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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1. ORIGENS HISTÓRICAS DO PROBLEMA AGRÁRIO NO BRASIL
2. A TERRA NA SOCIEDADE CAPITALISTA MODERNA
3. EVOLUÇÃO AOS TEMPOS ATUAIS
4. OS INTELECTUAIS E A REFORMA AGRÁRIA
5. O PROJETO DO GOVERNO
6. A IGREJA E A REFORMA AGRÁRIA
7. OS PARTIDOS POLÍTICOS E A REFORMA AGRÁRIA
8. O TRABALHADOR RURAL E A REFORMA AGRÁRIA
9. A SÍNTESE DO PENSAMENTO REFORMISTA
10. OS ARGUMENTOS CONTRA A REFORMA AGRÁRIA
11. A CONSTITUIÇÃO E A REFORMA AGRÁRIA
12. A QUESTÃO DAS PEQUENAS E GRANDES PROPRIEDADES
CONSIDERAÇÕES FINAIS
SUGESTÕES DE LEITURA
INTRODUÇÃO
Luta-se muito, no Brasil, pela posse da terra; pelas roças plantadas
em terras de donos ausentes ou desconhecidos pela remuneração
do trabalho nas colheitas da laranja, da cana, do café etc.; pela
sobrevivência em muitos trabalhos penosos da agricultura.
Também morre muita gente, de forma violenta, no campo. Mui- tos
morrem por doenças e desnutrição no abandono das secas
nordestinas; outros são mortos nas disputas com grileiros e
jagunços; outros perecem nos acidentes com o transporte precário
em caminhões de boias-frias.
A escassa legislação aplicada às relações de trabalho no campo e
os acordos coletivos, conseguidos a duras penas, são
frequentemente burlados, desrespeitados, sempre em prejuízo da
parte mais fraca — os trabalhadores.
A organização econômica e social vigente no Brasil e que começou
a ser delineada há pouco mais de meio século, vem impondo a
milhões de brasileiros uma trajetória de sofrimentos, marcada pelo
binômio “lutar e morrer”. O viver, isto é, a faculdade de dispor de
condições dignas de vida, tem sido apenas uma esperança, uma
promessa que se repete sempre e nunca se concretiza.
Há cinquenta ou sessenta anos, algumas convulsões sociais
provocaram certas acomodações e reordenamentos na cúpula da
estrutura de classes da sociedade brasileira. O poder de mando dos
senhores da terra — donos de engenho, pecuaristas e fazendeiros
do café, constituintes da chamada aristocracia rural — teve que ser
dividido com os capitalistas do comércio e principalmente da
indústria, que se instalava como nova forma de organização
econômica.
A divisão da classe detentora do poder econômico em vários
segmentos foi desaparecendo ou diminuindo de intensidade à
medida que as composições entre eles iam solidificando uma certa
identidade de interesses no controle da economia, da política e da
sociedade. Uma nova classe dominante, mais ampla, mais
diversificada nos seus campos de atuação, mais agressiva e
ambiciosa, mais impiedosa e também mais sofisticada nos métodos
de exploração, constituiu-se no país e está ditando as regras até
hoje.
Os recursos tecnológicos introduzidos pela indústria, como a
mecanização, o uso de produtos químicos, a melhoria dos
transportes, a energia elétrica e outros, representaram grandes
promessas de que o trabalho agrícola iria tornar-se mais produtivo e
mais suave. Um número menor de pessoas precisaria viver e
trabalhar no campo, e mais gente poderia viver com maior conforto
nas cidades.
As Transformações Na Agricultura Brasileira
Ao longo desses últimos cinquenta ou sessenta anos, a indústria
foi dominando as cidades e invadindo o campo. Diminuiu o número
de pessoas morando e trabalhando na lavoura, mas aumentou o
número dos desempregados nas cidades, e a produção per capita
da agricultura é hoje menor do que há trinta anos.
Desapareceu a fazenda tradicional, aquele pequeno mundo quase
autossuficiente em tudo — moradia, trabalho, alimentação, lazer,
igreja e escola —, onde a exploração do trabalhador era disfarçada
pelo compadrismo, e o clientelismo político obrigava os
trabalhadores a votarem em seus patrões ou em candidatos por
eles indicados.
O predomínio de uma cultura — o café, por exemplo — não
excluía a produção de gêneros alimentícios como cereais, carne,
leite, ovos, frutas e outros, mas as coisas mudaram e o que era
ruim ficou pior. Por interesse do sistema econômico, por
conveniência de grande parte dos proprietários e por iniciativa
de muitos trabalhadores, as terras se despovoaram. As
multidões detrabalhadores que hoje nelas se movimentam o
fazem apenas durante a jornada de trabalho e não têm qualquer
outro vínculo que não seja pequena remuneração percebida.
A consequência maior das transformações ocorridas é que o
sistema agrícola brasileiro já não satisfaz aos objetivos de lucro da
maioria dos proprietários, não corresponde às expectativas do país
e do conjunto da população e não atende às necessidades mais
elementares da massa trabalhadora do campo.
Desde alguns anos nomeou-se um culpado por todos esses males:
o latifúndio, as grandes propriedades agrícolas individuais ou
familiares, geralmente de baixa produtividade ou mal exploradas.
Não foi difícil a escolha do vilão, do bode expiatório. Primeiro,
porque já havia uma tradição, desde o século XVIII, de os
defensores da metrópole portuguesa responsabilizarem os
sesmeiros (donos de latifúndios doados pela Coroa) pela escassez
da produção agrícola. Segundo, porque o latifúndio tem feito
por merecer muitas acusações, ao manter um sistema agrícola
atrasado, prejudicial ao país, à população em geral e
principalmente à classe trabalhadora.
Não é possível inocentar totalmente o latifúndio, mas é preciso
levantar algumas questões: não existem outras causas, além do
latifúndio, para problemas imputados unicamente a ele? Até que
ponto o tamanho das propriedades determina o comportamento
político e econômico dos homens? Como se explica o apoio dados
aos latifundiários por pessoas que nem ao menos são proprietárias
de terras? Até que ponto é correto atribuir a todo e qualquer
latifúndio, indistintamente, a origem dos problemas acima
mencionados? A ser verdade a necessidade de extinguir a grande
propriedade da terra, que outra forma seria adequada, justa e
eficiente?
A palavra-de-ordem que corre no Brasil em todo os quadrantes é "
reforma agrária". Não se trata da abertura dos debates em torno da
questão nem da procura das melhores soluções. Tampouco se
discute a organização de um sistema agrícola diferenciado
conforme a região, os tipos de cultura, a especificidade dos
problemas etc.
O que essa palavra-de-ordem expressa como objetivo maior é a
intenção de desapropriar-se grandes propriedades, incluindo no
conceito de grande a somatória de várias glebas do mesmo
proprietário, ainda que em regiões distintas. A fúria desapropriadora
não distingue padrões de utilização do solo, nem a qualidade das
relações entre empregador e empregado, mas apenas conhece o
tamanho das propriedades.
O que fazer com as terras desapropriadas também é uma questão
mal-esclarecida. A ideia predominante é distribuí-las entre os
trabalhadores, formando um misto de muitas pequenas
propriedades privadas e algumas formas coletivas — cooperativas,
por exemplo — de propriedade e de exploração.
A ideia da desapropriação massiva das terras e a sua repartição
entre milhões de famílias sem terra, ou com pouca terra, encontra
muitos opositores, não só entre os proprietários diretamente
ameaçados por essas desapropriações, mas também entre os que
reconhecem a de serem corrigidas muitas das distorções hoje
existentes na estrutura agrária. As insuficiências no rendimento
agrícola e a necessidade de melhorar as condições de trabalho e de
vida da massa trabalhadora são amplamente reconhecidas por
pessoas de todos os níveis sociais e tendências políticas.
Mesmo entre os que reconhecem a necessidade de desapropriar
uns, para constituir outras camadas de proprietários, há os que
consideram suficientes os projetos do governo, nos quais as
dimensões da reforma se reduzem a limites compatíveis com os
objetivos do próprio sistema socioeconômico vigente no país.
O sistema socioeconômico capitalista brasileiro caracteriza-se pela
grande concentração, em poder de poucos, tanto da propriedade
fundiária como também dos capitais industriais e dos financeiros da
renda em geral e do poder político.
Os Envolvidos Na Reforma Agrária
Na questão da reforma agrária estão empenhados, de maneira mais
intensa e direta, o governo federal, a Igreja Católica, ou parte dela,
alguns partidos políticos, o sindicalismo em geral e, em particular, o
Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais.
O governo tem diante de si duas linhas de problemas: por um lado,
tem de fazer cumprir, ao menos parcialmente, o Estatuto da Terra,
promulgado em 1964 na esteira das promessas com que o regime
militar acenou para a redenção nacional; por outro lado, enquanto
governo da “Aliança Democrática”, tem o compromisso de resgatar
a dívida social acumulada para com a nação em geral e os
trabalhadores em particular.
A Igreja Católica está comprometida com uma opção pelos pobres,
adotada na 3.a Conferência Episcopal Latino- Americana (Ceiam),
realizada em Puebla, no México, em 1979. Mas sua condição de
grande proprietária e a falta de hábito de lutar pelos pobres não lhe
têm permitido defender um projeto estruturado com a profundidade
e com a extensão que os problemas agrários requerem.
Os partidos políticos de esquerda, tanto os tradicionais comunistas
como o novato Partido dos Trabalhadores, em conjunto com o
sindicalismo urbano e rural, pregam a desapropriação de todas as
grandes propriedades rurais (cerca de 400 milhões de hectares), por
acreditarem mesmo no sucesso de uma agricultura dominada por
pequenos camponeses, ou por uma questão de tática na luta
política, visando enfraquecer a classe dominante com a derrubada
do seu principal esteio — a propriedade fundiária. Mas ninguém
esclarece direito que sistema agrícola se seguirá ao latifúndio.
Acontece que já existe um sistema agrícola resultante da liquidação
do latifúndio individual. É a empresa rural. A empresa rural não é
coisa nova; ela só não tinha grande expressão até há poucos
anos. Agora ela representa a forma preferencial de organização do
modelo econômico, que combina a exploração agropecuária com as
etapas anteriores e posteriores de industrialização e de comércio.
Nas etapas anteriores encontra-se a produção de sementes mudas,
de matrizes e reprodutores, de rações e fertilizantes, de herbicidas e
produtos veterinários, de equipamentos etc.
Nas etapas posteriores se destacam o beneficiamento e a
industrialização dos produtos agrícolas, a industrialização e
comércio da carne, do leite e seus derivados, além do transporte
interno e da exportação para os mercados externos.
Todas essas etapas tendem a ser agrupadas em empresas
associadas, coligadas ou pertencentes aos mesmos grupos, seja
dominando todas as fases de um dado produto ou apenas algumas
delas. De qualquer forma, o capitalismo vai estendendo as suas
técnicas de apropriação dos meios de produção, utilizando-os
segundo modelos diferentes dos utilizados pelo velho latifúndio e
dos pretendidos pelos reformistas da estrutura agrária.
Uma Questão De Gente
As origens históricas do problema agrário, do modo como ele se
apresenta hoje, coincide com as origens históricas do modelo sócio
econômico do moderno capitalismo brasileiro. Esses dois aspectos
serão comentados nos primeiros capítulos, onde importa discutir
quando e como a questão da propriedade da terra assumiu a
importância que tem hoje ; quando teve início o modelo sócio-
econômico hoje predominante no Brasil ; qual o papel
desempenhado pela massa trabalhadora no sistema social ; quais
as forças sociais que se coligaram para formar a estrutura de
classes da moderna sociedade brasileira e por que nunca se fez
uma reforma agrária no Brasil.
O objetivo principal deste livro é avaliar o peso relativo da
propriedade fundiária, da mão-de-obra e dos capitais no conjunto do
sistema econômico. A ideia que procuraremos demonstrar é a de
que a reforma agrária não é só e fundamentalmente uma questão
de terras, mas, acima de tudo, é uma questão de gente. Na
sociedade capitalista, a terra e a gente que nela deve trabalhar são
igualmente contabilizadas como fatores de produção. O homem,
como instrumento de produção, apesar de todo o avanço
tecnológico é ainda o capital mais valioso. Para um sistema
econômico gerenciado por elites muito eficientes na preservação de
seus interesses, permitir uma reforma agrária ampla e definitiva que
criasse alguns novos milhões de pequenos proprietários agrícolas é
renunciar a muitos milhões de trabalhadores assalariados hoje
disponíveis a baixíssimo custo na agricultura, na indústria e em
outros ramos econômicos.
Examinaremos também, um a um, os principais argumentos
favoráveis e contrários à reforma agrária e algumas das principais
alternativas apresentadas como solução para problema gerador de
tantos conflitos. Insistindo principalmente na valorização do ser
humano como razão primordial das atividades econômicas e
políticas, formularemos várias restrições aos projetos de repartição
de terras entre milhões de trabalhadores, tanto pela inviabilidade
dessa ideia como pela convicção de que essa forma de organização
da propriedade e da produção não é a mais adequada à economia
nacional nem a mais correta para os interesses da classe
trabalhadora no seu todo.
1. ORIGENS HISTÓRICAS DO
PROBLEMA AGRÁRIO NO BRASIL
Desde muito tempo discute -se o problema da propriedade e da utilização da
terra no Brasil. O drama dos sem-terra também é muito antigo e transpareceu
em fatos e acontecimentos marcantes do passado nacional.
Na epopeia de Canudos, por exemplo, a narrativa de Euclides da Cunha em Os
sertões deixa claros os motivos daquela concentração de excedentes humanos
— que ate então não dispunham da opção migratória em grande escala para o
Sul — e do medo que ela infundia nos grandes proprietários de terras da região.
Uma reforma agrária regional teria resolvido o problema de milhares de famílias,
sem terra e sem trabalho, resolvendo também muitos problemas econômicos e
sociais do Nordeste, que se empobrecia com o deslocamento do eixo
econômico para os Estados do Sul. Mas a solução preferida foi o massacre
puro e simples de toda aquela população.
As mesmas causas que deram origem ao arraial de Canudos já haviam
produzido o fanatismo religioso, o banditismo e as grandes massas humanas
vagando pelo sertão em busca de esperanças, e iriam produzir, pouco depois, o
cangaço como forma organizada de banditismo, fanatismo e insurreição.
Também este foi liquidado pela força e com excepcional selvageria.
As grandes correntes migratórias para o Norte, para o litoral e principalmente
para o Sul não resolveram os problemas dos nordestinos sempre tangidos
pela miséria,
pelo desemprego e pelas sucessivas secas. No Sul (São Paulo, Minas Gerais e
Paraná), até o fim da Segunda Guerra Mundial, vigorava a utilização de
colonos, meeiros e arrendatários no trabalho rural. Os colonos trabalhavam
sob contrato, com parte da remuneração em dinheiro e outros benefícios; os
meeiros empregavam-se em troca da metade da produção, e os arrendatários
assumiam uma parcela de terra, pagando ao proprietário uma porcentagem da
produção obtida.
Desde o fim da Segunda guerra, esses sistemas começaram a ser
substituídos por formas de trabalho temporário, dando origem ao boia-fria, sem
emprego fixo nem lugar para morar.
Em toda a evolução histórica da economia, marcada por fases de prosperidade
e outras de crise, com o predomínio de um ou de outro produto, ora se
destacando uma região, ora outra, um fator permaneceu constante: a massa
trabalhadora, força motriz da produção, nunca teve acesso aos benefícios mais
elementares do progresso.
Localização No Tempo
Para não remontar a épocas mais distantes nem discutir ideias e
programas que pouco interesse despertam no público, fixamos
como ponto de partida para este estudo a década de 1920.
Essa escolha se justifica por várias razões, das quais se destacam
duas. A primeira delas é que a partir dessa época ocorrem no Brasil
movimentos sociais liderados pela nova classe emergente, a
burguesia, composta pelos capitalistas do comércio, da indústria,
dos bancos e outros.
Os movimentos mais conhecidos com os quais a burguesia tentou
abrir caminho para os seus interesses nas estruturas econômicas,
sociais e políticas do Brasil foram as revoluções de 1922, 1924 e
1930.
A revolução de 1922 foi a que inaugurou o período chamado
tenentismo, dada a predominância dos tenentes nos movimentos de
contestação aos governos da época, cujo episódio principal foi a
resistência de uns poucos revoltosos no Forte de Copacabana, sob
o comando do tenente Eduardo Gomes.
A revolução de 1924 foi derrotada em três meses, mas uma força de
aproximadamente mil e quinhentos combatentes de São Paulo e do
Rio Grande do Sul, conhecida como Coluna Prestes, sob o
comando do tenente Luiz Carlos Prestes e outros, prosseguiu o
movimento, percorrendo o interior do Brasil até 1928, quando
algumas centenas de seus componentes se asilaram na Bolívia.
Finalmente, a revolução de 1930, que contou com o apoio de
influentes lideranças políticas e militares, conseguiu tomar o poder
e, durante quinze anos (1930-1945), sob o regime ditatorial
encabeçado por Getúlio Vargas, foram estabelecidas as bases do
sistema econômico brasileiro que, com ligeiras adaptações,
predomina até hoje.
A segunda razão para essa retrospectiva histórica partir da década
de 1920 decorre da conjugação de alguns fatos, ocorridos quase
simultaneamente nessa mesma época, dentro e fora do país. Do
plano externo vinham as repercussões da implantação da NEP
(Nova Política Econômica) na União Soviética, a partir de 1922,
quando uma reforma agrária distribuiu terras a milhões de
camponeses, assegurando a consolidação da revolução
bolchevique liderada por Lênin.
Essa distribuição de terras seria anulada, alguns anos mais tarde, a
partir de 1928 e na década de trinta, através de um programa de
coletivização da terra e da produção agrícola na URSS. Mas
enquanto durou o modelo baseado na repartição das terras entre
milhões de camponeses, com extraordinários aumentos nos níveis
de produção, ele serviu para inspirar reivindicações idênticas no
mundo inteiro.
Igualmente repercutiram em muitos lugares as revoluções
camponesas e as várias reformas agrárias ocorridas no México. As
agitações mexicanas duraram de 1910 a 1958, mas foi por volta de
1917 que os planos de reforma agrária alcançaram maior
repercussão.
No plano interno deu-se a criação do Partido Comunista, em 1922,
que sempre teve no seu programa o objetivo da reforma agrária
segundo o modelo leninista da NEP. Essa questão foi incluída
formalmente no programa do PC por ocasião do seu III Congresso,
realizado em 1928, sob a palavra de ordem “a terra para os que nela
trabalham".
Além das campanhas permanentes que manteve em torno dessa
questão, o Partido Comunista marcou sua presença nos
movimentos sociais de ascensão da burguesia pela sua participação
na tentativa de tomada do poder em 1935, quando ficou isolado das
demais forças que combatiam a ditadura e foi completamente
derrotado por Vargas.
Com base nos fatos apresentados, podemos dizer que a questão
agrária, nos moldes como é discutida hoje, tornou-se um assunto de
interesse nacional na década de 1920. Outras razões poderiam ser
arroladas para reforçar essa ideia, mas o interesse maior deste
trabalho não é o de reconstituir historicamente a evolução do
problema agrário e sim considerá-lo nos seus termos atuais.
Formulação Do Problema
A breve análise histórica de que lançamos mão pretende subsidiar a
busca de uma resposta para uma pergunta crucial e que reduz o
problema aos seus verdadeiros termos: por que não se fez ainda, ou
por que não se faz agora uma reforma agrária ampla, com
distribuição de terras a grande número de trabalhadores rurais?
Todos se dizem favoráveis à reforma agrária, desde o presidente da
República até o mais humilde boia-fria de São Paulo ou o nordestino
flagelado pela seca.
A Igreja Católica, que no passado combateu a ideia como sendo
“coisa de comunista” e se opôs às reformas de base prometidas
pelo governo Goulart com a tese de que a reforma agrária era uma
“questão de consciência”, agora estimula as invasões de terra em
defesa de uma ampla redistribuição da propriedade fundiária, desde
que não se mexa nas suas próprias terras.
No extremo oposto, os movimentos comunistas, para quem a
extinção da propriedade privada dos meios de produção deveria ser
a principal bandeira, defendem a multiplicação da propriedade
privada agrícola, em lugar da socialização da terra.
Até os proprietários de terras, representados por associações,
federações e pela UDR (União Democrática Ruralista), criada em
1986 para defender seus interesses fundiários, manifestaram-se a
favor do programa de reforma agrária do governo, ressalvando
que só não concordavam coma forma como ele estava sendo
conduzido. Boas intenções são apregoadas largamente, mas nem
os governos militares, com o poder absoluto de que dispunham,
foram além da promulgação — ao tempo do marechal Castelo
Branco — de um Estatuto da Terra nunca executado e da
distribuição de uns poucos títulos de propriedade, para legalizar
situações de fato e de direito individual inquestionável.
Terras existem em abundância, propriedades dos governos federal,
estaduais e municipais. Um exemplo disso tivemos ao tempo do
governo Figueiredo, quando se discutiu seriamente um plano de
colonização no Planalto Central, através da concessão de grandes
extensões de terras a investidores japoneses. O plano não se
concretizou, não por falta de terras nem de facilidades em concedê-
las, mas sim porque os entendimentos não foram bem-sucedidos.
Outro exemplo da abundância de terras foi dado pelo governo de
São Paulo, quando da instalação da "Nova República", em 1985,
com suas promessas de reformas efetivas. Imediatamente o
governo desse Estado, dirigido por Franco Montoro, providenciou o
tombamento de extensas faixas do litoral "por motivos ecológicos".
Medidas realmente eficazes de proteção do meio ambiente não
foram tomadas, mas as valiosas terras litorâneas ficaram legalmente
protegidas contra qualquer programa de repartição e de ocupação.
Não faltaram leis que amparem medidas governamentais dirigidas
para a solução efetiva do problema, mas as contradições e
ambiguidades dos textos legais conduzem a interpretações que
acabam sempre inibindo as possíveis medidas. E se os latifúndios
total ou parcialmente improdutivos representam uma quantidade
considerável de terras, as desapropriações esbarram em tantos
erros técnicos e entraves judiciários que ninguém consegue
comprovar o evidente caráter especulativo de muitas dessas
propriedades.
Ideias e sugestões sobre múltiplas formas de solucionar a questão
agrária têm sido difundidas, desde o inócuo processo de tributar
pesadamente as terras improdutivas até a desordenada invasão de
propriedades públicas e privadas.
Livros, artigos e discursos têm salientado as necessidades e as
vantagens da reforma agrária, em benefício do povo, do governo, da
agricultura, da indústria, do fortalecimento do regime capitalista, da
justiça social e tantas coisas mais.
Com milhões de trabalhadores sem terras, com terras facilmente
disponíveis, com tantas manifestações favoráveis à reforma
agrária, por que ela não é realizada?
Comentaremos todas essas questões com a perspectiva histórica
do último meio século, para concluir com respostas que modificam
um pouco o enfoque do problema. Não se pode negar a urgente
necessidade de corrigir distorções na estrutura agrária e na
distribuição da renda nacional, mas não se pode também dissociar a
questão agrária do conjunto de causas dos problemas nacionais,
como veremos no capítulo seguinte.
2. A TERRA NA SOCIEDADE
CAPITALISTA MODERNA
BRASILEIRA
A necessidade de produzir artigos manufaturados em substituição
às importações, que se reduziram forçadamente nos anos da
Primeira Guerra Mundial (1914-1918), estimulou uma certa
industrialização no Brasil. A própria aristocracia rural, formada pelos
senhores de engenho do Nordeste, pelos barões do café de São
Paulo e pelos grandes fazendeiros e pecuaristas, não teve como se
opor. Embora houvesse resistências e críticas às mudanças em
processo na economia, aos poucos esses homens aderiam ao novo
modelo produtivo.
Capitais oriundos do mercado importador, poupança interna e em
mãos de Imigrantes europeus, alguns investimentos estrangeiros,
recursos brasileiros desvinculados da produção agrícola, algumas
aplicações da agropecuária e incentivos governamentais deram
origem ao capitalismo industrial brasileiro.
Em 1915 e em 1917 já se registraram greves de trabalhadores
urbanos consideradas de grandes proporções, abrangendo várias
categorias, a indicar que tanto os empresários como os
trabalhadores, embora principiantes nas respectivas posições,
estavam atualizados com os métodos de ação praticados nos
países mais desenvolvidos. As relações de trabalho eram tão (ou
mais) atrasadas e negativas para os trabalhadores quanto as
tecnologias adotadas na produção, baseada na utilização de velhas
máquinas importadas.
Os impactos psicológicos da guerra, as transformações no estilo de
vida das nações europeias, principalmente as vencedoras do
conflito (Inglaterra e França), o destaque conquistado pelos Estados
Unidos da América, em franca ascensão como potência mundial, a
intensificação das relações econômicas internacionais, tudo isso
repercutiu na consciência das camadas médias da sociedade
brasileira, que passaram a forçar as estruturas dominantes da
economia e da política, tentando abrir espaço ao desenvolvimento
das novas forças produtivas.
Os segmentos mais inovadores da sociedade entraram nos anos
vinte com atuações intensas, por conquistas econômicas e políticas.
Os trabalhadores urbanos reivindicavam melhores salários jornada
diária de oito horas e outras condições de trabalho e de vida
A burguesia emergente, em grande parte formada por membros ou
descendentes das classes senhoriais tradicionais, já contribuía
significativamente para a economia do país, como representante do
moderno capitalismo, e lutava pelo direito de participar da direção
do conjunto.
É significativo que num mesmo ano, 1922, ocorressem fatos
aparentemente díspares como o levante armado comandado pela
jovem oficialidade das forças armadas, na maioria tenentes; a
realização da Semana de Arte Moderna e a fundação do Partido
Comunista.
Delineavam-se no sistema capitalista brasileiro um novo modelo
econômico e social, uma ideologia com formas de expressão
artística e intelectual próprias dele e, por fim, a própria negação
desse modelo, acompanhando- o desde a origem.
Nascidos todos juntos, o modelo, a ideologia e a negação
cresceram, cometeram erros, tiveram acertos e sucessos e
padecem ainda de alguns efeitos das doenças da infância.
A Terra, As Classes Sociais E Os Direitos Trabalhistas
Com a industrialização e a entrada de capitais estrangeiros
diretamente nas bases da produção — isto é, fábricas, minas e
plantações — ocorridas após a Primeira Guerra, a questão da terra
passava a ser tratada como componente do moderno capitalismo
que se instalava no país.
Nessa altura, e mesmo um pouco depois, não se colocava ainda a
questão agrária do ponto de vista dos direitos à propriedade da
terra, pelo menos não em nível de interesse nacional e muito menos
em nome dos que não possuíam terras.
O desempenho da agropecuária, a distribuição dos favores
governamentais em benefício dela, ou da industrialização, e o
exercício do poder político eram as questões fundamentais que
agitavam a sociedade.
Com exceção de uns poucos militantes do anarquismo e do
comunismo, ninguém punha em dúvida os direitos e os poderes das
classes dominantes — a antiga, formada pelos grandes proprietários
da agropecuária, que predominava e a nova, que estava nascendo
com os pequenos proprietários, industriais, oficiais militares,
comerciantes e profissionais liberais.
A massa trabalhadora do campo e das cidades, que constituía a
maioria esmagadora da população, não tinha voz ativa em coisa
nenhuma e só era livre para fazer o que lhe mandassem. Assim era
no trabalho nas fábricas, na roça, nos currais eleitorais, no
recrutamento para o serviço militar etc.
Grande parte dessa massa trabalhadora era constituída pelos ex-
escravos e seus descendentes, negros e mestiços, pelos imigrantes
europeus, pelos refugiados da guerra, pelos pobres em geral sem
eira nem beira e pelos donos de pequenos lotes de terra,
que frequentemente eram obrigados a prestar serviços
assalariados para garantir sua subsistência.
A essa população não se reconhecia quase nenhum direito, muito
menos o de receber gratuitamente qualquer propriedade fundiária, o
que aliás nem se cogitava.
Os imigrantes europeus tinham consciência das suas limitações
sociais e por isso, desde que começaram a chegar ao Brasil, em
meados do século XIX, formularam dois objetivos básicos para suas
vidas: economizar tudo o que pudessem para estabelecer seu
próprio negócio e formar um patrimônio independente e, por outro
lado, proporcionar estudo aos filhos. A formação acadêmica dos
filhos redimia o imigrante da condição inferior de mão-de-obra
substituta do escravo e abria oportunidades de ascensão social.
As prerrogativas da principal classe dirigente, a aristocracia rural, só
eram ameaçadas pela burguesia nascente, que lhe disputava o
poder político e introduzia uma série de modificações no sistema
econômico e nas relações sociais.
O quadro se tornava mais complexo com a entrada de investimentos
estrangeiros, principalmente americanos, adquirindo propriedades,
instalando empresas e conseguindo concessões importantes para
explorar fontes de matérias-primas.
Uma das grandes vantagens que a nação oferecia aos
investimentos, tanto aos internos como aos vindos de fora, era a
abundância de mão-de-obra barata e praticamente sem direitos
trabalhistas.
Um dos motivos por que a velha sociedade resistia tanto aos
projetos de “modernização” do país, com a industrialização e a
diversificação das atividades econômicas, era a certeza que tinha
das perdas inevitáveis em relação à mão-de- obra. Afinal, não
tinham transcorrido ainda quarenta anos desde que ela sacrificara a
monarquia e perdera o patrimônio da escravidão.
Os membros da velha sociedade, os da nova que nascia e os
investidores estrangeiros, que vinham como parceiros ou como
intrusos aproveitadores, disputavam entre si a partilha das riquezas
da nação. Fazia parte dessa disputa o domínio, o controle e a
disponibilidade da massa trabalhadora, sem a qual todos os outros
patrimônios — a terra, as fábricas, as minas — seriam inúteis.
Estava claro para todos que o acesso à propriedade da terra só
era admitido aos que pagassem por ela, comprando-a de seus
legítimos proprietários.
As contendas em torno de heranças e grilagens de terras entre
os membros das camadas dirigentes eram resolvidas pacificamente.
Às vezes, quando ocorriam disputas violentas entre essas camadas,
os pobres só entravam como jagunços, matando e morrendo pela
propriedade dos ricos. A historiografia e a literatura brasileiras são
fartas em descrições dos papéis desempenhados pela jagunçagem
como exércitos particulares nas disputas entre os donos da terra.
As ocupações de terras por trabalhadores eram consideradas crime
e reprimidas, fossem elas propriedades particulares ou estatais,
incluindo nesta última categoria as terras devolutas, isto é, que de
particulares passaram a pertencer ao Estado.
Ao longo do último meio século foram poucos os trabalhadores que
se beneficiaram com a posse da terra por direito de ocupação e
exploração continuada (usucapião). Mesmo assim, muitos títulos de
propriedade só foram concedidos à custa de litígios penosos,
processos judiciais caros e demorados, ou por conveniência político-
eleitoral dos governantes, além das ameaças e agressões de
jagunços e policiais, tudo por causa de lotes de terra muito
pequenos.
Nas novas relações de produção que se iam implantando nas
cidades e no campo, nenhuma vantagem adicional era concedida à
força de trabalho. Pelo contrário, até os vínculos de compadrio e de
paternalismo se extinguiriam e o novo modelo de produção
capitalista, ainda incipiente na época, agravaria em muito a situação
da massa trabalhadora.
Os primeiros beneficiados por alguns poucos e elementares direitos
trabalhistas foram os trabalhadores urbanos, mesmo assim de
maneira muito lenta e gradual, a partir do fim da década* de 1920 e
nas décadas de 1930 e 1940. Para que isso começasse a acontecer
na lei, mas nem sempre na prática, foram necessários: uma forte
tentativa de derrocar a velha sociedade, através da revolução de
1924; a grande crise econômica mundial iniciada em 1929 e que no
Brasil contribuiu para acelerar algumas mudanças na organização
econômica, social e política; e, principalmente, a revolução de
1930, que conquistou os espaços necessários ao desenvolvimento
de um novo modelo capitalista de produção e de organização
social, sem no entanto preconizar mudanças muito profundas na
sociedade.
A legislação trabalhista veio, portanto, na esteira do capitalismo
industrial e, como dissemos, só para os trabalhadores urbanos. No
campo, os regimes de colonato e de parceria permaneceram
intocados por muitos anos, e quando mudaram foi para pior.
Formação Da Nova Sociedade
A nova sociedade brasileira, que se estruturou a partir de 1930, não
foi construída sobre as cinzas da anterior; muito pelo contrário.
Vencidos alguns ressentimentos iniciais e até algumas resistências
e tentativas de retomada do controle nacional, como na revolução
de 1952, as coisas evoluíram no caminho da conciliação dos
interesses entre os principais segmentos da alta sociedade.
O Estado ditatorial que se implantou teve a função de avalista dessa
conciliação, de modo que as transformações processadas
asseguraram a continuidade de certos privilégios, a abertura de
novas perspectivas e a contenção das reivindicações da massa
trabalhadora.
À medida que se conciliavam as questões mais importantes, as
divergências menores entre os segmentos predominantes da
sociedade iam servindo para elaborar uma ideologia de liberdades
democráticas, das quais a massa trabalhadora ficava excluída, mas
com a obrigação de aceitá-la e de defendê-la.
Aos poucos foram desaparecendo as distinções que separavam
agricultores, pecuaristas, industriais, comerciantes, banqueiros e
outros em menor número.
Na cúpula da sociedade, os detentores do poder econômico
diversificavam as suas aplicações. Um grande proprietário agrícola
tinha negócios na indústria e no comércio, da mesma forma que
aqueles que enriqueciam na cidade procuravam tornar-se
fazendeiros.
A fusão de capitais dos diferentes ramos econômicos fortaleceu a
solidariedade de classe entre os donos desses capitais. Os
interesses e necessidades específicos de cada ramo podiam criar
disputas internas, mas não conflitos inconciliáveis.
Principalmente num ponto os diferentes ramos capitalistas
demonstravam uma extraordinária unanimidade de opinião: o que
se refere à população trabalhadora. O sentimento de propriedade e
o direito de usar e dispor da força de trabalho, como melhor
convenha, são exatamente iguais em todos os donos de qualquer
ramo econômico.
Os homens do antigo modelo econômico e os que pretendiam um
modelo novo, diferente, sempre estiveram de acordo em duas
questões fundamentais, quais sejam, que o direito à propriedade da
terra só era reconhecido aos que pagassem por ela, comprando-a
aos seus legítimos proprietários, e que a massa trabalhadora não
deveria ter acesso a nenhum tipo de propriedade que a
emancipasse da condição assalariada.
Quando se fez vitoriosa a revolução de 1930, destinada a liquidar o
domínio político dos “barões do café”, como se dizia para efeitos
propagandísticos, a primeira e principal preocupação do novo
regime, liderado pelo bacharel e estancieiro gaúcho Getúlio Vargas,
foi a de continuar executando a mesma política cafeeira do regime
anterior. Essa política, estabelecida pelos cafeicultores em 1906, no
acordo de Taubaté, determinava a participação do Estado na
manutenção dos preços do produto, o que levou à queima de um
terço da produção de anos seguidos, de 1931 a 1939, paga pelos
cofres públicos.
O café representava mais de cinquenta por cento da pauta de
exportações brasileiras, e com essa política de preços o Brasil
recuperou-se da crise econômica mundial, iniciada em 1929, antes
da maioria dos países, tanto os outros produtores de café como os
mais industrializados (Estados Unidos, Inglaterra, França). Os
cafeicultores mantiveram a alta lucratividade dos seus negócios e o
país ganhou recursos para investir no desenvolvimento industrial e
em outros ramos.
No cenário político e social da nação os “barões do café de São
Paulo” foram substituídos pelos “paulistas quatrocentões”, ou seja,
por eles mesmos, seus descendentes, parentes, associados e mais
uns poucos tradicionais membros da sociedade paulista, que
ascenderam ao primeiro plano.
No mundo da agropecuária, da indústria, do comércio e das
finanças, no vértice da pirâmide social e do poder político, os
interesses e as pessoas se mesclaram e as alianças econômicas se
fortaleceram, por laços de parentesco e até por casamentos de
conveniência.
Embora permanecessem até anos recentes alguns quistos de poder
regional isolado, como é o caso, entre outros, de alguns coronéis no
Nordeste, nas regiões mais desenvolvidas desapareceram, há muito
tempo, as chamadas “oligarquias rurais”, isto é, grupos formados
exclusivamente por proprietários rurais, com poderes absolutos,
constituindo categoria econômica, política e social isolada de outros
grupos de interesses.
3. EVOLUÇÃO AOS TEMPOS
ATUAIS
A unidade de interesses entre os diversos ramos da economia —
toda ela dirigida por uma única classe e não por oligarquias
isoladas, como pretendem alguns reformistas desinformados —,
apesar de erros e defeitos, provou sua eficiência depois da Segunda
Guerra Mundial, principalmente nos surtos de industrialização da
década de 1950.
Até então as relações de produção na agricultura permaneceram
inalteradas, gerando divisas com a produção e exportação de
alguns produtos e, principalmente, retendo no campo a mão-de-obra
constituída por milhões de trabalhadores que não podiam ser
absorvidos em outras atividades.
À medida que se desenvolveram as indústrias, os transportes as
obras públicas, a construção civil etc., a agricultura liberou a mão-
de-obra necessária. Para induzir as mudanças nas relações de
trabalho no campo, necessárias à liberação da mão-de- obra, sem
prejuízos aos empregadores, permitiu-se a contratação de
trabalhadores sem qualquer vínculo nem direitos, através de
intermediários, os “gatos”-, empreiteiros ou empresários dos boias-
frias.
A extensão de alguns benefícios trabalhistas, como o pagamento de
férias anuais aos trabalhadores com contrato e carteira assinada, o
reconhecimento do vínculo empregatício nos contratos de parceria e
outras medidas tomadas já nos primeiros anos da década de
cinquenta apressaram a liquidação dos antigos sistemas de
utilização da massa trabalhadora.
Esse modelo de desenvolvimento nacional, reforçado com o
ingresso de empresas multinacionais e capitais estrangeiros em
todas as áreas, dotou a produção urbana de trabalhadores em
número suficiente e com grandes reservas. A agricultura livrou-se
de muitos encargos que encareciam a mão-de-obra (moradia, água,
pastagens, direitos trabalhistas etc.) e recebeu ajuda da indústria
em disponibilidade de insumos (sementes, adubos, agrotóxicos
etc.), equipamentos, transportes, assistência técnica etc.
A agricultura moderna, de produção em grande escala, não
pode depender da enxada nos braços desnutridos do bóia-fria.
Nem o grande latifundiário, individualmente, suporta os
custos dos equipamentos, das sementes, dos fertilizantes e
outros, que incidem diretamente na base da produção.