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Universidade Federal de Campina Grande

Centro de Humanidades
Unidade Acadêmica de Arte e Mídia
Curso de Bacharelado em Arte e Mídia

Componente curricular: Análise do Filme Cinematográfico


Professor: Helton Paulino
Período: 2020.3 (Regime Acadêmico Extraordinário)
Aluna: Thais Samara de C. Bezerra

Avaliação – I Unidade
Análise Fílmica
FILME: Cidadão Kane, de 1941, dirigido por Orson Welles.

CIDADÃO: UMA ANÁLISE DE KANE

Kane morreu. Alguns buscam o significado e muitos são interrogados pela sua
última palavra: Rosebud. Enquanto tentam selecionar e categorizar os objetos da
mansão de Kane, o repórter chega à conclusão de que nenhuma palavra pode explicar a
vida de um homem. E quanto ao filme, digo o mesmo. Mas, apesar de uma palavra não
dar conta dessas duas manifestações, a vida e o filme, ela é o alicerce da construção de
todo um império criado por Charles Foster Kane.
Quando criança, as aventuras na neve e os normais resquícios de selvageria na
infância imperavam sobre Charles. Desse tipo de vida, com a liberdade a um passo da
porta da sua casa para a neve, Charles saltou para uma vida delimitada por muros,
grades e portões de ferro marcados com as iniciais de Kane. Agora, ele tinha a sua
natureza e reinado particulares: lagos artificias, montanha construída, mansão em forma
de castelo, um pequeno zoológico, grandes aquários e toda a atenção com a neve
concentrada em um simples globo de vidro, desses que servem de “lembrancinhas”. A
essência da neve na vida de Charles não passou de uma lembrança na vida de Kane.
Antes Charles cabia no quintal de casa, no fazer e desfazer montanhas de neve,
numa janela ou nos olhos vigilantes de uma mãe. Quando se transformou em Kane, ele
já se perdia em meio a todo esse império de coisas compradas. Salões, obras de arte,
festas, dinheiro, conforto, tudo isso lhe cabia muito bem. Mas ele nunca coube
perfeitamente em nada disso. Como se compra um brincar livre e ao mesmo tempo
seguro pelo olhar de uma mãe da janela, a exemplo? Kane só pôde ter as mais belas
janelas. Mas sem o olhar de sua mãe desde a metade da infância.
Cada instante em que a mãe se decidia a entregar os cuidados do filho para um
tutor que cuidaria de sua herança, se afastando da janela, distanciando o olhar de seu
filho, Charles Kane fica menor no enquadramento do filme, se perdendo em meio às
decisões dos outros. Quando finalmente a mãe termina de assinar o documento, Charles
Kane praticamente some da imagem, e muito mais no sentido de que nossa atenção
sobre ele diminui, a partir do desenho de cena com a ação do pai fechando a janela, e se
juntando à mãe e ao tutor, dando volume ao primeiro plano, e Charles ficando,
literalmente em “segundo plano”.

Com o destino assinado pela mãe, claramente julgando ser o melhor para o filho, Kane
vai assumir o seu destino também julgando ser a melhor forma que ele poderia assumir:
ordenando, comprando, construindo, criando, multiplicando a fortuna, angariando
pessoas para lhe servir, amar e devotar, ainda que com boas doses de humor. Em
algumas de suas falas em relação aos pobres, e depois quando se torna candidato a governador,
dizendo que os explorados, os que ganham e comem mal sabem que podem esperar dele a
defesa de seus direitos e interesses, Kane reflete a decisão da mãe ao defender os julgados
futuros interesses do filho. Tanto é que ao conhecer Susan, em que ela fala que a mãe dela
queria que ela cantasse ópera, mesmo admitindo não ter tanto talento para isso, e ela diz: “Sabe
como são as mães”. Kane, muito convicto, responde: “Eu sei”. Kane se volta para as pessoas
com essa mesma convicção da mãe, julgando saber o que é melhor para elas, como se ele
mesmo fosse o único responsável pelos seus destinos. Um dia a mãe decidiu por Charles. E
agora ele repete os atos decisivos enquanto Kane.

É impressionante o que as decisões de Kane foram capazes de construir: um


verdadeiro império particular de coisas e pessoas. Ampliar esse império era a sua
decisão constante, todo e qualquer tipo de falta, ele queria saciar. Ter vários jornais,
ultrapassar a meta de circulação de outros jornais, querer entrar para a politica, são
decisões comuns para se destacar entre os mais ricos. No filme, essas decisões são
exibidas em mais detalhes. Mas qual a explicação para tantas esculturas e outros objetos
de arte, sem mostrar nenhuma mínima relação de Kane com elas? As esculturas apenas
chegam e vão se amontoando pela casa. Ter objetos de arte apenas enquanto
investimento? Vício em colecionar ou comprar qualquer coisa? Preencher o vazio que a
mansão causa na sua vida ou que a própria vida lhe causou? Ou simplesmente prova que
o que ele queria, alcançava, não importa qual motivação por trás desse querer.
Kane, por muitas vezes, parecia brincar com sua fortuna. Parecia brincar de
ousar. E nunca se importava tanto quando perdia dinheiro. A ação da personagem era de
estar convicto de que conseguiria recuperar em dobro a partir de mais um novo
empreendimento, e se não recuperasse, não teria tanto problema, pois ainda tinha muito
dinheiro para perder. Esse comportamento fica claro quando seu ainda tutor, Thatcher,
diz a Kane que ele nunca realmente investe o dinheiro, e no diálogo o próprio Kane
complementa esse raciocínio ao afirmar que realmente usa o dinheiro para comprar
coisas.
O desenho da cena a partir da movimentação de Kane contribui para esse
entendimento também, pois enquanto está distante, parece alguém no comando de uma
decisão bastante séria diante do contexto de crise econômica da época, e à medida que
se aproxima, esse Kane importante vai parecendo alguém que está fazendo pouco da
situação e assumindo isso de forma muito natural, até que ele senta e assina a vontade
de apenas querer fazer o que quer com todo seu dinheiro: comprar coisas, por exemplo.

Além de coisas, Kane se divertia comprando as pessoas ou profissionais,


chegando ao ponto de simplesmente comprar a competente equipe do jornal
concorrente, o Chronicle. Essa ideia se completa com o enquadramento da cena, a
própria ação e o texto da personagem, junto com a montagem: Kane vendo uma
fotografia da equipe do Chronicle, com o título de “A maior equipe do mundo”, depois
já fazendo parte do momento da fotografia afirmando que antes ficava igual a uma
criança olhando os doces, e que agora ele tinha todos eles, e ainda solicitando cópia da
foto para enviar ao Chronicle.
Kane sempre tinha o que queria, e mais um pouco: necessitava provar isso.
Parece que não imaginava os riscos, e se os imaginava, sabia que podia contornar. Mas
não estando morto. Pois aquele que um dia trabalhou com ele e que julgava amigo,
Leland, em sua morte declarou que nunca acreditou em nada do que lia no Inquirer, o
jornal de Kane. Embora isso fosse bastante compreensível, afinal o Inquirer era um
jornal sensacionalista, em que muitas notícias colocadas como fatos, na verdade, eram
invenções de Kane. Por isso ao ser questionado se sabia algo sobre “Rosebud”, Leland
afirma que uma vez viu no Inquirer, mas que nunca acreditou em nada desse jornal,
logo, não levou a sério algo que era tão importante para o então amigo e companheiro
profissional Kane.

E fica claro que, apesar de tantas pessoas ao seu redor, nenhuma lhe bastou,
talvez mesmo porque nenhuma nunca soube quem realmente ele era, do que realmente
gostava e o que verdadeiramente queria. Nem o filme deixa isso completamente
esclarecido ou restrito a um fato apenas. O próprio mordomo, pessoa que conviveu com
Kane diariamente, confessa o desconhecimento do seu patrão, afirmando que ele falava
coisas sem significado algum.
Nem mesmo quando Leland afirma que tudo o que Kane queria era amor, isso
não convence, pois mesmo quando foi amado por duas mulheres e por um filho, isso
não lhe bastou. Kane evidencia essas condições já no primeiro encontro com Susan, ao
afirmar que conhece gente demais e que por isso é solitário, assim como Susan é por
conhecer gente de menos, segundo a comparação feita por ele.
O verdadeiro Kane morreu perdido em meio a seu império de coisas e pessoas
que por ele passaram. Morreu sem conseguir voltar a ser o que sempre quis ser, algo que
mantivesse a energia que girava enquanto podia ser mais livre de qualquer
responsabilidade por decisões. O máximo que conseguiu exprimir disso foi quando
Thatcher perguntou o que ele queria realmente ter sido, e Kane responde: “Tudo o que
você odeia”, fala que corresponde à mesma cena em que confessa gostar de gastar
dinheiro com coisas, como uma típica criança com apenas alguns trocados na mão
vendo o que dá para comprar ao máximo.
Algumas das últimas imagens de todos os objetos de Kane que o filme mostra
depois de sua morte, nos remetem facilmente à visão de um império, com plano em
plongè e com movimento de câmera no sentido de adentrar na profundidade de campo,
como se estivéssemos sobrevoando esses objetos, dispostos de uma forma que parecem
casas, prédios, torres, ruas, uma cidade, um império. Isso também contribui para
associarmos com as primeiras imagens que iniciam esse sentido de construções, com as
esculturas empilhadas em caixotes de madeira e depois uma imagem com pilhas de
jornais, anunciando o domínio dos lugares e lares por Charles Foster Kane.

Kane foi tudo o quanto pôde ser, ocupando diversas posições e status, como
reflete a cena após a briga com Susan, ele passando por um corredor com espelhos,
multiplicando sua imagem. Mas Kane sabia quem ele era de verdade: apenas um
americano, um cidadão, uma criança, um menino. No jornal, lembrou-se de Rosebud.
Após a briga com Susan, lembrou-se de Rosebud. Na morte, lembrou-se de Rosebud. O
repórter, incrédulo de que Rosebud poderia estar relacionado a alguma mulher na vida
de Kane, ouve de Thatcher que o homem lembra-se de coisas inimagináveis.
Enquanto ainda tentava descobrir o que era Rosebud para Kane, o réporter
parece se dar por vencido, dizendo que talvez isso seja só mais uma peça do quebra-
cabeça, diminuindo a importância da peça, enquanto mexe em uma caixa desse tipo de
jogo. Susan, que tanto gostava de montar quebra-cabeça, afirmando que ficava sempre
muito só no castelo com as esculturas, também nunca foi capaz de compreender certas
jogadas que Kane fazia na sua vida.

Até que Rosebud é localizado próximo a um jogo de quebra-cabeça e acima de


outro. Perto dele também há um porta-retrato com foto de um casal que nos leva a
pensar talvez ser seus pais e, ainda que não seja, nos remete a algo de família. Junto a
coisas julgadas sem valor, o trenó marcado com Rosebud é posto em chamas, vira
cinzas e fumaça no céu, assim como seu dono irá se transformar em pó junto à terra. É
quase impossível não associar a imagem em detalhe de Rosebud com a imagem em
close da boca de Kane ao pronunciar a única palavra que carregava todos os sentidos
mais essenciais da sua vida, ainda que possamos supor apenas alguns.

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