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Os "caçadores de relíquias" mostram que a reforma agrária interessa ao capitalismo

Escutamos muitas pessoas dizendo que a reforma agrária é uma proposta dos comunistas.
Provavelmente, esse discurso é fruto da falta de conhecimento daqueles que se impressionam com as
bandeiras vermelhas do movimento dos trabalhadores sem-terra.
A reforma agrária, nos termos que se prega, de realizar a desapropriação das grandes propriedades,
ao menos das terras improdutivas, mediante compensação indenizatória, e sua redistribuição mudando a
lógica no campo, da prevalência do latifúndio para a pequena e média propriedade rural faz parte da agenda
de um capitalismo que busca o desenvolvimento competitivo e a criação de um mercado interno forte.
No modelo econômico comunista e socialista não existem grandes, médios ou pequenos
proprietários. Tudo pertence ao Estado. Salvo exceções, onde alguns regimes socialistas aceitaram conviver
com um número limitado de pequenos proprietários rurais.
Na verdade, a reforma agrária foi indicada como fórmula sine qua non para o desenvolvimento de
toda a América latina pelo CEPAL, que é uma Comissão da Organização das Nações Unidas para estudos
econômicos para a região latinoamericana, sediada no Chile. O renomado economista brasileiro Celso
Furtado foi um dos notáveis nomes que participaram destes estudos. Contudo, quando o presidente João
Goulart acenou para a possível realização da reforma agrária, foi deposto sob o argumento de que havia um
projeto de implantação do regime comunista no Brasil. Até hoje ouvimos dizer que os militares aplicaram o
golpe para proteger o país do comunismo. Quando, na verdade, a reforma agrária era uma proposta de
aceleração do desenvolvimento econômico para que o país se tornasse competitivo no âmbito internacional e
deixasse de praticar um capitalismo meramente periférico.
O nosso modelo rural até os dias atuais é baseado no latifúndio, que são imensas propriedades rurais
dominadas por um número reduzido de famílias. Este modelo é originário da política de terras realizada
ainda no período colonial. Naquela época, autoridades lusitanas e donatários realizaram a distribuição de
grandes glebas de terra para pessoas ligadas à administração portuguesa. Essas grandes propriedades
receberam o nome de sesmarias. O sesmeiro era aquele que recebia a sesmaria e se tornava, desta forma, o
proprietário daquela terra. As sesmarias seriam instrumentos fundamentais na exploração da cana de açúcar,
através do regime de cultivo chamado plantation. Como mão-de- obra usaram, primeiro, o trabalho escravo
dos povos indígenas e, depois, dos africanos. Reparem que os sesmeiros não precisaram despender de
recursos para se instalarem como grandes proprietários. Primeiro, que receberam as terras em forma de
doação e, segundo, que não precisaram despender fundos para contratação de empregados. Desta forma,
ocorreu no campo brasileiro, durante o período colonial, uma espécie de "acumulação primitiva de capital"
das famílias proprietárias de terras, que ajudou de forma decisiva a manter o sistema dos latifúndios até os
dias atuais pelo poder que estes proprietários adquiriram.
A maioria dos países capitalistas que deram um grande salto de desenvolvimento, em certo momento
tiveram que realizar um projeto de reforma de agrária. Não vamos entrar em dados técnicos do "economês",
mas podemos realizar algumas reflexões básicas sobre o assunto.
Um dos modelos econômicos que mais chama a atenção e mexe com os sonhos dos brasileiros é o
americano. Isto porque se trata da maior economia capitalista do mundo. É verdade que nos Estados Unidos
não houve uma reforma agrária. Mas isto pelo fato do modelo rural americano ser baseado na pequena e
média propriedade desde sua origem colonial. Por lá, a agricultura não está baseada no latifúndio. O
pequeno e médio produtor é a base da economia rural. E quando há a necessidade de um investimento maior
em equipamentos industriais para beneficiar algum tipo de produto, como grãos ou suco de frutas, isto se faz
através de cooperativas. Ou seja, como o pequeno e médio produtor não possui riqueza suficiente para
montar tais equipamentos industriais, ocorre uma cotização entre todos os produtores da região para a
realização do empreendimento. Outra alternativa que ocorre é um empresário montar o equipamento
industrial na região e comprar a produção dos agricultores e realizar o beneficiamento na sua indústria.
Quem nunca esteve pessoalmente visitando o interior dos EUA pode identificar esta realidade através
dos filmes. Quando o interior é retratado costumamos ver a administração municipal realizando reuniões no
ginásio de um colégio público com os produtores rurais da região para definir políticas para o município.
Isto pode ser visto no filme "Terra Prometida", estrelado por Matt Damon no papel principal. O protagonista
desta película era funcionário executivo de uma grande companhia de gás natural que ia até cidades do
interior seduzir os pequenos e médios proprietários rurais a assinarem um contrato de concessão permitindo
que a empresa explorasse o gás em suas terras, sob a promessa de lucros futuros fabulosos.
Um programa onde também podemos observar o modelo de pequena e média propriedade rural
americano é "Os Caçadores de Relíquias", produzido pelo History Channel. Trata-se do dia-a-dia de dois
amigos e sócios em uma loja de compra e venda de antiguidades. Eles viajam numa van pelas pequenas
cidades atrás de pessoas que tenham em suas casas alguns dos itens que compram para revender. Eles vão
rodando pelas estradas e encontrando várias propriedades com galpões ou celeiros onde coisas antigas são
guardadas pelos seus donos e fazem ofertas pelos objetos que depois são revendidos na loja. Se fosse no
Brasil, os simpáticos "caçadores de relíquias" estariam em maus lençóis, pois rodariam muito e só veriam
cercas e mais cercas com plantações e pastos, mas nenhuma propriedade à vista por muitos quilômetros.
Pois esta é a realidade do latifúndio, muita terra nas mãos de poucas pessoas.
Neste momento, o leitor poderia perguntar: - afinal, qual a diferença prática entre os dois modelos?
Ela reside na maior distribuição de renda quando a lógica empregada no campo reside na pequena e média
propriedade.
O brasileiro, em regra, não consegue ver o benefício do pequeno produtor rural para a economia por
conta da imagem mental do "roceiro" ou "caipira". Na verdade, como efeito do latifúndio, o pequeno
produtor rural brasileiro foi transformado nessas figuras folclóricas. Como o latifundiário domina as maiores
e melhores extensões de terras dos municípios, sobra aos pequenos produtores apenas pequenas glebas de
terrenos nos piores locais e com o pior tipo de solo. No Brasil, são as faixas de terras impróprias para a
plantação que restam para as famílias camponesas. Por isso, o "roceiro" acaba constituindo o perfil daquelas
famílias que plantam quase que somente para a subsistência e praticamente não contam para o mercado
consumidor interno. É diferente nos países onde a lógica do campo é baseada na pequena e média
propriedade, onde os pequenos agricultores constituem uma espécie de baixa classe média rural.
Assim, nossas cidades do interior são compostas por uma ou duas famílias poderosas que detêm a
maior parte das boas terras cultiváveis, uma diminuta classe média composta pela burocracia pública local e
empregados mais bem remunerados dessas fazendas (veterinários e agrônomos) e um imenso contingente
empobrecido de pequenos agricultores e trabalhadores sem-terra. No início do século passado as famílias
dos grandes fazendeiros viviam na sede das fazendas, em meados do século XX eles já viviam nas grandes
capitais e, atualmente, essas famílias dividem a residência entre o Brasil e o exterior. Reflexo da progressiva
concentração de riqueza.
Admitindo que toda a família do latifundiário ainda viva no município sede das fazendas, temos uma
família que mora num grande casarão de fazenda e que pode adquirir vários bens de alto valor: carros,
motos, tratores, televisão, geladeira, etc. Ainda que possam comprar os produtos mais caros do mercado, não
se compara se, por outro lado, a terra estivesse repartida por centenas de famílias pequenas proprietárias,
mas com bom rendimento, e que cada um desses núcleos familiares construísse sua casa e comprasse seus
bens (carros, geladeiras, televisões, máquinas...). Esta segunda alternativa aqueceria muito mais a indústria.
E agora, aquele indivíduo classe média que vive na cidade questiona: - o que eu tenho com isso?
A classe média urbana, sem perceber, também é sufocada pela falta de um poderoso mercado
consumidor interno na imensidão da nossa zona rural. Sempre que seus filhos fazem um curso universitário
que propicia se tornar um profissional liberal (advogados, médicos, dentistas, engenheiros, etc) ficam sem a
opção de trabalhar no interior, pela falta de pessoas com recursos suficientes para manter estas atividades
profissionais. Desta forma, a única opção é tentar a sorte no mercado super saturado das grandes cidades ou
cair nos concursos públicos. Este fato também contribui para nossa cultura do concurso público. Isto é o que
acontece com os médicos que não querem ir trabalhar no interior. E a cada semestre as universidades
inundam os mercados das grandes capitais com mais centenas de profissionais recém-formados. Resultado,
são advogados e outros profissionais liberais dirigindo Uber.
Concluindo, mesmo assim a reforma agrária está longe de sair. Os poderosos fazendeiros não querem
perder os privilégios e controlam uma grande bancada no congresso. A reforma que vai sair é a trabalhista e
a previdenciária. Ou seja, se já não temos mercado forte no interior, vamos detonar o pouco que temos na
área urbana.
Vai ser um espetáculo!

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