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QUESTÃO AGRÁRIA NA AMÉRICA LATINA

Bernardo Mançano Fernandes


LATINOAMERICANA – Enciclopedia Contemporánea de América Latina y el Caribe

Questão agrária é o conjunto dos problemas criados no desenvolvimento da agricultura e da


pecuária na sociedade capitalista. Na América Latina os problemas referentes à questão agrária
estão relacionados à intensa concentração da estrutura fundiária; aos processos de expropriação,
desemprego e exclusão dos camponeses, camponeses indígenas e trabalhadores assalariados. Por
causa desses processos, surgem diferentes formas de resistências, como por exemplo: a luta pela
terra, pela reforma agrária por condições dignas de trabalho. Os confrontos entre processos
expropriatórios e formas de resistência geram extrema violência contra os camponeses e
assalariados, produzindo conflitualidades, que são divulgadas cotidianamente pelos meios de
comunicação.
A questão agrária é, portanto, própria do desenvolvimento do capitalismo. O conjunto de
problemas é criado pelas desigualdades e contradições da sociedade capitalista. As desigualdades
são geradas pelas diferentes rendas obtidas pelos produtores, quando comercializam suas colheitas.
Alguns ganham mais do dobro dos investimentos, enquanto muitos não recebem nem mesmo os
valores investidos. Essa diferenciação econômica é resultado, principalmente, de fatores políticos,
por exemplo, controle de preços, de mercados e de políticas agrícolas. Os grupos político -
econômicos que controlam essas políticas lucram muito mais e, portanto, investem pesado em infra-
estrutura e tecnologia, como mecanização, correção de solos, pesquisas etc. Evidente que também
existem os fatores naturais: muita chuva ou pouca chuva nas regiões produtoras etc., todavia estes
têm sido secundários na diferenciação. Assim são produzidas as desigualdades pelo controle
político que diversos grupos econômicos denominados “ruralistas” mantêm e expropriam
principalmente camponeses e desempregando os assalariados.
As desigualdades geram o aumento e concentração da riqueza e da terra simultaneamente a
intensificação da pobreza e da miséria. Além de gerar desigualdades, o desenvolvimento do
capitalismo produz também contradições. Ele recria o que ele mesmo destruiu. Da mesma forma
que expropria o camponês, o capitalismo o recria por meio do arrendamento da terra. Toda vez que
fazendeiros arrendam partes das propriedades para famílias camponesas plantarem, possibilita a
recriação do trabalho familiar, ou seja, do campesinato. O arrendamento é uma forma de exploração
por meio da cobrança de parte da renda gerada pelo trabalho familiar na produção agropecuária. O
fazendeiro tem interesse em arrendar terras, tanto para explorar o trabalho e a terra, evitando que a
terra fique ociosa e que possa ser ocupada por camponeses sem-terra.
Esse conjunto de problemas que forma a questão agrária é constante e inerente ao
desenvolvimento desigual e contraditório do capitalismo. Os problemas podem ser amenizados, é
possível diminuir suas escalas e intensidades, mas é impossível solucioná-los na sociedade
capitalista, porque isso implica em acabar com a geração da desigualdade, com a concentração da
riqueza e a intensificação da pobreza, que são as contradições que alimentam o capitalismo.
Políticas públicas são medidas possíveis para amenizar a intensidade dos problemas. Essas medidas
de controle político podem diminuir a violência das desigualdades. Outras possibilidades são as
formas de lutas dos camponeses, por meio de ações políticas: ocupações de terra, marchas, greves
etc. Essas são ações que modificam a conjuntura, mas não impedem o processo de intensificação
das desigualdades, geradoras da miséria e da fome. A persistência e a inovação dos problemas são
próprias da lógica da questão agrária.
Em meados da década de 1990, os avanços das políticas neoliberais trouxeram inovações
também na questão agrária latino-americana. Com a globalização da economia, ampliou-se a
hegemonia do modelo de desenvolvimento da agropecuária e seus padrões tecnológicos,
denominado agronegócio. Com a minimização do protagonismo do Estado, grupos econômicos
ruralistas passaram a ditar e produzir políticas agrícolas, aumentando ainda mais o controle dos
mercados. Essa nova cara da agricultura capitalista também mudou a forma de controle e
exploração da terra. Com a intensificação da mecanização, do uso de agrotóxicos e da expansão da
produção de plantas transgênicas, aumentou a produtividade e a produção de algumas culturas,
promovendo maior ocupação das áreas agriculturáveis e também expandindo as fronteiras agrícolas
para as regiões de florestas.
Essas mudanças expandiram a questão agrária para além do mundo rural. Os aumentos da
produção e dos controles político e territorial aconteceram simultaneamente ao aumento da
exclusão, da pobreza e da miséria. Na segunda metade do século XX, ocorreu um intenso êxodo
rural que provocou a diminuição da população rural da América Latina de 43% em 1970 para 23%
em 2005, de acordo com os dados do Centro Latino – Americano e Caribenho de Demografia. O
êxodo contribuiu para o aumento da população urbana que passou de 158 milhões de pessoas, em
1970, para 420 milhões em 2005. No campo, a população manteve-se estável. Em 1970 eram 117
milhões e em 2005 são 125 milhões de pessoas. Todavia, não existe mais a tendência de intenso
êxodo rural, de modo que o campo o desenvolvimento rural não podem mais ser pensados somente
como espaço de produção setorial: pecuária, soja, milho, etc. Em uma perspectiva includente, o
campo somente pode ser pensado a partir do desenvolvimento territorial, considerando o campo
como espaço de produção, moradia, trabalho e lazer.
Nas metrópoles e nas cidades latino-americanas aumentam os problemas resultantes do
desemprego estrutural, com a exaustão ambiental, marginalização da população urbana e aumento
do tráfico de drogas. Assim a questão agrária e a questão urbana passaram a ser consideradas como
questões territoriais. Não é possível pode tratar de uma sem tratar da outra. É preciso pensar o
campo e a cidade como espaços de uma única luta pela conquista da dignidade humana. Por tudo
isso, a questão agrária compreende as dimensões econômica, ambiental, social, cultural e política,
portanto territorial. Para melhor compreender a questão agrária é fundamental conhecer a formação
do campesinato.

Formação e resistência do campesinato na América Latina e Caribe

Nas duas últimas décadas do século XX eclodiram diversas lutas de resistência dos
movimentos camponeses e indígenas da América Latina e Caribe. Essas lutas representam, ao
mesmo tempo, a perseverança registrada ao longo cinco séculos de dominação e subalternidade,
bem como as perspectivas de futuro desses povos e nações. Significa também a recusa permanente
ao modelo de desenvolvimento capitalista, que tem destruído constantemente os territórios e as
culturas camponesas e indígenas. Nos projetos de desenvolvimento da agricultura capitalista não
existe espaço político para o desenvolvimento da agricultura camponesa, porque são diferentes
concepções de mundo. Para justificar os fracassos do modelo de desenvolvimento capitalista,
difundiu-se um discurso que os camponeses e indígenas são atrasados e não conseguem se
incorporar às sociedades modernas. As resistências camponesas e indígenas ao produtivismo
violento, que não respeita os tempos e os espaços da natureza e das culturas dos povos tornaram-se
uma das principais forças que os diferenciam do modelo do agronegócio.
A formação do campesinato latino - americano remete às civilizações ameríndias, bem antes
das conquistas européias do continente americano. Todavia, vamos nos referir ao passado recente e
principalmente ao campesinato organizado em movimentos. A formação do campesinato seguiu
diversos processos: em alguns sucederam à constituição de diversos campesinatos indígenas com
suas culturas e modos de organização do trabalho e da produção; noutro aconteceram cruzamentos
entre povos indígenas, africanos, europeus e asiáticos. Por causa desses processos, pode-se falar em
diferentes tipos de campesinatos, principalmente em campesinato indígena e campesinato não
indígena, ou simplesmente campesinato. O campesinato latino-americano e caribenho se constituiu,
portanto, no encontro entre povos de diversas partes do mundo, com sua diversidade e
miscibilidade, formando novas culturas e conflitualidades.
Esses processos aconteceram na formação da América Latina, predominantemente, no
desenvolvimento do capitalismo. A resistência e a persistência do campesinato e indígenas em
defesa de seus territórios e seus modos de vida estiveram vinculadas à integração ao modelo
capitalista. Essa condição significou inclusão e exclusão em diferentes intensidades. No final do
século XX, essa condição – contradição aumentou a exclusão com a intensificação da
desterritorialização do campesinato e dos povos indígenas pelo avanço das políticas neoliberais. Os
territórios camponeses e indígenas estão na mira das políticas neoliberais por causa dos seus
recursos naturais. A exploração insustentável do agronegócio tem destruído florestas, assoreado os
rios, diminuindo violentamente os recursos hídricos, criando problemas ambientais em escala
mundial. Em diversos países, os territórios indígenas e camponeses são os mais preservados e
disputados pela agricultura capitalista. Exemplos são as lutas na selva de Chiapas e na floresta
amazônica.
A organização dos territórios indígenas e camponeses compreende diferentes tipos de usos.
Os imóveis são familiares e ou comunitários, assim como a organização do trabalho, o que
determina a produção em pequena escala. Isso não significa pouco ou baixa produção. A produção
camponesa está voltada para sua própria reprodução e aos mercados locais, regionais e nacionais.
Por essa razão, a agricultura camponesa é responsável por grande parte alimentos consumidos em
todos os países da América Latina, A exploração do trabalho e do território alheio para
concentração de riqueza e de poder não faz parte do modo de vida camponês, que defende a
solidariedade e a socialização. Todavia, está subordinada à agricultura capitalista e, em muitas
regiões do continente, são obrigados à “integração” com as agroindústrias capitalistas, participando
parcialmente com a produção agroexportadora.
A organização políticas e as formas de luta e resistência dos movimentos camponeses e
indígenas dependem das conjunturas políticas. No Brasil, as ocupações de terra é uma forma de luta
e resistência contra a exclusão, a expropriação e para a recriação do campesinato (Ver mapa). As
marchas e bloqueios de estradas são manifestações para chamar atenção da sociedade e pressionar
os governos para negociação de políticas públicas com o objetivo de amenizar a situação de pobreza
e miséria que estão submetidos os camponeses e indígenas, por causa dos modelos de
desenvolvimento da agropecuária capitalista. Essas formas de luta também têm como objetivo
mudar a conjuntura político econômica. A recusa dos governos em debater essas questões e o
aumento da violência contra os indígenas e camponeses tem levado à resistência armada, uma
forma de luta extrema que representa o impasse entre os limites do capitalismo em resolver a
questão agrária e a persistência camponesa em defesa de sua dignidade.
Por causa dessa conjuntura os camponeses e indígenas têm se organizado em diferentes
movimentos e criado articulações em escalas nacionais, latino-americana e mundial. São exemplos,
entre os diversos movimentos, a Coordinadora Nacional de Organizaciones Campesina – CNOC
(Guatemala); o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (Brasil); Confederación Sindical
Unica de Trabajadores Campesinos de Bolívia; Federación Nacional de Organizaciones Campesino-
Indígenas y Negras (Equador); Coordinadora Nacional de Mujeres Trabajadoras Rurales e
Indígenas – CONAMURI (Paraguai). Em escala Latino – Americana, os movimentos camponeses
formaram a Coordinadora Latinoamericana de Organizaciones del Campo – CLOC; essas
organizações também participam da articulação mundial de movimentos camponeses: a Via
Campesina.
O avanço das políticas neoliberais criou novos tipos de conflitos no desenvolvimento da
questão agrária. A territorialização do agronegócio tem intensificado desterritorialização do
campesinato e do latifúndio. Esses processos acontecem para atender a expansão da produção
agroexportadora, visando os mercados da América Latina e, principalmente, do denominado
primeiro mundo. A “modernização” da agropecuária representada pelo agronegócio tem aumentado
simultaneamente a produtividade e o desemprego. Com a mecanização e a informatização da
agropecuária, o agronegócio necessita mais de novos territórios e de menos pessoas para trabalhar.
O desemprego estrutural e a diminuição do êxodo rural intensificam os conflitos pela disputa desses
territórios, fazendo da questão agrária cada vez mais uma luta territorial A garantia do território
camponês é condição essencial para seu futuro. Todavia, é uma barreira para a territorialização do
capitalismo, o que não retira a possibilidade do capital monopolizar os territórios camponeses e
indígenas, gerando permanentes conflitualidades.

Fases econômicas da agricultura e da pecuária na América Latina e Caribe

Nos últimos cinqüenta anos o campo latino – americano sofreu profundas alterações
causadas pelo modelo desenvolvimento que gerou, ao mesmo tempo, mudanças e permanências nas
diferentes fases econômicas. O tradicional sistema latifundista que determinou a estrutura fundiária
por séculos passou por mudanças setoriais, técnicas e tecnológicas com a intensificação da
industrialização da agricultura. A população rural composta predominantemente por indígenas e
camponeses conheceu um dos maiores êxodos rurais da sua história. A territorialização das
corporações norte - americanas e européias ampliou seus domínios com a expansão de seus sistemas
de produção. Esse conjunto de mudanças intensificou as formas de exploração do modelo
agroexportador e aumentou a expropriação dos camponeses e indígenas, gerando pobreza e miséria.
Políticas de reforma agrária foram implantadas sem conseguirem desconcentrar a estrutura
fundiária. A “modernização” iniciada com a revolução verde aumentou a produção e a
produtividade, produziu problemas ambientais e sociais, conservando as formas de exploração.
O sistema latifundista caracteriza-se pelo controle de grandes extensões de terra, pela
agropecuária extensiva, pela monocultura e pela intensa exploração de mão de obra. Esse sistema
foi sendo gradualmente substituído, desde meados do século passado, com a implantação de novas
técnicas e tecnologias que aumentaram a produtividade pelo uso de insumos químicos. O
desenvolvimento de novas variedades de culturas facilitou a mecanização, dispensando, em grande
parte, o trabalho manual. As famílias de trabalhadores que viviam e trabalhavam nas grandes
fazendas foram expulsas e passaram a viver nas periferias das cidades. Esse processo acentuou a
urbanização, a proletarização do campesinato nas décadas de 1960 a 1980 e valorizou as terras,
possibilitando a territorialização dos imóveis capitalistas sobre os imóveis dos camponeses e
indígenas, que foram obrigados a vender suas terras ou foram sumariamente expropriados. Assim
aconteceu, por exemplo, com o café no Brasil e na Colômbia e com a cana de açúcar nas regiões
Sudeste e Nordeste do Brasil.
Na década de 1990, com o avanço das políticas neoliberais, consolida-se o processo de
territorialização das empresas multinacionais americanas e européias, que expandiram seus
domínios aumentando o controle sobre os principais produtos primários: soja, café, leite, frutas, etc.
Nesta fase, o controle político - territorial também foi ampliado. As corporações multinacionais
iniciaram processos de compra ou de fusão com empresas nacionais para controlar mercados,
tecnologias, patentes, concentrando poder e conhecimento. Entre as grandes corporações que se
estabeleceram na América Latina, pode-se destacar a Nestlé (Suíça); Philip Morris, Cargil, Coca
Cola, Del Monte e United Fruit Company (EUA); Bunge (Holanda); Danone (França); Parmalat
(Itália). Essas corporações atuam em diversos setores da economia o que permite uma série de
vantagens e estratégias para o controle político dos processos produtivos, dos mercados e das
políticas agrárias.
Esses processos consolidaram o modelo de desenvolvimento da agricultura que ficou
amplamente conhecido como agronegócio. Apresentando argumentos e destacando as suas supostas
qualidades, o agronegócio exerce um controle político extraordinário sobre todo o processo
produtivo, subordinando todos os envolvidos. Nessa nova fase, os domínios territoriais ampliaram-
se para o controle da água, recurso fundamental para a agroindústria de sucos de fruta, e das
sementes, com sua mercantilização, através da semente transgênica. Esse processo conta com as
facilidades da liberalização do comércio mundial, desde a criação do GATT (Acordo geral sobre
tarifas e comércio), em 1947, com o objetivo de aumentar o fluxo comercial através da diminuição
das tarifas alfandegárias.
O aumento contínuo do controle político dos territórios e seus recursos, das relações sociais
e dos conhecimentos, não deixaram outra saída para os movimentos camponeses e indígenas a não
ser o enfrentamento direto contra o agronegócio. Esse fato gerou novas conflitualidades em toda
América latina com manifestações e ocupações das fábricas das multinacionais, exigindo melhores
preços e protestando contra o controle geral do processo produtivo. A privatização das sementes e
consecutiva padronização diminuíram a diversidade das espécies. O controle das sementes e da
pesquisa pelas corporações tornou extremamente vulnerável a segurança alimentar e aniquilou a
soberania alimentar. Em 2005, dez maiores empresas controlavam a maior parte dos tipos de de
sementes do mundo. São elas: Monsanto, Dupont/Pioneer, Land O’ Lakes, Delta & Pine Land
(EUA); Syngenta (Suiça); Groupe Limagrain (França); KWS AG, Bayer Crop Science (Alemanha);
Sakata, Taikii (Japão); DLF-Trifolium (Dinamarca).
Desenvolvimento territorial rural e conflitividades,

A conflitualidade encontra-se na essência da questão agrária. Compreender a conflitualidade


estorva possíveis visões linear-negativas na leitura do problema. Constantemente a mídia global
apresenta os conflitos como se originados pelos movimentos camponeses e indígenas. Todavia, eles
são partes de um processo de exclusão que provoca constantemente o conflito. Para compreender a
conflitualidade é fundamental considerar as contradições e os paradoxos em que na solução de
conflitos emerge tanto o desenvolvimento quanto novos conflitos. A desigualdade gerada e gerida
pelo capitalismo não produz apenas riqueza, pobreza e miséria. Ela também desenvolve o conflito,
porque as pessoas não são objetos que compõem unidades de produção. São sujeitos históricos que
resistem a exploração e a expropriação, bem como querem compartir os resultados da produção de
seu trabalho. Portanto, o desenvolvimento político econômico é igualmente o desenvolvimento de
conflitos.
O conflito é o estado de confronto entre forças opostas, relações sociais distintas, em
condições políticas adversas, que buscam por meio da negociação, da manifestação, da luta popular,
do diálogo, a superação. Um conflito por terra é um confronto entre classes sociais, entre modelos
de desenvolvimento, por territórios. O conflito pode ser enfrentado a partir da conjugação de forças
que disputam ideologias para convencerem ou derrotarem as forças opostas. Um conflito pode ser
“esmagado” ou pode ser resolvido, entretanto a conflitualidade não. Nenhuma força ou poder pode
esmagá-la, chaciná-la, massacrá-la. Ela permanece fixada na estrutura da sociedade, em diferentes
espaços, aguardando o tempo de volta, das condições políticas de manifestação dos direitos. Os
acordos, pactos e tréguas definidos em negociações podem resolver ou adiar conflitos, mas não
acabam com a conflitualidade, porque esta é produzida e alimentada dia-a-dia pelo
desenvolvimento desigual do capitalismo.
A conflitualidade é uma propriedade dos conflitos em suas diversas formas: propriedade da
terra, renda da terra, produção capitalista e conseqüentemente à concentração da estrutura fundiária
que a expropriação dos camponeses e indígenas por diversos meios e escalas e bases sociais, técnica
econômica e política. A resposta é a luta pela terra, reforma agrária, resistência na terra e a
perspectiva de superação da questão agrária. Esses processos não se referem apenas à questão da
terra, mas também às formas de organização do trabalho e da produção, do abastecimento e
segurança alimentar; aos modelos de desenvolvimento da agropecuária e seus padrões tecnológicos,
às políticas agrícolas, às formas de inserção ao mercado e aos tipos de mercado; à questão campo -
cidade, à qualidade de vida e dignidade humana. Por tudo isso, a questão agrária compreende as
dimensões econômica, social, ambiental, cultural e política. A questão agrária é antes de tudo uma
questão territorial.
A conflitualidade está natureza do território. O território é um espaço político por
excelência. A criação do território está associada às relações de poder, de domínio e controle
político. Os territórios não são apenas espaços físicos, são também espaços sociais, espaços
culturais, onde se manifestam as relações e as idéias transformando em território até mesmo as
palavras. As idéias são produtoras de territórios com suas diferentes e contraditórias interpretações
das relações sociais. Os paradigmas que procuram afirmar ou negar a questão agrária são territórios
políticos. Por ser insuperável, a questão agrária carrega em si as possibilidades da transgressão e da
insurgência. E pela mesma razão, carrega as possibilidades de cooptação e conformismo. Essas
propriedades da contradição da questão agrária compõem a conflitualidade. Elas estão presentes nas
disputas paradigmáticas entre a Questão Agrária e o Capitalismo Agrário que determinam os
projetos de desenvolvimento.
A estrutura fundiária na América Latina e Caribe

A estrutura fundiária da América Latina e Caribe está entre as mais concentradas do mundo.
Essa realidade é resultado do controle territorial dos imóveis rurais pelos setores ruralistas e
corporações multinacionais. De acordo com os dados disponíveis, os países com maior estruturas
fundiárias mais concentradas são: Barbados, Paraguai, Venezuela, Peru e Brasil, conforme quadro a
seguir.

Índice de Gini de países da América Latina


País Ano Índice
Argentina 1988 83
Barbados 1989 94
Brazil 1996 85
Colombia 2001 80
Honduras 1993 66
Nicaragua 2001 72
Panama 2001 52
Paraguay 1991 93
Peru 1994 86
Uruguay 2000 79
Venezuela 1997 88
Fonte: www.fao.org/ES/ESS/yearbook/vol_1

Na segunda metade do século XX, alguns países da América Latina e Caribe realizaram
políticas de reforma agrária. Foram os casos da Venezuela, Colômbia, Chile, Peru, Nicarágua,
Brasil e Cuba. Na maior parte desses países as políticas de reforma agrária não foram suficientes
para a desconcentração fundiária. Como salientamos na primeira parte deste ensaio, a reforma
agrária são políticas para minimizar a questão fundiária, todavia, o desenvolvimento do capitalismo
gera intensas desigualdades que ocasionam a reconcentração. Por essa razão, as lutas pela terra e
pela reforma agrária tornam-se lutas permanentes. Por essa razão, a questão agrária está presente no
nosso cotidiano há séculos. Pode-se até afirmar que é uma coisa do passado, mas é do presente e
está em todos os lugares, produzindo conflitualidades.
A conflitualidade é inerente à questão agrária. Ela acontece por causa da contradição criada
pela destruição, criação e recriação simultâneas do campesinato. A conflitualidade e o
desenvolvimento acontecem simultâneos e consequentemente, promovendo a transformação de
territórios, modificando paisagens, criando comunidades, empresas, municípios, mudando sistemas
agrários e bases técnicas, complementando mercados, refazendo costumes e culturas, reinventando
modos de vida, reeditando permanentemente o mapa da geografia agrária. A agricultura camponesa
estabelecida ou que se estabelece por meio de ocupações de terra ou resultantes de políticas de
reforma agrária, promovem conflitos e desenvolvimento. A agricultura capitalista, na nova
denominação de agronegócio, se territorializa, expropriando o campesinato, promovendo conflito e
desenvolvimento. É importante destacar que esse processo é responsável pelo crescimento da
organização camponesa em diferentes escalas e de diversas formas na América Latina e Caribe.

A territorialização do agronegócio por produto primário: o caso da soja

A soja é um dos produtos primários mais expressivos do agronegócio mundial. Na safra


2003/2004 foram produzidas 186 milhões de toneladas. Há projeções que indicam a perspectiva do
aumento para 300 milhões de toneladas para 2020. Na América Latina, a Argentina, o Brasil, o
Paraguai e a Bolívia são os países que possuem mais perspectivas de expansão da soja. (Ver mapa).
Os impactos socioterritoriais da soja têm causado a desterritorialização de camponeses e indígenas.
O agronegócio tem se mostrado extremamente agressivos, pelo uso intensivo de agrotóxicos para
viabilizar a grande escala de produção da monocultura. No Brasil, a agricultura camponesa,
responsável pela produção de aproximadamente 30% da produção de soja. A produção é
parcialmente mecanizada e a geração de emprego é maior que as produções de larga escala. Em
média, a agricultura camponesa produtora de soja gera três postos de trabalho para cada 24 hectares,
enquanto a agricultura capitalista gera um emprego para cada 200 hectares.
Na figura a seguir apresentamos a territorialização da soja no Brasil na última década e
início do século XXI. Observa-se que a direção da soja é a Amazônia, como possível espaço de
territorialização nesta década.

Na próxima figura pose-se observar que a Amazônia, o Cerrado e o Chaco são os principais
espaços que estão sendo ocupados pela soja no Brasil, Paraguai, Argentina e Bolívia.
Fonte: Dross, 2004.

Os paradigmas da questão agrária e do capitalismo agrário:

A compreensão e a explicação da questão agrária também são disputadas nas universidades,


nos governos, nos movimentos camponeses e na sociedade. Como toda questão política, a questão
agrária possibilita diferentes leituras, porque os interessados pensam a questão agrária a partir de
diferentes paradigmas, ou seja, diferentes formas de explicação. Essas referências são também
ideologias que constroem análises e influenciam as compreensões do problema. Procurar
compreender a questão agrária nos coloca diante de um enorme desafio, porque se procura uma
solução para um problema que se alimenta de si mesmo. Sua compreensão é possível, desde que
seja analisada na sua essência, sem subterfúgios, reconhecendo e revelando os seus limites em um
campo de possibilidades que exige uma postura objetiva. Desde o final do século XIX tem-se
prognosticado o desaparecimento do campesinato. Todavia, o que se observa na realidade é um
processo permanente de resistência. Desde a década de 1990, dois paradigmas disputam a
explicação da questão Agrária. Um procura afirma-la. Outro procura negá-la.
O paradigma da Questão Agrária defende que destruição do campesinato pela sua
diferenciação não determina o seu fim. É fato que o capital ao se apropriar da riqueza produzida
pelo trabalho camponês, gera a diferenciação e a destruição do campesinato. Mas, igualmente, é
fato que ao capital interessa a continuação desse processo para o seu próprio desenvolvimento. Em
diferentes condições, a apropriação da renda é mais interessante ao capital do que o assalariamento.
Por essa razão, os capitalistas oferecem suas terras em arrendamento aos camponeses ou oferecem
condições para a produção nos imóveis camponeses. O arrendamento é uma possibilidade de
recriação do campesinato, outra é pela compra da terra e outra é pela ocupação da terra. Essas são as
três formas de recriação do campesinato. E assim se desenvolve num constante processo de
territorialização de desterritorialização da agricultura camponesa, ou de destruição e recriação do
campesinato. O que é compreendido como fim também tem o seu fim na poderosa vantagem que o
capital tem sobre a renda da terra, gerada pelo trabalho familiar ou comunitário.
O paradigma do Capitalismo Agrário defende que o fim do campesinato não significa o fim
do trabalho familiar na agricultura. Desse modo utiliza o conceito de agricultor familiar como
eufemismo do conceito de camponês. A partir da lógica dualista: atrasado e moderno classifica o
camponês como atrasado e o agricultor familiar como moderno. Essa lógica dualista é processual,
pois o camponês para ser moderno precisa se metamorfosear em agricultor familiar. Esse processo
de transformação do camponês em agricultor familiar sugere também uma mudança ideológica. O
camponês metamorfoseado em agricultor familiar perde a sua história de resistência, fruto da sua
pertinácia, e se torna um sujeito conformado com o processo de diferenciação que passa a ser um
processo natural do capitalismo. Os limites dos espaços políticos de ação do então moderno
agricultor familiar fecham-se nas dimensões da diferenciação gerada na produção da renda da terra.
A sua existência está condicionada dentro das condições geradas pelo capital.
Para o paradigma do Capitalismo Agrário as relações capitalistas são apresentadas como
totalidade. As perspectivas são apenas as possibilidades de se tornar unidades do sistema. Assim o
campesinato metamorfoseado é mais uma unidade do sistema, que caminha segundo os preceitos do
capital. Daí, a facilidade dos movimentos camponeses, que se identificam com o paradigma do
Capitalismo Agrário, em aceitar políticas propostas a partir da lógica do capital, como por exemplo,
o Banco da Terra. A lógica do paradigma do Capitalismo Agrário cria um estado de mal estar,
quando o assunto a ser discutido implica em contestar o capitalismo, porque isso lhe atinge o
âmago. Este é o limite de sua ideologia. A desobediência só é permitida dentro dos parâmetros
estipulados pelo desenvolvimento do capitalismo. A partir desse ponto é subversão. A “integração
plena” carrega mais que um estado de subordinação contestada, contém o sentido da obediência às
regras do jogo comandado pelo capital. Neste paradigma, o camponês só estará bem, se, integrado
plenamente ao capital.
O paradigma da Questão Agrária não se limita à lógica do capital, de modo que a
perspectiva de enfretamento no capitalismo torna-se uma condição possível. Daí a ocupação de terra
ser uma das formas de luta mais presentes nos movimentos camponeses, porque fere seu âmago.
Também a compreensão de uma economia da luta, em que a conquista da terra não dever ser
transformada na condição única de produção de mercadorias, mas igualmente na produção da vida
em sua plenitude, bem como do enfrentamento com o capital, para a recriação continuada do
campesinato. A economia política deste paradigma contempla o mercado simultaneamente ao uso
dessa condição para promover a luta pela terra e pela reforma agrária. Por essa razão, enfrenta
desafios com a realidade comanda pelo capital, já que este quer o camponês apenas como produtor
de mercadorias e jamais como produtor de conhecimentos avessos aos princípios do capital.

VERBETES

Agronegócio

O conceito de agronegócio (agribusiness) surgiu em meados do século XX nos Estados


Unidos. A idéia era construir uma política para incrementar a participação do produtor familiar no
mercado. A ênfase ao mercado tornou-se a prioridade, destituindo assim a importância das outras
dimensões do desenvolvimento. Essa idéia veio de encontro aos interesses da agricultura capitalista
e foi completamente incorporada pelas grandes empresas agroindustriais, que iniciaram políticas
para a exploração dos camponeses e de seus territórios em todos os países da América Latina. Esse
processo foi chamado de “integração” e inaugurou uma nova forma de subalternidade do
campesinato ao capital, intensificando a questão agrária. Essa intensificação aumenta com a
dinâmica do produtivismo do agronegócio, que se territorializa ocupando latifúndios e as terras do
campesinato.
O agronegócio, de fato, é apenas o novo nome do modelo de desenvolvimento econômico da
agropecuária capitalista implantada desde a década de 1950. Observando atentamente, compreende-
se que esse modelo não é novo, sua origem está no sistema plantation ou agroexportador, em que
grandes propriedades foram utilizadas na produção para exportação. Desde o começo do
desenvolvimento do capitalismo em suas diferentes fases esse modelo passa por modificações e
adaptações, intensificando a exploração da natureza e do campesinato. O agronegócio representa a
mais recente fase do capitalismo na agropecuária, marcada pelo controle estratégico do
conhecimento, da produção e do mercado, com o uso de tecnologia de ponta.
Na América Latina, o agronegócio é uma palavra nova, da década de 1990, e é também uma
construção ideológica para tentar mudar a imagem latifundista da agricultura capitalista. O
latifúndio carrega em si a imagem da exploração, do trabalho escravo, da extrema concentração da
terra, do coronelismo, do clientelismo, da subserviência, do atraso político e econômico. É,
portanto, um espaço que pode ser ocupado para o desenvolvimento do país. Latifúndio está
associado com terra que não produz e que pode ser utilizada para reforma agrária. Embora tenham
tentado criar a figura do latifúndio produtivo (sic), essa ação não teve êxito, pois são mais de
quinhentos anos de exploração e dominação e não há adjetivo que consiga modificar o conteúdo do
substantivo.
A imagem do agronegócio foi construída para renovar a imagem da agricultura capitalista,
para “modernizá-la”. É uma tentativa de ocultar o caráter concentrador, predador, expropriatório e
excludente para dar relevância somente ao caráter produtivista, destacando o aumento da produção,
da riqueza e das novas tecnologias. Da escravidão à colheitadeira controlada por satélite, o processo
de exploração e dominação está presente, a concentração da propriedade da terra se intensifica e a
destruição do campesinato aumenta. O desenvolvimento do conhecimento que provocou as
mudanças tecnológicas foi construído a partir da estrutura do modo de produção capitalista. De
modo que houve o aperfeiçoamento do processo, mas não a solução dos problemas
socioeconômicos e políticos: o latifúndio efetua a exclusão pela improdutividade, o agronegócio
promove a exclusão pela intensa produtividade.
A agricultura capitalista ou agricultura patronal ou agricultura empresarial ou agronegócio,
qualquer que seja o eufemismo utilizado, não pode esconder o que está na sua raiz, na sua lógica: a
concentração e a exploração. Nessa nova fase de desenvolvimento, o agronegócio procura
representar a imagem da produtividade, da geração de riquezas. Desse modo, se torna o espaço
produtivo por excelência, cuja supremacia não pode ser ameaçada pelos camponeses. Se o território
do latifúndio pode ser desapropriado para a implantação de projetos de reforma agrária, o território
do agronegócio apresenta-se como sagrado, que não pode ser violado. O agronegócio é um novo
tipo de latifúndio e ainda mais amplo, agora não concentra e domina apenas a terra, mas também a
tecnologia de produção e as políticas de desenvolvimento.
A fundação do agronegócio expandiu sua territorialidade, ampliando o controle sobre o
território e as relações sociais, agudizando as injustiças sociais. O aumento da produtividade dilatou
a sua contradição central: a desigualdade. A utilização de novas tecnologias tem possibilitado, cada
vez mais, uma produção maior em áreas menores. Esse processo significou concentração de poder –
conseqüentemente – de riqueza e de território. Essa expansão tem como ponto central o controle do
conhecimento técnico, por meio de uma agricultura científica globalizada. Portanto, o agronegócio
redimensionou a questão agrária ao aumentar a exclusão do campesinato do processo de produção
de alimentos e ao intensificar a expropriação. Agora a terra reforça o caráter de território na
construção de um modelo de desenvolvimento que respeite o tempo natural, os direitos humanos e
suas diversidades.
Campesinato

Campesinato é um dos conceitos mais difíceis de explicar. Diferentemente dos trabalhadores


assalariados ou dos empresários capitalistas que produzem e se reproduzem a partir unicamente da
relação trabalho-capital em todos os lugares, o campesinato cria e se recria por meio da relação
familiar e do assalariamento temporário. Para melhor compreender esta dificuldade é preciso
entender a complexidade em que o campesinato está envolvido. O campesinato só pode ser
compreendido no processo da multidimensionalidade, ou seja, na interação de todas as dimensões
do desenvolvimento humano: política, economia, sociedade, natureza e cultura. O trabalho na terra
e a produção de alimentos são relações principais que identificam os diferentes tipos de
campesinato em qualquer parte do mundo.
Embora semelhante, o campesinato é diferente na maior parte das regiões do mundo. A
diversidade cultural e econômica é uma das principais riquezas do campesinato. O camponês
indígena de Chiapas - México, embora semelhante, é muito diferente do campesinato gaúcho, do
Estado do Rio Grande do Sul – Brasil, assim como ambos possuem semelhanças e diferenças com o
campesinato indígena Mapuche (Chile e Argentina) e com os camponeses nordestinos, da região
Nordeste – Brasil. Da mesma forma como os camponeses sem-terra brasileiros, bolivianos e
paraguaios possuem muitas distinções, embora vivam relações análogas.
Essas diferenças e semelhanças estão representadas nos diversos conceitos utilizados para
falar do campesinato: pequeno agricultor, lavrador, agricultor familiar, campesinato indígena,
pequeno produtor, agricultura familiar camponesa, produtor familiar etc. Essas diferenças
referem-se às múltiplas relações sociais em que os camponeses estão envolvidos. Na dimensão
econômica, podem-se encontrar diversas situações que, algumas vezes, acontecem ao mesmo
tempo. Um exemplo é o camponês desenvolver o trabalho familiar em sua terra e trabalhar como
assalariado para completar sua renda. São os casos de camponeses mexicanos ou guatemaltecos que
trabalham nos EUA, ou de camponeses nordestinos que trabalham no Estado de São Paulo. Outro
exemplo é o camponês contratar trabalho assalariado em períodos em que o trabalho familiar não é
suficiente, como o de safra. Ou ainda, o camponês trabalhar de assalariado em um período e
contratar trabalho assalariado em outro período. Em alguns casos, o campesinato é pluriativo,
trabalha nas cidades ou no campo em atividades não agrícolas.
As culturas camponesas são diversas entre os camponeses indígenas e os camponeses não
indígenas. As festas, as músicas, as danças possuem significados constituídos por diferentes
motivos, em que predominantemente partem das relações com o trabalho e a natureza. As culturas
camponesas e indígenas recebem influências de diferentes religiões, assim como da mídia. Por
outro lado, a cultura camponesa e indígena está presente nos topônimos, inclusive nas cidades, e na
cultura urbana. As relações com a terra e com o território também são diferentes entre os
camponeses e os camponeses indígenas. A propriedade da terra tem vários sentidos: particular,
comum, comunitário. As culturas camponesas também influenciam entre si: um exemplo foi a
influência da música mexicana e paraguaia na musica caipira brasileira, como ficou denominado um
dos tipos de música camponesa no Brasil.
No conjunto de diferenças encontram-se muitas semelhanças. Algumas características
comuns dos camponeses são: a organização do trabalho e da produção familiar e ou em
comunidades; as diversas formas de uso da terra para produção de alimentos; a organização de
cooperativas para os diferentes tipos de trabalho e dimensões do desenvolvimento; produção em
pequena escala e criação de tecnologias apropriadas na relação com o espaço natural; a policultura,
a participação intensiva nos mercados locais e a produção de autoconsumo; a subordinação aos
processos produtivos determinados pela agroindústria e as expressivas participações na produção
para exportação. Pela própria estrutura da organização familiar e ou comunitária camponesa e
indígena, a produção e a criação camponesas obedecem ao tempo natural do limite humano.
O campesinato é uma das organizações sociais mais antigas da história da humanidade.
Participou da construção de diferentes tipos de sociedades, bem como participou das
transformações políticas das sociedades modernas. Essa qualidade é constituída na resistência do
campesinato à exploração e à expropriação. A luta pela terra e pelo território são outras relações de
semelhança entre os diferentes tipos de campesinato. A expropriação pelas desigualdades
produzidas no desenvolvimento capitalista e a ressocialização gerada na luta camponesa pela terra
são situações que expressam a complexidade das semelhanças e das diferenças do campesinato.

Chiapas

Chiapas é um bom exemplo para compreender a questão agrária na América Latina. No


Estado de Chiapas localizado no sul do México, na fronteira com a Guatemala, os camponeses
indígenas maias formaram o movimento zapatista e insurgiram contra cinco séculos de exploração e
expropriação. O desenvolvimento avassalador das desigualdades, que jamais foram minimizadas,
aumenta sucessivamente a pobreza dos camponeses chiapanecos. Quando o movimento zapatista
rebelde organizou a resistência armada, revelou simultaneamente a insolubilidade da questão
agrária na sociedade capitalista e a sua intensificação com as políticas econômicas neoliberais. Na
sua primeira manifestação pública, o Exército Zapatista de Libertação Nacional – EZLN - propôs
diálogo e convocou a sociedade para se organizar contra os acordos políticos econômicos,
determinados principalmente pelos Estados Unidos, que expandem o controle territorial e
aumentam exploração e a expropriação.
O levante zapatista começou no dia 1 de janeiro de 1994, no mesmo dia em que entrou em
vigor o Acordo de Livre Comércio da América do Norte. Esse acordo de integração econômica
dinamizou a expansão do capitalismo, aumentando os processos expropriatórios. A revolta zapatista
repercutiu em todo o México, criando um importante espaço político para o debate, envolvendo
diversas organizações, como os movimentos operários e estudantis. Nesse processo, organizou-se a
Frente Zapatista de Libertação Nacional – FZLN. O modelo de desenvolvimento imposto pelo
tratado de livre comércio encontrou um conjunto de protagonistas que o questionou. O surgimento
desta nova força política também questionou as forças políticas convencionais, como os partidos.
De fato, essas ações indicaram a necessidade de novos espaços que possibilitem repensar as
estruturas políticas, a democracia e a participação da sociedade na construção do futuro do país.
O zapatismo não denunciou somente as desigualdades e a situação de exclusão da maior
parte da população mexicana. Também deu intenso destaque a perca da soberania nacional com o
tratado de livre comércio. Igualmente, colocou em relevo a negação do governo em aceitar a
pluralidade étnica e suas autonomias. Concomitantemente as ações relevantes que fomentaram o
debate, os zapatistas criaram novos espaços políticos e construíram territórios, alimentando o
diálogo com o Estado e com a sociedade. As repostas do governo federal derivaram do diálogo a
violência contra os integrantes do movimento constituído nas comunidades chiapanecas. Em
fevereiro de 1995, o governo declarou guerra ao Exército Zapatista de Libertação Nacional. O
fracasso dessa decisão governamental e a pressão da sociedade mexicana obrigaram o governo a
procurar a via pacífica.
Essa condição proporcionou a retomada do diálogo e a constituição dos Acordos de San
Andrés em fevereiro de 1996. Nesses atos, o governo mexicano se comprometeu em reconhecer os
povos indígenas e suas representações políticas; garantir seus direitos no desenvolvimento do país e
acatar princípios como o pluralismo, a integridade e a livre determinação. Todavia, esses atos foram
acompanhados de ações criminosas por parte de grupos paramilitares que em dezembro de 1997
assassinaram 45 pessoas, que ficou conhecido como o Massacre dos zapatistas de Acteal. Esse
massacre ficou registrado como um crime contra as tentativas de autonomia dos povos indígenas,
para a defesa de seus direitos e para a autodeterminação de seus territórios.
A luta dos camponeses indígenas maias contra as desigualdades, que geram os conflitos
permanentes, criou formas de resistência e iniciou um processo de transformação ao mesmo tempo
em que confronta as políticas neoliberais. A criação dos municípios autônomos explicitou o caráter
territorial da questão agrária e se constituiu em um conjunto de novas experiências em que os
camponeses indígenas passaram a decidir e conflitar com políticas referentes à produção, educação,
saúde etc. A luta zapatista revelou que a resistência é um processo longo e que as transformações
políticas fazem-se nas ações de autonomia, de pluralidade e soberania. A existência do movimento
zapatista não se resume a questão agrária, ela é tão expressiva quanto o problema que o gerou e a
superação encontra-se na realização plena dos interesses dos povos indígenas, em seus territórios e
em seu país.

MST

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST é o mais atuante movimento
camponês brasileiro na luta pela terra. Em seus vinte anos de existência, o MST organizou-se em 23
das 27 unidades federativas. Atuando em escala nacional, no período 2000 – 2004, o MST realizou
850 ocupações com 174.448 famílias (SILVA e FERNANDES, 2005). A luta pela terra é a
principal forma de acesso à terra, na conquista de assentamentos rurais. A luta é dimensionada em
vários setores de atuação do Movimento, como a produção, a educação, a cultura, a saúde, as
políticas agrícolas e infra-estrutura social. Por meio desse processo de territorialização, o MST
criou centenas de cooperativas e associações agropecuárias. Esse é um importante processo de
ressocialização que tem contribuído com o desenvolvimento econômico e a intensificação da
questão agrária brasileira.
O processo de formação do MST começou no final da década de 1970 com o apoio da
Comissão Pastoral da Terra - CPT. Na região centro – sul do Brasil, a CPT apoiou as famílias
camponesas que realizavam as ocupações de terra que deu origem ao MST. O Primeiro Encontro
Nacional aconteceu em 1984, data oficial de fundação do MST. Nas décadas de 1980 e 1990, o
Movimento se territorializou por todas as regiões brasileiras, conquistando milhares de
assentamentos rurais. Esse processo representou o renascimento dos movimentos camponeses no
Brasil, depois da extinção da maior parte dos movimentos camponeses pela ditadura militar que se
implantou com o golpe militar de 1964. As ações do MST foram essenciais para mudanças nas
políticas agrárias.
O Brasil está entre os países com a maior concentração fundiária do mundo. Diversos planos
de reforma agrária foram elaborados sem que a estrutura fundiária fosse desconcentrada. O governo
totalitário elaborou o Estatuto da Terra: uma Lei que expressava os princípios da reestruturação
fundiária, que, todavia, jamais foi aplicada. Em 1985, no primeiro governo da redemocratização foi
elaborado o Plano Nacional de Reforma Agrária - PNRA. Em resposta os ruralistas criaram a União
Democrática Ruralista – UDR, que atuou intensamente para que o PNRA jamais fosse implantado.
Em 1988, com a elaboração da nova Constituição, a reforma agrária sofreu duro golpe dos
ruralistas. Embora a reforma agrária fora aprovada na Constituição, necessitava de lei
complementar para a sua realização. Somente em 1993, com a aprovação da Lei 8629, passou a
existir regulamentação para a desapropriação de terras.
O aumento das ocupações de terra e do número de famílias acampadas pressionou o governo
do presidente Fernando Henrique Cardoso, eleito em 1994, para a realização de uma ampla política
de assentamentos rurais. Em 1998, no segundo mandato, Fernando Henrique Cardoso adotou a
política agrária de caráter neoliberal, criminalizou a luta pela terra e implantou uma política de
mercantilização da terra, denominada reforma agrária de mercado. Ainda no segundo mandato do
governo, essa política cresceu em detrimento das desapropriações. Também destruiu a política de
crédito para a reforma agrária e a política de assistência técnica, inviabilizando o desenvolvimento
dos assentamentos, precarizando a vida de centenas de milhares de famílias assentadas e. Ainda
proscreveu a política de educação para os assentamentos, que fora criada a partir de um conjunto de
ações do MST.
A esperança na realização da reforma agrária foi recuperada com a eleição de Luís Inácio
Lula da Silva para presidente do Brasil. Em 2003, foi elaborado o II Plano Nacional de Reforma
Agrária – II PNRA com a promessa de assentar 530 mil famílias, sendo 400 mil por meio de
desapropriação e 130 mil através da política de crédito fundiário, uma nova versão para a
denominada reforma agrária de mercado. No ano de 2003, aconteceram 391 ocupações de terra com
65.552 famílias. No ano de 2004, aconteceram 461 ocupações com 73.657 famílias, sendo que deste
total, 75% das famílias estavam organizadas no MST. Todavia, a resposta do governo às
reivindicações dos camponeses ficou aquém do prometido no II PNRA. Em 2003, o governo Lula
assentou 35.623 famílias, sendo 8.521 famílias em terras desapropriadas ou compradas e 27.102 em
terras assentamentos antigos, em lotes abandonados por causa da precarização das políticas agrárias.
(STEDILE e FERNANDES, 2005).
Em 2004, o governo Lula assentou 81.160 famílias, sendo 25.975 famílias em terras
desapropriadas ou compradas e 55.185 em lotes de assentamentos já existentes. Esses dados são
indicadores da tímida política de reforma agrária do governo Lula. Esse resultado apresenta dois
indicadores importantes para os movimentos camponeses: as ocupações de terra continuam sendo as
principais formas de acesso a terra, pois 90% dos assentamentos são resultados de ocupações; a
reforma agrária e o conjunto de políticas que a acompanha para o desenvolvimento territorial não se
realizam somente com a eleição da presidência da República, mas principalmente com a
qualificação das organizações camponesas e suas estratégias políticas.

Via Campesina

A Via Campesina é uma articulação mundial dos movimentos camponeses. Entre seus
objetivos constam: a construção de relações de solidariedade reconhecendo a diversidade do
campesinato no mundo; a construção de um modelo de desenvolvimento da agricultura, que garanta
a soberania alimentar como direito dos povos de definirem suas próprias políticas agrícolas, bem
como a preservação do meio ambiente com a proteção da biodiversidade. Opõem-se a padronização
das culturas, ao produtivismo, a monocultura e a produção unicamente para exportação,
características do modelo de desenvolvimento do agronegócio. Organiza-se a partir de pequenos e
médios agricultores e neste campo apresenta-se como um movimento internacional, autônomo,
pluralista, sem vinculação com partidos, igrejas e governos. Os movimentos camponeses vinculados
a Via Campesina atuam em escala regional e em escala nacional. Sua organização espacial
compreende as seguintes regiões: Europa do Leste, Europa do Oeste, Nordeste e Sudeste da Ásia,
América do Norte, Caribe, América Central, América do Sul e África.
A Via Campesina nasceu em 1992 quando várias lideranças camponesas dos continentes
americano e europeu que participavam do II Congresso da UNAG (Unión Nacional de Agricultores
y Ganaderos de Nicaragua) em Manágua propuseram a criação de uma articulação mundial de
camponeses. A proposição foi efetivada em 1993 com a realização da Primeira Conferência em
Mons – Bélgica e com a definição das linhas políticas e da estrutura. Em abril 1996 foi realizada a
Segunda Conferência em Tlaxcala – México com a participação de 37 países e 69 organizações
nacionais. Enquanto acontecia esta Conferência, no dia 17 de abril, ocorreu o massacre de Eldorado
dos Carajás, quando 19 camponeses sem-terra vinculados ao Movimento dos Trabalhadores Sem
Terra foram assassinados em uma marcha no Estado do Pará – Brasil. A Conferência declarou o 17
de abril como o Dia Mundial da Luta Camponesa. Em 2000, realizou-se a Terceira Conferência, em
Bangalore – Índia, onde participaram 100 delegados de organizações de 40 países. A Quarta
Conferência aconteceu no Brasil, em junho de 2004, com 400 delegados de 76 países,
representando 120 movimentos camponeses.
As linhas políticas defendidas pela Via Campesina são: Soberania Alimentar e Comércio
Internacional; Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural; Gênero e Direitos Humanos; Agricultura
Camponesa Sustentável; Biodiversidade e Recursos Genéticos. A estrutura da Via Campesina é
formada pela Conferência Internacional - espaço de deliberação política; pela Comissão
Coordenadora Internacional, Comissões Políticas, Secretaria Executiva e pelos movimentos
camponeses vinculados. As comissões políticas atuam nas linhas apresentadas, elaborando
documentos com as manifestações dos movimentos camponeses de diversas partes do planeta.
Também participa de debates e protestos junto aos organismos internacionais.
A Via Campesina compreende a soberania alimentar como direito dos povos, de seus países
e uniões de estados em definir suas políticas agrícolas e alimentares, sem dumping a outros países;
que as políticas agrícolas devam ser duradouras e solidárias, determinadas pelas organizações
nacionais e pelos governos, suprimindo o poder das corporações multinacionais; da mesma forma as
negociações agrícolas internacionais devem estar sob controle dos estados, sem a intervenção da
Organização Mundial do Comércio – OMC. A Via Campesina realiza a Campanha Global pela
Reforma Agrária que alcançou reconhecimento em âmbitos diversos, como organizações
camponesas, organizações não governamentais, governos e organismos internacionais. Essa
campanha tem fortalecido a resistência internacional as políticas mercado de terras e mobilizado
apoio internacional. O desenvolvimento rural tem seus principais propósitos na unidade familiar,
com destaque para a participação das mulheres e dos jovens. Neste plano estão associadas políticas
agroecológicas para a garantia da biodiversidade e proteção dos recursos genéticos.
A Via Campesina tem atuado organizadamente em diversas partes do mundo. Alguns
exemplos são: a organização de mobilizações para protestos durante as reuniões da OMC, em
Genebra - Suíça, em 1998, em Seattle – EUA, em 1999 e em Cancun – México, em 2003. Nesses
protestos, os camponeses exigiram a saída da OMC das negociações agrícolas. Nesses anos, os
movimentos camponeses inovaram ao realizarem mobilizações conjuntas em várias cidades do
mundo ao mesmo tempo. A criação dessa rede de movimentos tem propiciado uma maior
resistência às políticas neoliberais e ao avanço do agronegócio sobre os territórios camponeses. A
Via Campesina tornou-se a principal interlocutora dos movimentos camponeses nas negociações de
políticas em escala internacional e nacional.

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