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FERREIRA, Moisés Olímpio. As estratégias argumentativas do apóstolo Paulo na Epístola a Filemon.

In. MODESTO, Artarxerxes T.T.; MIRANDA, Daniela da Silveira; SILVA, Janaina Oliveira; SOUEID,
Nanci de Oliveira, VELOSO, Simone Ribeiro de Ávila (orgs). O gênero em diferentes abordagens
discursivas. São Paulo: Paulistana Editora, 2011. ISBN: 978-85-99829-53-0. Disponível em
http://www.epedusp.org/IIIEepedlivro/capa.htm.

AS ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS DO
APÓSTOLO PAULO NA EPÍSTOLA A FILEMON

Moisés Olímpio Ferreira1

Resumo: A Nova Retórica, proposta por Chaïm Perelman e seus sucessores, abriu espaço para a
análise da persuasão nos mais diversos tipos de discurso. Tendo em vista a importância do auditório
no processo argumentativo, o orador modela o seu êthos de acordo com as representações coletivas
já estabelecidas e apoia os seus argumentos no conjunto previamente partilhado de valores e paixões.
A nossa pesquisa visa a refletir sobre os procedimentos argumentativos empregados pelo apóstolo
Paulo com vistas ao assentimento de Filemon, seu auditório no corpus em estudo. A partir da relação
discursiva entre destinador e destinatário, e da verificação das estratégias persuasivas empregadas, o
presente estudo pretende contribuir para as discussões ainda atuais sobre as condições de produção
dos enunciados e de seus objetivos. Os extratos da Epístola a Filemon serão por nós traduzidos
diretamente do grego no decorrer deste trabalho. Como base teórica, servimo-nos dos conceitos da
“Nova Retórica”.

Palavras-chave: Nova Retórica; Argumentação; Discurso Religioso; Epístola a Filemon; Apóstolo Paulo.

1. Introdução

O presente trabalho propõe um estudo discursivo-argumentativo da Epístola a Filemon, escrita


no primeiro século da era cristã. Nela, Paulo roga ao gentio Filemon, habitante de Colossos, a favor de
Onésimo, escravo que lhe havia pedido auxílio em razão de alguma falta grave que cometera contra o
seu senhor, que, então, estava sendo reenviado a Filemon2, de posse de uma epístola intercessória,

1
Doutorando pelo Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, no Programa de Filologia e Língua Portuguesa (FFLCH-USP), sob a
orientação da Profa. Dra. Lineide do Lago Salvador Mosca e coorientação do Prof. Dr. Henrique Graciano Murachco. Doutorado
Sanduíche na Université Lumière Lyon 2, sob co-orientação do Prof. Dr. Louis Panier. E-mail: moisesolim@usp.br.
2
A Epístola aos Colossenses (4.7-9) diz que Onésimo foi a Colossos em companhia de Tíquico, possível portador da epístola, responsável
por levar notícias de Paulo e por colher informações do estado daquela comunidade. É possível mesmo que a comunidade cristã se
na nova condição de convertido à fé cristã. Crossan e Reed (2007, p. 107), discutindo as razões de tal
fuga, afirmam:
Qual era exatamente o status de Onésimo? Seria mero fugitivo buscando liberdade ou um
suplicante pedindo auxílio? Se fosse escravo fugitivo sem intenção de voltar, seria
terrivelmente castigado quando encontrado (...). Se tivesse sido fugitivo, seria um suicídio
viajar para perto das autoridades oficiais romanas e, pior ainda, procurar um prisioneiro
romano como Paulo. (...) É mais provável que fosse um suplicante procurando asilo
temporário. Havia duas opções aceitáveis nessa história, e em ambos os casos a intenção do
escravo era decisiva sob a lei romana. A primeira opção seria fugir para o templo de algum
deus. (...) Outra opção seria fugir para um amigo do proprietário.

O exame desse gênero do discurso, amplamente utilizado em diversas ocasiões por seu
destinador, o apóstolo Paulo, porta elementos que interessam ao analista do discurso religioso, pois
procura observar, não só como a significância é produzida, mas também como o destinador se legitima
no processo de produção de assentimentos racional e afetivo.
Este estudo, porém, é apenas parte do trabalho que desenvolvemos em nossa tese de doutorado,
cujo foco incide sobre a arte retórica dos discursos paulinos, apreensível pela análise das estratégias de
convencimento e de persuasão frente à diversidade de auditórios, de modo que não tem a pretensão de
apontar, com exaustão, todos os elementos passíveis de análise.
A base teórica de que nos servimos encontra-se na Nova Retórica perelmaniana e em seus
desdobramentos (com Michel Meyer, Rui Grácio, Christian Plantin, entre outros). Considerando, ainda,
a importância dos papéis dos sujeitos envolvidos no processo discursivo, dialogamos também com a
Análise do Discurso de orientação francesa, mais especificamente com os trabalhos de Dominique
Maingueneau e Ruth Amossy.
Tendo em vista que o corpus examinado está escrito originalmente em língua grega, todos os
extratos da epístola (composta de apenas 25 versículos) foram traduzidos a partir do aparato teórico
fornecido pela gramática de Henrique Murachco. Sempre que possível, evitamos acréscimos ou
subtrações de termos e expressões, objetivando preservar o conteúdo semântico. A tradução literal que
adotamos neste trabalho procura manter as características de estilo e gramática e, por essa razão, ela
poderá parecer, em alguns casos, canhestra ou agramatical. Para facilitar a compreensão, seguimos os
seguintes códigos:

reunisse na própria casa de Filemon, e que Áfia e Arquipo pertencessem à sua família dada a especificidade da menção que os distingue
dos demais:
“kai. VApfi,a| th/| avdelfh/| kai. VArci,ppw| tw/| sustratiw,th| h`mw/n kai. th/| katV oi=ko,n sou evkklhsi,a”| ,
“E a Áfia, a irmã, e a Arquipo, o companheiro de arma de nós, e à igreja na casa de ti” (Filemon, v. 2).
• 1 - ( ) – opção de tradução. As alternativas de tradução, postas entre parênteses, levam em
conta as possibilidades de sentido que o léxico e as formas verbais, em seus diferentes aspectos,
proporcionam;
• 2 - [ ] – texto omitido em alguns manuscritos. Esse símbolo na tradução mantém a mesma
apresentação que nos é feita, do texto grego, pela edição da The Greek New Testament.
• 3 -{ } – termo subentendido (real ou possível).

2. Fundamentação teórica

Os estudos da Retórica na modernidade, feitos por Chaïm Perelman e seus sucessores, recuperam
o conceito aristotélico de raciocínio dialético e propõem novas reflexões sobre o discurso argumentativo.
De maneira complementar à Lógica Formal – em que os fenômenos sociais poderiam ser avaliados sob os
mesmos parâmetros da matemática –, a Nova Retórica apresenta uma lógica dos juízos de valor relativa
não ao verdadeiro, mas ao preferível, cujas premissas são constituídas pelas proposições geralmente
aceitas e, portanto, pertencentes ao âmbito do verossímil, plausível, contingente, isto é, das impressões,
aparências e ambiguidades, com o objetivo de convencer e persuadir. Como o interesse reside nas provas
argumentativas, que permitem discernir a melhor opinião, é natural que não haja assentimento pela
submissão coercitiva, mas pela decisão e participação.
Por sua vez, a ação argumentativa não é evidente, não é dada aprioristicamente; ela é resultado,
sim, de um conhecimento prévio entre os interlocutores. Como seu objetivo é causar “uma mudança na
cabeça dos ouvintes...” (PERELMAN, 1999, p. 304) e na disposição de agir, obtendo ou aumentando a
adesão à tese apresentada, é preciso reconhecer que ela ocorre em função do auditório ao qual o orador
deverá conhecer e adequar-se.
A persuasão, portanto, se dá somente quando o orador parte daquilo que o auditório já admite
(o acordo prévio), estabelecendo a seguir uma relação entre as crenças e valores existentes (dóxa) e o
novo que se busca fazer admitir. Por meio da seleção, classificação e organização dos dados, procura-se
harmonizar o discurso ao(s) auditório(s) que se pretende alcançar, busca-se adequação aos juízos
reconhecidos, aos habitus admitidos pelo público. Desse modo, ao apoiar os seus argumentos sobre o
que já está aceito, o orador modela o seu êthos segundo as representações coletivas preexistentes,
pelo que, simultaneamente, constrói o sentido no objeto e se autoconstitui.
Desse modo, enquanto o orador cria a imagem de si e a de seu auditório no discurso, por este,
a audiência, no processo de reconstrução do sentido, apreenderá as representações e irá avaliá-las,
atribuir-lhes graus de identificação, aceitar ou não a sua legitimidade. Assim, enquanto, por um lado, a
intenção do orador nesse processo de criação de si e do outro por meio da palavra é obter autoridade
e garantir o sucesso do empreendimento oratório, por outro lado, a audiência é co-produtora do
discurso, é agente diante daquele que fala.
Soma-se a isso, ainda, a questão do êthos pré-discursivo, que remete não a imagens
construídas pelo discurso, mas à apreensão do que se conhece de antemão a respeito do caráter, do
modo de ser (êthos3), das opiniões (dóxai), dos hábitos (éthe), das posturas e disposições (héxeis) do
orador. Essa relação, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002), é uma ligação de coexistência,
cujo efeito de permanência é resultante da associação entre ato e pessoa.
Oléron (1993, p. 100) percebe nisso uma ideia de causalidade, em que o agente tanto é
produtor de seus atos, quanto por eles é reconstituído: “...le rapport entre l’acte et la personne n’est
pas un rapport arbitraire; on peut invoquer un lien de causalité: la personne est la cause de l’acte et
ce qui appartient à l’un est naturellement attribuable à l’autre4”. Assim sendo, é “a partir da imagem
que o público já fez de sua pessoa que o locutor elabora em seu discurso a imagem que deseja
transmitir” (HADDAD, 2005, p. 163), podendo esta ir ao encontro de, reforçando a primeira, ou ir de
encontro a, como técnica de ruptura.
Mas o que é auditório? A Nova Retórica o define como “...o conjunto daqueles que o orador
quer influenciar com sua argumentação” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 22). Nesse
sentido, o texto escrito não foge à regra, pois ele possui o seu público e o seu objetivo persuasivo,
permanecendo, assim, sob as condições fundamentais do discurso argumentativo, isto é, ele sempre
está “condicionado, consciente ou inconscientemente, por aqueles a quem pretende dirigir-se”
(PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 7).
Contudo, nenhuma audiência é, a princípio, de fácil delimitação. A natureza de sua composição é
sempre heterogênea, como se assevera:

3
Em nossa transcrição das palavras gregas, preferimos a forma êthos (de h=qoj: caráter, modo de ser; com plural êthe, de h=qh) para
diferenciá-la de éthos (de e;qoj: costume, hábito; com plural, éthe, de e;qh). A relação de uma forma com a outra está no que Platão (Leis,
e
792 ) afirma: “τὸ πᾶν ἦθος διὰ ἔθος” (todo êthos {é} segundo éthos), ou seja, todo caráter é resultante de hábito. Além disso,
procuramos manter a acentuação original de todas as palavras por nós empregadas neste artigo: lógos, páthos, dóxa, héxeis etc.
4
“...a relação entre o ato e a pessoa não é uma relação arbitrária; pode-se invocar uma ligação de causalidade: a pessoa é a causa do
ato e aquilo que pertence a um é naturalmente atribuível ao outro”.
mesmo quando o orador está diante de um número limitado de ouvintes, até mesmo de um
ouvinte único, é possível que ele hesite em reconhecer os argumentos que parecerão mais
convincentes ao seu auditório; insere-o então, ficticiamente por assim dizer, numa série de
auditórios diferentes (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 25).

De fato, como o Tratado da Argumentação admite: “não é necessário encontrar-se perante


várias facções organizadas para pensar no caráter heterogêneo do auditório. Com efeito, pode-se
considerar cada um de seus ouvintes como integrante em diversos pontos de vista...” (PERELMAN e
OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 24). Disso pode resultar a aplicação de uma multiplicidade de
argumentos na construção do edifício retórico.
Desse modo, fica evidente que o processo persuasivo é um desafio que leva em conta o jogo
de imagens extra e intradiscursivas tanto do êthos quanto do páthos (sejam elas efetivas ou
projetivas, cf. MEYER, 2007; visadas ou produzidas, cf. MAINGUENEAU, 2008; prévias ou discursivas,
cf. AMOSSY, 2005; emotivas ou racionais, cf. PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2002; ou, ainda,
aquelas advindas de posições sociais ou institucionais, cf. BOURDIEU, 2008).
Quanto ao discurso, é em sua opacidade, em sua ambiguidade estrutural linguageira, que a
argumentação é produzida. Assim, é somente na interação dos “valores aceitos pelo auditório, o
prestígio do orador, a própria língua de que se serve” (PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p.
150) que o agir persuasivo se realiza e promove situações em que os desacordos podem ser
superados, ainda que seja de modo incipiente ou transitório.

3. Análise do corpus

Os critérios de escolha, adaptação e organização dos dados com vistas à ação sobre o páthos e
sua dóxa, susceptíveis que são a influências, mostrarão a competência ou a inaptidão de quem toma a
palavra. O hábil manuseio dos dados agirá diretamente sobre a razão e a emoção do auditório e
poderá produzir os resultados esperados, embora, de fato, não haja garantias de sucesso.
Nesse processo, pode-se recorrer, por exemplo, à qualificação e à classificação dos dados pelo
uso de epítetos resultantes da seleção visível de certa qualidade que se enfatiza e que mostra, com
força argumentativa, a preeminência (positiva ou negativamente considerada) de uma noção, pessoa
ou grupo. É assim que Paulo5 se dirige a Filemon logo no endereçamento de sua carta pessoal:

Filh,moni tw/| avgaphtw/| kai. sunergw/| h`mw/n

a Filemon, amado e cooperador (trabalhador em conjunto) nosso (v. 1).

As inclusões dos epítetos elogiosos não representam uma mera necessidade protocolar dos
endereçamentos epistolares. A escolha das características demonstra apreço, e mais, aponta a
superioridade, se não a do indivíduo, a de valores que este representa e que, por serem louváveis,
serão postos em evidência já na captatio benevolentiae:

Euvcaristw/ tw/| qew/| mou pa,ntote mnei,an sou poiou,menoj evpi. tw/n proseucw/n mou(
avkou,wn sou th.n avga,
ga,phn kai. th.n pi,stin( h]n e;ceij pro.j to.n ku,rion VIhsou/n kai. eivj pa,ntaj
tou.j a`gi,ouj)))

Dou graças ao Deus de mim, sempre lembrança de ti fazendo sobre as orações de mim,
ouvindo de ti o amor e a fé que portas para junto do Senhor Jesus e para todos os santos... (v.
4-5) - os grifos são nossos.

Desse modo, o amado Filemon faz ecoar de si, de um lado - desfazendo a ênfase da hendíade –
“o amor fiel” que ele tem e, por outro lado, o trabalho feito em conjunto com Paulo em “fé amorosa”,
tudo sendo dirigido não só a Cristo mas também “a todos os santos” (eivj pa,ntaj tou.j a`gi,ouj - v. 5)
Diante dos valores que Filemon porta, outros epítetos não lhe teriam sido tão bem selecionados
quanto “amado” (avgaphto,j) e “cooperador” (sunergo,j) – v. 1.
Se considerarmos, ainda, que o fazer interagir os termos em um dado contexto pode ser
instrumento eficaz no papel persuasivo, é nítido o efeito que se cria pela aproximação do nome
Filemon, que significa aquele que ama, com a virtude que lhe é atribuída. Esses ecos de significação
ligados ao destinatário serão, de fato, o ponto central para o desenvolvimento da argumentação:
tendo sido classificado como aquele que ama e amado, exige-se dele atitudes correspondentes.
Assim, Paulo engendra estratégias que reforçam as bases de suas intenções. Apelando ao
lugar da essência, que concede um valor superior aos indivíduos enquanto representantes de uma

5
Por se tratar de uma carta pessoal (gênero epístola) , chamaremos Paulo “destinador” e Filemon “destinatário”.
essência, ele agradece a Deus pelos traços distintivos que Filemon, como representante bem
caracterizado do amor, tem para com “todos os santos” (v. 4-5, cf. acima); e admite estar alegre e
confortado mediante o descanso que estes têm recebido de seu trabalho amoroso:

cara.n ga.r pollh.n e;scon kai. para,klhsin evpi. th/| avga,ph| sou( o[ti ta. spla,gcna tw/n a`gi,wn
avnape,pautai dia. sou/( avdelfe,Å

pois muita alegria tive e chamada ao lado (consolo) sobre o amor de ti, porque as entranhas
dos santos descansaram através de ti, irmão (v. 7) – os grifos são nossos.

É bem perceptível que o destinador reforça, com certa constância, a ligação de coexistência
entre ato e pessoa. A fé no Senhor e as ações amorosas para com “todos os santos” não só foram
motivos de “muita alegria” para Paulo, mas também atribuíram a Filemon um êthos prévio
reconhecido ao qual se fez apelo como ponto de partida, como base de acordo para a argumentação
a ser desenvolvida.
Com o objetivo de rogar ao destinatário a favor do escravo fugitivo, agora reenviado a seu
dono: “que mandei de volta a ti” (o]n avne,pemya, soi – v. 12), após ter sido levado à fé cristã: “que gerei
nas ataduras (prisões), Onésimo” (o]n evge,nnhsa evn toi/j desmoi/j( VOnh,simon - v. 10), Paulo joga, mais
uma vez, com o recurso da interação de termos: aproxima o nome Onésimo (derivado do adjetivo
ovnh,simoj, útil) das qualidades que lhe são atribuídas: “o {que} a ti um dia {foi} inútil, agora, porém,
[não só] a ti mas também a mim {é} bem útil” (to,n pote, soi a;crhston nuni. de. Îkai.Ð soi. kai. evmoi.
eu;crhston - v. 11), ou seja, aquele que no passado fora “inútil” (a;crhston) por ter fugido, é agora
“bem útil” (eu;crhston), tanto para Filemon quanto para as intenções de Paulo.
Fundamentando a superioridade do valor que ele atribui a Onésimo na base de razões da
quantidade, Paulo argumenta que o escravo fugitivo havia se separado por um pouco de tempo para,
a partir de agora, permanecer para sempre com Filemon. É da presença duradoura que é tirado
material persuasivo:

Ta,ca ga.r dia. tou/to evcwri,sqh pro.j w[ran(


an i[na aivwn, ion auvto.n avpe,ch|j(

Pois, por causa disso, rapidamente {ele} se separou para junto de uma hora (em relação a
uma hora, por uma hora), para o reterdes para sempre (v. 15) – grifos nossos.
Desse modo, a fim de evitar o castigo de Onésimo, Paulo examina o acontecimento a partir de
seus efeitos, pesa o evento por meio de suas consequências e não por suas causas: apela, portanto,
ao argumento pragmático. Se a atitude de Onésimo, em termos de causa, era tida como uma
separação que lhe rendeu a condição de inutilidade, sob o ponto de vista de seus resultados ela
tornou-se “bem útil” (eu;crhston) e “perpétua” (aivwn, ion). Tendo em vista que o argumento possibilita
a passagem de uma ordem de valor a outra, o que ocorre é a transferência da qualidade da
consequência para a causa, o que produz a conclusão da superioridade da conduta partindo da
utilidade de seus resultados.
Não só os dados que atingem a razão mas também aqueles que convocam paixões são postos
lado a lado. Por três vezes (v. 7, 12, 20) se faz referência às entranhas, forma metonímica de lhes fazer
menção, de modo que é nítido o apelo a dados que as façam emergir à consciência, que lhes deem
presença, dada a importância vital que as paixões têm na epístola:

o[ti ta. spla,gcna tw/n a`gi,wn avnape,pautai dia. sou/( avdelfe,Å


b
porque as entranhas dos santos descansaram através de ti, irmão (v.7 ).

o]n avne,pemya, soi( auvto,n( tou/tV e;stin ta. evma. spla,gcna\

que mandei de volta a ti, ele, isto é, as minhas entranhas (v.12).

A ocorrência do v. 20 traz, sem dúvida, a mais importante invocação pessoal à ação baseada
na paixão. O desejo (marcado pelo verbo ovni,nhmi, “tenho proveito”, no modo optativo – v. 20) que
Paulo tem se apresenta na forma de forte necessidade, como é possível depreender pelas condições
formais em que está expresso:

• advérbio de afirmação: nai,, “sim”;


• vocativo metafórico: avdelfe,, “irmão”;
• presença do pronome pessoal: evgw,(, “eu”;
• verbo no imperativo: avna,pauson, “faz descansar”:
nai. avdelfe,( evgw,
w sou ovnai,mhn evn kuri,w\| avna,pauso,n mou ta. spla,gcna evn Cristw/Å|

Sim, irmão, de ti pudera eu ter proveito n{o} Senhor; descansa de mim as entranhas em Cristo
(v. 20) - grifos nossos.

Por meio desses recursos linguísticos, mostra-se, com força enunciativa construída pela
seleção, apresentação e organização dos dados, a importância atribuída ao assunto. Busca-se, pela
relação familiar (“irmão”, avdelfe,), estabelecida pelos laços da fé (“em Cristo”, evn Cristw/)| , provocar a
comunhão, a identificação, a proximidade que permite solicitar um favor, que graças ao seu benefício
gerará naturalmente a gratidão, como já pensava Aristóteles (Retórica, II, 7, 1385a).
É assim que as metáforas assumem papel significativo na epístola. Tiradas da vida familiar, elas
produzem o efeito de aproximação, de pertencimento, de estreiteza de laços entre Paulo, Onésimo e
Filemon. O escravo é, agora, o seu filho espiritual (assim como provavelmente Filemon também o
era): “a respeito do meu filho, que gerei” (peri. tou/ evmou/ te,knou( o]n evge,nnhsa – v. 10), as suas próprias
entranhas: “...ele, isto é, as minhas entranhas” (... auvto,n( tou/tV e;stin ta. evma. spla,gcna - v. 12), o
“irmão amado” (tanto quanto Filemon), não só no que se refere à vida “na carne” (evn sarki,) mas
também “no Senhor” (evn kuri,w)| :

avdelfo.n avgaphto,n( ma,lista evmoi,( po,sw| de. ma/llon soi. kai. evn sarki. kai. evn kuri,wÅ|

irmão amado, sobretudo a mim, em quanto mais a ti, não só em carne mas também n{o}
Senhor (v. 16) – grifos nossos.

Sendo assim, o novo status de Onésimo, fundamentado pelo recurso ao lugar da qualidade,
que dá destaque ao novo, ao particular, ao superior “no Senhor” em contraste com o comum ou
antigo, não poderia ser desconsiderado por Filemon:

ouvke,ti w`j dou/lon avllV u`pe.r dou/lon( avdelfo.n avgaphto,n)))

não mais como escravo, pelo contrário, acima de escravo, irmão amado... (v. 16) – grifos
nossos.
Mas esses argumentos seriam suficientes? Parecendo não querer correr o risco de fracasso,
Paulo emprega a figura retórica da preterição (ou paralipse), servindo-se, assim, de modo indireto, de
sua influência pessoal:

Dio. pollh.n evn Cristw/| parrhsi,an e;cwn evpita,ssein soi to. avnh/kon, [parakalw/)))]

Por isso – embora eu tenha (tendo) muita liberdade em Cristo para alinhar (ordenar) a ti aquilo
que convém – [chamo ao lado...] (v. 8, 9).

Ora, se não é por sua autoridade que o seu pedido deve ser cumprido, por que então fazer-lhe
referência? Dessa forma, o destinatário é confrontado, segundo Meyer (1998), com uma questão a
que deve obrigatoriamente responder. É evidente que a preterição é a manifestação de uma resposta
que, negando a questão, a afirma; pela denegação, sustenta-se a argumentação que há de se
desenvolver: “embora eu tenha muita liberdade para ordenar...” - (v. 8) é dizer que não fará uso do
prestígio que tem, mas ao mesmo tempo é trazê-lo vivamente à presença do destinatário.
Perelman e Olbrechts-Tyteca destacam que há argumentos “cujo uso demasiado explícito é
indelicado, perigoso, até mesmo vedado” (2002, p. 551) e que, portanto, a referência que se lhes faz
se dá por meio de insinuações, de alusões ou de ameaças de uso. Esse modo de argumentar produz
figuras de renúncia, como a preterição que é o sacrifício imaginário de um argumento, ou seja,
anuncia-se ao mesmo tempo que se renuncia. Esse sacrifício “satisfaz às conveniências; faz crer, além
disso, que os outros argumentos são suficientemente fortes para que se possa dispensar este” (2002,
p. 552). Nesse sentido, o tropo assume o papel de solução que pretende anular toda possibilidade de
negação à ação pretendida.
Em seguida, completando o pensamento do v. 9, Paulo usa “em razão do amor” (dia. th.n
avga,phn) expressão claramente pertencente às técnicas de apresentação, por chamar a atenção para o
elemento a que se quer dar importância. Após a preterição do v. 8, destacar o amor como causa
maior (valor este que é próprio de Filemon) reduz, pelo efeito de comunhão, a diferença que poderia
produzir-se entre destinador e destinatário:

dia. th.n avga,phn ma/llon parakalw/( toiou/toj w'n w`j Pau/loj presbu,thj nuni. de. kai. de,smioj
Cristou/ VIhsou/\
em razão do amor, mais chamo ao lado (exorto) tal como sendo, Paulo velho, e agora também
preso de Cristo Jesus (v. 9).

Essa amenização é seguida de metáforas ligadas ao mercado de negócios, em que Paulo se


apresenta ora como parceiro (sócio) de Filemon:

eiv ou=n me e;ceij koinwno,n( proslabou/ auvto.n w`j evme,Å

Se, então, me tens parceiro, recebe-o como a mim (Filemon, v.17);

ora como seu devedor (e aqui, tanto no sentido figurado quanto no literal):

eiv de, ti hvdi,khse,n se h' ovfei,lei( tou/to evmoi. evllo,gaÅ

mas se em relação a algo {ele} te faltou com a justiça, ou deve, isso a mim põe em conta
(calcula).

evgw. Pau/loj e;graya th/| evmh/| ceiri,( evgw. avpoti,sw\


a
Eu, Paulo, escrevi com a minha mão, eu pagarei (v. 18-19 ).

É, porém, a nova preterição que chama a nossa atenção. Ela surge com efeito fulminante sobre
o destinatário: o tropo assume o papel de solução que pretende anular toda possibilidade de
negação. O êthos pré-discursivo, como resposta definitiva à questão, é, sem dúvida, aqui evocado:

i[na mh. le,gw soi o[ti kai. seauto,n moi prosofei,leijÅ


b
para que {eu} não te diga que até a ti mesmo me deves a mais (v. 19 ).

Assim, se não for por amor, que ele seja atendido por obediência. Paulo, portanto, exige a
liberdade do escravo, o que vai ao encontro de sua teologia que defende a igualdade dos irmãos em
Cristo:

Pepoiqw.j th/| u`pakoh/| sou e;graya, soi( eivdw.j o[ti kai. u`pe.r a] le,gw poih,seijÅ

Persuadido à obediência de ti, escrevi a ti, sabendo que ainda acima (além) das coisas que digo
farás (v. 21).
Embora ainda estivesse preso, Paulo acreditava que seria solto e que poderia visitar Filemon
em breve, quando, então, certamente tomaria conhecimento a respeito do destino dado ao escravo e
do grau de respeito que o destinatário lhe dedicava:

a[ma de. kai. e`toi,maze, moi xeni,an\ evlpi,zw ga.r o[ti dia. tw/n proseucw/n u`mw/n carisqh,somai
u`mi/nÅ

ao mesmo tempo, prepara-me, também, hospedagem, pois espero que, através das orações
de vós, eu haverei de ser dado em graça a vós (v. 22).

Embora estejamos diante de uma epístola pessoal enviada a um destinador em particular, ela
seria lida perante a igreja local, que se reunia na casa do destinatário, o que a tornaria pública, como
se pode depreender do próprio endereçamento: “e à igreja na casa de ti” (kai. th/| katV oi=ko,n sou
evkklhsi,a| - v. 2), o que, de certa forma, já poderia coagir Filemon a agir como esperado.

Por sua vez, para finalizar a epístola, sob a inocente transmissão de saudações de outras
pessoas, o destinador, sem explicitar as suas intenções (certamente ele esperava que Filemon agisse
por si mesmo, por decisão voluntária, ainda que manipulada), lista, de seu lado, testemunhas outras,
conhecidas e participantes de seu “pedido”, o que intensifica ainda mais a força dos argumentos que
pretendem conduzir o proprietário cristão de escravo a perceber a incoerência de ser dono de cristão,
pois, estando em Cristo, se é irmão “na carne” e “no Senhor” (v. 16):

VAspa,zetai, se VEpafra/j o` sunaicma,lwto,j mou evn Cristw/| VIhsou/( Ma/rkoj( VAri,starcoj(


Dhma/j( Louka/j( oi` sunergoi, mouÅ

Saúda-te Epafras, o co-prisioneiro de mim em Cristo Jesus, Marcos, Aristarco, Demas, Lucas, os
cooperadores de mim (v. 23-24).

4. Considerações finais

A partir dessas observações, verifica-se que a percepção desses procedimentos discursivos


mostra-se valiosa à análise, na medida em que revelam a concepção e o valor que o destinador atribui
a seu destinatário durante todo o processo de convencimento e de persuasão, pois este é
caracterizado pela atitude adotada a seu respeito, pela maneira de julgá-lo e de tratá-lo.
Verificamos, também, o papel indissociável da tríplice dimensão da Retórica: êthos, páthos,
lógos. Enquanto o êthos é aquele que responde, por meio de seu lógos, às questões sobre as quais o
ser humano negocia aproximações e distanciamentos, é aquele em quem o páthos poderá
reconhecer-se e a quem poderá identificar-se, é o ponto final do questionamento (Meyer, 2007:34-35)
encarnado no orador, o páthos, por sua vez, alvo da persuasão, é a fonte das questões e das
emoções: ele não só faz surgir as questões às quais o êthos deve responder, mas também participa
ativamente da ação éthica, pois as paixões que vêm à tona são o resultado do cruzamento dos
diversos interesses que o auditório possui com as respostas. O lógos, assim, se presta à mescla dos
dois pontos de vista [do êthos e do páthos] - (Meyer, 2007:52): é a expressão tanto da questão quanto
da resposta. Em outras palavras, o êthos aparece como um princípio, como um processo interativo
que porta respostas por meio do lógos (enunciados estrategicamente produzidos) às questões
conflituosas originárias do páthos, negociando aproximações e distanciamentos, tensões e equilíbrios,
tanto no âmbito racional quanto no passional.
Assim, uma eficiente argumentação que vise à ação (não necessariamente imediata) deverá
não só atingir a razão mas também excitar as paixões, para que a adesão seja intensa, total,
suficientemente dotada de capacidade para superar tanto o imobilismo que a dóxa possa ter
instalado, quanto os agentes contrários à intenção de quem fala.
Considerando que nenhuma das epístolas paulinas, nem mesmo a menor dirigida a Filemon,
corpus deste artigo, está desprovida de argumentação, apontamos alguns instrumentos
argumentativos específicos empregados com o fim de alcançar a adesão do espírito, pelas estruturas
de linguagem e pela postura do destinador, em suas adaptações éthicas e em suas técnicas de
construção discursiva.
Reconhecemos, porém, que não há garantias de sucesso quando se está em território retórico;
sobrepujar, portanto, as objeções e suscitar emoções empáticas é o desafio de todo argumentador
que jamais está livre de dificuldades para fazer o seu auditório perceber e conceber as suas opiniões
como sendo as dele.
Referências

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The Greek New Testament (GNT), edited by Kurt Aland, Matthew Black, Carlo M. Martini, Bruce M.
Metzger, and Allen Wikgren, in cooperation with the Institute for New Testament Textual Research,
Münster/Westphalia, Fourth Edition (with exactly the same text as the Nestle-Aland 27th. Edition of
the Greek New Testament). In: Software “Bible Works”. Copyright © 1995 Michael S. Bushell.
Abstract: The Perelman`s proposal of New Rhetoric and his successors allowed the analysis of
persuasion in various types of discourses. Given the importance of the argumentative process in the
audience, the speakers build their ethos according to collective representations which are already
established and they support their arguments a set of previous shared values and passions. Our
research aims at analyzing the argumentative procedures used by the apostle Paul in order to gain the
Philemon’s assentment, his audience in the corpus under study. From the discursive relationship
between the address and the addressee, and from the verification of persuasive strategies used, this
study aims to contribute to further discussions on the current conditions of production of statements
and their goals. In this paper, the extracts from the Epistle to Philemon will be directly translated by us
from Greek. The concepts of "New Rhetoric” are the background for this analysis.

Keywords: New Rhetoric, Argumentation, Religion Discourse, Epistle to Philemon, the Apostle Paul.

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