material/econômico e o imaterial/simbólico

Ao chegarmos na Palmares II ainda pelo ano de 2006, em outra


situação de pesquisa, encontramos um lote cercado na área reservada
para a expansão da agrovila que destoava da paisagem planejada.
Classificamos como “ocupante” porque naquele momento o camponês
que entrevistamos estava em situação irregular no Projeto. Era uma
espécie de “invasor” do Assentamento organizado pelo MST. Tal
situação nos chamou a atenção. “Como assim? O cara invadiu o MST!”
Imediatamente quisemos conversar com ele. Tentamos pelo menos três
vezes entrevistá-lo. Na primeira tentativa fomos acompanhados por um
dos militantes do MST. Quando o viu mandou sairmos imediatamente
da porta de sua casa.
Na segunda tentativa fui só. Recebeu-me e imediatamente
mandou sua companheira fazer café. Ofereceu um tamborete para
sentar. Com pouca experiência de pesquisador, cai no erro de perguntar
seu nome. Dito e feito. Fui expulso novamente de sua casa. Retornei,
pela terceira vez, no outro dia. Agora, mesmo ressabiado, fui de
imediato dizendo que não queria saber seu nome. Apenas sua história
de vida. Não tiraria nenhuma foto e nem gravaria qualquer palavra,
minha ou de quem quer que seja na casa. As bases do acordo foram

121
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

firmadas. Comecei, então, a conversa com esse lavrador. Acabou sendo


uma das histórias mais interessantes que já ouvi em toda a minha
existência. Vamos para uma parte dela.
O lavrador “P” começou contando que tinha nascido no norte
de Goiás (hoje Tocantins) no ano de 1963. Tinha saído muito cedo do
lugar onde morava porque a terra era de outro. E que saiu de lá, junto
com seus pais, em busca de terra própria para sair do “cativeiro”.
Rumaram em direção ao Oeste do Maranhão. Depois de um período
longo pela região de Codó encontraram a terra de um fazendeiro que
ofereceu terra em troca de trabalho (a famosa condição de agregado).
Durante o período de um ano, seu irmão se apaixonou por uma moça
do lugar. O coração dessa moça, por sua vez, já era cobiçado por outro.
Começou então uma grande refrega entre os dois pelo amor da moça.
Em um dos episódios da disputa, o Outro esperou o irmão de
nosso interlocutor, atocaiado atrás de uma capoeira na saída de uma
festa. Quando o irmão passou pela capoeira, o Outro o atacou com
uma mordida em seu ombro. Em uma breve troca de sopapos, a briga
se dissipou. Foi quando começou uma “desgraça” espiritual na família
de nosso entrevistado. O seu irmão morreu com uma inflamação
profunda dois meses depois no mesmo lugar onde a mordida foi feita.
Nesse mesmo caminho estavam indo todos os seus irmãos, inclusive
ele, caindo em enfermidades profundas. Descobriram que esse Outro
manipulava energias espirituais e era um grande “feiticeiro” da região.
Foi quando a família chegou à decisão de emigrar para outro lugar (no
caso o Sul do Pará). “Moço, foi um catimbó14 brabo!” foi o que disse ao
responder a minha indagação do por que tinham saída daquele lugar.
Toda essa longa história é para ilustrar que nem tudo cabe na
grande “cobertura” econômica e material para as explicações dos
fenômenos sociais. Costa (2012) se aproximou dessa discussão, apoiado
em Teodor Shanin, ao afirmar que toda compreensão sobre o
campesinato na fronteira acaba numa polaridade (ou numa
bipolaridade) entre o

“anticapitalista”, com potencial subversivo em


relação ao projeto instaurador da “terra de
negócio” (Martins), ou capaz de alterar a

14
“Catimbó” é uma expressão do interior do Maranhão usada para designar uma
espécie de feitiço. Usada, também, como sinônimo de “macumba”.
122
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

qualidade da sociedade civil como uma força a se


tornar plenamente inserida no universo político
da sociedade configurada na via autoritária de
desenvolvimento do industrialismo capitalista
(Velho) (COSTA, 2014, p. 212)

O autor conclui, então, sua hipótese apresentando uma


diversidade de condições da presença camponesa no interior da
fronteira. Até aí tudo bem. A questão nos remete novamente à reflexão
(sobre essa condição), única e exclusivamente, à dimensão econômica
(ou de uma economia política). Quando nos fala que “requalificar a
esfera econômica na dinâmica agrária da Amazônia, de modo a
transformá-la em lócus privilegiado da construção de um novo projeto
(também político) de modernização” (COSTA, 2012:212). Apresenta
então o problema, não levado em consideração até então, é verdade,
das inovações tecnológicas no interior do campesinato que acaba rebatendo
em suas decisões estratégicas no plano da unidade de produção familiar.
Acreditamos que se deve levar, sem dúvida, em conta essa variável.
Porém, existem ainda outras, tão importantes quanto, que não estão na
esfera da economia. Como esse relato apresentado, em que a decisão de
migrar (característica estrutural da fronteira) não seguiu exatamente
uma causalidade material e econômica.
Tal perspectiva ganha reverberação na conversa que tivemos
com uma liderança do MST no Sul do Pará, reproduzida abaixo

Nos consideramos um dos movimentos


camponeses do mundo que tem na relação com a
terra e na relação com a agricultura o seu
principal campo de resistência, não só
econômica, mas também espiritual, cultural,
sentimental, de valores. para o quê? Quem
começa a construir essa relação na terra,
enquanto camponês, nos últimos trinta anos e
que tem relação com essa região por conta da
migração, que vem ocupando terras que estavam
historicamente na mão dos latifundiários, pelos
pequenos produtores, eles estão fazendo um
serviço, né? Que é dividir terras da burguesia pra
poder criar pequenas propriedades e criar de fato
o campesinato, então o que a gente faz aqui é

123
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

provocar o processo de divisão da terra e reforma


da terra pra criar, em escala de massa, pra criar
condições de existência e surgimento de um novo
campesinato, que é esse que passou por um
processo de migração, por etapas de resistência,
de períodos na cidade, mas que volta para o
campo, né? Então, nós achamos que esse
campesinato ainda não tá pronto e acabado,
porque esse campesinato está sempre em
evolução, ele ta sempre em processo de
reformulação de sua existência espacial, de sua
vida comunitária, né? Da reconsideração de
técnicas ou não, por exemplo existiam
experiências na Rússia e na Europa, de comunas
camponesas que nunca existiram por aqui.
Tiveram outras experiências coletivas na terra que
nunca foram estudadas de modo mais sólido
pelos pesquisadores: o que é que têm nos
camponeses brasileiros que tem alguma
semelhança com as civilizações pré-colombianas,
por exemplo? O que é tem a ver com os Astecas,
os Maias e os Incas de semelhança com nosso
campesinato? O que é que ficou dos Índios? Dos
Guaranis e das tribos Tupis e que foi
incorporado à agricultura nossa? O que é o
camponês no Pará? (“Jorge”, liderança assentada
na Palmares II, entrevista realizada em maio de
2006)

Nosso entendimento é que um dos principais sujeitos da fronteira


é o campesinato. Ele atua em diferentes tempos e espaços dela.
Articula-se em diferentes níveis escalares e constrói e desconstrói
formas espaciais produzindo diferentes funções em relação aos modos
de produção que se (de) formam contraditoriamente em seu interior.
Nossa problemática começa na relação entre a reprodução desse ator
em área de fronteira agrária tendo como base os seus processos de
territorialização. Compreendendo aqui que território e territorialização
serão categorias fundamentais para compreensão do fenômeno em sua
totalidade.
Os processos de territorialização envolvem na esteira do conflito
social, acordos e ajustes que nos remetem a relações de poder que podem
124
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

ser simétricas e assimétricas no interior da fronteira. Tais relações são


geralmente conflituosas e, portanto, fundamentais e inerentes para se
compreender as territorialidades camponesas, categoria central em nosso
trabalho, e as diversas formas que adquirem no interior da fronteira
capitalista. Como nos esclarece Fernandes (2005),

[...] O enfrentamento é um momento do conflito.


Para compreendê-lo em seu movimento
utilizamos o conceito de conflitualidade. A
conflitualidade é um processo constante
alimentado pelas contradições e desigualdades do
capitalismo. O movimento da conflitualidade é
paradoxal ao promover, concomitantemente, a
territorialização – desterritorialização –
reterritorialização de diferentes relações sociais. A
realização desses processos geográficos gerados
pelo conflito é mais bem compreendida quando
analisada nas suas temporalidades e
espacialidades. São processos de
desenvolvimento territorial rural, formadores de
diferentes organizações sociais. (FERNANDES,
2005, p. 02)

A contribuição de Fernandes é fundamental porque nos fornece


a ponte necessária entre a situação de conflito social, inerente às sociedades
de fronteira e a territorialização do campesinato na fricção com as frentes
dos grandes projetos ligados ao grande capital na Amazônia paraense.
Outro entendimento importante para se destacar é o elemento terra
como estruturador dessa territorialização. Um elemento que perpassa e
dá unidade a todas as relações, levando em consideração não só o
elemento econômico mas todas as demais dimensões do território,
inclusive a lógica do rural e o urbano no interior da fronteira, como
Roberto Alentejano (2000) pontua

[...] independente das atividades desenvolvidas,


sejam elas industriais, agrícolas, artesanais ou de
serviços, das relações de trabalho existentes,
sejam assalariadas, pré-capitalistas ou familiares e
do maior ou menor desenvolvimento
tecnológico, temos a terra como elemento que

125
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

perpassa e dá unidade a todas estas relações,


muito diferente do que acontece nas cidades,
onde a importância econômica, social e espacial
desta é muito mais reduzida. Com isso queremos
dizer que cada realidade rural ou urbana deve ser
entendida em sua particularidade, mas também
no que tem de geral, sua territorialidade mais ou
menos intensa. É esta intensidade da
territorialidade que distingue, em nossa opinião, o
rural do urbano, podendo-se afirmar que o
urbano representa relações mais globais, mais
descoladas do território, enquanto o rural reflete
uma maior territorialidade, uma vinculação local
mais intensa. (ALENTEJANO, 2000, p. 106)

Conclusões – Os Assentamentos Rurais como uma encruzilhada


territorial

Os assentamentos como uma encruzilhada social conformando


diferentes territorialidades em seu interior é o reflexo de um assentado
que apresenta trajetórias individuais e coletivas intensas. Que são ao
mesmo tempo distintas e semelhantes. Distintas porque cada indivíduo
e família são um universo de relações tanto materiais como simbólicas
apresentando diferente saberes, origens e ocupações. Ao mesmo
tempo, apresentam certa unidade em suas trajetórias porque esses
indivíduos e suas famílias passaram por um esgotamento das suas
capacidades reprodutivas, tanto matérias e simbólicas, e seguiram a
“corrente” da emigração em direção a Amazônia, compondo a face
demográfica da fronteira.
No contexto da fronteira, essas famílias são migrantes não
apenas em sua geração, mas trás consigo em sua “bagagem”, como uma
espécie de herança, o componente atávico deste fenômeno. Desde os
avós, passando por seus pais até chegar sua geração. Neste sentido, as
redes de parentesco, as redes de comunicação são indicadores
importantes para a compressão das territorialidades desses assentados.
Moreira & Medeiros (2013) em pesquisa sobre território e
territorialidades e sua relação com movimento social caminham neste
sentido

126
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

O assentamento é expressão desta


reterritorialização, construção do novo território,
território este conquistado na luta. É uma nova
coletividade marcada pela confluência de
trajetórias individuais que, quando se
manifestaram, apesar da sua diversidade, no
momento da luta eram vistos como unos em
razão de sua identidade de “sem-terra”. A
conquista da terra inaugura um novo tempo, em
que a condição de assentado traz à tona
expectativas individuais no tocante a viver e
produzir na terra. (MOREIRA & MEDEIROS,
2013, p. 263)

É nessa “condição de assentado” que inaugura um “novo


tempo” recheado de “expectativas individuais e coletivas” que reside
nossa preocupação de pesquisa. Sua condição de assentado na fronteira
do capital, na relação direta e indireta com seus agentes, não garante sua
reprodução, portanto, sua territorialização. Isso por vários motivos.
Listaremos, para começar, quatro deles: a) de ordem demográfica e
fundiária; b) outro relacionado a extração mineral e atividades
econômicas no assentamento; c) elemento envolvendo as grandes obras
de infra-estrutura como a UHE de Belo Monte.
a) Os assentamentos são feitos para dar uma resposta imediata a
pressão do movimento dos camponeses por terra. Os lotes distribuídos
estão aquém da possibilidade de reprodução da unidade de familiar. A
composição das famílias no campo é numerosa (em média cinco filhos
por unidade). Os lotes agrícolas são, geralmente, de cinco hectares (no
caso sudeste do Pará). O balanço dessa equação se torna insustentável.
Os assentamentos são feitos, portanto, para dar resposta a uma geração
de pessoas. Um horizonte de longo prazo através da preocupação com
a reprodução de outras gerações da família é esquecido. O resultado
desse processo é o deslocamento (migração forçada) dos filhos para
outras frentes de luta pela terra e a abertura de novas fronteiras para a
mobilidade do capital.
b) Outro componente presente na questão agrária na Amazônia
é a mineração. Territórios camponeses localizados nas áreas de impacto
dos Grandes Projetos Mineradores e no entorno das cidades que
servem como base de apoio logístico a este tipo de extração sofre com
a degradação sócio-ambiental. É o caso dos camponeses no entorno da
127
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Serra de Carajás. A principal cidade desta região é Parauapebas - Pará.


Sua dinâmica intensa de crescimento (em média 50 famílias chegam por
semana no município) requer quantidades significativas de areia e seixo
para alimentar o crescimento da malha urbana da cidade. Os territórios
camponeses são, portanto, o alvo preferencial do comércio regional de
materiais de construção. Como o leito dos rios é o espaço de retirada
desse material, o rio e sua biodiversidade são os principais atingidos.
Sem falar do processo de dependência e de especialização colocados
para as camponesas e camponeses por esse tipo de atividade.
c) No caso do Projeto de Desenvolvimento Sustentável – PDS
Esperança em Anapu – Pará um dos componentes que vem ameaçando
a fixação das famílias e seu processo de reprodução no assentamento é
a compra de lotes. Tanto no interior como no seu entorno. Isso em
virtude das desapropriações feitas na área da construção da Hidrelétrica
de Belo Monte. Os agricultores que foram desapropriados mediante
indenização estão se convertendo em verdadeiro vetor migratório em
direção ao PDS. Acabam comprando lotes no assentamento com a
verba indenizatória conseguida pelo Consórcio Construtor de Belo
Monte – CCBM.

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130
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

131
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Quilombo de Narcisa: Territorialidade, limites de


respeito e narrativas de expropriação

Petrônio Medeiros15

Introdução: territórios e territorialidades

Conforme sugeriu Paul E. Little16 (2002), trabalhar uma


antropologia das territorialidades parece um caminho bastante frutífero
para que se possa compreender melhor a realidade social e fundiária
brasileira. A investigação sobre os confrontos entre movimentos
sociais, Estado e elites ligadas ao latifúndio ganham novos contornos
quando se coloca em foco a perspectiva territorial dos grupos sociais.
A categoria território historicamente construída possui uma
ligação profunda com a idéia de Estado Nacional, com a idéia de que à
cada nação corresponde um território - o território nacional - cujo
domínio, controle e gestão cabe, sobretudo, ao Governo, não obstante
esta profunda associação, o Estado Nacional Brasileiro, desde seu
surgimento, vem sendo histórica e recorrentemente confrontado por
outras territorialidades de diversos grupos sociais os quais se
contrapunham (se contrapõem) às normatizações e controle Estatais
que representavam (representam) projetos das Elites agrárias e urbanas
do país associadas ao capital internacional.
As territorialidades de grupos sociais que durante muito tempo
na história brasileira foram invisibilizadas pelo Estado - também no
sentido de que não encontravam nos dispositivos do código jurídico
nacional o reconhecimento de sua existência - vieram a tona como um
poderoso elemento transformador da dinâmica fundiária (se não
concretamente ainda17, mas ao menos como potencialidade) com o

15
Mestre em antropologia pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais
da Universidade Federal do Pará. E-mail: petronio.mlf@gmail.com
16
LITLE. Paul E. “Territórios Sociais e Povos Tradicionais: Por uma
antropologia da territorialidade”. Brasília, 2002.
17
Considerando a imensa demanda, foram ínfimas a quantidade de titulações de
territórios quilombolas já realizadas no Brasil. Segundo a Comissão Pró-Índio
de São Paulo que faz o acompanhamento das titulações de territórios
quilombolas em todo o Brasil: “Atualmente, apenas 216 comunidades
quilombolas contam com título de propriedade de seu território. Esse número
132
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

advento da Constituição Federal Brasileira de 1988. Esta constituição é


sem dúvida um marco histórico, construída num contexto de
redemocratização do país quando varias forças sociais, há décadas
reprimidas, se organizaram para participar da construção da carta
magna brasileira.
É evidente que precisamos relativizar o alcance deste
documento, porém a participação decisiva de vários movimentos
sociais organizados propiciou a inclusão de dispositivos constitucionais
que passaram, pela primeira vez na história do Brasil, a reconhecer
além da terra pública e da terra privada também o território, seja no
modelo de titulação de território quilombola, seja no modelo de criação
de reservas extrativistas.
Se é verdade que estes dispositivos jurídicos não justificam ou
explicam por si só o surgimento e desenvolvimento de vários
movimentos sociais, significaram, porém, uma abertura no campo da
lei, e, portanto, no campo da legalidade, para o reconhecimento de
territorialidades sociais, outrora invisibilizadas, e do reconhecimento da
intercessão destes territórios com propriedades privadas.
Se o Estado Brasileiro (implementando os projetos das elites
que o controlam) foi historicamente confrontado por estas
territorialidades sociais sem reconhecê-las, a partir de 1988 manter
estas territorialidades invisibilizadas passou a ser bem mais complicado.
Não foi por acaso que surgiram várias campanhas midiáticas no
sentido de desqualificar o trabalho do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária – INCRA – órgão federal responsável
pela regularização e titulação de territórios quilombolas localizados em
áreas da união, só para citar um exemplo, como se estivessem
“inventando quilombos”. Não é por acaso também que o partido
Democrata deu entrada no Supremo Tribunal Federal em uma ação
direta de inconstitucionalidade contra o decreto 4.887 de 20 de
novembro de 2003. Este decreto definiu que as terras a serem
reconhecidas e tituladas em nome das associações quilombolas são “as
necessárias para garantir a reprodução física, social e cultural das
comunidades” e não apenas o lugar de moradia ou os espaços
reduzidos que restaram após mais de um século de processos de
expropriação.

representa 7% da totalidade estimada de 3.000 comunidades no Brasil”


(colhido do site: cpisp.org.br).
133
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Nesse contexto, mas enfocando em particular o contexto


histórico da Amazônia, o estudo sobre o quilombo de Narcisa, seus
processos de territorialização, de construção de limites de respeito que
perduram por gerações e as narrativas de expropriação dos que hoje
vivem em Narcisa e lutam pelo reconhecimento do território, nos
permitem compreender mais profundamente - mais de perto - a partir
da trajetória concreta de uma comunidade, os confrontos, situações e
processos que marcaram a construção dessas territorialidades sociais e
as relações e embates com o Estado, com as elites agrárias e com
outras territorialidades.
Assim, este artigo se insere no esforço de renovação da teoria da
territorialidade na antropologia, neste sentido, concordo com a
definição de território feita por Paul E. Little (2002), bem como com a
necessidade de investigar o território e a territorialidade a partir de uma
abordagem histórica e etnográfica, segundo este autor:

A renovação da teoria de territorialidade na


antropologia tem como ponto de partida uma
abordagem que considera a conduta territorial
como parte integral de todos os grupos humanos.
Defino a territorialidade como o esforço coletivo
de um grupo social para ocupar, usar, controlar e
se identificar com uma parcela específica de seu
ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu
“território” ou homeland18 (cf. Sack 1986, p. 19).
Casimir (1992) mostra como a territorialidade é
uma força latente em qualquer grupo, cuja
manifestação explícita depende de contingências
históricas. O fato de que um território surge
diretamente das condutas de territorialidade de
um grupo social implica que qualquer território é
um produto histórico de processos sociais e
políticos. Para analisar o território de qualquer
grupo, portanto, precisa-se de uma abordagem
histórica que trata do contexto específico em que

18
A palavra inglesa “homeland” tende a ser traduzida como “pátria” em
português. Mas o significado mais comum de pátria faz referência a um
Estado-nação, o que desvia o termo “homeland” de seus outros significados
possíveis referentes às territorialidades de distintos grupos sociais dentro de
um Estado-nação.
134
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

surgiu e dos contextos em que foi defendido


e/ou reafirmado. Outro aspecto fundamental da
territorialidade humana é que ela tem uma
multiplicidade de expressões, o que produz um
leque muito amplo de tipos de territórios, cada
um com suas particularidades socioculturais.
Assim, a análise antropológica da territorialidade
também precisa de abordagens etnográficas para
entender as formas específicas dessa diversidade
de territórios. (LITTLE, 2002, p. 03)

Resistência à escravidão e a construção do território quilombola


de Narcisa

O processo de construção do território da comunidade de


Narcisa se inicia em um contexto histórico no qual o Estado
brasileiro19 dirigido pelas elites agrárias buscava impedir o acesso dos
camponeses à propriedade da terra.
No início do século XIX a Inglaterra já tinha feito a Revolução
Industrial20 e procurava incessantemente mercados consumidores para
a enxurrada de produtos que saiam de suas fábricas. Essa demanda por
mercados fez com que a Inglaterra passasse a atacar frontalmente a
escravidão em todas as partes do mundo, a Inglaterra precisava de
assalariados e não escravos. Na época, o Brasil, país escravista que
possuía uma dívida externa enorme com a Inglaterra, teve que ceder a
esta potência e decretou, em 1850, a proibição do trafico negreiro 21.
Ainda em 1850, com o avanço do processo de transformação da
terra em mercadoria e preocupados com o fim do trafico negreiro e
com a evidente possibilidade da libertação dos escravos, as elites
19
O Império do Brasil foi a maneira como estava organizado o Estado brasileiro
existente entre os anos de 1822 e 1889, que precedeu a atual República
Federativa do Brasil e teve a monarquia parlamentar constitucional como seu
sistema político.
20
A Revolução Industrial consistiu-se de um conjunto de mudanças
tecnológicas com profundo impacto no processo produtivo em nível
econômico e social. Iniciada na Inglaterra em meados do século XVIII se
expandiu pelo mundo a partir do século XIX.
21
Denomina-se Lei Eusébio de Queirós a uma legislação brasileira do Segundo
Reinado, que proibiu o tráfico inter-Atlântico de escravos. Foi aprovada em
quatro de setembro 1850, principalmente devido à pressão da Inglaterra.
135
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

agrárias dirigentes do Brasil organizadas e influenciando o Estado


Imperial Brasileiro decretaram a lei nº 601 de 18 de setembro de 1850,
chamada Lei de Terras.

Esta lei, ao mesmo tempo em que determina o


fim do regime de posses e proíbe a aquisição de
terras por qualquer meio que não seja a compra,
estabelece que os lotes deveriam ser comprados à
vista. Entretanto os preços mínimos
estabelecidos ultrapassavam os preços então
vigentes no país (Carvalho, 1978). Martins (1986)
relata que a Lei de Terras foi criada no mesmo
ano em que se extingue o tráfico negreiro por
pressão da Inglaterra. Prevendo, desta forma, a
abolição da escravatura (que realmente veio a
ocorrer quase 40 anos após a criação desta lei) e o
crescimento do número de posseiros, esta lei
regulamenta, então, a situação das terras no
Brasil, proibindo novas posses. A proibição de
aquisições de terras que não fossem realizadas
através da compra “(...) era dirigida contra os
camponeses da época, aqueles que se
deslocavam para áreas ainda não concedidas
em sesmarias aos fazendeiros e ali abriam
suas posses. Nos anos seguintes, ficará claro o
sentido desta medida. Diante do fim previsível da
escravidão, era previsível também, como aliás já o
menciona a própria Lei de Terras, o advento de
uma modalidade de trabalho livre que permitisse
a substituição do escravo sem destruir a
economia da grande fazenda. (Martins, 1986,
p.41/42)22 (grifo meu). (BENTHIEN, 2007, p.
581)

Assim, a Lei de Terras que entrou em vigor em 1850 pode ser


considerada uma reafirmação do poder do Estado e das elites dirigentes
sobre a terra. Por meio desta lei a elite agrária buscou impedir o acesso
dos camponeses à propriedade da terra e com isso garantir mão de obra
para suas fazendas. Se esta lei já era excludente para os camponeses
22
BENTHIEN, Patrícia Faraco, “Campesinato, Lutas e Certezas”, in Rev. Bras.
Agroecologia, v.2, n.1, fev. 2007.pg 581.
136
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

livres, para os negros escravizados a possibilidade do direito a terra


ficou mais distante ainda.
É nesse contexto que a construção do território de Narcisa é
realizada, a partir da fuga do cativeiro e da formação do quilombo
como nos mostra o estudo realizado por Trindade e Nogueira (2000) 23,
os negros apropriaram-se das terras de Narcisa, e nesta terra fizeram
roças, construíram suas moradas e casas de forno para beneficiamento
da mandioca, resistiram a diversos e contínuos assédios de capitães do
mato, de tropas do governo e a toda série de perseguições
empreendidas com objetivo de destruir o quilombo 24. A fuga para as
matas e o posterior retorno para reconstruir o quilombo era uma das
estratégias de resistência dos negros, que somado ao trabalho na terra, e
a comercialização do excedente dos frutos deste trabalho foram os
fatores determinantes para construção e manutenção do território de
Narcisa.
Dessa maneira, a construção do território da comunidade se deu
a partir da resistência mais radical a escravidão e apresentava-se
totalmente ilegal da perspectiva do Estado, pois contrariava as leis na
época vigentes no Brasil: Narcisa era tanto uma afronta à escravidão,
que vigorou até 1888, quanto à Lei de Terras. O Estado Brasileiro não
reconhecia o território da comunidade tanto porque os negros não
eram considerados cidadãos quanto porque as terras não eram
legalizadas, ou seja, não foram compradas do Estado, e nem poderiam
ser, dada a condição de quilombolas dos negros de Narcisa.
Como já assinalado anteriormente, os habitantes de Narcisa
faziam parte de um campesinato que buscava terras para viver e
trabalhar longe do domínio dos patrões e senhores, entretanto, os
mesmos se diferenciavam de outros camponeses por se constituírem
como um grupo étnico25 com características próprias, com identidade

23
TRINDADE, Joseline Simone Barreto & NOGUEIRA Shirley Maria Silva.
Narcisa: história e memória de uma comunidade negra em Capitão Poço – PA.
CEDENPA, 2000. Neste estudo as autoras mostram a construção do
quilombo de Narcisa, seus primeiros ocupantes, as estratégias de resistência
utilizadas pelos negros para permanecerem na terra.
24
Idem anterior
25
Os grupos étnicos são vistos como uma forma de organização social. Então,
um traço fundamental torna-se [...] a característica da auto-atribuição ou da
atribuição por outros a uma categoria étnica. Uma atribuição categoria é uma
137
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

própria, e porque tinham ainda que lutar contra a escravidão. Os


habitantes de Narcisa são parte do campesinato, porém, se configuram
como um campesinato que possui uma etnicidade 26, construída em
resistência à escravidão. Essa etnicidade se manteve em meio a rupturas
e continuidades mesmo após a abolição da escravidão e permanece viva
até os dias atuais, tendo sido um elemento fundamental na construção
do território da comunidade.
Quando em 1888 foi oficialmente abolida a escravidão no
Brasil27, filhos e netos dos fundadores do quilombo já viviam e
trabalhavam nas terras de Narcisa. Com a abolição, os negros
conquistaram a liberdade, porém, a precária situação jurídica com a
terra permaneceu. Não houve, após a abolição, qualquer legislação na
qual o Estado brasileiro reconhecesse aos negros remanescentes de
quilombos, ou a esse campesinato étnico que resistiu a escravidão, o
direito à terra. Somente em 1988, portanto um século depois, a
Constituição Federal do Brasil no seu artigo 68 ADCT definiu que:
“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas
terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos.”28, ou seja, o Estado demorou 100 anos para reconhecer aos
negros e seus descendentes o direito a terra.
Com a não legalização dessas terras, o Estado abriu espaço para
um longo processo de expropriação sofrido pelos descendentes de
atribuição étnica quando classifica uma pessoa em termos de sua identidade
básica mais geral, presumivelmente determinada por sua origem e seu meio
ambiente. Na medida em que os atores usam identidades étnicas para
categorizar a si mesmos e outros, com objetivos de interação, eles formam
grupos étnicos nesse sentido organizacional (BARTH, 1998, p. 193-194).
26
Há que convir com Barth, que a etnicidade é uma forma de organização social,
baseada na atribuição categorial que classifica as pessoas em função de sua
origem suposta, que se acha validada na interação social pela ativação de signos
culturais socialmente diferenciadores. Esta definição mínima é suficiente para
circunscrever o campo de pesquisa designado pelo conceito de etnicidade:
aquele dos estudos dos processos variáveis e nunca terminados pelos quais os
atores identificam-se e são identificados pelos outros na base de dicotomizações Nós/Eles,
estabelecidas a partir de traços culturais que se supõe derivados de uma origem
comum e realçados nas interações raciais. (Poutignat & Streiff-Fenart,1998, p.141)
27
Lei Áurea (lei Imperial n. 3.353), sancionada em 13 de maio de 1888, foi a lei
que extinguiu a escravidão no Brasil.
28
Constituição Federal de 1988, artigo 68 do ADCT.
138
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

negros escravizados. No decorrer desses 100 anos (1888-1988), muitos


quilombos foram dizimados pela pressão e violência do sistema
capitalista; muitos quilombolas tiveram que deixar suas terras e
migraram em busca de melhores condições de vida, territórios de
comunidades diminuíram, enfim, nestes 100 anos muitas terras de
diversos quilombos foram expropriadas de diversas maneiras, por
grandes fazendeiros, grandes latifundiários e também pelo próprio
poder público. É nesse espaço de tempo que situamos os processos de
expropriação de terra sofridos pela comunidade de Narcisa.

A histórica construção dos “limites de respeito” e fronteiras


étnicas

Nas décadas que se seguiram a abolição da escravidão (1888), a


região onde se localiza a comunidade quilombola de Narcisa 29, assim
como outras regiões da Amazônia, recebeu milhares de migrantes. Em
uma análise inicial é possível supor que a chegada dessas muitas
famílias levaria a um aumento na pressão sobre as terras, e estaria na
gênese dos processos de expropriação sofridos pela comunidade, ou
seja, somado a insegurança jurídica que a comunidade tinha em relação
à terra (ausência de demarcações e documentos de propriedade), o
aumento populacional causado pela migração para a região, exerceria
uma pressão nas fronteiras de Narcisa gerando conflitos e
provavelmente as primeiras expropriações no território da
comunidade. Entretanto, a experiência de Narcisa, cujo trabalho
etnográfico realizado nesta comunidade ajudou a esclarecer, aponta em
outra direção.
Mesmo antes da abolição da escravidão, assolados pelas secas,
em especial pela rigorosa seca de 1877, e ainda estimulados pelo
aumento internacional da demanda pela produção da borracha,
milhares de migrantes, principalmente nordestinos, começaram a
chegar à região Amazônica. Essa migração só fez aumentar até o início
do século XX, período marcado pelo apogeu e início da decadência do
sistema extrativista-exportador da produção de borracha.

29
A área da comunidade quilombola de Narcisa estava ligada ao município de
Ourém. A lei N° 2.460 de 29 de dezembro de 1961 criou o município de
Capitão Poço, na re-divisão territorial o território de Narcisa passou a fazer
parte deste município.
139
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

A persistência tanto da seca quanto do latifúndio no nordeste do


país continuaram contribuindo para o aumento das migrações para a
Amazônia. Esses milhares de migrantes que vieram de forma
espontânea ou de forma dirigida pelo governo passaram a trabalhar, em
sua maioria, na produção da borracha ou na agricultura, já que o desvio
de braços para a produção da borracha criou um passivo muito grande
com relação ao abastecimento de gêneros alimentícios, produção de
comida, principalmente para a cidade de Belém, principal entreposto de
exportação da borracha, por isso, milhares de migrantes se
estabeleceram ao longo da estrada Belém-Bragança 30.
Estudos de Regina Vânia Vieira de Carvalho 31 apontam que as
ocupações mais antigas de Capitão Poço são de famílias oriundas de
Ourém, Bragança, Viseu e Capanema, ou seja, vieram de regiões
circunvizinhas. Segundo esta autora:

Inicia-se, em meados da década de 40, a


ocupação de parte do município (de Capitão
Poço) por nordestinos. Eles se assentaram mais
ao sul dos paraenses e fundaram a vila de Capitão
Poço. Lá encontraram descendentes de famílias
nordestinas que moravam no Pará desde o início
do século (...). A trajetória de migração de
nordestinos para Capitão Poço foi bem mais
diversificada do que a dos paraenses. Uma parte
migrou diretamente do Ceará para Capitão Poço
e outra parte passou por outros estados da
Amazônia e vários municípios do Pará.
(CARVALHO, 1998, p. 30)

30
“A antiga Estrada de Ferro de Bragança, linha que unificou todo o nordeste
paraense entre 1908 e 1964 e que foi a grande responsável, junto das colônias
agrícolas fundadas nesta área do estado, desde a década de 1870. (...) Sua
existência permitiu o escoamento da produção de várias colônias agrícolas que
se situavam ao longo de todo nordeste do estado, entre a capital, Belém, e seu
ponto final, a cidade de Bragança. Entre elas nasceram, todo um conjunto de
municípios que hoje existem nessa área do Pará: Igarapé-açu, Benevides,
Castanhal, Tracuateua, Capanema, Paixe-Boi, Mirasselvas”.
(ofimdahistoria.freehostia.com)
31
De Carvalho, Regina Vânia Vieira, “Dinâmica inovativa entre camponeses do
nordeste do Pará”. Paper do NAEA 88. Maio de 1988.
140
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Como se pode notar, nas décadas após a abolição da escravidão,


os moradores de Narcisa não ficaram sozinhos, os migrantes chegaram
e passaram a viver na região. Entretanto, durante as pesquisas de
campo os relatos da comunidade sobre processos de expropriação das
terras de Narcisa se referem à década de 1970. Não existiram relatos de
expropriação antes desta década. Essa ausência de relatos sobre
expropriação antes desse período contraria a suposição inicial de que a
chegada de novas famílias na área, que antes era habitada apenas por
membros da comunidade, resultaria em conflitos por terra e redução
do território da comunidade, e suscita uma questão: o que poderia
explicar o fato do território de Narcisa ter se mantido, mesmo com
todas essas migrações para a região?

Mapa nº 01: Mapa do Estado do Pará, com a localização do


Município de Capitão Poço e da comunidade de Narcisa

Um fato importante a considerar é que Narcisa, por ter surgido a


partir da formação de um quilombo, fora cuidadosamente construído
em um lugar de difícil acesso com intuito de manter afastadas as forças
141
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

do governo. Mas este fato por si só não explica a manutenção do


território da comunidade. O mapa nº 1 mostra que o território de
Narcisa não está tão longe da sede do município de Capitão Poço,
portanto, a comunidade não estava isolada geograficamente. As
transformações causadas pela migração e pela fundação do município
de Capitão Poço afetaram a comunidade. Porém o que a história da
comunidade indica é que a migração, a chegada de novas famílias não
significou necessariamente a geração de conflitos e expropriação de
terras. Os estudos sobre Narcisa apontam que o fator determinante
para a garantia do território da comunidade foi o processo de
construção de limites de respeito estabelecidos entre a comunidade
quilombola e os novos vizinhos, ou seja, mesmo distante do Estado (e
de suas demarcações de terra) as famílias migrantes e os quilombolas
souberam construir limites de terra que eram respeitados pelos antigos
e novos moradores.
É evidente que a construção desses limites de respeito
aconteceram por meio de negociações, por vezes tensas, e é provável
que algumas partes do território inicial da comunidade tenham sido
delimitadas novamente nas negociações com os novos vizinhos, mas o
fato interessante é que, na memória coletiva da comunidade, não ficou
marcada nenhuma referência à expropriação de terras nesse período. As
referências a expropriações de terras da comunidade estão associadas
aos anos posteriores, a partir da década de 1970, quando o Brasil foi
governado pelos militares, os quais no seu projeto de integração da
Amazônia, iniciaram intervenção sistematizada na região.
Paradoxalmente, os relatos de expropriação de terras da comunidade,
estão associados não aos momentos de ausência do Estado na região,
mas sim, ao momento de maior presença.
Durante os trabalhos de campo empreendidos pela equipe
interdisciplinar do Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas
INCRA SR01 objetivando a construção do RTID 32, ficou evidente a
importância que esses limites de respeito, construídos pelos “antigos”,
representam até hoje para a comunidade quilombola. Em reunião do
dia 12 de dezembro de 2009, a equipe técnica do INCRA, a qual eu

32
RTID – Relatório Técnico de Identificação e Delimitação é o instrumento que
o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA utiliza para
delimitar a área a ser titulada em nome das comunidades autodefinidas
quilombolas.
142
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

fazia parte, apresentou a planta oriunda do levantamento inicial do


perímetro do território da comunidade, na ocasião os remanescentes de
quilombo de Narcisa identificaram que a linha norte do território estava
entrando nas terras de um vizinho. Ao identificar esse fato, a
comunidade foi incisiva na solicitação para que a equipe do INCRA
refizesse aquela linha, o que foi atendido. No entanto, chamou atenção
dos pesquisadores a veemência com que a comunidade se posicionou
para que a linha fosse refeita. Quem seria aquele vizinho? Seria algum
grande fazendeiro com grande poder político e econômico com o qual
a comunidade não quisesse entrar em conflito?
No decorrer da pesquisa identificamos que esses vizinhos são
filhos e netos de um pequeno agricultor chamado Alcindino Farias que
chegou com sua família na região segundo a narrativa dos nativos: “no
tempo dos pais de Macedônio Lucas”33, entre as décadas de 1930-1940.
Um fato importante é que o senhor Alcindino e sua família, assim
como outras famílias que chegaram, não foram incorporadas ao
quilombo, mas se tornaram vizinhos da comunidade e construíram a
partir das negociações com os quilombolas, os limites onde terminava o
território de Narcisa e iniciava a área deles.
A história da construção do limite de respeito entre a
comunidade quilombola de Narcisa e esse vizinho e, sobretudo, o
respeito a esses limites manifestados pela atual geração de quilombolas,
ou seja, pelos netos dos que definiram esses limites, mostram a
relevância que essas fronteiras construídas no passado, com base nas
relações travadas diretamente entre as famílias e o quilombo, possuem
ainda hoje na conformação do território reivindicado por essa
comunidade. Mesmo tendo sido preteridos durante décadas com
relação aos seus direitos territoriais e neste momento em que o Estado,
por meio do INCRA, passou, após a inclusão do artigo 68 no
ADCT/CF 1988, a regularizar o território quilombola, a comunidade
reafirma os limites de respeito constituídos há muito tempo no passado.

33
Macedônio Lucas é uma figura lendária na comunidade, foi o líder de Narcisa
durante muito tempo, segundo contaram os comunitários ele teria sido o único
a permanecer na vila de Narcisa durante os anos que as famílias se mudaram
para as extremidades do território da comunidade, Macedônio ficou sozinho,
manteve o que restou da comunidade e recebeu as famílias de volta quando
retornaram para a antiga vila.
143
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Mapa nº 02: Planta da Identificação do Território de Narcisa:


área de 618,9320ha; perímetro de 2.610,13m

No mapa 2, apresento a planta, com a área e o perímetro, do


território reivindicado pela comunidade e identificado no RTID, para
ser regularizado e titulado em nome da Associação da Comunidade
Remanescente de Quilombola de Narcisa. É sobre este território que
incidiram os processos de expropriação de terras os quais apresento a
seguir.

O Estado e a expropriação das terras de Narcisa

A história do processo de expropriação das terras de Narcisa


está associada ao projeto de “desenvolvimento” da Amazônia,
implementado pelos governos militares a partir de 1964. Esse projeto
de desenvolvimento partia da idéia de que a Amazônia era um vazio
demográfico e que deveria ser ocupada.

Terras sem homens para homens sem terra, com


este discurso o presidente Emílio Médici
prometeu resolver o problema do Nordeste,
144
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

oferecendo terras amazônicas. Estabeleceu então


o PIN (Plano de Integração Nacional) segundo o
qual deveriam ser reservados 100 km de cada
lado da estrada para o assentamento prioritário
de nordestinos. Ao mesmo tempo, a Sudam
começou a aprovar grandes projetos
agropecuários e o INCRA (Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária) aumentou o
índice de distribuição de terras para os
fazendeiros. Isso fez com que a taxa de
desmatamento subisse assustadoramente. Apesar
dos amplos financiamentos concedidos, na época
– que abrangiam a mineração na serra dos
Carajás, a construção de hidrelétricas, a
implantação do pólo tecnológico e industrial da
Zona Franca de Manaus e a construção de
rodovias – o resultado mais evidente da nova
política desenvolvimentista não foi a
prosperidade econômica da Amazônia, mas a
degradação e o acirramento das relações sociais
em toda a região.34

O cartaz (imagem 1) do Ministério do Interior publicado no


final de 1970 oferecendo apoio do governo federal para projetos
econômicos na Amazônia evidencia o tipo de “integração” que os
governos militares incentivaram nesta região. No cartaz apresentado
abaixo pode-se ler:

“chega de lendas vamos faturar”. “muitas pessoas


hoje estão sendo capazes de tirar proveito das
riquezas da Amazônia. Com o aplauso e
incentivo da SUDAM. Com o aplauso e incentivo
do Banco da Amazônia. O Brasil está investindo
na Amazônia e oferecendo lucros para quem
quiser participar desse empreendimento. A
transamazônica está aí, a pista da mina de ouro.
Comece agora faça sua opção pela SUDAM,
aplique a dedução de seu imposto de renda em
34
Ver: http://www.tomdaamazonia.org.br/biblioteca/files/Cad.Prof-4-
Historia.pdf (história da ocupação da Amazônia)

145
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

um dos 464 projetos econômicos já aprovados


pela SUDAM. Ou então apresente seu próprio
projeto (seja ele industrial, agropecuário ou de
serviço) você terá todo apoio do governo federal
e dos governos dos Estados que compõem a
Amazônia. Há um tesouro a sua espera.
Aproveite, fature enriqueça. Informe-se nos
escritórios da SUDAM ou nas agencias do Banco
da Amazônia. (Cartaz, SUDAM, 1970)

Imagem nº 01: Cartaz da Campanha de 1970 da SUDAM para


exploração da Amazônia. Propaganda do Ministério do Interior relativa
ao projeto de desenvolvimento econômico da região amazônica

Objetivando reduzir os conflitos por terra no nordeste do Brasil,


os governos militares estimularam a migração em massa de nordestinos
para a Amazônia, que vieram com a promessa do governo de que

146
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

teriam um “pedaço de chão”. A fundação da vila de Capitão Poço se


insere nesse contexto. A origem desta vila que depois se transformou
em município, está ligada às chamadas frentes de expansão pioneiras.
José de Sousa Martins traduz o que a comunidade quilombola de
Narcisa e muitas outras populações tradicionais viveram em relação ao
projeto de desenvolvimento da ditadura, segundo Martins(2000) a
fronteira:

É o território do novo e o lugar em que os


civilizados domesticam os bárbaros. Na verdade
a fronteira tem sido entre nós o lugar em que o
capital revela a barbárie, a sua ação corrosiva
sobre os povos tribais, populações enraizadas,
culturas refinadas e antigas e população não-
indígenas, ambientes e patrimônios naturais 35
(MARTINS, 2000, p. 99)

O “desenvolvimento” imposto pelo regime militar não


reconheceu a presença e a territorialidade das populações que
tradicionalmente ocupavam a Amazônia. Essas populações foram
invisibilizadas pelo Estado, e muito embora tenha garantido ainda de
forma subalterna um lugar para os índios no projeto do governo, o
mesmo não ocorreu com outras populações tradicionais, como os
quilombolas de Narcisa. Podemos conhecer um pouco do que na
pratica significou para a população de Narcisa esse projeto de
desenvolvimento dos militares, através das narrativas dos moradores
desse quilombo, que recorrentemente enfatizaram sobre o território
reivindicado: “o que agente quer é retornar36 a área que era (da
comunidade)”37. Essa referência marcante no discurso dos moradores
está diretamente relacionada ao processo de expropriação de terra, no
sentido de evidenciar que a comunidade busca, no processo de

35
MARTINS, José de Souza. Onde o arcaico e moderno se combinam. Diário
do Pará. Belém. 04/06/2000.
36
Em certo momento na entrevista quando nos referimos às áreas reivindicadas
pelos comunitários utilizando o termo “retomar as terras”, fomos prontamente
corrigidos pelos mesmos que ressaltaram: “retomar não, retornar as áreas para
a comunidade”.
37
Entrevista com remanescentes de quilombos de Narcisa, dia 10/03/2010.
147
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

regularização atual, recuperar as terras que antes faziam parte do


território de Narcisa.
Esse discurso, que aponta a comunidade como legítima
proprietária da terra e que busca agora por meio do processo de
regularização fundiária quilombola retornar áreas que foram subtraídas,
se relaciona de maneira profunda com o trauma vivido pela
comunidade e que foi resultante desses processos de expropriação: das
23 (vinte três) famílias que viviam em Narcisa no início da década de
1970, restam hoje apenas 07(sete). Nas narrativas das famílias, o
retorno das áreas expropriadas é aguardado ansiosamente, assim como
a regularização fundiária do território, como condição que propiciará o
retorno dos parentes e das famílias quilombolas para a comunidade.
Essa esperança da comunidade acerca do retorno dos parentes é
reforçada pela experiência vivida pelos índios Tembés com os quais os
quilombolas de Narcisa convivem e constroem há décadas, relações
amistosas38. Quando a FUNAI regularizou as terras desses índios, os
parentes que haviam saído da aldeia há muito tempo, foram chamados
de volta e retornaram, inclusive duas índias que haviam casado com
homens de Narcisa e estavam morando na comunidade quilombola.
Com a terra e a segurança jurídica que a regularização propiciou, os
casais preferiram a aldeia ao quilombo. Na fala dos moradores de
Narcisa sobressai a esperança de que com o retorno das terras para a
comunidade através da titulação coletiva do território, os parentes e
famílias que migraram para outras regiões e municípios do estado,
retornarão para a mesma, a exemplo do que aconteceu com os Tembés.
Transcrevi trechos da entrevista realizada com os moradores de
Narcisa, entre os quais esteve presente Domingos Lucas dos Santos,
uma das lideranças da comunidade à época, também presidente da
associação quilombola. No relato abaixo podemos perceber como a
idéia de fronteira tão bem descrita por Martins se materializou
concretamente na história de Narcisa.
Pesquisador (P): Quando começaram a vir essas ocupações de
fora? Como é que a área começou a ser reduzida, o começo disso
quando foi?

38
Na Festa da padroeira da comunidade quilombola de Narcisa, Nossa Senhora
do Livramento, realizada no mês de setembro, os vizinhos Tembés são sempre
chamados e tradicionalmente participam.
148
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Domingos Lucas dos Santos(D): Essa área aí foi... de 1970 pra


cá. Nessa época aí esse professor ele comprou uma terra aí embaixo,
onde tem aquela fazendazinha. Aí quando foi na hora do corte da terra
ele meteu aqui (diz riscando o chão) e tirou logo comendo essa área
aqui de Narcisa, sem nós saber, sem o velho (Macedônio Lucas dos
Santos) tá sabendo, o velho que tomava de conta. Então o prefeito de
Capitão Poço Apolônio (Manoel Apolônio) pegou um bocado de...
Cearense e botou aqui nessa cabeça de área, quando nós soubemos o
pessoal já tava aí dentro, tinha um caso de 10 (famílias).
P: Quando foi isso?
D: Isso foi... 1978, 1977... Foi uma base de 1978, foi em 1978
mais ou menos.
P: O senhor tinha quantos anos quando isso começou?
D: Em 1978 eu tava com 13
P: Era menino ainda.
D: Era menino, mas já era entendido. Me lembro de muita coisa
antiga ainda.
P: Esse momento foi o primeiro momento em que a área de
vocês começou a ser reduzida?
D: Foi. Aí eles pegaram logo essa cabeça aí... nos fundos. Aí foi
o prefeito que tinha botado eles praí... aí sabe como é... o pessoal aqui
isolado, com medo, e não tinha como, que era brigar com o prefeito né,
que era o prefeito que tinha botado, num tinha como.39

A entrevista evidencia o impacto negativo causado pelas


chamadas frentes de expansão estimuladas e atualizadas pelos governos
militares, sobretudo, a partir da década de 1970. Segundo Domingos
Lucas dos Santos, áreas utilizadas há décadas pela comunidade, foram
invadidas por colonos vindos do Ceará com apoio do poder público
local. O quilombola cita o prefeito Manoel Apolônio que de fato foi o
terceiro prefeito a governar o município de Capitão Poço e, conforme o
relato, prestou apoio à entrada e fixação de colonos nas terras que
desde o século XIX eram ocupadas e utilizadas pela comunidade. A
afirmação de que as comunidades tradicionais eram “invisíveis” para o
projeto de desenvolvimento dos militares está cabalmente demonstrada
neste acontecimento.

39
Entrevista realizada em 10 de março de 2010 na comunidade de Narcisa.
149
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Essa forma de expropriação apoiada pelo poder público


corresponde, como veremos adiante, a maior parte das terras subtraídas
de Narcisa (quase 50% do território pleiteado pela comunidade). Sem
nenhuma segurança jurídica com relação à terra e confrontados por
colonos que desfrutavam do apoio do poder público, as terras da
comunidade foram drasticamente reduzidas e até hoje se encontram
nesse estado. Domingos, com 13 anos na época desta expropriação,
explica a situação que a comunidade viveu: “... o pessoal aqui isolado,
com medo, e não tinha como que era brigar com o prefeito né, que era
o prefeito que tinha botado, num tinha como”. De fato, na época não
existia para os moradores de Narcisa instrumentos jurídicos que lhes
reconhecessem o direito à terra ancestralmente ocupada. Assim, esta
comunidade, tal como a centenas de outras tiveram suas terras
expropriadas e somente no ano de 1988, seus direitos territoriais foram
reconhecidos pelo Estado Brasileiro40.
Como sabemos, o regime jurídico da chamada questão
quilombola surge e tem disciplina direta no artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias41 e tem seu reflexo nos art.
215 e 216 do texto principal da Constituição 42 a partir da qual os
diferentes grupos sociais formadores da sociedade passaram a lutar
pelos seus direitos garantidos na Constituição, e especificamente
àqueles relacionados ao direito à terra.
Entre os colonos que segundo as narrativas locais teriam
invadido as terras de Narcisa com apoio do poder público, Domingos
relata a presença de Luiz Marques da Silva conhecido como “Luiz da
Mata”, assim denominado segundo ele, por ter este colono desmatado
toda a área que recebeu do poder público. Essa atitude de desmatar a
área, longe de ser um ato isolado de “Luiz da Mata”, era comum entre
os colonos que chegavam, pois o desmatamento do lote na concepção
40
Art. 68 ADCT da Constituição Federal Brasileira
41
Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o estado
emitir-lhes os títulos respectivos”.
42
“Art. 215, § 1º, O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,
indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional” e “Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os
bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória da
sociedade brasileira”
150
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

de desenvolvimento dos militares significava que o colono estava


“beneficiando” a sua terra. A ação de desmatamento realizada pelos
colonos era parte de uma orientação de desenvolvimento estimulada e
cobrada pelos governos militares segundo a qual a floresta deveria dar
lugar a agricultura e a pecuária.

A ocupação ocorrida no período militar teve


características distintas das anteriores. Antes, os
colonizadores buscavam a região para explorar as
riquezas da floresta, e agora querem a terra para
expandir a agricultura e a pecuária. O modelo de
latifúndio dos seringais, até então dominante na
Amazônia, propiciava a permanência dos
trabalhadores na floresta. O novo latifúndio, a
fazenda para criação de gado, promovia a
chamada “limpeza do terreno”, ou seja, a retirada
da floresta e do povo que lá vivia.
Repentinamente, índios, seringueiros, ribeirinhos
viram suas terras invadidas e devastadas em
nome de um novo tipo de progresso que
transformava a floresta em terra arrasada.43

Enquanto os colonos que chegavam eram considerados pelo


Estado como sujeitos do desenvolvimento da Amazônia, as populações
tradicionais locais (não indígenas), com suas práticas integradas aos
ambientes e menos destrutivas a natureza eram encarados como
agentes do “atraso”, representantes do tradicional, e como nos mostrou
o cartaz (imagem 1) do Ministério do Interior, o tradicional para o
projeto de desenvolvimento da ditadura era algo que deveria acabar,
pois em oposição à idéia de desenvolvimento presente nos discursos
militares, tradicional significava atraso para a região. O modo de vida
das populações tradicionais contrariava as concepções de
desenvolvimento dos governos militares, não havia, portanto, lugar
para essas populações no projeto de integração da Amazônia. Daí
porque as famílias de comunidades como Narcisa, ficaram excluídas e,
mais que isso, tiveram as suas terras expropriadas.

43
www.todaamazônia.org.br/biblioteca/files/cad.prof-4-história.pdf (história
da ocupação da Amazônia)
151
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Assim, as terras da comunidade que há várias gerações eram


utilizadas como áreas de roça pelos moradores, foram expropriadas
pelos colonos com apoio do Estado, e a Luiz Marques da Silva (Luiz da
Mata) sucederam, Osmarino (Meireles da Silva) e outros colonos que
também se apropriaram de terras de Narcisa. Sem documentos de
propriedade e marginalizados pelo projeto de desenvolvimento dos
militares, não restaram, naquele momento, muitas alternativas aos
quilombolas.
Na década de 1980, os moradores de Narcisa tiveram que assistir
as terras, que foram expropriadas do seu território, serem legalizadas,
pois o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA,
autarquia do governo federal, iniciou os trabalhos de regularização
fundiária na região44. O Instituto regularizou as áreas que os colonos,
com aval do poder público, tinham expropriado dos quilombolas de
Narcisa. Podemos verificar no Quadro I que os colonos citados pela
comunidade aparecem como proprietários de lotes regularizados pelo
INCRA, e como podemos verificar no mapa 3, a área expropriada de
Narcisa e regularizada em lotes pelo INCRA, corresponde a quase
metade do território reivindicado pela comunidade.

Quadro nº01: Áreas regularizadas pelo INCRA na Gleba Capitão


Poço a partir do ano de 1979

Lote nº: Beneficiário Área Processo INCRA nº

44
Segundo Cícero Custódio de Araújo, Técnico Agrícola, servidor do
INCRA/SR-01/Unidade Avançada – U. A. de Capitão Poço, a gleba Capitão
Poço, onde situa-se o Território, que fica à margem esquerda do rio Guamá, é
uma área discriminada pelo INCRA, arrecadada e matriculada em nome da
União; os trabalhos de discriminação iniciaram em 1979 com a constituição da
Comissão Especial – CE/PA-15; a partir do ano de 2.000 o memorial da
Gleba foi dividido em 2, Capitão Poço 1 e 2, sendo que no memorial Capitão
Poço 1 está inserida a comunidade Narcisa.
152
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

total
281-A Luiz Marques da Silva 34,9420 3496/79, 1.094/83 e
069/96
206- A Osmarino Meireles da 24,9345 1092/83-Expedido
Silva TD/Nº 1228
230-A Francisco Carmo dos 23,7570 1097/83-Expedido
Santos TD/Nº 1227
230 José Meireles da Silva 23,7410 3.376/78- Expedido
TD/Nº 1770
230-B Alberto Viana 23,1500 1093/83
Coutinho
518-A Manoel Felix da Silva 36,2535 Processo não
identificado
581 Antônio Felix Pereira 756,0000 3892

412 Raimundo Mendonça 50,3875 TD/Nº 1819


dos Santos
169-A Macedônio Lucas 120,0530 92/83-Expedido TD
dos Santos
Fonte: “Relatório Técnico de Vistoria, comunidades quilombolas de Narcisa”,
INCRA 2008, Engº Agroº Júlio Bezerra Martins. (Legenda: TD= Título
Definitivo).

153
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Acima Mapa nº 03: Planta do território reivindicado pela


comunidade remanescente de quilombos de Narcisa, com os
lotes que foram expropriados por colonos com apoio do poder
público municipal e posteriormente regularizados pelo INCRA
na década 1980.

No quadro e na imagem acima, estão identificados os principais


lotes e respectivos beneficiários que incidem sobre o território
reivindicado pela comunidade quilombola de Narcisa. Podemos notar
que Luiz Marques e Osmarino Meireles, ambos citados pelos
moradores da comunidade, entre outros colonos, foram os
beneficiários do trabalho de regularização fundiária desenvolvido
efetivamente pelo INCRA a partir do ano de 1979, mas que se estendeu

154
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

pela década de 1980. Desta forma, o governo federal


regularizou/legalizou a área que foi expropriada da comunidade.
No quadro 1 aparece o nome de Macedônio Lucas dos Santos
como um dos beneficiários da regularização fundiária (lote 169A),
entretanto, como podemos constatar no mapa 3, a área regularizada é
uma parcela muito pequena quando comparada ao território
anteriormente ocupado (e atualmente reivindicado) pela comunidade.
Macedônio, na época principal liderança de Narcisa, como estratégia de
resistência procurou o INCRA e participou daquela forma de
regularização. O objetivo desta liderança quilombola foi garantir uma
parte das terras de Narcisa que ainda não tinham sido expropriadas. Em
seu nome, Macedônio conseguiu regularizar um lote de terra, obtendo
o título de propriedade, documento que a comunidade possui ainda
hoje tendo sido repassado para a geração que sucedeu Macedônio e
assim assegurando uma pequena área da comunidade (120,0530ha).
Certamente, a existência desse documento foi importante, pois,
garantiu, ainda que precariamente, o prolongamento da existência
daquela coletividade, hoje contando com apenas sete famílias.
Ressalta-se aqui que, a área correspondente ao título de
propriedade expedido pelo INCRA, pela exigüidade de seu tamanho,
não corresponde, obviamente, às necessidades reprodutivas das famílias
quilombolas ali existentes. Apesar disso, a comunidade manteve-se no
local onde basicamente se encontram as suas moradias; essa ausência de
terras, aliada às dificuldades de várias ordens, teria engendrado a
migração da maioria das famílias quilombolas da comunidade que
buscaram formas outras de sobrevivência em outras cidades ou
vendendo sua força de trabalho aos fazendeiros que hoje ocupam a
maior parte da área expropriada da comunidade.
Isso significa que no decorrer do processo expropriatório sofrido
pela comunidade, agora estamos falando da década de 1990 os colonos
cujas terras haviam sido expropriadas do território de Narcisa e
posteriormente regularizadas/legalizadas pelo INCRA, começaram a
vender seus lotes para um fazendeiro da região, o Sr. Mitchio Sato.
Segundo os moradores da comunidade, o colono Luiz da Mata foi o
primeiro a vender o seu lote, seguido por outros colonos. Comprando
de lote em lote, a terra passou por um processo de concentração
fundiária, já desmatada e sem a maior parte da cobertura vegetal, a área
tornou-se atrativa para as atividades de criação de gado e para

155
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

agricultura com base na monocultura com uso intensivo de adubos,


fertilizantes e defensivos químicos. Assim, os lotes regularizados pelo
INCRA tornaram-se uma grande área de pasto concentrada nas mãos
de um fazendeiro que detém a maior parcela das terras reivindicadas
pela comunidade.
No quadro 2 podemos identificar os lotes que foram comprados
e reunidos pelo fazendeiro Mitchio Sato e no mapa 4 podemos verificar
que a área da mesma fazenda corresponde a quase metade do território
identificado pelo RTID do INCRA e que está sendo reivindicado pela
comunidade quilombola.

Quadro nº 02: áreas regularizadas pelo INCRA na Gleba Capitão


Poço a partir do ano de 1979, indicando ocupação primitiva e
ocupante atual

Lote Ocupante Ocupante Área Processo


nº: primitivo atual total INCRA nº
281-A Luiz Marques da Mitchio Sato 34,9420 3496/79,
Silva 1.094/83 e
069/96
206- A Osmarino Mitchio Sato 24,9345 1092/83-
Meireles da Silva Expedido
TD/Nº 1228
230-A Francisco Carmo Mitchio Sato 23,7570 1097/83-
dos Santos Expedido
TD/Nº 1227
230 José Meireles da Mitchio Sato 23,7410 3.376/78-
Silva Expedido
TD/Nº 1770
230-B Alberto Viana Mitchio Sato 23,1500 1093/83
Coutinho
518-A Manoel Felix da Mitchio Sato 36,2535 Processo não
Silva identificado
581 Antônio Felix Mitchio Sato 756,0000 3892
Pereira
412 Raimundo Vicente 50,3875 TD/Nº 1819
Mendonça dos Odilon de
Santos Abreu
169-A Macedônio Famílias
Lucas dos remanescen 120,0530 92/83-

156
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Santos tes de Expedido TD


quilombo
de Narcisa
Fonte: “Relatório Técnico de Vistoria, comunidades quilombolas de Narcisa”,
INCRA 2008, Engº Agroº Júlio Bezerra Martins. (Legenda: TD= Título
Definitivo).

Acima Mapa nº 04: Planta do território reivindicado pela


comunidade, com os lotes expropriados por colonos com apoio do
poder público municipal, que foram regularizados pelo INCRA na
década 1980, e que na década de 1990 foram concentrados em uma
única área através da compra dos lotes feita pelo fazendeiro Mitchio
Sato.

157
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Como é possível identificar no quadro 2 e visualizar no mapa 4,


dos nove (9) lotes que foram regularizados pelo INCRA dentro do
território reivindicado pela comunidade de Narcisa, sete (7) lotes
sofreram processo de concentração fundiária e tem como ocupante
atual o fazendeiro Mitchio Sato. Evidenciamos que existem outros lotes
regularizados pelo INCRA os quais incidem no território da
comunidade de Narcisa. Esses lotes são oriundos de antigos moradores
que construíram limites de respeito com a comunidade, entretanto,
quando esses vizinhos de Narcisa venderam suas terras, os novos
moradores, no período da demarcação realizada pelo INCRA,
avançaram sobre as terras quilombolas, assim, apenas partes dos lotes
estão incidindo no território da comunidade. Esses lotes são os de
número 333, 436, 257 e 169.

Conclusão

O estudo sobre Narcisa mostrou-se bastante revelador em vários


aspectos, primeiro ao evidenciar o que na prática significou para essas
comunidades serem invisíveis ao Estado. Segundo, revelou que a
intensa migração para próximo do território do quilombo não significa,
como se podia supor, necessariamente processos de expropriação, nem
assimilação, mas a construção de limites de respeito. Terceiro, o estudo
mostra como os processos de expropriação de terras da comunidade
estão associados ao período de maior presença do Estado na região e
não aos períodos de ausência do mesmo, ou seja, além dos grandes
fazendeiros e empresas também o Estado atuou como agente
expropriador de terras de comunidades quilombolas.

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160
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

161
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Tensões territoriais entre rizicultores e quilombolas no


arquipélago do Marajó

Dérick Lima Gomes45


Fabiano de Oliveira Bringel46

Introdução

A pecuária tem sido há séculos a principal atividade rural do leste


marajoara (MIRANDA NETO, 2005). Hoje, contudo, a rizicultura
avança para esta porção do arquipélago estimulada pelos baixos preços
de terras, ofertas de recursos naturais e auxílio estatal. Tal expansão
ocorre exatamente para as proximidades de quilombos historicamente
situados na região, ocasionando tensões territoriais outrora inexistentes.
Este texto resulta das reflexões a partir da monografia de
conclusão de curso defendida no inicio de 2016 47. Delimitar-se-á a
partir do último capítulo desta, porém, apenas duas consequências aos
quilombolas de Rosário, no município Salvaterra (PA), a partir da
chegada do agronegócio do arroz às proximidades do seu território.
Isto é, objetiva-se compreender duas modificações territoriais
ocasionadas aos moradores deste local pós-chegada da rizicultura, tal
como, as formas de resistências encontradas pelos quilombolas frente
ao processo de “cercamento” de áreas outrora apropriadas e o
represamento da pesca pelo arrozeiro recém-estabelecido.
Como se visualizará, tais estratégias de resistência/r-existência
que têm como fim último manter a territorialidade, portanto, o controle

45
Graduado em Geografia pela Universidade do Estado do Pará. Mestrando
pelo Programa de Pós- graduação em Agriculturas Familiares e
Desenvolvimento Sustentável da Universidade Federal do Pará. E-mail:
dericklima16@hotmail.com
46
Professor Assistente de Geografia do Centro de Ciências Sociais e Educação
da Universidade do Estado do Pará. E-mail: fabianobringel@gmail.com
47
A monografia “A expansão da rizicultura nos campos marajoaras: Arrozeiros,
quilombolas e territórios” defendida na Universidade do Estado do Pará no
Curso de Geografia, contou com subsídios do Núcleo de Extensão em
Desenvolvimento Territorial do Marajó, por meio do projeto “Monitoramento
e avaliação de políticas públicas para gestão de territórios na Amazônia
paraense”, financiado pelo CNPq/MDA, a quem somos gratos.
162
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

espacial efetivo sobre os recursos e símbolos de reprodução cultural


(SACK, 2011), baseiam-se sobremaneira no acionamento da identidade
quilombola enquanto forma de reviver a memória de seus
antepassados, mas também enquanto instrumento político e de poder,
voltando às raízes para se pensar rotas futuras (HALL, 2004).

O quilombo de Rosário (Salvaterra-PA)

Certificada pela Fundação Cultural Palmares em treze de


dezembro de 2006, por meio do processo 01420.001846/2006-82, a
comunidade de Rosário solicita desde 30 de janeiro de 2007 junto ao
INCRA o reconhecimento e titulação do território a partir do processo
n° 54100.000076/2007-11. A comunidade possui cerca de setenta
famílias, uma escola cadastrada como quilombola que vai até o 5° ano
do ensino fundamental, um posto de saúde que está em processo de
ampliação, uma casa de farinha (conquista da associação), uma igreja e
um campo de futebol.
Nos trabalhos de campo efetuados nos meses de abril e julho de
2015, todos os entrevistados relataram sempre residir no Rosário, tal
como, seus pais e avós, demonstrando o nível de parentesco que
permanece neste local há séculos. Agricultura, pesca e extrativismo
(com destaque para o açaí, vendido mais para fora da comunidade
devido seu preço valorizado) foram atividades econômicas que todos
informaram realizar. A caça, em menor proporção, também foi citada
como fonte de alimentos. As trocas destes produtos fazem-se
majoritariamente dentro da própria comunidade.
Esse regime de trocas pode ser aqui considerado como dádivas
(MAUSS, 2003), isto é, quando existem além do caráter meramente
econômico monetário, valores simbólicos, morais, de honra e respeito
nas relações de parentesco e compadrio entre os sujeitos da
comunidade. Quando o presente (dádiva) recebido, em teoria
voluntário, contém em si a obrigatoriedade de retribuí-los
posteriormente.
Tais obrigatoriedades – de dar e receber – são relações
contratuais não formalizadas juridicamente que coexistem com as
relações econômico-financeiras hegemônicas. Como exemplifica Seu
Cravo: “Eu vivo da minha roça e da pesca. O dia que eu... um dia que

163
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

chegue um filho, um irmão meu com peixe nesse dia eu sei que eu não
vou comprar né (Risos)”. (Entrevista realizada em julho de 2015).
O território de Rosário dispõe também de rios, lagos e igarapés
onde a pesca é cotidianamente praticada, destinada principalmente para
o autoconsumo e às formas de dádivas citadas. Esses cursos d’água
servem para deslocamento dos variados pontos dentro e fora do
território, representando um papel primordial no acesso a áreas de caça
e extrativismo na floresta. Contudo, além do Igarapé Rosário, do ponto
de vista dos recursos pesqueiros, o principal rio é o Camará, assim
como os igarapés conhecidos pelos nomes de Jutuba, Atoriá, Panema e
São Miguel (CARVALHO, 2014).
Exercício difícil, a definição da principal fonte de renda destes
quilombolas não se dá somente por uma atividade específica,
justamente por estes se caracterizarem em um campesinato polivalente
(CASTRO, 1999), no qual as práticas extrativistas, agricultora, de pesca
e caça se mesclam constantemente.

O peixe pode dar pra vender, e pode dar só pra


comer porque tem dia que o pescador pega
bastante assim, tem dia que ele pega razoável.
Aqui todo mundo pesca e todo mundo planta.
Porque não pode dizer “tu vai trabalhar só da
pesca” não vai dar pra sobreviver, se tu for
trabalhar só da farinha também não vai dar. Tu
tem que pescar hoje, amanhã tu chega, depois de
amanhã tu vai pra tua roça pra tu trabalhar, tem
que ser assim. (Dona Girassol, entrevista
realizada em julho de 2015).

A polivalência desses sujeitos os auxiliam em sua própria


soberania alimentar, baseada em uma “campesinidade”, onde terra – e
território –, trabalho e família são fatores nucleantes e relacionados do
seu universo. Assim, concorda-se aqui com Woortmann 48 (1990), mas
também acrescentar-se-á o termo território, pois em Rosário, o meio
geográfico apropriado historicamente por eles, e composto por rios,
48
“Nas culturas camponesas, não se pensa a terra sem pensar a família e o
trabalho, assim como não se pensa o trabalho sem pensar a terra e a família”
(WOORTMANN, 1990, p. 23).

164
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

lagos, florestas e terra firme, influencia igualmente na reprodução e


representação social desses quilombolas (TOLEDO & BARRERA-
BASSOLS, 2009) junto ao trabalho e à honra da família.

Modificações pós-chegada do arrozal

A nova dinâmica de sucessão de latifúndios no Marajó só é


passível de entendimento se relacionada à migração de Paulo
Quartieiro, hoje vice-governador de Roraima, que fora expulso da Terra
Indígena Raposa Serra do Sol. Isto porque, foi a partir de tal
desterritorialização que o Estado do Pará e prefeituras do arquipélago,
como a de Salvaterra, ofereceram a proposta da criação de um polo
rizicultor, convidando o político e outros fazendeiros a se re-
territorializarem nos campos marajoaras, com extensas terras a baixo
custo e recursos naturais abundantes, como o hídrico.
Outrora estabelecido no Mato Grosso, José Marques também
chegou ao Marajó influenciado pelo preço de terra e pela oferta do
recurso natural já citado. Comprou uma área de aproximadamente
3.700 hectares onde antes existia atividade pecuária não muito
promissora economicamente, subutilizada e com poucas cabeças de
gado.
Como Paulo Quartieiro, Marques também se utilizou de um
sistema de drenagem feito a partir da construção de “cavangens” que
irão bombear água do rio Camará à sua fazenda. Grande parte das
reinvindicações da associação quilombola de Rosário junto a
MALUNGU49 ocorreu a partir do receio de que, semelhante aos casos
de Cachoeira do Arari, o empreendimento causasse vários impactos à
comunidade, em particular da possível poluição do rio Camará e
igarapés devido ao uso de agrotóxicos na fazenda do arrozeiro.
Este receio resulta dos fatos já acontecidos em Cachoeira do
Arari, município onde Quartieiro estabeleceu sua produção de arroz.
Isto decorre das várias denúncias de problemas respiratórios aos
cidadãos que ali residem, ocasionados pelos agrotóxicos atirados pelos
aviões deste fazendeiro no intuito de potencializar sua produção
agrícola. Tal como, pelas ações de quilombolas de Gurupá junto ao
Ministério Público Federal diante à construção de um porto – sem
49
Coordenação Estadual das Associações de Comunidades Remanescentes de
Quilombos do Estado do Pará.
165
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

consulta prévia – para escoamento do plantio à Belém dentro do


território tradicionalmente ocupado por esses sujeitos.
Vale ressaltar também que, a própria Secretária de Estado do
Meio Ambiente (SEMA) concedeu a Quartieiro a Outorga 420/2010
para a captação de 9.600 m³ por dia do rio Arari, com a finalidade de
uso na irrigação hídrica à sua fazenda, sem antes, todavia, da elaboração
do EIA/RIMA. Soma-se a esses fatos, a reclamação do presidente da
associação de Gurupá, Seu Osvaldo, quanto à necessidade desses
estudos, pois assim como em Roraima, a comunidade vêm percebendo
o assoreamento do rio, ou em suas palavras: “o rio tá morrendo pra
cá”. (Entrevista realizada em agosto de 2015).
Ainda que o presente texto limite-se a Rosário, se usará alguns
exemplos de Cachoeira do Arari porquanto os efeitos de impactos
ambientais lá ocasionados influenciam e alimentam as ações do
quilombo de Rosário. Com relação ao impacto hídrico, isto é um
exemplo do que Zhouri e Laschefski (2010) definem como conflito
ambiental espacial 50, pois, ainda que a poluição se inicie fora das
comunidades, ou seja, em área de posse dos arrozeiros, os efeitos dos
poluentes não se limitam ao território rizicultor, ultrapassando-o e
afetando as comunidades que dependem dos igarapés e rios para a
sobrevivência.
Os impactos ocasionados por este tipo de empreendimento em
Gurupá e sua consequente antecipação de questionamento quanto ao
medo de que a poluição repita-se em Rosário, são evidenciados na fala
de Dona Margarida, quilombola de Salvaterra, exemplificando umas das
principais formas de resistência/r-existência: a judicialização da luta
associada a mecanismos de ambientalização (TEISSERENC, 2010),
forma utilizada por estes sujeitos para pressionar os avanços dos
arrozais no arquipélago.

Ele [rizicultor estabelecido em Salvaterra] não


poderia perceber que isso ia causar um problema,
50
Além deste tipo de conflito, os autores diferenciam mais dois: os “conflitos
ambientais distributivos”, ou seja, aqueles relacionados à distribuição desigual
dos recursos naturais. E os “conflitos ambientais territoriais”, característicos de
situações em que existe sobreposição de reivindicações de grupos sociais
diversos sobre o mesmo recorte espacial. Por exemplo: área para
implementação de uma hidrelétrica versus territorialidade da população afetada
(ZHOURI e LASCHEFSKI, 2010).
166
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

mas pra nós que precisa do nosso território, de


tudo o que existe, nas florestas, nas matas, nas
águas, o que a gente precisa pescar, coletar o açaí,
com certeza ia sofrer os impactos, né? Grandes
impactos. Por quê? Quando foi feito esse plantio
dele, ele mandou fazer uma grande “cavagem”, e
a “cavagem” pegava de dentro da fazenda pra
margem do rio, então se ele manda pulverizar, o
plantio do arroz, claro que tudo aquele
agrotóxico que cai, vai atingir a terra né, e quando
a água, e a maré enche e vaza, aquele agrotóxico
vem na água pra dentro do rio, e com isso nós
comecemos a questionar sobre isso”. (Dona
Margarida, entrevista realizada em abril de 2015).

Como ressaltado por Dona Margarida, os recursos geográficos


(água, mata, floresta) que têm uma lógica funcional de autoconsumo a
partir da coleta do açaí, do pescar, tal como de simbolismos acerca
desses mesmos alimentos, quando colocados em risco de sofrerem
danos ambientais por conta da rizicultura, fazem com que quilombolas
desta comunidade questionem o modo de dominação do território
rizicultor que, pela proximidade locacional, afetaria o território
historicamente apropriado pelos morados de Rosário a partir dos
agrotóxicos.
O fato exemplifica uma das ideias principais do presente
trabalho quanto à necessidade de considerar-se a problemática
ambiental à agrária, primeiro: a) pela possibilidade de um
reordenamento territorial e do modo de vida ocasionado pelos dejetos
químicos dos agrotóxicos, pois, danificar o rio historicamente
apropriado por essas populações é tirar uma das suas principais fontes
de renda, de transporte, de trocas econômicas e dádivas dentro da
comunidade.
Pode-se dizer que para populações amazônicas como a de
Rosário, no qual a forma de territorialização 51 e existência está
51
Emprestamos aqui a definição de Rogério Haesbaert, na qual territorializar-se
“significa criar mediações espaciais que nos proporcionem efetivo “poder”
sobre nossa reprodução enquanto grupos sociais (para alguns também
enquanto indivíduos), poder este que é sempre multiescalar e
multidimensional, material e imaterial, de “dominação” e “apropriação” ao
mesmo tempo”. (2012, p. 97).
167
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

intimamente ligada ao rio, a questão agrária não pode ser somente


ligada à terra, mas ao território, porquanto, este meio geográfico é,
sobretudo, uma espécie de meio “agrá-rio”. Por isso: b) considerar a
problemática ambiental tem íntima relação à forma de como estes
sujeitos reagem aos processos de desterritorialização pelos grandes
empreendimentos, levando em conta estes impactos e acionando
mecanismos de ambientalização (TEISSERENC, 2010) às suas estratégias
territoriais de r-existência (PORTO-GONÇALVES, 2012).
O conflito ambiental espacial (ZHOURI & LASCHEFSKI,
2010) que se evidencia em Gurupá e que preocupa o quilombo de
Rosário, também oferece alguns elementos para reflexão quanto às
formas de conflitos entre territórios diferentes. A forma de apropriação52
do território quilombola se choca com a de dominação do território do
empreendimento rizicultor sem haver sobreposição de territórios
(HAESBAERT, 2012).
Isto é, a desterritorialização não somente ocorre enquanto
houver a expulsão de um grupo de determinado espaço para outro, ou
des-re-territorialização, mas também quando as relações de reprodução
sócio-espacial de uma coletividade são tornadas precárias, ao se limitar
os seus recursos, seus valores e sua identidade, sem necessariamente
tirá-los daquele espaço específico (HAESBAERT, 2012). Quando o
desenvolvimento de um agente hegemônico pode resultar no des-
envolvimento da territorialidade de outros sujeitos (PORTO-
GONÇALVES, 2012).
A desterritorialização in situ pode ser assim exemplificada:

[...] Muitos grupos sociais podem estar


“desterritorializados” sem deslocamento físico,
sem níveis de mobilidade espacial pronunciados,
bastando para isto que vivenciem uma
precarização das suas condições básicas de vida
e/ou a negação de sua expressão simbólico-
cultural. Habitantes antigos de uma favela muito

52
Sobre a dualidade dominação/apropriação do território, “Embora seja
completamente equivocado separar estas esferas, cada grupo social, classe ou
instituição pode “territorializar-se” através de caráter mais funcional
(econômico-político) ou mais simbólico (político-cultural) na relação que
desenvolvem com os “seus” espaços, dependendo da dinâmica de poder e das
estratégias que estão em jogo”. (HAESBAERT, 2012, p. 96).
168
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

precária podem estar tão desterritorializados


quanto migrantes pobres em constante
deslocamento. [...] podemos afirmar que assim
como mobilidade não significa, compulsoriamente,
desterritorialização, imobilidade ou relativa estabilidade
também não significa, obrigatoriamente, territorialização.
(HAESBAERT, 2012, p. 252. Grifos do autor).

Pode-se analisar aqui também enquanto problema enfrentado


pela maioria da comunidade pós-chegada do arrozal, algo que já
acontece há várias décadas no Marajó: a limitação de acesso a recursos a
partir de “cercamentos” de áreas e consequentemente de recursos
(ACEVEDO MARIN, 2009). Explicar-se-á como isso vem
evidenciando-se no caso específico de Rosário.
Como anteriormente ressaltado, antes da chegada e compra da
fazenda pelo rizicultor, a atividade estabelecida outrora na área próxima
ao quilombo destinava-se à pecuária. Naquele contexto, entretanto,
todos os moradores de Rosário podiam adentrar e extrair recursos
como: caça, madeira, açaí e os peixes do lago lá localizado. De acordo
com Seu Cravo: “Quando era desse primeiro [pecuarista], todo mundo
tirava, tirava pra um lado, tirava pra outro”. (Cravo, entrevista realizada
em julho de 2015).
Com José Marques, ocorre uma sucessão de lógicas de produção.
Aquela da pecuária, com poucas cabeças de gado, altera-se por um
pensamento de alta produtividade, com utilização de agroquímicos e de
uma agricultura altamente mecanizada, típica do setor do agribusiness
(FABRINI, 2010). A mudança da pecuária para a produção do arroz é
assim evidenciada por Dona Jasmin:

Da parte do fazendeiro [do arroz] não vai mais


poder entrar, e pra lá que tem a maioria das casas,
onde tem mais açaí e peixe também né. Esse que
é o problema maior assim, o pessoal fica, no caso
eles colocam vigia, na semana passada o irmão do
meu avô ali foi pescar e o vigia não queria deixar
passar, é o vigia do fazendeiro. Esse fazendeiro
que tá fazendo isso é o do arroz. (Dona Jasmim,
entrevista realizada em julho de 2015).
Percebe-se com isso a transformação decorrente de uma
sucessão de proprietários de terras e consequentemente de modos de
169
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

relação com a comunidade. Se até recentemente os quilombolas de


Rosário apropriavam-se sem limitações desse espaço, hoje, porém, o
rizicultor o torna seletivo para apenas algumas pessoas da comunidade,
como forma de legitimação de estar ajudando Rosário, mas que acaba
por desarticular ou des-envolver (PORTO-GONÇALVES, 2012)
relações historicamente tecidas, influenciando em di-visões sobre o
empreendimento.
Assim, o grupo “favorecido” tende a relativizar com mais
frequência as ações de Marques, ao passo que outros sujeitos da
comunidade questionam e sentem-se lesionados com a nova situação.
Outra forma de limitação de recursos relatada pela maioria dos
entrevistados diz respeito à retenção da pesca em território rizicultor:

Ele prende né, que ele faz uma represa e coloca


tela pra fechar, pro peixe não passar, né. Outro
dia o pessoal queria se reunir pra cortar né,
porque aquela tela é de ferro. Eles queriam cortar
quando a maré baixasse pra ver se o peixe
passava né. Ele fechou pra não deixar passar o
peixe. E outra parte que tem muito peixe é no
lago lá, que é lá pra dentro da fazenda mesmo. E
lá é proibido mesmo, lá ninguém vai. (Dona
Jasmim, entrevista realizada em julho de 2015).

De maneira sintética, percebem-se nos relatos de Dona Jasmin


dois problemas pós-chegada da rizicultura em Salvaterra. Primeiro, a
proibição seletiva ao acesso dos recursos que estão dentro da fazenda
de José Marques, como: caça, açaí, peixes de lago e madeira. O não
acesso a estes espaços ancestralmente apropriados pela comunidade
transformará não só a renda média desses quilombolas, visto que, lá
está também grande parte dos produtos de autoconsumo, de trocas
monetárias e simbólicas dentro e fora da comunidade. A forma de
dominação do território rizicultor, nesse caso, subjuga a apropriação
dos recursos necessários à reprodução e representação sócio-espacial
dos quilombolas de Rosário.
Segundo, a diminuição de peixes a partir da represa construída
dentro do território de Marques se assemelha a efeitos negativos como
o do conflito ambiental espacial anteriormente citado (ZHOURI &
LASCHEFSKI, 2010). Isto é, uma ação iniciada em território rizicultor

170
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

tem influências diretas em territórios alheios de comunidades


ribeirinhas e mais especificamente ao quilombo de Rosário.
Novamente, ratifica-se aqui a possibilidade de desterritorializações in
situ – se casos como esses intensificarem-se –, sem a sobreposição
obrigatória de territórios, a partir da precarização das relações sócio-
espaciais de um grupo (HAESBAERT, 2012).
Historicamente, os grandes fazendeiros do Marajó sempre
usaram a ordem instituída do Estado em prol dos seus interesses,
porquanto, muita das vezes, suas extensas posses de terras eram
proporcionais ou maiores às suas influências políticas no arquipélago
(JURANDIR, 2008). Mudam-se os latifúndios e os proprietários sem
alterar-se, todavia, tal mecanismo de favorecimento. Pois, conforme
exposto, o poder público está em forte articulação com a rizicultura,
seja com a ajuda do governo do Estado ou de prefeituras como a de
Salvaterra.
Historicamente tornados invisíveis à sociedade, hoje estes
camponeses que acionam a identidade quilombola, como outras
coletividades agrárias, agem de acordo com processos de
reenquadramento institucionais, para que adquiram mais legitimidade
em suas ações nesse sistema de posições hierárquicos que sempre lhes
foi desproporcional (NEVES, 2009). Tais estratégias fazem-se a partir
da necessidade, ao ver-se, por exemplo, a diminuição de recursos por
eles outrora apropriados. E também na possibilidade, de que a partir da
legalidade consigam garantir direitos que são previstos em leis e
diretrizes jurídicas.
Hilário Moraes, coordenador regional da MALUNGU relaciona
a “malandragem” utilizada em tempos passados pelos negros como
forma de resistência aos agentes hegemônicos, com a atual necessidade
de apropriar-se dos instrumentos que hoje lhes são acessíveis,
especialmente os jurídicos:

Tu tem que usar essa malandragem cara, tu tem que usar


a língua dos caras, porque se tu... Os nossos
antepassados não foram malandros? Eram muito
malandros, pô! Quer dizer que enquanto
surravam os preto, e “joga os bucho, os mocotó
pra eles aí” que não prestavam, eles cultivavam o
feijão né, tiravam escondido, tá pensando que ia
feder os miolos, virou feijoada pô! Feijoada é

171
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

prato nosso pô, quando matavam o boi, jogavam


o miolo pra lá... a ideia de sobreviver foi limpar o
bucho, bem limpo, fazer feijoada... hoje feijoada é
prato predileto da sociedade, entendeu, e outras
coisas assim. “Porque que os preto tão batendo
tambor, que não deixam eu dormir?”, “ah, eles
estão cultuando os Deuses deles”. Aí como eram
portugueses, espanhóis que, o catolicismo é
muito forte pra lá, levaram as imagens, o que foi
que eles fizeram? “Não a gente vai cultuar sim”,
pra cada imagem de santo eles colocaram um
nome né, Conceição – Iemanjá e foram
colocando assim os nomes tudinho pra driblar,
foram malandros também, entendeu?! Ah tá
jogando a capoeira, “o que é isso aí”, “isso é uma
dança pô!”. Mal sabiam que eles estavam usando
para a própria defesa. (Hilário Moraes, entrevista
realizada em abril de 2015. Grifos meus).

Percebe-se como a resistência destes sujeitos baseia-se


atualmente no retorno às raízes para se pensar as rotas do futuro a
partir do acionamento da identidade (HALL, 2004), tendo como fim
último garantir o melhor funcionamento do seu território a partir do r-
existir enquanto negro e quilombola (PORTO-GONÇALVES, 2012).
A malandragem de que fala Hilário Moraes, como anteriormente citada
por Neves (2009), é uma forma de conseguirem legitimidade a partir da
legalidade institucional, e, consequentemente, serem ouvidos e
atendidos com relação aos seus direitos.
Em termos espaciais pode-se traduzir isto da seguinte forma: o
território de Rosário fora tradicionalmente ocupado e apropriado pelos
atuais moradores e seus antepassados. As relações de poder enquanto
forma de controlar este espaço, portanto, sempre existiram. Porém, a
dominação de territórios próximos a ele durante os anos, a ameaça e o
receio de serem prejudicados por agente externos, fazem com que
reivindicar o título definitivo da comunidade junto ao INCRA lhes dê
pela legalidade, a legitimidade total, garantida pelo Estado, do território
que já vem sendo apropriado historicamente. Por isso acionar esses
instrumentos.
Considerações finais

172
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

A migração do agronegócio rizicultor exemplifica a tendência de


expansão desses empreendimentos exatamente para terras
tradicionalmente ocupadas (ALMEIDA, 2004) que costumam ter no
uso comum, e não no modelo econômico-produtivista, a forma de
utilização dos seus recursos naturais. Isto acontece porque embora os
índices de concentração fundiária sejam elevados no país, não são nos
grandes imóveis rurais que se localizam as áreas preservadas.
É, entretanto, sobre o controle direto de povos e comunidades
ditas tradicionais que existe um percentual significativo de áreas com
grande cobertura vegetal, com florestas e cursos d’água ainda
preservados, que faz com que, estratégias do agronegócio – as
“agroestratégias” – tentem anular o direito territorial dessas populações,
de modo a incorporar aos grandes empreendimentos esses espaços de
“recursos abundantes”, à “vocação regional da Amazônia ao
desenvolvimento” (ALMEIDA e ACEVEDO MARIN, 2010). Esses
recursos no leste marajoara são, principalmente, os campos naturais e
os rios.
Essas disputas se materializam, sobretudo, no espaço, pela
proximidade locacional dos diferentes territórios e suas formas opostas
de territorialidades, que se expressam principalmente em conflitos
socioambientais – que alimentam os mecanismos de “ambientalização”
das lutas dos movimentos sociais da Amazônia e de Rosário
(TEISSERENC, 2010) – e na proibição de acesso a áreas outrora
utilizadas por quilombolas, mas hoje em posse dos arrozeiros. E é por
isso que não só a sobreposição de territórios pode ocasionar em uma
futura desterritorialização, mas também a proximidade entre eles, como
visto no represamento do peixe e do receio de que como em Gurupá,
problemas trazidos pelo vento ou pelo rio, transcendam o território
rizicultor e traga problemas a Rosário, como um conflito ambiental
espacial (ZHOURI & LASCHEFSKI, 2010).
Em resumo, a partir deste contexto de ambientalização dos
conflitos na Amazônia (TEISSERENC, 2010) e o reconhecimento de
direitos territoriais legais, este campesinato polivalente (CASTRO,
1999) e étnico tende a exercer sua resistência por meio da atual
conjuntura apresentada, modificando-a a partir da contingência. Desta
forma, o fortalecimento da identidade quilombola, a luta pela terra e
pelo território, e, sobretudo, a utilização de mecanismos jurídicos,
tornam-se importantes elementos de r-existências à manutenção das

173
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

territorialidades dessas comunidades. Identificar-se para manter o


território e se territorializar para fortalecer a identidade, torna-se,
portanto, uma retroaliment(ação) essencial de luta destes quilombolas.

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

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176
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

177
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Quilombolas e agronegócio do dendê em disputa pelo


território no Alto Acará-PA

Fabiana Carneiro da Silva53


Jamilli Medeiros de Oliveira da Silva54
Cátia Oliveira Macedo55

Introdução

Este trabalho objetiva compreender os processos e dinâmicas da


territorialização quilombola mediante aos avanços do agronegócio do
dendê no município do Acará, Nordeste Paraense, a partir do estudo
das comunidades 19 do Maçaranduba e Vila Formosa localizadas no
Alto Acará, que tradicionalmente ocupam territórios na região e se
encontram atualmente cercados pelos plantios de dendê. De igual
modo, buscamos identificar as tensões geradas com o avanço desta
agricultura capitalizada e intensiva nas localidades frente às lógicas de
territorialidade que ali já estavam estabelecidas, compreendendo as
marcas de resistência no – e pelo – território que essas famílias vêm
construindo.
A metodologia pautou-se no estudo bibliográfico e documental,
além dos trabalhos de campo realizados em Abril e Maio de 2015,
nestes optamos pela aplicação de entrevistas (abertas e
semiestruturadas) com auxílio de gravadores, bem como diário de
campo e câmeras fotográficas. Assim, buscamos dois pólos de análises
a partir de duas lógicas de produção do território antagônicas, a
quilombola e a capitalista, que se encontram, se chocam, e se
(re)produzem.
O território quilombola aqui estudado é composto por seis
comunidades pertencentes a um território com extensão de 18.000 km²,

53
Graduada em Geografia pela Universidade do Estado do Pará. Mestranda
pelo Programa de Pós- Graduação em Agriculturas Familiares e
Desenvolvimento Sustentável da Universidade Federal do Pará. E-mail:
fabianacarneiro@rocketmail.com
54
Graduada em Geografia pela Universidade do Estado do Pará. E-mail:
jamillimosilva@gmail.com
55
Professora Adjunta de Geografia do Centro de Ciências Sociais e Educação
da Universidade do Estado do Pará. E-mail: catiamacedo@yahoo.com
178
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

cerca de 22 mil ha: a comunidade do Turé 3, 19 do Maçaranduba -


comunidades situadas em terra firme, pertencentes à jurisdição do
INCRA -, Vila Formosa, Monte Sião, Ipitinga Grande e Ipitingamiri –
comunidades ribeirinhas, pertencentes à jurisdição do ITERPA -, sendo
estas últimas de difícil acesso. A formação dessas comunidades se insere
no cenário da Amazônia marcada fortemente pela presença do rio em
seu processo de ocupação. É importante esclarecer que essas
comunidades passaram a ser articular, de maneira mais efetiva, a partir
dos avanços do agronegócio do dendê nas proximidades de seu
território. Este processo desencadeou maiores mobilizações de
resistência territorial frente ao modelo econômico dominante, visando
conter os problemas estruturais e de cunho socioambientais gerados
com a presença do dendê. Nesse sentido, no ano de 2009, os
moradores de Vila formosa se organizaram em torno da criação da
Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes Quilombolas
do Alto Acará (AMARQUALTA). Esta associação engloba as seis
comunidades em um único território, lutando pela titulação do mesmo
como remanescente de quilombo. O processo de titulação das terras da
AMARQUALTA está na etapa de demarcação, já havendo o
reconhecimento com a certidão de autodefinição da Fundação Cultural
de Palmares, conquistado em Maio de 2013.
Com relação ao número de famílias, em estudo recente,
Cavalcanti et. al. (2015, p. 11) afirmam existirem cerca de 320 famílias
no território, durante os trabalhos de campo realizados, Nazildo Brito,
atual presidente da AMARQUALTA, nos informou que o ITERPA
havia elaborado um relatório em que constavam 246 famílias, mas o
mesmo acredita, com base em suas vivências, que exista um número
maior de famílias habitando o território.

O avanço do Agronegócio do dendê no nordeste paraense: Por


uma “nova” estratégia de des-envolvimento no campo

Para a melhor compreensão do cenário de estudo, se faz


necessário uma breve contextualização histórica de como se iniciou o
processo de produção do dendê na Amazônia. A inserção desta
oleaginosa na região se deu nos anos 50 por meio do Instituto
agroecológico do Norte (IAN), que posteriormente iria se tornar a
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa Amazônia

179
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

oriental -, assim, a primeira perspectiva atrelada ao cultivo de tal


produto seria para promover o desenvolvimento regional (SANTOS e
D’AVILA,. s. d.).
Dessa forma, a produção do dendê é incentivada com os
projetos desenvolvimentistas da Amazônia em meados dos anos 60
como o Programa de Integração Nacional na construção da rodovia
Belém-Brasília e com a implantação de projetos agropecuários iniciados
pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, a SUDAM, o
que nos demonstra investimentos em infraestrutura na Amazônia com
investimentos governamentais.
O cultivo do dendê em maior escala se deu em 1967 com o
convênio firmado entre o Institut de Recherches Pour Les Huiles Et Les
Oleagineux e a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da
Amazônia (SPEVEA) sendo hoje a atual SUDAM. Assim, até os anos
70, todos os projetos de produção de dendê no Estado do Pará eram
feitas com participação ativa de órgãos governamentais, a iniciativa
privada só se incorporou nesse cultivo com a criação da Dendê do Pará
AS (DEMPASA) em 1974, esse fato, atribuiu uma maior dinamização
para a produção, e a partir de então, tais atividades de cultivo do dendê
vieram a se expandi com novos projetos na região amazônica, tendo
uma maior expressividade no estado do Pará56.
No ano de 2004 é lançado o Programa Nacional de Produção e
uso do Biodiesel (PNPB) incentivado pelo ministério de
desenvolvimento agrário em parceria com o Selo Combustível Social
(SCS), no qual são incentivadores fiscais tendo o intuído de expandi o
cultivo do dendê incluindo famílias camponesas no seu processo de
produção, e isso, motivados pela ideia de “desenvolvimento
sustentável”. Assim, motivando a cadeia de produção do biodiesel no
Brasil.
Em 2010 é lançado o Plano Palma Verde (PPV) em Tomé-açu
pelo então presidente Lula, estimulando cada vez mais a sua produção,
e, por conseguinte, o Programa de Produção Sustentável de Palma de
Óleo (PPSPO) que veio com o intuito de estruturar os grandes projetos
de cultivo de dendê, tendo a especificidade de demarcar areas aptas ao
seu cultivo. Esses projetos se instalam a partir das teorias
56
Ver estudos de SANTOS, M. A.S e D’AVILA, J.L. Cenários o agronegócio na
Amazônia: o caso da dendeicultura. In: “Comportamento do Mercado do óleo
de palma no Brasil”. Material mimeografado. Estudos especiais do Basa.
180
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

desenvolvimentitas, tendo o intuito de promover o desenvolvimento


regional.
Neste cenário, o Brasil, e mais especificamente o Nordeste
Paraense, se torna peça chave para a produção em larga escala das
oleaginosas, seja pelo seu potencial edafoclimático, extensão do
território, experiências anteriores na produção de agroenergia, entre
outras coisas, que conduzem o país a liderar o processo de transição
mundial da “civilização do petróleo” para a “civilicação da biomassa”.
Entretanto, para conseguir tal feito, com um hipotético crescimento
produtivo exorbitante, a produção de agrocumbustíveis, ancorada na
perpesctiva da “agricultura familiar” no Brasil, e com matéria prima
procedente de maneira geral do campo, representaria não apenas uma
transição energética, mas, sobretudo, uma transição agrária (FABRINI,
2010).

QUADRO 1: Área de colheita, quantidade e valor de produção de


cachos de palma, em 2012: Brasil e Pará (total e principais municípios
produtores)

Unidade Área Toneladas Valor Valor da


destinada à produzidas produção produção
colheita (R$1000) (%)
(ha)

BRASIL 113.135 1.240.992 322.296 0,84


Região Norte 59.192 1.036.639 273.727 11,78
Pará 58.795 1.034.361 272.950 18,48
Tailândia 19.387 405.055 117.466 97,98
Moju 13.288 153.356 33.738 44,26
Acará 7.000 175.000 42.648 68,46
Igarapé-Açu 4.200 46.200 13.467 22,33
Tomé-Açu 2.600 49.400 11.861 19,39
Concórdia 2.000 28.000 7.372 27,85
do Pará
Outros 2.220 34.750 9.258
Fonte: IBGE (2012).

181
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Em uma Análise mais voltada ao setor empresarial, notamos que


existe uma divergência quanto aos dados de volume de área ocupada
para plantio, em relação aos dados do IBGE. Dessa forma, segundo a
Associação Brasileira de Produtores de Palma (ABRAPALMA),
entendem que já em 2012 a área plantada com palma no Pará já excedia
120.000 h e com previsão de mais que dobrar a área, chegando a
aumentar em 135% até 2015.

182
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

QUADRO 2: Produção de dendê no Pará em 2012 e expansão projetada para 2015

EMPRESA Área % área No. Capacidade Emprego Área % área


plantada plantada Unidades instalada s diretos projetada projetada –
2012(ha) 2012 Extratoras 2012 (1000 t (08/2012) em 2015 2015
2012 de (ha)
óleo/ano)
Agropalma 45.000 32,1 5 201 5.314 50.000 15,2
Biopalma 42.000 30,0 1 40 2.618 80.000 24,3
Yossan 16.000 11,4 - - - 20.000 6,1
Denpasa 6.000 4,3 1 12 290 10.000 3,0
Marborges 5.000 3,6 1 20 1.120 10.000 3,0
Dentaua 4.000 2,9 2 39 941 6.000 1,8
PBIO+GAL 4.000 2,9 - - 119 75.000 22,8
P
ADM 3.000 2,1 - - 172 50.000 15,2
Palmasa 3.000 2,1 1 28 340 8.000 2,4
Outros 12.000 8,6 - - - 20.000 6,1
TOTAL 140.000 100,0 11 340 10.914 329.000 100,0
Fonte: ABRAPALMA apud VILELA (2014).

183
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Segundo dados do BASA (2012), a Biopalma (atual Biovale) que


iniciou seus cultivos em 2008 pretende chegar aos 80 mil ha até 2016. A
Petrobras fala em 70 mil ha até 2018. A multinacional norte-americana
ADM, que se instalou em São Domingos do Capim, em 2011,
estabeleceu como meta começar com 12 mil ha.
Dessa forma, verificamos que a área preferencial para plantio de
palma no Nordeste do Pará compreende cerca de 28 municípios
(BASA, 2012) e o cultivo da oleaginosa nesta região está hoje espalhada
por cerca de 31 (VENTURIERI et al., 2013), o Quadro 1 mostra como
apenas nove municípios concentravam 96,3% da produção do estado
em 2012, entre eles podemos destacar o município de Acará, lócus
desse estudo.

As comunidades de Vila Formosa e 19 do Maçaranduba no Alto


Acará em disputa com a Biovale: território e a questão
socioambiental

O sofrimento não foi de agora, os sofrimentos


maiores, sofreu os meus pais, meus avós, através
desses grandes homens portugueses que vieram
pra cá (...) e agora os nossos filhos vão ter que
nascer dentro do território da Biovale? Essa é a
nossa luta, nossa vontade peço que o Governo
olhe pra gente ao meno com um olhar de
humano (Domingo Nunes, 42, morador nascido
no território. Entrevista realizada em 2015).

Começamos este tópico por meio da voz de um dos sujeitos de


nossa pesquisa, que está inserido no universo de um grupo que
constituiu seu território de forma ancestral, e que agora se encontra
dentro de um cenário de luta para permanecerem e protegerem seu
território. Território este que envolve as terras quilombolas e se
legitimam pela apropriação do uso comum como base da sustentação
da vida desse grupo, que por sua vez vem enfrentando disputas frente a
agentes que se desenvolvem por meio da propriedade privada na lógica
da terra-mercadoria.
Essas distinções do uso do território que se manifestam através
de duas lógicas pautadas em interesses de classe fizeram com que ali se
travasse uma disputa de poder entre quilombolas e a Biovale, já que

184
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

estes enxergam o território por diferentes óticas, e tendem a atribuir


diversas funcionalidades a ele. Como bem coloca Fernandes (2011) ao
analisar essa dualidade entre agronegócio e a mobilização camponesa
através dos movimentos sociais:

A partir desse confronto pelo domínio do espaço


entre camponeses e agronegócio/latifundiário, é
possível conceber o território como expressão
das contradições sociais. Se, de um lado, o
território se constitui numa expressão e trunfo
para as relações capitalistas [...], de outro, serve à
resistência dos camponeses nos movimentos
sociais. Por isso, há que se abordar e
compreender o território como uma construção
social sujeita aos interesses de classe, como os
latifundiários e camponeses, por exemplo
(FERNANDES, 2011, p.110).

E ao abordar ainda sobre essa concepção do conflito Fernandes


(2008) afirma que:

O capital gera a conflitualidade determinando a


relação social dominante, tornando sempre
subalterno o campesinato. Nessa condição, nasce o
conflito porque o capital, tentando manter sua
lógica e seus princípios, enfrenta
permanentemente os camponeses para continuar
dominando-os. Por sua própria dignidade, os
camponeses lutam continuamente pela
autonomia política e econômica (FERNANDES,
2008, p. 181).

No caso da Biovale, a sua lógica de apropriação se dá por meio


de interesses econômico da monoprodução do dendê. Assim,
observamos as diferentes territorialidades que permeiam as terras do
Alto Acará em suas diferentes lógicas de uso e apropriação. Nesse
sentido, com a inserção do dendê no Alto Acará, percebemos nas falas
dos moradores através de observações em campo, que os mesmos
sentem a constante pressão e as tensões que o capital privado
desencadeia através de seu processo de territorialização, tanto na

185
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

comunidade 19 do Maçaranduba, quanto na comunidade de Vila


Formosa, alterando significativamente algumas formas tradicionais que
estavam estabelecidas no domínio do cotidiano das famílias e na sua
relação com o trabalho na apropriação dos recursos da natureza.
Estas alterações foram sendo significativas, e se deram em
processo desde o início do estabelecimento da empresa nas
proximidades do território, meados de 2008. Neste período, houve a
tentativa de ofertar a parceria aos quilombolas, que na época ainda não
estavam reconhecidos por vias legais, para que plantassem dendê em
suas próprias terras sem que acontecesse a venda destas, o que se
configuraria numa primeira forma de “exploração sem que haja
expropriação” (OLIVEIRA, 2004). Do mesmo modo, as ofertas
chegaram até mesmo a firmar algumas tentativas e efetivação de
compra de terras.
Dessa forma, foi observado o primeiro contato dos moradores
local com a empresa produtora do dendê Biovale através da tentativa de
compra das terras. O segundo contato da empresa foi através da
tentativa de parceria, onde o camponês iria produzir o dendê em sua
propriedade. E por último seria a oferta de emprego, onde houve a
tentativa de desarticulação das relações sociais de trabalho através da
inserção da lógica capitalista de assalariamento nas comunidades,
assalariando consequentemente uma pequena parcela dos moradores.

Bom, foi chamado pra inscrição, e a gente


mandou o currículo quando foi chamado, no ano
de 2011 e os nossos jovem que mandaram o
currículo, foi chamado pra fazer uma pesquisa,
chegaram lá apareceu um elemento lá dando um
prazo de não sei quantos tinha passado no teste,
aguardaram a chamada, muitos desistiram e não
foi chamado, aí, quando entrou, ele contratavam
alguns vigias e botou o nome de caseiro, até tem
alguns ainda empregado, na Vila Formosa acho
que dois, e não fomos contratados, na verdade
ela nos enganou. Eu conversei cara a cara com o
engenheiro geral de lá chamado Nel sei de que,
ele nos garantiu muito, conversamos com o
Osvaldo e nenhum desses nos deu a mão como
prometeu. E por outro lado eu fico pensando que
até foi bom porque pra eles não ser incentivados,

186
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

ou ta até doente porque muitos chamados pela


cidade adoeceram. (Domingo Nunes. Entrevista
realizada em 2015).

Ao que se refere à aproximação dos moradores com a Biovale,


em conversas, percebemos grande rejeição quando falamos em manter
relações com a empresa, seja em manter parceria, seja na venda da terra
ou o próprio assalariamento para a produção de dendê.
Compreendemos que a disputa territorial que se institui no Alto
Acará se impôs dentro de um conjunto de práticas acionadas pela
convergência de interesses capitalistas coalizados e agrupados, que se
definem a partir de agroestratégias57 visando à expansão da
monoprodução em larga escala e consequentemente o aquecimento do
mercado de terras na região, como se verifica no levantamento
elaborado pelo Repórter Brasil:

Investigações realizadas pelo Ministério Público


comprovam o contexto do conflito fundiário. No
âmbito do o inquérito civil nº 001/2012, da 8º
Promotoria de Justiça Agrária do Pará, aberto
para apurar as denúncias, verificou-se que existe
um acirramento da disputa por terras na região
por conta dos valores pagos pelas empresas
quando começaram a comprar terras para a
produção em larga escala de dendê. Os valores
indicados pelo Ministério Público são
expressivos: a) a fazenda Campo Alegre, com
1.500 hectares, foi vendida por Saulo de Sales
Figueira à Biopalma por R$ 1.500.000,00; b) a
fazenda São Jorge e fazenda Cachoeira, com
2.623 hectares, foram vendidas por Shigueo
Takahashi à Vale S/A por R$ 4.197.488,00; c) a
fazenda Paraíso, com 6.633,3701 hectares, foi
vendida por José Armando Mendes para a
Biopalma por R$ 8.291.250,00 (REPÓRTER

57
“Compreendem um conjunto de iniciativas para remover os obstáculos
jurídico-formais à expansão do cultivo de grãos e para incorporar novas
extensões de terras aos interesses industriais, numa quadra de elevação geral do
preço das commodities agrícolas e metálicas.” (ALMEIDA, 2009, p.102).

187
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

BRASIL apud CAVALCANTI et. al. 2015, p.


13).

Nesse sentido elucida Almeida e Marin (2010) ao se retratar aos


esquemas explicativos à intensificação dos conflitos e tensões sociais no
campo:
A primeira vertente considera que a elevação
geral dos preços das commodities agrícolas e
minerais, propiciando um ritmo forte de
crescimento dos agronegócios, tem provocado
um aumento da demanda por terras tanto para
fins de extração de minério de ferro, bauxita,
caulim e outro, quanto para a implementação de
grandes plantações homogêneas com fins
industriais (pinus, eucalipto, cana-de-açúcar, soja,
algodão, mamona, dendê). (ALMEIDA e
MARIN, 2010, p. 145).

À medida que a Biovale foi se territorializando no Alto Acará, a


sua presença se reflete de maneira ainda mais intensa nas comunidades
19 do Maçaranduba e Vila Formosa, uma vez que estas comunidades
vêm enfrentando uma disputa por território, fundamentalmente pela
posse da terra. Território este que se sobrepõe ao requerido pela
Biovale. Assim, constatamos em campo que a comunidade 19 do
Maçaranduba está cercada pelo dendê dentro do seu próprio território,
uma vez que o dendezal se encontra em frente às casas dos moradores,
na outra margem da rua. Este fato aconteceu devido à venda da
Fazenda Cachoeira para uma empresa de plantação de dendê chamada
Rio Negro, esta seria terceirizada da Biovale. Desse modo, na tentativa
reaver as suas terras, a Associação de Moradores e Agricultores
Remanescente Quilombolas do Alto Acará, entrou com uma ação na
justiça, dando entrada ao processo de reintegração de posse na vara
agrária de Castanhal/PA. Por conta desses problemas relacionados às
informações oferecidas pela empresa58, a justiça foi até a área para
realizar uma visita técnica.

58
Os documentos apresentados pelos advogados da empresa indicam que a
fazenda de propriedade da Biovale estaria localizada à 60km do território da
AMARQUALTA.
188
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

A visita técnica na comunidade 19 do Maçaranduba aconteceu


em 13 de março de 2013, por meio de técnicos da justiça,
representantes do Ministério Público, representantes da Biovale e na
presença de representantes dos quilombolas, além da presença da juíza
Cláudia Favacho. Todavia, a juíza decidiu que seria preciso os técnicos
realizarem novas medições para determinar se a fazenda comprada pela
Biovale estava realmente dentro do território quilombola.
Esta área ocupada pela Biovale no Alto Acará, conhecida como
Fazenda Cachoeira entrou em litígio 59, sendo apreciada na vara agrária
de Castanhal decorrente a solicitação da AMARQUALTA visando à
regularização do território como área de remanescente de quilombo. Os
quilombolas, por sua vez, afirmavam que parte das terras havia sido
invadida pela empresa, mas que essa não tem a documentação de
compra da Fazenda.
E foi por meio dessas novas visitas técnicas e medições, que foi
comprovado que a Biovale teria invadido o território da
AMARQUALTA, uma vez que os títulos de terras comprados pela
produtora do dendê estariam deslocados, e que os pontos de
localização da fazenda comprada não condizem quando comparados
aos pontos do território quilombola.
Após anos de trâmites legais visando à desapropriação da área
requerida pelos quilombolas, e tendo sido suspensa a continuação dos
trabalhos na produção da oleaginosa, apenas em fevereiro do ano de
2015 que novos rumos foram visualizados. Houve uma reunião com a
promotoria da justiça de Castanhal/PA a fim de buscar uma
possibilidade de solução conciliatória do conflito, e nela, foi novamente
comprovado que os títulos comprados pela Vale estão deslocados e não
se assentam na área em que esta empresa requer.
Levando em consideração que a Biovale já está instalada e
plantando dendê no território quilombola da AMARQUALTA,
Nazildo Brito nos conta que os danos causados às comunidades são
inumeráveis, pois além de todo o desmatamento e destruição da
floresta e da biodiversidade que ali existia, esta derrubada representa
para estas comunidades a perda do alimento, da caça, a perda dos
medicamentos por meio de árvores medicinais que ali existiam, a perda
59
Trata-se da questão judicial, do conflito de pretensões que será discutido entre
as partes na ação. É a disputa que será solucionada em juízo, a pendência que é
submetida ao juiz para ser examinada. (FERREIRA, 1999).
189
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

de frutas, peixes e a perda incontestável da terra de uso comum, das


suas práticas de extrativismo e afetando sua prática agrícola, e tudo isso
para ser usada no monopólio que vem sendo ditado pelo capital. A esse
respeito o estudo realizado por Cavalcanti et. al. (2015) que remonta as
experiências do Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos
Humanos (PPDDH) nas comunidades quilombolas do Alto Acará
relata:

Em documentação entregue para o PPDDH,


existem boletins de ocorrência que denunciam
supostas atividades irregulares da Biopalma na
área, como extração de madeira. Embora não
haja um discurso recorrente de possíveis ameaças
de funcionárias da empresa, ou mando dela, em
relação às lideranças da comunidade, o uso
indiscriminado na área, representa para a
comunidade uma ameaça direta ao seu direito
territorial e de subsistência. (CAVALCANTI et.
al. 2015, p. 14).

Além de todos os danos citados acima, e mesmo depois da


decisão da vara de justiça agrária sendo favorável aos quilombolas,
ouvimos de grande parte dos moradores do 19 do Maçaranduba que
ainda vem ocorrendo o despejo de produtos químicos do tipo
defensivos agrícolas como praguicidas, pesticida entre outros, para
controlar as pragas do dendezal.
Esses agrotóxicos destinados aos campos de dendê, com as
chuvas acabam escoando para os igarapés e rios contaminando a
principal fonte de água utilizada por grande parte dos moradores desta
comunidade, já que fomos informados que nenhum morador é
abastecido com água tratada. A este problema, seu Raimundo de Jesus
(morador do 19 do Maçaranduba, entrevistado em Maio de 2015) fala:
“O dendê ele tem uns adubos que contamina sabe? a água né, e da problema na
água, aqui que a gente utiliza mais a água do igarapé né, aí os dendê prejudica a
nossa área aqui olha, as nossas cabeceiras estão dentro do dendê”
Isto é um exemplo do que Zhouri&Laschefski (2010) definem
como conflito ambiental espacial, pois, ainda que a poluição do rio tenha
sido iniciada fora da comunidade, ou seja, em área de posse da Biovale,
os efeitos impactantes dos poluentes não se limitaram ao território da

190
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

empresa, ultrapassando-o e afetando às comunidades que dependem


dos igarapés para a sobrevivência, bem como podemos identificar o
que os autores definem por conflitos ambientais territoriais, característicos
de situações em que existe sobreposição de reivindicações de diversos
grupos sociais sobre o mesmo recorte espacial, a este último também se
caracteriza o conflito vivido no território da AMARQUALTA.
Além das reclamações com as águas contaminadas, se fez
bastante presente na fala dos moradores do 19 do Maçaranduba,
queixas do grande número de mosquitos e besouros após a chegada da
plantação da Biovale no território quilombola como ressalta a dona
Sebastiana de 58 anos “esses mosquitos eu creio que já é um grande
problema, antes não era assim, agora aumentou muito” (entrevista
realizada em Maio de 2015). Essas mudanças acabaram por trazer
alterações na organização de atividades diárias desses quilombolas.
Não muito diferente dos problemas identificados no 19, a
comunidade de Vila Formosa igualmente se insere neste contexto de
disputas.
A comunidade Vila Formosa, assim como no caso da 19 do
Maçaranduba, teve as suas terras invadidas pela empresa de plantação
de dendê. Neste caso, as fazendas vendidas para a Biovale foram às
fazendas Princesa e Campo Alegre, que supostamente ficaria na outra
margem do rio, em frente à margem ocupada pelas residências dos
moradores desta comunidade. Área esta que, antes da aquisição por
parte da empresa, se constituía enquanto floresta densa e não
potencialmente explorada.
Novamente teria acontecido um processo judicial (que não foi
nos informado quando), acarretando em outro estudo técnico a fim de
solucionar o conflito entre a Biovale e a AMARQUALTA, e neste, mais
uma vez foi comprovado que os títulos de terras comprados pela
empresa de plantação do dendê estariam deslocados de seu ponto,
visando driblar a demarcação legal. A cerda desta situação, seu
Domingos Nunes, primeiro presidente da AMARQUALTA, nos conta:

[...] tentaram mentir, enganar, porque as áreas que


eles botavam que era deles, era uma fazenda
legalizada na verdade, mas não existia no Acará,
existia em outro município (...)Então quando as
nossas autoridades chegaram, viriam a placa da
fazenda, e ia fazer a pesquisa, a fazenda era
191
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

legalizada mas em outro lugar, aí que nós


partimos pra justiça e graças a Deus tudo foi
concretizado eles passaram a ser devedor do
caráter né, quando trouxemos a juíza aí que
concretizou nosso Geo (Geoprocessamento), deu
favorável pra gente. E mesmo eles sabendo que a
gente já existia, eles pegaram e plantaram.
(Domingos Nunes, entrevista realizada em Maio
de 2015).

Com a venda concretizada desta fazenda, os moradores nos


contam que a Biovale colocou vigias e placas impedindo-os de se
aproximar de suas áreas para caçar, pescar e até mesmo entrar na área
dita da Biovale. Com essa proibição, muitos moradores da Vila
Formosa se diziam ofendidos, já que não poderiam mais se apropriar e
se integrar a um meio que sempre foi deles. O local que hora foi palco
da reprodução de suas vidas, agora tinha esses moradores como
invasores. Seu Domingos Nunes continua,

Eles colocavam aí em todo lugar, propriedade da


Biovale, proibido entrar, pescar e caçar, aí a gente
ia fazer o que, eles colocavam bandeira direto, se
a gente entrasse com um casco aí como de
costume fazer, os vigias chegavam, soltavam o
casco, a gente vivia amedrontado aqui.
(Domingos Nunes, entrevista realizada em Maio
de 2015).

Outro grande problema que os moradores de Vila Formosa vêm


enfrentando é a poluição de seus rios com agrotóxicos oriundos da
plantação de dendê que fica próximo as suas casas. Por esta
comunidade ser ribeirinha, esse problema se agrava mais ainda, haja vista
que o rio é utilizado para pescar, beber, tomar banho, cozinha, lavar
roupa e utilizado também na sua pequena agricultura. Nesse sentido,
Castro (1997) elucida:

Encontramos nos denominados ribeirinhos, na


Amazônia, uma referência, na linguagem, a
imagem de mata, rios, igarapés e lagos, definindo
lugares e tempos de suas vidas na relação com as

192
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

concepções que construíram sobre a natureza.


Destaca-se como elemento importante no quadro
de concepções, sua relação com a água. Os
sistemas classificatórios dessas populações fazem
prova do patrimônio cultural. O uso dos recursos
da floresta e dos cursos d’água estão, portanto,
presentes nos seus modos de vida, enquanto
dimensões fundamentais que atravessam as
gerações e fundam uma noção de território, seja
como patrimônio comum, seja como de uso
familiar ou individualizado pelo sistema de posse
ou pelo estatuto da propriedade privada.
(CASTRO, 1997, p. 226-227)

A partir de tal ponto, observamos que há uma enorme


contradição no que diz respeito às divulgações do dito
“desenvolvimento sustentável”, divulgado pelo Programa Nacional de
Produção do Biodiesel (PNPB).
Estaria assim a dita “fonte de energia limpa” durante o seu
processo de produção poluindo igarapés e rios com seus agrotóxicos e
fertilizantes, alterando profundamente o cotidiano que perpassa as
lógicas e hábitos ancestrais das comunidades estudadas que
tradicionalmente ocupam o território. A cerca disso, Zhouri e
Laschefski (2011) apontam que a noção do dito desenvolvimento
sustentável estaria sendo desviada do sentido pretendido pela luta dos
ambientalistas e “povos da floresta”, que emergem pós década de 80,
descartando as especificidades que gira em torno do modo de vida
desses grupos locais que necessitam da apropriação material a simbólica
da natureza.
Com relação à água, seu Raimundo Nunes de 52 anos que é
morador de Via Formosa diz:

A empresa (Biovale) veio quase pra acabar com a


gente, para nos destruir aqui. Os igarapés estão
morrendo aqui, os peixes e botos estão sumindo,
e quase todo mundo usa as águas dos igarapés
aqui (Entrevista realizada me Maio de 2015).

193
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Seu Paulo Nunes Também diz a respeito que:

(...) ta vindo pra dentro do nosso território é


onça, proliferando roedores, cobra, tá um
desequilíbrio, causando um impacto muito
grande pra gente, as pessoas que moram na
fronteira com o dendê estão sofrendo de
contaminaçãos até a morte de suas plantas
porque eles borrifam veneno e esses venenos
vem pra dentro das plantações e mata, é os
insetos aparecendo. Tem uma série de coisas que
ta impactando, a fome aumentou né e as pessoas
precisam sobreviver.

Assim, seu Raimundo Nunes e Paulo Nunes associam a


contaminação dos rios utilizados pela comunidade após a chegada da
Biovale. O que também ficou claro em sua fala, foi à preocupação que
os moradores têm com este recurso natural, já que ele – o rio - tem uma
importância vital para essa população.
As ações práticas desta população correspondem diretamente
com as experiências da sua relação com a natureza, e este processo de
conhecimento é trazido por gerações na forma de agir e representar o
seu território. A respeito de tal discussão, Castro (1998, p. 3) reitera
que:

Essa adaptação a um meio ecológico de alta


complexidade realiza-se graças aos saberes
acumulados sobre o território e às diferentes
formas pelas quais o trabalho é realizado. Suas
atividades apresentam-se complexas, pois
constituem formas múltiplas de relacionamento
com os recursos, e é justamente essa variedade de
práticas que assegura a reprodução do grupo,
possibilitando também uma construção da
cultura integrada à natureza e formas apropriadas
de manejo.

Dessa forma, constatamos através das entrevistas realizadas nas


comunidades estudadas, que os próprios quilombolas revelam grandes
impactos ambientais às águas de igarapés e rios, por estarem ligadas à

194
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

sua produção de alimentos e a sociabilidade, essas alterações percebidas


através da sua intima relação com a natureza, por anos vem se tornando
um tema de preocupação para as comunidades.
Entendemos que os conflitos e disputas travados entre a Biovale
e a AMARQUALTA, não acontecem nas mesmas condições para
ambos os sujeitos envolvidos. A monoprodução do dendê se engendra
através da dominação econômica que vem a legitimar o seu poder. Por
outro lado, notamos que essas comunidades passaram a se articular de
maneira bem mais organizada após a chegada do dendê em seu
território, e com isso vêm mostrando as suas potencialidades de reação
e resistência frente ao monopólio do capital, nas mais diversas maneiras
de se recriar enquanto grupo étnico pertencente a um território comum.

Considerações finais

Pudemos visualizar ao longo do trabalho que a chegada do


dendê através da empresa de agronegócio Biovale gerou intensos
conflitos na região. Conflitos esses que, em um primeiro momento, se
justificam pelas diferentes lógicas de uso e apropriação do território. Se
desencadeando desde meados de 2008, manifestou-se através da
tentativa de compra de terras, oferta de parceria para a plantação do
dendê e as tentativas de desarticular as relações de trabalho familiar
pelo assalariamento. Em um segundo momento, se manifesta pela
disputa direta de terras, essencialmente território, através de ocupações
ilegais de parte das terras das comunidades 19 de Maçaranduba e Vila
Formosa pela empresa e as proibições de uso e exploração dos recursos
naturais nas áreas invadidas pelo dendê. Outro ponto de intenso
conflito é no que diz respeito aos consequentes danos ambientais
sofridos na área, que segundo as falas dos próprios moradores, exercem
impactos negativos na produção de suas relações cotidianas,
diretamente relacionadas à natureza.
Entretanto, cabe aqui o esforço de mostrar que esses sujeitos da
pesquisa não se encontram passíveis a todas essas alterações impostas
por uma lógica exógena de produção, pelo contrário, eles buscam cada
vez mais informações e se organizam em diferentes bases de ações para
o enfrentamento. Os quilombolas do Alto Acará se reapropriaram de
suas referências históricas e conquistaram importante reconhecimento
de seus direitos, apesar de todas as dificuldades estruturais e de acesso

195
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

que as comunidades apresentam, existe o esforço de manter a unidade


de luta. E para além disso, existe a consciência de se apropriar da terra
para garantir sua existência e a das futuras gerações, através do trabalho,
esses sujeitos mantêm acesas suas práticas culturais e assumem a
autonomia de produção (FABRINI, 2007).
Outra bandeira de luta que se mantém viva é no que se refere à
titulação definitiva desse território, que se encontra desde 2013 em
processo de legalização, mas não apresenta sinais concretos de que a
máquina burocrática irá enfim fazer jus à constituição. Entendemos,
através de estudos, que muito disso se deve às próprias disputas por
terra que acontecem no interior do território. O aquecimento do
mercado de terras na região do Acará, em decorrência dos interesses
capitalistas vinculados aos interesses do Estado, podem sim se
constituir como um dos principais empecilhos.
O conflito no Alto Acará entre os quilombolas e a Biovale
parece estar longe de ser solucionado, apesar da atuação do Ministério
Público na tentativa de mitigar os enfrentamentos e fazer valer os
direitos das comunidades ao território, a luta permanece contra os
danos ambientais e pela titulação definitiva, bem como pela melhoria
estrutural das comunidades.
No segundo semestre de 2015, a luta ganha novos horizontes
quando os quilombolas do Alto Acará buscam a união de forças com os
indígenas Tembés (Turé-Mariquita), que se encontram em áreas
próximas geograficamente apesar de oficialmente se localizarem nos
limites do município de Tomé-Açu, e que vêm sofrendo igualmente
com a chegada do dendê no entorno dos seus territórios. Ainda que a
análise dessas relações não tenha perpassado pelos objetivos do
trabalho, em decorrência de estarem em plena fase de acontecimento,
apontamos que se constitui enquanto elo de resistência desses povos.
Assim, apesar de todo esforço dos agroestrategistas em tentar
sufocar a voz desses sujeitos, inferiorizá-los e atropelar seus direitos
territoriais e étnicos em nome de um modelo de produção pautado no
lucro, através deste trabalho ensejamos o olhar que esse processo de
dominação não se constitui de maneira fácil e/ou homogênea pelo
espaço pretendido pelo capital. Os povos tradicionalmente
territorializados da Amazônia carregam consigo, através da história, o
sangue das revoltas, da insubordinação, e da luta para conquistar a
liberdade de manifestarem seus modos de vida. Os cabanos que outrora

196
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

foram símbolos dessas lutas permanecem vivos através da resistência


desses sujeitos.

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199
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Memórias interioranas: campo e cidade através do Rádio


numa Comunidade Ribeirinha Amazônica

Cátia Oliveira Macedo 60


Antonio Maurício Dias da Costa 61

A divisão entre litoral e sertão sempre foi algo mais difícil de


aplicar à Amazônia, quando comparada a outras regiões do território
que viria historicamente a compor o Brasil 62. Os “litorais” amazônicos
se estendem nas orlas de rios caudalosos e de igarapés 63. Os “sertões”,
entrecortados por várzeas, se espalham por diferentes configurações de
relevo e de circuitos fluviais. Rios, furos e igarapés recortam toda a
região e são utilizados, até os dias de hoje, de forma regular, como
eficientes vias de transporte de pessoas, produtos e informações. No
campo específico da comunicação, as extensões amazônicas podem
tanto ser vistas, a partir da rede hidrográfica, como dotadas de vias de
ligação ou como cortada por obstáculos às redes de rodovias, telefonia
fixa e energia elétrica.
O rádio, por seu turno, tem sido um importante instrumento de
conexão entre diferentes núcleos populacionais amazônicos desde o
século XX até os dias de hoje. Mesmo em localidades sem energia
elétrica, desde o aparecimento do “radinho de pilha”, nos anos 1960, as
notícias, músicas e mensagens ecoadas pelo rádio ajudavam os
60
Professora Adjunta da Universidade do Estado do Pará-UEPA e Instituto de
Educação Federal do Pará-IFPA. E-mail: catiamacedo@yahoo.com
61
Professor do Programa de Pós-graduação De História Social da Amazônia -
PPHIST e Programa de pós-graduação em Sociologia e Antropologia –
PPGSA. E- mail: makosta@bol.com.br
62
Ao abordar uma reflexão proposta pelo historiador Sérgio Buarque de
Holanda, Rafael Chambouleyron (2010, p. 18-19) afirma que a dicotomia
sertão/litoral não é pertinente para compreender a experiência de ocupação
histórica na Amazônia a partir da colonização portuguesa. Para ele, estes não
constituíam universos distintos em termos sócio espaciais. Tratou-se o
empreendimento de colonização de um “universo projetado de distintas
formas sobre o imenso e heterogêneo território”.
63
Trindade Jr. (2005, p. 194-199) chama atenção para o fato de que a noção de
orla na Amazônia inclui as margens dos rios e igarapés, que cortam as cidades
e que servem como vias de transporte em trechos valorizados ou não do
ambiente urbanístico.
200
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

habitantes do interior da região a melhor avaliar sua relação com o


espaço regional. Em outras palavras, o rádio tornou mais fácil, para
essas populações, ampliar suas redes de troca, de comunicação e de
trilhas de movimentação entre o espaço dos povoados, vilas, cidades
pequenas, médias e grandes da Amazônia.
Tratamos, neste artigo, de uma localidade em particular, um
pequeno povoado conhecido como “Foz do Cravo”. A comunidade 64
ribeirinha foi formada a partir da ocupação da região em torno do
Médio Rio Guamá, ainda nos tempos coloniais, e está localizada na foz
do Igarapé Cravo, que corta a região entre os municípios de Bujaru e
Concórdia do Pará, e desemboca no Rio Bujaru 65. Sete famílias habitam
atualmente a localidade e vivem de atividades como pesca, do cultivo de
roças de mandioca, da criação de gado, coleta de frutas e comércio.

64
Empregamos a expressão comunidade num sentido basicamente descritivo e
como expressão “nativa”, usada correntemente por moradores de localidades
rurais amazônicas. Comunidade pode expressar, de forma descritiva, tanto a
proximidade das casas, a partilha da vida religiosa, quanto os laços de
parentesco que existem entre os moradores. Esses três aspectos se aplicam à
comunidade da Foz do Cravo.
65
O surgimento da Foz do Cravo remonta ao processo de ocupação das
margens do rio Bujaru, nos séculos XVIII e XIX, em particular da povoação
que originou a Freguesia de Sant`Anna, que teve papel fundamental na
formação dos povoados instalados às margens do rio. Segundo Castro (2003,
p. 74): “Os muitos igarapés que desembocam nesses rios integram-se a rede
hidrográfica e de ecossistemas ricos em biodiversidade, compostos de várzea e
terra firme. Serviram no passado como vias na ocupação a terras interiores,
levando a conformar lentamente, um campesinato com roças de mandioca,
milho, arroz além de uma diversidade de plantas comestíveis – frutas, raízes e
legumes – associadas a atividades extrativistas de drogas do sertão, madeira e
posteriormente a borracha”.
201
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Localização da Comunidade da Foz do Cravo, às margens do Rio Bujaru. Destacam-se os municípios


paraenses de Bujaru e Concórdia do Pará.

202
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Segundo Edna Castro (2003, p. 153), a comunidade de Foz do


Cravo mantém, ainda hoje, fortes vínculos com a Freguesia de Santana,
povoação mais antiga da região. Esses vínculos se assentam nas
“relações familiares, nas trocas econômicas, nas festividades e
manifestações religiosas que lhes garantem a unidade e a manutenção
de um sistema de sociabilidade”.
O foco do estudo são os relatos memorialísticos de alguns dos
moradores mais antigos da comunidade e tratam do uso do rádio como
um meio de intermediação entre o mundo rural e o urbano.
Entendemos estes relatos como produção condicionada à realidade
vivida no presente por estes sujeitos. Por isso, as referências
memorialísticas são aqui analisadas como representações, isto é, como
esboço mental, no qual se produz sentidos anunciados em discursos de
iniciativa individual, mas balizados socialmente (CHARTIER, 1990, p.
17).
Por conta disso, a produção da memória implica num tipo de
apropriação discursiva sobre o vivido, que acaba por interferir no
presente. A produção de sentidos sobre a experiência pretérita implica
num exercício de poder e sanciona a posição ocupada pelos sujeitos na
sociedade do presente.
E o tema predominante desses relatos-representações é o de que
o rádio intermediava o trânsito físico e comunicacional entre o campo e
a cidade. O campo, aliás, é normalmente sinônimo de “interior” nas
referências correntes de homens e mulheres da localidade consultados
na pesquisa para indicar seu lugar de origem.
Portanto, interior é uma categoria nativa, mas, ao mesmo tempo,
um termo de uso comum em Belém e em outras cidades de médio e
grande porte da Amazônia, para se referir aos espaços distantes da
urbanização. É um termo também usado nos meios de comunicação,
nos programas de emissoras locais de rádio, para se referir ao público
de todo o estado: a população da cidade e do interior. Cidade e interior,
na fala dos comunicadores de massa, tendem a ser apresentados como
antônimos, partes de uma totalidade que inclui as porções com maior
ou menor intervenção antrópica na região.

203
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

A Foz do Cravo entre o campo e a cidade

Como outras populações “interioranas” da mesorregião do


Nordeste do Pará, a população de Foz do Cravo também contribuiu
para o fluxo migratório de grande escala para a capital do estado entre
os anos 1950 e 1980. Em estudo realizado na comunidade do Cravo,
uma das vilas que compõem o conjunto de povoações ao longo do
igarapé homônimo, Macedo (2011, p. 1-29) destaca a trajetória social
dos camponeses dessa localidade marcada pela vivência entre o campo
e a cidade.
Constatou-se nesta pesquisa que as décadas de 1970 e 1980
foram marcadas pela saída em massa desses trabalhadores em direção à
cidade. Já a década de 1990 foi caracterizada pelo retorno de um
número expressivo dessas famílias. Isso se deveu às transformações
ocorridas no campo brasileiro no limiar do século XX, por conta da
melhoria de estradas, eletrificação rural, implantação da Educação
Básica, bem como do sistema de comunicação via telefonia rural.
Vislumbrou-se na pesquisa que o fluxo migratório se apresentou
na região muito mais como um movimento de ir e vir, estabelecendo
um contínuo de relações familiares, econômicas, de amizade e de
partilha de informações. Isso pode ser constatado pelo uso feito, na
localidade, das programações de rádio como um meio de
entretenimento, de troca de mensagens e informação sobre a vida
urbana.
Nossa análise segue o caminho inverso do que estipulavam os
célebres estudos de comunidade desenvolvidos por sociólogos e
antropólogos, brasileiros e estrangeiros, entre os anos 1950 e 1960 66
sobre o modo de vida tradicional da população rural. A comunidade
ribeirinha/interiorana de Foz do Cravo não se desintegrou com a
adoção de novos padrões de comportamento estipulados por novos
meios de comunicação como o rádio.
Ao contrário, as ondas radiofônicas foram uma das pontes por
onde se fez o trânsito e a comunicação entre campo e cidade. Esse
fluxo engendrou certas representações sobre os espaços, que se vão
construindo e reelaborando através do tempo. Daí que a aparente
66
Dentre várias referências neste campo, destacamos algumas a título de
exemplo: Willems; Mussolini (1952); Harris (1956); Wagley (1957); Willems
(1961); Mello e Souza (1964).
204
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

distância entre o modo de vida urbano e vida “típica” do interior se


desfaz ao verificarmos o interesse dos ribeirinhos da Foz do Cravo
pelos acontecimentos da capital, noticiados todos os dias em programas
policiais, humorísticos e musicais. Essas informações eram úteis tanto
para aqueles que seguiam na aventura de imigrar para a cidade como
para os parentes que ficavam no interior e queriam saber das “novas”
do dia a dia da capital. Serviam também para os que estavam
frequentemente no trânsito cidade-interior, e utilizavam programas de
rádio para enviar mensagens, como uma forma alternativa e altamente
eficaz de “correio”.
Pode-se assim questionar a tese de que o sucesso da migração
para as grandes cidades, por exemplo, se deveu à “falência de uma
sociedade rural em desintegração”67. Da mesma forma, a leitura do
campo centrada na expansão das relações capitalistas e do
assalariamento não é suficiente para explicar a totalidade das
transformações ocorridas no espaço rural contemporâneo. Pelo
contrário, estas metamorfoses têm demonstrado que tanto a cidade
quanto o campo apresentam novas dinâmicas sem, contudo, se
desagregarem. A evidência da (re)construção permanente de territórios
é demonstrada pela luta dos remanescentes de quilombos, dos sem
terra, dos atingidos por barragem e da inserção da pequena produção
na política dos agrocombustíveis.
Observamos ao longo da pesquisa que campo e cidade são
reconstruídos simbolicamente com sentidos diversos nas falas dos que
conheceram e participaram da experiência de migração e de trânsito
entre Belém e o interior entre os anos de 1960 e 1970. Sentidos
positivos e negativos, articulados tanto ao modo de vida “interiorano”
quanto às repercussões sobre a vida urbana, se revelam na memória de
ouvintes de programas de rádio de grande audiência no Pará do mesmo
período.
É o que pode ser observado nas evocações memorialísticas de
comerciantes, donas de casa e agricultores de Foz do Cravo,
entrevistados por nós em dezembro de 2011. As seis pessoas com
quem produzimos registros de história oral estão numa faixa etária
entre 50 e 80 anos. Deduz-se, com isso, que o período mais ativo de
67
Representativo desta perspectiva é o clássico estudo de Eunice Durham
(1978) sobre o fenômeno da migração rural em massa para São Paulo nas
décadas de 1960 e 1970.
205
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

registro memorial dos entrevistados se situa entre os anos de 1960 e


1980, por corresponder à fase entre a saída da infância e os primeiros
anos da idade adulta. Aliás, foram encontradas várias pistas nas falas
dos entrevistados que fazem referências às décadas assinaladas.

Rádio e memórias na foz de um igarapé

As memórias dos moradores da “Foz” destacam, em décadas


passadas, a forte movimentação do “porto”, local de
embarque/desembarque de pessoas e produtos na confluência entre rio
e igarapé68. Recordam também os programas preferidos ouvidos no
rádio e como era esse um elemento muito presente no cotidiano
familiar. Radionovelas, programas de notícias policiais, informes de
acontecimentos de vulto, dentre outros, apresentavam a cidade numa
relação de confluência com a população do interior 69.
O registro individual de imagens e acontecimentos relatados
pelos entrevistados está pautado na experiência coletiva dos ouvintes de
rádio da comunidade, que experimentavam periodicamente idas e
68
Ressaltamos, com base em estudo já citado (MACEDO, 2011), a importância
da Foz do Cravo para o transporte de pessoas e de mercadoria na região nos
anos de 1960 e 1970. É o que aponta a fala de Noé Eugênio Macedo, 76 anos,
agricultor aposentado e morador da Vila do Cravo: “A viagem até a Foz do
Cravo era difícil. Nós saía de madrugada com chuva e nesse era tudo mais
difícil. Quando o tempo tava ruim, a gente encontrava com árvore no meio do
igarapé, caia árvore. Aí a gente tinha que descer da canoa tirar a arvore do
meio do igarapé pra continuar. Era hora e hora trabalhando pesado pra canoa
poder passar. A gente viajava molhado durante muito tempo. Não sei como
não adoecia. Sempre tinha uma pinga e um porronquinha pra esquentar. E o
barco cheio de farinha. Quando o tempo tava muito ruim chegamo a perder a
mercadoria. No início do ano era chuva na ida e chuva na volta. Era cada
tempestade que a gente pensava que o mundo ia acabar. (...) Hoje a gente anda
de ônibus, pega o ônibus na porta de casa. Se um mais novo precisar fazer
uma viagem de barco, eles não sabe fazer. A gente sabia tudo, a gente tinha os
momento de descontração, a gente tinha as nossa brincadeira, os mais jovens
até namorava” (Entrevista realizada na Comunidade do Cravo em fevereiro de
2010).
69
Isto vai além do argumento de autores como Rocha (2007, p. 44) e Tinhorão
(1981, p. 73), que afirmam ter sido o rádio, nos anos 1940 e 1950, veiculador
do fascínio das populações interioranas do Brasil pelas “maravilhas” dos
grandes centros urbanos.
206
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

vindas da capital. Trata-se de uma memória individual e, ao mesmo


tempo, informada pelo que foi vivido com os outros e pelo ouvir dizer.
Mais do que isto, memória construída na interação coletiva e
equacionada pela relação com o espaço. É o que propõe Halbwachs
(2006, p. 73-74), ao afirmar que nossas impressões sobre os
acontecimentos são por nós inscritas “no ambiente natural que nos
circunda”. Memórias apoiadas em evidências espaciais de igarapés, rios,
caminhos, vilas e cidades estão presentes nas falas dos entrevistados. A
memória dos programas veiculados pelas ondas do rádio tem o pano de
fundo espacial, vivenciado pelos sujeitos no ambiente familiar, nas
atividades de trabalho, nas viagens, na alternância entre ambientes
urbanos e rurais.
A peculiaridade da evocação memorialística dos moradores da
Foz deve-se, certamente às condições locais de convivência coletiva no
passado e no presente. Esse processo, no entanto, deve ser entendido
como a extração de registros individuais, particulares, do que foi
experimentado e partilhado coletivamente. Os entrevistados falam por
si. Concordamos com Portelli (2006, p. 127), para quem “a memória só
se materializa nas reminiscências e nos discursos individuais”.
Por isso é que, de acordo com o perfil atual das populações
regionais, a configuração de sua memória coletiva em torno dos meios
de comunicação na Amazônia ocorre de formas diferentes em
diferentes contextos. Os idosos de Foz do Cravo recordam uma
realidade anterior bastante diversa da atual, em que as estradas
desempenham cada vez mais o papel exercido pelos rios. Suas
memórias se articulam de forma imperfeita, expressando algumas
diferenças entre versões coletivas e individuais. Assim é que as
memórias individuais se casam ao acervo coletivo e acompanham as
transformações socioeconômicas vividas na comunidade nas últimas
décadas.
Ao longo desse período, ocorreu um evidente crescimento e
maior dinamismo econômico em localidades adjacentes ou situadas à
margem da rodovia mais próxima, a PA 140, aberta nos anos 1970, mas
só asfaltada na década de 1990. É o caso da Comunidade do Cravo, que
gradualmente se tornou o polo de convergência, com relação às
comunidades vizinhas. A intensificação do uso do transporte terrestre
provocou uma centralização de atividades (lazer, religiosas e
econômicas) na vila, tornada importante ponto de ligação das vilas

207
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

rurais com a estrada e as cidades mais próximas (MACEDO, 2011). Em


contrapartida, a Foz, nos dias de hoje, é lugar de pouco movimento de
viajantes e mercadorias. Aliás, a comunidade é composta por pequeno
número de famílias, vinculadas à localidade por laços de parentesco e
por atividades econômicas de pequena escala.
Tal condição, no entanto, não sugere desagregação social ou
decadência econômica. Temos, na verdade, uma comunidade
“envelhecida”, mas que hoje desempenha um papel complementar, em
termos socioespaciais, a fazendas, a outras comunidades rurais mais
povoadas e ao grande projeto de produção de biodiesel, a partir do óleo
de dendê da empresa Biovale70.
Com o início das atividades da Biovale no município de
Concórdia do Pará em 2008, Foz do Cravo, assim como as demais
comunidades adjacentes, tornaram-se área de pretensão da empresa,
quer seja, pela potencialidade de mão de obra, de terras passíveis de
negociação ou pela possibilidade de inserção de pequenas propriedades
na cadeia produtiva do agro combustível. Com a iniciativa da Biovale
de construir aproximadamente 20 km de uma estrada vicinal, ligando
Foz do Cravo à PA-140, a comunidade reorientou o transporte de
pessoas e mercadorias para a rodovia. Mudava, assim, um padrão de
dependência quase exclusiva dos rios, que se manteve até fins do século
XX. O recém-aberto ramal, como é conhecido esse tipo de estrada
vicinal na região, serviria para garantir, principalmente, o trânsito de
ônibus e caminhões, veículos utilizados no deslocamento de
empregados na empresa moradores da área.
Tanto em termos espaciais como socioeconômicos, a
comunidade de Foz do Cravo exerce hoje um papel intermediário entre
a vida ribeirinha e os assentamentos ligados ao eixo rodoviário da
região. Isso certamente intensificou ainda mais as trocas e a
comunicação com a vida urbana pelos moradores da comunidade.
Ocorrência de longa data, desde o acesso o acesso às ondas do rádio.
Na memória dos entrevistados, podemos recuar a referências até, pelo
menos, a década de 1950.
Maria Francisca Santana Albuquerque, de 78 anos, uma das
moradoras mais idosas da comunidade, lembra-se de ouvir radionovelas
nos anos 1950. Segundo ela, a audiência de radionovelas era
70
Consórcio das empresas Vale S.A. e Biopalma. Dedica-se, no estado do Pará,
à atividade produtiva em torno da cadeia do biodiesel.
208
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

basicamente feminina. Maria Francisca sempre se juntava à filha para


acompanhar os novos episódios. Já o marido dava importância aos
noticiários. De todo modo, a propagação sonora dos programas
alcançava a todos na casa.
Uma forte lembrança de Maria Francisca é a da notícia, ouvida
pelo rádio, do naufrágio de dois barcos que navegavam em direção à
Foz do Cravo. O fato não é lembrado com precisão de data (durante a
década de 1980), mas a tristeza do acontecimento é ainda hoje presente,
ressaltada por ter o fato ganhado grande repercussão no rádio. O
naufrágio resultou na morte de 20 pessoas, diz a entrevistada, muitas
delas naturais da Foz.
O noticiário do rádio, nesse episódio, ganhou uma importância
auto evidente para os moradores da Foz, ao relatar um acontecimento
que lhes dizia respeito diretamente. Mas num sentido geral, o critério de
valorização do conteúdo da programação de rádio, quando em relação
com a vida interiorana, pode ser constatado pelo que permaneceu
relevante na memória dos entrevistados quanto à experiência
radiofônica.
As radionovelas foram, em geral, mencionadas com destaque
pelas mulheres entrevistadas. Principalmente, foram destacadas
pequenas brigas familiares com irmãos e maridos quando eles
atrapalhavam os momentos de “ouvir a novela”. No mais, os demais
programas mencionados não foram indicados com audiência específica
de gênero ou idade.
O acesso ao rádio de pilha, nos anos 1960, tornou mais versátil
as formas de ouvir rádio em Foz do Cravo: dentro ou fora de casa, no
rio ou nos caminhos pelo mato. Filho de Maria Francisca, Antonio
Paulino Santana Albuquerque, comerciante de 50 anos, tinha
preferência por dois programas ouvidos desde a infância: “A Patrulha
da Cidade” e o “Alô Alô Interior”. Esses dois programas, veiculados
pelas mais importantes emissoras paraenses dos anos 1960 e 1970,
Rádio Marajoara e Rádio Clube do Pará, são os campeões nas
lembranças e nas preferências dos moradores de Foz do Cravo. As duas
atrações se completavam ao apresentar um quadro amplo de
informações sobre o cotidiano da capital e das localidades interioranas
do estado.
“A Patrulha da Cidade” foi um noticiário policial criado pela
Rádio Marajoara em 1965. O programa foi copiado de uma atração da

209
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Rádio Tupi do Rio de Janeiro e assumiu no Pará o mesmo formato, já


que as duas emissoras pertenciam à rede Diários Associados,
propriedade de Assis Chateaubriand. A Rádio Marajoara foi fundada
em Belém em 1954 por Chateaubriand, como uma extensão de seus
empreendimentos de comunicação na região, que no Pará já contava
com o jornal “A Província do Pará”, refundado pela rede em 1947,
após 21 anos de inatividade (VIEIRA; GONÇALVES, 2003, p. 131-
134).
O perfil dramático do programa era destacado pelos quadros “As
notícias do Pronto-Socorro” e “Os Dramas da Cidade”, que
apresentava a agenda diária de problemas típicos de uma cidade grande
marcada por agudas desigualdades socioeconômicas. Neste último
quadro, em particular, os “dramas da cidade” eram encenados por
atores do radioteatro da Marajoara, coisa bastante familiar para os
ouvintes da Foz. Por seu turno, os relatos de crimes e de
procedimentos policiais eram apresentados com forte dose de
improviso pelos locutores, outro fator responsável pelo sucesso da
atração, comprovado pelo grande número de cartas recebidas por sua
produção (VIEIRA; GONÇALVES, 2003). A atração funcionava,
portanto, como um noticiário urbano, apresentando os acontecimentos
dramáticos do dia-a-dia da população de Belém.
Já o programa “Alô Alô Interior”, apresentado na Rádio
Guajará, nos anos 1960, se inseria numa linha de atrações voltadas
preferencialmente para o público interiorano (“da capital e do
interior”). Programas como “O Regatão Vem Aí” e o “Mensageiro para
o Interior”, criados e transmitidos pela Rádio Clube do Pará desde os
anos 1950, destacavam aspectos socioculturais (costumes, modo de
falar, cenários rurais, música) e informações sobre a vida dos moradores
do interior do estado. Tratava-se, portanto, de um filão de programação
radiofônica consagrado entre o público local desde meados do século
XX.
A Rádio Clube, como foi indicado, havia sido a pioneira nesse
tipo de atração. A emissora de prefixo PRC-5 foi a primeira estação de
rádio criada na Amazônia, no formato de emissora de associados,
sustentada pelo pagamento de mensalidades dos sócios, prática corrente
à época.
Os fundadores da emissora mantinham laços importantes com a
elite política local, como era o caso do bacharel em Direito e

210
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

radioamador Roberto Camelier, do ex-governador do estado Dionísio


Ausier Bentes, sócio fundador da emissora; do telegrafista Eriberto Pio
e do jornalista Edgar Proença, que ingressou na sociedade logo após
sua criação71.
A emissora foi presenteada em 1937, pela prefeitura municipal,
com um terreno no Bairro do Jurunas, numa localidade não urbanizada
e de difícil acesso. No terreno concedido foi erguida a chamada “Aldeia
do Rádio”, onde foram instalados os transmissores e um estúdio para
produção de programas. O complexo foi inaugurado em 1939 e
permitiu a realização de radionovelas e apresentações musicais ao vivo
com artistas locais.
Em 1954, a PRC-5 inaugurou, com outra doação de terreno
público, sua nova sede no edifício Palácio do Rádio, erguido na
Avenida Quinze de Agosto, centro da cidade. Os donos da emissora
transferiram a construção do imóvel para um empresário local que, em
troca, cedeu todo o segundo andar (de um prédio de quinze andares) à
Clube72.
Segundo Vieira & Gonçalves, o transmissor de ondas tropicais
de 5killowatts da Rádio Clube passou a operar em 1942, alcançando
trechos mais distantes do interior do Pará e de outros estados da
Amazônia. Programas direcionados ao público interiorano como o
“Mensageiro para o Interior” tornou mais dinâmica a comunicação
entre moradores de municípios distantes entre si. Esse tipo de atração
não tinha horário fixo nos anos 1940 e 1950, mas eram programas
esperados pelos ouvintes durante todo o dia na expectativa de receber e
repassar mensagens. Assim, as emissões de mensagens funcionavam
como uma espécie de correio radiofônico. Além disso, as mensagens
eram pagas pelos remetentes nas emissoras, segundo o critério de
cobrança de telegramas: o preço da mensagem correspondia ao número
de palavras enviadas (VIEIRA; GONÇALVES, 2003, p. 55).
O jornalista Paulo Roberto Ferreira destaca também a existência,
em outros estados da Amazônia e territórios federais, de programas
informativos e de envio de mensagens para o interior no mesmo

71
Sobre a trajetória dos fundadores da Rádio Clube do Pará ver Oliveira (2011).
Consultar especialmente o Capítulo 1 “Uma proto-história do rádio na
Amazônia, 1923-1929”, p. 18-85.
72
Ver site “O Pará nas Ondas do Rádio”. Disponível em
www.oparanasondasdoradio.ufpa.br. Acesso em: 05 mai. 2010.
211
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

período. Em seu artigo são mencionados particularmente dois


programas: “Avisos para o Interior”, de 1945, da Rádio Baré, do
Amazonas, voltado para a emissão de mensagens para comunidades
ribeirinhas; e o programa “Mensageiros no Ar”, da Rádio Roraima, de
1957, que promovia a comunicação entre a cidade de Boa Vista e as
áreas de garimpo espalhadas pelo interior (FERREIRA, 2012).
Mas voltemos ao programa “Alô, Alô Interior”, veiculado pela
Rádio Guajará a partir de 1962. A emissora fora fundada 1958, mas só
iniciou suas atividades em 1960, por conta das posições políticas do
prefeito de Belém e proprietário da emissora, Lopo de Castro,
contrárias ao partido do poder no governo federal, o PSD, de Juscelino
Kubitschek (LEAL, 2010, p. 78). O lançamento de “Alô, Alô Interior”,
com o locutor Almir Silva – radialista já famoso no rádio maranhense e
conhecido pelo público paraense – pretendia garantir algum espaço à
nova emissora entre as mais antigas – Clube e Marajoara (FERREIRA,
2012).
O sucesso do programa resultou, no entanto, na transferência de
Almir Silva para a Marajoara em 1970, junto com o seu “Alô, Alô
Interior”. O sucesso da atração estava baseado na irreverência do
apresentador, que repetia o nome do programa como um chamado pela
atenção do público, o que se tornou uma marca do radialista e da
memória sobre ele em Belém até os dias de hoje. A repetição da frase
“alôralôrinterior”, dita assim sem separação entre as palavras, era
sempre seguida da mensagem, já paga pelo remetente, que era
transmitida duas vezes. Logo após, o locutor fazia algum comentário
irreverente sobre a mensagem, geralmente em torno de elementos da
vida interiorana ou de um sentido alternativo e chistoso aventado pelo
radialista (LEAL, 2010, p. 90).
A marca satírica do programa contribuiu para o sucesso de
público, mas também atrapalhou a carreira do radialista. Foi o que
ocorreu quando, ao ler uma mensagem enviada ao programa, –
“Estamos chegando hoje a Belém. Milico passando mal” – Almir
comentou, jocosamente, ser aquela a primeira vez em que ouvia sobre
“milico passar mal” (LEAL, 2010, p. 90), (BANDEIRA, 2012). O fato
se deu em plena ditadura militar. Por isso, ao deixar a emissora, o
radialista foi preso.
As complicações de Almir Silva com o regime da época, no
entanto, não se limitavam a casos de irreverência como este. Ferreira

212
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

destaca a preocupação dos militares paraenses da época de que o


programa pudesse ser usado para o envio de mensagens cifradas para
guerrilheiros comunistas, supostamente embrenhados pelas matas
amazônicas (FERREIRA, 2012). A suspeita pouco plausível, não era de
todo despropositada no contexto da época, pois a Guerrilha do
Araguaia, do início dos anos 1970, era tomada pelos militares brasileiros
como um exemplo contundente da “conspiração interna comunista”,
presumidamente entranhada na Amazônia.
Mas o real interessado nas mensagens, o público das cidades,
vilas e localidades do interior do estado, estava atento ao conteúdo dos
anúncios e ao pedido no final da locução: “Quem escutar essa
mensagem, favor transmiti-la ao destinatário” (BANDEIRA, 2012).
Esse movimento de mensagens pelas ondas do rádio acompanhava o
fluxo de pessoas entre o campo e a cidade e compunha um conjunto de
informação e entretenimento em que os ouvintes do interior eram os
personagens principais. Daí porque na memória dos antigos ouvintes
de rádio em Foz do Cravo, permanece forte até hoje a lembrança de
velhos programas como “O Regatão Vem Aí” e “Calendário Social”, da
Rádio Clube. Este, por exemplo, felicitava os aniversariantes que
moravam no interior com mensagens pagas por parentes e amigos.
O lucrativo negócio de correio radiofônico das emissoras de
Belém se encaixava nos interesses e necessidades de comunicação do
público espalhado pelo estado. Notícias, entretenimento e mensagens
compunham um tripé através do qual transitavam representações sobre
a cidade e o interior. A cidade dos “dramas” veiculados pela “Patrulha
da Cidade” podia não ser exatamente a mesma que o agricultor João
Costa, de 52 anos, nascido na Foz do Cravo, conheceu na adolescência
quando morou em Belém. Mas depois de retornar a seu lugar de
origem, após o casamento e o nascimento dos filhos, João Costa, talvez
ainda tendo em mente os “dramas” urbanos que o rádio ajudou a
divulgar, considera mais difícil criar um filho na cidade.
O interior, emblema generalizante da diversidade de núcleos
populacionais amazônicos, estava sempre indicado nas mensagens e na
memória dos entrevistados, como o mundo dos rios, dos ribeirinhos e
do trabalho agrícola. Cidade e interior estavam na grade de
programação de rádio, nas notícias e nas mensagens. O trânsito
comunicativo entre as duas referências socioespaciais era expresso de
forma cabal nos usos que os ouvintes faziam desse veículo.

213
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Exemplo disso é a história do nascimento de um dos filhos de


Maria da Paz Oliveira, hoje com 57 anos, moradora de Foz do Cravo.
Na viagem a Belém para a realização do parto, nos anos 1970, o marido
deixou com ela o dinheiro para o anúncio do nascimento do filho, no
programa “Alô, Alô Interior”, após o que retornou para a casa no
interior. Assim, seria possível saber a data do nascimento do filho e a
hora do retorno da esposa para casa.
O rádio era também usado, diz Valdomiro Borges de Oliveira, de
62 anos, agricultor e morador na comunidade, como despertador para
que as famílias se levantassem para o dia de trabalho. Segundo
Valdomiro, “o rádio arrebanhava o povo do interior”. Quer dizer, a
preferência por certos programas, inclusive por aqueles que marcariam
o início das atividades diárias, tinha um efeito realmente importante na
organização das atividades coletivas. Ou seja, os programas poderiam
marcar o momento de ir à roça, de ir pescar, de estar junto em família,
de ficar só num tempo de descanso. Maria Luzia Albuquerque, dona de
casa de 52 anos, lembra de sempre ouvir, na adolescência, um programa
musical à tarde no rádio do pai, que ficava pregado à parede da sala.
Hábitos individuais estão, nesse caso, integrados a práticas
coletivas construídas pelos moradores de Foz em torno do interesse
por notícias, novelas, programas musicais, humorísticos e de
transmissão de mensagens, todos veiculados pelo meio radiofônico.

Memórias como representações espaciais

Observamos, a partir da memória dos entrevistados, que o rádio


foi utilizado por eles como um meio de estabelecer conexões, no
trânsito de informações e na produção de representações sobre o
campo e a cidade. Não se trata aqui de avaliar o que houve de positivo
ou de negativo na introdução do rádio na comunidade. A presença e a
intensificação dos meios de comunicação nas fronteiras da sociedade
nacional foram e são fenômenos inelutáveis e sua inserção contribuiu
para redimensionar as percepções nativas sobre o fluxo e a
configuração do espaço regional. Ao mesmo tempo, usos, significados e
adaptações atribuídas pelos ouvintes a esses meios, nas realidades
“interioranas”, promoveram reorientações de mecanismos
supostamente impessoais da indústria cultural.

214
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

O mais importante neste texto é compreendermos as nuances


sociológicas e históricas dessas percepções presentes na experiência dos
ribeirinhos de Foz do Cravo, como realidade “microscópica” que tem
muito a dizer sobre as diversas realidades socioespaciais da região.
Assim como na Foz do Cravo, outras comunidades espalhadas pelos
“sertões” e “litorais” amazônicos certamente utilizaram o rádio como
uma forma de superar as distâncias e os obstáculos naturais através das
trocas comunicativas.
O filtro da memória dos entrevistados destaca o que era e é
significativo para os moradores da comunidade em relação ao hábito de
ouvir rádio. As representações espaciais construídas historicamente na
troca comunicativa por meio das ondas radiofônicas são, até hoje,
relevantes e atuantes na compreensão da organização espacial da região
em que se insere a comunidade.
A localidade da Foz do Cravo está hoje inserida numa região
marcada pela presença da rodovia como polo de atração da atividade
produtiva e pela influência de empreendimentos agrícolas de grande
porte, ancorados na grande propriedade. Os moradores vivem hoje ali
na era da televisão digital, do telefone celular e da internet. E
certamente conta, para o uso desses novos media, o aprendizado
histórico e coletivo do emprego do rádio como instrumento moldado
para a manutenção do modo de vida local. As memórias interioranas
aqui focalizadas demonstram como os conteúdos dos meios de
comunicação se difundem sempre em função das realidades sociais
específicas e de sua relação com contextos mais amplos.

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

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217
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Paisagem e relação campo-cidade em assentamentos de


reforma agrária na Amazônia: o caso de Palmares II,
Parauapebas/PA

Arthur Erik Monteiro Costa de Brito73


Fabiano de Oliveira Bringel74

Introdução

As relações entre campo e cidade podem ser analisadas de


diferentes formas, como uma dicotomia, onde cidade e campo possuem
funcionalidades e conteúdos diferentes que se complementam, pode ser
vista pelo viés de critérios políticos administrativos, em que o urbano se
sobrepõe ao agrário ao ponto de que tudo o que não é cidade é campo,
também pode ser entendida como uma relação híbrida de interações, na
qual o conceito de periurbano se destaca, caracterizado por zonas de
transição entre o urbano e o agrário em que se mesclam atividades dos
dois espaço, dentre outras formas (ALVES, et al. 2013b; ALVES, 2012;
ALENTEJANO, 2003).
Para nós, a relação campo-cidade no começo do século XXI se
torna cada vez mais indissociável, complexa, e em vista disso pode
produzir paisagens igualmente difíceis de se interpretar. Pensando esta
relação a partir de um processo de união dialética, concordamos com
Oliveira (2013) na afirmação de que atualmente a separação entre estes
espaços é cada vez mais tênue e sua união mais perceptível, percebe-se
que o entendimento do que é o espaço agrário inevitavelmente passa
pelo estudo também do urbano.
Na Amazônia, um fator que potencializa a fricção entre campo e
cidade são as consequências dos chamados grandes projetos, estes
provocam a criação e expansão de aglomerados urbanos devido
principalmente à intensa migração de mão-de-obra que ocupa

73
Graduado em Geografia Pela Universidade do Estado do Pará. Mestrando
pelo Programa de Pós- Graduação em Agriculturas Familiares e
Desenvolvimento Sustentável da Universidade Federal do Pará. E-mail:
arthur-182@hotmail.com
74
Professor Assistente de Geografia do Centro de Ciências Sociais e Educação
da Universidade do Estado do Pará. E-mail: fabianobringel@gmail.com
218
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

desordenadamente as periferias das company towns (cidades-empresa),


por vezes dando origem a novos bairros periféricos.
Desse modo, no sudeste paraense, percebe-se a expansão da
cidade de Parauapebas (sede municipal) na direção de um assentamento
estruturado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
chamado Palmares II, o que faz alguns dos assentados que foram
entrevistados por nós como, Paracuri 75, afirmarem que “vai imendar”.
Neste contexto, a pergunta de Wagner e Assis é bem pertinente ao
nosso estudo, “o que acontece em uma região com fortes características
de fronteira agrícolas onde as cidades estão em expansão?” (WAGNER
e ASSIS, 2014, p. 76).
Sabendo disso, a problemática de nosso trabalho surge a partir
de idas à campo, onde notamos na entrada do assentamento de reforma
agrária Palmares II uma placa com a legenda “perímetro urbano”, o que
nos chamou atenção para a mistura de características urbanas e rurais
contidas na paisagem do mesmo.
Isso exposto, surge o problema central deste trabalho, que gira
em torno do conceito de paisagem: o que revelaria (ou não) a paisagem
do assentamento nesta zona de interface campo-cidade?
Desse modo, o objetivo neste trabalho vai na direção de:
 Compreender quais impactos estas relações entre campo e
cidade podem provocar na paisagem do assentamento e qual
consequência estas modificações (se houverem) podem acarretar
no campesinato local.
Este trabalho possui relevância pois pode vir a ser uma forma de
desmitificar alguns estereótipos direcionados a espaços e grupos
camponeses que por viverem em zonas de forte contato entre campo-
cidade, são de forma equivocada desqualificados de seu trabalho e
vínculo com a terra, como veremos no decorrer deste estudo.
Como metodologia foram feitas pesquisas bibliográficas em
livros, artigos, congressos e revistas científicas sobre relações campo-
cidade, paisagem e campesinato. Importância também tiveram os
trabalhos de campo realizados nos anos de 2014 e 2015 pois nos deram
base para a aliança entre o teórico e o empírico.
No lócus do trabalho, tanto em 2014 quanto em 2015 foram
tiradas fotografias de pontos que consideramos importantes por
75
Usaremos pseudônimos de nomes de rios da Amazônia na identificação dos
entrevistados por alguns pedirem anonimato.
219
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

explicitarem o que tentaremos durante toda a pesquisa afirmar.


Utilizou-se também um gravador de áudio para conversas nas quais os
entrevistados não tinham problema em ter sua voz gravada, assim
como também não se fez necessário em conversas informais, que
apesar de sua grande relevância se mostraria inconveniente ao
momento.

Relações campo-cidade na formação histórico-geográfica do


assentamento

O discorrer histórico-geográfico do sudeste paraense se forjou


principalmente em meio a constantes conflitos, ora pela terra, ora pelo
controle das vias de comunicação entre elas. Hoje, uma das áreas mais
conflituosas do Brasil, possui uma extensa heterogeneidade de agentes
que se modificaram durante o tempo, transformando suas formas de
dominação ou de resistência, conforme as novas situações.
Seu destaque inicial como uma área estratégica e de grande
importância econômica se deu ligada a fatores físicos (ALMEIDA,
2006), a variedade de árvores de Caucho76 descoberta por expedições ao
sudeste paraense no começo do Século XX, chama a atenção em um
período no qual a economia brasileira estava extremamente ligada à
exportação de matérias primas. Porém, a Amazônia já estava em época
próxima ao declínio do que se conveniou chamar de auge da borracha,
a explicação disto está ligada ao crescimento da produção de látex no
sul e sudeste asiático, o que tornou não-duradouro o período de
extração do Caucho no sudeste paraense (VALVERDE, 1989).
A chegada da Vale do Rio Doce na área também provocou uma
reestruturação significativa nas relações que aos poucos iam diminuindo
o poder de uma oligarquia já em decadência, esta, tendo que “dividir”
assimetricamente sua antiga hegemonia (EMMI, 1987). Em Fevereiro
de 1985, com a inauguração da Estrada de Ferro Carajás, Marabá já era
área de proteção nacional e as relações de poder no sudeste paraense já
se davam claramente numa escala nacional e internacional, observando

76
Assim como a Espécie Brasiliensis (seringueira que fornece um látex de ótima
qualidade), a arvore de Caucho também é uma fonte de extração de Látex,
porém é necessária a destruição desta ultima para que a extração seja feita, o
que demanda a constante movimentação dos trabalhadores em busca de outras
árvores (EMMI, 1987).
220
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

que agora a matéria prima que mais se destacava não era o Caucho ou a
Castanha (principal renda do sudeste paraense em meados do século
XX), mas sim o minério.
Parauapebas foi claramente criada sob os interesses da até então
estatal Vale do Rio Doce, que possuía o objetivo inicial de radicar ali
microempresas de apoio a Carajás, criando uma considerável
infraestrutura, com luz, esgoto, escola, hospital, água tratada, etc.
(VALVERDE, 1989).
Nesta mesma década de oitenta, a aliança entre trabalhadores
rurais sem terra, posseiros, meeiros, rendeiros e parceiros, firmou o
surgimento e a formação de movimentos sociais rurais por todo o
Brasil, sobretudo com a forte territorialização do MST que intensificou
o processo de re-criação do campesinato (PEDON, 2009).
No inicio da década de noventa, em meio a uma reestruturação
das relações de poder e a intensos deslocamentos de pessoas para o
sudeste paraense, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra) estrategicamente surge como um movimento socioterritorial em
contraponto ao agronegócio e ao latifúndio da área. Sua força se
materializa primeiramente em um assentamento chamado Ingá,
localizado em Conceição do Araguaia, posteriormente, em 1994, no
assentamento Palmares II, no município de Parauapebas.
Rio Branco era a fazenda da qual se originaram três
assentamentos, o de mesmo nome da fazenda (primeiro
cronologicamente), o Palmares I (palmares sul) e o Palmares II,
comumente chamado só de Palmares.
Neste ultimo, a relação campo-cidade se mostra de extrema
importância desde a gênese do assentamento como nos conta
Amazonas, um dos mais antigos líderes do MST nessa área, em
entrevista realizada em janeiro de 2015: “queremos uma terra para
agricultura, mas próximo da situação maneira para o pobre, não
queremos difícil... por que fizemos aqui? Por que é próximo da cidade”.
A área então, foi geo-estratégicamente escolhida como afirma
Solimões:

O movimento dificilmente vai ocupar uma área


isolada lá distante da cidade, lá nos “cafundó do
Judas”, sabe por quê? Por que ele vai isolar seu
povo, tem que trabalhar uma área perto da cidade
aonde facilite a escoação da produção, além de
221
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

escoar, ter onde vender essa produção (Solimões,


trab. de campo, 2015).

A estratégia locacional do assentamento de que fala Solimões é


demonstrada no mapa a seguir, Palmares está próximo às fronteiras
tanto de Marabá, quanto de Curionópolis, porém a proximidade da
sede municipal e consequentemente do núcleo urbano de Parauapebas
é a mais explícita.

222
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Mapa 1: Localização do assentamento de reforma agrária Palmares II, situado por volta de 20 Km. de
distância da sede municipal e do núcleo urbano de Parauapebas.

223
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Todas essas afirmações, em conjunto com o mapa acima exposto,


comprovam uma ação política no sudeste paraense por parte do MST
com leituras que vão ao caminho de uma aproximação da cidade
(BRINGEL, 2006). Estas ações implicam em modificações nas
paisagens e dinâmica dos assentamentos, sobretudo quando é adotada a
divisão espacial Agrovila-Loteamento Agrícola, pois percebe-se a forte
influência de características urbanas na estética paisagística da agrovila.

A paisagem no assentamento – aparência e essência

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago


Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro
lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram
aquelas alturas de areia, depois de muito
caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E
224
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor,


que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo,
gaguejando, pediu ao pai: — Me ajuda a olhar!
(GALEANO, 2002, p. 12).

Interpretando Galeano (2002) e sua metáfora, a paisagem que a


criança observa não pode ser compreendida por um olhar
“destreinado”, a paisagem não é autoexplicativa, ela comporta toda uma
carga de significados que variam conforme o grupo cultural que a
observa e a transforma, deste modo, o garoto a visualiza, porém não
consegue apreender o que a mesma significa, o que o mar representa,
etc., o mar, ponto central do conto de Galeano, por exemplo, pode ter
diversos significados, pode ora representar calmaria e conforto, ora ser
ameaçador e turbulento (DARDEL, 2011), isto demonstra como os
olhos humanos não são neutros.
A paisagem estudada pela Geografia, como mostra Holzer
(1999b, p. 150), não é similar ao conceito de paisagem de outras
disciplinas ou para o senso comum, no qual “[...] a paisagem se reduz a
uma porção do espaço que pode ser observada com um golpe de
vista.”, pois toda a paisagem tem um caráter simbólico (COSGROVE,
2012), ou seja, precisa de uma análise mais densa para sua
compreensão, não é simplesmente “tudo o que a visão abarca” como
nos foi ensinado no ensino fundamental e por vezes é ensinado na
universidade. A paisagem não se resume simplesmente ao visível, o
oculto também faz parte da estrutura desta, as diferentes ideologias
contidas na paisagem como já explicou Souza (2013) e Berdoulay
(2012), é um dos exemplos mais significativos.
Notamos também que a paisagem pode mascarar realidades, ela
não é um conceito despolitizado e ingênuo, pelo contrário, é um
instrumento de poder, haja vista que de umas décadas pra cá, foram
incorporados diversos estudos sobre as maneiras como a representação
simbólica de paisagens refletem relações de poder (ALMEIDA, 2008).
Porém, “Landscape, the central concept of Traditional Cultural
Geography, does not easily accommodate political notions of “power
and conflict”77 (DANIELS, 2003, p. 196) e esta antiga dificuldade em
77
Paisagem, o principal conceito da Geografia Cultural Tradicional, não
acomoda facilmente noções políticas de poder e conflito (DANIELS, 2003,
p.196, tradução nossa).
225
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

demonstrar essas relações, pode nos cegar para a relação forte que há
entre cultura, paisagem e poder.
Entende-se então, que a realidade visível nem sempre explica o
que realmente acontece em determinada paisagem, uma fotografia, por
exemplo, pode nos induzir a uma interpretação errônea da paisagem, e
isto é uma “armadilha” que os geógrafos devem estar atentos, devem
ter cuidado, pois podem se deparar com “paisagens que mentem”
(CLAVAL, 2012, p. 256).
Marcelo Lopes de Souza teoriza o que estamos afirmando
durante o trabalho da seguinte forma: “a paisagem é uma forma, uma
aparência. O conteúdo “por trás” da paisagem pode estar em
consonância ou em contradição com essa forma e com o que ela, por
hábito ou ideologia, nos “sugere” (SOUZA, 2013, p. 46).

Foto 1: Palmares II, entrada da zona denominada de Agrovila

226
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Fonte: Trabalho de campo janeiro/2015.

Dentro desta reflexão, percebemos que devido a algumas


características na forma e no conteúdo do assentamento (que serão
explicitadas afrente), encontramos um descompasso na paisagem do
mesmo, ou seja, enquanto a aparência de parte de Palmares II possui
sobretudo características urbanas (como a intensa concentração de bens
e serviços, a proximidade das casas, o grande fluxo de automóveis, o
asfaltamento, e a curiosa placa na entrada do assentamento acima
exposta) sua essência se mostra predominantemente rural.

Loteamentos agrícolas e Agrovila

O assentamento possui duas zonas com funções e paisagens


distintas mas que se complementam, a denominada de loteamento agrícola
e a chamada de agrovila. A primeira é o espaço destinado à produção
agropecuária, a paisagem aqui se caracteriza pela vasta extensão de
terras, com leguminosas, frutas, com gado, com outros tipos de
animais, ou também com um pouco de cada um.
Os lotes nessa área possuem um distanciamento
consideravelmente grande um do outro já que em sua maioria medem 6
Alqueires, observando que a divisão de lotes do inicio do assentamento
foi acertada em 6 alqueires para o loteamento agrícola e um terreno 20
por 30 metros para a zona da agrovila.

Foto 2: Produção camponesa na zona dos Loteamentos agrícolas.

227
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Fonte: Trabalho de campo, janeiro/2015.

Diferente do que possa indicar a “inércia” da imagem acima, a


paisagem não é apreendida somente pelo sentido visual, como uma
fotografia. A audição, o olfato, o tato também se fazem presentes na
interpretação das paisagens, exemplo disto são os odores que se
diferenciam conforme a zona que nos encontramos no assentamento.
Enquanto nos loteamentos agrícolas sentimos o cheiro de gado, pasto,
terra (molhada ou queimada, dependendo da chuva e das técnicas
utilizadas pelos agricultores), na agrovila sentimos o cheiro do asfalto
(molhado ou não), da fumaça dos carros e motos que trafegam
intensamente, ou também sentimos o cheiro do almoço ou da janta
preparado pelas donas ou donos de casa dependendo do horário que
estivermos andando por essa área.
A agrovila não é destinada à produção de alimentos agrícolas, ela
aglomera a moradia dos assentados e os aproxima dos serviços
disponíveis, lá se encontra o posto de saúde do assentamento, diversos
mercadinhos, bares, igrejas, restaurantes, uma praça central, a
associação de produtores do assentamento, ou seja, concentra bens e
serviços, típico da paisagem urbana (CARLOS, 2011). Diferente dos
loteamentos, na agrovila as casas se encontram próximas uma das
outras, outra característica da paisagem urbana, consequência da falta
de espaço nas cidades.
228
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

O sentido auditivo também nos ajuda a diferenciar a paisagem


destas zonas, enquanto nos loteamentos escutamos sons de pássaros,
do vento nas arvores, do gado, e dos vagões da Vale (que cortam o
assentamento) passando pela Estrada de Ferro Carajás e transportando
toneladas de minério de ferro, na agrovila ouvimos com uma constância
maior o som de automóveis, por vezes o som de crianças aglomeradas
também envolve a paisagem, haja vista que na agrovila está a Crescendo
na Prática, escola do assentamento que atualmente matricula mais de
dois mil alunos.
O sentido auditivo é interessante, pois indica também uma
característica cultural que observamos nos trabalhos de campo, a
linguagem. É clara a diferença de sotaque entre os assentados e os
belenenses (isto inclui os dois autores deste trabalho), devido a esta
alteridade linguística, pode-se perceber numa primeira viagem à
Palmares II que o sotaque nordestino parece ser unânime, o que nos
leva a um questionamento sobre a trajetória destas pessoas.
Bringel (2006; 2015) explica que a busca por melhores condições
de vida nessa região é feita sobretudo por trabalhadores nordestinos em
busca de terra pra plantar, homens que possuem um vínculo com o
campo, e já possuem o histórico de conflitualidades no espaço agrário,
os que advêm do Nordeste, por exemplo, fogem de “regiões em que há
grande proporção de pequenos estabelecimentos com pequena
proporção de terras e ao mesmo tempo, poucos estabelecimentos
grandes com muita terra.” (MARTINS, 1991, p. 74).
Este dado já nos mostra uma parte do que denominamos de
descompasso entre aparência e essência, percebendo que enquanto a
estética da paisagem da agrovila possui predominantes traços urbanos,
sua essência é rodeada pelas ruralidades de camponeses que possuem a
terra como central na sua dinâmica de vida, e re-significam o urbano
num constante processo de resistência.
Outro exemplo do descompasso entre aparência e essência na
zona da agrovila é relacionado às políticas públicas, numa discussão que
envolve a questão de bairro, como afirma Parauapebas:

Na verdade, institucionalmente a Palmares é


um bairro, um núcleo urbano... Então o
INCRA78 independe da força popular vamos

78
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
229
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

dizer assim, é o processo de urbanização, o


INCRA...por que o INCRA, ele hoje é um órgão
falido praticamente, é um órgão rico mas que não
atende as demandas do campo né? O que que ele
faz? Quando o assentamento é...no projeto de
assentamento ele entrega, ele faz um
mapeamento, um croqui do núcleo urbano e
entrega pra cidade, como titulação, dizendo que
aqui agora é urbano, eu não vou investir mais
nada, entendeu? Pra que o gover...pra que o
poder publico continue essa ação do INCRA, só
que pra manter ela, a estrutura em continuidade
tem que virar órgão municipal, então hoje o
INCRA entregou essa área, o núcleozinho
urbano daqui né? A vila né? Pra cidade,
automaticamente a cidade teve que colocar como
bairro, pra poder entrar no que? no PPA, pra
poder entrar no plano plurianual, investimento,
não tinha investimento, oficialmente é bairro,
Palmares I e II (Trabalho de campo, 2015 –
Parauapebas, grifos nossos).

Interessante notar as ideologias por trás das ações, ou seja, não


foi sem intencionalidades que o INCRA cedeu a zona da agrovila para
o município de Parauapebas. Primeiramente, com essa ação, a
responsabilidade sobre o assentamento passou do INCRA para o poder
municipal de Parauapebas, tornando as obrigações do órgão para com o
assentamento, nulas.
Por outro lado, estando a Palmares sob a responsabilidade de
Parauapebas, o governo municipal é legitimado a cobrar o IPTU e não
o ITR, como afirma Alentenjano:

Enquanto o ITR é um imposto federal, o IPTU é


municipal, o que tem levado muitas prefeituras,
especialmente nas regiões metropolitanas e seu
entorno, a considerar todo seu território como
urbano, aumentando assim a arrecadação
municipal (ALENTEJANO, 2003, p. 7).

Nota-se então que Palmares é atingida intensamente pela


discussão sobre campo e cidade, rural e urbano, este último par é
230
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

entendido aqui como processos, transpassariam a materialidade das


formas, seriam muito mais um conteúdo, ou seja, as relações sociais que
existem em determinado local, enquanto campo e cidade já tornar-se-
iam a materialização destas relações79.
As políticas públicas aparecem ainda mais desconexas quando a
maior escola do assentamento é titulada de urbana, como expõe
Parauapebas:
Olha só o problema, a escola é urbana, mudou a
escola automaticamente, o MEC mudou a
escola pra urbana quando descobriu que o
núcleo foi passado pra cidade, já mudou pelo
sistema pra urbano, então nós já perdemos o
que? vários projetos do campo, as formações nós
tínhamos que fazer pela cidade [...] (Parauapebas,
trabalho de campo, janeiro de 2015, grifos
nossos).

A imposição do título de escola “urbana” na reflexão de


Parauapebas é prejudicial pelo fato de não ser compatível com a
maioria do seu alunado, que vem do campo, são filhos de agricultores,
etc., sabendo disso, a compatibilidade da denominação ”urbana”, só
pode se justificar a partir da definição de Palmares como um bairro e na
estética paisagística da agrovila, dois critérios que não definem o modo
de vida de quem ali estuda.
Esta forma/aparência da agrovila pode também fomentar
comentários simplistas como: “olha, já são todos urbanizados, esse
assentamento é um bairro periférico da cidade, depois querem ajuda do
governo para plantar” (BRINGEL, 2015, p. 137), o que desconsidera
que o espaço (e por extensão, a paisagem) não determinam o modo de
vida das pessoas que neles vivem, o camponês pode re-significar sua
dinâmica de vida e se utilizar destas mesmas relações entre campo e
cidade para fortalecer suas relações com a terra.
Exemplo interessante é o que Alfredo Wagner deu ao afirmar
que pelo menos 27 comunidades indígenas, atualmente vivem na zona
urbana de Manaus80, demonstrando que as comunidades originárias
também estão em meio a este processo de quebra da dicotomia rural-
79
Ideia esclarecida a partir de reflexões do professor Otavio do Canto, em
discurso no II Seminário de Pesquisa em Geografia Agrária realizado no ano
de 2015 na Universidade do Estado do Pará (UEPA).
231
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

urbano, ou seja, não deixam de ser indígenas pelo simples fato de


viverem no espaço urbano. Nesse sentido, é importante notar que a
paisagem é um conceito de extrema importância para a compreensão de
uma dada realidade, mesmo que sua forma/aparência demonstre o
inverso do que seu conteúdo/essência represente.

Considerações finais

Em assentamentos de reforma agrária na Amazônia, a paisagem


pode nos proporcionar “armadilhas”, que aos olhos desatentos, podem
gerar analises da realidade de maneira simplista. A discussão sobre as
relações entre campo e cidade, rural e urbano podem por sua vez ser
catalisadoras destas visões, desqualificando a relação que grupos sociais
possuem com a terra.
No assentamento Palmares II percebe-se que a trajetória dos
moradores e toda a construção do assentamento possui um histórico de
vínculo com a terra e com as questões agrárias, porém, a forte relação
que Palmares possui com Parauapebas desde sua formação e a
expansão da malha urbana na direção do assentamento proporciona
diversas características urbanas ao assentamento. Isto tem levado os
assentados a novas estratégias e novas dinâmicas de vida, seja na sua
relação com grupos sociais do núcleo urbano de Parauapebas, seja em
suas relações internas, que não se isentam de contradições.
Posto isso, notamos que o modo de vida da maior parte dos
moradores de Palmares é desconexo com a paisagem de parte do
assentamento, que não nos supõe que os mesmos possuem algum
vínculo com a terra, todavia, um olhar mais aprofundado sobre o dia-a-
dia destes grupos sociais demonstra que a relação com a terra vai
ganhando novas formas, novas estratégias, conexas com o atual período
de intensa fricção entre campo e cidade na Amazônia.
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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

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e urbano na Amazônia Paraense: agricultores familiares e suas relações
com a cidade de Marabá-PA. Revista Extensão Rural, vol. 21, N° 2,
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235
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

236
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Biodiversidade dos safs dos agricultores inovadores na


Amazônia oriental brasileira: sinônimo de sustentabilidade

José Sebastião Romano de Oliveira81

Introdução

O convite para participar desta obra foi gratificante e de muita


felicidade. Aprendi ao longo da carreira acadêmica os dois lados da
ciência. Aquela que te diz você deve ser neutro, tecnicista e jamais se
envolver com seu “objeto” de estudo. Mas também aprendi o lado mais
“real” da ciência em que você aprende e constrói informações e gera
conhecimentos conjuntamente com seu “objeto” de estudo.
O fato de ser agricultor familiar e geógrafo me proporciona
enxergar o mundo real e diferenciar do ideal. Isto não me faz melhor
ou pior que qualquer cientista que trate de qualquer tema. Os livros, as
teses, as monografias, entre outras produções acadêmicas quando
tratam da realidade da Agricultura Familiar (não me restringirei aos
conceitos que envolvem o homem/mulher do campo) quase sempre
falam do que é o ideal, mas esquecem que vivem num mundo real.
E quando este tema envolve atores sociais como o agricultor
familiar que usam o território, modificam espaços, alteram as paisagens
e convivem com a biodiversidade amazônica, é muito mais intrigante e
desafiador e nos remete a proposta filosófica do Edgar Morin quando
fala da complexidade, não que nos limitaremos a tratar da mesma, mas
é porque falaremos do sistema de roça (shifting cultivation) e dos Sistemas
Agroflorestais - SAFs, sistemas altamente complexos e que perpassa
por vários ramos de conhecimentos das ciências.
Segundo (Petraglia, 2008, p. 31-32) a proposta de Morin, é
necessário a comunicação entre as ciências para compreensão da
complexidade da realidade e também para compreensão da realidade da
complexidade. Caso contrário, existem os perigos da consciência sem
ciência e da ciência sem consciência, acreditando que qualquer uma
dessas duas perspectivas são mutiladas e mutilantes, num mundo que
carece, sob todos os pontos de vista, de ser arquitetado de forma una e
múltipla.

81
Professor doutor da Universidade Federal Rural da Amazônia.
237
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Quando se fala em biodiversidade a Amazônia é sempre uma


referência global. A complexidade que a região abriga é imensa, a
heterogeneidade do meio natural representada pelos diferentes
ecossistemas, à diversidade sociocultural dos amazonidas possibilita
características próprias e ao mesmo tempo antagônicas em função, por
exemplo, dos diferentes tipos de ocupação pelos quais já ocorreram na
Amazônia.
Para (Oliveira 2013, p.87), estas características é porque existem
“Amazônias”. No Pará, as realidades agrárias são representadas por
uma Amazônia dita “tradicional”, do qual prevalecem a exploração do
território que valoriza o conhecimento autóctones das populações;
exploração com ritmos fortes de desmatamento desenvolvidas por
migrantes e outras situações intermediárias.
Esta heterogeneidade dos atores sociais amazonidas e
principalmente paraenses tem acirrado formas de desenvolvimento
distintos como: modernização, homogeneização, crescimento
econômico, dominação da natureza, mas também há formas associadas
a autonomia, multidimensionalidade e diversidade .
No entanto, no momento das decisões políticas nem sempre as
especificidades são consideradas e o que tem se observado nas últimas
décadas é um processo de transferência de tecnologia arbitrária e a
imposição de técnicas produtivas nem sempre pretendidas. Ao certo
que sistemas de monocultivos e a pecuária extensiva estão entre os
processos que tem contribuído bastante à degradação na região não só
ecológica, mas também social, econômica e cultural.
Somando a esta situação o sistema de roças por meio de prática
de queima e corte, característico do segmento social da agricultura
familiar, também tem sua parcela de contribuição. Contribuição esta
por conta do processo de marginalização histórica que a mesma sofre
em longo das centenas de anos.
Num território como a Amazônia, que apresenta imensas
riquezas naturais há também um contraste nítido no modus vivendi da
população que vive numa situação de extremo desamparo, em certas
situações abaixo da linha da pobreza, caracterizando-se como
verdadeiros miseráveis, comprometendo uma porcentagem
considerável da população.
Neste contexto a messoregião Nordeste Paraense possui papel
destacável. Foi uma das primeiras regiões a ser colonizada e

238
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

antropizada. As conseqüências mais evidentes são desmatamentos,


erosões, mudanças climáticas, rios e igarapés assoreados, extinção da
fauna e flora... e uma população bastante empobrecida.
Na referida messoregião prevalece o sistema produtivo de corte
e queima para formação de roças com períodos de pousios definidos,
tendo a mandioca (Manihot esculenta), como principal produto.
E como a tecnologia que estava (a) a seu dispor eram (é) o
“machado e o fósforo”, a pratica da queima e pousio ainda se faz
presente no cotidiano desses agricultores.
De acordo com (Oliveira, 2011, p 15 ) Nesta região há séculos é
utilizado o sistema produtivo de corte e queima para preparo do solo
para plantio de roças. Este sistema contribui para a degradação dos
solos, resultando na baixa fertilidade pelas perdas em nutrientes,
emissões nocivas à atmosfera e riscos de incêndio, além de se tornar
predatório quando a pressão demográfica sobre o território leva à
utilização em módulos fundiários inferiores ao limite da viabilidade.
Os minifúndios, também são características marcantes em razão
a grande pressão demográfica exercida em longo de trezentos anos de
colonização e pelo processo de partilha por herança das unidades de
produção familiares - UPFs.
Ainda (Oliveira, 2011, p. 15) A prática do corte e queima se deve,
em parte, à ausência de políticas direcionadas ao setor agrícola familiar,
posto que não se consideram as especificidades da região, bem como a
projetos de desenvolvimento econômico que foram concebidos e
implantados “de cima para baixo” (top-down development), com bases em
políticas traçadas e implementadas por agencias tecnocráticas nacionais
e internacionais, sem a participação das comunidades locais .
Porém, (Costa, 2013, p. 153), destaca que a partir dos anos
oitenta na messoregiao Nordeste Paraense há um claro processo de
reordenamento da base produtiva agrícola o derruba e queima shifting
cultivation cede lugar a sistemas agrícolas de culturas perenes e
semiperenes.
O autor esta se referindo há uma dinâmica por ele estudada nos
municípios de Irituia e Capitão Poço, do qual os agricultores
(camponeses conceito por ele utilizado) tem seguido estratégias nas
quais a diversificação de culturas e atividades influenciadas por
necessidades de adequação a diferentes circuitos de mercado e
utilização dos diferentes recursos internos as unidades familiares, dos

239
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

quais se destacam os recursos da diversidade originária do ecossistema


tropical.
Em Capitão Poço se trata da substituição da shifting cultivation por
culturas de citros e em Irituia apesar de não ser claro, o autor fala da
alta diversificação e da produção para o autoconsumo e comercialização
do excedente.
Ressalta-se que a diversificação descrita se trata dos espaços
produtivos em que nas paisagens estão os tradicionais Sítios advindos
de muitas gerações e que possuem arranjos diferenciados, (Miranda e
Rodrigues, 1999, p. 34) chamam de “Agricultura em Andares”.

A inovação

Porque inovação falar de sítio? Estamos falando de sistemas com


mais de duzentos anos na região? Porque muito se fala em “crise” e a
crise do shifting cultivation é algo real em função das técnicas de produção
– derruba e queima – e os sítios vêm como alternativas aprimoradas
que nem sempre seus atores e autores foram acompanhados pela
ciência erudita.
Em função da crise (Oliveira, 2006, p 31) afirma que alguns
agricultores tomaram a iniciativa de inovar, através de certas práticas,
por meio da extensão dos sítios ou quintais para áreas que se
encontravam em pousio, nas roças e áreas de monocultivos criando
novos arranjos produtivos modificando as paisagens das suas UPFs.
Merecem atenção especial estas iniciativas, pois os tradicionais
sítios que a ciência erudita renomeou de Sistemas Agroflorestais - SAFs,
e que inicialmente, estes agricultores não contaram com a intervenção
do aporte científico normativo por parte da extensão ou da pesquisa.
Os sítios na região são praticados em longo de séculos em volta
das moradias. Esta afirmação foi corroborada por meio de entrevistas
com pessoas mais antigas da região, que se referem aos sítios fazendo

240
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

alusão as “taperas”82 que atualmente são áreas de fazendas que outrora


também já foram senzalas pertencentes a portugueses e espanhóis.
Segundo os agricultores, a extensão para outras parcelas surgiu
da necessidade inicial da segurança alimentar baseado em frutíferas. E
em função dos bons resultados, atualmente, muitos desses agricultores
já produzem visando o mercado consumidor o que tem melhorado
consideravelmente a renda familiar.
E falando do potencial da agricultura familiar do qual se
enquadram estes inovadores do Nordeste Paraense, (Van de Ploeg,
2009 p.17) ratifica que é indispensável a contribuição dos camponeses
na produção de alimentos, geração de renda, sustentabilidade,
especialmente nas condições de crise.
Assim, independentemente do projeto inicial por parte dos
agricultores, os SAFs se apresentam como mitigadores de impacto
ambiental em todo o agroecossistema e ainda produzem inúmeros
serviços ambientais - proteção das fontes hídricas, proteção do solo,
minimização do uso do fogo, reflorestamento de áreas degradadas e a
manutenção da biodiversidade. Somam-se as vantagens o conforto
térmico e menor penosidade do trabalho, geração de renda, ou seja,
sustentabilidade.

Metodologia

O trabalho de pesquisa sobre os SAFs de (Oliveira, 2006 e


2011) de mestrado e doutorado respectivamente sobre os agricultores
inovadores foi desenvolvido na área de abrangência do Programa de
Desenvolvimento da produção Familiar Rural da Amazônia -
PROAMBIENTE, polo Rio Capim que compreende quatro municípios
– Irituia, São Domingos do Capim, Mãe do Rio e Concórdia do Pará
todos no Nordeste Paraense, Amazônia oriental brasileira.
82
Taperas para os moradores mais antigos são locais onde se encontram
aglomerados de árvores frutíferas provenientes de antigos sítios plantados ao
redor das casas. Nestes locais, é comum encontrar vestígios de louças de barro,
vidros, telhas. E entre as frutíferas que mais destacam estão as mangueiras (por
ter origem da Índia, possivelmente foram introduzidas pelos primeiros
missionários), castanha-do-pará (Bertholletia excelsa), uxi ( Endopleura uchi),
caju da mata (Anacardium giganteum Hanck ex. Engl), bacabeiras
(Oenocarpus bacaba), café, cacau (Theobroma cacao L), piquiá ( Caryocar
villosum) e outras.
241
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Em 2006, foram identificados, localizados, mapeados e


georreferenciados setenta e oito agricultores dos quais foram
selecionados dezoito para avaliação da sustentabilidade. O principal
critério de avaliação foi à diversificação agroflorestal, ou seja, a
biodiversidade dos SAFs, considerando as dimensões econômico,
social, cultural e ecológico. As áreas produtivas se encontram em dois
ambientes distintos: área de terra-firme e várzeas.
Já em 2011, ampliaram-se a lista dos agricultores do qual
cinqüenta unidades foram sistematizadas caracterizando o circuito
espacial dos SAFs do Polo Capim identificando os sistemas de
comercialização e sua evolução considerando os circuitos existentes e o
papel da educação formal no contexto.
Aqui não serão exposto todos os resultados das duas pesquisas,
mas somente partes entre elas a percepção dos agricultores sobre os
SAFs e a biodiversidade dos mesmos.

Percepção83 dos agricultores inovadores sobre a biodiversidade


nos safs

Com a ausência da intervenção da pesquisa e extensão na


formação dos SAFs, inúmeros destes sistemas não apresentam quase
nenhum padrão técnico, como o espaçamento, por exemplo. Assim, a
espacialização e a estratificação dos arranjos são diversas e inovação dos
próprios agricultores.
Entretanto, o que se destaca na paisagem dos SAFs é a
diversificação, verdadeira miscelânea de frutíferas e arbóreas (Figura 1).
Em algumas áreas foram registradas mais de 60 espécies diferentes.
(Figura2) e (Quadro 1).
Em função desta diversidade de vida os “ganhos”
complementam-se. Na visão dos agricultores “ os sítios são perfeitos”, pois,
geram dinheiro, garantem a sobrevivência dos animais e das plantas,
proporcionam alimentos, evitam o êxodo rural, sinônimo de
respeito...melhoria na qualidade vida!
Desta feita, procuramos mostrar o que é na percepção dos
agricultores o valor do SAFs em todas as dimensões na forma de
indicadores de sustentabilidade.

83
Manteve-se a fala original das entrevistas.
242
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Referente ao indicador econômico, a preocupação inicial dos


agricultores se baseou na segurança alimentar, pois “ a roça é muito boa,
mas os sítios ajudam na necessidade da alimentação e não tem que pedir dos
vizinhos, aliás a gente ainda planta pros ladrão, (risos)...” e as “frutas sempre tem
produção e assim ajuda na comida.
Quando dizem que sempre tem produção, se referem a
sazonalidade produtiva em longo do ano “ quando não tem uma tem outra
produzindo...” Para esses agricultores, o SAFs é ”o amenizador da fome..”, é
também “um novo meio de ganhar dinheiro...”, “e com o sítio tem sempre um
dinheirinho...”
Referente ao indicador social, os SAFs tem auxiliado na
aquisição de utensílios “antes era só o rádio agora já tem televisão, parabólica,
celular...”,
A participação feminina é essencial “aqui quem manda é ela
(risos)....” é a mulher que geralmente gerencia os ganhos da venda dos
produtos.
Há reclamações quanto aos serviços de assistência técnica nos
municípios pesquisados “ tudo que fizemos é do nosso conhecimento..” pois, “
os técnicos diziam pra plantar uma só cultura e tivemos prejuízo, pra mim tem que
plantar tudo...”, “os técnicos ficaram brabos porque plantei cana, mandioca e
mamona no meio da pimenta, mas a terra é minha....”
No que condiz ao Indicador cultural, mesmo preservando os
costumes tradicionais os agricultores estão abertos as intervenções “ com
certeza, plantio certo é na lua certa.., no quarto crescente não é bom plantar a
planta dá muito alto, já na lua cheia e minguante a árvore dá pequena e muito
fruto...; mas eu acho que as plantas não produzem mais porque falta técnica...”
Os SAFs também contem plantas que são utilizados na medicina
popular “é o pronto socorro aqui de casa... ” mas também, é “a distração das
crianças...”
Referente ao indicador ecológico, “ o sitio é a proteção das águas e do
meio ambiente...”. Segundo os mesmos os SAFs propiciam conforto
térmico “se não fosse o sítio aqui era um inferno, tudo em volta é só fazenda...”,
“ah é muito melhor trabalhar na sombra...”, “trabalhar na sombra é mais fácil,
menos trabalho e menos gastos,...”;
Entre esses agricultores a preocupação com a preservação e
conservação é extrema “Preservar os bichos eu sei que é importante, mas tem
hora que a necessidade fala mais alto...”, “a natureza precisa ser cuidada, não
haverá futuro, a gente não pode pensar apenas no dinheiro...”, “ o que já vi, comi,

243
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

até hoje meus netos também tem direito...”, “ o sítio ajuda a gente preservar a
natureza...”, “ na natureza uma coisa depende da outra e eu sou a natureza
também...”

Algumas conclusões

Cada UPF apresenta um SAFs diferente, mesmo estando em


território amazônico não se pode pensar em modelos. Contudo, estas
experiências inovadoras servem de incentivos e passíveis de adaptação.
O grande “gargalo”, segundo os agricultores, é a
comercialização, pois não existe política específica e mesmo com
produtos ecologicamente corretos nem sempre vendem toda produção.
As outras restrições se referem à ausência de educação diferenciada,
bem como a assessoria técnica e o acesso ao serviço de saúde.
Exemplos como destes agricultores estão desmistificando a idéia
que os agricultores familiares amazônidas só trabalham para subsistir e
que contribuem na degradação ambiental. Pelo contrário, estão
trilhando “caminhos” à sustentabilidade mudando quadro de
degradação e miséria, tudo isso graças biodiversidade dos sítios, ou
melhor, dos SAFs.
Sustentabilidade que está revalorizando o saber e o fazer destes
agricultores protagonistas inovadores garantindo melhores condições
na competição comercial e melhores condições de vida.

244
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Figura-1 Retratando miscelânea de espécies em um SAFs contribuindo na


conservação da biodiversidade amazônica.
Quadro-1 Algumas espécies cultivadas nos SAFs dos agricultores
inovadores tanto para produção de frutas como madeira.

Fruta Nome Arbórea Nome Arbórea e Nome


Científic científico Fruta científico
o
abacaxi (Ananás acapu (vuoacapoua Andiroba (carapa
sativa, americana) guianensis
Lindl) Aubl)
açaí (Euterpe angelim- (pithecolobium Caju-da- (Anacardium
oleracea pedra racemosum mata giganteum
Mart) Ducke) Hanckex.
Engl
bacaba (Oenocarpu cedro (cedrela fiáilis castanha- (Bertholletia
s bacaba) Vell) do-pará excelsa)
banana (Musa X cumaru (dipteryx bacuri (platonia
paradisiaca odorata Willd) esculenta)
L),
cacau (Theobrom Ipê- (tabebuia Ingá (Inga edulis
a cacao L) amarelo chrysotricha) Mart.)
Coco (Cocos mogno (swietenia jatobá (Hymenaea
245
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

nucifera L) macrophylla courbaril)


King)
cupuaçu (Theobrom neem (azadirachta piquiá (caryocar
a indica) villosum)
grandifloru
m)
Laranja Citrus paricá (schizolobium taperebá (Spondias
aurantium amazonicum) mombin L.)
L)
goiaba (Psidium samauma Ceiba sucupira (bowdichia
guajava L) pentandra (L.) virgilioides)
Gaertn
pupunha (Bactris tatajuba (bagassa uxi endopleura
gasipaes) guianensis) uchi (Huber)
Cuatr

As estratégias de produção e reprodução, centradas e definidas


pela família, segundo Oliveira (2013, p. 92) são menos econômicas que
culturais. A íntima relação com a natureza e sua forte vinculação com
os aspectos simbólicos explica tanto os modos de vida das famílias
quanto os aspectos produtivos das suas unidades de produção.
Daí a dificuldade da academia, por exemplo, em compreender
que estes agricultores como tantos distribuídos pela Amazônia como
um todo não há uma lógica apenas econômica. As escolhas técnicas de
produção e a tolerância dos baixos retornos econômicos são aspectos,
que pela lógica capitalista são impossíveis de serem compreendidos.

Mudanças atuais na a área pesquisada

Em 2009 os SAFs foram objeto de divulgação de noticia boa no


estado do Pará a nacional e internacional, pois, o programa Globo
Rural esteve no polo Rio Capim precisamente em Irituia e São
Domingos do Capim fazendo ampla divulgação dos trabalhos dos
agricultores inovadores.
O referido “gargalo” da comercialização começou a mudar a
partir de 2010 com implementação das políticas publicas do Programa
Nacional de Alimentação Escolar - PNAE e o Programa de Aquisição
de Alimentos - PAA quando inúmeros dos agricultores do pólo Rio
246
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Capim se organizaram em Associações e Cooperativa e já conseguem


comercializar os produtos oriundos, principalmente dos SAFs.
Entre os participantes do PROAMBIENTE que estão
trabalhando com SAFs, a parceria ensino, pesquisa e extensão está se
desenvolvendo a contendo em busca de novas tecnologias a respeito
desta informação há destaque para criação e efetivação da Cooperativa
Agropecuária dos Produtores Familiares Irituienses - D’Irituia.
A busca de alternativas, perante os efeitos excludentes do
capitalismo (SANTOS, 2005, p 32-33) a partir de teorias e experiências
baseadas na associação econômica entre iguais e na propriedade
solidária.
A Cooperativa fundada em 2011 tem ocupado papel
preponderante na região, pois, tem proporcionado organização e
resgatado entre outras praticas do trabalho coletivo como troca de dia,
mutirão, viveiro de mudas coletivo, parcerias estratégicas que entre
outros tem assegurado canais de comercialização.
É imperioso afirmar também que esta organização tem como um
de seus pilares a parceria dos quais se destacam: a Organização das
Cooperativas do Brasil – OCB / Serviço Nacional do Cooperativismo –
SESCOOP, Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural -
EMATER, Prefeitura Municipal de Irituia, Banco do Brasil agencia
Irituia, Universidade Federal Rural da Amazônia – Núcleo de
Agricultura Familiar e Agroecologia UFRA/NEA/ Campus Capitão
Poço, Paróquia de Irituia, Restaurante Aprazível no Rio de Janeiro,
NATURA, EMBRAPA, entre outros.
A Cooperativa D’ Irituia, é uma das poucas Cooperativas no
estado do Pará que possui o Certificado de Controle Social – OCS
emitido pelo Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento –
MAPA do qual permite aos cooperados comercializar seus produtos
como ORGANICOS diretamente aos consumidores.
Em relação a educação do campo em Irituia a partir da
Cooperativa citada com parceria da UFRA/CCP, Prefeitura local,
EMATER, EMBRAPA, foi desenvolvido o Programa de Formação
Continuada de Professores - RENAFOR em educação do campo.
Foram capacitados noventa e cinco professores e dez agricultores
familiares em Agroecologia, SAFs, Empreendedorismo rural e
Associativismo.

247
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

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249
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Adentrando o território camponês: formas de organização


social, do trabalho e da produção

Rosiete Marcos Santana84

Introdução

O presente texto é parte do resultado da minha pesquisa de


campo realizada na comunidade Campo Verde, no município de
Concórdia do Pará, no período de 2008 e 2010. A pesquisa visava a
coleta de dados para a elaboração da dissertação de mestrado intitulada
“Os caminhos da regularização fundiária no município de Concórdia
do Pará/PA” pela Universidade de São Paulo.
O objetivo deste artigo é apresentar os diversos aspectos que
fazem parte do cotidiano das diversas famílias camponesas presentes
em Campo Verde. Suas diversas formas de organizaçao social, do
trabalho e da produção. Tudo isto para mostrarmos um pouco da
complexidade que é a vida camponesa, na sua relação com o território e
a necessidade de entendê-la por dentro.
Para isto, apresento de uma maneira geral, a comunidade Campo
Verde (localização e algumas características do território). Em seguida,
trato das diversas formas com que estas famílias se organizam
religiosamente e politicamente. Também destaco a religiosidade e o
sentido de comunidade vivenciado em Campo Verde, por acreditar
serem elementos de grande importância para a unidade no território.
Por fim, demonstro as formas de organização do trabalho e da
produção que permitem as famílias se criarem e recriarem enquanto
camponesas e se manterem no território.

A comunidade Campo Verde

Campo Verde é uma comunidade rural localizada às margens do


rio Bujaru, tendo como vias de acesso a estrada vicinal Transjutaí e o
rio Bujaru. Dista cerca de 39 km da sede do município de Concórdia do
Pará. Possui cerca de 43 famílias, num total de aproximadamente 237
pessoas em uma área de 1.185,5124 ha.
84
Professora mestre da rede estadual de ensino do Pará e da Faculdade
Integrada Brasil Amazônia/FIBRA. Email: rosietesantana@yahoo.com.br.
250
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

A comunidade possui um núcleo, chamado de Arraial, que é uma


área considerada patrimônio da comunidade, documentada em nome
da igreja, e onde ficam localizados a escola; a igreja e um cruzeiro; o
salão paroquial; a casa das mães, construída pelo movimento de
mulheres da comunidade (originalmente Clube das Mães) e, algumas
casas da família que doou a área para a Igreja.
Até 2005, o território de Campo Verde compreendia somente as
terras da margem direita do rio Bujaru, onde estavam localizadas cerca
de 34 famílias. As famílias que moram na margem esquerda do rio, em
número de oito, faziam parte de uma outra comunidade, denominada
de Curuperé. No momento da demarcação das terras para titular a
comunidade como remanescente de quilombo, as terras destas oito
famílias foram incorporadas às da comunidade Campo Verde. Isto
ocorreu em função da relação que estes moradores têm com os
moradores da margem direita do rio. São laços de parentesco e de
vizinhança mais fortes que os que possuíam com os demais moradores
da comunidade Curuperé.
A religião também tem sido um elemento de grande importância
nesta proximidade, pois os membros da Comunidade Eclesial de Base
(CEB) de Campo Verde sempre visitam estas famílias, realizando
encontros dos grupos de evangelização, novenas e catequese. Esta
proximidade se acentua com o processo de mobilização para a
regularização das terras, pois eram as lideranças de Campo Verde que se
reuniam com as famílias, sendo as mesmas sempre convocadas para
qualquer atividade da Associação de Remanescentes de Quilombo
Nova Esperança de Concórdia do Pará (ARQUINEC).
Estas mobilizações se iniciam em um contexto de formação de
fazendas no entorno da comunidade. O Sr. João relata que

[...] a fazenda começou a se criá de um tempo pra


cá [...] depois que furaro esse negócio dessas
estrada aí, aí contaminou de fazendeiro aí [...] o
velho Madico tinha uns boizinho, mas não era
fazenda, [...] aí contamino, eles vendero esse
terreno aí. Já o Oscá, filho do Madico, aí botó,
fez uma fazenda aí, ele mesmo, aí pego uns boi
de metade aí, [...] só aquele boi búfalo, um bom
mucado de boi aí, aí não sei o que deu na cabeça

251
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

dele e vendeu, vendeu não, deu o boi pro


fazendeiro [...] (informação pessoal)85.

Além das estradas e fazendas, um outro elemento aparece como


novo. O Sr. João ressalta o aumento do número de pessoas na
comunidade, pelo fato dos filhos irem constituindo suas famílias e
construindo suas casas, geralmente na posse dos pais. Todas estas
questões motivam a necessidade de se requerer a regularização das
terras, garantindo assim, a ocupação e a unidade territorial.

As formas de organização: de ajuda mútua, religiosa e política

Observando o dia a dia das famílias, percebemos uma forma de


organização existente que é bem estruturada e atuante: a Comunidade
Eclesial de Base (CEB). Sua estrutura é composta por uma diretoria
(presidente, secretário, tesoureiro e os coordenadores de diversas
pastorais), pelas pastorais (juventude, catequese, dízimo) e pelos três
grupos de evangelização que, semanalmente, reúnem-se na casa de um
morador. É na reunião da diretoria, ou “das lideranças”, como eles
denominam, que são discutidos os problemas da comunidade, não só
de caráter religioso, mas também político, econômico e social.
Os moradores realizam seus cultos todos os domingos pela
manhã. O culto ocorre quando não existe a presença do padre. Neste
caso, o celebrante pode ser qualquer membro da diretoria. Quando é o
padre quem celebra, a celebração denomina-se Missa e isto geralmente
ocorre na festividade de São Tomé.
A CEB de Campo Verde está vinculada à igreja de São Joaquim,
no município de Bujaru, pertencente à Diocese de Abaetetuba. Esta
Diocese possui uma grande atuação política junto aos movimentos
sociais na região por meio da CPT Guajarina 86. É por meio dos

85
João do Amaral Ferreira, entrevista à autora em out./2008.
86
A prelazia de Abaeté do Tocantins foi criada em 25/11/1961, desmembrada
da Arquidiocese de Belém do Pará. Foi confiada pela Santa Sé aos cuidados da
Sociedade de São Francisco Xavier para as Missões Estrangeiras. Em 1981 foi
elevada a Diocese, passando a denominar-se Diocese de Abaetetuba,
abrangendo atualmente os municípios de Abaetetuba, Acará, Barcarena,
Bujaru, Concórdia do Pará, Moju, Tailândia e Tomé-Açu (CNBB, 2009).
252
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

membros da CEB que ocorre o contato e o envolvimento com outras


instituições, movimentos, sindicatos e associações do estado.
É nesta intricada relação entre fé e política que, com o objetivo
de buscar a regularização de suas terras, as famílias da comunidade
Campo Verde contribuíram para a fundação da ARQUINEC, em 22 de
dezembro de 2001. Na assembléia de fundação estavam presentes
moradores das comunidades Cravo, Curuperé, Campo Verde, Dona,
Ipanema e Santo Antônio87.
A associação tem como objetivo administrar as terras ocupadas e
de propriedade das famílias das comunidades e representá-las nos seus
interesses. Estas terras, depois do reconhecimento, não poderão ser
vendidas, arrendadas ou loteadas, deverão ser utilizadas pelos
associados para que produzam para o seu auto-consumo de forma
auto-sustentável, sendo que podem ser utilizadas por moradores de
outras comunidades remanescentes de quilombo desde que autorizados
pela associação e desde que seja respeitado o seu estatuto (INCRA,
2005).
Existem também moradores organizados em torno dos
Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Concórdia do
Pará e de Bujaru. Quem representa estes sindicatos na comunidade são
os delegados sindicais. Com essa representação em seu território a
comunidade torna-se uma Delegacia Sindical. O fato de a comunidade
ter dois delegados sindicais se explica porque até 1988 ela pertencia ao
município de Bujaru. Quando houve a criação do município de
Concórdia do Pará, ela passou a fazer parte de Concórdia. Mesmo
assim, o sindicato de Bujaru continuou com um representante em
Campo Verde.
Outra forma de organização é o Grupo de Mulheres, célula de
atuação do Movimento das Mulheres Transformadoras do Campo e da
Cidade de Bujaru (MMTCCB) nas diversas comunidades do município
de Bujaru e de Concórdia do Pará 88. Com onze integrantes, o grupo se

87
Uma associação pode representar uma ou mais comunidades.
88
O MMTCCB surgiu no final dos 1960 tendo como grande referência a
trajetória de Margarida Silva. Margarida era do interior do município de Bujaru,
mas migrou para a cidade onde participava do Clube de Mães, do Grupo de
Evangelização e foi animadora e monitora de comunidade, muito ligada às
CEBs. Sua atuação no meio urbano, com a fundação do movimento na cidade
de Bujaru, estende-se para o meio rural, agrupando também as reivindicações
253
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

reúne aos sábados e, em 2008, discutia sobre a necessidade de retomada


da casa das mães que estava emprestada a uma família que estava
construindo sua casa; sobre a realização de uma roça para a produção e
a comercialização da farinha com o objetivo de angariar fundos para
pintar a casa das mães; sobre o encontro municipal de mulheres no
Santo Antônio; sobre a mobilização dos maridos das participantes para
ajudarem no preparo da roça e sobre a colaboração no bingo que o
grupo de mulheres da comunidade Dona estava realizando.
De acordo com uma das fundadoras do grupo, o mesmo surgiu
em 1985, a partir do apoio das comunidades Sant’Anna e Galho, com o
objetivo de se realizar a ajuda mútua entre as mulheres. No início, o
grupo possuía uma máquina de costura para que as participantes
pudessem costurar roupas para os seus filhos ou para vender, preparar
roupas para o enxoval delas mesmas e vender para as mulheres da
comunidade. Estas atividades no momento estão paradas, mas as
mulheres estão se organizando para retomá-las. Foi deste grupo que foi
eleita a coordenadora do MMTCCB no IX Congresso do movimento
realizado na comunidade Santo Antônio, em novembro de 2008, cujo
tema era “Mulher e Natureza” e o lema “Preserve e Cuide”. Um dos
temas abordados no evento foi a violência contra a mulher e a Lei
Maria da Penha.
A origem do grupo de mulheres está nos Clubes de Mães que
existiam na década de 1980. As mulheres se reuniam aos sábados para
costurar, fazer comida (doces e salgados), bordados, crochês, pinturas e
tricô. Nestes momentos, compartilhavam suas experiências de donas de
casa e mães. As atividades de venda dos produtos produzidos por elas
serviam para atender as necessidades e funcionavam como ajuda mútua
(COSTA, R., 2008).
A passagem de Clube das Mães para o MMTCCB ocorreu por
meio da intervenção da Igreja Católica que, por meio de uma religiosa,
mudou o rumo da atuação de muitas das mulheres dos Clubes, que
passaram a ter uma visão mais reflexiva da realidade e a imprimirem um
caráter mais político-social a estes Clubes, transformando os mesmos
em Movimento das Mulheres. Apesar desta mudança, não há uma
ruptura imediata com as atividades praticadas no Clube de Mães, que
muitas vezes foram incorporadas como uma alternativa de renda e
trabalho (COSTA, R., 2008).

das mulheres que nele viviam (COSTA, R., 2008).


254
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Além da participação no MMTCC, o grupo de Campo Verde


também participa dos eventos que envolvem os debates sobre a mulher
e a questão racial. Um exemplo disto foi a ida de representantes do
grupo, no período de 19 a 22 de novembro de 2008, para o Encontro
de Mulheres Negras Quilombolas, no município de Inhangapi, onde
discutiram sobre a importância da organização e da valorização da
mulher negra.

A religiosidade camponesa

São Tomé é o santo padroeiro de Campo Verde. Sua festividade


é realizada no mês de dezembro, quando, durante duas semanas antes
do dia da festa de São Tomé, são realizadas as novenas de casa em casa
pelos três grupos de evangelização e no último dia é realizada uma
celebração com a presença do padre.
Todavia, a festividade não é composta somente de momentos de
oração e pregação. Também acontece várias atividades que os
moradores chamam de “brincadeiras”: o torneio de futebol, o bingo, o
lance e a festa à noite (que não é dançante por orientação da diocese).
Todo o valor obtido nestas “brincadeiras” é destinado à igreja da
comunidade, principalmente nos últimos três anos em que ela esteve
em obras, sendo concluída em 2009.
Apesar de toda a preparação para a festa de São Tomé, segundo
alguns moradores, a maior festa e mais bonita é a de Nossa Senhora do
Livramento, no mês de maio (Mês de Maria), que também ocorre na
comunidade. Estas duas festas se originam da devoção do avô e do pai
de um dos moradores, o sr. Miguel, desde quando chegaram à
comunidade na década de 50. O avô era devoto de São Tomé e já
realizava a “festa do santo” na comunidade em que a família de seu
Miguel morava antes de ir para o Campo Verde. O pai era devoto de
Nossa Senhora do Livramento, e quando morreu disse que a padroeira
de Campo Verde deveria ser Nossa Senhora. Com a criação da
comunidade religiosa oficialmente pela igreja de Bujaru, ficou São
Tomé como padroeiro.
Além destas festividades comunitárias, outras duas atraem os
moradores. Uma delas é a festa de Santa Ana, na vila de Sant’Anna no
município de Bujaru, que se realiza no mês de julho, festa tão antiga
quanto a igreja do século XVIII. A outra, em uma escala mais regional,

255
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

é a festa do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém, no segundo


domingo de outubro. Esta ida a Belém está muito relacionada às
promessas feitas e que precisam ser pagas.
A veneração ao santo padroeiro e a realização de romarias, de
acordo com Moura (1986), são práticas que se difundem por toda a
sociedade, mobilizando um grande número de pessoas. A religião do
camponês baseia-se em duas faces de uma dívida para com a divindade
que ocorre de forma direta e intensa: uma é a que o leva até a castigar a
imagem do santo quando há omissão e não atendimento por parte do
mesmo em relação aos pedidos realizados; a outra face desta dívida é a
preocupação do camponês em cumprir a promessa feita, materializada
em orações e bens ofertados em gratidão às graças recebidas, temendo
um castigo se assim não agir.
De acordo com Moura (1986, p. 22), nessas práticas religiosas há
um conteúdo que se insinua efetivamente camponês: “ele parece estar
na forma de diferenciar, socialmente, os dias comuns dos dias
especiais”. O que dá sentido a esses dias especiais são os santos e as
divindades. Uma data qualquer, um feriado nacional, não altera a
substância simbólica do tempo como ocorre num dia de festejo do
santo padroeiro, capaz de alterar o cotidiano nas áreas rurais, mesmo
que não esteja no calendário nacional.
Estas comunidades religiosas, para iniciarem suas atividades,
tiveram que contar com a iniciativa de alguns moradores que já
detinham algum conhecimento sobre orações e cânticos. Foi o que
aconteceu com Campo Verde, onde a comunidade religiosa se iniciou a
partir da experiência da família do sr. Miguel, que lembra das viagens de
uma hora e meia de montaria (pequena canoa) para chegar à
comunidade Arapiranga para participarem do encontro do grupo de
evangelização de lá, até que foi possível a realização da primeira missa
em Campo Verde há aproximadamente vinte cinco anos.
Para Moura (1986), cada processo existencial do camponês, ou
seja, nascer, viver e morrer, existem concepções e práticas que tentam
prevalecer sobre as práticas e regras da sociedade que o envolve e
domina. É o que acontece com suas concepções religiosas. Muitas
vezes o camponês se dirige à divindade sem a mediação da igreja oficial,
apenas por meio de um membro da comunidade que detém um saber
religioso reconhecido pelos demais e que é eficaz nos momentos de dor

256
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

ou de ameaça social. O peso da religião é maior na cultura simbólica


camponesa

[...] porque fornece uma explicação cheia de


sentidos e de sinais para quem observa
diariamente o mistério da terra, da água e do ar,
bem como a incompetência dos poderes
seculares para atender às necessidades inerentes
ao seu modo de vida (MOURA, 1986, p. 22).

O sentido de comunidade

O termo comunidade é bastante corriqueiro nas falas dos


moradores de Campo Verde, onde se observa que este termo possui
um caráter administrativo, religioso, político e territorial.
Na dimensão religiosa e administrativa, segundo os presidentes
ou coordenadores locais da Igreja, a comunidade é uma divisão
territorial e administrativa cujo objetivo é organizar e tornar mais eficaz
a administração da Igreja Católica, ou seja, são unidades locais através
das quais a Igreja Católica se constitui e marca sua presença.
A comunidade surge, para as próprias famílias, quando elas
começam a se reunir para realizar as orações, as novenas e cantar a
ladainha de casa em casa. Para a Igreja Católica, ela se torna oficial
quando estas famílias pedem que sejam reconhecidas como
comunidade católica e entram com um processo para este
reconhecimento. Com o reconhecimento oficial, são formados diversos
grupos (evangelização, catequese, dízimo, jovens, etc.) e uma diretoria
ou coordenação da comunidade religiosa, cuja expressão material no
território ocorre com a construção da igreja e da barraca da santa,
também chamada de Salão Paroquial.
A dimensão política desta mesma comunidade religiosa aparece
quando, nos próprios encontros religiosos nas casas dos camponeses
ou na igreja, além dos momentos de oração, também são discutidos os
problemas que as famílias vivenciam e são buscadas soluções para os
mesmos. Neste sentido, um membro da comunidade não precisa ser da
religião católica, mas se ele mora naquele povoado e participa de outros
momentos vivenciados pelas famílias e de outras formas de organização
social que não a religiosa, será considerado também um membro da
comunidade. Esta dimensão começou a aparecer de forma significativa
257
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

a partir da década de 1960, com a criação das Comunidades Eclesiais de


Base (CEBs)89.
Assim, o território da comunidade foi se definindo a partir da
participação religiosa/política das famílias. É um território marcado
fortemente por relações de parentesco, compadrio e vizinhança entre as
famílias, relações que permitem uma certa coesão entre elas, o que não
evita, é claro, divergências de opinião. Assim, quem faz parte do
território da comunidade é quem vivencia estas relações, é quem
participa das questões políticas e religiosas que envolvem as famílias,
ainda que não dê a mesma importância para essas questões ou que não
participe efetivamente da vida religiosa (católica) da comunidade.
Sendo assim, nesta perspectiva, a comunidade é praticamente
sinônimo de povoado. De acordo com Almeida (2006), por mais que
não haja uma correspondência exata entre os povoados, produto da
agregação, e as comunidades que os articulam segundo diferentes
planos de organização social, pode-se afirmar, guardadas as distinções,
que se tratam de situações passíveis de aproximação. Para ele, os
povoados consistem em realidades empiricamente observáveis,
enquanto que as comunidades compreendem relações sociais como
vizinhança, situação comum de interesses, identidade e formas de ação
comum que podem ser lidas como relações comunitárias.

A organização do trabalho e da produção

A unidade básica de trabalho das famílias de Campo Verde é a


sua posse. Nela está o sítio, local onde está localizada a casa da família;
o centro, onde encontramos a roça, e o retiro, onde fica a casa de
farinha, uma espécie de fábrica doméstica. Todos são espaços de
trabalho e socialização entre homens, mulheres, crianças, jovens e
adultos e idosos.
O sítio é o espaço de responsabilidade da mulher. Nele,
geralmente, estão: casa, poço, banheiro, pomar, chiqueiro, galinheiro
(com galinhas, patos, perus), a casa de ferramentas onde às vezes existe
um forno à lenha. No sítio também encontramos as plantas medicinais
como: mastruz, cidreira, anador, hortelã, arruda, catinga de mulata,
89
De acordo com Betto (1986), as CEBs são pequenos grupos organizados em
torno da paróquia (urbana) ou da capela (rural), animados pelos chamados
agentes pastorais e criados por iniciativas de leigos, padres ou bispos.
258
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

cravinho de defunto, manjerona, etc. As mulheres acordam no mesmo


horário que os homens, às vezes até mais cedo, mas antes de irem para
o centro - onde realizam o plantio, a capina e a colheita - precisam
cuidar do café da manhã e da merenda que irão levar para o local de
trabalho. Antes do almoço, ou voltam para casa, ou fazem o almoço em
um fogaréu improvisado. À tarde também voltam mais cedo para casa
para fazer o jantar, carregar água, lavar o que for preciso. Quando a
família precisa fazer a farinha de mandioca, a mulher também vai para a
casa de farinha, no retiro.
O centro é de responsabilidade do homem, local onde fica a
roça, base de sustentação econômica das famílias. O tamanho da roça
varia de uma até dez tarefas (25m 2 cada tarefa), dependendo do número
de membros da família que possam trabalhar e da necessidade familiar.
Fazer uma roça é um trabalho demorado, que depende do
tamanho da área, da mão-de-obra disponível, do tipo de produto
cultivado e do ritmo da natureza, pois é necessário esperar que cessem
as chuvas para poder preparar a terra com a broca, derruba, queima e
por último a coivara, se precisar. Segundo o sr. Tomé, no momento do
preparo da terra algumas mulheres fazem a broca, mas a derruba do
capoeirão não, esse é trabalho que só os homens fazem.
Depois do preparo da área, homens e mulheres trabalham
juntos, sendo esse o momento de iniciar o plantio com o milho, se
houver necessidade deste produto, e em seguida a maniva, o feijão e o
arroz. São freqüentemente plantados em meio à maniva: jambu, maxixe,
melancia e macaxeira. No tempo de cada produto a colheita é realizada,
ficando somente a maniva que pode demorar de oito a treze meses,
dependendo do tipo de mandioca e da necessidade familiar.
Depois de realizar o plantio duas ou três vezes na mesma roça é
necessário deixá-la por mais ou menos cinco a seis anos para que haja a
regeneração da vegetação e seja possível cultivá-la novamente. Nesse
interim, é necessário utilizar outra parcela da posse para repetir o
mesmo procedimento, ou seja, há um rodízio das terras cultivadas.
O trabalho na roça pode ser feito por uma família, por um
conjunto de famílias ligadas por laços de parentesco, ou por um
conjunto de famílias ligadas por laços de amizade e de vizinhança. É
neste trabalho que se observa a ajuda mútua sendo praticada entre as
famílias sob a forma de troca de dia. Assim, o trabalho na roça e no

259
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

retiro expressa as relações que o camponês possui com a família,


parentes e vizinhos.
O retiro é o local onde está localizada a casa de farinha e que é
de responsabilidade de toda a família. O retiro pode ficar no sítio ou no
centro, e se houver um igarapé na posse, o ideal é que ele fique
próximo ao igarapé, para facilitar o transporte da mandioca do igarapé
para ele. Se não tem igarapé na posse, geralmente as famílias constroem
um tanque ao lado da casa.
A casa de farinha é onde se produz a farinha, principal e, muitas
vezes, o único produto comercial da maioria das famílias. O trabalho
para o preparo da farinha é dividido entre homens e mulheres. Os
homens geralmente ficam no forno assando a farinha, pois é um
trabalho muito cansativo. As mulheres cuidam das outras etapas da
produção como amassar, peneirar e prensar a massa da mandioca.
Quando a mandioca é colocada em uma prensa e não no tipiti é o
homem que faz este serviço, pois é uma tarefa mais pesada. Parece-me
que o critério para a divisão do trabalho é a força física necessária para
a realização do serviço.
Na casa de farinha encontramos a concha/massadeira ou motor,
o tipiti ou uma prensa, a peneira com a caixa onde deve ficar o que foi
peneirado, e o forno. O ideal é que cada membro da família fique
responsável por um destes instrumentos para que se possa agilizar a
produção da farinha. Esta produção é cansativa e demorada, e
dependendo da quantidade que se quer produzir, da força de trabalho
disponível e do tipo de mandioca que será utilizada, pode demorar de
um a cinco dias.
Nesta organização do trabalho e da produção, as crianças
também têm sua parcela de contribuição. As que têm acima de seis
anos geralmente estudam, e no período em que não estão nas aulas
acompanham seus pais nas tarefas do dia a dia. Esse acompanhamento
tem um significado importante, pois elas observam o que os pais fazem,
ou no centro ou em casa, e nas brincadeiras reproduzem e aprendem o
trabalho. Conforme a idade, principalmente entrando na adolescência,
as crianças vão desempenhando pequenas tarefas como levar o almoço
ao centro, se a roça for próxima do sítio, geralmente os meninos é que
fazem isso, ou se menina, lavar a louça, carregar água onde não há água
encanada, fazer pequenas tarefas em casa ajudando a mãe. No retiro

260
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

geralmente ajudam a raspar a mandioca ou a tirá-la da água quando fica


de molho.
De acordo com Tavares dos Santos (1978), a socialização é um
elemento estrutural da produção camponesa. O trabalho passa a fazer
parte do mundo infantil, o que faz com que a criança internalize a sua
importância como meio da ganhar a vida e passe a vivenciar, por meio
da aprendizagem e da participação na força de trabalho familiar, a
exploração do camponês.
Na unidade camponesa a força de trabalho é utilizada de acordo
com o valor de uso que possui, não sendo realizada a separação do
trabalho da pessoa do trabalhador e nem a conversão desta força em
mercadoria. Cada pessoa desenvolve um trabalho que é útil e concreto,
mas somente de acordo com sua capacidade e a necessidade da família.
É esta necessidade que também permite a coexistência muitas vezes
deste trabalho familiar com a ajuda mútua, o trabalho acessório e o
assalariado (TAVARES DOS SANTOS, 1978).
Cada uma das situações citadas - a ajuda mútua, o trabalho
acessório, o assalariamento e até as outras formas de vencimento -
contribuem para que a unidade familiar se mantenha e se reproduza
enquanto camponesa na medida em que busca, de acordo com suas
possibilidades, as diversas alternativas de adquirir não só força de
trabalho necessária para o trabalho na posse, mas com isso a melhoria
de sua condição de vida enquanto camponês.
Além das relações estabelecidas entre as famílias, há uma relação
com a natureza em sua volta. Assim, o plantio, quando realizado, não
leva em consideração somente o período de sol ou de chuva, mas
também as fases da lua, como relata senhor Tomé, da Comunidade
Campo Verde:

[...] na época que não serve pra plantio não planta


[...] mas mesmo com essa chuva que deu, pra
mim ainda não presta pra plantá, porque a época
da lua [...] a época da lua agora crescente não
presta pra plantá nada [...], lua cheia também
principalmente o milho não presta, dá broca e a
broca devora o milho e não presta [...] minguante
e lua nova que planto, tem que esperar a lua lá
pro dia 20 em diante presta pra fazé o plantio [...]
a chuva prestô, valeu porque a gente tem a planta

261
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

né, maniva né, maniva varando a terra como


tenho ali plantado, valeu muito essa chuva, mas
pra plantio não presta [...] (informação pessoal)90.

São nestas múltiplas relações entre os homens e entre eles e a


natureza, que os camponeses de Campo Verde buscam, na persistência
do dia a dia, formas de permanecer no campo, na sua própria terra, de
forma digna. Para isso, buscam aproveitar o que podem dos recursos
que a terra, os rios e igarapés (com a pesca) e a floresta (com a caça e o
extrativismo) oferecem.

Considerações finais

Entender o campesinato por dentro de seu território,


conhecendo o emaranhado de suas relações políticas, econômicas e
religiosas, nos propicia elementos para acreditarmos na sua persistência
e resistência frente ao processo de desenvolvimento do capitalismo no
campo, no caso em estudo, no campo paraense, e frente a ideia
postulada por diversos estudiosos sobre o seu desaparecimento neste
processo.
Aqui apresentei a comunidade Campo Verde, um Território
Quilombola que mostra no seu dia a dia a sua existência, persistência e
resistência frente ao avanço do capital. E mostra por meio de suas
diversas formas de se organizar e de se relacionar com o território que é
muito mais complexo do que mostro aqui. Vários outros aspectos desta
relação ainda podem ser levantados, como por exemplo o lazer, que
permite maior interação entre as famílias da comunidade com as do seu
entorno, e a comercialização da produção familiar.
Conhecer as comunidades por dentro, por meio de trabalhos de
campo que permitam vivenciar um pouco do seu dia a dia, com certeza
nos permitirá diálogos mais aprofundados acerca da realidade complexa
vivida por milhares de camponeses na Amazônia. E assim, pensarmos e
porque não ajudarmos a construir um campo diferente ao que o capital
nos propõe.

90
Tomé Lopes de Oliveira, entrevista à autora em dez./2008.
262
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombolas e base de


lançamento de foguetes de Alcântara: laudo antropológico /
Alfredo Wagner Berno de Almeida. – Brasília: MMA, 2006.

BETTO, Frei. O que é comunidade eclesial de base. 6º ed. São


Paulo: Editora Brasiliense, 1986. (Coleção Primeiros Passos, nº 19).

CNBB. Conselho Nacional dos Bispos do Brasil. 2009. Disponível


em: <http://www.cnbbn2.org.br>. Acesso em: 09 jul. 2009.

COSTA, Rita de Cássia Pereira. “Como uma Comunidade”: formas


associativas em Santo Antonio /PA – imbricações entre parentesco,
gênero e identidade. 2008. Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – Antropologia, do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do
Pará.

INCRA. Instituto Nacional De Colonização E Reforma Agrária.


Comunidades quilombolas Santo Antônio, Ipanema, Igarapé
Dona e Campo Verde. Belém: INCRA, 2005. (Relatório Técnico de
Vistoria, nº 187).

MOURA, Margarida Maria. Camponeses. São Paulo: Ática, 1986.


(Série Princípios, 52).

TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Colonos do vinho: estudo


sobre a subordinação do trabalho camponês ao capital. São Paulo:
HUCITEC, 1978. (Coleção Ciências Sociais, Série Realidade Social).

263
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Meandros da condição camponesa na Comunidade de


Arapiranga – Nordeste do Pará

Rafael Benevides de Sousa91


Jacob Binsztok92

Introdução

As reflexões trazidas neste ensaio resultam de uma pesquisa


realizada na comunidade de Arapiranga no município de Concórdia do
Pará, Nordeste paraense. O objetivo é compreender o processo de
recriação camponesa por meio das relações de subordinação e
autonomia do campesinato na referida comunidade.
Identificamos os moradores de Arapiranga como camponeses
que cultivam por meio do sistema de roças uma agricultura que serve
tanto para a própria alimentação como para a comercialização, tendo a
unidade familiar o elemento chave para a reprodução social desses
agricultores.
Salientamos ainda que os camponeses de Arapiranga alicerçam
em suas unidades produtivas o trabalho familiar, a realização do
mutirão e laços de solidariedade entre familiares e vizinhança, a
circulação simples de mercadoria e forte religiosidade materializada na
comunidade por meio das festas de santo, cultos e celebrações.
Nos estudos de Jean Hébette et. al. (2004), entendemos que na
Amazônia possa existir uma diversidade camponesa que ora se
diferencia e ao mesmo tempo se apresenta com características
semelhantes. A roça, por exemplo, é por excelência uma característica
marcante do universo camponês amazônico. Tanto o ribeirinho, como
quilombola, castanheiro, seringueiro etc., também possuem seus
sistemas de roças e estruturam formas produtivas de produção
parecidas, como o trabalho familiar, ajuda mutua ou mutirão e uma
agricultura para a subsistência do grupo doméstico.
91
Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade
Federal Fluminense. E-mail: benevidessousa@gmail.com
92
Professor do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade
Federal Fluminense. Pesquisador do CNPq e membro do Comitê de
Agricultura Familiar do Programa Nacional de Biocombustível. E-mail:
jacob.binsztok@terra.com.br
264
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Em Arapiranga não encontramos um elemento que particularize


a comunidade em meio à diversidade de categorias que emergiram na
Amazônia em fins da década de 1980 93. Contudo, ao adentramos no
universo da comunidade, notamos que a mesma se aproxima ao que
Woortmann (1990) denomina de campesinidade.
Woortmann (1990, p.13-14) nos chama a atenção para a
existência de uma campesinidade “entendida como uma qualidade em
maior ou menor grau em distintos grupos específicos”, nesta lógica
“não encontramos, então, camponeses puros, mas uma campesinidade
em graus distintos de articulação ambígua com a modernidade”.
Ainda em Woortmann (1990, p. 23) entendemos a existência de
“certas categorias comuns às sociedades camponesas em geral, como
terra, família e trabalho”. Para o autor, “nas culturas camponesas, não
se pensa a terra sem pensar a família e o trabalho, assim como não se
pensa o trabalho sem pensar a terra e a família” (1990, p. 23).
Essas categorias delineadas por Woortmann se particularizam no
universo campesino e, especificamente, em Arapiranga por não estarem
a serviço da acumulação de capital, mas para a geração de renda e,
assim, satisfazer a necessidade básica da família.
Em Arapiranga, a tríade terra, família e trabalho representam o
elo que articula e garante a sobrevivência do grupo doméstico. No
trabalho familiar não existe o salário, as relações de trabalho são tecidas
a partir da hierarquia familiar e pelos laços de solidariedade entre a
vizinhança. Além disso, na agricultura camponesa não há a lógica do
lucro, ou seja, é quase inexistente a acumulação de capital. É neste
ponto que está a diferença entre a agricultura camponesa e a agricultura
capitalista entendida neste trabalho, a primeira visa à sobrevivência da
família e a segunda à ampliação e à acumulação de capital.
Deste modo, ao adentrarmos em Arapiranga encontramos nas
unidades familiares um cotidiano de vida traçado pelo sistema de roças,
no qual desembocam relações de trabalho estritamente familiar. É o
93
Almeida (2004) nos chama atenção para uma nova estratégia dos movimentos
sociais na Amazônia, na qual não particularizam os sujeitos da ação atrelados
ao termo político associado ao camponês, mas sim vinculados a uma
denominação que os particularizam no espaço agrário. Emerge daí diversas
nomenclaturas identitárias tais como: quilombola, seringueiro, castanheiro,
quebradeiras de coco, entre outras. Contudo, para o autor, o surgimento destas
categorias não destitui o papel político das categorias de mobilização, como o
camponês e o trabalhador rural.
265
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

pai, a mãe e os filhos que sustentam a casa em uma divisão de gênero e


idade que se difere entre os grupos domésticos. Em tempos de se
confeccionar a roça é comum os trabalhos coletivos entre irmãos e
vizinhos, desencadeando, assim, nas práticas dos mutirões.
Até a primeira década do século XXI, a roça era praticamente o
único meio de sobrevivência das famílias de Arapiranga. Com a
introdução do dendê no município de Concórdia do Pará, os núcleos
familiares passaram a revezar o tempo de trabalho entre o campo de
dendê e suas roças, outras estão apenas com o trabalho assalariado na
empresa cultivadora da oleaginosa e algumas estão com a produção da
palma em suas respectivas propriedades.
Por outro lado, a inexistência do trabalho assalariado dentro das
propriedades, em Arapiranga, nos remete ao entendimento de que as
famílias desenvolvem uma produção não capitalista. O assalariamento
pode até ocorre com um ou mais membros da família, mas este
assalariamento se da fora da propriedade, e é, geralmente, externo à
comunidade, como vem ocorrendo com o trabalho remunerado nas
plantações do dendê.
Mas como poderia dentro do capitalismo existir unidades
produtivas que não desempenham relações tipicamente capitalistas de
produção? Para tal questão, recorremos à corrente marxista defendida
por Rosa de Luxemburg, na qual reconhece que “não houve nem há
uma sociedade capitalista que se baste por si mesma, na qual domine
exclusivamente a produção capitalista” (1976, p. 298). Partindo desta
perspectiva, entendemos que dentro de uma sociedade capitalista
também podemos encontrar relações não capitalistas de produção.
No Brasil, os trabalhos de José de Souza Martins e Ariovaldo
Umbelino de Oliveira também caminham para esta lógica de
pensamento, entendendo a reprodução camponesa dentro da sociedade
capitalista.
Para Martins (1996, p. 19-20), “o capitalismo, na sua expansão,
não só redefine antigas relações, subordinando-as à reprodução do
capital, mas também engendra relações não capitalistas igual e
contraditoriamente necessárias a essa reprodução”. Com isso,
entendemos que ao mesmo tempo em que o capitalismo se expande,
contraditoriamente ele constrói relações não capitalistas.
Ao mesmo tempo em que o capitalismo entra no campo
expropriando e proletarizando o camponês, também gera novos

266
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

territórios camponeses (MARTINS, 1980). Assim, mesmo expulsos de


sua terra, o homem do campo pode sair em busca de terra em outro
lugar, onde possa se reproduzir como camponês, agindo
contrariamente as perspectivas do capital. Do mesmo modo, que
também pode ocorre migrações envolvendo camponeses sem uma
perspectiva de reprodução da comunidade camponesa em si, podendo
se transformar em comerciantes, assalariados, intermediários e outros.
Porém, constituindo em parte uma lógica camponesa.
A expansão do modo de produção capitalista vem
transformando os espaços rurais, por meio de uma dinâmica territorial
que viabiliza um desenvolvimento desigual e contraditório, por meio de
ações socioeconômicas que destrói e ao mesmo tempo reconstrói as
relações sociais no campo (OLIVEIRA, 1991).
Deste modo, compreendemos a recriação camponesa por meio
da contradição do capital, pois e apesar de os princípios capitalistas
sugerirem modificações crucias na produção camponesa, ele (o
capitalismo) não destrói totalmente está produção familiar
(OLIVEIRA, 2004).
Oliveira (1991) afirma que, na medida que ocorre o avanço da
propriedade capitalista no campo, contraditoriamente, ocorre o avanço
da propriedade camponesa. Esta contradição é vista, quando alguns
camponeses nos municípios de Bujaru e Concórdia do Pará venderam
suas terras para empresas produtoras de dendê, mas ao mesmo tempo
compraram terras em outros lugares próximos, mantendo o seu
domínio sobre a terra.
É preciso especificar que não entendemos o camponês como
resíduo social, mas como produtores que ocupam um lugar especifico
na sociedade capitalista, experimentando o desigual mercado produzido
por esse sistema econômico. Neste interim, o dialogo com o mercado
se torna uma ação importante no processo de recriação, sendo nesse
jogo de acordos que ocorre a própria contradição do capital, no
processo de recriação camponesa.
Na Amazônia, algumas relações mercantis realizadas por
camponeses se dão necessariamente com o mercado local. Em estudos
sobre a expansão da fronteira na Amazônia, Hébette et. al. (2004) nos
ajuda a entender parte das relações mercantis gerada nas unidades
camponesas que, primeiramente, não possuem um princípio baseado
no capitalismo globalizado, mas, basicamente, por meio das redes de

267
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

vizinhança e com o comércio local, que se estabelece pela reciprocidade


e sociabilidade na comunidade rural. Contudo, é importante ressaltar
que ora vamos encontrar comunidades rurais mais interligadas a uma
órbita nacional e global, ora encontraremos comunidades integradas
apenas na escala regional e local.
Em Arapiranga, esta relação se dará por meio da comercialização
da farinha de mandioca. Notamos em campo que esta comercialização
ocorre de forma espontânea com os comerciantes locais, com
marreteiros e, por vezes, fora da comunidade. Porém, nestas relações
mercantis, os camponeses do Arapiranga não conseguem determinar o
valor de sua produção, sendo este sempre regulamentado pelo
mercado.
Nesse interim, a reprodução camponesa dentro da sociedade
capitalista, dar-se pela sujeição da renda ao capital, ou seja, o capitalista
se apropria da renda camponesa gerando mais-valia sobre a sua
produção (MARTINS 1980, OLIVEIRA 1991). Neste cenário “mesmo
quando o camponês pode ser considerado livre no sentido de ser dono
dos seus meios de produção, na nossa perspectiva continuará
subordinado” (VELHO, 1979, p. 52). Deste modo, entendemos que
mesmo que a organização produtiva do campesinato não alcance
relações tipicamente capitalistas, ela não foge das amarras do capital.
A base empírica que trazemos no bojo desta discussão, foi
apurada em pesquisa de campo realizada entre os anos de 2013 e 2014,
ao longo do trabalho, foram realizadas entrevistas que, por meio da
oralidade permitiu a elaboração do tema analisado.
Ao longo do texto, buscamos expor as principais considerações
acerca da pesquisa. Abordando os mecanismos e estratégias que os
moradores de Arapiranga assumem no espaço agrário paraense e, as
interferências que o capitalismo contemporâneo tem exercido em
frações do território amazônico nesta segunda década do século XXI.

Da autonomia à subordinação: o elo da recriação camponesa

O entendimento da agricultura camponesa na sociedade


contemporânea tem possibilitado várias interpretações acerca da
eficiência e do grau de relações que os pequenos produtores rurais vêm
realizando com o mercado. Em meio à grande extensão territorial do
Brasil, encontramos, em cada região e sub-regiões, diversas pequenas

268
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

agriculturas, algumas com uma forte integração ao mercado capitalista,


outras baseadas apenas no mercado regional e local.
Observamos que a produção agrícola em Arapiranga é dividida
entre a comercialização e o uso doméstico. Assim, salientamos que
parte do que é produzido na roça é cerceado pelo mercado capitalista e
a outra parte pela liberdade familiar.
Ao entrarmos no universo produtivo da comunidade, notaremos
que parte do que é produzido na roça é destinado à compra de
produtos que não são produzidos na propriedade, como sal, óleo,
vinagre, comida salgada, roupa, remédio, além de ter também outras
utilidades, como o pagamento de energia elétrica ou das prestações de
eletrodomésticos.
Deste modo, concluímos que ser por meio da venda dos
produtos da roça e da compra de produtos industrializados, quer ser
por meio do cultivo do dendê94, que os camponeses de Arapiranga
fazem parte da sociedade capitalista. Contudo, salientamos que a
mercantilização da agricultura acontece para saciar os anseios da família,
tal qual delineado por Santos (1984), ao estudar a economia doméstica
dos colonos de São Pedro, no Sul do país.

O camponês é a personificação da forma de


produção simples de mercadorias, na qual o
produtor direto detém a propriedade dos meios
de produção – (terra, objeto de trabalho e outros
meios de trabalho) – e trabalha com estes meios
de produção. Esta combinação de elementos faz
com que o camponês se apresente no mercado
como vendedor dos produtos de seu trabalho,
como produtor direto de mercadorias. Como
produtor, venderá seus produtos para adquirir
outros, qualitativamente diferentes, que possam
satisfazer suas necessidades de consumo
individual ou produtivo (SANTOS, 1984, p. 69).
De certa forma, o entendimento do que é exposto por Santos
(1984) nos ajuda a entender a economia doméstica organizada em

94
Durante a pesquisa de campo, observamos três famílias em Arapiranga
cultivando o dendê em suas propriedades. Este cultivo tem sido financiado
pelo banco da Amazônia e firmado contrato de compra (de adubos e mudas) e
venda (da oleaginosa) com a empresa Biopalma.
269
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Arapiranga, que tem como fundamento a produção simples de


mercadorias, na qual os produtos voltados para á comercialização são
destinados ao próprio bem-estar familiar.
Engendramos, assim, que dentro da sociedade capitalista possa
haver relações produtivas que não efetivem uma produção tipicamente
capitalista. Isso se explica, por exemplo, quando Rosa de Luxemburg
(1976) na terceira parte do livro A acumulação do capital, nos relata alguns
exemplos da apropriação capitalista sobre meios não capitalistas de
produção.
Notamos nos escritos da autora que o desenvolvimento do
capitalismo nos países imperialistas, em fins do século XIX,
estabeleciam relações comerciais com países que ainda experimentavam
outro sistema econômico, não necessariamente o capitalismo. Tal
situação fez com que Rosa de Luxemburg formulasse a teoria no qual o
capitalismo também pode (contraditoriamente) se reproduzir por meio
de relações não-capitalistas de produção.
Dessa maneira, compreendemos que o capitalismo se reproduz,
em parte, por meio das relações não-capitalistas, também que as
relações não-capitalistas podem ser recriadas pelo próprio capital.

O capitalismo necessita, para a sua própria


existência e desenvolvimento, estar cercado por
formas de produção não-capitalistas. Não se
trata, porém, de qualquer forma. Necessita de
camadas sociais não-capitalistas, como mercado
para colocar sua mais-valia, como fonte de meios
de produção e como reservatórios de mão-de-
obra para seu sistema assalariado. O capital não
pode alcançar nenhum de seus fins como formas
de produção de economia natural. Em todas as
formações de economia natural – comunidades
camponesas primitivas com propriedade comum
da terra, relações de servidão feudal ou outras
quaisquer – o que a define é a produção em
função das necessidades domesticas, e por isso
mesmo não existe ou é escassa a demanda de
mercadorias estrangeiras e, de modo geral, não há
excedente de produtos próprios ou pelo menos
nenhuma necessidade premente de dar saída a
produtos excedentes. Entretanto, o ponto

270
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

essencial é o seguinte; todas as formas de


produção da economia natural se baseiam, de um
modo ou de outro, numa dependência, tanto dos
meios de produção como das forças de trabalho.
As comunidades camponesas, assim, como a
propriedade feudal etc., fundamentam sua
organização econômica na conexão do meio de
produção mais importante – a terra – assim como
dos trabalhadores, pelo direito e tradição. Desse
modo, a economia natural oferece rígidas
barreiras, em todos os sentidos, às necessidades
do capital (LUXEMBURG, 1976, p. 317-318).

Rosa de Luxemburg, nós da pista para entendermos as relações


entre agentes capitalistas e não-capitalistas que, de certa forma, são
forjadas em Arapiranga como, por exemplo, as relações entre a empresa
produtora do dendê (Biopalma) e os camponeses, ou mesmo na
comercialização da farinha com os marreteiros. Contudo, não podemos
entender o camponês como sendo autossuficiente ou mesmo
independente do seu externo, sendo, atualmente, imprescindível o
intercâmbio com outras comunidades, com a cidade e, principalmente,
com os agentes do capital.
Por outro lado, algumas barreiras às formas de produção
capitalista são visíveis em Arapiranga. Em campo, observamos que,
antes da farinha de mandioca ser comercializada, esta passou por um
processo produtivo que desencadeou fortes relações tecidas a partir da
terra, como o trabalho familiar, a troca de dias no ato de confeccionar a
roça, a escolha da maniva mais bonita a ser plantada, a orientação da
Lua, a necessidade do grupo doméstico, dentre outras ações que são
baseadas em reciprocidade, sociabilidade e socialização entre as famílias
envolvidas no processo de trabalho com a terra.
Deste modo, percebemos que nesse processo produtivo não há
relações propriamente capitalistas, mesmo quando existem relações
monetárias, como diárias para se confeccionar a roça ou a farinha, tal
trabalho aparece como ajuda, não como um assalariamento. A relação
de trabalho envolvendo pagamento em dinheiro não aparece como uma
relação capitalista pelo fato de não haver um contrato formal, como a
carteira de trabalho assinada e o pagamento mensal ou quinzenal, além

271
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

de que o uso de pessoas por meio de diárias é algo esporádico,


ocorrendo somente quando a família precisa de mais mão-de-obra.
Nesse sentido, quando o camponês vende sua produção para o
mercado capitalista, vende um produto que parte de uma organização
produtiva não-capitalista e, assim, acontece sua recriação, por meio da
contradição do próprio capital, tal qual delineada por Rosa de
Luxemburg. Engendramos, assim, que da mesma forma que o
capitalismo se expande, reproduzindo relações tipicamente capitalistas,
também, contraditoriamente, trama relações não-capitalistas. Por outro
lado, “todas as classes e sociedades não-capitalistas devem adquirir as
mercadorias produzidas pelo capital e vender-lhe seus próprios
produtos” (LUXEMBURG, 1988, p. 334).
Um exemplo visto em Arapiranga foi o consórcio entre as
famílias que atualmente estão cultivando dendê com a empresa
Biopalma. Nesta relação, a empresa inicialmente forneceu para os
camponeses adubos, mudas e aluguel de maquinários, em outro
extremo, estes agricultores comercializarão a oleaginosa exclusivamente
com a empresa capitalista. Desta forma, notamos que o capital ao se
apropriar do fruto do trabalho familiar camponês, também possibilita a
reprodução social e cultural desses sujeitos na comunidade em que
estão inseridos.
Quando o camponês comercializa a sua produção, tal produção
integra ao circuito da reprodução capitalista do capital. Dessa forma,
podemos entender que o capitalismo pode se apropriar da renda
camponesa, mas não necessariamente do seu trabalho, tal como nos
apresenta Martins (1995).

Na medida em que o produtor preserva a


propriedade da terra e nela trabalha sem recurso
do trabalho assalariado, utilizando unicamente o
seu trabalho e o da sua família, ao mesmo que
cresce a sua dependência em relação ao capital, o
que temos não é a sujeição formal do trabalho ao
capital. O que essa relação nos indica é outra
coisa, bem distinta: estamos diante da sujeição da
renda da terra ao capital. [...] No Brasil, o
movimento do capital não opera, de modo geral,
no sentido da separação entre a propriedade e a
exploração dessa propriedade, no sentido da
separação entre burguês e o proprietário. O que
272
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

vemos claramente, tanto no caso da grande


propriedade quanto no caso da pequena, é que
fundamentalmente o capital tende a se apropriar
da renda da terra. O capital tem se apropriado
diretamente de grandes propriedades ou
promovido a sua formação em setores
econômicos do campo em que a renda da terra é
alta, como no caso da cana, da soja, da pecuária
de corte. Onde a renda é baixa, como no caso
dos setores de alimentos de consumo interno
generalizado, como os que já foram indicados, o
capital não se torna proprietário da terra, mas cria
as condições para extrair o excedente econômico,
ou seja, especialmente renda onde ela
aparentemente não existe (MARTINS, 1995, p.
175).

Martins (1995) nos expõe como se dá sujeição da terra ao capital,


apontando como o capital pode extrair a renda do trabalho camponês.
Nesse processo, as relações estabelecidas do campesinato com o
mercado capitalista, leva este a constituir um papel subordinado ao
capital.

Apenas quando o capital subordina o pequeno


lavrador, controlando os mecanismos de
financiamento e comercialização, processo muito
claro no sul e sudeste, é que sub-repticiamente as
condições de existência do lavrador e sua família,
suas necessidades e possibilidades econômicas e
sociais, começam a ser reguladas e controladas
pelo capital, como se o próprio lavrador fosse um
assalariado do capitalismo (MARTINS, 1980, p.
60).

Nessa perspectiva, notamos que, quando o camponês estabelece


relações com o mercado, ele se limita às exigências do capital,
orientando a sua produção pela necessidade de vender seus produtos.

O próprio capital cria as condições para que os


camponeses forneçam matéria-prima para as
indústrias capitalistas, ou mesmo viabilizem o

273
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

consumo dos bens industrializados no campo


(ração na avicultura ou para a suinocultura). Isso
revela que o capital sujeitou a renda da terra
gerada pelos camponeses à sua lógica, ou seja, se
está diante da metamorfose da renda da terra em
capital. Revela-se, portanto, que tem-se à frente o
capital, que nunca deriva de relações
especificamente capitalistas (OLIVEIRA, 2004,
p. 42)

Esta sujeição camponesa delineada por Oliveira (2004) nos ajuda


a entender algumas relações produtivas que são tecidas em Arapiranga,
como foi o caso da diminuição da produção de arroz por algumas
famílias. Isto se deve, segundo João Ferreira Belém, “porque agora tá
vindo arroz de lá de fora pra dentro né, aí os mercado tão cheião de
arroz. Aí, as pessoas que plantavam, em vez de ir ter toda aquela mão-
de-obra, preferem comprar” (entrevista cedida em 29 de maço de
2014). Por outro lado, podemos frisar que o arroz poderia possuir
“baixa qualidade” para os padrões do mercado atacadista, o que
paulatinamente ocasionou na perda de mercado.
De certa forma, notamos que o comércio de Concórdia do Pará
não tem mais interesse de comprar produtos agrícolas, como arroz e
feijão, oriundos diretamente da agricultura camponesa, importando tais
produtos para o município. Nesse sentido, percebemos que o mercado
capitalista local tende a reordenar a base produtiva dos pequenos
produtores, verticalizando, basicamente, a produção apenas na farinha
de mandioca.
Por outro lado, observamos que o deixar de plantar arroz
também tem se dado pelo baixo teor nutritivo da terra, como nos relata
João Ferreira Belém, “nós já tem comprado (arroz) aqui, quando falta a
gente compra. Por que a terra ficou fraca, não produz mais, e a gente
não tem uma certa condição pra mexer com adubo né”, (entrevista
cedida em 29 de março de 2014). Neste contexto, entendemos que a
diminuição da produção também tem se dado por uma questão
ambiental e, principalmente, pela falta de recursos para investimentos
em insumos químicos.
Com a diminuição da variedade de gêneros agrícolas voltados à
comercialização, a mandioca tem se tornado um dos principais
organismos vegetais do sistema de roça na comunidade.

274
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

A mandioca é indispensável, porque é ela que


movimenta nossa economia um pouquinho.
Milho, é arroz, macaxeira, a gente planta pro
nosso consumo mesmo né. A gente não vendi
assim, a gente cria animais. A preocupação mais
é plantar a mandioca, porque dela você tira a
farinha, você vende a goma, você arranca da roça
e já coloca no carro, leva pra vender também
(Maria das Graças do Carmo Belém, 29 de março
de 2014).

Nesta entrevista, é destacada a importância da mandioca em


detrimento aos demais gêneros agrícolas encontrados na roça. Desse
modo, a agricultura camponesa em Arapiranga se divide pela
necessidade de ter produtos voltados à comercialização e pela liberdade
de plantar parte do que é consumido na dieta familiar. Entendemos,
assim, que nesta necessidade está a subordinação dos camponeses ao
capital, à medida que ocorre a verticalização da produção da farinha,
enquanto que a liberdade marca a autonomia que as famílias da
comunidade possuem em produzir o que almejam consumir.
Parte da renda camponesa em Arapiranga é transformada em
capital pelo sistema de marretagem. Nesse caso, consideramos que os
marreteiros exercem na comunidade a mesma função dos regatões 95 no
passado, porém adaptados as condições do transporte rodoviário. São
típicos agentes do capitalismo mercantil, que rompe em parte as
tradicionais operações de aviamento, que caracterizou a atividade
econômica no interior amazônico, acendendo um papel burguês que
tentar romper esta estrutura arcaica.
Neste processo, o camponês vende a farinha para o marreteiro a
um preço, este, por sua vez, revende ao comércio por outro preço, que
chega ao mercado consumidor por outro valor. Neste sistema

95
Os regatões foram embarcações que realizavam o processo de aviamento
entre as comunidades ribeirinhas e os portos dos grandes centros urbanos na
Amazônia (Manaus, Belém, Santarém, etc.) até meados do século XX. No caso
de Arapiranga, por estar situada na bacia hidrográfica do Rio Bujaru (próximo
a capital paraense), foi durante muito tempo dependente destas embarcações,
tanto para a comercialização agrícola da comunidade como também na compra
de utensílios não produzidos pelos camponeses.
275
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

comercial, foi agregado mais-valia sobre a produção realizada na


comunidade, gerando a produção de capital.
Outra forma de comercialização é quando os camponeses
vendem diretamente para as redes de supermercado nas sedes
municipais de Bujaru ou Concórdia. Neste caso, às vezes ocorre apenas
uma troca de mercadoria entre a farinha e outros mantimentos da dieta
familiar. Ainda podemos apontar uma terceira forma de se vender a
farinha, que pode ocorrer nas feiras das cidades de Vigia, Marituba ou
Belém, nesse caso pode ocorrer a venda tanto para os donos de
supermercado como para os marreteiros.
Entendemos que quando os camponeses vendem suas
produções diretamente ao mercado consumidor é a circunstância em
que ele tem para se tornar totalmente liberto, estando livre da sujeição
ao capitalista.
Observamos em campo que no processo de comercialização da
farinha de mandioca, a qualidade da mesma é um dos fatores
primordiais para uma boa venda.

Quando a farinha é boa vende mais rápido,


quando é feia dificulta a venda. A tendência agora
é fazer mais bem feita porque se fazer feia o
Marreteiro, ninguém compra. Lá na Vigia,
Marituba, se for feia não vende, Teve um cara
que viajou quinta-feira agora, parece que voltou
30 pacote de farinha feia, não quiseram né
(Lazaro Felix da Silva, 28 de março de 2014).

Desse modo, as exigências do mercado têm levado muitos


camponeses a melhorarem a qualidade de suas produções. O uso de
corante tem sido uma estratégia para uma melhor aparência da farinha,
além de que o uso de motores elétricos, segundo alguns entrevistados,
ajuda na composição para melhorar o gosto deste produto.
A produção da farinha de mandioca, de forma particular em
Arapiranga, não é caracterizada por uma relação entre a indústria
agrícola e o campesinato. As relações comerciais tem se estabelecido
por meio de uma comercialização informal, na qual a venda do produto
é direcionada pelo contato mais de imediato na comunidade:
camponeses x marreteiros, camponeses x comerciantes e camponeses e
consumidores.

276
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

A persistência do campesinato no interior de uma


sociedade globalmente subordinada ao capital e
numa área de influencia progressivamente,
penetrante por relações tipicamente capitalistas
de produção apóia-se no intercambio espontâneo
entre unidades camponesas e em relações
mercantis com o comércio local (HÉBETTE,
2004, p 151).

Hébette (2004) nos ajuda a entender as relações comerciais


praticadas em algumas partes da Amazônia e de forma particular em
Arapiranga. Nesta lógica, os camponeses organizam uma base de
comercialização sempre visando o comercio local, na qual a produção
da farinha entra diretamente no mercado interno paraense, ou seja,
quem abastece a cidade com a farinha de mandioca é a agricultura
camponesa.
A comercialização fora da comunidade tem sido uma estratégia
dos camponeses para conseguirem um melhor preço, fugindo dos
marreteiros e comerciantes locais, que pré-determinam um preço
menor do que o vendido nas feiras livres dos municípios vizinhos.

A gente leva daqui né. Aí chega lá vende pros


marreteiros que parece né, interessado. Essas
pessoas que trabalham com o mercado, assim de
venda né. A gente vai hoje e volta amanhã. Faz a
venda amanhã de manhã lá. Por exemplo, se eu
for hoje, amanhã de manhã eu faço a venda.
Atravesso na balsa em Bujaru das 10 horas, aí
chega lá 11 horas da noite, meia-noite, por aí. Aí,
de manhã faz a venda e vem embora (João
Ferreira Belém, 29 de março de 2014).

Ainda sobre o processo de comercialização, Orimar Ferreira da


Silva relata,

Quando eu faço assim 20 pacote, eu saio pra


vender, eu mesmo vou vender na feira. Coloco a
farinha aqui e chego lá, tem que paga 4,50 pro
caminhão do frete. Aí, chegando lá, vamo ver se
a gente consegue vender por um bom preço. Se

277
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

não der a gente vende barato mesmo (Orimar


Ferreira da Silva, 29 de março de 2014).

Partindo da perspectiva destas falas, notamos em Arapiranga


dois processos de distintos de comercialização da farinha de mandioca,
um primeiro quando ocorre a venda na própria comunidade e um
segundo quando os camponeses saem para vender. Ambas as relações
comerciais mostram a subordinação camponesa ao mercado capitalista
regional, na qual o preço de sua produção é atribuído pelos marreteiros,
não tendo o camponês o poder de determinar o valor de sua própria
produção.
Outra relação de subordinação camponesa encontrada em
Arapiranga é por meio de algumas famílias que passaram a cultivar o
dendê em suas propriedades. Neste segmento agrícola, na esperança de
conseguir um melhor rendimento com a palma, os agricultores se veem
amarrados em acordos contratuais com a Biopalma, estando
dependentes da tecnologia e da comercialização com empresa.
Esta relação entre empresa e camponeses é muito mais visível no
sudeste e sul do Brasil. Nestas regiões encontra-se um campesinato
mais integrado ao mercado, por outro lado, na Amazônia, o
campesinato encontra-se na sua maioria na informalidade comercial,
atrelado ao mercado local e regional.
Nesta sequencia, notamos em Arapiranga que a inserção da
agricultura camponesa na produção do dendê, perde parte da
autonomia sobre sua propriedade. Se na confecção da roça, o
camponês leva em consideração o numero de braços e a necessidade da
família, para a o cultivo da oleaginosa, percebemos que o tamanho da
terra destinada para o cultivo da palma é orientada pela empresa, na
qual os braços existentes na família não são o suficiente, além de não
estarem preparados tecnicamente para o manuseio da palmácea.
Apesar de encontramos essas relações de subordinação da
agricultura camponesa ao capital, também encontramos o oposto em
Arapiranga. Nas falas dos camponeses da comunidade, notamos que a
importância da roça não se encontra apenas como uma lavoura para a
comercialização, mas também para o provimento alimentar da família.

A farinha, o arroz, quando a gente planta muito,


milho se for muito. Agora a gente planta pouco
milho, mais pro consumo dos bichos, dos
278
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

animais né. E arroz também às vezes a gente


colhe dois, quatro sacos, meu irmão que colhe
pra vender. Nós mesmo é mais pra comer e
guardar a semente de um ano pra outro. Quando
perde a semente, a gente compra, ou às vezes o
vizinho tem né. A gente fala, ah vizinho a gente
não tem semente, aí eles dizem, não! Eu tenho, te
arranjo um pouco, aí o vizinho arranja. Quando
não a gente vai na rua e compra. No
supermercado tem semente pra vender, por
exemplo, de feijão você tem de plantar e de
comer né. O de plantar eles vêm pacotão numa
vasilha que seja adequada pra semente não
estragar (Maria Lúcia da Silva Ferreira, 06 de
maio de 2013).

Na fala de Maria Lúcia, encontramos uma produção voltada


exclusivamente para a dieta familiar. Notamos em Arapiranga que a
venda do arroz, feijão e do milho só se dar quando a família produz o
bastante que dê a possibilidade de vender o excedente.
O fato de a roça suprimir grande parte da alimentação da família
camponesa caracteriza a autonomia do núcleo domestico, na medida
em que produz sua própria subsistência, não tendo que comprar no
mercado. Do mesmo modo, em que ao produzir um excedente, pode
ainda, comercializar parte do que cultivou.
A roça é um lugar privilegiado para o provimento da
sobrevivência de muitas famílias na comunidade, tomando parte
significativa da vida desses camponeses, como fica evidente na fala de
Nicilene Cardoso da Silva, “pra nós aqui é o maior bem que nós temos,
principalmente porque a maioria das coisas a gente não compra, a gente
tira da roça. É a nossa riqueza que nós temo aqui é a roça” (entrevista
em 30 de maio de 2013).
A segurança alimentar de parte das famílias da comunidade é
provido pela roça. Deste modo, notamos que em meio à necessidade
camponesa local, surge também uma liberdade sobre parte do que é
produzido para a mesa dos grupos domésticos. Assim, a divisão do que
é cultivado para comercializar e o que é para comer, marca o elo entre a
subordinação e a autonomia no processo de territorialização camponesa
em Arapiranga.

279
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Neste sentido, o que rege a produção camponesa em Arapiranga


é a necessidade familiar e nunca as demandas do mercado capitalista.
Por exemplo, se o preço da farinha estiver baixo, a família irá fazer uma
determinada quantidade de farinha que gere uma renda satisfatória para
o sustendo do grupo. O mesmo acontece quando o preço da farinha
está em alta, o numero de pacotes de farinha tende a diminuir, seja pela
falta de mandioca, ou mesmo pelo fato de fazer a produção em
pequena quantidade satisfaça a necessidade da família naquele
determinado momento. Contudo, não se pode afirmar que isto é uma
regra na economia camponesa.
O camponês constituindo um universo produtivo que vise
primordialmente a sobrevivência do núcleo familiar não pode ser visto
como à parte ou mesmo de fora da sociedade capitalista, ou mesmo ser
visto como um resíduo social a ser extinto do espaço agrário.
A base produtiva da farinha de mandioca no nordeste paraense
(para não dizer em todo o Estado do Pará, e porque não na Amazônia)
é oriunda da agricultura camponesa, mesmo aquelas outras ramificações
de uma campenisidade amazônica como seringueiro, castanheiro,
quilombolas, ribeirinhos, sempre possuem um roça de mandioca para a
confecção da farinha.
Nesta perspectiva, podemos afirma que sem camponeses não há
farinha de mandioca na mesa dos paraenses. A diminuição das tarefas
de roças inflacionou, por exemplo, o preço da farinha no mercado
interno no Estado do Pará em 2012. Desta maneira, notamos que a
agricultura camponesa é presença marcante na sociedade capitalista
contemporânea sem, contudo, produzir aos moldes do capital, ou seja,
uma produção não capitalista.
Com isso, entendemos que é na subordinação ao capital que o
campesinato contemporâneo é recriado, e que está subordinação
redefine algumas sinuosidades no modo de vida, mas não liquida a
autonomia.

Considerações Finais

A pesquisa na comunidade de Arapiranga nos levou a entender


parte da vida camponesa no mundo contemporâneo, no qual sua
reprodução social tem se baseado na sua subordinação ao capital e ao
mesmo tempo na experiência de uma autonomia cerceada pela

280
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

possibilidade de plantar e colher parte do que é consumido em sua


mesa.
Na agricultura praticada na comunidade, encontramos uma
variedade de gêneros agrícolas, como o arroz, o feijão, o milho e a
mandioca. Alimentos esses que são a base de sustentação da mesa
desses camponeses. Diante dessa agricultura diversa, encontramos uma
divisão alicerçada pela necessidade de comercialização e pela liberdade
de plantar o que se consome.
A mandioca é o que rege a economia camponesa na comunidade,
apesar da incipiente produção de dendê. Por meio da venda da farinha,
adquire-se dinheiro para, posteriormente, comprar o que não é
produzido na roça, como os produtos industrializados, estabelecendo,
assim, a participação desses pequenos agricultores na sociedade
capitalista contemporânea.
Por outro lado, observamos a liberdade desses agricultores, na
medida em que continuam a plantar parte do que é servido em suas
mesas. O arroz e o feijão não são comercializados, mas servem de
alimento pra família. O milho é transformado em ração para os animais
que também entram da dieta do grupo doméstico. Deste modo, ainda
persiste uma autonomia camponesa no gerenciamento da unidade
produtiva, mesmo que parcialmente.

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Os “nós” da questão agrária na Amazônia

283
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Pescadores Artesanais em Unidades de Conservação:


situando o debate no contexto da Reserva Extrativista
Marinha de Soure, Marajó (PA)

Evandro Carlos Costa Neves96


Fabiano de Oliveira Bringel97

Introdução

Na segunda metade do século XVII, inicia-se o estabelecimento


dos pesqueiros reais nos sítios de pesca no Marajó, sob a influência da
coroa portuguesa que, com êxito, aproveitou a oportunidade de
exploração dos recursos pesqueiros na região amazônica. Dois foram os
motivos principais que levaram a coroa portuguesa a explorar a
variabilidade ictiológica relevada pelas pescarias na Amazônia: a
piscosidade e beligerância ictiológica das águas; as técnicas eficazes dos
indígenas para a captura dos cardumes (VERÍSSIMO, 1970).
À medida que a coroa portuguesa se expande pelo território
durante sua empreitada colonizadora, os pesqueiros reais se constituem
como principal estratégia de abastecimento alimentício de suas tropas
militares, assim como para o mercado externo, quando os recursos
pesqueiros deixam de ter importância apenas local e assumem papel
importante na economia doméstica e pública de Portugal.
No entanto, embora existisse a abundância ictiológica e a
facilidade de capturar os cardumes, as dificuldades se faziam sentir
através de outros fatores. A título de exemplo, citemos um: a condução
do pescado de água salgada e das águas marinhas da costa do antigo
pesqueiro real marajoara (HURLEY, 1933).
O estabelecimento dos pesqueiros puderam contar com a
participação do trabalho indígena para seu funcionamento, mas a
ausência desse trabalho por motivos de varíola e sarampo, além da

96
Graduado em Geografia pela Universidade do Estado do Pará. Mestrando
pelo Programa de Pós- graduação em Agriculturas Familiares e
Desenvolvimento Sustentável da Universidade Federal do Pará. E-mail:
evandroneves@museu-goeldi.br
97
Professor Assistente de Geografia do Centro de Ciências Sociais e Educação
da Universidade do Estado do Pará. E-mail: fabianobringel@gmail.com
284
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

emancipação da tutela missionária pela Lei de Pombal de 1755,


ocasionou o desaparecimento dos pesqueiros reais (FURTADO, 1981).
Evidentemente, com a extinção dos pesqueiros reais
estabelecidos por Portugal, a atividade pesqueira fica fraca, porém não
sucumbida. É lembrado por Veríssimo (1970) que a piscosidade das
águas amazônicas fez dos indígenas pescadores e comedores de peixe, o
que não permitiu o desaparecimento da atividade da pesca. A
população que viveu nos sítios de pesca do Marajó durante o
desaparecimento dos pesqueiros reais manteve a atividade da pesca
como principal atividade de sobrevivência.
Como recorte analítico para a produção deste trabalho, escolheu-
se a comunidade do Pesqueiro. Sua origem remonta ao sítio de pesca
do Marajó que se transformou no pesqueiro Cajuúna pela coroa
portuguesa, e que foi extinto por conta dos fatores acima citados. A
atividade pesqueira sempre desempenhou papel de destaque econômico
e social na Amazônia e disso resultou que, mesmo com a extinção do
pesqueiro Cajuúna, a pesca tornou-se, também, elemento fundamental
na determinação das principais rotas de territorialização da mesorregião
marajoara através dos circuitos de pesca98.
O processo de territorialização das áreas próximas que
constituíam o pesqueiro Cajuúna, além de propiciar a territorialização
de pescadores no Marajó, ocasionou, também, o uso e acesso
indiscriminado dos recursos naturais do setor costeiro, causando
conflitos ambientais que foram agravados no ano de 1997 no município
de Soure, especificamente na comunidade do Pesqueiro.
Na tentativa de compatibilizar a crescente exploração dos
recursos naturais, especificamente a catação do Caranguejo, com uma
gestão compartilhada, extrativistas da comunidade do Pesqueiro se
organizaram e criaram a Associação dos Catadores de Caranguejo de
Soure para impedir o uso e acesso indiscriminado de extrativistas “de

98
Os circuitos de pesca estão diretamente relacionados com o processo de
territorialização das comunidades situadas na Resex Marinha de Soure. No
caso da Comunidade do Pesqueiro, têm-se relatos de pais de pescadores que
chegaram no ano de 1966 da microrregião do Salgado paraense. O pescador,
como não pode controlar a mobilidade do peixe, vale-se estrategicamente da
mobilidade através de seu conhecimento sobre a ictiologia amazônica,
descobrindo novos pontos de pesca e detectando cardumes.
285
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

fora”. A organização pressionou o Estado para a criação de uma


Unidade de Conservação no Marajó.
Após aproximadamente quatro anos de tentativa dos extrativistas
locais para a criação da Unidade, cria-se o Decreto S/nº de 22 de
Novembro de 2001 da Reserva Extrativista Marinha de Soure, a fim de
minimizar os conflitos pelos recursos naturais e compatibilizar a gestão
compartilhada da biodiversidade local. É importante ressaltar que os
extrativistas locais utilizam de um conjunto de atividades para explorar
os recursos naturais, sendo a pesca a principal delas.
No interior da Resex, estão as seguintes comunidades: Céu,
Cajuúna, Pesqueiro, Barra Velha e Araruna. Seu território compreende
duas áreas de manguezais, que são: Manguezal de Soure (23.929,13 há),
situada no nordeste da ilha, tendo início nas ilhas Malvinas, seguindo
para o sul, até o estuário do rio Paracauari, cruzando vários rios até
retornar ao ponto de início; a outra área é o Manguezal do rio Saco (3.534,
4 há), e inicia na margem esquerda do rio Paracauari até penetrar no rio
do Saco, avançando para contornar a nascente do igarapé Bom Jardim,
seguindo em direção sul até o igarapé cabana, retornando ao ponto
inicial (LISBOA, 2012).
Portanto, é sobre a pesca que gira o tema deste trabalho.
Utilizando o conceito de território como norteador, partimos da
perspectiva que o território pode ser apropriado simbolicamente e
dominado politicamente (HAESBAERT, 1999). Os extrativistas são os
sujeitos que se apropriam simbolicamente do território; e o domínio
político que é feito do território é materializado na presença do
ICMBio, órgão gestor da Resex Marinha de Soure.
A realização deste trabalho é motivada por dois principais
motivos. Primeiro, a condição de bolsista de Iniciação Científica do
Museu Paraense Emílio Goeldi, durante a graduação em geografia na
Universidade do Estado do Pará. Segundo, a escolha desse tema para a
produção do Teste de Conclusão de Curso na Universidade do Estado
do Pará.
A pesquisa foi elaborada com uma primeira entrada no campo,
para em cima dela articular aquele primeiro conhecimento com dados e
estudos da proposta de pesquisa. No momento da segunda entrada já se
tinha a pesquisa definida. Dessa maneira, a pesquisa em campo teve
dois sentidos. Primeiro, porque se fez pessoalmente no lugar da
pesquisa, observando e compreendendo o cotidiano local. Segundo,

286
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

esteve relacionado com a participação nos processos de trabalho dos


pescadores.
A pesquisa em campo, além de envolver um domínio prático,
também envolve um domínio político (ALBA ZALUAR, 1986). No
caso desta pesquisa foi político não apenas pela participação – como
ouvinte(s) – na discussão de lutas políticas locais, através de projetos
que inclui a milenar atividade pesqueira, mas também no sentido de que
impôs a necessidade de articular estratégias para conseguir a
participação (presença) no grupo.

Processos de trabalho, saberes e religiosidade: a apropriação


simbólica do território

Os grupos sociais podem muito bem forjar territórios em que a


dimensão simbólica (como aquela promovida pelas identidades) se
sobrepõe à dimensão mais concreta, como a do domínio político que
faz uso de fronteiras territoriais para se fortalecer (HAESBAERT,
2013). Segundo Guerra e Coelho (2009) as unidades de conservação,
dessa maneira, podem ser analisadas como espaços de diferentes
territorialidades.
Na territorialidade dos pescadores, seus processos de trabalho
estão relacionados com o processo de práticas sociais de que fala
Bourdieu (2011). As ideias centrais que sustentam a teoria das práticas
sociais de Pierre Bourdieu está, primeiro, na relação entre práticas
sociais e saberes, que produzem ação e quando mobilizados se
constituem em práticas; segundo, as práticas sociais são respostas
adaptativas às condições dos ambientes sociais e ecológicos. Na
Amazônia a adaptação transita entre a vasta terra firme e a área de
várzea (MEGGERS, 1977), que contribui para a estruturação das
relações objetivas.
O conhecimento e a habilidade sobre o ambiente natural, ao
serem transmitidos e absorvidos pelas gerações ao longo do tempo, se
transformam em práticas (MORIN, 2011). As práticas de trabalho dos
pescadores estão relacionadas com o mar e, consequentemente
envolvem os tipos de pescarias que utilizam técnicas que dependem do
movimento da maré e da localização, no caso dos pescadores do
Pesqueiro pode ser: na beira ou na baía, e envolve os elementos da pesca
artesanal.

287
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

A pesca artesanal para Furtado (1981, p. 03) se constitui pela


“tecnologia simples, constituída de embarcações à vela e outros
apetrechos de pesca, em geral confeccionados pelos próprios
pescadores”. Torna-se possível a realização da pesca artesanal, devido
aos conhecimento e sistematização das técnicas que são adquiridos na
relação direta com o ambiente natural. A sistematização das técnicas é
uma troca entre os conhecimentos do homem acerca da natureza e do
comportamento da natureza diante do homem.

As mais humildes técnicas dos chamados


primitivos fazem apelo a operações manuais e
intelectuais de uma grande complexidade que é
preciso ter compreendido e aprendido e que, de
cada vez que se executam, reclamam inteligência,
iniciativa e gosto. Não é qualquer árvore que é
própria para fazer um arco, nem mesmo qualquer
parte da árvore; a exposição do tronco, o
momento do ano ou do mês em que a abatem
tão-pouco são indiferentes. (LÉVI-STRAUSS,
1986, p. 383).

Ao longo do tempo os pescadores foram se apropriando das


técnicas de seus antepassados e, junto a elas, formando novas técnicas a
partir de seus conhecimentos sobre o mar. Dessa forma, as
modalidades de pesca e as técnicas empregadas fazem parte do
conhecimento adquirido ao longo do tempo pelos pescadores e se
constituem como seu manual intelectual.
Com o objetivo de compreender, então, a relação particular dos
pescadores com seu território, faz-se justo analisar as relações que nele
se desenvolvem, tais como os processos de trabalho dos grupos sobre a
natureza, que estabelecem e mantém seu território.
A pesca na beira se caracteriza pela aproximação dos pescadores
à costa, logo são praticadas nos rios, igarapés, lagos e na beira da praia.
Nesses pontos piscosos são características as seguintes pescas: do
camarão (Macrobachium amazonicum) com o uso do matapi e da tarrafa,
rede em formato circular de espaçamento entre os nós de 16 a 18mm,
com cubos de chumbo de 3cm em sua extremidade; do siri (Callinectes
sp.) com o uso do puçá. O transporte utilizado pelos pescadores são
suas embarcações e seu tamanho está relacionado com as necessidades

288
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

práticas dos pescadores. São pilotadas com o uso de um pequeno


motor, que quando acoplado à embarcação recebe a denominação de
rabeta.
A tarrafa consiste numa rede em forma de círculo e em suas
beiradas possui cubículos de chumbo de três centímetros, fazendo,
assim, que o peso do chumbo afunde a rede quando estirada na água.
Mede entre 16 e 18mm de espaçamentos entre os nós para obedecer a
legislação vigente da Resex Marinha de Soure.
O uso do puçá é destinado à captura do siri (Callinectes sp.). Tem
o formato circular e às suas margens possui uma rede amarrada com o
formato de um funil. No meio de sua abertura é colocada uma isca,
geralmente a pratiqueira com a ova, para que o siri seja capturado. A
primeira maneira de se capturar o siri é jogar o puçá na água,
controlando-o com um fio, e aguardar o siri mexê-lo. Quando o
pescador sente que a isca está sendo beliscada, com delicadeza, puxa o
puçá com o fio até o siri ser capturado. A segunda maneira é deixar o
puçá com uma bóia99 na água durante algum tempo e retornar para a
captura do siri que, com certeza, estará dentro da rede beliscando a isca.
A pesca na baía se diferencia da pesca na beira pelo
distanciamento do pescador da comunidade, pois acontece “pra fora”.
As pescarias características são as seguintes: a pesca com a rede de
arrasto e a pesca da rabiola.
O uso da rede de arrasto depende da movimentação da maré. As
redes têm um comprimento de 100 a 200 metros e possui nós opostos
com espaçamento de no mínimo 25mm. A rede com esse espaçamento
se torna um apetrecho muito eficaz para a captura da pratiqueira (Mugil
curema), principal espécie de peixe no consumo alimentar local.
O uso da rede de arrasto está dividido nos seguintes momentos:
primeiro, enquanto um pescador segura uma ponta da rede na beira
d’água, outros dois adentram as águas com a outra ponta da rede nas
mãos, andando em linha reta, fazendo com que a rede seja totalmente
esticada para que assim possam fazer o movimento de 90º até
alcançarem a beira d’água, distanciados de 100 a 200m do primeiro
pescador, dependendo do cumprimento da rede; segundo, quando a
rede está totalmente estica entre os pescadores e fora das águas, inicia-
99
As bóias são cubos de isopor que são colocadas na parte superior das redes de
pesca para que a rede, no momento de enchente da maré, flutue. São utilizadas
também na ponta dos fios que controlam os puçás.
289
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

se o processo de “puxação” e posteriormente a “tiração”, momento em


que o peixe é retirado da rede. Além disso, utilizam um par de botas,
para proteger seus pés contra a ferrada da raia (Potamotrygon orbignyi) e
quando ocorre durante a noite utilizam lanternas.
A pesca da rabiola ocorre quando a maré está no limite do
período de vazante. Os bancos de areias ficam expostos e cada
pescador possui a delimitação de seu ponto de pesca através de uma
tinteira (Laguncularia racemosa) ou siriubera (Avicennia germinans) fincada
na areia. Um pedaço de tinteira ou siriubera é fincado na areia, e se usa
a rede, geralmente a mesma rede que se usa no arrasto. Uma ponta da
rede é amarrada na ponta da tinteira ou da siriubera. Quando amarrada,
estica-se a rede até que em sua outra extremidade é amarrada uma pedra
na parte inferior. Quando a maré inicia o processo de enchente a parte
inferior da rede fica no fundo das águas, presa pelo peso da pedra, e a
parte superior fica na margem devido à ação da bóia.
Os saberes que são praticados pelos pescadores do Pesqueiro,
demonstram uma relação de respeito entre os pescadores artesanais e o
meio ambiente, pois suas atividades são incapazes de extrair além do
necessário para suas estratégias de reprodução social.
Consequentemente os pescadores se opõem à pesca industrial por não
serem capazes de extrair da natureza além do necessário para a
satisfação de suas necessidades (FILHO, 2012).
Dessa forma, os recursos dos cursos d’água se constituem
elementos fundamentais nos saberes dos pescadores, “como dimensão
fundamental que atravessa gerações até fundarem a noção de território
como patrimônio comum” (CASTRO, 1997, p. 226), já que a atividade
da pesca artesanal se apresenta como uma das mais abrangentes e entre
as de maior potencial de produção no Marajó (FILHO, 2012).
Quanto aos aspectos religiosos da comunidade do Pesqueiro, são
marcados pela presença da igreja católica Santa Luzia e da igreja
evangélica Congregação Filadélfia. No entanto, no caso de
comunidades de pescadores a tradição está intimamente ligada à religião
católica, isso porque na concepção dos pescadores amazônicos o
mundo foi concebido e criado por Deus. “Essa concepção religiosa de
caráter católico, advinda da influência religiosa, desde os tempos de
colonização portuguesa na Amazônia” (FURTADO, 1993, p. 229)
certamente é evidente na área de estudo. Afirmou Galvão (1976) que o
caboclo amazônico é, antes de tudo, católico.

290
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

O processo de colonização da Amazônia foi marcado pela


participação ativa da igreja católica na consolidação da conquista do
território. Logo, a presença da ordem religiosa foi suficiente para incluir
na cultura local o credo católico, a partir dos serviços da catequese
indígena. A expressão religiosa de um povo mostra de modo evidente,
através de suas instituições, as influências de causas de origem social e
histórica (GALVÃO, 1976).
Umas das festividades ligadas à tradição da religião católica na
comunidade do Pesqueiro e que se constituem como parte integrante
de sul cultura, é materializada no dia da celebração de São Pedro, aos 29
dias do mês de Junho. São Pedro é considerado o protetor e padroeiro
dos pescadores e das viúvas. Reza a tradição que é o santo católico
romano foi o primeiro papa.
Inicia-se com uma procissão marítima às 7 da manhã, sob o som
de fogos de artifícios, que sai da praia do Pesqueiro e vai até uma área
de cocal100, situada dentro da própria comunidade. A procissão se
traduz ao pescador como um momento de “graça”. Tal afirmativa é
evidenciada em um dos diálogos estabelecidos com os pescadores:

Todo dia eu rezo e agradeço. Hoje tenho a


oportunidade de agradecer junto aos pescadores
que você ta vendo aqui. Temos é que agradecer
São Pedro, porque pescar não é fácil. Na verdade
fácil até é né? A questão é que a gente tá “sujeito”
a várias coisas, porque ninguém sabe o que a
gente vai encontrar, principalmente quando
passamos quatro, cinco e até seis dias em alto
mar pescando. Por isso que eu digo pra esses
mais jovens que não querem vir aqui aonde
estamos: precisamos agradecer! Trago todos que
posso, porque quando eu era jovem meus tios
também me traziam (Tucunaré, Junho de 2015).

A festividade de São Pedro está enraizada nas práticas simbólicas


dos pescadores. Torna-se, assim como os processos de trabalho e os
saberes necessários para sua realização, práticas simbólicas que

100
As áreas de cocais, assim denominadas pelos moradores da Resex, são áreas
de Terra Firme que possuem grandes plantações de côco (nucifera L.).
291
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

enraízam no território a apropriação material e/ou imaterial os


pescadores artesanais.

Ordenamento da Resex: domínio político do território e tensões


com pescadores artesanais

O Sistema Nacional de Unidades de Conservação tenta


compatibilizar o uso e conservação dos recursos naturais, baseando-se
no conceito de sustentabilidade101, através de normas que são
estabelecidas às populações tradicionais. De acordo com o Art. 7º,
inciso II e parágrafo 2º do SNUC – Sistema Nacional de Unidades de
Conservação – na categoria de Uso Sustentável, possuem como
objetivo básico compatibilizar a conservação da natureza com o uso
sustentável de parcela de seus recursos naturais através da participação
da população local.
Dentro dessa perspectiva, os segmentos sociais que desenvolvem
suas atividades extrativistas participam da construção do Plano de
Utilização e posteriormente do Plano de Manejo dos recursos naturais.

A conservação se fará, portanto, a partir dos


preceitos da sustentabilidade no uso dos recursos
naturais, visando à qualidade futura de acesso a
esses recursos e, só se torna viável nos marcos da
categoria de Unidade de Conservação de Uso
Sustentável, tecnicamente mediante um
planejamento do uso que se traduz no Plano de
101
O conceito de sustentabilidade surge do termo “desenvolvimento sustentável”
citado pela primeira vez no Relatório Nosso Futuro Comum (Our Common
Future), conhecido também como relatório Brundtland, como o tipo de
desenvolvimento que atende às necessidades do presente sem comprometer a
possibilidade de as gerações futuras atenderem às suas próprias necessidades.
Sarandón e Flores (2014) apontam a necessidade de revisão desse conceito e
apresentam alguns questionamentos pertinentes para que a ciência caminhe no
sentido de se criar outra concepção, mais adequada, do conceito. Primeiro, as
necessidades devem ser interpretadas e concebidas pela geração atual, pois a
geração futura não pode resolver um problema sem tê-lo passado por ele.
Embora o conceito apresente uma solidariedade com a geração futura, permite
o crescimento econômico num mundo que apresenta indicadores biofísicos
que estão em seus limites.

292
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Manejo, que por sua vez deverá respeitar os


modos locais de sustentabilidade (ROSA, 2012,
p. 70).

Esse modelo de sustentabilidade adota a gestão participava dos


recursos naturais e da biodiversidade, com o objetivo de dirimir as
fragilidades que a ausência participativa possa acarretar à política
ambiental, fazendo com que o discurso de participação se configure
como um preceito legal e como tal imprescindível para sua execução.
A gestão participativa é evidenciada na comunidade do Pesqueiro
através da participação dos moradores locais no Conselho Deliberativo,
sendo que um dos moradores locais, Altino Pinheiro Amaral de 56
anos, é representante. Além disso, o Pesqueiro está sob a
responsabilidade da ASSUREMAS (Associação dos Usuários da
Reserva Extrativista Marinha de Soure), que autoriza o uso dos recursos
naturais de acordo com a legislação vigente àqueles que são
cadastrados.
O Plano de Manejo é definido de acordo com a IN (Instrução
Normativa) nº 01/2007 do ICMBio como o documento que define a
gestão da unidade e ressalta que deve ser construído junto com a
população tradicional. De acordo com Capítulo I, Art. 2 – XVII da Lei
Nº 9.985 de 2000 (que se estabelece o SNUC), é um documento
técnico mediante o qual, baseado nos objetivos de uma unidade de
conservação, estabelece as zonas e as normas que devem indicar o uso
da área e o manejo dos recursos naturais.
De acordo com o SNUC, as Unidades devem apresentar um
Plano de Manejo no prazo de no máximo cinco anos a partir de sua
data de criação, devendo esse ser revisado a cada cinco anos de sua
execução. No entanto, a Resex Marinha de Soure após,
aproximadamente, quinze anos de sua criação não apresenta um Plano
de Manejo. As causas da não existência do Plano de Manejo estão
relacionadas com o número de técnicos insuficientes e com a falta de
diálogos com os moradores locais (ROSA, 2012).
Sua ausência exige que outras medidas sejam tomadas. Tais
medidas são vigoradas na legislação da Resex. No entanto, com o
objetivo de resolver o problema da ausência do Plano de Manejo, sua
construção supõe um embate com os moradores locais, quando
imposta às atividades da pesca sem o diálogo com os pescadores

293
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

artesanais e, sendo assim, traduzem-se em tensões que são vividas no


território.
Os pescadores, para capturarem a pratiqueira (Mugil curema),
utilizavam antes da implantação da Resex Marinha de Soure a rede de
22mm. Com o IBAMA, como órgão gestor e fiscalizador da Resex, a
legislação que chegava aos pescadores dizia que o espaçamento mínimo
deveria ser de 25mm. Essa situação se agravou com a transição do
IBAMA para o ICMBio, que criou uma nova legislação, onde limitou o
espaçamento mínimo entre os nós para 30mm.
Durante sete anos, foi travado na comunidade do Pesqueiro um
intenso embate entre pescadores e ICMBio, pois a rede de 30mm
prejudicaria as práticas de pesca. Os pescadores, então, continuaram
realizando as pescarias com as redes de 22mm. No entanto, suas
práticas após a legislação criada pelo ICMBio eram consideradas de
“crime ambiental” e estavam sujeitos à multas e apreensão de suas
redes. Esclarece-nos, um pescador a seguinte situação:

A pratiqueira é um peixe que não cresce muito


não. Ela chega exatamente a esse tamanho aqui
(mostra-me nesse momento o pescador a largura
que a pratiqueira alcança em seu tamanho de
maturação) e essa rede (a de 22mm) é boa pra
pegar ela. Agora essa aí de 30mm não pega é
nada, pega uma ou duas que de vez em quando
dá (Urucú, Junho de 2015).

No ano de 2014 o ICMBio e os pescadores entraram em um


acordo que permitiu a mudança de 30mm para 25mm do espaçamento
entre os nós das redes de pesca, reconstruindo a atual legislação através
do Conselho Deliberativo. O diálogo com o ICMBio procurou atender
às necessidades práticas dos pescadores para que pudessem capturar a
espécie mais apreciada em sua alimentação.
O exemplo acima citado nos leva a pensar que é necessária a
construção do Plano de Manejo, pois o território em sua ausência é
vivenciado por tensões entre as necessidades práticas dos pescadores e
a incapacidade técnica da Resex em atender às demandas locais 102.
Porém, enquanto sua criação não é efetivada, é recomendável que se
102
As demandas locais da Resex são consideradas amplas perante a capacidade de
gestão e fiscalização dos técnicos do ICMBio. Ver, nesse caso, (ROSA, 2012).
294
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

estabeleça um diálogo com os pescadores locais, assim como que se


desenvolvam meios de aproximação da política ambiental aos saberes
locais.

Considerações finais

A tensão/embate territorial experimentado no Pesqueiro nos


leva a pensar que a criação de unidades de conservação nem sempre
corresponde à minimização dos conflitos nas áreas de implantação da
política pública. Pelo contrário, pode acarretar tensões territoriais
quando não alcançam a elaboração do Plano de Manejo, por exemplo.
Além disso, afirmam Guerra e Coelho (2009) que a implantação das
unidades de conservação podem acirrar as disputas por território e
recursos, dinamizando os conflitos em função de novas regras e
normas de uso inexistentes.
No caso da Resex Marinha de Soure os conflitos entre
extrativistas e usuários, que culminou na composição do Movimento
dos Catadores de Caranguejo e na pressão para a implantação da Resex
Marinha, foram minimizados. No entanto, a implantação da política
ambiental trouxe outros processos, para a comunidade, que funcionam
para controlar o uso dos recursos naturais e que confrontam a
necessidade prática dos pescadores, por exemplo no caso da rede de
22mm.
Acreditamos que o diálogo com os pescadores artesanais é
necessário para a elaboração do Plano de Manejo e para o re-
conhecimento dos saberes locais. Caso contrário, enquanto o Plano de
Manejo não for construído, o território será experimentado pelos
pescadores locais através de tensões com o ICMBio.
Embora tenhamos citado apenas um exemplo, o da rede, existem
outros que são os seguintes: a captura de algumas espécies de peixes
nos lagos; o uso muito limitado da tinteira e siriubera, as zonas não
estabelecidas para extração dos recursos naturais, entre outros, que
agravam a situação do embate entre pescadores e ICMBio.
Esses exemplos nos mostram que a ausência do Plano de
Manejo influencia no uso, no costume e nas tradições de manejar os
recursos naturais, quando são impostas legislações pouco flexíveis à
realidade dos pescadores. Deparamo-nos com embates dentro do
território que as populações tradicionais têm por direito

295
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

consuetudinário, assim considerado pela doutrina jurídica do Estado


(BENATTI, 2011).
O re-conhecimento dos saberes tradicionais são importantes
porque se constituem a partir da interação das populações tradicionais
com o ambiente natural, onde se reproduzem culturalmente, que reflete
sobre suas espacialidades e de sua contribuição para a conservação da
natureza. Portanto, a sua inserção em áreas naturais propicia que
procurem adaptar o meio às suas necessidades, ao mesmo tempo em
que se adaptam às condições oferecidas. Nessa perspectiva “a
conservação dos recursos naturais é parte integrante de sua cultura,
uma ideia expressa no Brasil pela palavra “respeito”, que se aplica não
somente à natureza como também aos outros membros da
comunidade” (PEREIRA e DIEGUES, 2010, p. 87).
Portanto, concluímos que a criação das unidades de conservação
influi diretamente no ritmo da vida local, particularmente nas práticas
culturais, pela vinculação histórica daquelas comunidades com a
extração de recursos naturais, pois se trata de um território apropriado e
dominado distintamente, entre populações tradicionais (pescadores) e
Estado, respectivamente, e que merece o re-conhecimento da
população local no momento de implantação das normas territoriais.

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Revista Desenvolvimento e Meio Ambiente, nº 22, Editora UFPR,
2010.

ROSA, Benilde N. L. De "Jardim Encantado" à "Reino


desencantado das unidade de conservação": uma análise do ethos
ambientais. Tese de Doutorado. PPGCS/UFPA. 2012.

VERÍSSIMO, José. A pesca na Amazônia. Universidade Federal do


Pará, 1970.

297
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

ZALUAR, Alba. Teoria e prática do trabalho de campo: alguns


problemas. In: CARDOSO, Ruth C. L. (Org.). A aventura
antropológica: teoria e pesquisa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p.
107-126.

298
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

299
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Por uma Educação do Campo na Amazônia: cultura e natureza


nas narrativas de educadores em Ponta de Pedras, Marajó, Pará

Cátia Oliveira Macedo103


Maurício Costa104

Apresentação

Poucos minutos após a saída do porto em Belém, a caminho do


Arquipélago do Marajó, nossa atenção se dividia entre a exuberância da
paisagem, que rapidamente se modificava e nos distanciava da cidade, e
as inquietações com o que iriamos encontrar no município de Ponta de
Pedras. Nossa estada seria de dois dias, quando realizaríamos o
seminário “Educação do Campo: desafios e perspectivas”, uma parceria
do grupo de Pesquisa Territorialização Camponesa na Amazônia
(GPTCA) e a Secretaria de Educação da Prefeitura de Ponta de Pedras-
Marajó/PA.
Era o nosso objetivo promover diálogos acerca da construção da
educação do campo, sua gênese e seus desafios. Porém, a medida que o
encontro se aproximava, um questionamento se avolumava: como
construir este espaço de diálogo sem impor através da nossa presença,
referenciada pelo urbano, a noção de subalternidade do rural? Afinal de
contas, vínhamos de fora promover a formação de professores do
campo. Não deveria ser o contrário, uma vez que a educação do
campo entende o camponês como sujeito e artífice da sua formação?
Não os estaríamos condenando à condição de coadjuvantes e
reproduzindo o velho esquema da educação rural?
Apesar dessas inquietações, tínhamos o firme propósito de
sermos apenas mediadores nas trocas de experiências entre esses
professores e, mais do que isso, estávamos ali imbuídos da certeza de
que promovíamos nossa própria formação. Quando se trata de
educação do campo, isto não pode ser diferente, uma vez que ela nasce

103
Professora Adjunta da Universidade do Estado do Pará-UEPA e Instituto de
Educação Federal do Pará-IFPA. E-mail: catiamacedo@yahoo.com
104
Professor do Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia -
PPHIST e Programa de pós-graduação em Sociologia e Antropologia –
PPGSA - UFPA. E- mail: makosta@bol.com.br
300
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

caudatária das lutas pela reforma agrária no contexto da década de 1990


(MOLINA, 2006).
Destaca-se, neste contexto, o debate em torno da necessidade de
superação da educação rural de orientação técnica e profissionalizante.
Isto implica na substituição desse modelo por uma concepção de
educação que apresente como centralidade a trajetória de lutas e as
discussões no interior dos movimentos sociais, das entidades,
representações civis, sociais e dos sujeitos do campo (FERNANDES;
MOLINA, 2005).
Com isso, emergem novos protagonistas nesta seara, quer seja na
construção das novas referências e teorias da educação do campo, quer
seja na definição dos resultados que se busca alcançar. Sai o Estado e
sua intelligentsia do proscênio das questões educacionais e entram em
ação os movimentos sociais do campo e suas demandas.

O ponto de partida é a compreensão de que a


luta pela terra – e o acesso a ela, seja pelas
ocupações e posses – representa um processo de
reinvenção do rural e da sociedade (...). A
reinvenção de rural em campo é aqui também
chamada de ressignificação pois coincide no
contexto da linguagem e do imaginário, logrando
inverter a hierarquização de espaços e atores
(MARSCHRNER, 2011, p. 42).

A partir desta leitura, entende-se que é necessária a construção


de uma política educacional que vislumbre a “população camponesa
como protagonista, propositiva de políticas públicas e não como
beneficiária e usuária” (FERNANDES, 2006, p. 30). Apesar desse
entendimento orientar nossas ações ao longo do seminário, era
explícito nas falas e intervenções dos professores – também
camponeses, ribeirinhos, extrativistas – que os sentidos desse
protagonismo podem estar baseados em outras referências para além da
luta pela terra.
Os educadores de Ponta de Pedras mostraram em relatos sobre
suas histórias de vida que saberes e práticas sociais conduziam suas
estratégias de ensino e constituíam elementos basilares de suas
metodologias. O considerável acervo produzido pelos professores ao
longo do seminário (escritos, discursos, desenhos) direcionam a

301
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

tessitura deste artigo. As análises e reflexões aqui transformam o


conjunto de participantes do evento em nossos coautores.
Participaram do seminário 20 comunidades, representadas por
150 professores que se auto denominavam extrativistas, coletores,
quilombolas, camponeses, ribeirinhos dentre outros. Em termos
populacionais, as comunidades variam de número de famílias na faixa
entre 70 e 150. Tratam-se, portanto, de pequenos núcleos populacionais
integrados às condições naturais do arquipélago e às atividades típicas
de exploração econômica da região.
O seminário se dividiu em três momentos: no primeiro, o
dialogo girou em torno do tema “Educação do Campo: desafios e
perspectivas”. No segundo momento, o tema foi “O campo no século
XXI” e no terceiro momento discutiu-se “A importância dos saberes
locais, regionais como campo pedagógico”. Apesar de termos proposto
essa organização de temas, o debate foi, acima de tudo, conduzido pelas
referências identitárias e práticas sociais inerentes ao modo de vida
local, que são, na verdade, o mote para uma educação do campo.
O evento realizado entre os dias 10 e 11 de abril de 2015 em
Ponta de Pedras se justificou pelo processo de institucionalização de
uma política de educação do campo que se origina no seio dos
movimentos sociais e que aos poucos ganhou suporte estatal. Desde a
promulgação da Constituição de 1988, desenvolveu-se no país um
amplo debate em torno dos direitos sociais da população campesina,
que se materializou na aprovação de políticas educacionais bastantes
significativas, com destaque para a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional 9394/96.
Essa institucionalização passou a exigir de estados e municípios
ações para implementação de projetos educacionais no campo
concernentes com a nova legislação. Nosso contato com a Secretaria
Municipal de Educação de Pontas de Pedras ocorreu neste contexto de
atendimento de uma demanda do Ministério de Educação.

Ponta de Pedras

As origens do município remontam ao século XVIII, à época


denominada de Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da
Cachoeira, ligada ao Município de Cachoeira do Arari. Somente em
1877 seria criado o município. Pertencente a mesorregião do Marajó e

302
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

microrregião do Arari, Ponta de Pedras se localiza a 44 km da capital e


possui uma população de aproximadamente 26 mil habitantes,
distribuídos em inúmeras comunidades rurais.

303
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

304
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

O município localiza-se na porção norte do arquipélago, inserido


no ecossistema denominado por Pacheco (2009) de “Marajó dos
Campos”, culturalmente e geograficamente diverso do “Marajó das
Florestas”. Em termos religiosos, Ponta de Pedras é sede da Diocese do
Marajó, que arregimenta as várias Prelazias da Igreja Católica existentes
no arquipélago.
De acordo com dados do IBGE, entre os anos de 2008 e 2013,
despontavam na lavoura temporária do município a produção do
abacaxi, arroz em casca, feijão em grão, mandioca e milho. Já na
lavoura permanente, o destaque era para a banana, o cacau, a laranja, o
limão, o mamão, o maracujá e a pimenta do reino.
Vê-se, nos dados abaixo, uma diversidade de produtos oriundos
das unidades de produção camponesa, familiar. Porém, o açaí é o
produto de maior envergadura no mercado local e de grande entrada na
cidade de Belém e arredores, responsável por 30% das atividades
econômicas do município. O número de barcos atracados à espera do
embarque do açaí no porto do município é um termômetro da
produção local.

305
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Tabela 289 - Quantidade produzida na extração vegetal, por tipo de


produto extrativo
Variável = Quantidade produzida na extração vegetal (Toneladas)
Mesorregião Tipo de Ano
Geográfica e produto
Município extrativo 2009 2010 2011 2012 2013
1.1 - Açaí 39.97
35.740 39.432 36.503 33.453
(fruto) 0
1.2 - Castanha
7 7 7 8 7
de caju
1.3 - Castanha-
292 261 271 322 312
do-Pará
1.4 - Erva-mate - - - - -
Marajó – PA
1.5 - Mangaba
- - - - -
(fruto)
1.6 – Palmito 3.047 2.794 2.887 2.682 2.413
1.7 – Pinhão - - - - -
1.8 - Umbu
- - - - -
(fruto)
1.11 – Outros - - - - -
1.1 - Açaí 13.19
10.797 11.217 8.974 7.179
(fruto) 7
1.2 - Castanha
- - - - -
de caju
1.3 - Castanha-
- - - - -
do-Pará

Ponta de Pedras – 1.4 - Erva-mate - - - - -


PA 1.5 - Mangaba
- - - - -
(fruto)
1.6 – Palmito 6 8 8 8 7
1.7 – Pinhão - - - - -
1.8 - Umbu
- - - - -
(fruto)
1.11 – Outros - -

306
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Fonte: IBGE, 2009-2013


Até o terceiro quartel do século XX, o extrativismo do açaí
voltava-se precipuamente para o autoconsumo na região. Isso começou
a mudar com a progressiva demanda desse produto pelo mercado
nacional, implementada em fins daquele século, que direcionou sua
extração em escala para fins de natureza econômica (MARINHO,
2009).
A emergência desse novo ambiente econômico levou ao
paulatino declínio de outras atividades agroextrativistas tradicionais. Ao
mesmo tempo, ela “contribuiu para estabelecer importantes mudanças
nas relações ecológicas e socioeconômicas” (MARINHO, 2009, p.186)
no estuário amazônico.
Em Ponta de Pedras, o número de embarcações ancoradas no
porto à espera para o embarque do açaí explicita a importância que esse
fruto assumiu na economia local. É neste universo de transformações
que discutimos a relação entre cultura e natureza nas comunidades
rurais de Ponta de Pedras, em torno da atividade educacional. Partimos
da constatação de que as experiências, as tradições e as práticas dessas
populações, tão intimamente relacionadas ao ecossistema, podem ser
traduzidas para o campo pedagógico e incorporadas no elenco de
saberes escolares.

Cultura e Natureza nas narrativas dos professores de Ponta de


Pedras

Nosso intercâmbio com os professores das comunidades rurais


durante o seminário nos levou a pensar numa reflexão do sociólogo
inglês Raymond Williams (1990) em sua conhecida obra “O Campo e a
Cidade”: de que as narrativas sobre a vida rural expressam uma
realidade marcada por significados diversos. Quer dizer, sentimentos
variados de homens e mulheres ligados à realidade do campo estão
basicamente associados às diversas atividades e vínculos sociais
experimentados por eles ao longo do tempo (WILLIAMS, 1990, 13-
15).
Os relatos sobre o cotidiano docente nas diversas comunidades
da zona rural de Ponta de Pedras diretamente associavam a vida escolar
e as atividades econômicas locais às crenças tradicionais, aos folguedos
populares, às reminiscências memorialísticas coletivas, à vida religiosa,

307
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

dentre outros. Ser professor do campo, nestas narrativas, tende a


significar a junção entre esses diversos aspectos da experiência cotidiana
e, ao mesmo tempo, a adoção de um papel intermediário entre o espaço
de saber da escola e os demais e abundantes “espaços de saber” da vida
comunitária.
Os relatos dos docentes das 20 comunidades representadas no
seminário foram condicionados a uma situação de produção
memorialística. As narrativas foram produzidas em resposta às nossas
solicitações como mediadores do seminário. Por outro lado, elas
revelam um padrão discursivo agenciado em situações educacionais
como essa. Isto é, o contexto do trabalho educacional dos docentes em
questão emerge no cruzamento da descrição das características naturais
da comunidade, das atividades produtivas lá desenvolvidas e de suas
singularidades culturais e históricas.
Tais componentes discursivos constituem um amplo horizonte
temático da educação no campo, especificamente no caso de municípios
como Ponta de Pedras, que compõem o que Pacheco (2009) chama de
“Marajó dos Campos”. Para o autor, as características geográficas do
arquipélago se combinam com saberes e experiências da população
nativa relacionados à natureza. Diferente da região do Marajó das
Florestas, o Marajó dos Campos, porção norte do arquipélago, onde
está situada Ponta de Pedras, demarca formas particulares de interação
humana com a natureza, expressas nos variados saberes e percepções
ligados à vida cotidiana.
É o que nos apresenta o quadro a seguir, elaborado por nós a
partir dos relatos dos professores no seminário e dos registros escritos
apresentados como resultado do debate. Podemos aqui seguir pistas
dos demais espaços de saber da vida comunitária que se interpõem a
outros sentidos referentes à educação no campo:

308
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

309
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Comunidade Rural Características Atividade Produtiva Narrativa Cultural


Naturais
1. Santana Não foram Não foi relatada Comunidade Remanescente
relatadas Quilombola

Ruínas de igreja como marca


histórica
2. Tartarugueir Não foram Não foi relatada Cordão de Boi Bumbá
o relatadas Cordão de Pássaro (Garça)
Carimbó
3. Cajueiro Margem esquerda Projetos de Nome da comunidade como
do Rio Armazém financiamento agrícola, referência à árvore de caju
que atendem entre 8 a existente em frente à
Grande número de 10 famílias residência do primeiro
árvores de morador
Mangaba Produção agrícola
vendida na sede do
município de Ponta de
Pedras
4. Vila Nova Não foram A caça foi extinta Atividade de parteiras muito
relatadas comum nos primeiros anos
de surgimento da
comunidade (nos anos 1930)

O primeiro professor da
localidade alfabetizava

310
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

gratuitamente.
5. Curral Não foram Beneficiamento de Conhecimentos tradicionais
Panema relatadas plantas e nozes de ervas como hortelã e
(Ex-Curral Feliz) saracura

Tabu: não olhar para o


batimento e o escorrimento
do óleo de Andiroba,
especialmente por mulher no
período menstrual.
6. Ilha Setúbal, Não foram Não foram relatadas O boto atraído pela
Comunidade Pau Uçu relatadas menstruação das esposas de
pescadores
7. São José da Não foram Diminuição da Narrativa sobre o “Dia do
Fortaleza relatadas produção de açaí na Berto”
comunidade
8. Anajás Não foram Predominância da Não foi relatada
Grande relatadas atividade pesqueira.
Diminuição da
quantidade de peixe
produzido. Preço ditado
pelos geleiros vindos de
fora

Fazendeiros donos de
terras onde exploram

311
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

palmito contribuem
para a diminuição da
produção de açaí
9. Jacarajó Não foram Realização de mutirão Não foi relatada
relatadas (ou “convidado”) para a
construção de casas
10. Praia Grande Não foram Famílias que trabalham Atividades de evangelização
relatadas em sistema de
cooperativa
11. Antônio Não foram Plantações de açaí e Não foi relatada
Vieira relatadas atividade agrícola em
(ex. Pau Grande) declínio
12. Urinduba Não foram Não foi relatada Realização de ladainha e folia
relatadas de santo na Festa de São João

Time de futebol “São João”


13. Paricatuba Não foram Não foi relatada Padroeiro da comunidade:
relatadas São Francisco de Borja
14. Saracá Localizada às Fontes de renda e de Não foi relatada
margens do alimentos: trabalho de
Igarapé Tarumã, vaqueiro, pesca,
afluente do Rio extração de frutos, de
Arari mel de abelha e
beneficiamento da
banha do bicho do
caroço de Tucumã

312
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

15. Rio Canal Riacho que se Extração de frutos Comunidade remanescente


transformou em quilombola
rio com canal
profundo
16. Rio Fábrica Não foram Produção de engenho e Não foi relatada
relatadas olaria, já inexistente
17. Rio Paruaçu Não foram Extração de açaí Não foi relatada
relatadas
18. Rio Região de Extração de miriti e Conhecimentos sobre o
Marajoaçu palmeiras de jupati manejo do jupati
várzea
19. Paranã Localização às Coleta de açaí e de Histórias de escravos e da
margens do Rio miriti; comercialização vida em engenhos da região
Quiã Paranã de turu (retirado de
viveiros no mangue)
20. Tijucaquara Não foram Não foi relatada Lenda do boi selado (com
relatadas sela)

313
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Chamamos a atenção do leitor aos elementos selecionados por


nós como “narrativa cultural”. Ao nosso ver, eles foram invocados
pelos educadores presentes como representativos de outros domínios
(“espaços”) do saber vivido nessas comunidades. Mais do que isso, eles
são constitutivos das experiências educacionais daqueles docentes, quer
como sujeitos formados naquele ambiente cultural, quer como
formadores, profissionais da escola, que selecionam e articulam
conteúdos educacionais para o alunado.
A partir dessa constatação, vislumbramos um caminho possível
para a educação do campo, como algo a mais, para além do fato de
situar-se em realidades camponesas. A forte identificação com a
realidade local, as atividades cotidianas, a relação com a natureza e os
vínculos sociais compõem traços característicos da experiência
educacional neste caso. E são, por isso, elementos a serem
considerados como fundamentais em qualquer projeto de educação do
campo a ser promovido neste contexto socioespacial marajoara.
Podemos considerar isso de forma pormenorizada em uma
história exemplar, de sabor mítico, relatada por um dos grupos de
professores durante o seminário. Os professores da comunidade São
José da Fortaleza, situada às margens do rio de mesmo nome, nos
apresentaram o “Dia do Berto”, como uma lenda local, narrativa de
forte eficácia simbólica em termos da regulação das formas de
intervenção humana sobre a natureza. Segue o relato:

O Dia do Berto
Um belo dia no Rio São José Fortaleza, um
determinado morador foi almoçar e não tinha
açaí para beber. Logo decidiu ir pro mato, devido
seu costume de tomar açaí. Ao chegar no mato,
fez sua peconha de folha da árvore. Quando deu
o primeiro pulo, lembrou que era o dia do Berto,
e que nesse dia não se pode apanhar açaí, nem sair
para o mato. Mesmo assim ele insistiu. Quando
chegou ao cacho, começou a perceber que caía
água, mas não estava chovendo. Ficou
desesperado. A partir dali deu uma forte dor de
cabeça que não conseguiu se segurar, no qual
acabou por cair da árvore. A sorte que a árvore
era baixa. Ele disse que passou dias doente,

314
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

afirmando que tudo isso era por causa do dia do


Berto e, afirmou, a mata pertence a ele.
Tema gerador: crendice popular, economia e
lenda entre outros (Grifo Nosso)

A estrutura da narrativa se assemelha àquela característica dos


relatos míticos. Em primeiro lugar, ela toma um ponto de partida
atemporal, “um belo dia”, um dia comum, qualquer, ordinário. Trata-se
de um posicionamento cosmológico indiferenciado, um eterno natural
que pode ser interrompido por uma ação humana.
E então, nesse dia comum, um homem decide pela realização
uma ação que se tornou arbitrária, por romper com a normalidade e a
perenidade natural. A identificação do “determinado morador” não
importa no relato. O que chama a atenção, apesar de cumprimento de
suas atividades costumeiras, “apanhar açaí para alimentar-se”, é o seu
descuido quanto à inconveniência de “apanhar açaí no Dia do Berto”.
Mas quem seria o Berto? Segundo a explicação dos professores
autores do relato, seria o Berto uma espécie gênio das matas 105, um tipo
de força protetora da natureza, uma forma de ser encantado 106. Crenças
típicas das populações camponesas da Amazônia como esta supõem a
existência de uma relação delicada entre o homem e o meio natural. Os
encantados ou bichos visagentos, em seus domínios, devem ser
evitados, de modo a não se atrair sua malignidade, isto é, sua força
mágica perniciosa aos humanos (GALVÃO, 1976, p. 67).
105
Em seu estudo clássico sobre as crenças em torno da pajelança entre os
moradores da cidade de Gurupá, no Arquipélago do Marajó, resultante de
trabalho de pesquisa antropológico realizado em fins dos anos 1940, Eduardo
Galvão adota a expressão nativa “bichos visagentos” para identificar as
entidades que “definem a concepção do mundo sobrenatural do caboclo e que
estabelecem atitudes e normas de comportamento para o indivíduo comum
(GALVÃO, 1976, p. 86).
106
Para Galvão (1976, p. 66), a noção amazônica de encantado toma por base
“descrições de sobrenaturais de origem indígena”, embora seja também, em
alguns casos, “empréstimo europeu”. Maués (1999, p. 240) identifica entre as
crenças rurais da Amazônia a diferença entre “encantados da mata” (segundo
ele, de pouca relevância nos dias atuais) e “encantados do fundo”, que podem
ser invisíveis ou visíveis, quando se manifestam na forma de animais aquáticos
ou de humanos. Na Mina paraense, religião de matriz africana estabelecida na
Amazônia, segundo Luca (2010, p. 67), encantados são humanos que partiram
do mundo de forma fantástica ou que sempre foram seres fantásticos.
315
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

Mais sugestiva ainda é a indicação do dia 24 de agosto como o


“dia do Berto”. A data corresponde à celebração, nos terreiros de mina-
nagô e de umbanda no Pará, do mensageiro dos Orixás, o Exu Tranca
Rua (LUCA, 2011, p. 06). Entidades importantes da umbanda carioca,
os exus foram incorporados na Mina paraense como encantados aos
quais obrigações são devidas por seus devotos (LEACOCK;
LEACOCK, 1972, p. 150; 167). A data de celebração desses espíritos
nos terreiros paraenses é o dia 24 de agosto, o que corresponde na
mitologia afrorreligiosa à referência ao dia do massacre de São
Bartolomeu (24/08/1572), quando huguenotes foram assassinados em
massa por católicos sob o comando da realeza francesa.
Apesar de que um estudo de campo minucioso na comunidade
São José da Fortaleza possa mapear a possível correspondência da
crença no dia do Berto com a celebração de um Exu nos terreiros
afrorreligiosos de Belém, a narrativa a nós apresentada não situou o
evento em qualquer moldura religiosa. Trata-se de uma crença
socialmente disseminada e, talvez, supra religiosa, que se refere à
existência de forças mágicas que habitam os ares, rios e as florestas
amazônicas (MAUÉS, 2005).
De acordo com o sentido nativo, a malineza dos bichos
visagentos pode se manifestar nos humanos como infortúnios físicos,
febres fortes, dores de cabeça, ataque de nervos (MAUÉS, 1999, p.
238). Outra modalidade de infortúnio derivada da malineza na
Amazônia é a panema, ação mágica sobrenatural que determina o
insucesso do caçador, do pescador, do comerciante ou do agricultor em
suas atividades produtivas (DaMATTA, 1973) (MAUÉS, 1997).
No caso do exemplo analisado, não foi destacado o tipo de
trabalho do “determinado morador”, mas a busca pelo açaí na mata se
situa no terreno das atividades extrativas, típicas do cotidiano laboral de
moradores de comunidades camponesas amazônicas. Trata-se de uma
atividade, conforme a narrativa, que implica em “sair para o mato”, isto
é, distanciar-se da comunidade-humanidade para ingressar no mundo
natural. Sugere-se assim uma separação, a entrada num universo em que
o humano está submetido a forças naturais e, ao mesmo tempo,
mágicas.
O morador fabrica o suporte para subir na árvore com folhas da
própria mata (peconha), mas já no “primeiro pulo” para subir no
tronco toma ciência do seu erro: tratava-se de um dia desfavorável para

316
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

coletar açaí ou, possivelmente, qualquer outro fruto. A partir desse


ponto, desencadeiam-se episódios que instauram o domínio das forças
mágicas sobre o homem.
A “malineza” se inicia com o “cair de água” sem a ocorrência de
chuva. Ao perceber a “água sem chuva”, o homem se depara com a
natureza desregrada, caótica. A aparente desordem natural da “água
sem chuva” leva o homem ao desespero, ao perceber a sua falha e as
forças que havia desencadeado. Então o feitiço alcança o seu corpo,
torna-se forte dor de cabeça, que o faz cair da árvore. Tudo isso ocorre,
provavelmente, em um curto lapso de tempo. O homem cai da árvore
por não conseguir se segurar. Não se fere gravemente por ser a árvore
baixa, mas passa desde então a sentir-se doente, um mal-estar físico
resultante do desequilíbrio da ordem natural por ele promovido.
A narrativa se conclui então com um sentido moralista. O doente
torna-se então um exemplo. Ele assume o papel de quem alerta a
comunidade quanto à importância de se atentar para o dia do Berto.
Embora os homens possam extrair e explorar a natureza, e transformar
seus frutos, por meio do trabalho, em recursos naturais, ela seria um
domínio autônomo e com vontade própria. A narrativa ensina que a
mata não pertence aos homens, mas sim a encantados como o Berto.
Os homens utilizam de empréstimo seus recursos naturais, em acordo
com princípios transcendentais ontológica e cosmologicamente
estabelecidos.
Por fim, os autores do relato identificaram temas geradores do
que foi relatado, algo como palavras-chave da narrativa apresentada. E
esses temas, por sua vez, indicam a avaliação que eles, professores,
faziam de histórias como essas, de modo a incorporá-las em sua
atividade educacional. Em primeiro lugar, o dia do Berto é rotulado
como “crendice popular”, avaliação que tende a distanciar os
professores de pessoas que acreditam em eventos como estes e em sua
força moral. A crendice é uma crença que não se leva propriamente à
sério e que compõe o repertório folclórico das narrativas tradicionais.
Temos aqui um sentido conservador de emprego deste tipo de crença e
saber no ambiente escolar. O vivido e narrado torna-se o exótico e o
irracional.
Ao mesmo tempo, o episódio foi tomado como algo ligado à
“economia” local. Isto é, colher açaí, bem como outros frutos, animais
e matérias-primas fazem parte do cotidiano de trabalho dos moradores

317
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

da localidade. O problema é que o trabalho, a extração dos bens da


mata, deve obedecer a uma temporalidade não estabelecida pelos
homens. Este é um tipo de saber fundamental para os moradores de
comunidades camponesas como essa, que dependem de condições
favoráveis para o seu ofício (pesca, plantio de mandioca, retirada de açaí
etc.), de acordo com as estações de chuva ou de seca ou em função da
escassez ou abundância de recursos (caça, frutas, raízes).
Já a caracterização da história como “lenda”, isto é, narrativa de
caráter maravilhoso, amplificada pelo imaginário, aproxima-se mais do
sentido do vivido. O dia do Berto faz parte, evidentemente, do
calendário situado no imaginário local que regula as relações entre a
comunidade e a mata. As narrativas sobre episódios incomuns vividos
pelas pessoas na mata fazem parte do cotidiano dos moradores da
comunidade (“não-mata”) e integram o repertório de saberes locais
acerca da natureza. A ideia de “lenda” assinala a vitalidade de narrativas
como esta.
O relato do dia do Berto, portanto, possui vários níveis
simbólicos, que podem ser resumidos em quatro estratos principais,
segundo a classificação adotada alhures por Claude Lévi-Strauss no seu
estudo dos mitos ameríndios (LÉVI-STRAUSS, 1987). Em primeiro
lugar, temos a referência “geográfica”, a margem do Rio São Francisco,
onde se situa o núcleo populacional que interage com a mata.
Secundariamente, no nível “econômico”, destaca-se o uso da mata
como prática de produção de recursos naturais. No terceiro nível há o
plano “sociológico”, que se destaca com a exposição do próprio
morador para a comunidade sobre o acontecido. Por último, o nível
“cosmológico”, que é sintetizado pela afirmação de que “a mata
pertence ao Berto”.
Esses níveis simbólicos correspondem, para além de sua
condição estrutural, a valores e significados engendrados a partir das
atividades cotidianas e das relações sociais recorrentes em São José da
Fortaleza. Mais que estruturas narrativas, são elas estruturas de
sentimento, conforme o sentido proposto por Raymond Williams
(2001) a essa categoria. Para ele, as estruturas de sentimento
correspondem ao caráter social predominante, mas expresso nas
interações concretas entre os sujeitos (WILLIAMS, 2001, p. 64; 80;
319), na vida particular de pessoas como os moradores da comunidade
em foco.

318
Os “nós” da questão agrária na Amazônia

As estruturas de sentimento existentes nas comunidades


camponesas de Ponta Pedras, particularmente, são vividas tanto no
cotidiano dos seus moradores quanto integram o repertório de saberes
locais. É o caso das formas de pensar a relação entre sociedade e
natureza que se revelam na narrativa do dia do Berto.
E o mais significativo é que elementos das estruturas de
sentimento tendem a ocupar espaço nos conteúdos e atividades
educacionais nas escolas do campo, como no exemplo aqui
apresentado. O fato de um grupo de professores de São José da
Fortaleza apresentarem uma narrativa sobre o dia do Berto como
conteúdo representativo do saber local indica uma tendência ao
emprego e à transformação da tradição em conteúdo escolar.
Para além da dimensão de um amplo projeto educativo, a
educação do campo ganha vida em experiências como essa, em que os
educadores assumem o papel de intermediários entre a vida cotidiana e
o ambiente escolar. Esse é um indício claro da tendente transformação
da educação no campo em educação do campo, quando professores
incorporam o vivido em suas comunidades no espaço pedagógico,
atribuindo-lhe o status de saber.
Os relatos dos educadores que conhecemos em Ponta de Pedras
nos ensinaram sobre a viabilidade da educação do campo em realidades
específicas como a do Arquipélago do Marajó. Mais do que isto,
demonstraram que o levantamento e o uso de narrativas tradicionais no
ambiente escolar contribuem para formar cidadãos críticos do uso
predatório da natureza, das formas de trabalho existentes e das práticas
de sobrevivência econômica que vigoram na realidade amazônica. A
educação emerge aqui em sua concretude como prática emancipatória,
isto é, que torna professores e alunos verdadeiros agentes do
conhecimento.

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